Relacoes Internacionais Miolo Online 2ed Nacional

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  • Ministrio da Educao MEC

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES

    Diretoria de Educao a Distncia DED

    Universidade Aberta do Brasil UAB

    Programa Nacional de Formao em Administrao Pblica PNAP

    Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    Thiago Moreira de Souza Rodrigues

    20122 edio

  • R696r Rodrigues, Thiago Moreira de SouzaRelaes internacionais / Thiago Moreira de Souza Rodrigues. 2. ed. reimp

    Florianpolis : Departamento de Cincias da Administrao / UFSC; [Braslia] : CAPES : UAB, 2012.

    164p. : il.

    Bacharelado em Administrao PblicaInclui bibliografiaISBN: 978-85-7988-168-8

    1. Relaes internacionais Histria. 2. Direito internacional. 3. Poltica inter-nacional. 4. Conflito social. 5. Diplomacia. I. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Brasil). II. Universidade Aberta do Brasil. III. Ttulo.

    CDU: 327

    Catalogao na publicao por: Onlia Silva Guimares CRB-14/071

    2012. Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Todos os direitos reservados.

    A responsabilidade pelo contedo e imagens desta obra do(s) respectivo(s) autor(es). O contedo desta obra foi licenciado temporria

    e gratuitamente para utilizao no mbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil, atravs da UFSC. O leitor se compromete a utilizar

    o contedo desta obra para aprendizado pessoal, sendo que a reproduo e distribuio ficaro limitadas ao mbito interno dos cursos.

    A citao desta obra em trabalhos acadmicos e/ou profissionais poder ser feita com indicao da fonte. A cpia desta obra sem autor-

    izao expressa ou com intuito de lucro constitui crime contra a propriedade intelectual, com sanes previstas no Cdigo Penal, artigo

    184, Pargrafos 1 ao 3, sem prejuzo das sanes cveis cabveis espcie.

    1 edio 2012

  • PRESIDNCIA DA REPBLICA

    MINISTRIO DA EDUCAO

    COORDENAO DE APERFEIOAMENTO DE PESSOAL DE NVEL SUPERIOR CAPES

    DIRETORIA DE EDUCAO A DISTNCIA

    DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS DIDTICOS

    Universidade Federal de Santa Catarina

    METODOLOGIA PARA EDUCAO A DISTNCIA

    Universidade Federal de Mato Grosso

    AUTORA DO CONTEDO

    Thiago Moreira de Souza Rodrigues

    EQUIPE TCNICA

    Coordenador do Projeto Alexandre Marino Costa

    Coordenao de Produo de Recursos Didticos Denise Aparecida Bunn

    Capa Alexandre Noronha

    Projeto Grfico e Editorao Annye Cristiny Tessaro

    Reviso Textual Jaqueline Santos de Avila

    Sergio Luiz Meira

    Crditos da imagem da capa: extrada do banco de imagens Stock.xchng sob direitos livres para uso de imagem.

  • Sumrio

    Apresentao ......................................................................................7

    Unidade 1 A Emergncia das Relaes InternacionaisA Emergncia das Relaes Internacionais ................................................ 13

    Dois Mapas e um Processo Histrico .................................................... 13

    Os Estados Modernos: novidades histricas da Idade Moderna (sculos XV-XVIII) .............................................................................................. 17

    Relaes Interestatais, Relaes Internacionais ...................................... 23

    Unidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflitoGuerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito ... 35

    Guerra e Diplomacia: instrumentos do Estado ...................................... 35

    A Guerra dos Estados ...............................................................................41

    As Diplomacias ........................................................................................ 49

    Unidade 3 As Relaes Internacionais Alm do Estado: a dimenso supranacionalAs Relaes Internacionais Alm do Estado: a dimenso supranacional .... 61

    Uma Histria Poltica das Organizaes Internacionais ......................... 61

    Uma Histria Poltica dos Processos de Integrao Regional ................. 82

    Unidade 4 Do Internacional ao Global: novos temas das Relaes InternacionaisDo Internacional ao Global: novos temas das Relaes Internacionais .... 105

    Termina a Guerra Fria: enfim a paz perptua? .................................... 105

    Os Novos Temas Globais: conflito e cooperao ................................. 110

    ONGs, Governana Global e a Nova Poltica Planetria .................. 133

    Consideraes finais ........................................................................ 152

    Referncias ..................................................................................... 154

    Minicurrculo ................................................................................... 164

  • Apresentao

    Mdulo 8 7

    Apresentao

    Caro estudante,

    De tempos em tempos surgem expresses que se tornam muito comuns, aparecendo em textos jornalsticos, discursos polticos, documentos oficiais, estudos acadmicos e mesmo nas conversas formais e informais de uns e outros. Desde o final do sculo passado, ao menos entre ns brasileiros, isso aconteceu com o termo relaes internacionais. Escutamos e nos referimos s relaes internacionais cada vez mais; frequentemente para tratar de questes polticas, econmicas, ambientais e sociais: desde a ateno sobre a presena do Brasil em fruns internacionais, passando por reportagens especiais sobre conflitos e guerras, capas de revista sobre as novas ameaas internacionais, at comentrios sobre as crises globais, os grandes atentados terroristas, os eventos esportivos internacionais e os protestos nas ruas contra a globalizao. Todo um conjunto de temas vinculados ao que acontece alm das fronteiras identificado como pertencente s relaes internacionais.

    Mas, afinal, o que so as relaes internacionais?

    Essa uma pergunta estimulante que pessoas interessadas em compreender o mundo de hoje se fazem. Pergunta, tambm, desafiadora, j que as relaes internacionais no se resumem apenas aos contatos entre Estados e governantes ou aos encontros diplomticos com seus acordos e fotos oficiais. Elas compreendem tambm os processos de integrao entre pases, as guerras e conflitos internacionais, os trficos ilcitos e terrorismos, o trnsito de imigrantes e refugiados, os fluxos de capital e os negcios velozes do capitalismo e do comrcio mundiais. Alm disso, h tambm nas relaes internacionais espaos para resistncias e contestaes ordem mundial, que hoje so diferentes

  • Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    8

    das formas de ao poltica revolucionria que conhecemos desde o sculo XIX.

    Assim, para estudar as relaes internacionais preciso assumir que existe uma multiplicidade de agentes, foras em luta, interesses em confronto e em cooperao, numa dinmica ininterrupta. Tamanha intensidade de acontecimentos vem exigindo grande agilidade na anlise e a capacidade de questionar antigas teorias que parecem no mais dar conta de uma realidade internacional sempre em curso e de processos inconclusos. Assim, a anlise das relaes internacionais exige ateno ao novo e disposio para no aceitar facilmente conceitos e explicaes; essa anlise exige uma atitude incomodada, que questione, observe, problematize.

    Nesta disciplina que comeamos agora, no ser possvel apresentar todas as foras que compem as relaes internacionais. O objetivo aqui outro: o de provocar algumas reflexes, dar alguns sinais de alerta, chamar sua ateno para conceitos fundamentais, de modo que ao final dessa pequena jornada voc tenha elementos para lanar olhares mais penetrantes para a realidade internacional, situando-se num mundo em constante transformao.

    Como para realizar uma jornada preciso equipar-se, proponho que nosso olhar seja lanado a partir da perspectiva chamada histrico-poltica, mtodo de anlise das relaes polticas sugerido pelo filsofo Michel Foucault (2002). Estar na perspectiva histrico-poltica significa reparar nas relaes internacionais e seus conflitos, concertos polticos, aes militares e diplomticas como acontecimentos histricos moldados nos embates entre diferentes foras polticas, sociais e econmicas; significa, enfim, compreender as relaes internacionais forjadas no choque entre Estados, movimentos polticos, foras de resistncia etc. Ou seja, implica no considerar as relaes internacionais como algo natural ou mesmo antiqussimo e imutvel, mas como uma realidade sempre em transformao e que tem uma histria. Ou melhor, que tem muitas histrias, muitos comeos, muitas mutaes.

    Voc, como futuro administrador pblico, enfrentar uma realidade internacional dinmica, que no deixa de incluir sequer o menor dos municpios brasileiros. Reparando nas relaes internacionais com olhares atentos e irrequietos, voc notar como as distines

  • Apresentao

    Mdulo 8 9

    entre interno e externo, entre nacional e internacional, se diluem com rapidez. Poder notar, tambm, como essa fluidez entre dentro e fora no levou ao fim do Estado como muitos chegaram a anunciar, mas ao seu redimensionamento em novas formas de gesto de pessoas, da circulao de riquezas, dos fluxos de informao e dos territrios. Estado, poltica internacional, prticas de governo e poder soberano no so mais os mesmos de antes. Mas como se organizam hoje? Como eram antes? A hiptese que lhe apresentamos a de que no podemos comear a compreender tais problemas sem estudar a histria poltica das relaes internacionais. E compreender o mundo hoje se torna muito mais interessante se podemos percorrer as vias sinuosas do estudo das relaes internacionais. Por isso, fazemos um convite para uma jornada. Para ela, alm da bagagem acumulada em outras disciplinas desse curso, preciso seu interesse, vontade e desassossego. Sigamos!

    Professor Thiago Moreira de Souza Rodrigues

  • UNIDADE 1

    Objetivos Especficos de Aprendizagem

    Ao finalizar esta Unidade, voc dever ser capaz de:

    f Compreender o vnculo entre a formao dos Estados Modernos e o surgimento das relaes internacionais;

    f Conhecer o conceito de soberania moderna; f Compreender a emergncia do sistema internacional moderno

    com suas caractersticas fundamentais; e

    f Entender mais sobre o processo histrico que marcou o despontar dos Estados-Nao.

    A Emergncia das Relaes Internacionais

  • Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 13

    A Emergncia das Relaes Internacionais

    Dois Mapas e um Processo Histrico

    usual que incios de jornadas comecem com uma consulta a mapas. Mais ainda quando iniciamos um percurso pelas imensides geogrficas e conceituais com as quais nos desafiam as relaes internacionais. Ento, faamos algo assim: se detenha alguns instantes na Figura 1 e depois siga a leitura.

    Figura 1: Mapa TO Fonte: Dreyer-Eimbcke (1992, p. 48)

    Caro estudante,

    Nesta Unidade, estudaremos a emergncia das relaes internacionais e os principais elementos e regras que a conformam. Para tanto, voc dever acompanhar o processo de formao dos Estados Modernos, observando suas principais caractersticas polticas e conceituais com o objetivo de que, ao final, possa demarcar o contexto histrico-poltico no qual despontam as relaes internacionais.

