Relações de Gênero e Poder Entre Trabalhadores Da Área Da Saúde

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  • Fazendo Gnero 8 - Corpo, Violncia e Poder

    Florianpolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

    Relaes de gnero e poder entre trabalhadores da rea da sade

    Elenice Pastore (UPF), Luisa Dalla Rosa (UPF), Ivana Dolejal Homem (UPF) Relaes de gnero; representao; relaes de poder. ST 25 Perspectiva profissional e gnero

    Introduo

    A temtica proposta neste trabalho uma reflexo sobre as relaes de gnero e poder entre os trabalhadores e gestores da rea da sade identificando possveis assimetrias de gnero presentes nas prticas profissionais da rea da sade. Objetivou-se investigar a existncia da diviso sexual do trabalho e, conseqentemente, a naturalizao destas prticas, bem como, as formas mais freqentes de precarizao do trabalho feminino na rea da sade, identificando relaes de gnero, poder, sofrimento e realizao profissional. A diviso sexual do trabalho estabelecida aqui como ponto de partida para a compreenso da atribuio ao pblico feminino da prtica do cuidar como um processo naturalizado, articulando, dessa forma, uma investigao emprica e uma abordagem terica para

    explicar possveis explicaes de origens biolgicas e culturais apresentados neste processo. Busca-se analisar tambm a relao existente entre as assimetrias de gnero, com os processos de

    flexibilizao e precarizao do trabalho. A pesquisa se realizou em um hospital regional localizado no municpio de Passo Fundo, sendo

    desenvolvida atravs de um estudo de caso, caracterizado particularmente por informaes coletadas de natureza qualitativa a partir de uma amostra aleatria de profissionais da rea da sade. Os procedimentos metodolgicos utilizados para o desenvolvimento deste trabalho caracterizam-se pela utilizao do mtodo exploratrio-descritivo com abordagem qualitativa, sendo que na coleta de dados foram realizadas entrevistas semi-estruturas, em profundidade, aplicado a 70 trabalhadores da sade. Utilizou-se para a anlise dos dados, a anlise de contedo e documental.

    O trabalho em processo de transformao

    O processo de reestruturao do trabalho intensificada nas ltimas dcadas do sculo passado vem provocando diversas modificaes nos processos organizacionais, nas formas de trabalho e de gesto, afetando tanto a vida dos trabalhadores como tambm a organizao de modo geral. As formas atpicas

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    de contrato de trabalho e novas formas de gerenciamento tm se manifestado atravs de algumas estratgias como a desverticalizao e externalizao do processo produtivo, a contratao de mo-de-obra em tempo parcial, o trabalho informal, assim como a reestruturao das jornadas de trabalho, entre outras.

    A reestruturao produtiva e o avano da tecnologia da informao tm acirrado as formas a flexibilizao, desregulamentao e precarizao do trabalho, cada vez mais exacerbadas. Antunes (2000) e Bruschini (2000) observam este perodo como marcado por crises econmicas, de elevadas taxas de inflao, de sucessivos planos de estabilizao, queda na inflao e estabilizao da moeda. Tendo como cenrio mais amplo a globalizao da economia e o intenso avano da tecnologia, esse

    perodo foi marcado, tanto no Brasil como em outros pases por uma reestruturao da economia, que provoca perda de postos de trabalho em setores formalizados e flexibilizao das relaes de trabalho. Ou seja, evidencia-se uma realidade onde multiplicam-se as situaes de trabalho precrio, sub-remunerado e como conseqncia sem proteo social regular. Para Nogueira (2004), nesse perodo houve um claro desmonte dos direitos dos trabalhadores, os quais, desde ento, vm sofrendo uma progressiva flexibilizao do trabalho, com forte crescimento da informalidade e uma conseqente perda das conquistas trabalhistas. Segundo a Sociloga Mary Castro (2001), essas mudanas so reflexos de uma estratgia das polticas neoliberais, que tem de ser discutidas no s como uma forma de organizao da economia poltica, mas como um tipo de cultura pelo qual se amplia a sujeio dos trabalhadores e das trabalhadoras, inclusive minando vontades, auto-estima e dignidade. A lgica da flexibilizao na atual reestruturao produtiva do capitalismo juntamente com o neoliberalismo, estabelece relaes tambm com o crescimento do emprego das mulheres, principalmente em setores mais precarizados. Nesta perspectiva, importante enfatizar que este conjunto de transformaes tambm ocorrem nos padres culturais e nos valores relativos ao papel social da mulher que, segundo Bruschini (2000) foram intensificadas pelo impacto dos movimentos feministas desde os anos de 1970 e principalmente pela presena cada vez mais atuante das mulheres nos espaos pblicos, o que alterou a constituio da identidade feminina, cada vez mais voltada para o trabalho produtivo. Em uma pesquisa realizada por

