Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc
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ricardo-costa -
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Relaes tnicorraciais na escola: desafios tericos e prticas pedaggicas aps a Lei 10.639
Organizadores:
Claudia Miranda Mnica Regina Ferreira Lins
Ricardo Cesar Rocha da Costa
Autores
Aderaldo Pereira dos Santos - FAETEC Ana Cludia Diogo da Silva - FAETEC
Cludia Cristina dos Santos Andrade - UERJ Claudia Miranda UNIRIO
Leda Maria de Souza Machado - FAETEC Luiz Fernandes de Oliveira - UFRRJ
Marcelo Pacheco Soares - IFRJ Marcia Gomes de Oliveira Suchanek - FAETEC
Maria Elena Viana Souza - UNIRIO Mnica Regina Ferreira Lins - UERJ
Otavio Henrique Meloni - IFRJ Ricardo Cesar Rocha da Costa - IFRJ
Renato de Alcntara - FAETEC Rogrio Jos de Souza - UFRJ
Walter Angelo Fernandes Al - FAETEC
Rio de Janeiro Maio 2011
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SUMRIO Introduo......................................................................................................................3 Parte 1 Desafios tericos Continusmos e rupturas na seleo de saberes escolares de Histria (s): entre um Brasil Colonial e um Brasil Decolonial ..................................................................................... 14 O pensamento social brasileiro e a questo racial: da ideologia do branqueamento s divises perigosas...................................................................................................... 28 Reflexes educativas sobre o ensino da Histria da frica .............................................. 49 Da frica vises da Europa ou Exemplos de re-apoderao do discurso literrio em Angola e Moambique ............................................................................................................. 65 Educao tnico-racial brasileira: uma forma de educar para a cidadania......................... 76 Nos deram um espelho e vimos um mundo doente....................................................... 102 A sala de aula o ltimo lugar onde ocorrero mudanas. A lei 11.465: suas implicaes tericas e prticas na recente produo acadmica. ..................................................... 119 A unio pelo trao: caminhos de leitura para a poesia de Joo Maimona........................ 146 A potica do Jongo: tradio e reinveno ............................................................... 165 Parte 2 Prticas pedaggicas Alm do Jonny Quest: a utilizao de dois clssicos cinematogrficos como recursos didticos no ensino de histria da frica. ...................................................................... 182 Zumbi: heri ou vilo?................................................................................................. 198 Aes pedaggicas e maiuutica: trabalhando religio ludicamente............................... 211 Eu e o outro: o professor como arteso da interculturalidade ......................................... 223 frica e as relaes tnicorraciais na educao de jovens e adultos............................... 238
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Introduo
O longo caminho de reafirmao de reivindicaes dos movimentos negros
deu origem Lei 10.639/03, um projeto de lei apresentado em 11 de maro de 1999
pelos deputados federais Ester Grossi (educadora) e por Ben-Hur Ferreira (oriundo
do Movimento Negro), ambos do PT. A lei modificou a LDBEN e foi sancionada pelo
Presidente Lula e pelo Ministro Cristovam Buarque, em 09 de janeiro de 2003. Ela
torna obrigatria a incluso no currculo oficial de ensino da temtica Histria e
Cultura Afro-brasileira1.
A lei, de incio, trouxe consigo uma intensa polmica: para alguns, significava
uma imposio de contedos; para outros, uma concesso. Porm, com a
realizao de diversos fruns estaduais e nacionais promovidos pelo MEC e o
empenho de diversos educadores e dos movimentos negros, os debates sobre o
ensino da Histria da frica e dos negros no Brasil nos currculos escolares vm
conquistando espaos significativos como parte da luta antirracista na sociedade
brasileira.
Ao lado das discusses sobre as aes afirmativas, em especial a polmica
sobre as cotas no Rio de Janeiro, as reflexes acadmicas vm se ampliando e
adentrando outras discusses temticas j presentes no campo educacional, tais
como currculo, prticas de ensino, multiculturalismo, educao inclusiva etc.
Publicaes comearam a tomar corpo no cenrio acadmico, em revistas de
divulgao cientfica e tambm na mdia. Antes mesmo da promulgao da nova lei,
em 2003, todo esse movimento foi reforado pela recorrncia de publicaes de
artigos sobre a educao das relaes tnicorraciais nas principais revistas
acadmicas de educao, a partir dos anos 90, assim como pela fundao da
Associao Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), em 2000. Pode-se
tambm considerar como determinante nesse processo a formao de um Grupo
de Estudos Afro-brasileiros e Educao nos Encontros Anuais da ANPED, a partir
de 2002. Destaca-se, por fim, a ampliao, principalmente aps a publicao da Lei
10.639/03, de cursos de ps-graduao lato-sensu sobre Histria da frica,
relaes raciais e educao em diversas instituies de ensino.
1 A lei foi modificada em maro de 2008, passando a incluir a obrigatoriedade do ensino de histria e culturas indgenas (Lei 11.645/08).
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Esta nova legislao, somada s aes do Estado, assume novas
abordagens interpretativas sobre a identidade nacional, com alguns pressupostos
no-eurocntricos, pois claramente prope ampliar o foco dos currculos. Deve-se
deixar claro de que no se trata da substituio de um foco eurocntrico por um
afrocntrico. Na verdade, essa nova abordagem associa a ideia de nao
democrtica com o reconhecimento da diferena racial e tenta estabelecer uma
perspectiva de relaes interculturais nos processos educacionais, na medida em
que declara que a educao das relaes tnicorraciais impe aprendizagens entre
brancos e negros como trocas de conhecimentos para a construo de uma
sociedade justa, igual e equnime. Os sujeitos para esta tarefa, segundo a
legislao e os agentes do Estado, so os docentes. Estes devem incorporar uma
perspectiva de reconhecimento das diferenas e das desigualdades raciais
presentes na histria brasileira, adotando prticas de valorizao da luta antirracista
e desconstruindo o mito da democracia racial. Um dos aspectos mais relevantes
dessa nova postura diz respeito necessidade de se incorporar uma nova
perspectiva historiogrfica que considere os africanos e seus descendentes no
Brasil como sujeitos histricos, em oposio ao estabelecido por longos anos de
formao histrica e historiogrfica.
Este livro tem a inteno de descrever e analisar essas questes, a partir de
reflexes tericas e relatos de experincias que esto sendo implementadas em
algumas instituies de ensino no Rio de Janeiro. Professores e especialistas
discutem aqui, a partir de diversas reas de conhecimento, as tenses e os desafios
da perspectiva de reeducao das relaes tnicorraciais na educao bsica.
Desde a promulgao da Lei 10.639, em 2003, mas principalmente a partir
da sua mudana de perfil institucional, no processo de expanso da rede federal de
ensino tcnico, com a reforma ocorrida em 2008,2 o IFRJ antigo CEFET Qumica
tem se destacado como uma das instituies que tem promovido experincias
exitosas em termos de prticas pedaggicas sobre as relaes tnicorraciais. Em
meio a inmeras iniciativas que podem ser conferidas no relatrio que o Instituto
enviou Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial
2 A rede federal de ensino, aps a promulgao da LEI n 11.892/2008, passou a ser composta pelos Institutos Federais de Educao, Cincia e Tecnologia; a Universidade Tecnolgica Federal do Paran UTFPR; os Centros Federais de Educao Tecnolgica do Rio de Janeiro CEFET-RJ e de Minas Gerais CEFET-MG e Escolas Tcnicas vinculadas s Universidades Federais.
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(SEPPIR), em abril de 20113 , gostaramos de destacar aquelas promovidas pelos
docentes da rea de Cincias Humanas e pela Direo do campus So Gonalo do
IFRJ, desde o incio de 2009. Em primeiro lugar, a iniciativa de organizao do
Curso de Extenso Brasil e frica em Sala de Aula, voltado principalmente para a
qualificao e a atualizao de professores da educao bsica, mas aberto
tambm participao de estudantes de licenciatura e de militantes de movimentos
sociais e da comunidade em geral. O curso, estruturado em um formato
transdisciplinar, tem como objetivo principal oferecer a oportunidade para que seus
participantes desenvolvam a sua prtica docente ou a sua militncia social com a
devida base terica e fundamentao legal. Como desdobramento desse primeiro
curso, com o incremento das demandas por parte do magistrio local, teve incio em
fevereiro de 2011 a primeira turma da Ps-Graduao Lato Sensu Especializao
em Ensino de Histrias e Culturas Africanas e Afro-Brasileira. Esta Ps-Graduao
tem como finalidade contribuir para a formao, em termos de ensino e de
pesquisa, de docentes e profissionais ligados educao, comprometidos com uma
poltica educacional que reconhece a nossa diversidade tnico-racial.
Estas iniciativas no campo de debate e de ao da prtica pedaggica foram
ainda complementadas no Campus So Gonalo do IFRJ com a organizao do
Grupo de Pesquisa em Ensino de Histrias e Culturas Africanas e Afro-brasileira,
registrado no Diretrio de Grupos de Pesquisa da Plataforma Lattes do CNPq e,
finalmente, com a criao, tambm no incio de 2011, do NEAB Ncleo de
Estudos Afro-Brasileiros.
Nesta coletnea participam trs professores envolvidos nesse processo de
discusso das relaes tnicorraciais por parte do IFRJ, sendo dois deles lotados
no campus So Gonalo e um pertencente ao campus Volta Redonda mas
lecionando na Especializao citada acima. Tratam-se, como veremos adiante, de
contribuies no campo da reflexo terica sobre a temtica da questo racial no
pensamento social brasileiro e de questes envolvendo obras importantes da
Literatura Africana.
Outra experincia importante est presente na FAETEC.
