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Relatório de atividades do grupo de trabalho sobre a repressão no campo no estado de são paulo, 1946-1988. Ivan Akselrud de Seixas, Clifford Andrew Welch, Danilo Valentin Pereira, Gabriel da Silva Teixeira, Leonilde Servolo de Medeiros, Luciana Carvalho e Souza, Maria Aparecida dos Santos, Osvaldo Aly Júnior, Pietra Cepero Rua, Rafael Aroni, Yamila Goldfarb. Sumário Contextualização geo-histórica das violações no campo no período 1946-1988 Região Administrativa de Araçatuba Região Administrativa de Bauru Região Administrativa de Campinas Região Administrativa de Marília Região Administrativa de Presidente Prudente Região Administrativa de Registro Região Administrativa de Ribeirão Preto Região Administrativa de São José dos Campos Região Administrativa de São José do Rio Preto Região Administrativa de Sorocaba -- Contextualização geohistórica das violações no campo no período 1946- 1988 Sede de importantes organizações da classe dominante do campo, tais como a Sociedade Rural Brasileira, o Estado de São Paulo foi também palco da resistência camponesa, aumentando e diversificando as tensões no campo até os dias atuais. O alto nível de conflitos provocou pesquisadores a investigar várias violações de direitos humanos, criando uma base tão rica em casos emblemáticos que, no contexto do movimento em volta da sua Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988. www.verdadeaberta.org

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Relatório de atividades do grupo de trabalho sobre a repressão no

campo no estado de são paulo, 1946-1988.

Ivan Akselrud de Seixas, Clifford Andrew Welch, Danilo Valentin Pereira,

Gabriel da Silva Teixeira, Leonilde Servolo de Medeiros, Luciana Carvalho e

Souza, Maria Aparecida dos Santos, Osvaldo Aly Júnior, Pietra Cepero Rua,

Rafael Aroni, Yamila Goldfarb.

Sumário

Contextualização geo-histórica das violações no campo no período

1946-1988

Região Administrativa de Araçatuba

Região Administrativa de Bauru

Região Administrativa de Campinas

Região Administrativa de Marília

Região Administrativa de Presidente Prudente

Região Administrativa de Registro

Região Administrativa de Ribeirão Preto

Região Administrativa de São José dos Campos

Região Administrativa de São José do Rio Preto

Região Administrativa de Sorocaba

--

Contextualização geohistórica das violações no campo no período 1946-

1988

Sede de importantes organizações da classe dominante do campo,

tais como a Sociedade Rural Brasileira, o Estado de São Paulo foi também

palco da resistência camponesa, aumentando e diversificando as tensões no

campo até os dias atuais. O alto nível de conflitos provocou pesquisadores a

investigar várias violações de direitos humanos, criando uma base tão rica

em casos emblemáticos que, no contexto do movimento em volta da sua

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documentação para as comissões da verdade, a Comissão da Verdade

“Rubens Paiva” da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo formou

um Grupo de Trabalho para produzir uma radiografia. Utilizando as

ferramentas também da geografia, parte de seu relatório foi apresentado

numa audiência pública em 16 de dezembro de 2013.

A pesquisa contribuiu para mostrar certos padrões de violações e

ajudou na elaboração de interpretações geográficas e históricas sobre o

campesinato no contexto do golpe. Ajudou gerar dados para contextualizar a

ditadura a opção do grupo em levantar dados para um período maior do que

o definido pela comissão da verdade estadual. Ao longo do período, foram

apurados 465 eventos de violações, envolvendo mais de 300 mil

camponeses. Embora as violações tenham ocorrido em todo território do

estado, a grande maioria foi concentrada em três microrregiões (ver Prancha

1). Estas são o litoral (com destaque para o vale do Rio Ribeira e o caminho

da estrada Rio-Santos), o nordeste (com destaque para a Alta Mogiana, com

sede em Ribeirão Preto) e a fronteira ao extremo oeste do estado (com

destaque para o Pontal do Paranapanema).

Além de indicar as regiões das violações, os mapas foram organizados

segundo as tipologias de violações. Ao critério de “grave” faltou abrangência

suficiente para permitir a inclusão da variedade de violações encontradas em

nossa pesquisa. Na pratica da CNV, “grave” veio a significar assassinato ou

desaparecimento, mas no campo milhares de trabalhadores também

sofreram violações sérias de seus direitos humanos na forma de trabalho

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escravo, superexploração (que também provocaria a morte), repressão de

seus direitos políticos e de associação livre, bem como uma tendência brutal

a interferir em sua vida privada, especialmente em seu direito à habitação e

ao emprego, com a destruição de suas casas, lavouras e animais.

Resolvemos levantar o sentido dos direitos humanos especificado na

declaração universal, para desenvolver tipologias mais relevantes para

analisar a experiência do campesinato paulista no período. A subdivisão de

quatro tipos de violações ficou assim:

1) Violência contra a pessoa (ex. assassinato/ameaça de

morte/ferimento/intimidação/tortura/desaparecimento);

2) Violação do direito à liberdade (ex. cassação/suspensão de

direitos políticos/trabalho escravo/deslocamento forçado ou

perigoso/migração enganosa/prisão);

3) Violação dos direitos trabalhistas (ex. associação livre para

formar ou integrar em sindicato impedida / superexploração

sistemática - dívidas injustas - não pagamento - transporte

precário ou perigoso);

4) Violação do direito a não interferência na vida privada, da sua

família e no seu lar (Artigo XII - direito a habitação); a ser

privado de seu bem estar (Art. XIII - liberdade de movimento /

Art. XXIII - direito ao emprego - direito a salário justo) e de sua

propriedade (Art. XXV - ex. despejo/expulsão das

terras/destruição das lavouras, pertences/incêndios). (Ênfase

nossa; artigos indicados são da declaração universal da ONU).

Nessa lista, o primeiro tipo foi reservado para os casos de graves

violações, no sentido definido pelas comissões: assassinato, tortura,

ferimentos corporais, desaparecimento resolvido ou não, ameaças sérias,

tudo que for violência contra pessoas, violências geralmente praticadas pelo

Estado ou classes dominantes para intimidar e reprimir ou eliminar indivíduos

ou grupos, tais como militantes, sindicalistas e movimentos camponeses.

Dada a natureza criminal deste tipo, a preocupação dos responsáveis foi

garantir que tais atividades ficassem escondidas, o grupo desconfiou da sua

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capacidade e êxito em completar a tarefa, principalmente no período da

ditadura. Consideramos o segundo tipo “grave,” também, por ter como

objetivo a exploração descontrolada do campesinato, ou pelo trabalho

forçado ou pela repressão de sua capacidade se defender livremente.

A integração do tipo 3 permitiu a expressão de uma situação

importante para entender a História Social do Campo. Na Prancha 1, no

mapa abaixo, os casos do tipo 3 estão representados em separado dos

outros tipos de violações, em parte por motivos visuais. Quer dizer, o número

de camponeses que sofreram violações de seus direitos trabalhistas é tão

maior que os outros tipos que sua inclusão necessariamente demandaria que

fossem diminuídos os tamanhos das bolinhas de representação dos outros

tipos, até o ponto de causar o desaparecimento dos casos menos numerosos

mas não menos importantes, como as mortes do tipo 1.

O cálculo do tipo 3 foi especialmente importante para entender melhor

a História Social do Campo no contexto da ditadura, porque um dos temas

mais peculiares dos conflitos no campo era a situação legal dos camponeses,

seus direitos trabalhistas e/ou a proteção da posse da terra. Em São Paulo, o

golpe tinha o apoio da classe dominante, especialmente da elite rural.

Intransigentes, eles se posicionavam contra os avanços dos camponeses

frente aos conjuntos de leis do início dos anos 1960, como o Estatuto do

Trabalhador Rural (ETR), SUPRA, CONTAG, a Revisão Agrária e a proposta

de emenda constitucional para facilitar a comprar e redistribuição de terras

sem função social.