    esta mesma autora, enfoca que nos anos de 1990 a participao das mulheres no mercado de trabalho, foi marcada por continuidades e mudanas, de um lado existem transformaes provocadas pelo

    impacto da escolaridade, mulheres em cargos de comando, nas empresas, nas indstrias, e em profisses de prestgio como a medicina, a advocacia, entre outras. Por outro lado, as trabalhadoras continuam concentradas em atividades do setor de servios, no segmento informal, desprotegido do mercado de trabalho, em condies de precarizao e com baixos ndices de carteira assinada,

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    conseqentemente sem contribuio previdenciria, representam pelo menos metade da fora de trabalho feminina. Ao mesmo tempo, as trabalhadoras mais qualificadas predominam em empregos tradicionais femininos como o magistrio, a enfermagem e o servio social. Desta forma possvel perceber a permanncia da diviso sexual do trabalho em todos os setores do mundo do trabalho, atribuindo determinados tipos de atividades para as mulheres e outras para os homens, sendo que, historicamente, as atividades compreendidas como femininas so consideradas secundrias, menos valorizadas tanto sociais como economicamente.

    A diviso sexual do trabalho no setor da sade

    O setor da sade tem se caracterizado pela forte existncia da diviso sexual do trabalho onde predominantemente as mulheres atuam nas funes voltadas essencialmente ao cuidar. Essa atribuio ao pblico feminino da prtica do cuidar como um processo naturalizado, necessita de uma anlise terica para explicar possveis origens biolgicas e/ou culturais destes fenmenos.

    Para Hirata (2002), no por acaso que diferentes setores utilizam mo de obra essencialmente feminina, mas de acordo com o sexo de seus assalariados efetivos que a empresa elabora e aplica sua poltica de gesto da mo-de-obra. Ou seja, o forte contingente feminino, encontra-se em trabalhos cuja execuo bastante fragmentada e estandardizada sob forte presso do tempo, normalmente ligada a uma organizao do trabalho baseada em princpios tayloristas. As qualidades adquiridas

    primeiramente na famlia de habilidades manuais, meticulosidade e a diligncia, so pr-requisitos para o desenvolvimento de atividades mais analticas e minuciosas. Na maioria das vezes, o trabalho no deixa de ser montono isolado e com sujeio temporal, mesmo com a modernizao tecnolgica.

    A diviso sexual do trabalho uma constante nas prticas do trabalho na rea da sade que apresentam uma concepo de oposio entre o tratar (saber e fazer mdico) e do cuidar (saber e fazer de enfermagem). Percebe-se nesta relao um processo de antagonismo, que de certa forma foi naturalizado, provocando inquietaes sobre a existncia de hierarquia e dominao nestas relaes. Observa-se a permanncia da feminizao no trabalho na rea da sade, principalmente nos setores da

    enfermagem, higienizao e nutrio, que so tambm caracterizados pela crescente precarizao e flexibilizao nas relaes de trabalho.

    Historicamente o campo de trabalho da rea da sade um lugar de concentrao de trabalho feminino. O Observatrio de recursos humanos em reformas setoriais da sade (2007) constatou que existem, aproximadamente, sete milhes de pessoas na Amrica Latina e no Caribe, sendo a maioria do sexo feminino, trabalhando em atividades intensivas no campo da sade.

