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Com uma saudação a Júlia Studart e a Raul Antelo NÃO DEVERÍAMOS LER SENÃO A PARTIR DO POEMA E SABEMOS QUE só o poema nos ensina a lê-lo. Mas nem sempre é possível ou, para ser mais justo, nem sempre assim acontece. Acontece descobrirmos a leitura para o poema fora dele, noutras para- gens, com as quais descobrimos que o poema tem afinidades que não suspeitávamos. Também é assim, reconheça-se, que descobrimos como o alcance do poema está sempre por deter- minar e, pelo menos nessa medida, os limites do poema reve- lam-se à leitura como aquilo que nenhuma leitura consegue traçar. Não saberemos, portanto, nunca até que ponto as para- gens remotas por onde tivemos de passar não são ainda ou não terão sido sempre as mais próximas, mesmo as mais internas ao poema. Questão de espaço, de fronteiras, que nunca foi questão estranha a toda a poética de Camilo Pessanha, incluindo a poéti- ca da sua prosa e aquela em que se defronta com a China, em par- ticular. Mas de maneira mais imediata poderíamos dizer que essa é a questão do “país”, questão inicial para a poesia de Pessanha tal como ela se nos ofereceu em livro, deliberadamente através de uma “Inscrição” que abre o espaço do livro e cujo primeiro verso 13 Nº29/30 OUTUBRO DE 2011/ABRIL DE 2012 Sumir-se: a política do verme GUSTAVO RUBIM Relampago29-30.qxd 09-07-2012 0:52 Page 13

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Poesia Portuguesa

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  • Com uma saudao a Jlia Studarte a Raul Antelo

    NO DEVERAMOS LER SENO A PARTIR DO POEMA E SABEMOS QUEs o poema nos ensina a l-lo. Mas nem sempre possvel ou,para ser mais justo, nem sempre assim acontece. Acontecedescobrirmos a leitura para o poema fora dele, noutras para-gens, com as quais descobrimos que o poema tem afinidadesque no suspeitvamos. Tambm assim, reconhea-se, quedescobrimos como o alcance do poema est sempre por deter-minar e, pelo menos nessa medida, os limites do poema reve-lam-se leitura como aquilo que nenhuma leitura conseguetraar. No saberemos, portanto, nunca at que ponto as para-gens remotas por onde tivemos de passar no so ainda ou notero sido sempre as mais prximas, mesmo as mais internas aopoema.

    Questo de espao, de fronteiras, que nunca foi questoestranha a toda a potica de Camilo Pessanha, incluindo a poti-ca da sua prosa e aquela em que se defronta com a China, em par-ticular. Mas de maneira mais imediata poderamos dizer que essa a questo do pas, questo inicial para a poesia de Pessanhatal como ela se nos ofereceu em livro, deliberadamente atravs deuma Inscrio que abre o espao do livro e cujo primeiro verso

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    Sumir-se: a poltica do verme

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  • situa o acontecimento originrio num pas perdido. O pontoque me interessa , no entanto, o da relao entre esse pas per-dido e o fim da Inscrio de entrada, o ltimo verso dessaquadra bem conhecida mas bem pouco popular:

    Eu vi a luz em um pas perdido.A minha alma lnguida e inerme.Oh! quem pudesse deslizar sem rudo,No cho sumir-se, como faz um verme...

    O que me interessa a operao, o fazer do verme. E ahiptese a de que esta operao tanto uma potica quantouma poltica, mas no a vou buscar s ao jogo de rima rica entreo verme e a alma inerme do segundo verso. Na verdade, fuibusc-la, muito indiretamente, a Peter Sloterdijk. O filsofo daCrtica da Razo Cnica ensinou, noutro livro, que a moderni-dade se define por aquilo a que ele chama uma cintica polti-ca e que essa cintica tem a sua figura privilegiada na ideia demobilizao. Ouamo-lo: O projeto da Modernidade funda-se[] que ainda nunca foi claramente enunciado numa utopiacintica: todo o movimento do mundo deve passar a ser reali-zao do plano que ns temos dele.1 Um pouco antes, anteci-pando na mesma pgina a formulao desta sntese ou cami-nhando em busca dela, Sloterdijk adiantava em tom maishistrico: A Modernidade, enquanto complexo tecnopoltico,desequilibrou por completo a antiga ecologia da potncia eimpotncia humanas. [] a vontade de poder da capacidadeprpria que, nos tempos modernos, faz andar o curso domundo. J quando passamos para a pgina seguinte, o signifi-cado daquela sujeio do movimento do mundo aos planos quea humanidade faz para o que ele venha a ser chega, enfim, ssuas consequncias mais vastas, que no sero indiferentes ponte que estabeleo com a breve inscrio de Pessanha: Seriademasiado pouco dizermos que a Modernidade prometeu serela prpria, doravante, a fazer a histria humana. No seu ncleoardente, ela no quer apenas fazer histria, mas tambmNatureza.