O quarto tipo definido, representado pela cor verde na Prancha 1, foi

importante ser incluído no levantamento. Foram contemplados neste tipo as

intervenções mais íntimas e perversas da História Social do Campo, que são

as invasões nos lares e posses dos camponeses, derrubando suas casas,

aterrorizando suas crianças, destruindo seus poucos pertences, quebrando

seus instrumentos de trabalho, matando seus animais, queimando suas

estruturas simples e ainda liquidando suas plantações. Se os “graves” casos

estivessem limitados aos assassinatos, estaria perdida para a história uma

categoria de violações que julgamos graves, não apenas pelas experiências

brutais sofridas pelos camponeses, mas pela quantidade e amplitude da

distribuição deste grupo de violações.

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Nesse sentido, observa-se fundamentalmente uma luta feroz pela

concentração da terra na região do estado de São Paulo durante todo o

período. Em cada episódio de conflito, um fazendeiro ou empresário

empregou seus jagunços para “limpar” terras geralmente devolutas, e assim

griladas, expulsando os trabalhadores e trabalhadoras que já haviam feito

todo o esforço para derrubar a mata e preparar o solo. No mínimo, essas

ações deveriam ser consideradas um tipo de roubo. Mas, se a terra fosse

interpretada como fonte principal da vida do campesinato, a expulsão dela

deveria ser considerada equivalente a um massacre, uma vez que prejudicou

o sustento não só de um indivíduo, mas geralmente de uma família inteira e

até mesmo uma comunidade de famílias. Em nossa avaliação, violações do

tipo 4 são até as mais importantes a serem resgatadas que os do tipo 1.

A relação entre o número de vítimas dos quatro tipos de violações e o

tempo é representada no gráfico de barras (ver Figura 1). Dividimos os 42

anos do período 1946 a 1988 em 14 blocos menores, de três anos cada, para

tentar expressar o fluxo da relação. Utilizando as mesmas cores para cada

tipo, a expressão dos dados em forma de barras consegue ser mais enfática

com a predominância da cor amarela da importância das questões

trabalhistas no campo no período.

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O gráfico superior da Figura 1 mostra um crescimento dramático no

número de violações no contexto da ditadura, especialmente nos anos da

abertura, um resultado esperado da pesquisa, considerando os efeitos

globais do movimento do “novo sindicalismo” da época. Associado à

mobilização, encontramos um aumento também nas mais violentas violações,

representado pela cor vermelha. Os altos e baixos índices mostrados pela cor

verde expressam as violações dos direitos humanos a privacidade, emprego

e moradia. Fatores que foram consequências dos mega projetos

orquestrados da ditadura. Entre eles estão a construção de barragens para a

geração de energia nas novas usinas hidroelétricas e o Programa Nacional

do Álcool (Pró-Álcool). O decreto que estabeleceu o Pró-Alcool é de 1975, e

nos anos anteriores os fazendeiros e usineiros de São Paulo estavam já

engajados no planejamento da política e construção de Complexos Agro-

Industriais (CAIs), protagonizando assim uma onda de concentração de

terras para garantir a produção adequada de cana-de-açúcar para suas

destilarias de etanol. “Concentração” é praticamente um eufemismo para a

expulsão brutal dos camponeses de suas posses. O gráfico inferior da figura

ajuda a visualizar a relação entre o número de vítimas dos quatro tipos de

violações em cada bloco de três anos durante o período maior.

Tudo indica que a realização de novas pesquisas tenderia a aumentar

essas estatísticas, especialmente no período da ditadura. Por um lado, de

1946 até o golpe, a imprensa alternativa de esquerda foi bastante animada e

deu destaque à questão agrária e aos movimentos sociais do campo. O PCB,

que foi quase hegemônico sobre os movimentos trabalhistas na cidade e no

campo, publicou durante a maioria deste período um jornal – Terra Livre –

dedicado à questão agrária e à organização dos trabalhadores rurais. Outros

jornais comunistas, como Novos Rumos e Noticias de Hoje, deram atenção à

violência dos latifundiários. Este período democrático também viu uma

atenção maior às questões sociais nas publicações da classe dominante,

como nas da Sociedade Rural Brasileira. A Igreja Católica e os líderes do

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), institucionalizado por Getúlio Vargas,

também deram destaque à situação rural em jornais como Diário de Noticias

(Ribeirão Preto) e o Última Hora (Rio e São Paulo). São várias as pesquisas

realizadas sobre a época no estado de São Paulo.

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Por outro lado, até agora, são poucas as pesquisas históricas

realizadas sobre a questão no contexto da ditadura. A fragmentação das

esquerdas, a repressão e a censura à imprensa dificultam a pesquisa da

História Social do Campo desta época. A disponibilidade de documentos

oficiais, especialmente judiciais, ainda é mais limitada para o período da

ditadura, devido a questões políticas e sua proximidade temporal. Nestas

circunstâncias, a única vantagem da ditadura sobre o período anterior é sua

pujança para a história oral, considerando a mortalidade de quem já era

adulto antes do golpe.

Apesar das limitações da pesquisa, foi possível confirmar uma

significativa intensificação dos conflitos no campo paulista durante a ditadura.

A Prancha 2 destaca a localização e o número de violações em três períodos

históricos entre 1946 e 1988 (as violações das leis trabalhistas foram

excluídas para permitir uma melhor visualização dos demais tipos). Fica

ainda mais evidente neste recorte dos dados levantados um crescimento

dramático nas violações aos direitos humanos dos camponeses nos anos da

ditadura. Assim a opção política da Comissão Nacional da Verdade de

levantar dados sobre um período maior que a ditadura –1946 a 1988 – acaba

por confirmar o senso comum sobre a deterioração da situação dos

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trabalhadores rurais e seus direitos sob o governo autoritário dos militares e

seus aliados na burguesia.

Ainda examinando a Prancha 2, é possível identificar um claro vínculo

entre as frentes de “modernização conservadora” em São Paulo e o

crescimento das violações. O conceito de “modernização conservadora”,

desenvolvido pelo sociólogo Barrington Moore, foi aplicado ao modelo de

desenvolvimento econômico implementado pela ditadura, especialmente no

campo, onde a combinação entre o regime militar, a burguesia e os

terratenentes funcionou para reforçar o controle da oligarquia rural sobre os

camponeses, trabalhadores rurais ou pequenos agricultores familiares. Como

foi indicado na discussão da Figura 1, o “outro lado” dos mega projetos do

período foi o sofrimento causado a milhares de pessoas pelo êxodo rural.

Pelas próprias manchas no mapa, é possível reconhecer a relação entre a

repressão e a construção de barragens na região do Pontal do

Paranapanema e no Rio Paraná, a concentração de terras e industrialização

nos CAIs do Pró-Álcool na bacia da Mogiana em volta de Ribeirão Preto e a

luta pela terra provocada pela construção da estrada Rio-Santos e a

valorização imobiliária do litoral paulista.

Durante a audiência pública de 16 de dezembro de 2013 foram

selecionados e apresentados cinco casos que ilustrassem a experiência

camponesa no estado frente aos diferentes tipos de repressão. Assim, os

casos apresentados envolveram violações de cada tipologia e revelaram

detalhes sobre a natureza dos conflitos nos “pontos quentes” do Pontal,

litoral, fronteira noroeste e na região de Ribeirão Preto.

No caso do Pontal do Paranapanema, foi possível levantar violações

aos direitos pessoais, políticos e trabalhistas dos tipos 1 e 2 com o exemplo

da repressão pela polícia de tentativas de formar uma liga camponesa em

Santo Anastácio entre 1946 e 1949. A pessoa mais integrada ao processo foi

Nestor Vera, um militante do PCB que se dedicou à luta camponesa desde

então até o final de sua vida em 1975, quando foi torturado e assassinado

pelo DEOPS em Minas Gerais.