A Secretaria de Estado de Cincia e Tecnologia e a Fundao de Apoio s
Escolas Tcnicas do Estado do Rio de Janeiro FAETEC, em resoluo conjunta 3 Cf. o documento assinado pela Reitoria do IFRJ na data citada, intitulado Relatrio de resposta ao Ofcio 505/2011/Ouvidoria/Gabinete/SEPPIR/PR. Disponvel em: http://ifrj.edu.br/site/midias/arquivos/2011413141956117_seppirfinal.pdf. Acesso: maio/2011.
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publicada no Dirio Oficial do estado, em agosto de 2007, instituiu na rede de
ensino FAETEC o Ncleo de Estudos tnico-Raciais e Aes Afirmativas - NEERA,
rgo responsvel pela implementao e cumprimento dos Artigos 26A e 79B da
Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, das Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria
e Cultura Afro-Brasileira e das Convenes Internacionais de Combate ao Racismo,
preconceito e outras formas de discriminao e violaes de Direitos Humanos.
A fim de implementar o disposto na resoluo, coube ao NEERA s
atribuies de promoo de pesquisa, extenso e formao continuada, em
conexo com as polticas de ao afirmativa de promoo da diversidade e
igualdade racial.
A instituio e regulamentao do NEERA expressaram as demandas
oriundas de anlises e reflexes crticas do cotidiano escolar de docentes e
estudantes, desde a fundao da FAETEC, em 1997, tendo em vista a presena de
preconceitos, discriminaes e racismo no cotidiano escolar e nas relaes
pedaggicas.
Preocupada com o cumprimento da legislao e reconhecendo as
reivindicaes de educadores e do movimento social negro, a FAETEC oficializou a
proposta de constituio de um Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros formulada por
um movimento interno de professores, a partir de 2005. Tal reconhecimento e
oficializao aconteceram em 2007 com a criao do Ncleo de Estudos tnico-
Raciais e Aes Afirmativas (NEERA), no mbito da Diviso de Incluso da
instituio.
Aps quatro anos de sua instituio, o NEERA j acumulou experincias e
reflexes relevantes na perspectiva de promoo da reeducao das relaes
tnicorraciais nas escolas, formulando propostas de currculos, cursos de formao
docentes, elaborao de materiais didticos e intercmbio com outros espaos de
reflexo terica e prtica.
Fruto desse processo coletivo, esta coletnea apresenta contribuies de
cinco docentes e especialistas da questo racial, onde, a partir de suas elaboraes
tericas e prticas docentes, tentam construir caminhos e perspectivas para a
implementao da Lei 10.639/03 na rede FAETEC.
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Tambm damos destaque s experincias e reflexes vivenciadas no
Instituto de Aplicao Fernando Rodrigues da Silveira da UERJ (CAp UERJ),
especialmente as atuaes de docentes nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
No ano da Copa do Mundo realizado na frica, em 2010, os docentes dos
anos iniciais do CAp-UERJ compraram um desafio: estabelecer novos enfoques
histricos, literrios, cientficos e sociais na compreenso da constituio da nao
brasileira e uma nova fundamentao das relaes tnicorraciais entre crianas dos
anos iniciais de escolaridade.
Com base em experincias didticas, a partir de reflexes sobre a
manifestao do racismo entre crianas, somadas a questes tericas
desenvolvidas pelas prprias docentes ao longo dos ltimos 10 anos sobre
diversos aspectos, tais como os saberes que as crianas trazem ao espao escolar
e a construo curricular, dentre outras , um conjunto de professoras do
Departamento dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (DEF) do CAp - UERJ
promoveu uma srie de reflexes didticas e curriculares sobre essas temticas.
Neste livro, alguns docentes dessa instituio socializam suas reflexes sobre este
perodo de escolaridade, em que algumas questes que envolvem as relaes
tnicorraciais so pouco divulgadas ou aparecem como aspectos secundrios no
grande tema sobre racismo e educao.
Por outro lado, a questo das diferenas culturais outra marca do conjunto
dos trabalhos apresentados pelos docentes do IFRJ, da FAETEC e do CAp - UERJ.
Assim, conceitos como diferena cultural, culturas, excluso social e cultura escolar
perpassam os diversos textos, interligando-se temtica tnicorracial.
Por fim, destacamos as reflexes de especialistas que h vrios anos refletem
sobre a temtica, em colaborao com os docentes das instituies acima citadas.
Estes, atualmente, se encontram na Secretaria Estadual de Educao do Rio de
Janeiro e em universidades pblicas, como a UNIRIO, a UFRRJ e a UFRJ.
Os autores aqui reunidos desenvolvem com seus estudantes reflexes sobre
as relaes tnicorraciais no Brasil, as polticas de promoo da igualdade racial e o
reconhecimento da diferena no mbito das escolas e dos sistemas de ensino.
Quando afirmamos a necessidade de um pensamento transdisciplinar na ao
pedaggica, queremos destacar as iniciativas desses docentes, pois pertencem a
diversas reas de conhecimento como Histria, Sociologia, Pedagogia, Literatura e
Cincias Sociais.
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Feitas essas consideraes iniciais, apresentamos a seguir a organizao e
os artigos que compem esta obra, divididas em duas partes: desafios tericos e
prticas pedaggicas.
A primeira parte composta de nove captulos.
No primeiro captulo temos o texto intitulado Continusmos e rupturas na
seleo de saberes escolares de Histria(s): entre um Brasil Colonial e um Brasil
Decolonial, dos professores, Claudia Miranda da UNIRIO e Rogrio Jos de
Souza da UFRJ. O texto se localiza no campo do currculo, privilegiando autores
comprometidos com a crtica ps-colonial e suas contribuies no debate sobre
outras prticas pedaggicas. Os autores examinam aspectos do desenho
curricular que nos fixam como sujeitos coloniais (o eu e o outro), assim como
buscam interfaces sobre as formas de movimentao do currculo de Histria do
Brasil dentro e fora dos muros da escola. No mais, entre outras questes,
sugerem re-significaes das prticas discursivas e dos espaos de construo de
saberes que possam contribuir para a ampliao das representaes identitrias
em confronto com a ideia de brasilidade.
No segundo captulo, temos o texto O pensamento social brasileiro e a
questo racial: da ideologia do branqueamento s divises perigosas de
Ricardo Cesar Rocha da Costa, professor de Sociologia do IFRJ e ex-professor da
FAETEC. Esse artigo tem como objetivo apresentar uma reflexo parcial e dirigida
sobre o pensamento social e poltico brasileiro e a questo racial, situando-o a
partir do debate de trs ideias ou temas, cada um deles caracterizando um
determinado perodo histrico. A primeira seo foca o sculo XIX e a ideologia do
branqueamento, defendida pelas classes dominantes do Imprio, com base nas
teorias racistas de suposto cunho cientfico em voga daquela poca. A segunda
seo est centrada no sculo XX e na discusso a respeito do mito da
democracia racial. Por fim, a terceira seo procura atualizar o debate sobre a
democracia racial neste sculo XXI, por conta da instituio das iniciativas
governamentais envolvendo as polticas de promoo da igualdade racial, que tm
provocado reaes extremadas no meio acadmico e na imprensa.
No terceiro captulo temos o texto intitulado Reflexes educativas sobre
o ensino da Histria da frica de Aderaldo Pereira dos Santos, professor de
Histria da FAETEC. O artigo reflete questes relacionadas ao ensino da Histria
do continente africano, sobretudo no que diz respeito aos temas da escravido na
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frica e a crise africana, tomando por base obras de referncia como A
escravido na frica: uma histria de suas transformaes, de Paul E. Lovejoy
(2002) e Compasso de Espera: o fundamental e o acessrio na crise africana, de
Carlos Lopes (1997). O autor argumenta sobre a importncia das respectivas
obras no sentido de realizarmos um ensino da Histria da frica que seja pautado
numa perspectiva crtica e complexa.
No quarto captulo temos o texto Da frica vises da Europa ou
Exemplos de re-apoderao do discurso literrio em Angola e Moambique, do
professor de Lngua Portuguesa e Literatura do IFRJ, Marcelo Pacheco Soares. O
autor apresenta a reflexo sobre como Angola e Moambique, independentes
politicamente de Portugal a partir de meados da dcada de 1970, so naes que
desde o fim do perodo colonial buscam se impor s tradies literrias
estrangeiras a fim de traar suas prprias identidades. O presente ensaio
investiga como a consolidao dessas identidades se processa mais
contemporaneamente a partir da transformao de cones de culturas
notadamente europeias em figuras locais, trazendo leitura o personagem Jaime
Bunda (criado pelo angolano Pepetela) e o conto Sidney Poitier na barbearia de
Firipe Beruberu (de autoria do moambicano Mia Couto).
No quinto captulo temos o texto da professora da UNIRIO Maria Elena
Viana Souza, intitulado Educao tnicorracial brasileira: uma forma de educar
para a cidadania. Aqui, a autora tem como objetivo principal trazer para o
debate as relaes que podem ser feitas entre uma educao tnicorracial e
alguns elementos constitutivos para a construo da cidadania, no contexto
escolar de educao bsica. Para tanto, utiliza o pensamento de autores como
Hasenbalg (1979, 1988, 1992), Corra (2000), Gomes (2001), Cuche (2002),
Ferreira (2004), entre outros, recorrendo discusso sobre a Lei 10.639.
No sexto captulo temos o texto Nos deram um espelho e vimos um
mundo doente da professora de Sociologia da FAETEC Marcia Gomes de
Oliveira Suchanek. O propsito do artigo realizar um breve histrico sobre o
processo de apropriao portugus das terras dos povos que habitavam o Brasil
antes da colonizao. Para atender a Lei 11.465/08 e realizar um bom trabalho em
sala de aula, independente da disciplina que se esteja ministrando, a primeira
atitude a fazer, segundo a autora, conhecer como foi construda a concepo de
ndio e qual lugar ela ocupa na sociedade brasileira. De acordo com a
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concepo da autora, a informao histrica o primeiro instrumento de trabalho
capaz de eliminar os preconceitos enraizados em nossa sociedade.