    O negativismo, para usar uma palavra branda e imprecisa,que certa crtica se habituou a decifrar na lrica (s vezes quali-ficada como desistente) de Pessanha era afinal uma leituramenos superficial do que parecia. Em primeira instncia, pelo

    1. Peter Sloterdijk, A Mobilizao Infinita:para uma crtica dacintica poltica, trad. Paulo Osrio de Castro, Lisboa,Relgio dgua, 2002(ttulo original:Eurotaoismus, 1989),p. 24.

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  • menos, a potica da Inscrio anuncia um desejo de no fazerhistria que se formula como sonho, no por certo de fazerNatureza, mas de fazer como certa parte da Natureza, umaparte de tal maneira pouco notria que o seu fazer emblemti-co desaparecer, sumir, sumir-se. O nico plano, o nico mo-delo para uma ao verdadeiramente potica que Pessanhaencontra esse fazer do verme que tambm implica uma certaforma de deslocao o deslizar sem rudo que, operandono cho e sob o cho, compe uma outra cintica, uma cinticado desaparecimento.

    Devem ser, imagino, muito tentadoras algumas analogiassimblicas que parecem mesmo bem preparadas para seencaixar aqui: catbase, Orfeu descendo aos mundos inferiores,regresso matriz, entrada no fundamento e no subsolo, etc. etc.Mas essa a artimanha do verso final: a analogia j l est, elano se faz seno com o verme, com o sumir-se do verme, everme no tem Eurdice, no canta, no toca lira nem flauta,ignora infernos (e cus), nada sabe de arqueologia, de cultos oumetafsicas da origem. A analogia do verme , (passe a banali-dade) literalmente e em todos os sentidos, uma analogia natu-ralista. Ora, o que faz uma analogia naturalista entrada deuma escrita potica moderna?

    A resposta mais adequada talvez seja que faz, justamente,tudo o que pode para que a obra no seja moderna, no pro-grida, no ponha em marcha, no mobilize. Todo o oposto, por-tanto, esta Inscrio, de um apelo revoluo, de umapalavra de ordem revolucionria e potencialmente utpica.Quem que quer, quem que est a projetar sumir-se no cho?Percebe-se assim bastante melhor at que ponto tem sidocanhestra a identificao de Pessanha com um supostoSimbolismo, que para todos os efeitos, quando ganha algumgrau de existncia (e nunca foi muito), um movimento da poe-sia moderna, ou seja, um programa para organizar e mobi-lizar a poesia em direo a certos fins que ela deveria cumprirou realizar. Um poema como esta Inscrio, com a sua almalnguida e inerme e desde incio distanciado de qualquer pasque no seja j e desde sempre um pas perdido, assaz con-sistente com a atitude distanciada que Pessanha, ele mesmo,sempre cultivou em relao a todos os movimentos, a todas asmobilizaes entusiasticamente vanguardistas de que foi con-temporneo e longnqua testemunha. Hoje, todas definitiva-

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  • mente extintas, as vanguardas mostram aquilo que sempreclaramente foram no seu desejo mais profundo: organizaes depoder devidamente armadas para o fim de travar combates comoutras vanguardas, com a tradio, com a Natureza, com asociedade ou com o que for em vista de conquistar territriospara a arte, para a poesia, para a literatura, para a crtica, etc.Inerme, a alma da Inscrio como a personificao dovanguardismo desativado, ela como que o emblema, no deuma poesia contra-revolucionria, mas da poesia enquantoindisponibilidade para a revoluo.