Um caso de 1959 a 1960, na região do município de Santa Fé do Sul,

na fronteira com o estado de Mato Grosso do Sul, permitiu expor o grupo de

violações indicado na tipologia 4. Neste conflito, 800 famílias de camponeses

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foram despejadas de seus lotes sem qualquer compensação. Anos de

trabalho no preparo da terra, plantio de diversas culturas e construção de

casas e armazéns foram totalmente destruídos com o apoio do então

governador Carvalho Pinto. O conflito chamou a atenção nacional quando

houve o atentado contra seu líder Jôfre Corrêa Netto.

No final dos anos 1960, o Pontal voltou ser palco de um caso

emblemático de despejo similar ao caso de Santa Fé do Sul. Desta vez, 400

famílias camponesas lutaram para resistir na Gleba Santa Rita, em Euclides

da Cunha Paulista, com a ajuda do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Teodoro Sampaio. Além dos camponeses, estavam envolvidos o sindicato e

os latifundiários, a polícia militar, interventores estaduais e o promotor. O

conflito continuou esporadicamente até 1986, com a desistência de várias

famílias e a integração de outras. Realizaram-se ocupações de terras,

processos para documentar grilagem, negociações com políticos, até que a

intervenção federal e da Comissão Pastoral da Terra finalmente pacificou os

ânimos com o estabelecimento de um projeto de reforma agrária.

No litoral sul, no período de 1972 a 1976, uma associação composta

por 360 famílias camponesas foi reprimida no contexto de um prolongado

conflito com imobiliários, apoiado pela polícia militar. Produtores de palmito,

os camponeses foram expulsos de uma área de mais que 3 mil hectares,

destruindo seus pertences sem nenhuma indenização. Inclusive, sofreram

espancamento e prisões nas mãos dos policiais. Na região de Leme, em

1986, duas pessoas foram assassinadas pela polícia militar durante uma

greve de cortadores de cana que reivindicavam a aplicação das leis

trabalhistas nas fazendas de cana-de-açúcar que se espalhavam pelo Brasil

a partir de 1979.

Necessariamente breve, nosso resumo dos casos emblemáticos

apresentados na audiência talvez permita sentir um pouco do drama humana

no campo paulista durante o período da Ditadura. É importante dizer que a

seleção de cinco casos significa a exclusão de centenas de outras histórias

de lutas e pessoas não menos valiosas e tão merecidas de estudo quanto as

que foram escolhidas. De fato, cada caso, cada pessoa tem direito a uma

investigação profunda, bem como a avaliação das reparações apropriadas

para alcançar os objetivos implícitos deste processo nacional de busca da

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verdade e da justiça. Se a intenção é contribuir para a construção de um

Brasil onde as atrocidades da ditadura não se repitam no futuro, não existe

caso que não seja emblemático, quer dizer, fundamentalmente todos

deveriam ser apurados e resolvidos de modo a garantir a dignidade da vida

humana de todos.

No sentido agridoce apresentado na introdução, é óbvio como foi

amarga a repressão iniciada até antes do golpe de 1964 e que só se

intensificou nas décadas da ditadura. Percebemos, contudo, algumas

tendências que ficaram apagadas pelas interpretações que enfatizaram a

repressão e, assim, criaram a suposição da não existência de resistência até

os anos 1980. Para aceitar isso, era necessário aceitar um conceito aquém

do “fim da história.” Talvez por isso também, os historiadores não dessem

atenção a história social do campo contemporâneo. O que nos permitiu

perceber é justamente como a história não parou, e sim acelerou. Vários

militantes do período democrático não desistiram de agir. Temos como

exemplos Irineu Luís de Moraes, Mario Bugliani e Nestor Vera. O movimento

sindical camponês cresceu dramaticamente, levantando bandeiras de luta

pela reforma agrária e a aplicação das leis trabalhistas, como exemplificam

os casos da Gleba Santa Rita e a greve de Leme. Os próprios gráficos dão

testemunho de que a luta camponesa continua crescente desde a época da

ditadura. Estes indícios da consciência da classe trabalhadora é o doce do

agridoce. Na verdade, o trabalho de contar a história social do campo da era

da ditadura ainda está em sua infância.

Fontes:

BASTOS, Elide Rugai; CHAIA, Vera; FERRANTE, Vera Lúcia Botta. “As lutas

sociais no campo no estado de São Paulo - 1964 a 1981 - Relatório de

pesquisa de 1982 a 1983,” 3 vol. CEDIC/PUC-São Paulo, 1983.

COLETTI, Claudinei. A estrutura sindical no campo: a propósito da

organização dos assalariados rurais na região de Ribeirão Preto. Campinas:

Editora da Unicamp, 1998.

D’INCAO, Maria Conceição. O “Bóia-Fria”: Acumulação e miséria. 8ª edição,

Petrópolis: Vozes, 1975.

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LOPEZ, Juarez Rubens Brandão. Do latifúndio à empresa: unidade e

diversidade do capitalismo no campo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.

PIRES, Áurea Moretti. Entrevistada por Clifford Andrew Welch. Ribeirão

Preto, 11 jun. 1997.

WELCH, Clifford Andrew. A semente foi plantada: as raízes paulistas do

movimento camponês, 1924-1964. Tradução: Melissa Fortes e Andrei Cunha.

São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 287-289.

REGIÃO ADMINISTRATIVA DE ARAÇATUBA

Grilagem de terras, conflitos e conivência do Estado em Andradina

Assim como em outras partes do Estado de São Paulo, no município

de Andradina, famílias de posseiros enfrentaram a violência de grileiros de

terra. No caso, a família Abdalla, responsável pela apropriação indevida de

terras devolutas, passou a contratar jagunços para controlar os posseiros

(obrigando-os a pagar renda) e a soltar o gado nas lavouras dos moradores

posseiros (FERNANDES, 1996).

Os camponeses se organizaram e solicitaram intervenção judicial no

Fórum da Comarca de Andradina e se aproximaram do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais do município (FETAESP) e da Comissão de Justiça e

Paz, esta, em grande parte formada por membros da Igreja Católica. A Igreja,

a partir de então, passou a ter um papel fundamental na continuidade da

organização dos camponeses posseiros. Interessante notar que os relatos

sobre a violência contra os camponeses por parte da família Abdalla se

tornam constantes a partir de 1965.

Aqui, a metade era gado, a outra parte a gente plantava roça; um plantava num canto, outro plantava noutro canto, mas no meio tinha pasto. Aí eles começaram a pressionar a gente: aí de 65 pra frente, até 70 ponhava o gado, fazia que a cerca tinha quebrado, mas não era a cerca que tinha quebrado não; a altas horas da noite os empregados iam lá e cortava o arame, quando amanhecia o dia, tava lá o estrago [...]. (depoimento de Valdeci Rodrigues de Oliveira. In Micheletto, 2003:83).

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René Parren, à época padre na Diocese de Lins, recorda alguns

episódios vinculados à fazenda Primavera.

Então assim, foi ali que na Fazenda Primavera vieram famílias lá do Norte, do Nordeste. Todas as famílias que moravam ali naquela fazenda e já vinham, a partir de 1926, 1927, por aí, as primeiras famílias que chegavam aí lá do Norte tocadas pela fome, pela seca e tudo e vieram então para aquela região se instalar naquelas terras da Fazenda Primavera a partir de 1925. Mas também a partir daquela época já se tem notícia de disputa pelas terras da Fazenda Primavera. Por exemplo, em 1946, consta nos arquivos, nos processos, que agrimensores foram brutalmente agredidos por pessoas no processo de divisão daquelas terras da Fazenda Moinho, daquela região. Então já mostrava o atrito, o conflito por causa da terra ali naquela época (COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”, 2013).