  • 14 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    O mapa apresentado na Figura 1 foi produzido no sculo XII em algum lugar da Europa Central e, por mais incrvel que possa nos parecer, ele foi pensado como um mapa-mndi, ou seja, pretendia representar todo o mundo. Mas que mundo era esse?

    difcil reconhecer nesse mapa qualquer trao familiar dos contornos e litorais dos continentes ou outras marcas geogrficas (rios, oceanos, cadeias de montanhas, mares interiores) que hoje encontramos estampados em qualquer agenda escolar. Mas no so apenas as ausncias que chamam a ateno. Esse mapa tambm traz algumas presenas curiosas. Volte ao mapa um instante e repare: em cada um dos quatro cantos, figuras montadas em nforas e tocando espcies de trombetas representam os quatro ventos, ou os quatro pontos cardeais. Na parte superior, por sua vez, possvel ver um casal bem conhecido: Ado e Eva, acompanhados da serpente. Eles esto numa poro de terra que, no mapa, representa a sia. O centro do mapa conta com um retngulo vertical rajado que representa o Mar Mediterrneo: sua esquerda, est a Europa; sua direita, a frica.

    Mapas como esse, segundo Dreyer-Eimbcke (1992), foram produzidos por toda a Idade Mdia, e eram conhecidos como Mapas TO, porque representavam a Terra como um disco (O) marcado com um T central, cujo trao vertical da letra era o Mar Mediterrneo e o trao horizontal, rio Don, o Mar Negro e o rio Nilo, separando frica e Europa da sia. A poro de terra que aparece na extremidade direita a Terra Australis (Terra do Sul), continente mitolgico que os europeus medievais imaginavam existir. Enfim, os trs continentes eram circundados por um oceano que desaguava em um abismo infinito...

    Do ponto de vista geogrfico, chama a ateno a falta de relao entre o que est representado e o que hoje sabemos serem os continentes. No entanto, essa caracterstica no se devia apenas ao desconhecimento real dos continentes ou falta de instrumentos de observao e medio. Predominava uma viso do mundo moldada pela religio catlica que fazia do mapa-mndi medieval no uma representao do mundo fsico, mas uma ilustrao da Terra segundo a Bblia e a Igreja. Assim, podemos notar que no centro do mapa est a Terra Santa (Judeia), lugar de nascimento de Jesus Cristo e por isso, na lgica catlica medieval, o centro do universo. Supe-se que

    vComo os europeus

    esperariam ainda at

    a viagem de Cristvo

    Colombo, em 1492, para

    conhecer a Amrica, ela

    no consta no mapa.

  • Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 15

    esse mapa foi produzido por pessoas, provavelmente monges, que no devam ter conhecido muitas regies diferentes daquelas em que nasceram. Ele no foi desenhado para orientar viajantes ou para situar concretamente algum no mundo. Tal mapa se destinava a mostrar aos seus contemporneos como o mundo existia concebido por Deus.

    Alguns sculos mais tarde encontramos um mapa bem diferente. No se trata de um mapa-mndi, mas de um mapa da Europa e parte da sia Menor, que registra o norte da frica e at mesmo uma ponta no extremo leste da Amrica do Norte. Tal mapa foi produzido por Gerhard Mercator e segue para a sua observao (Figura 2).

    Figura 2: Europa, 1595, por Gerhard Mercator Fonte: Dreyer-Eimbcke (1992, p. 49)

    As diferenas so inmeras com relao ao Mapa TO (Figura 1): o mapa apresentado na Figura 2 traz uma imagem muito mais prxima da que conhecemos hoje. Mas pensemos um pouco mais no

    Saiba mais Gerhard Mercator (1512-1594)

    Nascido na atual Blgica, considerado o primeiro grande

    cartgrafo moderno. Mercator foi um homem do

    Renascimento, formado numa nova tradio que confrontava

    a teologia crist medieval, voltando sua ateno ao homem e

    s questes mundanas. Quando ele orientou o mapa para o

    Norte, demonstrou que a viso de mundo havia mudado: era

    a Europa mais especificamente a Europa Ocidental que,

    conquistando terras e povos em outros continentes, tornava-

    se o centro poltico, cultural e econmico do mundo. Sua forma

    de projetar o mundo tornou-se predominante e no pode ser

    entendida apartada do seu significado poltico: a Europa

    representada como centro do mundo. Fonte: Elaborado pelo

    autor deste livro.

  • 16 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    que diferencia esses dois mapas. Um primeiro item a ser ressaltado a ausncia das figuras dos quatro ventos e as de Ado, Eva e a serpente no mapa da Figura 2. No lugar dos ventos, vemos uma nova orientao do mapa (orientado para o Norte), com as longitudes e latitudes marcadas. Ainda do ponto de vista geogrfico, Mercator se preocupou em mostrar com a maior fidelidade possvel como era essa poro do mundo, com as propores entre regies, pennsulas, istmos*, continentes etc. devidamente respeitadas e registradas. Desaparecem, na Figura 2, as personagens bblicas, e a Terra Santa deixa de ser o centro do mapa (e do universo).

    Os mapas e suas projees nunca so imparciais ou despolitizados. H, inclusive, outras formas de projetar cartografias que questionam o modelo consagrado com Mercator, como por exemplo, as chamadas projees azimutais.

    E no campo poltico, precisamente, que est a diferena que mais nos interessa agora. O gegrafo flamengo* destacou pores do

    mapa (Figura 2) com cores e tonalidades distintas porque estava interessado em mostrar que a Europa dividia-se, naquele final de sculo XVI, em reinos independentes que comeavam a coexistir e a competir no espao do Velho Mundo. Sabemos que reinos tambm existiram na Idade Mdia, quando foi confeccionado o Mapa TO (Figura 1); no entanto, eles no eram como os que se consolidavam na poca de Mercator. A poltica na Europa tinha se transformado significativamente entre a produo do primeiro mapa (Figura 1) e a desse mapa do sculo XVI (Figura 2): no perodo que separa

    um mapa do outro, um modo de organizao poltica, caracterstico da Idade Mdia, foi gradativamente superado por um novo, centrado na figura que ficou conhecida como o Estado Moderno.

    *Istmo estreita faixa de

    terra que liga duas reas

    de terra maiores (p. ex.,

    unindo uma pennsula a

    um continente ou sepa-

    rando dois mares). Fonte:

    Houaiss (2009).

    *Flamengo que natural

    ou habitante de Flandres,

    regio localizada parte na

    Frana, parte na Holanda

    e parte na Blgica; diz-se

    de ou cada um dos diale-

    tos neerlandeses (ou

    do holands), usa-se na

    Blgica e na regio de

    Dunquerque, na Frana.

    Fonte: Houaiss (2009).

    Saiba mais Projees Azimutais

    Que elegem um continente ou parte do

    planeta, centralizando-o, e a partir da

    representam o restante em perspectiva.

    A bandeira da ONU talvez seja o exemplo mais amplamente

    conhecido de uma projeo azimutal, no caso uma projeo

    azimutal polar rtica. O objetivo dessa projeo foi

    precisamente no valorizar nenhum continente ou regio

    em detrimento de outras. Assim, os continentes povoados

    ( exceo da Antrtida) ficam todos ao redor do rtico, sem

    que uma regio seja destacada. Desse modo, simboliza-se o

    princpio da ONU de igualdade entre todos os Estados. Fonte:

    Elaborado pelo autor deste livro.

  • Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 17

    Para ns, esse processo de evoluo cartogrfica interessa

    sobremaneira, pois ao acompanh-lo, poderemos ver como

    historicamente surgiram as relaes internacionais.

    Os Estados Modernos: novidades histricas da Idade Moderna

    (sculos XV-XVIII)

    A Idade Mdia foi, em termos polticos, marcada pela tenso entre duas foras antagnicas: de um lado, uma grande fragmentao poltica; de outro lado, projetos universalistas que visavam a constituio de poderes polticos que reunissem toda a Europa sob uma mesma autoridade. A Idade Mdia principiou com o esfacelamento do Imprio Romano do Ocidente, consumado no sculo V d.C., que levou substituio do modelo poltico centralizado dos romanos por outro conformado por reinos de origem brbara, com influncias variadas da civilizao romana, e cujos reis no conseguiram manter-se como nica autoridade poltica, jurdica e militar. Segundo Watson (2004, p. 200):

    Os reis medievais tinham muito pouca autoridade ou riqueza fora das possesses de suas prprias famlias. Eles dependiam de seus vassalos feudais, os duques, os condes e os bares, que tinham tanto direito a suas posi-es e funes quanto os reis, tendo responsabilidades administrativas e militares correspondentes. Os senho-res deviam a seus reis certas obrigaes feudais, da mesma forma como aqueles abaixo deles lhes deviam obrigaes. Na prtica, muitos grandes senhores feudais eram suficientemente poderosos para abster-se de suas obrigaes.

  • 18 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    Apesar da inteno em manter a capacidade de governar dos imperadores romanos, a descentralizao do poder militar e da produo econmica (agrcola e local) impediam que os monarcas consumassem seu projeto de efetivamente governar. No entanto, esse foi um projeto nunca abandonado pelos reis medievais (ANDERSON, 2004).

    Um exemplo interessante o de Carlos Magno, imperador dos francos, que insistia em defender sua pretensa origem romana, supostamente comprovada por um obscuro pergaminho escrito em latim que ele mesmo, analfabeto, no tinha como ler, mas que levava consigo como manifestao ritual da legitimidade de seu poder. Carlos Magno construiu um imperium no sculo IX que pretendia ser uma reedio do Imprio Romano e que, contando com o apoio da Igreja Catlica, foi batizado de Sacro Imprio Romano (FOUCAULT, 2002; WATSON, 2004; KRITSCH, 2002). Depois do falecimento de Magno, o imprio foi dividido entre seus trs filhos; o tero ocidental deu origem ao reino da Frana e os dois teros orientais, que compreendiam o que hoje o norte da Itlia, e os territrios da Alemanha, da ustria, da Holanda, da Blgica, da Sua e da Repblica Tcheca, seguiram com o nome de Sacro Imprio Romano Germnico, divido entre principados, ducados e outras unidades polticas fragmentadas.

    O Sacro Imprio Romano foi, precisamente, um dos dois principais elementos da tendncia de poder universalista comentada anteriormente. O outro foi a prpria Igreja Catlica, herdeira da estrutura administrativa romana que, sediada na antiga capital do imprio, teve como projeto poltico manter a influncia sobre os poderes locais (reinos, ducados, condados, feudos etc.) baseada na autoridade religiosa suprema do papado. A Igreja deu suporte a Carlos Magno porque um novo imperium cristo sobre toda Europa seria a aplicao do princpio da respublica christiana (repblica crist) que concebia o continente como uma s unidade, orientada pela Igreja de Roma, reunida na f e superior a todo tipo de diviso poltica.