    Bem sabemos o que escreveu Octavio Paz, em registo desmula histrica, na ocasio em que recebeu das mos deFranois Mitterrand o prmio Alexis de Tocqueville, em 1989:A palavra potica foi simultaneamente profecia, antema e ele-gia das revolues modernas.2 Mas, apesar de Pessanha tersido grande leitor de Ruben Daro e admirador e tradutor dapoesia chinesa, Paz no parece ter lido Pessanha e nenhumadaquelas trs atitudes da palavra se ajusta relao no rela-cionada, oblqua em extremo, que a poltica do verme estabe-lece com a ideia e com o mito moderno da revoluo, o mitomobilizador por excelncia. A prpria enunciao do desejo desumir-se uma enunciao aptica do ponto de vista da revo-luo, quer dizer, a enunciao de uma impossibilidade assumi-da (Oh! quem pudesse...) que no deixa de afirmar-se comoo nico desejo prprio e altura de quem emblematicamente seinscreve, com um livro, no espao da poesia. H nessa apatiadistanciada uma ironia a que, no entanto, convm estar atento: que o desejo de sumir-se tem ao mesmo tempo o sortilgiode parecer-se bastante com o que de facto acontece quandoalgum se inscreve a ponto de se converter inteiro na inscrioque produz. A potica do verme, mesmo pelo sem rudo queacompanha o seu jeito de deslizar, decididamente uma poti-ca da escrita e deveramos lembrar que, preferindo Pessanhauma escrita etimolgica pelo menos para os fins da poesia, a suainscrio tende a ser uma Inscripo, uma entrada na criptaanloga entrada do verme para as galerias subterrneas queso ao mesmo tempo espao e marca da sua passagem.3

    Mas que fins so os da poesia? Esta a pergunta mais inquie-tante levantada pela potica do verme, sobretudo colocando-asob um ngulo poltico. Tal como Sloterdijk a concebe, a movi-mentao moderna inseparvel do sujeito como sujeito de

    2. Octavio Paz,Poesa, Mito,Revolucin, in Laotra voz. Poesa y finde siglo, Barcelona,Seix Barral, 1990, p. 62.

    3. Inscripo foi ottulo-cortina dopoema do verme naprimeira e nas trssubsequentes ediesda Clepsydra, con-forme regista PauloFranchetti na suaedio crtica do livro(Clepsydra, Lisboa,Relgio dgua,1995, p. 75), aprimeira a enfrentarfilologicamente asexigncias escrituraisde Pessanha. Nessesentido, bem se podedizer que o meuprprio ensaio deedio do livro(suplemento do n 155/156 da revistaColquio-Letras,Lisboa, Janeiro--Junho, 2000) ficouaqum do que seprops, ao no recu-perar a grafia eti-molgica para aquelettulo e para outrasocorrncias dapalavra inscripoem poemas dePessanha.

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  • aes cuja inteno progressiva e assim o progresso desen-cadeado por esse passo para o passo que comea por se iniciara si prprio para, depois, se ultrapassar a si prprio.4 Ficaento evidente que seja sumir-se, seja deslizar sem rudo sodeslocaes que no implicam passos. Muito menos passosdados em direo a um mais alm de si prprios ou a passosulteriores, a um movimento para uma capacidade de movi-mento incrementada.5 Os fins do verme, ao sumir-se no cho,somem com o prprio verme e parte do seu escndalo estamesma ocultao que os subtrai evidncia, vigilncia e avaliao. O verme no um ser de promessa, ele no prometenada a no ser aquilo que faz: sumir-se, enterrar-se. Trata-se,pois, considerado tanto do ponto de vista potico quanto doponto de vista poltico, de um ser com um alto sentido da fini-tude, que no teme a confuso da vida com a morte, que noreceia a vizinhana da morte nem essa ironia que ir alimentar--se, ganhar vida com o mesmo gesto que, enquanto signo, lheanuncia a extino: sumir-se (da face da terra, como se costumadizer). E, claro, alimentar-se tambm do que est morto e enter-rado, como se, com uma certa forma de magia que lhe prpria, provasse que nem mesmo a morte , propriamentefalando, um fim e menos ainda o fim.