René também retratou, em audiência pública da Comissão da Verdade

“Rubens Paiva”, a forma utilizada pelos jagunços dos Abdalla para extorquir

os camponeses.

A pressão da família Abdalla desde aquela época foi muito grande. Ele então foi tratando essas famílias como parceleiros. Eles tinham que pagar, vamos dizer assim, a renda da produção e foi encaminhado por ele, tudo controlado por ele, pela família Abdalla. E depois as famílias, por outro lado, foram também esperneando também, resistindo diante desse processo, negando-se a pagar esta extorsão da riqueza que eles produziam (idem).

Segundo o depoimento, já em 1963 os camponeses organizaram uma

passeata como forma de tornar pública a situação das famílias na fazenda.

Pouca providência foi tomada pelos poderes públicos locais, estaduais e

nacionais. Abdalla também continuaria com as técnicas de ameaça,

desmobilização e depredação do patrimônio dos camponeses.

No final, indo mais pra frente, ela buscava gado lá em Mato Grosso, milhares de cabeça de boi, a família Abdalla e colocava lá para engordar esses bois. E esses bois entravam nas roças do pessoal, pulavam a cerca, quebravam as cercas; jagunços para controlar isso, os administradores da fazenda. Então se tornou um inferno na Fazenda Primavera. As famílias, incomodadas com essa situação foram procurando ajuda de várias pessoas. Na questão jurídica, eles apanharam muito porque os advogados da praça, lá da região... Eles tinham procurado um monte de advogados mas no fim, todo mundo com rabo preso e não resolvia nada, ficava tudo na mesma. Depois eles procuraram outras ajudas também, por exemplo, na Fetaesp do estado de São Paulo. Isso foi no final dos anos 1970. Chegaram em São Paulo, o próprio presidente da

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Federação falava para eles: “olha, seu Manoel e fulano de tal, isso é muito perigoso, mexer com essas coisas aí, é melhor largar de lado isso aí porque senão pode sobrar para vocês pior”. E assim foi (idem). O conflito na fazenda se tornou insuportável. Houve perseguição em cima das roças do pessoal, queimada de casas; eles colocaram, no final, guaritas na saída da fazenda para controlar o trânsito das pessoas, para controlar a questão da renda da produção também...

Diante do quadro de intimidações, agressões, violências e de omissão

dos órgãos públicos frente aos constantes casos de intimidação na Fazenda

Primavera, a Igreja decidiu participar mais intensamente na organização e no

apoio aos camponeses. Segundo René a primeira coisa era organizar as

famílias. O trabalho de base consistia em “tirar o medo das famílias”, porque

[…] estava dentre todos eles aquilo que aconteceu numa outra fazenda lá em Castilho, onde no passado também teve um despejo violento” (idem). Correu muito sangue ali. Lá na Fazenda Cafeeira foram despejadas muitas famílias e podia acontecer a mesma coisa lá na Fazenda Primavera, então eles estavam com muito medo. Primeira coisa então era um trabalho de base, falar com as famílias, com as lideranças e organizar esse pessoal.

O trabalho da equipe pastoral foi decisivo, embora não tenha deixado

de haver repressão e perseguição às lideranças, como nos conta René

Parren:

Tudo isso o pessoal teve que enfrentar, os trabalhadores. Grandes manifestações e denúncia. Referindo-me então mais à questão da época, que estava dizendo, era muito controlado, porque a ditadura militar […] fez de tudo para acabar com o movimento social. E lá nós também sentimos isso […]. O bispo, num certo momento também esteve lá em Andradina, teve uma grande assembleia, ele tomou posição também em favor da causa demonstrando solidariedade à questão. E teve outras coisas que aconteceram. Numa celebração dominical um companheiro foi interrompido pelo delegado na hora de abordar a questão da Fazenda Primavera, das injustiças que os trabalhadores estavam enfrentando ali, etc. Então isso é um pouco da época… Isto que é importante colocar também: que nós sentimos muito a questão, na época, da perseguição da ditadura militar. A gente trabalhava na pastoral também, eu pessoalmente me lembro muito bem ainda que nos domingos todo mundo tinha lá... O delegado ia lá na igreja assistir a missa com seu gravador ao lado dele. Então eu tinha que medir as palavras mas por outro lado eu não queria esconder as coisas. Então a gente usava a pastoral, o evangelho e tudo, dentro da linha da libertação, para dar o recado, para ser coerente com as coisas, mas a gente sentiu isso, o controle da coisa. E mesmo lá fora também nós sentimos; boatos de perseguição, de prisão e tudo em relação à gente também. Então

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isso estava muito presente lá. E para os trabalhadores a gente tinha que falar nas igrejas: “olha, companheiros, vamos falar com muito cuidado porque o clima em volta de nós não é sempre assim de segurança para a gente, então cuidado com aquilo que a gente fala, cautela nessas coisas”. E assim nós fomos levando (idem).

O mesmo tipo de violência se repetiu na Fazenda Jacilândia,

localizada no município de Meridiano. Essa se encontrava em uma área que

pertencia à Cia. Araraquarense de Estrada de Ferro nos anos 1950. Nessa

década, um enorme número de camponeses, mais particularmente da Bahia,

migrava para o oeste paulista, seja para trabalhar nas fazendas de café, seja

para ocupar as áreas livres mais ao oeste. Um destes grupos se instalou na

Fazenda Jacilândia, à época subutilizada, conforme descreve Bombardi

(2005).

Logo enfrentaram a truculência de jagunços no processo de grilagem

da área. A área tornou-se foco de conflitos e violência. O grupo de

camponeses resistiu na terra até que a Lei de Revisão Agrária, de 1960, foi

implementada na área. No entanto, tal implementação só se deu na década

de 1970. Conforme Bombardi (2005), durante o processo de regularização da

posse, os camponeses tiveram de enfrentar a prevaricação efetuada pelo

agrônomo responsável por assentá-los, o que resultou em novos conflitos

visando a permanência na terra.

Fontes:

BOMBARDI, L. M. Campesinato, luta de classe e reforma agrária (A Lei de

Revisão Agrária em São Paulo), Tese (Doutorado em Geografia Humana).

Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências,

Universidade de São Paulo. 2005

FERNANDES, Bernardo Mançano. MST: formação e territorialização. São

Paulo: Hucitec, 1996.

COMISSÃO DA VERDADE RUBENS PAIVA. Audiência Pública sobre a

repressão no campo no Estado de São Paulo. Assembleia Legislativa

doestado de São Paulo, dezembro de 2013.

MICHELETTO, S. R. A. Forjar da terra o milagre do pão: assentamento

Timboré – Andradina/SP. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) –

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São

Paulo, São Paulo, 2003.

Prisão e tortura de Antônio José do Carmo

Em 1976, no município de Andradina, um jovem de 18 anos, Antônio

José do Carmo, coordenador do Grupo de Jovens da Comunidade São

Paulo, vinculado à Igreja Católica do município de Andradina, é preso e

espancado na delegacia. A causa de sua prisão fora uma redação escolar

escrita por outra integrante de grupo de jovens na qual defendera a reforma

agrária. Ao ser indagada sobre sua posição pela professora, a jovem explicou

que isso vinha de uma discussão feita na Igreja, dentro do grupo de jovens. A

professora então encaminha a redação à polícia, que vai atrás do então

coordenador, mais conhecido como Toninho do Carmo.

Antônio relata que a partir desse episódio passou muitos anos

atordoado, como medo da polícia, passando também a fumar e se embriagar.

Toninho do Carmo ainda se recente por nunca ter recebido indenização

moral pelo que passou.