    A sorte dos monarcas medievais no mudaria at que um conjunto radical de mudanas sociais, religiosas e econmicas abrisse a possibilidade de alteraes significativas nas relaes polticas europeias. A Baixa Idade Mdia, delimitada entre os sculos XI e XV,

  • Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 19

    foi um perodo de grande agitao na Europa: fomes, secas e pestes conviveram com a intensificao do comrcio, o reaquecimento da vida cultural e econmica em centros urbanos, a inaugurao das primeiras universidades, o incremento nas artes e a crise dentro do catolicismo que gerou dissidncias e contestaes que culminaram com a Reforma Protestante, j no sculo XVI. Do ponto de vista econmico, as cidades italianas de Veneza e Gnova tornaram-se pontos de intensa atividade comercial com o Oriente, potencializando o trnsito e as relaes mercantis em toda Europa. No norte do continente, associaes de cidades, como a Liga Hansetica, dinamizaram a circulao de riquezas e pessoas em terras germnicas e nrdicas.

    O fortalecimento do comrcio e o florescimento de cidades mercantis impulsionaram a formao e organizao de um grupo social que no se enquadrava completamente aos jogos de obrigaes feudais: a burguesia comercial. As cidades mantinham relaes por vezes tensas com os poderes polticos da era feudal e a burguesia comercial ressentia-se das dificuldades que encontrava para desenvolver seus negcios. As mais conhecidas dessas dificuldades eram tributrias, monetrias, polticas e de segurana: a fragmentao poltica medieval implicava na existncia de muitas unidades polticas, cada qual com seus impostos, suas moedas e autoridades polticas. Segundo Schiera (2007, p. 426), havia uma [...] incipiente burguesia, em vias de achar o prprio espao exclusivo de ao nas coisas do mundo [...] cada vez mais [necessitada] de regimes de segurana imediata e atual.

    Esse interesse das burguesias comerciais em maior estabilidade

    poltica e segurana para seus negcios convergiam com

    os projetos de efetivao do poder poltico por parte das

    monarquias europeias. Por qu?

    Saiba mais Liga Hansetica

    Foi uma associao de cidades do Sacro Imprio, que se

    constituiu visando manuteno dos privilgios comerciais

    de seus mercadores e o monoplio da navegao nos mares

    Bltico e do Norte da Europa. Sua origem est nas primitivas

    associaes de mercadores, e principalmente nas ligas urbanas

    que se formaram no Imprio desde a segunda metade do

    sculo XIII. Fonte: S (2010).

  • 20 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    O fortalecimento do poder monrquico interessava burguesia porque faria dos reinos unidades polticas com uma autoridade central que produziria leis uniformes, estabeleceria padres monetrios e de pesos e medidas, alm de fazer cessar as guerras locais e submeter os poderes militares feudais, garantindo segurana propriedade e vida dos comerciantes. J para as monarquias, a aliana com a burguesia traria os recursos financeiros necessrios para custear o aparelhamento militar e institucional sem o qual os reis no conseguiriam nem sujeitar os senhores feudais, tampouco sustentar as foras armadas e o aparato burocrtico-institucional (ministrios, polcia, tribunais etc.), fundamentais para exercer o governo sobre um territrio e uma populao.

    A partir dos sculos XIV e XV, o retorno dos europeus cultura clssica (grega e romana), conhecido como Renascimento, no ficou restrito s artes. A ateno tambm foi grande com relao s experincias jurdicas e polticas dos romanos. Primeiro nas cidades do norte da Itlia, depois se espalhando pelos reinos da Europa, autores comearam a ler e traduzir pensadores clssicos, alm de produzir novas obras influenciadas por eles. Assim, os reinos feudais mudavam rapidamente de feio, com os monarcas se fortalecendo, e com ideias reprocessadas dos antigos justificando uma nova forma de exerccio de poder poltico. Segundo Anderson (2004, p. 26), a [...] adoo da jurisprudncia romana reside na tendncia dos governos monrquicos crescente centralizao dos poderes.

    A expresso chave desse processo centralizao do poder poltico. O desafio dos monarcas era concentrar em si a capacidade de governar, ou seja, segundo Michel Foucault (1995, p. 244), no apenas gerir as estruturas administrativas do Estado, mas [...] a maneira de dirigir a conduta dos indivduos ou dos grupos. Para governar ou conduzir a conduta de pessoas e grupos sociais o monarca precisava reunir alguns recursos. Primeiro, necessitava decidir que conduta queria impor aos outros; ou seja, havia que produzir leis que sintetizassem suas ordens e vontades. Para tanto, se cercou de juristas e historiadores que trabalharam para justificar seu poder do ponto de vista legal e histrico. Mas editar uma lei no bastava. Para governar de fato, o rei precisava ter meios para garantir a obedincia.

  • Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 21

    E como ter certeza de que uma ordem seria cumprida?

    Essa garantia no existiria sem que o rei tivesse como obrigar algum a obedecer, caso essa pessoa no o fizesse espontaneamente. Isso somente se garantiria pela fora.

    Em outras palavras, os reis precisavam contar com a capacidade de coao para transformar pessoas em sditos*. Isso s seria alcanado se ele fosse concretamente mais forte que todos os outros que pretendia governar. O rei deveria ter sob seu controle foras militares capazes de derrotar e desarmar os senhores feudais que no aceitassem a nova forma de organizao da poltica na qual o monarca efetivamente governava todo o territrio e toda a populao. Essa fora tambm seria necessria para governar cotidianamente, punindo e ameaando com punio quem ousasse desobedecer a lei, ou seja, a prpria vontade do rei.

    O novo Estado que surgia, encabeado por um rei que efetivamente pretendia governar, se consolidou na medida em que a monarquia constituiu exrcitos fortes para poder impor-se em seu prprio reino. Esses novos exrcitos foram tambm inspirados no modelo romano, recuperado por pensadores como Nicolau Maquiavel (1999; 2006), que viveu entre 1469 e 1527, e recomendou a formao de foras armadas de sditos do reino (e no as pouco confiveis tropas mercenrias) que fossem permanentes (ou seja, sempre a postos) e profissionais (com um corpo treinado e assalariado). Com o apoio burgus, os prncipes europeus puderam financiar exrcitos numerosos, a construo de novas fortalezas e a utilizao do mais poderoso recurso militar desenvolvido at a inveno da bomba atmica: a plvora.

    As armas de fogo, muito caras e difceis de manejar na poca, foram fundamentais para que as milcias medievais com seus cavaleiros, espadas, lanas e armaduras fossem derrotadas categoricamente pelos recm-formados exrcitos reais (KEEGAN, 2002). Portanto, a nova forma de Estado que surge no final da Idade Mdia teve como caracterstica fundamental a centralizao do poder poltico nas mos do monarca, centralizao que s foi possvel com a concentrao de poder coercitivo em favor do rei. Sobre esse trao especial da nova

    *Sdito aquele que est

    sujeito vontade de outro.

    No ingls, sdito diz-se

    subject, palavra que

    tambm significa sujeito

    tanto no sentido de indi-

    vduo por exemplo

    aquele sujeito quanto

    no sentido de estar sujei-

    tado a algum. O mesmo

    acontece, por exemplo,

    no francs sujet. Fonte:

    Elaborado pelo autor

    deste livro.

  • 22 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    organizao poltica que ficou conhecida como Estado Moderno h uma passagem, hoje clssica, do socilogo alemo Max Weber que importante que voc conhea:

    [...] o Estado moderno um agrupamento de dominao que apresenta carter institucional e que procurou (com xito) monopolizar, nos limites de um territrio, a violn-cia fsica legtima como instrumento de domnio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mos dos dirigentes os meios materiais de gesto. (WEBER, 1993, p. 62).

    Nesse trecho, h trs questes que so importantes para frisar:

    ff Weber afirma que o Estado uma instituio, ou seja, um conjunto de agncias especializadas, escritrios, departamentos, ministrios, tribunais, secretarias etc. que visam tornar possvel a prtica do governo a partir de uma autoridade centralizada;

    ff esse poder centralizado reuniu nas mos do Estado os recursos necessrios para governar (os meios materiais de gesto) porque dispe do monoplio legtimo da fora fsica, ou seja, s poderia haver uma nica autoridade armada legtima e legal; sem isso, seria impossvel governar; e

    ff esse poder de governar se daria nos limites de um territrio, portanto, o Estado tem fronteiras dentro das quais exerce sua capacidade de governo.

    Mas o que significa, mais precisamente, essa capacidade de

    governo?

    Ela traduz como vimos anteriormente, a capacidade de fazer e aplicar leis. Essa dupla capacidade que torna possvel gerir condutas, ou seja, governar ficou conhecida no pensamento poltico moderno como poder soberano ou soberania. O prncipe

  • Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 23

    era o soberano em seu reino no s porque estava apto a formular as leis que desejasse, mas porque tinha os instrumentos institucionais e coercitivos para ser obedecido. Um dos mais importantes tericos da nova soberania, o francs Jean Bodin (1530-1596), escreveu na sua obra mais importante Os Seis Livros da Repblica, de 1576 que:

    Assim como o prncipe soberano est isento das leis de seus predecessores, muito menos est obrigado a suas prprias leis e ordenanas. [...] por mais que [as leis] se fundamentem em boas e vivas razes, [elas] s depen-dem de sua pura e verdadeira vontade. (BODIN, 2006, p. 53).

    Para Bodin era um absurdo que o rei se submetesse s leis que ele mesmo editava porque ele era a lei e todos estavam sob ela. O monarca reunia em suas mos o poder de [...] decidir sobre a guerra e paz, nomear os chefes militares e os magistrados, emitir moeda, suspender impostos, conceder indultos e anistias e julgar em ltima instncia (MATTEUCCI, 2007, p. 1.180). Essa concentrao de poderes marcante do perodo conhecido como Absolutismo, o qual foi precisamente a forma de governo que conformou o Estado Moderno.

    Relaes Interestatais, Relaes Internacionais

    As monarquias, portanto, tiveram que travar duas batalhas simultaneamente: uma dentro do prprio reino contra os senhores feudais e demais poderes locais e outra externa, contra os poderes que pretendiam impor-se universalmente: o Sacro Imprio Romano

    Saiba mais Absolutismo

    Modo de organizao e exerccio do poder poltico que deu

    forma ao Estado Moderno e foi predominante na Europa

    ocidental entre os sculos XVI e XVIII. Nesse regime poltico,

    o rei concentrou as funes de legislar, julgar e aplicar a lei,

    por isso dizia-se deter o poder absoluto. Um bom exemplo

    de monarca absoluto foi o rei francs Luis XIV (1638-1715),

    conhecido como Le Roi Soleil (O Rei-Sol), a quem se atribui a

    frase Ltat cest moi (O Estado sou eu). Fonte: Elaborado pelo

    autor deste livro.