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    Segundo Lopes (1996), se tomarmos como referncia o setor hospitalar, as mulheres aparecem neste contexto em percentagem superior, em torno de 70% do conjunto dos trabalhadores. Os setores que apresentam um contingente feminino maior so os de sanizao, higienizao ambiental, servios de hotelaria, servios da alimentao, servios de terapia ocupacional e de assistncia social. O setor da cozinha, por exemplo, quase de exclusividade das mulheres, sendo que o setor da enfermagem, geralmente, excede 85% de trabalho feminino. Neste ltimo caso, justifica-se a importncia da anlise da rea da enfermagem por representar um nmero significativo de trabalhadores da sade, em mdia

    apresentando em torno de 40% do total desse universo. Ainda para Lopes (2005), se retomarmos os aspectos sociohistricos, pode-se dizer que a

    enfermagem nasce como um servio organizado pela instituio das ordens sacras. Coexiste com o cuidado domstico s crianas, aos doentes e aos velhos, associado figura da mulher-me que desde sempre foi curandeira e detentora de um saber informal de prticas de sade, transmitido de mulher para mulher mesmo que admitamos, por exemplo, que as construes das identidades masculinas e femininas no trabalho so mveis e variam no tempo e no espao, fato analisado por diferentes estudiosos a induo do processo de institucionalizao capitalista do trabalho na sade seletividade de um tipo ideal de cuidadora.

    nessa perspectiva que a busca de explicaes significativas sobre a situao concreta da profisso de enfermeira passa, necessariamente, pela noo de cuidado de sade enquanto ao concebida como feminina e produto de qualidades naturais das mulheres, as quais repousam, por sua

    vez, em uma concepo mais ampla de trabalho. Lopes (1996), assegura ainda, que se torna natural que a maior parte das enfermeiras sejam

    mulheres, esse dado foi sempre evidncia e, que nos parece, hoje, ainda antinatural questionar. Para quem sempre se ocupou dos cuidados de sade no domnio privado (domstico), natural que conjugue todas as qualidades para assegurar a predominncia no domnio profissional. O principal argumento a coerncia dos atributos e das qualidades do seu sexo. E quem ousaria pensar o contrrio? Mas, as enfermeiras no so enfermeiras em sua maioria mulheres -, por acaso da histria. Assim como a situao das mulheres num sentido mais amplo, as enfermeiras so produto da definio de ser e das

    relaes sociais entre os sexos. Esse atributo ao pblico feminino prtica do cuidar como um processo naturalizado, origina-se essencialmente da construo cultural do papel da mulher na

    sociedade, identificado como portadora de maiores habilidades para os cuidados, neste caso com a sade/doena, assim como com as crianas e com os idosos. Persiste a feminizao e as relaes de poder

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    A diviso sexual do trabalho e consequentemente a feminizao de funes vinculadas ao cuidar permanecem uma constante no ambiente de trabalho pesquisado, onde 80% do total de funcionrios(as) so mulheres. A feminizao em outras funes ainda mais evidente no caso da rea de enfermagem, sendo que 95% so mulheres. Este padro cultural impregnado na sociedade transmitido de forma naturalizado, desde os processos educacionais informais e formais, que reproduzem formas de hierarquia sexual e social bastante desigual. Encontramos uma aceitao natural inclusive das trabalhadoras mulheres das reas da enfermagem, nutrio e higienizao,

    compreendendo que determinas atividades so mais prprias para mulheres, a partir da compreenso que as estas possuem mais habilidades para certas funes. As habilidades e qualidade femininas, em

    muitas funes passam a ser pr-requisito para contratao, tem, em muitos casos, valor maior que a qualificao profissional. Essas qualidades esto ligadas aos aprendizados da arte e afazeres domsticos ou seu esprito maternal. As qualidades e habilidades femininas se sobrepe a sua formao e especializao, caracterizando desigualdade no que se refere a preferncia por um ou outro sexo em diferentes funes.