O stimo captulo, A sala de aula o ltimo lugar onde ocorrero
mudanas Lei 11.465: suas implicaes tericas e prticas na recente produo
acadmica, do professor de Sociologia da UFRRJ Luiz Fernandes de Oliveira,
tambm ex-professor da FAETEC e do CApUERJ. O objetivo do texto sintetizar
algumas discusses que vm se desenvolvendo em pesquisas e reflexes
acadmicas sobre a questo da implementao da Lei 11.465 nos sistemas de
ensino, no currculo e nas escolas brasileiras, e identificar alguns limites dessas
discusses luz da complexidade e das tenses que se apresentam entre um
dispositivo legal - que estabelece a obrigatoriedade de certos contedos histricos
e culturais - e as prticas e vises pedaggicas e curriculares tradicionais que tm
fortes inseres nas escolas e nas salas de aula.
O oitavo captulo, intitulado A unio pelo trao: caminhos de leitura para a
poesia de Joo Maimona, do professor de Literatura do IFRJ, Otavio Henrique
Meloni, apresenta uma reflexo literria sobre o poeta angolano Joo Maimona. O
autor nos mostra que a obra de Joo Maimona reflete o contexto social angolano
e suas mazelas, tanto como heranas da guerra de libertao nacional quanto da
guerra civil, ento em pleno desenvolvimento. um texto que amplia nossa viso
sobre a literatura de lngua portuguesa e brasileira.
Fechando a primeira parte do livro, apresentamos o nono captulo, A
potica do Jongo: tradio e reinveno de Renato de Alcntara, professor de
literatura da FAETEC e Cludia Cristina dos Santos Andrade, professora dos
anos iniciais do CAp - UERJ. O objetivo deste texto compreender a construo
da potica dos pontos de Jongo, contribuindo com o conhecimento desta
prtica pelos educadores. Os autores afirmam que a fora da palavra cantada
faz emergir o orgulho de pertencer e recupera a histria, retomando, na
atividade jongueira, a (re)inaugurao de identidades, produzindo experincias
que se contrapem massificao cultural homogeneizante e
descaracterizante.
A segunda parte do livro apresenta algumas experincias pedaggicas,
acompanhadas tambm de reflexes tericas, desenvolvidas em algumas
instituies de ensino do estado do Rio de Janeiro.
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Assim, no dcimo captulo, temos o texto Alm do Jonny Quest: a
utilizao de dois clssicos cinematogrficos como recursos didticos no ensino
de Histria da frica, de Walter Angelo Fernandes Al, tambm professor de
Histria da FAETEC. A inteno do autor compartilhar com os professores de
Histria, de Literatura e das demais reas das Cincias Sociais a experincia de
utilizao de dois clssicos cinematogrficos como recursos didticos, abordando,
de maneira crtica e contextualizada, os contedos da cultura africana e afro-
brasileira, e contribuindo assim para a renovao das abordagens sobre o tema.
O dcimo primeiro captulo intitulado Zumbi: heri ou vilo? da
professora e pedagoga da FAETEC Leda Maria de Souza Machado. Nesse artigo
apresenta-se um pouco do caminho do negro escravizado, mas reconhecido
como um homem contumaz, orgulhoso, forte, revolucionrio e insatisfeito com sua
condio social, que resolveu libertar a si e a seu povo da escravido. Aps a
leitura de vrios relatos sobre sua vida, atesta-se que ela cercada de inmeras
interrogaes, a comear pelo seu nome: Zumbi ou Zambi? Teria nascido no
Brasil ou seria um chefe africano trazido para ser escravizado? Seus pais eram
conhecidos? Teria sido capturado quando criana? Ganga Zumba seria seu
parente? Teria tido mulher e filhos? A autora se questiona: de que adianta tantos
aparatos para a igualdade de direitos, se no temos acesso ao conhecimento de
nossos heris negros nos livros didticos, como acontece com os outros heris
brancos?
O dcimo segundo captulo, intitulado Aes pedaggicas e maiuutica:
trabalhando religio ludicamente, da professora e pedagoga Ana Cludia Diogo
da Silva da FAETEC, discute e prope uma reflexo sobre o tema da religio,
contextualizado no currculo da escola laica. Tendo como base a discusso da Lei
10.639/03, a partir da postura e pensamento sugeridos pela maiutica, o artigo
enfatiza o fazer pedaggico criativo.
O dcimo terceiro captulo apresenta o texto Eu e o outro: o professor
como arteso da interculturalidade, de Luiz Fernandes de Oliveira, da UFRRJ, e
Mnica Regina Ferreira Lins, professora dos anos iniciais do CApUERJ. A partir
de falas infantis e relatos de experincias com crianas dos anos iniciais, os
autores buscam uma reflexo sobre o papel que os professores tm na promoo
de relaes interculturais no currculo escolar. Para os autores, a Lei 10.639, ao
instituir a obrigatoriedade do Ensino de Histria da frica e da Cultura Afro-
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Brasileira, implica em investimento na formao de docentes que, por longos
anos, apreenderam vises de mundo eurocntricas no somente por meio da
escrita, mas tambm por meio de imagens, fotografias, desenhos e udios-visuais.
O artigo, alm de abordar as polmicas em torno da Lei, apresenta um
levantamento de aspectos histricos da produo da desigualdade no sistema
escolar, fazendo uso do relato de experincias de sala de aula. Assim, afirma o
pressuposto de que os docentes so importantes artesos de prticas
interculturais.
Fechando a segunda parte, apresentamos dcimo quarto captulo,
intitulado frica e as relaes tnicorraciais na educao de jovens e adultos,
tambm dos professores de Luiz Fernandes de Oliveira e Mnica Regina Ferreira
Lins, tem como inteno descrever uma experincia de reflexo realizada no
curso de Extenso Educao de Jovens e Adultos nos Anos Iniciais contexto
histrico, cotidiano e currculo, durante os anos de 2008 a 2010, no Instituto de
Aplicao Fernando Rodrigues da Silveira (CApUERJ). Neste artigo, os
autores descrevem como a reflexo terica apresentada no curso de extenso
- e para o conjunto de professores dos anos iniciais do CApUERJ -, gerou
certos dilemas e desafios quando se apresentaram temticas novas e
conhecimentos histricos questionadores da viso oficial curricular no ensino
de Histria.
No conjunto da obra, esperamos alcanar os objetivos que esto explcitos
e, s vezes, implcitos nos trabalhos apresentados por todos os autores, ou
seja, o fortalecimento de intercmbios tericos e pedaggicos na perspectiva de
aprofundamento multidisciplinar das questes referentes implementao das
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educao das Relaes tnico-Raciais e
para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na educao bsica
do Rio de Janeiro. Esperamos que o leitor, alm de desfrutar e compartilhar as
experincias e reflexes tericas aqui apresentadas, se sinta motivado a caminhar
com seus autores nesta longa luta por uma educao antirracista e democrtica.
Claudia Miranda Mnica Regina Ferreira Lins
Ricardo Cesar Rocha da Costa
Rio de Janeiro, maio 2011.
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Parte 1
Desafios tericos
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Continusmos e rupturas na seleo de saberes escolares de Histria (s): entre um Brasil Colonial e um
Brasil Decolonial
Claudia Miranda4 Rogrio Jos de Souza5
Introduo
Nesta primeira dcada do sculo XXI, viradas conceituais se tornam
indispensveis aos temas do currculo e das propostas de pedagogias alternativas
para a transmisso cultural. Em tempos de implementao de polticas
diferencialistas, de debates intensos sobre pedagogias outras e de proposies
voltadas para a valorizao da diversidade cultural, urgente o retorno ao
questionamento sobre a misso da escola como instncia formadora apoiada na
perspectiva poltico-pedaggica. Observamos que a produo de pesquisas sobre
interculturalidade, pluralismo, identidade e diferena, em peridicos e coletneas
organizadas por estudiosos, instituies dos movimentos sociais, programas de
pesquisa, Ncleos de Estudos Afrobrasileiros institudos em universidades, tornou-
se um marco para o debate sobre a diminuio das desigualdades em sentido
amplo.
Para acompanharmos essas mudanas e as crises sucessivas no campo da
teoria social e tambm do pensamento pedaggico, o giro decolonial, como
sugere Santiago Castro-Gomez (2007), passa a ser um imperativo. Os achados
tericos contemplados neste artigo fazem parte do desdobramento do dilogo
estabelecido com os pesquisadores do Grupo Latinoamericano de investigao
Modernidad-Colonialidad dedicados aos estudos sobre colonialidad e
decolonialidad del poder.
Importa compreendermos os projetos de interveno desenvolvidos por
grupos populares e movimentos sociais que se comprometem com polticas e
abordagens emancipatrias sobre os sujeitos fixados como subalternos. No caso do
Brasil, ganha relevo projetos voltados insero de um maior nmero de afro- 4 Doutora em Educao pela UERJ, Mestre em Educao pela UFRJ e Professora Adjunta da UNIRIO. 5 Mestre em Histria pela UFRJ, professor do ensino bsico e pesquisador das relaes tnicorraciais.