  • 24 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    Germnico e a Igreja Catlica. medida que foram consolidando a autoridade interna e fortalecendo-se contra os poderes universais, cada prncipe moderno comeou a coexistir com outros semelhantes a ele; cada qual pretendendo governar a partir do princpio do imperator en regno suo (imperador no seu reino), sem aceitar qualquer intromisso externa ou contestao interna.

    Os primeiros documentos que registram claramente a existncia do Estado Moderno e essa prtica do governo soberano foram um conjunto de acordos que ps fim Guerra dos Trinta Anos, em 1648, e ficou conhecido como Tratados de Westflia. Nessa guerra, dois grupos de Estados se enfrentaram: de um lado franceses e suecos comandavam uma aliana que se ops a outra liderada por austracos e espanhis. Era interesse dos franceses consolidar sua posio de maior potncia continental superando a Espanha e a ustria e, ao mesmo tempo, afirmar sua independncia de qualquer poder universal. As alianas poltico-militares no obedeceram mais critrios religiosos: a Frana era um reino catlico que se aproximou da Sucia protestante para lutar contra espanhis e austracos catlicos (GANTET, 2003). Estava em jogo aumentar a posio de poder e garantir a independncia poltica, ou seja, interesses que como j havia escrito Maquiavel e voc pde estudar na disciplina de Cincia Poltica faziam parte de uma lgica prpria do Estado Moderno e no se confundiam com valores morais ou religiosos.

    Os tratados de Westflia celebraram o fim do conflito e acabaram por registrar os princpios que orientavam a existncia e as pretenses das monarquias absolutas. O principal desses princpios foi resumido na frase latina cujus regio, ejus religio cada rei com sua religio que registrava a autonomia de cada monarca em definir se seu reino seria catlico ou protestante. Com isso, cada Estado afirmava sua independncia com relao Igreja e ao Sacro Imprio, ao mesmo tempo que negava a intromisso de qualquer outro soberano em seus assuntos internos. O respeito independncia, igualdade jurdica de todos os Estados e no interveno na poltica interna de outros Estados tornaram-se, a partir de ento, as regras bsicas a organizar as relaes interestatais. Regras essas que continuam em vigor, apesar de todas as transformaes que veremos adiante.

  • vv

    Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 25

    Apenas para que voc veja como esses princpios permanecem vivos, a Carta das Naes Unidas, de 1945, traz logo de incio os seguintes trechos:

    Artigo 1. Os propsitos das Naes Unidas so: [...] 2. Desenvolver relaes amistosas entre as naes, basea-das no respeito ao princpio da igualdade de direito e de autodeterminao dos povos [...].

    Artigo 2. [...] 1. A Organizao baseada no princpio da igualdade soberana de todos os seus membros. (BRASIL, 1945).

    Os Tratados de Westflia so considerados importantes no porque tenham inaugurado as relaes interestatais, mas porque registraram algo que j existia e estava em prtica: as relaes dos Estados em um sistema de Estados.

    A escola terica das Relaes Internacionais realista, assunto que veremos na Unidade 3, descreve esse sistema interestatal como anrquico, ou seja, um sistema no qual cada Estado viveria numa espcie de estado de natureza como o descrito por Thomas Hobbes: no haveria nenhum poder poltico superior aos Estados, o que permitiria a cada soberano tomar as decises que quisesse na perseguio de seus interesses. Assim, os Estados poderiam escolher entre o conflito e a cooperao com outros Estados, conforme as circunstncias melhor indicassem.

    Voltaremos questo do conflito e da cooperao no incio da

    prxima Unidade. Por ora, precisamos ultrapassar outra questo

    antes de finalizarmos esta Unidade. possvel que voc tenha

    notado o uso da expresso interestatal para descrever as

    relaes e o sistema de Estados no incio da Era Moderna. E, a

    partir disso, poderia surgir a pergunta: por que usar interestatal

    e no internacional? H uma diferena considervel entre

    interestatal e internacional que importante saber. Por isso

    preste muita ateno para no confundir os conceitos.

    Em um nvel bastante

    elementar, sistema um

    conjunto dinmico em

    que diferentes agentes

    interagem. Os autores das

    Relaes Internacionais

    referem-se a sistema

    interestatal como o

    conjunto formado por

    Estados soberanos e suas

    relaes.

    Voc teve a oportunidade

    de estudar este tema na

    disciplina Cincia Poltica.

    Se for necessrio releia o

    conteudo da disciplina e

    relembre o conceito.

  • 26 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    A expresso internacional foi cunhada pelo pensador utilitarista ingls Jeremy Bentham no livro Uma introduo aos princpios da Moral e Legislao, publicado em 1789. Bentham pensava que a expresso jus gentium direito das gentes comum at ento para descrever as regras praticadas pelos Estados para regulamentar suas relaes, deveria ser substituda por outra que ele considerava mais apropriada: International Law (direito internacional). O autor ingls considerava que as relaes entre os Estados tinham produzido uma dinmica prpria distinta das questes internas a cada nao, por isso haveria um espao entre inter as naes a ser reconhecido. No foi coincidncia, no entanto, que Bentham tenha utilizado o termo Nao como sinnimo de unidade poltica soberana e que a data da publicao do livro seja um alerta.

    A Revoluo Francesa emergiu em 1789, e foi um acontecimento poltico e social no qual foram vitoriosas as ideias liberais e iluministas, dentre as quais se destacava o princpio de Nao. Segundo Lefort (2003), desde o sculo XVIII passou-se a considerar nao um grupo de indivduos que partilhasse traos comuns como idioma, religio, costumes, vises de mundo, territrio, raa e que, a partir dessa identificao, sentissem compartilhar de um mesmo passado, presente e futuro. O pensamento liberal, desde o final do sculo XVII, formulou a crtica do poder poltico absolutista, defendendo a transformao da ordem poltico-social de modo a retirar o poder soberano das mos do monarca e transferi-lo ao povo, transformando os sditos do rei em cidados da Repblica, com direitos e deveres para com o conjunto da sociedade. Essa bandeira fez parte das sublevaes liberais na Inglaterra (sculo XVII), na Amrica do Norte (independncia dos Estados Unidos, em 1776) e na Frana (com a Revoluo Francesa).

    Nesse contexto, sobressaiu a imagem de Nao como unidade de cidados compartilhando uma mesma realidade poltica, econmica e social. Surgiu, tambm, a ideia de que cada Nao teria o direito de ter sua prpria expresso poltica, ou seja, seu Estado soberano. Passou-se a identificar, principalmente a partir do sculo XIX, Nao e Estado o que produziu o conceito de Estado-nao ou Estado nacional para designar os Estados Modernos. Contudo a vinculao entre nao e Estado no automtica e tampouco natural.

  • Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 27

    Isso fica mais evidente quando olhamos para a formao de Estados como a Espanha.

    Explicamos: considera-se que o Estado Moderno espanhol nasceu quando os reinos aliados de Castela e Arago expulsaram definitivamente os mouros muulmanos da Pennsula Ibrica, em 1492. A partir dessa vitria dos Reis Catlicos Isabel e Fernando, outros reinos na pennsula foram conquistados ou incorporados formando o Reino da Espanha. No entanto, a permanncia de prticas culturais regionais muito fortes, como na Catalunha, Galcia e Pas Basco so, ainda hoje, marcas vivas de um processo de unificao poltico-militar que pode ter forjado um Estado Moderno espanhol, mas no propriamente um Estado-nao espanhol. Os atentados do Euskadi Ta Askatasuna (ETA, Ptria Basca e Liberdade em basco) grupo que luta pela independncia do Pas Basco, nos fazem lembrar que a Espanha moderna no uma suposta expresso poltica de uma nao espanhola natural que existia antes do Estado. A histria da construo das nacionalidades na Europa foi, com maior ou menor intensidade, uma histria violenta.

    Quando pensamos nas Amricas, frica, sia e Oceania o vnculo entre nao e Estado fica ainda mais difcil de ser traado.

    De forma muito simples, poderamos nos perguntar: como

    aplicar esse conceito de Nao a pases que em seu territrio

    contam com populaes com tantas prticas culturais distintas?

    Como homogeneizar grupos humanos com histrias diferentes,

    muitas vezes procedentes de lugares distantes e que hoje

    coabitam um mesmo pas? Como padronizar pessoas que

    juridicamente so cidads do mesmo Estado, mas que no se

    identificam com boa parte de seus cocidados?

    Muitas so as crticas feitas ao padro europeu de nacionalidade e vrias as tentativas de adequ-lo s regies mais diferentes do globo. Essa discusso importante, polmica e inconclusa; porm,

  • 28 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    aqui vamos apenas abrir este espao para sinalizar a voc questes imprescindveis para nossos estudos subsequentes.

    preciso, desse modo, que voc tenha em mente que esse conceito de Nao e a expresso Estado-nao se difundiram ao longo do sculo XIX e se consagraram no sculo XX como o modelo para a organizao poltica das sociedades em todo o planeta. Ento, quando Estado Moderno e Nao so identificados numa mesma unidade poltica chamada Estado-nao as relaes entre Estados passam a ser vistas como relaes entre naes ou simplesmente relaes internacionais.

    Assim, as relaes internacionais so, em seu nvel mais elementar, relaes interestatais que despontaram com a formao dos Estados Modernos entre os sculos XVI e XVII: cada Estado soberano passou a se relacionar com outras unidades semelhantes produzindo um sistema de Estados com sua dinmica prpria. Com a fuso jurdico-poltica entre Estado e Nao, as relaes tornaram-se internacionais. Hoje em dia, como veremos ao longo das prximas Unidades, as relaes internacionais so muito mais do que relaes entre Estados. No entanto, era preciso deixar claro que elas emergem como relaes interestatais que se conformam num determinado processo histrico acontecido na Europa Centro-Ocidental. Se as relaes internacionais no sculo XXI recobrem todo o globo, e se projetam inclusive no espao sideral, seu surgimento foi relativamente recente no mais que cinco sculos e inicialmente circunscrito a uma pequena poro do planeta.

    No entanto, os Estados nascidos nesse diminuto continente se expandiram, conquistando as demais regies da Terra. E quando americanos, africanos e asiticos ficaram independentes, foi o modelo estatal herdado dos colonizadores que eles adotaram. Na primeira dcada do sculo XXI so quase duzentos Estados no planeta. Entre eles, h relaes novas e outras que remontam quelas desenvolvidas pelos europeus a partir do final da Idade Mdia. Hoje, as relaes internacionais, como estudaremos adiante, indicam a formao de uma poltica global, para alm do meramente inter-nacional. Com isso em mente, e com os mapas iniciais em mos, podemos avanar nessa tentativa de compreender melhor o que so as relaes internacionais.

  • Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 29

    ComplementandoAprofunde seus estudos, consultando a leitura indicada:

    Tratados de Westflia conhea mais sobre o tratado acessando: . Acesso em: 31 jul. 2012.

    The Avalon Project Documents in Law, History and Diplomacy acesse o site da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e consulte documentos importantes da histria das relaes internacionais. Disponvel em: . Acesso em: 31 jul. 2012.

  • 30 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    ResumindoNesta Unidade pudemos acompanhar o processo hist-

    rico-poltico que se deu entre a poca do mapa-mndi produ-

    zido pelos monges no sculo XII e aquela do mapa traado por

    Mercator no sculo XVI no qual a fragmentao poltica medie-

    val, que convivia com as pretenses universalistas da Igreja

    Catlica e do Sacro Imprio Romano, foi gradativamente supe-

    rada por uma nova ordem poltica. Centrada na figura do Estado

    Moderno, a nova ordem instituiu um modo de poder poltico

    centralizado no monarca e que no admitia contestaes inter-

    nas ou intromisses externas. A regra bsica do respeito abso-

    luto soberania vinculou-se, portanto, ausncia de qualquer

    forma de governo superior aos Estados. Assim, as relaes inte-

    restatais modernas surgiram como um conjunto de interaes

    cooperativas ou conflituosas entre essas novas unidades sobe-

    ranas, sem leis ou regras que no fossem derivadas da prpria

    vontade dos Estados. A principal dessas regras a sintetizada

    na frmula cujus regio, ejus religio que, em linhas gerais,

    segue orientando a organizao do atual sistema internacio-

    nal. Tambm pudemos notar como os Estados Modernos no

    so organizaes polticas milenares, muito menos naturais.

    Ao contrrio, so organizaes polticas dotadas de uma hist-

    ria recoberta de violncias e relaes de fora e que geraram

    consigo as relaes interestatais. Por fim, vimos as dificuldades

    em torno do termo Nao, que apesar disso se firmou como

    prtica poltica a ponto de se identificar com o Estado Moderno

    de modo a nomear as relaes entre essas unidades soberanas

    de relaes internacionais.

  • Unidade 1 A Emergncia das Relaes Internacionais

    Mdulo 8 31

    Atividades de aprendizagem

    1. H inmeros filmes que tm como pano de fundo a questo do Estado

    e a formao do Estado Moderno e da emergncia das relaes inter-

    nacionais. Um deles Elizabeth, de Shekhar Kapur, lanado em 1998.

    Assista ou, se for o caso, reveja o filme com ateno, reparando nas

    relaes de poder que se formam na corte de Elizabeth I (1533-1603),

    filha de Henrique VIII, que foi um dos primeiros monarcas absolutos

    da Europa. Note as formas com que vo se estabelecendo as relaes

    diplomtico-militares, o choque de interesses do Estado ingls com

    o poder universalista da Igreja Catlica e, principalmente, o efeito do

    exerccio de poder na personagem de Elizabeth: note tambm como

    o filme caracteriza a personagem quando ainda princesa e, no final,

    a transformao que acontece quando ela se torna rainha. Quarenta

    e cinco anos aps a morte de Elizabeth I foram assinados os Tratados

    de Westflia que estudamos nesta Unidade. A seguir, apresentamos

    a reproduo do Artigo LXXVI do Tratado de Westflia celebrado em

    Mnster, no dia 24 de outubro de 1648.

    Todos os vassalos, sditos, pessoas, cidades, municipa-lidades, castelos, casas, fortalezas, florestas, bosques, minas de ouro e prata, minerais, rios, riachos, pastos; numa palavra, todos os Direitos, Vantagens e Direitos de propriedade, sem qualquer reserva, devem pertencer ao

    Vamos conferir se voc entendeu bem o que abordamos nesta Unidade? Para saber, realize a atividade proposta. Caso tenha alguma dvida, faa uma leitura cuidadosa dos conceitos ainda no entendidos ou, se achar necessrio, entre em contato com seu tutor.

  • 32 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    mais cristo dos reis [o da Frana], e devem ser incorpo-rados para sempre ao Reino da Frana, em toda forma de Jurisdio e Soberania, sem qualquer contestao por parte do Imperador [do Sacro Imprio Romano], da Casa da ustria, ou outro soberano: assim, nenhum Impera-dor ou Prncipe da Casa da ustria dever usurpar ou pretender qualquer Direito ou Poder sobre as menciona-das Regies, nesse ou no outro lado do Reno. (ISRAEL, 1967, p. 31-32, traduo do autor deste livro).

    Aps assistir o filme e ler o trecho anterior, produza, em at trs

    pginas, uma anlise que correlacionando o filme e o trecho do

    Tratado, sintetize as questes fundamentais do processo de forma-

    o do Estado Moderno e as implicaes internacionais do surgimen-

    to dessa forma de organizao de poder poltico.

  • UNIDADE 2

    Objetivos Especficos de Aprendizagem

    Ao finalizar esta Unidade, voc dever ser capaz de:

    f Compreender a formao e o papel da diplomacia moderna e do poderio militar moderno nas relaes entre Estados;

    f Conhecer, por meio do estudo de Carl von Clausewitz e Raymond Aron, aspectos das abordagens clssicas sobre guerra/conflito e

    diplomacia/cooperao nas relaes internacionais;

    f Entender, a partir do estudo de Pierre-Joseph Proudhon e Michel Foucault, que so possveis outras perspectivas de anlise

    da relao guerra e poltica, aplicada ao estudo das relaes

    internacionais;

    f Identificar as principais caractersticas da diplomacia e das funes do diplomata, para conhecer mais sobre a histria da diplomacia

    brasileira; e

    f Identificar conceitos importantes no campo da poltica externa, distinguindo diplomacia de poltica externa.

    Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a

    cooperao e o conflito

  • Unidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito

    Mdulo 8 35

    Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a

    cooperao e o conflito

    Guerra e Diplomacia: instrumentos do Estado

    O francs Raymond Aron (1985), um dos principais tericos das Relaes Internacionais, dedicou um dos seus mais conhecidos livros Paz e guerra entre as Naes , publicado em 1962, para pensar as duas formas pelas quais os Estados se relacionam: o conflito e a cooperao. Segundo o autor, os Estados praticavam suas relaes externas combinando ou alternando tticas de negociao e enfrentamento que levavam, respectivamente, celebrao de acordos, parcerias e alianas ou a guerras. Todo Estado teria, assim, dois meios para colocar em movimento suas relaes com outros pases; e para ilustrar esse duplo mecanismo, Aron elegeu as imagens do soldado

    Caro estudante,

    Nesta Unidade, voc estudar os dispositivos fundamentais desenvolvidos pelos Estados Modernos para garantir, no plano internacional, sua sobrevivncia e expanso: a guerra e a diplomacia. Ambas expressam as duas dimenses chaves e coexistentes das relaes internacionais que so a cooperao e o conflito. At o final da Unidade voc identificar as duas tradies de estudo da relao entre guerra e poltica e estar apto a detalhar aspectos da prtica diplomtica.

  • vv36 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    e do diplomata. Utilizando soldados ou diplomatas, ou seja, a fora militar ou a persuaso diplomtica, os Estados buscariam alcanar seus objetivos nas relaes internacionais.

    Para Aron (1985, p. 73),

    [...] a distino entre diplomacia e estratgia [a guerra] relativa. Os dois termos denotam aspectos complemen-tares da arte nica da poltica a arte de dirigir o inter-cmbio com os outros Estados em benefcio do interesse nacional.

    Assim, a diplomacia no seria melhor que a guerra, ou vice-versa, mas apenas tcnicas diferentes que um Estado teria disposio para realizar internacionalmente o que define como seu interesse nacional*. Os dois maiores objetivos de um Estado, segundo a tradio que vem de Maquiavel, so sobreviver como unidade soberana e expandir sua capacidade de influenciar politicamente outros Estados. Para alcanar esses objetivos, um Estado deve eleger suas prioridades interesses e os meios que mais lhe convenham para alcan-las numa determinada situao. Nesse sentido, complementa Aron (1985, p. 73),

    [...] a diplomacia pode ser definida como a arte de convencer sem usar a fora, e a estratgia [a guerra] como a arte de vencer de um modo mais direto. Mas impor-se tambm um modo de convencer.

    Michel Foucault (2008b) considerou a articulao entre diplomacia e fora militar como um mecanismo ou dispositivo, o dispositivo diplomtico-militar, que os Estados Modernos desenvolveram, em primeiro lugar, para sua proteo e, depois, para ousar aumentar sua capacidade de exercer poder sobre outros Estados. Esse dispositivo combinaria o potencial militar de cada Estado, com as habilidades diplomticas de funcionrios especializados enviados a pases estrangeiros com as funes de representar o soberano, servir de canal permanente para a consulta poltica e a negociao entre Estados, e coletar

    Fique atento ao raciocnio

    em torno dessas figuras,

    pois ele ser necessrio

    mais adiante.

    Representar, negociar,

    coletar e informar so

    funes que permanecem

    na base da atividade

    diplomtica dos Estados

    (BATH, 1989).

    *Interesse Nacional

    conjunto de metas que

    um Estado define como

    vitais e que devem ser

    perseguidos por meios

    diplomticos ou milita-

    res. Fonte: Elaborado pelo

    autor deste livro.

  • vv

    Unidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito

    Mdulo 8 37

    dados sobre a situao poltica, econmica, militar e social do pas em que estivesse para informar seu governo.

    Desse modo, ao conhecer a situao de outro Estado (com suas fraquezas e foras), um soberano poderia tomar decises de governo sobre o seu prprio pas, alm de providenciar melhorias para suas foras armadas (compra de novas armas, convocao de mais soldados, construo de novas fortalezas etc.). Assim, os elementos clssicos do clculo de poder de um Estado quantidade e caractersticas da populao, tamanho do territrio, recursos naturais disponveis, qualidade da indstria e agricultura (economia geral), tamanho e poderio das foras armadas poderiam ser acompanhados, medidos e levados em conta na elaborao das diretrizes de poltica externa. Com isso, um Estado teria condies de ao menos se equiparar em poder (econmico, populacional e militar) aos outros Estados.

    Num sistema interestatal anrquico, como o que estudamos na Unidade 1, a ausncia de um poder superior aos Estados e a urgncia dos soberanos em garantir sua independncia poltica, colocaram aos monarcas um problema: a necessidade de se autoproteger ou, em outras palavras, de se garantir pelas prprias foras num sistema competitivo. Segundo Foucault (2008b, p. 398):

    Se os Estados so postos uns ao lado dos outros numa relao de concorrncia, preciso encontrar um sistema que permita limitar o mximo possvel a mobilidade de todos os outros Estados, sua ambio, sua ampliao, seu fortalecimento, mas deixando aberturas suficientes a cada Estado para que possa maximizar sua ampliao sem provocar seus adversrios e sem, portanto, acarretar seu prprio desaparecimento ou seu prprio enfraqueci-mento.