René Parren, em depoimento à Comissão da Verdade “Rubens Paiva”

(2013), ofereceu detalhes sobre o episódio:

Eu me lembro, também nesta época, que tinha um grupo de jovens lá na paróquia e uma moça lá na escola, ela se chama Lourdes de Souza; naquela época, no começo dos anos 1980, ela escreveu uma redação na escola. E ela escreveu assim: “a reforma agrária é preciso” Aí a professora pegou aquela redação e estranhou; perguntou para a Lourdes: “escute, de onde você tem essa história aí da reforma agrária?” ela falou assim: “bom, isso é do meu namorado’. “E de onde é esse namorado?”, “Esse namorado é lá do grupo de jovens Jucosp”, Juventude Unida da Comunidade São Paulo. E então a coisa foi, foi, foi... E logo depois, ele se chama Toninho, o rapaz, o namorado; ele foi preso. Ele foi preso ao meio-dia, mais ou menos, e foi espancado, ameaçado de morte. E ele nem sabia direito o que era comunismo. Naquele tempo... Mas por outro lado ele pensava: “se é para dividir as coisas... É uma coisa boa”, ele pensava. Mas entrou na relação. Aí as famílias da comunidade toda se juntaram em frente da delegacia e protestaram. Foi escrita uma carta para o bispo de Lins, Dom Pedro Paulo Koop; e ele, por coincidência, estava em Itaici, na Conferência Nacional dos Bispos. Então o bispo tomou conhecimento disso e também tomou posição. Como sempre, a diocese também apoiou naquela época a questão. E ele diz assim:

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“se não soltar, resolver esse problema aí, eu vou denunciar em nível nacional o que está acontecendo aí”. E assim voltaram atrás (idem).

Segundo René, além das sequelas e traumas deixados em Toninho

pela agressão e repressão policial, Lourdes, a menina que fez a redação,

também ficou muito traumatizada, tentando se suicidar logo em seguida do

episódio de prisão e tortura de seu companheiro.

Ela ficou tão chocada com essa questão toda, essa perseguição, que ela queria até se acabar. Então é uma questão que mostra muito bem o conflito que nós sofremos, a perseguição naquela época em cima da luta dos trabalhadores. E então assim a coisa foi. Mas é isso (idem).

Fonte:

COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”. Audiência Pública sobre a

repressão no campo no Estado de São Paulo. Assembleia Legislativa do

Estado de São Paulo, dezembro de 2013.

Espionagem e delação do SNI: Concílio de Jovens de 1979

Muitos foram os religiosos que lutaram contra a ditadura militar no

interior do Estado de São Paulo. De forma geral, grande parte dos opositores

ao regime foram constantemente observados e intimidados pela ditadura.

Não raro são os relatos de agentes do Serviço Nacional de Informação (SNI)

em encontros de pastorais, de grupos de jovens ou mesmo missas.

O Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor (IAJES), idealizado pelo

padre José Vanin, tinha como objetivo inicial dar assistência aos moradores

carentes do bairro Pereira Jordão, em Andradina, localidade de sua sede, e

percorria por meio de seus agentes, todas as adjacências. Mais tarde, em

1976, estendeu suas atividades para todos os bairros da cidade de

Andradina, sendo onze no total. No mesmo ano, o IAJE é marcado pela

chegada de Giancarlo Oliveri, padre com idéias transformadoras e

progressistas baseadas na Teologia da Libertação.

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O IAJES passa a se aliar às CEBs, lutando por vários anos e contando

com o apoio de personagens importantes da história política recente, como

Leonardo Boff, Frei Betto, Oscar Beozzo, Dom Pedro Paulo Koop. Assim

como em outras regiões do Estado, a presença de espiões do SNI marcava

as atividades do IAJES como conta Maria Isabel Prates Oliveri em entrevista

a Brentan (2009):

[...] a diocese de Lins-SP estava fazendo aniversário e conseguiu, nessa época da ditadura militar, reunir três mil jovens. Então vieram três mil jovens para Diocese de Lins, embora hoje a diocese esteja dividida e Andradina-SP pertence-se à Araçatuba, naquela época Andradina pertencia à diocese de Lins. E os jovens vinham para Andradina por que nós éramos famosos por conta dessas situações todas de conseguir colocar o povo na câmara municipal, conseguia botar a população na rua, e conseguia fazer uma série de coisas, então eles queriam vir, e vieram uns quatrocentos e cinquenta jovens para Andradina. Lógico que dentro desses três mil jovens vieram os espiões da época, que eram do SNI (Serviço Nacional de Informações), foi muito interessante por que os jovens que vieram para Andradina, nós, dividimos eles para irem aos bairros, e em cada salão comunitário nós colocamos cinquenta, e cada um de nós da equipe ficamos responsáveis por esses grupos, e em cada grupo nós fomos identificando os espiões do SNI. Aí, um dia, nós juntamos todos os grupos e conseguimos fazer uma dinâmica que agente colocou todos os suspeitos juntos [num mesmo grupo], eles se suspeitavam de si mesmos e nenhum deles queria falar no grupo por que um suspeitava do outro. E eles vinham para Andradina por causa de todo esse trabalho com as comunidades eclesiais de base que eles ouviam falar (COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”, 2014)

Fontes:

COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”. Audiência Pública sobre a

repressão no campo. São Carlos, setembro, 2014.

REGIÃO ADMINISTRATIVA DE BAURU

Prisão, negação de direitos e de livre associação: perseguição a Ligas e

lideranças

No município de Lins, na região administrativa de Bauru, em agosto de

1946, 200 camponeses tiveram seu direito a livre associação violado, ao

verem negado o pedido para reorganização da Liga Camponesa que havia

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sido fechada pela Polícia Municipal. Houve perseguição e ameaça de

lideranças rurais. O caso se encontra no Prontuário 69548 do DEOPS.

Camponeses do município de Getulina foram presos na década de

1940 por fazerem greve pacífica junto com outras famílias de colonos da

Fazenda Santa Helena. O decreto antigreve baixado pelo Estado legitimava

essas prisões. O fato foi noticiado no Jornal Notícias de Hoje, São Paulo, 28

de abril de 1946, p. 9.

O militante comunista Jôfre Corrêa Neto foi preso no município de

Presidente Alves em setembro de 1962. O motivo foi para impedi-lo de

realizar trabalho de militância sindical. Jôfre atendia 45 famílias de colonos,

aproximadamente 130 pessoas, na Fazenda Jacutinga, do fazendeiro

Sebastião Simões de Carvalho, que buscaram se organizar para conseguir

uma “indenização devida” depois de serem demitidos injustamente.

A prisão foi justificada pelo Estado na Lei de Segurança Nacional.

Essa prisão já indicava o papel de DEOPS na repressão à organização

camponesa. Jôfre foi sentenciado a 20 meses de prisão, sendo libertado 18

meses depois.

Fontes:

SILVA, Emiliana Andreo da. Despertar do campo: Lutas camponesas no

interior do Estado de Sâo Paulo. São Paulo, Arquivo do Estado, Imprensa

Oficial do Estado de São Paulo, 2003, p. 133-134.

BARRIGUELI. Subsídios à História das lutas no campo em São Paulo (1870-

1956), vol. 2, 042/946, p. 177.

Revista Novos Rumos, outubro de 1962, p. 8.

REGIÃO ADMINISTRATIVA DE CAMPINAS

O assassinato de Orlando Correa na greve dos canavieiros em Leme -

1986

A greve de Leme, deflagrada em 27 de junho de 1986, refletiu os

processos de organização trabalhistas no embate entre capital e trabalho

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iniciados pela greve de Guariba, em 1984. A pauta de reivindicações era que

a remuneração fosse aferida por metro linear e não por peso, conforme era

feito. Frente à declaração de ilegalidade do movimento grevista pelo Tribunal

Regional do Trabalho, e tendo a justiça concedida Habeas Corpus preventiva

para Usina Cresciumal, em 10 de julho, pela circulação de funcionários. Os

piquetes tornaram-se intensos. Na manhã do dia 11 de julho, sexta-feira, o

conflito deflagrou-se quanto um ônibus conduzido pelo motorista Orlando de

Souza, da Usina Cresciumal, que levava 42 trabalhadores e três policiais

militares, Wiston José Tristão, Genivaldo Matias dos Santos e Benedito Rosa

Paixão, escoltados por viatura da polícia, conduzido por José Aparecido

Bernardo de Oliveira e Valter Domingues Franco, cruzou o piquete realizado

no Bairro do Bom Sucesso, paralelo à Ferrovia.