    J se v, para falar Sloterdijk, que a converso do vermeem modelo introduz uma outra ecologia da potncia eimpotncia humanas, irredutvel s pretenses subjetivas damodernidade tanto quanto s antigas outorgas a mos divinasdas disposies finais sempre diversas das ambies humanas.Em certo sentido, pode at dizer-se que o verme introduz, face modernidade, uma ecologia onde ela no existia, no sentidoem que indecidvel se esta entrada no cho sinaliza poder ouimpoder, fora ou necessidade. Em qualquer caso, a inversoque coloca o poder dos vermes acima das possibilidades dosujeito (Oh! quem pudesse...) d toda a intensidade rimacom a alma inerme: indefesa, desprotegida, desprovida dearmas ou de muralhas se quisermos, ao jeito de Nancy, expos-ta a alma inscrita declara preferir o segredo exibio, sonhacom as vantagens da obscuridade terrestre como se desistisse dasoberania que permite fora humana usar ou esmagar vermes,explorar e pisar a terra. No admira que tantos crticos vissemnestas palavras um instinto suicida ou um sintoma de abulia.Esses juzos deixam impensados os pressupostos sobre que

    4. Peter Sloterdijk,op. cit., p. 32.

    5. Ibid., p. 33.

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  • repousam e, em particular, o principal: o primado da vontade,a crena acrtica nas misses originadas pela vontade, que sempre vontade humana, exclusivamente humana. Mas no s.

    Poderemos ler tambm politicamente a languidez em queesta alma se expe? Diria que ela o ponto em que o potico eo poltico propriamente se cruzam. Porque nela a polticapotica que est em jogo, a poltica da poiese, digamos assim,em especial essa forma moderna de poltica potica que foi ainveno romntica do gnio como absoluto criador.Deveramos report-la de imediato ao primeiro verso: o euinscrito o que v a luz ou, doutra maneira, o que vem aomundo, e no, como o gnio, aquele que origem de mundo,do seu mundo, se no mesmo do mundo. Ora, da origem noresta seno um pas perdido e a luz notoriamente o queir no cho sumir-se, se o desejo potico vier a cumprir-seenquanto paradoxal desejo de inscrio que o eu no capita-liza para sua perene visibilidade, mas antes endossa a favor doseu desaparecimento. A languidez o nome da genialidadesabotada, no a favor da estupidez ou da mediocridade, mas deuma poiese no contida nos limites do sujeito, no privada, noseparada, no fortificada. Em suma: partilhada.

    Sob o seu regime inscripto, o poeta encontra, portanto, noverme um aliado e ao mesmo tempo a fora inspiradora que selaa aliana: o exemplo do extraordinrio desaparecimento natu-ral. Numa palavra, o verme traz consigo e exerce uma arte deviver marcada por um saber especfico: o saber retirar-se. Isso jest presente no modo de locomoo deslizar sem rudo mas torna-se conspcuo sobretudo no poder de se deslocarpraticamente na ausncia de luz, avanando no escuro docho por onde abre caminhos que no sabe nem v em questio iro desembocar. No deveremos, por isso, falar numdevir-verme, no s para evitar comodidades (pouco)deleuzianas, mas porque, em rigor, se o verme nada tem que vercom supostas misses da poesia (e muito menos com qualquermisso revolucionria da poesia como a que Antero deQuental formulou em anexo s suas Odes Modernas) talvez sejaprefervel dizer que ele no compe sequer um devir, ou pelomenos sinaliza bastante bem a resistncia ao que Sloterdijk de-signa por uma ontologia do ente em devir6 que no funcionasem a teleologia de uma luz situada no futuro para impelir (ouatrair), no meramente novos movimentos, mas mobilizaes

    6. A MobilizaoInfinita, ed. cit., p. 242. No creio quese deva tomardemasiado letra, naspginas finais do livrode Sloterdijk, a for-mulao, em alterna-tiva, de uma ontolo-gia do ainda-ser.Ou, pelo menos, apalavra ontologia(que eu no aplicariade todo poltica doverme e escrita dePessanha) d muitossinais de ser aliempregada comometfora conceptual,por uma espcie deinrcia da disciplinafilosfica, mas semexpetativa de elaborarde facto, com base nomotivo do aindaser, uma ontologia.

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  • macias para a frente7 em que toda a existncia se v incessan-temente acelerada at se volatilizar.