    Ao mesmo tempo, utiliza-se o argumento da necessidade de profissionais homens em alguns setores feminizados, que exigem maior fora fsica, ou procedimentos mais agressivos, por exemplo no bloco cirrgico, ou ento para impor respeito com relao aos pacientes e/ou familiares, por exemplo

    no setor da emergncia. Nesta perspectiva, analisamos que, mesmo existindo de modo geral uma concordncia da necessidade de profissionais homens nesses setores em funo da fora masculina,

    as profissionais mulheres desenvolvem estas mesmas atividades com sua fora feminina, quando os profissionais homens no esto presentes. Do mesmo modo contraditrio e complexo definir atividades femininas e masculinas em funo da fora muscular, quando, por exemplo, analisamos a rea da nutrio. Os padeiros so todos homens e as copeiras so todas mulheres. A atividade da padaria toda tecnificada, enquanto que as copeiras empurram manualmente seus carrinhos pesadssimos pelos corredores, quartos, andares e elevadores. Mas, mesmo assim, so to frgeis! preciso perceber se este debate no necessita de um recorte que analisa a diviso sexual do trabalho tambm pela precarizao. Ou seja, a distribuio de atividades pelo critrio da fora fsica pode ser meramente cultural, acarretando hierarquizao de tarefas e consequentemente inferiorizao social e econmica no ambiente do trabalho.

    A diviso sexual trabalho especialmente nas atividades do cuidar e do tratar so compreendidas como naturais, tambm pelos pacientes: a enfermeira nos cuida e o mdico nos trata. A atribuio do vocabulrio feminino para a enfermeira e masculino para o mdico um indicativo desta naturalizao. A prpria organizao do ambiente hospitalar derivada dessa concepo, pois este

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    ambiente preparado, organizado arrumado pelas prticas/aes femininas. Neste caso, observa-se a existncia no somente da diviso sexual do trabalho, pela significativa formao de mulheres mdicas, mas tambm pela diviso de competncias que constri uma hierarquia de dominao do ato mdico sobre a ao da enfermagem, nutrio e outras. As prticas sobre um mesmo sujeito/paciente no poderiam caracterizar dependncia e ou subordinao, mas sim uma relao de complementaridade baseada em competncias profissionais.

    Mesmo que tenhamos feito referncia ao significativo nmero de profissionais mdicas

    atuando, impressiona-nos a existncia de tamanha diviso sexual do trabalho por especialidades mdicas. Novamente parece que as habilidades e qualidades femininas so requisitadas. As mdicas

    foram encontradas principalmente nas reas de ginecologia, dermatologia e pediatria. Encontramos uma nica mdica em cargo de chefia na maternidade. Porm, reas como cirurgia, anestesiologia e traumatologia so predominantemente exercidas por mdicos homens. Essa associao de prticas mdicas ligadas ao feminino e o masculino, segundo alguns depoimentos, compreendido como uma prtica discriminatria para as mulheres que tentam atuar nestas reas respectivas.

    Os dados estatsticos da pesquisa emprica apresentam claramente esta situao de assimetrias e relaes de poder entre os gneros. Os cargos de chefia especialmente de direo so todos exercidos por homens, somente encontramos mulheres em cargos de chefia de setores, mesmo assim numa

    proporcionalidade muito baixa, 20%. Estas, entretanto tem pouco poder de deciso, submetidas a uma instncia superior que determina aes a serem desenvolvidas. A predominncia de homens nos cargos

    de chefia e em funes mais qualificadas de um lado e a presenas das mulheres em funes menos qualificadas e menos remuneradas, evidencia um processo de precarizao do trabalho feminino e revela a presena de relaes de poder hierarquizadas.

    Esta breve reflexo nos indica que as relaes de gnero na rea da sade so ainda permeadas pela desigualdade, nas diferentes funes e especialidades. Mesmo num ambiente de trabalho que tem majoritariamente um pblico feminino, mas que tambm conserva valores traduzidos por uma sociedade patriarcal, predomina a existncia da supremacia masculina. De todas as formas, guardando a convico que as diviso sexual do trabalho mvel e as desigualdades no so imutveis (Lopes, 1996), acreditamos que seja possvel mudar valores e construir ambientes de trabalho com relaes de gnero mais eqitativas.

    Referncias bibliogrficas ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? So Paulo: Cortez editora, 2000. _________________. Os sentidos do trabalho. So Paulo:Boitempo, 2003.

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