    Em um sistema como esse cada Estado tinha que conseguir, no mnimo, o equilbrio de suas foras com as dos demais Estados. Motivo pelo qual o componente diplomtico do dispositivo diplomtico-militar passou a cumprir a importante tarefa de dar elementos (informaes, dados, projees etc.) e recursos (canais de negociao, acordos e

    Decises como: que ramo

    da economia incentivar,

    que polticas direcionar

    populao, que regies do

    pas ocupar etc.

    Se voc no lembra

    desse sistema retorne

    Unidade 1.

  • 38 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    alianas etc.) para que os Estados se preparassem para garantir sua sobrevivncia nacional e possvel expanso territorial ou de influncia. O dispositivo diplomtico, portanto, cultivaria o equilbrio ou balano de poder entre os Estados europeus.

    Mas o que aconteceria se algum pas conseguisse desequilibrar

    a correlao de foras no sistema internacional? Isso implicaria

    no fim do sistema de Estados?

    No necessariamente, se o outro elemento do dispositivo diplomtico-militar entrasse em jogo: a guerra. Os conflitos armados entre os Estados tambm funcionariam como mecanismos de regulao do equilbrio de poder entre eles. Como? Se um dos Estados se sentisse em condies de perseguir suas ambies de ampliao e fortalecimento pela via militar, rompendo o equilbrio, os outros Estados se sentido ameaados tenderiam a se aliar de modo a enfrentar esse Estado agressor. Uma vez derrotado, uma nova recomposio de foras entre os Estados surgiria, recuperando o sistema em nome da sade, fora e sobrevivncia de todos os Estados.

    Os perodos de equilbrio de foras entre os Estados foram trs:

    ff o formado aps a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e registrado nos Tratados de Westflia este perodo durou do sculo XVII at o final do sculo XVIII, com a expanso militar da Frana de Napoleo Bonaparte;

    ff o novo balano de poder, conhecido como Concerto Europeu, estabelecido na Conferncia de Viena a partir de 1815, pelos pases que venceram Napoleo, e que se sustentou at a ecloso da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Contudo, a tentativa de formar um novo sistema internacional em equilbrio aps a Primeira Guerra falhou com a ecloso da Segunda Guerra Mundial, em 1939, como veremos na Unidade 3; e

  • Unidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito

    Mdulo 8 39

    ff Depois desse conflito, um terceiro equilbrio, o bipolar, surgiu entre os blocos liderados pela Unio Sovitica (URSS) e pelos Estados Unidos, e perdurou at o fim da Guerra Fria, na passagem da dcada de 1980 para a de 1990, quando se abriu um novo momento de indefinies e mudanas na poltica internacional, que estudaremos na Unidade 4.

    Cada novo equilbrio de poder foi estabelecido depois que uma guerra redistribuiu territrios, populaes e capacidades militares e econmicas entre vencedores e vencidos. O equilbrio do sistema firmado em Westflia terminou com a expanso militar napolenica; o equilbrio do Concerto Europeu ruiu em 1914 com a Primeira Guerra Mundial; assim como o equilbrio precrio dos anos 1920 e 1930 terminou com a expanso nazista. J o terceiro grande equilbrio de poder, terminado com o fim da Guerra Fria, foi diferente, sem que uma grande guerra entre os lderes de cada bloco selasse o destino das relaes internacionais (estudaremos com mais ateno esse momento na Unidade 4). Os trs perodos de equilbrio, no entanto, no foram pocas de paz: se as grandes potncias no se enfrentaram diretamente, elas se envolveram direta ou indiretamente em inmeros conflitos nos quatro continentes, como, por exemplo, os ingleses na Guerra da Crimia (1853-56), os Estados Unidos na Guerra do Vietn (1965-73) e a URSS no Afeganisto (1979-89); alm das dezenas de golpes de Estado, intervenes, guerras civis e regimes autoritrios apoiados pelas potncias ao longo dos sculos XIX e XX.

    As foras militares no precisariam, no entanto, entrar em ao para cumprir seu papel de instrumento da poltica exterior dos Estados: um pas que tivesse foras equiparveis aos seus principais

  • 40 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    competidores poderia esperar que seus adversrios no optassem pela violncia direta, pois recorrer a isso exporia o prprio agressor derrota: se o principal objetivo do Estado sobreviver como unidade soberana, decidir pela guerra quando ela ameaa a sobrevivncia do Estado seria um equvoco. Essa capacidade de um Estado em manter um poderio militar que ameasse seu oponente chamada de poder de dissuaso militar.

    A equiparao de foras militares, desse modo, operaria como um mecanismo de equilbrio gerando uma paz armada, ou seja, a paz como ausncia temporria de guerra entre Estados em competio. Para Foucault (2008b), quando desequilbrios de fora se apresentassem, com pretenses de expanso ou de hegemonia por parte de um ou mais Estados, uma guerra aconteceria; no para destruir o sistema interestatal, mas, ao contrrio, para reorganiz-lo a partir do princpio do poder poltico centralizado no Estado. Nessas guerras, alguns Estados poderiam desaparecer ou perder territrios, outros poderiam crescer e at mesmo novos pases poderiam surgir; no entanto, o sistema de Estados seria preservado. As guerras, assim, seriam crises de reorganizao visando a preservao do sistema e a continuidade do modelo estatal. As guerras, portanto, no seriam ameaas ao sistema interestatal, mas instrumentos para a sade e preservao do Estado e do prprio sistema.

    Os Estados, lanando mo dos dois elementos do dispositivo diplomtico-militar a negociao diplomtica e o poderio militar , poderiam cultivar [...] a conservao de uma certa relao de foras, a conservao, a manuteno ou o desenvolvimento de uma dinmica das foras [...] (FOUCAULT, 2008b, p. 397) nas relaes internacionais de modo a criar um cenrio mais seguro e equilibrado para eles prprios.

    Saiba mais Dissuaso militar

    a manuteno de exrcitos poderosos para servir

    como recurso de defesa ao convencer possveis

    agressores de que a guerra no seria uma boa

    opo. A clssica frase do militar e estrategista

    romano Renato Vegcio (sculo IV d. C.) si vis

    pacem, para bellum (se queres paz, prepara-te

    para a guerra) sintetiza esse princpio. Fonte:

    Elaborado pelo autor deste livro.

  • Unidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito

    Mdulo 8 41

    Em suma, os Estados Modernos constituram um sistema para regular suas relaes externas de modo a proteger sua existncia e garantir espaos para sua expanso. Passemos, agora mais em detalhe, diplomacia e fora militar, os dois elementos desse dispositivo diplomtico-militar, destacando suas caractersticas e principais traos histrico-polticos.

    A Guerra dos Estados

    Raymond Aron combinou muitos de seus estudos sobre as relaes internacionais com escritos, livros e conferncias a respeito de Carl von Clausewitz, general do exrcito prussiano (antiga Prssia), e considerado o mais influente terico da guerra moderna (STRACHAN, 2008; HOWARD, 2002).

    Raymond Aron iniciou seu livro Paz e guerra entre as naes com uma sistematizao da obra de Clausewitz por acreditar que a reflexo do general sobre a relao entre guerra e poltica continuaria vlida para o estudo das relaes internacionais contemporneas.

    O que seria, em suma, essa reflexo de Clausewitz? Ao enfrentar

    essa questo poderemos compreender melhor como os Estados

    Modernos procuraram lidar com a guerra e porque ela um

    acontecimento fundamental da poltica internacional.

    Saiba mais Prssia

    Estado Moderno estabelecido em 1701 no que hoje a regio

    norte oriental da Alemanha e que, ao longo dos sculos XVIII

    e XIX, firmou-se como o mais forte dos diversos Estados

    independentes em que se dividiam os germnicos. Em 1871,

    sob o comando do primeiro-ministro Otto von Bismarck (1815-

    1898), os prussianos venceram uma guerra com a Frana,

    consolidando a unificao poltica da Alemanha. Fonte:

    Elaborado pelo autor deste livro.

  • 42 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    Clausewitz: um general pelo limite guerra

    A vida de Clausewitz foi marcada pela guerra em que participou contra os franceses. Entre 1806 e 1808, o exrcito prussiano, liderado por nobres aristocratas como ele, foi destrudo pelas tropas comandadas por Napoleo Bonaparte, numa srie de batalhas nas quais a fora francesa mostrou superioridade no apenas pela maior quantidade de homens e armamentos. Para Clausewitz, alm do poderio em armas e soldados, os franceses foram superiores tambm na disposio ao combate porque lutavam motivados por ideais (os da Revoluo Francesa) e por sua Nao, diferentemente dos prussianos convocados fora para lutar em nome de um rei e da nobreza que os sujeitavam. O surgimento de uma guerra popular, mobilizando toda a nao em sua defesa, parecia ser, para Clausewitz, a grande novidade de sua poca que transformaria as guerras do futuro (HOWARD, 2002).

    Clausewitz registrou suas impresses sobre a guerra, do ponto de vista tcnico e poltico-filosfico, em escritos que planejava publicar num grande tratado. No entanto, morreu antes de completar o livro, vtima de uma epidemia de clera. Sua mulher reuniu o material seguindo instrues deixadas pelo general e publicou Da guerra, em 1832. Do vasto tratado nos interessa analisar o trecho mais filosfico-poltico reunido no primeiro captulo da obra, chamado O que a guerra?.

    Segundo Clausewitz (2003), uma primeira imagem que poderia vir mente ao pensar sobre a guerra seria a do duelo: dois oponentes se enfrentando violentamente em busca da vitria. Um duelo no existiria sem aquilo que chamou de inteno hostil: o dio que levaria tentativa de solucionar uma desavena pela fora. Essa inteno hostil, alimentando um desejo de vingana, faria com que os desafiantes se enfrentassem at a vitria total de um dos lados, ou seja, a morte do inimigo. O duelo seria um combate que se resolveria num s momento, quando a lmina da espada ou a bala da arma de fogo selassem o triunfo de um dos duelistas.

    Tambm entre os Estados, para Clausewitz, no haveria mobilizao para a guerra sem que existisse uma inteno hostil a contrapor um povo a outro. No entanto, quando esse dio acendia os nimos das massas, e o pas terminava por declarar guerra a outro,

  • Unidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito

    Mdulo 8 43

    no era propriamente um duelo que viria a acontecer. As guerras entre Estados seriam uma srie de combates entre massas de soldados organizados em grandes exrcitos e no um duelo entre duas pessoas que terminaria apenas com um golpe. Portanto, as guerras no seriam duelos, mas uma forma de conflito entre Estados que contaria com uma lgica e objetivos prprios.