A partir deste ponto, na época criou-se a versão de que uma viatura

oficial da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo teria ultrapassado o

ônibus e efetuado disparo contra o mesmo. O então superintendente da

Polícia Federal na época, Romeu Tuma, chegou a sustentar que o conflito

era uma ação armada de dirigentes da CUT. O presidente José Sarney, por

meio de seu porta voz, Fernando César Mesquita, afirmou que não iria aplicar

a lei de segurança nacional ao caso, pelo envolvimento de políticos do PT,

após ser informado da tragédia por meio do ministro-chefe do Serviço

Nacional de Segurança, Ivan de Souza Mendes. (FOLHA DE SÃO PAULO,

1986). O laudo pericial do processo instruído em Leme desmente as versões

acima, pois consta que o ônibus não foi alvejado por arma de fogo.

O piquete do dia 11 de julho, no bairro Bom Sucesso tinha por volta de

500 pessoas. O efetivo policial contava com 162 policiais militares com suas

viaturas, 60 policiais do 10º BPMI de Piracicaba, 28 do 13º BPMI de

Araraquara, 46 do 2º Batalhão de Choque da Capital, 28 do 3º Batalhão de

Choque de São Paulo, além do efetivo do município.

O Inquérito Policial instaurado em 11 de julho de 1986, encerrado

quatro anos depois, em 5 dezembro de 1990, é inconcluso quanto apuração

dos responsáveis diretos pelo assassinato de dois trabalhadores. Sibele

Aparecida Manoel (17 anos), empregada doméstica que participava e

apoiava o movimento dos piqueteiros, ao correr da tropa de choque da

Polícia Militar, que dispersava os canavieiros grevistas lemenses, ela foi

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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atingida por projétil de arma de fogo que transfixou seu corpo, e lhe causou a

morte. No caso do trabalhador rural, Orlando Correa (22 anos) encontrava-

se afastado por acidente de trabalho, após se ferir na perna esquerda com o

podão, no corte de cana. Mesmo assim apoiou o piquete. Na ocasião do

conflito foi atingido por projétil de arma de fogo na região do peito à altura do

bolso direito da camisa e causou a morte. Atualmente o processo encontra-se

arquivado.

Outros seis trabalhadores rurais também tiveram lesões por arma de

fogo, Antônio Quirino Lopes, Vitor Nogueira, Valdemir Donizete Rosa. Jorge

Aparecido Killian, Ademir Lírio Generoso Silva e Paulo Honório Pereira (26

anos). Outros 11 trabalhadores, políticos e lideranças sindicais tiveram lesões

de natureza física resultante da investida da polícia militar.

É de se ressaltar que importantes lideranças sindicais e políticos

estavam neste cenário e também sofreram com a brutal repressão.

José Genoíno juntamente com os deputados Djalma de Souza Bonn, 47, (presidente do PT no Estado de São Paulo) e Anísio Batista (deputado estadual) além de Paulo Otávio Azevedo, virtual candidato a vice-governador pelo PT, disseram ter sido bastante espancados pelos policiais. Os três primeiros chegaram a ser detidos posteriormente, na Santa Casa, jundamente com o tesoureiro licenciado da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo (Fetaesp) e candidato a deputado estadual pelo PT, Vedo Jorge Faita, o diretor da Fetaesp e da Confederação Nacional na Agricultura (Contag), Élio Neves, e o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araras, Norival Guadaguin. (FOLHA DE S. PAULO, 1986).

Fontes:

FOLHA DE S. PAULO, Economia, Duas pessoas morrem em choque entre

PB e bóias-frias. 12 de julho de 1986.

FOLHA DE S. PAULO, Tuma afirma que CUT pode estar envolvida. 12 de

julho de 1986

FOLHA DE S. PAULO, Sarney diz que problema é do governador Montoro.

12 de julho de 1986

REGIÃO ADMINISTRATIVA DE MARÍLIA

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DOPS impede o I Congresso de Lavradores da Alta Paulista (1949)

Com a cassação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1947, os

militantes da região de Marília passaram a atuar na clandestinidade.

Mantinham, à época, diversos trabalhos junto aos camponeses da região.

Realizavam reuniões em diversas fazendas, onde elencavam, junto

aos camponeses, as principais demandas e focos de atuação. Colhiam e

debatiam as principais reivindicações, politizando questões como aumento do

salário, maior participação no lucro da produção e registro em carteira,

condições favoráveis aos pequenos proprietários, assistência técnica, etc.

O PCB mantinha bons trabalhos nos municípios de Vera Cruz, Gália,

Marília e Oriente, onde predominava o plantio de café, algodão e cereais

(SILVA e ALMEIDA, 2012). O município de Oriente contava, ainda, com uma

usina de açúcar à época.

Em meados de abril de 1949, os militantes comunistas João Camilo

Sobrinho, Edgard de Almeida Martins, Honório Tavares de Faria, Reinaldo de

Machado, Osório de Castro, Benino de Mazo e Manoel Tavares deram início

à organização do I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas da

Alta Paulista, que seria realizado em 8 de maio, no município de Marília.

Muitos militantes do partido se envolveram nas panfletagens de divulgação e

nos preparativos do encontro.

Seguiram-se intensos debates durante os dias de preparação do

congresso. Jornais foram distribuídos nas principais vias e passagens

públicas do município, bem como convites foram enviados a autoridades.

Edgard de Almeida Martins, então secretário de organização local do PCB na

região, conta que os “latifundiários e os políticos locais pediram ajuda à

polícia” para “impedir a realização do congresso” (SILVA e ALMEIDA, 2012).

Faltavam 15 dias para a realização do encontro de camponeses

quando agentes do DOPS chegaram à região, acompanhados por um

batalhão do Exército de Bauru.

Todos os membros do partido que assinaram os materiais de

divulgação e convocação para o Congresso foram presos. Edgard, em suas

memórias políticas, conta que teria sido preso em Tupã, juntamente com os

irmãos Cano e Perez, também membros do PCB. Passaram pelas delegacias

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de Tupã, Marília e Garça, indo e vindo pelos mesmos itinerários diversas

vezes. Teriam ficado sob guarda dos agentes do DOPS por cerca de 10 dias,

sendo interrogados pelo então delegado regional, de sobrenome Leitão.

Edgar comenta que à época teria sido torturado diversas vezes.

Outros membros do partido também foram presos. Sérgio Barguil foi

detido em Pompéia. Manoel Tavarez e outros seis militantes foram presos em

Marília. Todos os membros do PCB foram processados por subversão,

desordem social, desacato à autoridade e organização de partido ilegal

(SILVA e ALMEIDA, 2012).

O município de Marília permaneceu ocupado pela Polícia Militar com

auxílio do efetivo do Exército de Bauru. Atiradores com metralhadoras foram

posicionados na praça principal da cidade de Marília, local onde seria

realizado o Congresso, fato que se repetiu – de acordo com o relato do

militante comunista - nas entradas das cidades de Garça, Tupã, Assis e

Getulina (SILVA e ALMEIDA, 2012). Nas ruas, as pessoas eram abordadas,

revistadas e identificadas. Qualquer arma era apreendida, inclusive

canivetes. Diversos camponeses sofreram ameaças e agressões, tanto da

Polícia Militar quanto do Exército.