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brasileiros nos espaos de prestgio como o caso das universidades e de setores
do mundo do trabalho pouco sensveis aos processos galopantes de excluso. Os
prejuzos coloniais (grifos nossos) so reconhecidos, sobretudo, nas opes
polticas que reforam os mecanismos de racializao dos diferentes outros
inventados pela colonizao. Segundo Reinaldo Fleuri (2003),
Nos processos de colonizao nos Estados Unidos, no Canad, em pases da Amrica Latina, assim como em pases de outros continentes, tal concepo etnocntrica justificava a escravizao e o genocdio dos povos nativos. Os imigrantes invasores trataram o continente americano como terra de conquista e no reconheceram a cultura dos indgenas, que foram obrigados a aceitar a cultura dos conquistadores. Considerando-se civilizadores e colocando em questo at mesmo a humanidade dos interlocutores, os primeiros colonizadores empreenderam uma ao de extermnio e de escravizao, geralmente justificada por uma teorizao pseudocientfica baseada em uma concepo evolucionista-biolgica da diferena racial. Em nome de uma viso iluminista do progresso, proclamaram a inferioridade daqueles povos e destruram suas diferentes culturas, impondo a prpria civilizao com o poder das armas. O Brasil de hoje, sob forte resistncia, inicia sua tentativa de problematizar
suas mltiplas identidades. Neste processo, novas temticas so introduzidas nos
currculos e nas mdias diversas. A transmisso cultural em linhas gerais ganhou
centralidade nos fruns sobre currculo e prticas emancipatrias para o currculo
de Histria, no podemos ignorar o debate sobre as representaes identitrias dos
sujeitos coloniais (o eu e o outro). Defendemos uma ampliao no apenas das
referncias aos acontecimentos histricos e a presena dos grupos que compem a
Dispora Africana no Brasil. Para assumirmos um currculo ampliado faz-se
necessrio reinventarmos os espaos de transmisso cultural. Caberia, portanto,
um breve entendimento sobre a proposta deste artigo: como podemos incorporar os
exemplos de experincias de projetos transversais para o debate sobre a Histria e
a seleo cultural? Quando produzimos saberes no-escolares e consideramos
nossas histrias locais para compreendermos a globalidade podemos vislumbrar
processos de descolonizao do conhecimento a ser ensinado? Como a
invisibilizao dos pressupostos advindos de uma aposta na diversidade passa a
ser um recurso de manuteno da perspectiva colonial de currculo? Os contedos
de Histria herdados da aventura colonial ganham centralidade no debate sobre os
modos de descolonizar a transposio didtica em sentido mais amplo? E por
ltimo: como podemos defender uma brasilidade decolonial indo alm dos
currculos escolares e da viso eurocentrada de currculo?
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16
De certo, essas questes orientam nosso olhar investigativo e nos
aproximam de achados tericos e metodolgicos indispensveis ao campo da
educao. De todas as indagaes suscitadas neste estudo - sobre o continusmo e
o descontinusmo das representaes do Brasil Colonial no currculo de Histria -,
nos interessou a que diz respeito ao objeto de ensino e suas diferenas com
relao ao objeto de saber correspondente. Para Ramn Grosfoguel, (2008, p.168)
esta continuidad del poder desde la colonia hasta hoy permiti elites blancas
clasificar a las poblaciones y excluir a las racializadas de las categoras de
ciudadana y de la comunidad imaginada conocida como la nacin. Nosso estudo
toma como base o dilogo com a crtica ps-colonial para pensar polticas e prticas
curriculares privilegiando autores comprometidos com um contra-discurso e
abordagens emancipatrias dos sujeitos coloniais (o eu e o outro).
Examinamos aspectos do desenho curricular que nos fixam como sujeitos
coloniais; buscamos interfaces que facilitem a movimentao do currculo dentro e
fora dos muros da escola; situamos nuances do debate sobre as polticas e as
relaes de poder institudas a partir do conhecimento selecionado para ser
ensinado; ampliamos a concepo de prticas pedaggicas e de espaos de
formao por entendermos que a cidade pode ser o ponto de partida para outras
pedagogias dando suporte s instituies escolares. Neste caminho, apreendemos
alguns dos determinantes que definiram o debate inevitvel sobre, Pedagogia
Decolonial, como defende Catherine Walsh (2008). Sugerimos re-significaes das
prticas discursivas sobre as identidades construdas no Brasil e nos espaos de
construo de saberes que possam contribuir para a ampliao das representaes
sobre brasilidade (s) problematizando o lugar colonial desses sujeitos agrupados
na utopia de identidade nacional.
Currculo de Histria (s) do Brasil e caminhos transversais
No Brasil de hoje, gestores da administrao pblica, educadores e
pesquisadores, enfrentam como desafio, uma agenda pautada na ampliao das
condies de acesso ao bem cultural e oportunidades de maior participao dos
segmentos historicamente deixados de fora da experincia cidad que privilegia,
sobretudo, a educao escolarizada. Um exemplo disso a repercusso dos
resultados de aproveitamento da Escola Municipal Casa Meio-Norte localizada na
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periferia de Teresina (Piau). De acordo com seu projeto educativo, a comunidade
escolar elabora uma proposta pedaggica diferente, resultado de estudos feitos
com base na Psicopedagogia. A escola fez parte das experincias documentadas
no Aprova Brasil (2007), um estudo que reuniu prticas educativas (trinta e trs
escolas) consideradas de sucesso. A parceria com instituies externas
comunidade escolar uma das dimenses valorizadas nas concluses porque
assim essas instituies podem estar ligadas aos recursos e infra-estrutura da
escola, a projetos socioculturais ou a aes socioeducativas (p.57). No documento,
ganha nfase as prticas pedaggicas variadas e embora haja referncia a
processos pedaggicos formais, a nfase das declaraes sobre a proposta
pedaggica diz respeito a um conjunto de prticas que podem ou no ser parte de
uma proposta ou projeto poltico-pedaggico (p.60). Ainda sobre a Escola
Municipal Casa Meio-Norte, chama a ateno seu projeto intitulado Didticas
Alternativas que sistematiza as aulas com base numa viso espiritual da criana.
A grande repercusso dos resultados obtidos na Prova Brasil (2005) indica
como o sistema educacional, s voltas com as resolues sobre a educao em
ciclos, os modos de avaliao, e as transformaes conceituais, incorpora, por
questes irrefutveis, teorias e discursos sobre alternativas para a transposio
didtica, para o currculo, visando desestabilizar ou se quisermos desacomodar
(grifos nossos) a cultura escolar. Indica, ainda, como possvel promover
intersees incluindo outros espaos educativos no sentido de problematizar o lugar
do conhecimento. Segundo as anlises do Aprova Brasil (2007), h, entre os
entrevistados, declaraes que explicam que os professores vo alm do uso do
livro didtico, trazendo para a sala de aula recursos novos ou levando as crianas
para outros ambientes e espaos onde podem interagir e aprender, na prpria
comunidade, no municpio (p.27). Nota-se, portanto, uma corrida pela qualidade e
por experincias de sucesso no processo ensino-aprendizagem. E, assim, ganha
centralidade a idia de expanso dos espaos educativos. Por tudo isso, podemos
afirmar que, compreender o currculo compreender as distintas possibilidades de
transmisso da(s) cultura (s). E se assim for, transmisso cultural est para alm do
estabelecimento escola.
A crtica ps-colonial parte de um discurso construdo fora do lugar, conforme
Edward Said (2003) aponta. Suas anlises nos ajudam a compreender as prticas
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educativas e o papel do conhecimento selecionado como referncia para uma dada
sociedade. Conforme Ramn Grosfoguel (2008, p.164),
El sistema-mundo capitalista est estructurado alrededor de una divisin internacional de trabajo y un sistema global interestatal. Las estratgias geopolticas de los Estados del centro pueden en muchas ocasiones sacrificar sus intereses econmicos a corto prazo en aras de preservar los intereses a largo plazo del capitalismo como sistema-mundo. Los pases-vitrina son ejemplos de este mecanismo. Se trata frequentemente de pases militar y simblicamente estratgicos dentro de una regin. Considerando a colonizao como um fato social total, podemos arriscar
afirmar o quanto faz sentido a luta por garantir espao para narrativas
historicamente excludas das propostas oficiais de curricular. Qual seria a histria do
Brasil silenciada no processo de inveno do currculo desta disciplina escolar?
O texto introdutrio dos PCNs (1997, p.10) ressalta, o quanto preciso
colocar no centro do debate, as atividades escolares de ensino e aprendizagem e a
questo curricular como de inegvel importncia para a poltica educacional da
nao brasileira. Nota-se o quanto a questo curricular tornou-se um imperativo
para a compreenso dos arranjos sociais engendrados para reforar as hierarquias
a partir da diferenciao dos segmentos sociais.
Pensando um pouco com Catherine Walsh (2008), entendemos a Pedagogia
Decolonial como uma possibilidade de por em cena o racismo, a desigualdade e a
injustia racializada bem como uma oportunidade de vislumbrarmos prticas
voltadas transformao. Apostar em uma Pedagogia Decolonial pode ser, por
exemplo, abrir mo de currculos eurodirigidos criando alternativas para
enfrentarmos as mltiplas identidades que nos constituem. Significa considerarmos
saberes outros na seleo de contedos vislumbrando uma maior flexibilizao do
conhecimento de referncia, se assim pudermos considerar. Seriam prticas re-
significadas, portanto, aquelas que privilegiam espaos educativos oferecidos no
itinerrio percorrido ao longo de uma dada cidade.
As identidades coloniais so por si mesmas variantes fundadoras da
manuteno das diferenas que nos afetam e nos dividem entre racializados e no-
racializados. Pensando um pouco com Vron Ware (2004, p.7) o caso do Brasil, o
que est em jogo a necessidade de reconhecer os padres destrutivos de
racismo que perpetuam a injustia social e de eliminar o preconceito e a
discriminao. O lugar de privilgio dos grupos identificados como no-racializados
(eurodescendentes e/ou brancos) parece sofrer ameaas com a lente de aumento
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dos estudos sobre a branquidade-branquitude. Segundo Bento (2003), os privilgios
dos grupos brancos no so discutidos, apesar de a escravido dos povos
africanos ter sido desumana, deixando heranas simblicas positivas para o
primeiro segmento.