    A guerra tambm no visaria, como num duelo, a destruio total do outro Estado. Se a inteno hostil num duelo leva a um confronto definitivo e nico entre duas pessoas, a guerra no reproduziria esse formato. Clausewitz afirmou que se a guerra fosse um duelo haveria uma guerra absoluta, na qual um Estado com sua populao, cidades, campos, riquezas seria totalmente arrasado por outro. Mas, para Clausewitz (2003, p. 15), [...] a guerra nunca algo absoluto no seu resultado. Haveria, ento, uma diferena entre a guerra absoluta, apenas um conceito, e a guerra real, a que de fato acontece quando Estados decidem se enfrentar.

    A guerra real seria composta por um conjunto de batalhas que se prolongaria no tempo meses ou anos e que teria, como resultado final, a derrota militar de um ou mais Estados. A vitria militar significaria no a destruio do Estado derrotado, mas a sua capitulao, ou seja, a sua desistncia em seguir lutando. A guerra, ento, deveria castigar o Estado oponente (destruindo cidades, estradas, fortalezas, plantaes, civis, soldados etc.) at que ele no suportasse mais a luta e se rendesse. Nesse momento, a rendio implicaria na submisso vontade do vencedor: o Estado perdedor ficaria sob a influncia direta do ganhador, devendo obedincia, ou mesmo sendo anexado pelo pas vitorioso.

    Ao definir a guerra real, Clausewitz estabeleceu sua relao entre guerra e poltica: o objetivo da guerra no seria destruir, mas submeter o oponente, criando uma relao poltica de mando e obedincia. Por isso, a imagem do duelo no corresponderia guerra, uma vez que no h relao de mando e obedincia quando o oponente morre. Um Estado definitivamente arrasado no obedece ou se submete a outro. Dessa maneira, a guerra seria apenas uma forma de um Estado perseguir objetivos polticos nas relaes internacionais: um modo de, pela fora militar, sujeitar outros Estados

  • v44 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    sua vontade. A guerra, assim, no seria um fim em si mesmo, mas um recurso militar disposio do governo para perseguir as metas polticas da sobrevivncia do Estado e de seu fortalecimento e expanso. Para Clausewitz, quem decide ir guerra o governante em nome da expanso ou defesa do Estado. Os militares seriam apenas os tcnicos especialistas para executar, pela via militar, o plano poltico definido pelo governante.

    A partir da podemos compreender a passagem mais famosa da obra de Clausewitz (2003, p. 27): [...] a guerra uma simples continuao da poltica por outros meios. A guerra no teria uma funo desconectada dos objetivos centrais do Estado; seria somente um meio para alcan-los. Nesse ponto, notamos como a figura do soldado proposta por Aron se encaixa nessa perspectiva da guerra como um meio do Estado perseguir a realizao do seu interesse nacional.

    A guerra na perspectiva clausewitziana seria um instrumento do Estado para estabelecer, pela fora, relaes polticas de mando e obedincia nas relaes internacionais.

    Como pensador militar, Clausewitz defendia que a guerra deveria estar a servio do Estado. Tal conceito da guerra como um instrumento poltico do Estado nas relaes internacionais decorre de dois pressupostos que atravessam a reflexo do general e que devem ser destacados. Vamos a eles.

    Paz Interna e Guerra Externa

    O conceito de guerra como instrumento da poltica indica a filiao de Clausewitz tradio contratualista da filosofia poltica. Contratualistas como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, apesar das diferenas entre si, tinham em comum o argumento de que a paz civil seria alcanada apenas quando os homens celebrassem um contrato que criasse o Estado, dando-lhe

    Voc teve a oportunidade

    de estudar esta tradio

    na disciplina de Cincia

    Poltica. Caso julgue

    necessrio, retorne aos

    seus materiais para

    relembrar o conceito.

  • vUnidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito

    Mdulo 8 45

    poderes para proteger a vida de cada indivduo e suas propriedades. Para o contratualismo, antes do pacto social teria existido um estado de natureza, no qual a ausncia de poder poltico central criaria um ambiente inseguro com a possibilidade constante de guerra entre os homens: a situao que Hobbes chamou de guerra de todos contra todos. No estado de sociedade gerado pelo contrato social, o Estado seria, pela sua fora fsica descomunal, o garantidor da ordem, colocando fim violncia entre os homens. A guerra, portanto, estaria superada dentro dos limites do Estado.

    Sendo a guerra extinta pelo contrato, sua nica possibilidade de acontecer seria no espao sem contrato das relaes internacionais. Os Estados, todos soberanos e sem dever obedincia a um soberano dos soberanos, poderiam recorrer guerra sem impedimentos. a existncia de algo como um estado de natureza internacional, como sugere a passagem a seguir, escrita por Hobbes (1979, p. 132-131) em Leviat:

    [...] tal como entre homens sem senhor existe uma guerra perptua de cada homem contra seu vizinho [...] assim tambm, nos Estados que no dependem uns dos outros, cada Estado [...] tem a absoluta liberdade de fazer tudo o que considerar mais favorvel [...] a seus interesses. Alm disso, vivem numa condio de guerra perptua, e sempre na iminncia da batalha, com as fronteiras em armas e canhes apontados contra seus vizinhos a toda a volta.

    Se o contrato social era a nica forma de deixar o estado de natureza, e os Estados no estavam dispostos a celebrar um grande contrato universal que os submetesse a um poder superior, a formao de cada Estado como uma bolha de paz implicaria na produo de um novo estado de natureza entre os Estados. Clausewitz descreveu a guerra como um instrumento da poltica porque tinha como pressuposto que a guerra s poderia acontecer fora do Estado, pois estaria pacificada dentro dele, sendo apenas um recurso estatal para buscar objetivos polticos nas relaes internacionais. Raymond Aron (1985, p. 53), que incorporou as reflexes de Clausewitz,

    Lembre que um dos

    quesitos para tornar uma

    pessoa jurdica legtima

    o seu contrato social.

    Ser que essa questo

    do contrato social no

    mbito internacional

    gerou alguma influncia

    para se estabelecer o que

    conhecemos hoje pelo

    instituto do contrato social

    de empresas no Brasil?

    Pense a respeito e inicie

    uma discusso com seus

    colegas no AVEA.

  • v46 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    afirmou: [...] enquanto a humanidade no se tiver unido num Estado universal, haver uma diferena essencial entre a poltica interna e a poltica externa. A diferena essencial seria essa entre a paz interna garantida pelo monoplio da violncia legtima e a possibilidade de guerra constante nas relaes internacionais. Logo, possvel notar que tanto Clausewitz quanto Aron esto filiados tradio da filosofia poltica que associa Estado como sinnimo de paz e ausncia de Estado como sinnimo de guerra.

    A Guerra Exclusividade do Estado?

    Clausewitz defendeu a guerra como instrumento disposio do Estado e Aron, na mesma linha do prussiano, sustentou que as aes militares precisavam ser [...] dominadas pela poltica (definida como a personificao da inteligncia do Estado) (ARON, 1985, p. 72). Em outras palavras, os recursos militares deveriam estar sob controle do Estado para serem utilizados por ele na perseguio de objetivos polticos (entendidos como o estabelecimento das relaes de mando e obedincia). No entanto, do ponto de vista histrico, a guerra no foi sempre uma exclusividade do Estado.

    A formao do Estado Moderno foi um processo de centralizao do poder poltico que no foi realizado sem aquilo que Michel Foucault (2002) chamou de uma nova economia das armas, ou seja, uma nova distribuio do poder militar que passou das mos dos senhores feudais para as do monarca, no que Weber chamou de monoplio legtimo da coero fsica. Dominar as foras militares, portanto, foi fundamental para constituir essa forma de poder poltico conhecida como Estado Moderno. No entanto, a guerra no Estado Moderno

    essa que vimos descrita por Clausewitz e Aron no o nico meio pelo qual os homens guerrearam na histria das sociedades, tampouco a nica relao entre poltica e guerra que se tem registro.

    Procurando na histria a relao entre guerra e poltica seria possvel encontrar as mais diversas combinaes, como por exemplo os mongis, que dominavam outros territrios pelo uso da fora; os

    Voc lembra que

    estudamos sobre isso na

    Unidade 1? No? Ento,

    retorne e reavive sua

    memria.

    Saiba mais Mongis

    Povo nmade sem um Estado unificado que

    liderado por um rei-guerreiro, Gngis Khan, e

    seus descendentes saquearam e submeteram,

    no sculo XII, populaes e territrios que

    foram do leste da China fronteira oriental da

    Polnia. Fonte: Adaptado de Keegan (2002) e

    Bonanate (2001).

  • vUnidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito

    Mdulo 8 47

    ndios tupinambs brasileiros, que motivados por sua cultura dominavam somente aqueles os quais consideravam fortes; tambm os gregos clssicos, que travavam guerras nas quais apenas os cidados (homens nascidos na Cidade-Estado e proprietrios) podiam lutar. Podemos lembrar ainda dos romanos, que inspiraram os exrcitos modernos, e tambm dos astecas, que sculos depois dos romanos, faziam guerras de conquista, construindo atravs delas um vasto imprio. Em suma, seria possvel identificar incontveis modos e objetivos pelos quais os homens tm guerreado na histria (KEEGAN, 2002; BONANATE, 2001).

    Pierre-Joseph Proudhon, no seu livro A guerra e a paz, publicado em 1861, afirmou que a guerra a mais antiga legisladora: que pela vitria na guerra que historicamente o direito e as instituies polticas foram construdos. Os vencedores na guerra teriam fundado ou destrudo Estados, definindo as leis segundo sua vontade e seus valores. Segundo Proudhon (1998), somente a partir dos autores contratualistas que se teria tentado apagar essa origem violenta do Estado e do direito, substituindo-a por outra verso mais benvola, que atribui a criao do Estado vontade de todos e cada um. Assim, na perspectiva de Proudhon, o soberano estabeleceria seu governo pela guerra e manteria sua soberania pela capacidade de ativar a guerra internamente (contra todos que ousassem desobedec-lo) e externamente (contra os Estados que tentassem domin-lo). A paz civil, desse modo, seria a paz do vencedor gerada pela guerra e mantida pela guerra. Por isso, [...] o Pacificador um conquistador cujo reino se estabelece pelo triunfo [na guerra] (PROUDHON, 1998, p. 74).