Fonte:

SILVA, Eliana Floriano e ALMEIDA, Thaelman Carlos Machado de.

Clandestino. Memórias políticas de Edgard de Almeida Martins. Editora

Agbook. 2012.

A Chacina de Tupã

O delegado da cidade de Tupã, em 1949, era Renato Imparato. Quem

comandava o destacamento local da polícia militar era o Sargento José

Ramos Cadima, descrito como de maneira bruta, corrupta e violenta (SILVA e

ALMEIDA, 2012). Cadima perseguia donos de caminhões nas áreas rurais do

município, pois era costume que os motoristas transportassem seus vizinhos

e trabalhadores rurais como passageiros. Cadima se aproveitava para multar

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e extorquir os trabalhadores rurais. O destacamento do Sgt. Cadima também

prendia alguns motoristas por desacato e ainda roubava seus pertences.

Militantes do PCB de Tupã, alguns já procurados pela polícia pela

organização do congresso camponês de Marília, cientes dos desmandos

policiais e do clima de revolta entre os camponeses do município, decidiram

fazer um abaixo assinado denunciando tais arbitrariedades (SILVA e

ALMEIDA, 2012). Redigiram o tal documento e perceberam, ao colherem as

assinaturas, que haveria espaço para convocar uma manifestação junto aos

moradores pobres da cidade. Um protesto público foi realizado em 10 de

julho de 1949, aglutinando cerca de mil e quinhentas pessoas, que

carregavam faixas e bradavam gritos de protesto contra as diversas

violências policiais (COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”, 2013).

A passeata saiu da rua Aimorés, chegando até a avenida Tamoios,

duas importantes vias da cidade, quando a polícia apareceu e tentou

dissolver a manifestação. À frente da tropa estava o sgt. Cadima,

prontamente identificado pelos manifestantes. Segundo o depoimento de

Edgard de Almeida Martins, então secretário organização do PCB na região:

[...] a massa investiu contra os policiais. Ouviram-se tiros. Alguém gritou: - atira nele! As pessoas tentavam se proteger como podiam. Houve mais tiros. Os policiais fugiram correndo avenida acima e o povo atrás, num pega-não-pega. (SILVA e ALMEIDA, 2012. p. 50).

Um policial, dirigindo uma viatura, ainda tentou colidir o veículo no

meio da manifestação. Teve seu carro erguido do solo pela multidão, que

também ameaçou atear fogo no veículo. A passeata seguiu até o estádio

municipal, onde acontecia uma partida de futebol. Os torcedores deixaram o

estádio e engrossaram as fileiras do ato, que seguiu para a casa do vereador

Sousa Leão, chefe político do Partido Social Democrata (PSD) local,

identificado pelos manifestantes como apoiador das violências policiais.

Os camponeses voltaram para casa vitoriosos pela execução da

manifestação pública, sem saber que na manhã seguinte a cidade voltaria a

ser palco de novas violências policiais. Chegou à cidade o IV Batalhão do

Exército de Bauru, juntamente com agentes do DOPS de São Paulo. Tupã foi

completamente ocupada pelas tropas e os homens do DOPS assumiram o

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comando da polícia civil, junto com o delegado Imparato. Cerca de 120

camponeses foram presos, mesmo entre aqueles que não participaram da

manifestação do dia anterior (SILVA e ALMEIDA, 2012). Houve agressões e

espancamentos. Militares e policiais procuravam pelos organizadores da

passeata.

Dentre os presos estava o pai de Edgard de Almeida Martins - Manoel

de Almeida -, como tentativa policial e militar de forçar o aparecimento do

militante comunista, que vivia na clandestinidade desde os desdobramentos

do Congresso da Alta Paulista. Manoel foi levado à São Paulo, onde foi

espancado e interrogado pelo delegado Elpídio Reali. Manoel chegou a ser

ameaçado de extradição, dada sua naturalidade portuguesa, o que não

aconteceu.

Vendo a reviravolta, Edgard e outros dois comunistas, João Camilo e

Alípio, fugiram de Tupã. Permaneceram escondidos até que o clima voltasse

ao normal na cidade. Foram indiciados pelo DOPS por participar do

Congresso dos Lavradores, pela organização da passeata, por resistir à

prisão, por desacato à autoridade e por agressão ao sgt. Cadima

(DEPOIMENTO DE THALEMAN, 2013). Já na clandestinidade, foram à São

Paulo e lá permaneceram aguardando ordens do partido.

Cerca de 2 meses após a passeata e a caçada aos militantes

comunistas, a polícia de Tupã recebeu de um trabalhador rural a denúncia de

que estava acontecendo uma reunião do PCB em um sítio próximo. O

delegado Imparato reuniu um destacamento fortemente armado e foi até o

mencionado local. Os policiais fizeram um cerco à casa, dando incío a um

tiroteio, que levou à morte três militantes comunistas: Pedro Godoy, Miguel

Rossi e Afonso Marma. Outras doze pessoas foram presas no local (SILVA e

ALMEIDA, 2012).

Houve forte repercussão do evento, que ficou conhecido como

“Chacina de Tupã”. Luis Carlos Prestes chegou a se pronunciar sobre o

acontecido, afirmando que:

[…] o assassino Adhemar de Barros, ... esmera-se no assalto de Tupã, onde caem vítimas do ódio das classes dominantes aos camponeses que lutam pela paz, pela terra, os três heróis do nosso povo – Pedro Godoy, Afonso Marma e Miguel Rossi.

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Fontes:

COMISSÃO DA VERDADE RUBENS PAIVA. Audiência pública sobre a

repressão no campo. Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, 16 de

dezembro de 2013

PRESTES, L, C. Nossa política: prestes aponta aos brasileiros o caminho da

libertação. Em: Revista Problemas, nº 29, ago/set, 1950.

SILVA, Eliana Floriano e ALMEIDA, Thaelman Carlos Machado de.

Clandestino. Memórias políticas de Edgard de Almeida Martins. Editora

Agbook. 2012.

REGIÃO ADMINISTRATIVA DE PRESIDENTE PRUDENTE

Perseguição e assassinato de Nestor Veras: silêncios e ‘esquecimentos’

nos relatos de violações

O depoimento que Omene Vera Martins deu à Comissão da Verdade

do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” foi emblemático de uma realidade

bastante comum vivenciada pelos familiares de ameaçados, perseguidos,

presos ou mortos pela Ditadura civil militar. Seu relato, além de retomar a

forma brutal como a ditadura assassinou seu tio, Nestor Vera, oferece

diversos exemplos de como o cotidiano familiar, a vida simples do dia-à-dia,

se transforma radicalmente em contextos ditatoriais.

Omene, por exemplo, citou como as constantes visitas dos agentes do

DOPS à sua residência transformaram-se em pavor no cotidiano familiar.

Ainda que o objetivo principal fosse a captura de Nestor Vera, clandestino à

época, a trajetória militante do pai também teria contribuído para a

desconfiança dos agentes policiais e militares e para as constantes

intimações:

Meu pai apoiava os deputados lá [...] brigava, militava, corria, se envolveu também, foi processado... O DOPS ia direto na minha

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casa [...] o DOPS estava toda hora lá em casa, levava meu pai e minha mãe pra delegacia.

Com o tempo, a presença constante dos agentes policiais e militares,

as inúmeras intimações para depoimento, as ameaças e eventuais

agressões, transformaram-se em medo, em busca pela discrição e, para

alguns familiares, num profundo silêncio em relação aos episódios e à

trajetória de Nestor Vera. Como nos afirmou Omene:

[...] às vezes eu tento arrancar dos meus tios, principalmente o Antonio Vera, que está lá em Epitácio com 87 anos, ele fala: “não, não, mas não houve nada, não houve nada [...]. Tem outra irmã do Nestor Vera que mora em outra cidade, mas essa é a mais nova, ela não quer falar nada, ela morre de medo até hoje de falar de Nestor Vera. Ela, inclusive, queima todas as coisas que meu avô tinha na casa que ligassem a Nestor Vera, essa tia minha queimava tudo por medo. Eu não estou aqui criticando a situação, ela tinha medo.