Ao situarmos a Pedagogia Decolonial alinhada aos processos educativos no
Brasil, enfrentaremos prticas discursivas sobre as heranas e os lugares da
subalternidade que nos diferenciam pelas formas de racializao e no-racializao
ainda vigentes: seja no currculo prescrito, nas diferentes pedagogias aqui
ressaltadas ou, ainda, nos bancos escolares. Os desafios de descolonizao dos
referenciais historicamente selecionados na abordagem sobre as identidades
brasileiras nos alertam para a urgncia de criao de subsdios que auxiliem outras
prticas pedaggicas no processo ensino-aprendizagem de Histria.
Em Cultura e Imperialismo (SAID, 1995, p.106), o romance analisado como
um artefato cultural da sociedade burguesa e como resultado, o imperialismo e o
romance se fortaleceram reciprocamente a um tal grau que seria impossvel ler um
sem estar lidando de alguma maneira com o outro. Os prejuzos identitrios, se
assim pudermos considerar, so fortemente atacados nos estudos baseados na
crtica ps-colonial. Ao considerarmos tais pressupostos como racionalidades
insurgentes, pensar a Pedagogia Decolonial significa pensar pedagogias outras
para alm do espao escolar. Sua base intercultural nos obriga a aceitar as
intersees estabelecidas para alm da instituio estabelecida como legitimadora
dos saberes curriculares. Seriam, portanto, conformaes necessrias ao
empreendimento decolonial (grifos nossos) que vai alm dos muros da escola. No
sentido dado por Catherine Walsh (2008), o poder sobrevive, toma novas formas e
assume estratgias, inclusive em sociedades multitinicas e culturalmente diversas.
Esta mutao, quando se pensa em descolonizao curricular, tem sido maior que
a escola. As diferentes mdias, os espaos de socializao dos jovens pouco
valorizados pelo sistema educacional, podem ser fontes de estudos promissores no
tocante aos saberes que circulam e aos valores assimilados no que se refere aos
desejos identitrios desses sujeitos sociais. Em outros termos, aprende-se em
distintos espaos educativos e sobre este aspecto, a escola no consegue
acompanhar o tempo das imagens, da produo cinematogrfica que chega aos
diferentes lares do Brasil; no consegue incorporar as novidades tecnolgicas
oferecidas aos adolescentes e jovens a cada instante.
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A escola um estabelecimento dentre tantos outros numa dada sociedade.
Define-se na incompletude das diferentes esferas sociais. Para a efetivao de um
projeto de descolonizao do currculo podemos admitir, primeiramente, suas
limitaes bem como as limitaes dos sujeitos nas relaes de inspirao colonial
que nos caracterizam como um pas de hierarquias coloniais por inspirao (grifos
nossos). Quando analisamos estes achados tericos partimos de uma perspectiva
de abertura curricular e posteriormente, de insurgncia do outro colonial.
Aceitamos ser provvel instituirmos uma poltica curricular reconhecendo os
obstculos forjados nessa experincia hierrquica de sociedade. Prticas
discursivas eurodirigidas passam a ser alvo dos insurgentes bem como de
movimentos reivindicatrios que visam o desfetichismo como uma estratgia de
combate aos estigmas no currculo.
Na seo Pluralidade Cultural que integra os temas transversais dos PCNs
(1997, p.20), o texto de apresentao destaca que:
Tratar da diversidade cultural, reconhecendo-a e valorizando-a, e da superao das discriminaes atuar sobre um dos mecanismos de excluso - tarefa necessria, ainda que insuficiente, para caminhar na direo de uma sociedade mais plenamente democrtica. Neste eixo, segundo as pesquisadoras Vargens e Freitas (2009, p.384),
atribui-se ao mito da democracia racial o papel de preservao de uma longa
histria de discriminao na escola brasileira encoberta e sustentada pela imagem
de um pas de braos abertos. Por outro lado, as mesmas autoras encontram
semelhana na inveno de um Brasil Mestio e de um Brasil Plural. Em sua
crtica o patrimnio tnicocultural valorizado por ser um trao da chamada
brasilidade e, neste sentido, apresentam sua discordncia. Para elas esta
perspectiva implica uma viso essencialista da construo identitria, visto que a
suposta identidade nacional definida por uma origem histrica pautada no
encontro de diferentes culturas (VARGENS & FREITAS, 2009, p.388). Fica
evidenciada a crtica quilo que entendem como reforar a idia de culturas e
identidades de origem e focar na afirmao da diferena. Podemos supor que,
esta crtica, desconsidera uma agenda poltica responsvel por avanos
significativos sobre a mudana de discurso curricular. E, se assim for, corremos o
risco de aderir ao rebaixamento da questo poltico-pedaggica to cara aos que,
ao longo das ltimas dcadas, lutam por justia denunciando a hegemonia dos
discursos eurocentrados.
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Vimos, no trabalho de Vargens e Freitas (2009) um exemplo sobre como
possvel afastar-se da agenda poltica que, no final do sculo XX, conseguiu tocar
as polticas educacionais com vistas a problematizar o domnio da orientao
eurocntrica. Suas concluses no fazem distino entre um discurso curricular que
conserva vises eurocntricas continusmos a partir da idia de um Brasil Mestio
- e a proposta de descontinusmos na seleo do conhecimento a opo por um
Brasil, plural, um Brasil decolonial. Concordando com Leite (2005) a teoria da justia
curricular apresentada por Connell (1997) favorece prticas contrahegemnicas
onde h lugar para os interesses dos menos favorecidos, para a participao e a
escolarizao comum e que se estrutura na inteno de produzir situaes de
igualdade. Assim, em um currculo contrahegemnico no se trata de substituir os
beneficirios mas, sim, de superar os obstculos que as atuais estruturas do poder
representam para um progresso intelectual e cultural partilhado. (LEITE, 2005, p.8).
Ao analisarmos as proposies sobre pedagogias decoloniais apenas a partir de
uma concepo discursiva, tiramos a relevncia do processo de construo de uma
poltica e de uma prtica que se pretendem emancipatrias. As manifestaes
contrrias s polticas diferencialistas como o caso da implementao da Lei
10639 (2003,), que, alterou a Lei n 9.3946 (1996), e que estabelece as diretrizes e
bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial a temtica "Histria e
Cultura Afro-Brasileira", podem refletir as formas de resistncia que denunciam
perspectivas de conservao da idia da mestiagem em detrimento de um Brasil
de todas as manifestaes culturais.
O tecido colonial reveste nossa histria, forja e deforma nossas identidades
na medida em que celebramos, cotidianamente, a partir de distintas pedagogias
sociais, no currculo em ao, na agenda escolar e nas datas comemorativas, os
processos de subalternizao de segmentos inteiros de nossa sociedade como o
caso dos afrobrasileiros. O bicentenrio da chegada da Famlia Real Portuguesa foi,
em grande escala, um desses episdios explcitos das formas de reforar nossas
inspiraes coloniais. Vimos, com base em fragmentos de um projeto poltico-
pedaggico de uma dada escola da rede oficial de ensino mdio, justificativas onde
momentos como esses so boas oportunidades para conhecer a histria da cidade
e valorizar o patrimnio herdado. Observa-se quo natural , nestes discursos
pedaggicos, a reproduo de pressupostos que valorizam to somente as 6 Lei de Diretrizes e Bases da Educao.
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caractersticas arquitetnicas da cidade que, por sua vez, justificam a organizao
de passeios com os estudantes.
Em outros termos, a chegada da Famlia Real ao Rio de Janeiro passa a ser
tratada no currculo, em suas diferentes fases, prescrito e em ao - como um fato
histrico a ser comemorado sem a devida observncia dos prejuzos coloniais que
nos afetam como parte da periferia da colonizao. Tais referncias permanecem
intocadas e se justificam por ser este um objeto cultural legitimado na seleo de
saberes escolares e por satisfazer, historicamente, aos anseios das periferias
coloniais. No dizer de Castro-Gomez (2007, p.13), asistimos, ms bien, a una
transicin del colonialismo moderno a la colonialidad global, proceso que
certamente h transformado las formas de dominacin desplegadas por la
modernidad, pero no la estructura de las relaciones centro-periferia a la escala
mundial. Para os pesquisadores do Projeto Latinoamericano modernidad-
colonialidad importante questionar o mito da descolonizao e a tese de que a
ps-modernidade nos conduz a um mundo j desvinculado da colonialidade
(CASTRO-GOMEZ, 2007, p. 14). Sob essa orientao, afirma-se que a cincia
social contempornea no conseguiu incorporar o conhecimento subalterno aos
processos de produo de conhecimento (Idem).
Pedagogias outras e ampliao dos espaos educativos para rever a Histria
Ao propormos abordagens significativas para a experincia pedaggica de
grupos e/ou sujeitos envolvidos na transposio e/ou mediao do conhecimento
(conhecimento selecionado para ser ensinado e legitimado como currculo), no
podemos abandonar as pesquisas sobre diversidade e re-significao das polticas
curriculares. Em outro lugar (MIRANDA, 2010, p.4) afirmamos:
O desafio que se coloca para educadores/as em contextos multiculturais como o caso do Brasil, inclui a anlise da utilizao de recursos antes desprezados como, por exemplo, a prpria cidade onde se vive: um espao educativo privilegiado. As histrias locais passam a subsidiar metodologias consideradas indispensveis para uma transposio didtica pautada na desfolclorizao de espaos e de grupos que dele fazem parte.
Para tanto, seria conveniente observarmos as seguintes orientaes a serem
consideradas pelas instncias e pelos sujeitos envolvidos nos processos de
transmisso cultural:
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Refletir criticamente sobre as formas alternativas de orientar o processo de ensinar e aprender a Histria do Brasil e a sua diversidade;
Refletir sobre as formas possveis de mediar com justia todo e qualquer conhecimento selecionado como currculo;
Considerar outras referenciais para a pesquisa como parte de um todo incluindo os saberes no-selecionados convertendo-os em escopo para o desenvolvimento de um currculo mais aberto e conseqentemente mais justo;
Conhecer, analisar e criticar orientaes metodolgicas, orientaes didticas e os arranjos que legitimam os currculos oficiais.