    Para o verme, naquele escuro e numa certa cegueira (masrelativa, claro) que est a sua chance de sobreviver, o seumanancial de alimento, o seu lugar de abrigo, o seu potencial deencontros, de risco e de prazer, e, sem dvida, a garantia depoder exercer o direito imobilidade. Estando um pouco portodo o lado (pois, digamo-lo empiricamente, h vermes ter-renos e aquticos), o verme como que dispensa outros hori-zontes: , por assim dizer, o bicho que diz sim terra, tal comoela existe, sendo que a terra decerto no existe imvel nemimutvel nem intransitvel. Essa cegueira e esse desaparecimen-to, segundo Pessanha, , deveria ou tem de ser agora o exemplopara a poesia, o seu modo de andar. No presente como faz overme. Mas numa espcie de presente sem tempo certo, poisinscripo uma palavra muito antiga e reenvia para velhas for-mas de poesia: inscries funerrias gregas, egpcias ouromanas, epigramas, epitfios, cenotfios. Se o sim terra era jobviamente imprestvel do ponto de vista da utopia (e podiaescrever-se a histria da modernidade no apenas como histriadas suas utopias mas sobretudo pela leitura, uma a uma, dasutopias que produziu), agora este anacronismo do vermedevolve superfcie do presente uma srie de tempos sobrepos-tos, uma experincia estratificada do tempo em inscriesescritas sobre outras inscries. Sem dvida por isso que oeu inscrito no conhece nao essa rede que entrana ter-ritrio, nascimento e lngua numa histria de identidade origi-nria fora do seu sem nome pas perdido.

    Conduzido pelo verme e pelo sim terra, o poeta est poisagora como que sem paradeiro. Afastado do sculo dos nasci-mentos, a sua poltica distancia-se de naes (do natus) e degnios (do gignere e do genius) e, se no se enraza nem germi-na, tambm no se utopiza, no troca a terra como ela pelocarter acsmico das aliciantes imagens utpicas, nada apostaem aventuras ou promessas de aventura assentes na despro-poro entre o infinito e o finito, entre o utpico e o tpico.8O que importa agora aprender a sumir-se, rasteira e discretaarte desprovida de lngua prpria. Desprovida de exemplohumano, ela requer que se passe da antropologia helmintolo-gia, das ambies hericas s operaes elementares. Essasoperaes tm um trao que as distingue: nelas a fronteira entre

    7. Ibid., p. 246.

    8. Ibid., p. 245 e 244,pela ordem das pas-sagens citadas.

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  • viver e extinguir-se quase nula, a oposio entre moribundo enascituro deixa de funcionar, uma coisa pode muito bem ter oaspeto da outra, todas as diferenas so nfimas e o sentido joga-se em variaes ou transies impercetveis, entre o secreto e oexposto. Da que para a potica da inscripo o sentido (mesmoenquanto sentido do mundo) s surja na configurao do vest-gio; neste caso, entre pas perdido e sumir-se no cho, umpoema traa o seu espao algures no intervalo de dois desa-parecimentos.

    No ser pouco e pouco claro para anunciar uma poltica?Depende do que se entende por poltica, est visto. Mas se

    uma poltica no puser em jogo a prpria noo de poder, queinteresse, que alcance lhe resta capaz de nos interessar? A mobi-lizao moderna assenta inteira na ideia de que poder poderrealizar projetos, construir e expandir a marca cada vez maisvisvel das realizaes projetadas, mas essa ideia, alm de assom-brada pelo espectro de inmeros falhanos, nunca cessa de seconfrontar com a prolongadssima sobrevivncia de seres quenada projetam, que mal se vem, que vivem retirando-se. Essasubtrao que persiste, mesmo debaixo dos nossos ps ou aolado deles, o que significa e o que implica para essa vontade depoder assente no poder da vontade, que, afinal pretensiosa-mente, se elogia a si mesma como moderna, criadora defuturo, sem dvida custa de denegar o que nela envelhece eapodrece a olhos vistos h sculos?

    O que quer que signifique, isso que se anuncia na figura doverme no est ainda ao nosso alcance, ao alcance da interpre-tao, por mais sofisticada que possa ser a tcnica hermenuti-ca empregada. No sabemos sequer se interpretar a operaoadequada para aquilo que tem como principal poder o desumir-se no cho. Isso, essa operao que no se faz sequerver como operao ou resultado de operao (como obra, por-tanto) com certeza, h-de surpreender, h-de vir a encontrarsentidos de que mal se pode suspeitar. Nessa reserva de senti-dos, que se mantm no segredo e sobrevive no segredo,inacessvel prescrutao mais ativa e inconfundvel com o quepossamos programar, no haver nisso uma fora poltica?

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