    A tradio na qual podemos encontrar Proudhon oposta dos contratualistas, de Clausewitz e de Aron. Ela, ao contrrio, remonta aos filsofos gregos como Herclito de feso, que escreveu: [...] de todos a guerra pai, de todos rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros, livres (HERCLITO, 2002, p. 200). Essa perspectiva no compreende a guerra apenas como o momento em que dois grupos armados representando unidades polticas diferentes entram em choque. A guerra, ao contrrio, seria um princpio organizador das

    Saiba mais ndios Tupinambs

    Assim como os mongis esses ndios formavam uma

    sociedade sem Estado. Eles guerreavam no para

    conquistar territrios ou para sujeitar outros povos,

    mas, dentre outros objetivos, para capturar bravos

    guerreiros para seus rituais antropofgicos. Fonte:

    Adaptado de Keegan (2002) e Bonanate (2001).

    As armas usadas nas

    guerras pertenciam, eram

    propriedade pessoal,

    de cada cidado, isso

    porque no havia exrcitos

    permanentes.

  • 48 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    sociedades: no haveria vida sem conflito e no haveria ordem poltica sem guerra e sem resistncia a ela.

    Michel Foucault (1995) tambm estaria nesse campo quando afirma que as relaes de poder poderiam ser analisadas em termos de combate e que, por isso, a poltica poderia ser compreendida como uma forma de guerra, ainda que diferente daquela dos exrcitos nas frentes de batalha. Foucault (2002, p. 22), ento, inverteu a famosa passagem de Clausewitz que estudamos anteriormente (a guerra a poltica continuada por outros meios), dizendo: [...] a poltica a guerra continuada por outros meios. Ou seja, a paz civil, as lutas polticas, os enfrentamentos a propsito do poder, com o poder, pelo poder, as modificaes de fora [...] tudo isso, num sistema poltico, deveria ser interpretado apenas como a continuao da guerra [...] (FOUCAULT, 2002, p. 23). Para Foucault (2002), a vida poltica seria, ento, formada pela guerra e mantida por disputas constantes como uma guerra silenciosa.

    Esse debate sobre a relao entre guerra e poltica

    importante, mas para avanar precisaramos de mais espao e

    tempo. Por ora, essa breve exposio pretende apenas provocar

    sua reflexo e alert-lo para o fato de que no h apenas uma

    perspectiva de anlise das relaes de poder, da guerra e

    da poltica. No entanto, a verso hegemnica no campo das

    Relaes Internacionais a proveniente da filosofia poltica e

    do contratualismo. Depois de estudar como a filosofia poltica

    produz conceitos, como o de contrato social, e associa poltica

    paz, fica mais claro a voc por que os filsofos contratualistas

    defendem e justificam a existncia do Estado?

    O Estado Moderno pretendeu domar a guerra como um recurso a seu dispor para poder governar sobre uma populao e um territrio, para defender-se de eventuais ataques de outros Estados e para, sempre que possvel, expandir atacando outros Estados. Assim,

  • vUnidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito

    Mdulo 8 49

    pela leitura de Carl von Clausewitz e de Raymond Aron podemos encontrar uma sntese da viso clssica da guerra, que ressalta a importncia de seu controle e monoplio pelo Estado para que ele garanta sua segurana. Por outro lado, a indicao de uma perspectiva diferente sobre guerra e poltica, a partir das leituras de Pierre-Joseph Proudhon e Michel Foucault, poder ser interessante para estudar a guerra contempornea que vai alm dos Estados e organizaes no estatais, como narcotraficantes e terroristas.

    Como ficaria a anlise da guerra para alm da guerra apenas

    entre Estados? Da guerra que escapa ao controle exclusivo do

    Estado? Pense a respeito disso, pois voltaremos a esse ponto

    na Unidade 4. Antes disso, h alguns aspectos do outro

    elemento do dispositivo diplomtico-militar, a diplomacia,

    que precisamos estudar.

    As Diplomacias

    A palavra diplomacia deriva de diplum que, em grego, significa diploma [ou] documento dobrado em dois (SOARES, 2004, p.13). Esses documentos registravam acordos importantes entre Cidades-Estado na Grcia Antiga. Durante toda a Antiguidade e Idade Mdia os diplomas e seus portadores, os diplomatas, foram personagens importantes que prncipes, imperadores e chefes militares enviavam com mensagens a outras autoridades estrangeiras. Cada misso de um diplomata chamava-se embaixada, que, geralmente, durava apenas o tempo necessrio para tratar do tema que havia motivado o envio do negociador. Encerrada a negociao, o diplomata voltava com a resposta, que poderia ser favorvel ou no. Entre os gregos havia o costume de respeitar a integridade fsica do diplomata para garantir que as mensagens entre os governantes pudessem circular tanto em tempos de paz quanto de guerra.

    Essa prtica continua at

    hoje, sendo ampliada

    para o respeito aos seus

    documentos, s malas

    diplomticas e ao sigilo

    das comunicaes entre

    diplomatas.

  • v50 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    Essas embaixadas foram temporrias at que no final da Idade Mdia as cidades do norte da Itlia comearam a instalar representaes permanentes em outras cidades: misses diplomticas estveis e no voltadas apenas a negociaes pontuais. Segundo Srgio Bath (1989), a primeira embaixada permanente foi fundada por Milo em Gnova, no ano de 1455. A data do estabelecimento dessa embaixada significativa, pois corresponde poca na qual despontavam os primeiros Estados Modernos. Como estudamos no incio dessa Unidade, os Estados

    Modernos passaram a ter necessidade de informaes e canais abertos de negociao para garantir sua prpria segurana e a defesa de seus interesses externos. Assim, uma rede de embaixadas comeou a ser montada, interligando politicamente os Estados do emergente sistema internacional.

    A primeira forma das relaes diplomticas modernas foi chamada de diplomacia bilateral, a qual consistia na manuteno de contatos permanentes entre dois Estados pela instalao recproca de misses diplomticas e reparties consulares. Deste modo:

    ff As misses diplomticas, o que hoje conhecemos por embaixadas, eram representaes polticas de alto nvel. O embaixador fixava-se como o representante direto do chefe de Estado de um pas em outro, nomeado diretamente por esse chefe de Estado para tratar das mais importantes questes e negociaes polticas.

    ff As representaes consulares tinham outros objetivos. So escritrios sem o mesmo status diplomtico das embaixadas, que se dedicam a atender cidados do seu pas, emitir passaportes, fazer registros civis, divulgar a imagem do pas e promover o comrcio e a iniciativa

    Cada Estado pode contar

    com uma embaixada em

    outro Estado, geralmente

    situada na capital do pas

    anfitrio. O terreno e os

    edifcios das embaixadas

    so considerados territrios

    do pas que ela representa;

    assim, um ataque ou

    invaso a uma embaixada

    equivale a uma agresso

    direta ao Estado por ela

    representado.

    Saiba mais Chefe de Estado

    Em um sistema presidencialista o chefe de Estado o titular do

    Poder Executivo, o responsvel pelo governo de um Estado e pela

    representao simblica e internacional do pas. Em sistemas

    parlamentaristas, h a diviso destas funes entre Chefe de

    Estado e Chefe de Governo. Nesse caso, o Chefe de Governo

    (o primeiro-ministro) responsvel pela administrao do pas

    e o Chefe de Estado (presidente ou monarca) responde pela

    imagem e representao simblica e oficial do Estado. Brasil

    e Estados Unidos so exemplos de sistemas presidencialistas;

    o Reino Unido (com uma monarca) e a Alemanha (com um

    presidente) so parlamentaristas; enquanto a Frana tem um

    sistema presidencialista diferenciado, que conta com primeiro-

    ministro. Fonte: Elaborado pelo autor deste livro.

  • vUnidade 2 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o conflito

    Mdulo 8 51

    de empresrios de seu Estado. Dependendo da importncia de um pas para outro, possvel manter consulados em mais de uma cidade, coordenados por um Consulado Geral. Os cnsules e funcionrios consulares podem ser ou no diplomatas de carreira, assim como os funcionrios de apoio nas embaixadas.

    As misses diplomticas e consulares de um pas em outro constituem o aspecto mais tradicional da rede de informaes e de negociao poltica estabelecida no comeo da Era Moderna. A diplomacia bilateral, no entanto, no se restringe s relaes Estado-Estado. A partir da segunda metade do sculo XIX, e principalmente, desde o comeo do sculo XX, Estados comearam a formar organizaes internacionais dedicadas a temas de interesse comum. Essas organizaes, to variadas em objetivos e alcance como a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), a Organizao das Naes Unidas (ONU), a Organizao Mundial do Comrcio (OMC) ou o Fundo Monetrio Internacional (FMI) tm em comum o fato de se constiturem como um novo espao para a diplomacia com implicaes polticas importantes para as relaes internacionais contemporneas. Por ora, suficiente indicar que nas organizaes internacionais pratica-se a diplomacia multilateral, ou seja, aquela que implica em negociaes nos fruns permanentes de debate formados em tais organizaes (BIANCHERI, 2005).

    Aps a Segunda Guerra Mundial, com o avano dos meios de transporte, os prprios chefes de Estado passaram a viajar mais, selando diretamente acordos polticos e mostrando-se como a imagem internacional de seu pas. Essa prtica ficou conhecida como diplomacia presidencial e tem sido utilizada com frequncia pelos Estados incluindo o Brasil, principalmente a partir de Fernando

    Saiba mais Diplomata de carreira

    So os funcionrios pblicos formados por

    uma academia diplomtica. No Brasil, a escola

    preparatria o Instituto Rio Branco, em Braslia.

    Em nosso pas, o candidato aprovado no concurso

    de ingresso cursa dois anos de um programa de

    formao do qual sai com o cargo de terceiro

    secretrio. Apresentando-se para concursos

    internos, o diplomata pode subir na hierarquia: 2

    secretrio, 1 secretrio, conselheiro, ministro de

    2 classe, ministro de 1 classe. No Brasil, a funo

    de embaixador um cargo poltico, indicada pelo

    presidente, no sendo necessariamente exercida por

    diplomata de carreira. Fonte: Elaborado pelo autor

    deste livro.

    Como veremos mais

    detalhadamente na

    Unidade 3.

  • 52 Bacharelado em Administrao Pblica

    Relaes Internacionais

    Henrique Cardoso e Luis Incio Lula da Silva nas cada vez mais comuns cpulas de chefes de Estado (como a Cpula das Amricas, Cpula Ibero-Americana, Cpula Amrica do Sul/Pases rabes etc.).

    A diplomacia bilateral entre Estados e os primeiros encontros multilaterais como o que celebrou os Tratados de Westflia, em 1648 so recursos complementares aos militares na formao desse sistema de segurana que os Estados Modernos construram para si. Como estudaremos