Chama a ateno as possibilidades que j esto ao nosso alcance de
reconhecermos outras formas de narrar as histrias do Brasil.
Juliana Lages Sarinho (2010) desenvolve uma pesquisa ressaltando a
necessidade de ampliar os estudos sobre patrimnio, estendendo-se a anlise da
produo da memria social ao mbito da recepo, pelos diferentes grupos
sociais, dos bens que pretendem representar e materializar uma memria comum.
A autora ressalta que a expresso educao patrimonial configura-se como uma
redundncia, pois no existe processo de aprendizagem que no leve em
considerao certo entendimento sobre o que seja patrimnio. Argumenta, ainda,
que falar em educao patrimonial falar em educao cultural, no havendo
distino entre as duas e fazendo com que a primeira seja considerada parte
integrante de todo o processo educacional que leva em considerao a formao
holstica do indivduo socialmente atuante. (CHAGAS Apud SARINHO, 2010, p.92).
Assim, o conjunto dos bens patrimoniais possui a funo de criar um repertrio
simblico que possibilite estabelecer na sociedade a noo de pertencimento e de
identidade nacional. Por isso, entre os atores sociais e os bens eleitos, poderia
existir um pacto afetivo e os valores culturais em destaque passariam a ter sentido
em suas vidas (SARINHO, 2010, p.98).
Ao aceitarmos a proposio da Pedagogia Patrimonial, poderamos
considerar a multidimensionalidade da transmisso cultural e um currculo,
conseqentemente, mais abrangente, mais flexvel. Para a anlise das
incompletudes no ensino de Histria uma transposio analisada luz da
diversidade cultural parece haver um continusmo favorecendo as representaes
de um Brasil colonial em confronto com um Brasil Decolonial. Sendo a transposio
didtica o trabalho que transforma um objeto de saber em um objeto de ensino,
passa a ser indispensvel o reforo do apelo presente no texto dos Parmetros
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Curriculares (1997) acerca das alternativas ancoradas na diversidade cultural que
nos atravessa.
Na discusso sobre a rejeio da alteridade, importa entender que foras
histricas e contemporneas sustentam as formaes particulares da branquidade
no Brasil (WARE, 2004, p.9) e quais estratgias anti-coloniais seriam apropriadas
para subvert-las. Tal convergncia implica aes polticas no que concerne s
agendas dos grupos que confrontam os discursos curriculares e a luta por direito do
outro colonial como partcipe na construo da memria do pas.
A guisa de concluso
No quadro terico aqui explorado, ganhou visibilidade a Pedagogia
Decolonial (Walsh, 2008) como escopo para vislumbrarmos outras pedagogias no
sentido de trabalharmos favor da justia curricular. Localizamos a problemtica
sobre os lugares coloniais estabelecidos sob imitao e sobre os diferentes modos
de mediar os saberes selecionados como conhecimento de referncia.
A imitao, neste contexto, pode significar um modo de comportar-se de
grupos e/ou sujeitos que se consideram estabelecidos, detentores de um bnus que
permite definir as hierarquias nas relaes cotidianas e conseqentemente, no
currculo.
Quando observamos as nuances do questionamento realizado sobre o que
querem os sujeitos fora do lugar (o outro colonial), sobretudo quando examinamos
as representaes construdas nos referenciais no currculo de Histria, destaca-se
o apelo ao sistema colonial que assegura, a partir de um resgate constante da
memria, as prticas de fixao, de manuteno dos insurgentes, dos no-
europeus, dos outros produzidos ao longo da formao de uma suposta identidade
brasileira.
A descolonizao da conscincia e da memria de uma sociedade
depender da sua capacidade de enfrentar as aberraes do colonialismo que
hierarquizam grupos humanos pelas formas de imitao engendradas, tambm, nas
mediaes curriculares.
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O pensamento social brasileiro e a questo racial: da ideologia do branqueamento s divises perigosas
Ricardo Cesar Rocha da Costa7
1. Sculo XIX: as elites dirigentes e as polticas de branqueamento
Pode-se dizer que o processo de independncia poltica do Brasil, no incio
do sculo XIX, inseriu na pauta de discusses da nossa elite dirigente, latifundiria e
escravagista, a preocupao com a construo de uma Nao soberana,
desenvolvida economicamente, mas que deveria, no futuro, partilhar socialmente
dos padres civilizatrios de inspirao europia, considerados como superiores,
em comparao com outros povos. Tal ideia era baseada em fundamentos ditos
cientficos, difundidos entre muitos intelectuais brasileiros que, exatamente por
serem filhos dessa citada elite dirigente, faziam seus estudos superiores na
Europa.
A ideia cientfica de raa teve origem e comea a ser difundida no final do
sculo XVIII e durante todo o sculo XIX. Pensadores europeus como Ernest
Renan, Arthur de Gobineau, Gustave Le Bon, Vacher de Lapouge, entre outros, no
s se preocuparam com o estabelecimento de um sistema classificatrio de carter
cientfico, como procuraram sempre comprovar a superioridade civilizatria da
raa branca com destaque para a de origem ariana, conforme pensava
Gobineau e a prtica da mistura como fonte de decadncia para a raa
superior (WIEVIORKA, 2007, p. 21). Teorias evolucionistas, como as formulaes
defendidas por Lapouge, Herbert Spencer e Lewis Morgan, distinguiam a existncia
de diferentes estgios de evoluo da humanidade (selvageria, barbrie e
civilizao, segundo Morgan), com diagnsticos nada animadores sobre o futuro
do Brasil: na viso de Lapouge, um pas que apresentava uma imensa nao
negra em regresso para a barbrie (citado por CARNEIRO, 1995, p. 22).
De fato, estatsticas divulgadas na segunda metade do sculo XIX (1872)
apontavam que a populao livre brasileira, de cor, dezesseis anos antes da
7 Mestre em Cincia Poltica pela Universidade Federal Fluminense. Doutorando em Servio Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor de Sociologia do IFRJ Instituto Federal de Educao Cincia e Tecnologia do Rio de Janeiro Campus So Gonalo.
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Abolio, correspondia a 42% da populao. Este percentual, somado aos 16% de
populao escrava, representava um total de 58% de negros, em relao
populao total (cf. SKIDMORE, 1989, p. 57). Este nmero incomodava a elite
poltica, preocupando inclusive abolicionistas como Joaquim Nabuco, que
levantavam dvidas sobre a constituio de uma sociedade liberal numa realidade
que apresentava um grande contingente populacional no-branco (cf. SKIDMORE,
1989, p. 38). Estava em jogo, portanto, como afirmou-se acima, a construo de
uma futura identidade nacional.
Desde antes da independncia, entretanto, polticas oficiais de
branqueamento da populao estavam em curso. Esse foi o caso, por exemplo,
da assinatura, em 1818, por D. Joo VI, do tratado de colonizao de Nova Friburgo
por imigrantes suos fato que deveria ser entendido, segundo o prncipe regente,
como parte de um processo civilizatrio em curso no Reino do Brasil (SEYFERTH,
2002, p. 30). Mais adiante, em 1824 j durante o governo de D. Pedro I , fatores
geopolticos determinaram a destinao de recursos pblicos para o assentamento
de imigrantes alemes no Sul do pas. O projeto de colonizao foi retomado com
recursos privados na dcada de 1840. Segundo Giralda Seyferth,
Havia o entendimento de que terras pblicas deviam ser colonizadas com imigrantes europeus, alimentado pela crena de que a existncia do regime escravista era empecilho para a implantao de uma economia liberal no pas e a populao de origem africana no se coadunava com os princpios da livre iniciativa. Nessa lgica evidentemente racista, negros e mestios (e tambm os ndios selvagens) podiam ser escravos, servos ou coadjuvantes, mas no se adequavam ao trabalho livre na condio de pequenos proprietrios (SEYFERTH, 2002, p. 30-31).
Na dcada de 1850, ainda segundo Seyferth, a publicao da tese
determinista racial do conde de Gobineau, que defendia as virtudes civilizatrias
do branco europeu, reforou a defesa das polticas de imigrao planejadas pelo
Estado (Idem, 2002, p. 32). Gobineau, diga-se de passagem, foi embaixador
francs no Brasil, onde desembarcou em 1869. Amigo pessoal do Imperador
Pedro II, considerava-o uma honrosa exceo numa terra desprezvel, de cultura
estagnada e sob a ameaa de terrveis doenas tropicais. Quanto ao povo
brasileiro, caracterizava-o como uma populao totalmente mulata, viciada no
sangue e no esprito e assustadoramente feia, alm de definir os nativos como
nem trabalhadores, nem ativos, nem fecundos (passagens citadas por
SKIDMORE, op. cit., p. 46-47).
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Apesar da tese de Gobineau a respeito da tendncia ao desaparecimento da
populao brasileira, por causa da degenerescncia gentica, como conseqncia
da intensa mestiagem (Idem, ibidem)8, alguns intelectuais brasileiros, no final do
sculo XIX e incio do XX, passaram a entender as polticas de branqueamento
como a soluo possvel para o objetivo de se garantir, no futuro, um pas partcipe
da moderna civilizao europia.
Silvio Romero, por exemplo, entendia a existncia de uma hierarquia racial
(escala etnogrfica), entre o branco europeu, o negro africano e o ndio nativo
(nesta ordem), afirmando que essa mistura que apontava o carter particular do
Brasil, dando origem a uma sub-raa mestia e crioula porm, sob o predomnio
dos brancos, em razo da sua cultura mais desenvolvida (cf. SKIDMORE, op. cit., p.
50-51). Dentre as contribuies das raas subjugadas, o preto trazia o importante
componente de adaptao dessa nova raa ao clima tropical. Mas, apesar da
mestiagem quase completa que Romero chega a descortinar no horizonte da
Histria futura do Brasil, ele no apresenta concluses enfticas, variando entre da
tese da vitria do branco de uma mescla frico-indiana e latino-germnica,
desde que se priorize a imigrao alem (ver SKIDMORE, 1989, p. 51-53). Em
1888, contudo, Romero se mostrava mais confiante:
O povo brasileiro, como hoje se nos apresenta, se no constitui uma s raa compacta e distinta, tem elementos para acentuar-se com fora e tomar um ascendente original nos tempos futuros. Talvez tenhamos ainda de representar na Amrica um grande destino histrico-cultural (ROMERO, 1888, p. 66 apud SKIDMORE, 1989, p. 53).
Apesar desse tipo de viso de carter racista descontando-se, claro, a
relao entre o pensamento social predominante e o contexto histrico , como o
caso das idias defendidas por Silvio Romero, surpreende, na obra clssica de
Skidmore, a revelao de que, j no sculo XIX, os abolicionistas partilhavam da
crena geral de que a sociedade brasileira no abrigava preconceito racial, ao
contrrio do que ocorria nos Estados Unidos (1989, p. 38). O brasilianista cita, como
exemplo, um deputado escravagista de Minas Gerais, indignado com injustificadas
e caluniosas crticas harmonia racial brasileira (1989, p. 39. Grifos meus), assim
8 Registre-se que Gobineau no estava sozinho na defesa dessas idias: outros observadores estrangeiros que aqui aportaram ainda no sculo XIX, tais como o argentino Inginieros e os franceses Louis Couty e Louis Agassiz, entendiam que os males do Brasil eram causados pela sua colonizao pelos africanos escravizados ou pela mistura de raas (cf. SKIDMORE, 1989, p. 47).
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como a seguinte afirmao de Joaquim Nabuco em O Abolicionismo, tambm
bastante significativa:
A escravido, por felicidade nossa, no azedou nunca a alma do escravo contra o senhor, falando coletivamente, nem criou, entre as duas raas, o dio recproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos (NABUCO, 1883, p. 22-3 apud SKIDMORE, 1989, p. 39).
Essas ideias no impediram, no entanto, a defesa da tese do
branqueamento tambm entre os abolicionistas, atravs da imigrao europia,
que deveria ter o seu processo evolutivo acelerado. O triunfo gradual do branco
tambm contribuiria, segundo os abolicionistas, para resolver o problema da
escassez de mo-de-obra, resultante do fim da escravido. Skidmore cita mais uma
vez Nabuco, para ilustrar sua defesa de um projeto de pas,
(...) onde, atrada pela franqueza das nossas instituies e pela liberdade do nosso regime, a imigrao europia traga sem cessar para os trpicos uma corrente de sangue caucsico vivaz, enrgico e sadio, que possamos absorver sem perigo... (NABUCO, 1883, p. 252 apud SKIDMORE, 1989, p. 40).
Para complementar o que se exps acima, Skidmore cita tambm Jos do
Patrocnio, que afirmou, comparativamente, ser o Brasil mais abenoado que os
Estados Unidos,
(...) podendo fundir em massa popular indgena todas as raas, porque a civilizao portuguesa, em vez de haver procurado destruir as raas selvagens, as assimilou, preparando-se assim para resistir invaso assoladora do preconceito de raas (PATROCNIO, 1887 apud SKIDMORE, 1989, p. 40).
Essa ideia de fuso de raas, desde que sob a supremacia branca
europia, e a tal harmonia racial propalada pelas elites, se inserem num processo
de construo de uma histria do Brasil impermevel a conflitos de quaisquer
espcies, como que se pudesse ignorar as diversas lutas travadas nas provncias
imperiais, que ocorreram nesse mesmo sculo, acirradas pelo processo de
emancipao poltica, assim como o genocdio da populao indgena, que teve
incio j no sculo XVI, e toda a violncia inerente escravido, desde o outro lado
do Atlntico.
A Lei urea, no entanto, logo seguida pelo advento da Repblica,
impulsionou o debate iniciado pelos abolicionistas e por Silvio Romero, exigindo da
elite intelectual uma redefinio da presena do negro na sociedade brasileira,
visando a definio de uma almejada identidade nacional.
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Um dos autores que discute a questo acima com bastante propriedade o
professor da Universidade de So Paulo USP, o antroplogo Kabengele
Munanga. No seu concurso de livre-docncia, esse autor formula hiptese e tese
que seguem na linha das reflexes apontadas por Skidmore, no sentido de que o
processo de formao da identidade nacional no Brasil recorreu aos mtodos
eugenistas, visando o embranquecimento da sociedade (MUNANGA, 2004, p. 15).
Embora tenha fracassado em seu principal objetivo, essa idia, segundo Munanga,
teria vingado por meio de mecanismos psicolgicos, que permaneceram intactos
no inconsciente coletivo brasileiro, rodando sempre nas cabeas de negros e
mestios, que desejam ingressar um dia na identidade branca, por julgarem
superior (Idem, ibidem, p. 16). O fracasso concreto do branqueamento fsico,
portanto, na opinio do autor, no destruiu a ideologia do branqueamento.
Discutindo o tema A mestiagem no pensamento brasileiro, Munanga
discorre sobre a recepo, entre intelectuais brasileiros, do determinismo biolgico,
que acreditava na inferioridade das raas no brancas, sobretudo a negra, e na
degenerescncia do mestio (MUNANGA, op. cit., p. 55). Como membros da elite
dirigente do fim do sculo XIX e incio do sculo XX, tais pensadores foram
diretamente influenciados pela cincia europia ocidental, no debate intelectual a
respeito da construo da nacionalidade brasileira. Citando um artigo da
antroploga Giralda Seyferth, Munanga afirma que
O que estava em jogo (...) era fundamentalmente a questo de saber como transformar essa pluralidade de raas e mesclas, de culturas e valores civilizatrios to diferentes, de identidades to diversas, numa nica coletividade de cidados, numa s nao e num s povo (Idem, ibidem, p. 55).
Assim, Kabengele Munanga destaca que, enquanto Silvio Romero apesar
das inconsistncias apontadas por Skidmore (cf. 1989, p. 53), como se viu acima
defendia a homogeneizao da sociedade brasileira atravs da mestiagem,
apostando, com otimismo, no futuro de uma nao brasileira branca, quase todos
os outros pensadores de destaque nessa poca, tais como Nina Rodrigues,
Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, seguiam linhas diferentes de anlise. Entre
eles, Nina Rodrigues, ao contrrio de Romero, destilava pessimismo com a
possibilidade de construo de uma identidade nacional nica. Diagnosticando
caractersticas raciais inatas e imutveis, de cunho hierrquico, Rodrigues defendia
uma institucionalizao das diferenas que, segundo Munanga, poderia ter
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construdo no Brasil uma espcie de regime de apartheid (MUNANGA, op. cit., p.
60). Euclides da Cunha, famoso pela obra Os Sertes, filiava-se corrente
pessimista em relao identidade nacional, no acreditando em uma nao
etnicamente branca no futuro, mas sim mestia e, por isso, degenerada, sem a
energia fsica dos ascendentes selvagens e sem a atitude intelectual dos ancestrais
superiores (Idem, ibidem, p. 62).
J outro intelectual desse perodo, Joo Batista de Lacerda, diferentemente
dos anteriormente citados, considerava os mestios como fsica e intelectualmente
superiores aos negros. Apostava, porm, como Silvio Romero, numa futura
composio racial de maioria absoluta branca, com base na mestiagem mas,
diferentemente de previses de outros autores, somente no Brasil do sculo XXI (cf.
MUNANGA, 2004, p. 67-69).
Paralelamente s questes citadas, uma determinada corrente terica ter
interseco nesse debate, principalmente durante a primeira metade do sculo XX:
os defensores das idias eugenistas, que constituram um movimento internacional
em defesa da pureza e da limpeza da raa. Representados no Brasil pelo mdico
Renato Kehl e com apoiadores entusiasmados, como o escritor Monteiro Lobato,
alm de diversos polticos e intelectuais, o movimento eugenista brasileiro foi
isolado e esquecido a partir de 1942, com a entrada do pas na Segunda Guerra
Mundial, ao lado das tropas norte-americanas (cf. DIWAN, 2007).9
Vozes radicalmente discordantes da poca, influenciados pelos estudos
antropolgicos de Franz Boas e de outros intelectuais, Alberto Torres e Manuel
Bomfim rejeitaram as idias que defendiam a inferioridade tnica do Brasil, focando
o problema do pas na alienao das elites e na explorao estrangeira [Torres], e
em causas histricas relacionadas ao carter predatrio da colonizao ibrica,
como sendo as responsveis pelo relativo atraso cultural, cientfico, poltico e de
organizao social dos pases latino-americanos [Bomfim] (cf. MUNANGA, 2004, p.
67-68).
Outro pensador destacado por Munanga foi Francisco Jos de Oliveira
Vianna, em razo da sua capacidade de sistematizao e de difuso das idias de
9 Alm de Kehl e Lobato, a historiadora Pietra Diwan relacionou diversos intelectuais como defensores das idias eugenistas no Brasil, entre os quais Oliveira Vianna, Roquette-Pinto, Fernando Azevedo, o sanitarista Arthur Neiva e o psiquiatra Francisco Franco da Rocha (ver DIWAN, op. cit., p. 92-100). A partir de 1942, segundo Diwan, os adeptos brasileiros da eugenia desapareceram da cena poltica ou trataram de reorientar suas histrias omitIndo sua participao nesse movimento (p. 121). A exceo foi o mdico Kehl, que virou uma voz isolada.
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carter racista no Brasil apesar da sua aparente superao terica, nessa poca,
proporcionada pelos estudos desenvolvidos por Boas, citados acima, acolhidos no
pas por Torres e Bomfim. Oliveira Vianna formula uma verdadeira hierarquizao
da mestiagem ocorrida no pas, com a produo de mestios superiores e
inferiores. Concorda com Nina Rodrigues, quando afirma que a mistura entre
negros e brancos apresentaria um carter degenerescente; mas se aproxima
tambm de Euclides da Cunha, quando defende que a mistura entre brancos e
ndios resultaria num mestio fisicamente superior ao mulato (cf. MUNANGA, op.
cit., p. 71-76). De qualquer forma, a principal tese de Oliveira Vianna que ele
procura demonstrar atravs de estudos de projeo demogrfica a futura
arianizao do Brasil, seja pelo aumento quantitativo da populao branca pura,
em razo do estmulo governamental imigrao europia, seja pela crescente
mestiagem, que reduziria o coeficiente dos sangues negro e ndio (cf. MUNANGA,
op. cit., p. 80-87). Vale a pena reproduzir um fragmento da interessante formulao
de Oliveira Vianna, citada por Munanga, comparando a situao do negro e as
relaes raciais no Brasil e nos Estados Unidos questo, como se v, h muito
tempo na pauta dos debates sobre essa temtica:
No h perigo de que o problema negro venha a surgir no Brasil. Antes que pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor. A miscigenao roubou o elemento negro de sua importncia numrica, diluindo-o na populao branca. Aqui o mulato, a comear da segunda gerao, quer ser branco, e o homem branco (com rara exceo) acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os etnlogos, e como pode ser confirmado primeira vista, a mistura de raas facilitada pela prevalncia do elemento superior. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raa negra daqui. bvio que isso j comeou a ocorrer. Quando a imigrao, que julgo ser a primeira necessidade do Brasil, aumentar, ir, pela inevitvel mistura, acelerar o processo de seleo (VIANNA, 1899 apud MUNANGA, 2004, p. 86).
Como concluiu Munanga, a citao, por si s, dispensa outros comentrios a
respeito da ideologia do branqueamento presente no processo de miscigenao,
conformando, no Brasil, a construo de uma identidade nacional baseada na
herana branca europia, e negando qualquer possibilidade de se pensar em
alguma identidade alternativa, fundamentada na herana negra de origem africana
(cf. MUNANGA, 2004, p. 87).
A partir dos anos 30 do sculo XX, no entanto, esse debate vai assumir
outras caractersticas, como se ver a seguir.
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2. Sculo XX: o mito da democracia racial
A busca de uma identidade nacional, sob o ponto de vista da questo racial,
assume outro carter nos anos 1930 e 1940, com especial destaque a partir de
1933, com a publicao de Casa-grande & senzala, do socilogo pernambucano
Gilberto Freyre. De acordo com Maria Luiza Tucci Carneiro, Gilberto Freyre, ao
contrrio do pensamento anteriormente em voga, defendeu a idia que o pas havia
resolvido seu problema racial, atravs do encontro das trs raas:
Em vez de ameaa, a mestiagem foi transformada por Gilberto Freyre em soluo para os problemas do Brasil, graas ao legado cultural portugus. O brasileiro estaria a caminho de produzir uma nova raa atravs do processo de miscigenao, que (...) possibilitou ao mulato que atendia aos padres estticos e eugnicos do senhor branco melhores condies de vida e ascenso social (CARNEIRO, 1995, p. 35-36).
Para corroborar a afirmao de Carneiro, nada melhor do que reproduzir,
juntamente com a autora, dois trechos inteiramente esclarecedores da prpria obra
de Gilberto Freyre:
O intercurso sexual de brancos dos melhores estoques inclusive eclesisticos, sem dvida nenhuma, dos elementos mais seletos e eugnicos na formao brasileira com escravas negras e mulatas foi formidvel. Resultou da grossa multido de filhos ilegtimos mulatinhos criados muitas vezes com a prole legtima, dentro do liberal patriarcalismo das casas-grandes; outros sombra dos engenhos de frades; ou ento nas rodas e orfanatos. Hbrida desde o incio, a sociedade brasileira de todas da Amrica a que se construiu mais harmoniosamente quanto s relaes de raa: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no mximo aproveitamento dos valores e experincias dos povos atrasados pelo adiantado; no mximo da contemporizao da cultura adventcia com a nativa, da do conquistador com a do conquistado (FREYRE, 1987, p. 91; 442-443 apud CARNEIRO, 1995, p. 36. Grifos meus).
Assim, como se depreende dos pequenos fragmentos acima, Gilberto
Freyre, segundo Renato Ortiz (1994), desloca o eixo da discusso, operando a
passagem do conceito de raa ao conceito de cultura, permitindo um maior
distanciamento entre o biolgico e o cultural (MUNANGA, 2004, p. 87). No
entendimento de Kabengele Munanga, Freyre, ao contrrio dos autores anteriores,
que viam a mestiagem como um processo extremamente negativo, vinculado
degenerescncia, apresenta uma nova formulao para a construo da identidade
nacional, inaugurando o mito originrio da trs raas constituintes da sociedade
brasileira. Esta a base para a construo do mito da democracia racial, como
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afirma Renato Ortiz: somos uma democracia porque a mistura gerou um povo sem
barreira, sem preconceito (ORTIZ, 1994, p. 41 apud MUNANGA, op. cit., p. 89).
No entendimento de Munanga, o mito da democracia racial brasileira, ao
exaltar a harmonia entre as trs raas, penetra profundamente na sociedade,
encobrindo as desigualdades sociais e facilitando a alienao dos no-brancos, ou
seja:
(...) encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de conscincia de suas caractersticas culturais que teriam contribudo para a construo e expresso de uma identidade prpria. Essas caractersticas so expropriadas, dominadas e convertidas em smbolos nacionais pelas elites dirigentes (MUNANGA, 2004, p. 89).
Segundo Thomas Skidmore, ao valorizar o papel cultural especfico do
africano, principalmente, mas tambm do indgena, no processo de construo da
identidade nacional, Gilberto Freyre contribuiu para a interpretao do Brasil como
uma sociedade multirracional, em que as contribuies das trs raas eram
igualmente valiosas (SKIDMORE, 1989, p. 211. Grifos no original). Na verdade,
observa o prprio Skidmore, a anlise apresentada por Freyre, ao contrrio da idia
de se promover um pretenso igualitarismo racial, reforava
(...) o ideal de branqueamento, mostrando de maneira vvida que a elite (primitivamente branca) adquirira preciosos traos culturais do ntimo contato com o africano (e com o ndio, em menor escala) (SKIDMORE, op. cit., p. 211).
Segundo o antroplogo Roberto Da Matta, essa fbula das trs raas,
inspirada nas idias de Freyre, deu origem a uma mistificao do racismo numa
sociedade completamente hierarquizada e anti-igualitria como o Brasil,
impedindo o confronto do negro (ou do ndio) com o branco colonizador ou
explorador de modo direto. A intermediao e o sincretismo, segundo esse autor,
alm de impedir o conflito, tem o papel de obliterar a percepo nua e crua dos
mecanismos de explorao social e poltica, referendando a idia de predomnio da
harmonia nas relaes raciais (DA MATTA, 1981, p. 83).
As crticas apontadas acima foram formuladas pelos meios acadmicos em
anos mais recentes. Historicamente, no entanto, as teorias do branqueamento
passaram a ser duramente questionadas aps a Segunda Guerra Mundial, quando
a Unesco Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a
Cultura, em funo das conseqncias provocadas pela expanso das teorias e
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dos regimes nazi-fascistas, preocupou-se com o encaminhamento de aes de
combate a polticas e ideologias baseadas em discriminaes raciais. Nesse
sentido, a anunciada democracia racial brasileira, inspirada pela obra de Gilberto
Freyre, ganhou notoriedade e interesse acadmico, como um estudo de caso que
deveria ser investigado, por oposio no s s ideologias racistas citadas, como
em relao aos conflitos violentos que caracterizavam as relaes raciais norte-
americanas. Dessa forma, na dcada de 1950, a Unesco patrocinou uma pesquisa
das relaes raciais no Brasil, a partir da Universidade de So Paulo USP,
coordenada pelo pesquisador francs Roger Bastide e pelo socilogo brasileiro
Florestan Fernandes. Estes e outros pesquisadores tais como Oracy Nogueira,
Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, entre outros , a partir desse grande
projeto da Unesco, negaram empiricamente a tese de Gilberto Freyre que
identificava as relaes raciais brasileiras como sendo harmoniosas pelo
contrrio, apontavam a existncia de uma clara desigualdade e de um intenso
preconceito racial, que acompanhava a desigualdade social brasileira.
Para ilustrar o alcance dessas pesquisas, vale a pena citar o comentrio de
Lilia Moritz Schwarcz, na apresentao da reedio de uma das obras produzidas
por Florestan Fernandes no contexto do projeto Unesco, O negro no mundo dos
brancos. Citando as pesquisas de Fernandes, Schwarcz afirma que
O autor notava (...) a existncia de uma forma particular de racismo: um preconceito de no ter preconceito. Ou seja, a tendncia do brasileiro seria continuar discriminando, apesar de considerar tal atitude ultrajante (para quem sofre) e degradante (para quem a pratica). O conjunto de pesquisas do autor apontava, dessa forma, para novas facetas da miscigenao brasileira. Sobrevivia, enquanto legado histrico, um sistema enraizado de hierarquizao social que introduzia gradaes de prestgio a partir de critrios como classe social, educao formal, origem familiar e de todo um carrefour de cores. Quase como uma referncia nativa o preconceito de cor fazia as vezes da raa, tornando ainda mais escorregadios os mecanismos de compreenso da discriminao. Chamado por Fernandes de metamorfose do escravo, o processo brasileiro de excluso social desenvolveu-se de modo a empregar termos como preto ou negro que formalmente remetem cor de pele em lugar da noo de classe subalterna,