Não bastasse a morte do militante, permanece para seus familiares o

medo de que algo semelhante volte a acontecer. A discrição e o silêncio em

relação ao passado, neste caso, podem ser notadas mesmo nos período

atual.

Nunca ninguém falou nada. A nossa família sempre blindou a gente, sempre foram calados, nunca falaram nada. O único da família que hoje começou a falar fui eu, porque eu fiz um comentário na internet (COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”, 2013).

O silêncio, ainda que parcial, sobre a morte ou mesmo sobre a

existência de Nestor Vera, foi tanto e de tal forma, de acordo com o relato de

Omene, que gerou no seio familiar, principalmente nas novas gerações, certo

desconhecimento da trajetória militante e da forma brutal como o parente foi

assassinado pela ditadura. Segundo ele, uma de suas primas - atual prefeita

de Ribeirão Preto, Darcy Vera - desconhecia por completo a história de seu

tio Nestor: “a Darcy Vera é neta do Rafael Vera [tio de Nestor]. [...] Mas ela

ficou sabendo agora que é sobrinha neta, ela não sabia da existência do

Nestor Vera (idem)”.

Omene também comenta as inúmeras dificuldades que sua família

teve por ser associada à “subversão” e ao “comunismo”:

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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Nós só nos ferramos com esse negócio de parente do Nestor Vera. Nós só tivemos problemas com a justiça e com os empregos, com as oportunidades que nós deixamos de ter na vida por ser parente dele (idem).

O relato oferece alguns exemplos dos efeitos diversos gerados pela

perseguição política no cotidiano de amigos e familiares de opositores ao

regime ditatorial. Além de ter de lidar com eventuais perdas de parentes e

amigos, o cotidiano social de muitas famílias se altera de forma profunda.

Muitos são demitidos pelo parentesco com “comunistas”, outros perdem a

credibilidade da vizinhança ao serem associados à subversão, mesmo que

indiretamente. É comum a adoção de hábitos mais discretos (ou às vezes até

clandestinos), ou então a sensação constante de medo diante da observação

e da vigilância dos órgãos Estatais. Isso sem mencionar os inúmeros

constrangimentos e ameaças decorrentes destes processos.

Para as novas gerações, se o silêncio acerca das amarguras

vivenciadas no passado pode se transformar na perda de algumas

informações sobre o passado e sobre a identidade familiar, o mesmo não

pode ser dito dos antecessores. Neles, o silêncio pode consistir numa

estratégia de sobrevivência, numa forma de passar despercebido, de não

despertar a atenção de autoridades, mas também uma forma de lidar com a

dor da perda de entes queridos ou de cuidado com a própria sobrevivência e

de seus familiares. Novamente, o relato de Omene é bastante emblemático

dessa realidade:

A família, que mora em Campinas, as filhas dele, sofreram muito nessa vida. [...] E, possivelmente, se um dia acharem alguma coisa do Nestor Vera, com a autorização da família a gente gostaria de sepultar em Presidente Epitácio e tirar de uma vez essa coisa que tem dentro de tanta gente que está por aí [...], parentes, pessoas que foram humilhadas, tiveram portas fechadas na sua vida [...] [por isso] a importância para as pessoas virem aqui e desabafar um pouco, tirar essa ferida que está dentro das pessoas, entendeu? [...] Meu pai, por exemplo, faleceu com essa foto aqui do irmão dele. Ele carregava essa foto, ele sentado num banco [...] (idem).

Fontes:

COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”. Audiência Pública.

Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 16 de dezembro de 2013.

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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Assassinatos, grilagem e conluio do Judiciário em Teodoro Sampaio.

No município de Teodoro Sampaio, Região administrativa de

Presidente Prudente, o lavrador Waldomiro Fogaça Sobrinho denunciou

desapropriações na década de 70. Seu relato afirma que 70 famílias, com

mais de 400 crianças, tiveram de abandonar as terras onde viviam num prazo

de 10 dias por ordem do Tribunal de Justiça do Estado.

Inicialmente as terras eram arrendadas por Francisco Pereira Telles

que, após 3 anos, desapareceu. Foi quando surgiu Justino de Andrade,

alegando ser proprietário e entrando com ação na Justiça para que as

famílias abandonassem o local. Segundo o INCRA, no entanto, Justino não

possuía escrituras das terras, portanto, eram devolutas. Mesmo assim a

desapropriação foi efetuada.

Assim como em Teodoro Sampaio, houve outros conflitos resultando

em mortes. Paulo e José Kuraki foram assassinados em Presidente Epitácio,

em abril e maio de 1967, respectivamente. Paulo Kuraki foi assassinado ao

recusar-se a pagar um “foro” cobrado por um fazendeiro que se intitulava

proprietário das terras da reserva Lagoa São Paulo.

Fontes:

Folha de S. Paulo,10/05/1977.

VIANA, Gilney. Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de

transição. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República,

2013, p. 222.

CARNEIRO, A; CIOCCARI, M. Retrato da repressão política no campo -

Brasil 1962-1985: Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília,

Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2010.

REGIÃO ADMINISTRATIVA DE REGISTRO

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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Construção da Rodovia Régis Bitencourt e a grilagem de terras

De acordo com a reportagem do jornal Terra Livre (1962), intitulada

“Vitória dos posseiros de Juquiá: confirmada a ilegalidade dos despejos”,

grileiros atuavam na região do litoral sul de São Paulo expulsando posseiros

e pequenos proprietários, utilizando títulos falsos de propriedade.

Tal processo se deu no contexto da abertura da rodovia Régis

Bitencourt (BR 116, trecho que liga São Paulo ao Paraná). Os grileiros teriam

expulsado os proprietários com base num mandado de despejo, emitido

contra “Nestor Isaias” pelo juizado local. Ao todo, mais de 70 famílias foram

atingidas pelo processo de grilagem no trecho notificado. Ainda segundo a

reportagem, o judiciário teria sido conivente com as expulsões, através da

expedição de mandados indevidos e no reconhecimento de títulos de

propriedade falsos.

Fonte:

Vitória dos posseiros de Juquiá: confirmada ilegalidade dos despejos. Terra

Livre, jan. 1962, n. 107, ano XII. p. 3.

Conluio e perseguições: luta pela terra em Guapiruvú

O bairro Guapiruvi, localizado no município de Sete Barras, vivenciou

muitas lutas relacionadas à posse da terra. Segundo os relatos de Dona

Rosa e alguns de seus familiares, um médico paulista de nome Marcelo

Penteado, através de alguns prepostos, chega na região em 1956

prometendo regularizar a posse da terra dos camponeses locais. Recolheu

assinatura de várias famílias e usou-as mais tarde para tomar suas

propriedades. A família dos Penteado utilizava jagunços para amedrontar e

expulsar os antigos proprietários, queimando barracos, destruindo paióis e

agredindo os camponeses.

Em 1958, e motivados pelas confusões em torno da propriedade da

terra, grande parte da família de Rosa se muda para o município de

Jacupiranga. Alguns parentes se envolveram na construção da BR 116,

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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enquanto outros se mudam para São Paulo. Aos que permaneciam, restava

enfrentar os desmandos dos que se diziam donos da propriedade.

Os jagunços impediam que os trabalhadores rurais plantassem ou

mesmo reerguessem novas casas nas proximidades. Os trabalhadores rurais

eram obrigados a migrar constantemente, e as perseguições se repetiam ano

a ano. Um dos jagunços mais conhecidos na região era Raimundo, bastante

temido pela postura violenta.

Antonio, sobrinho de Rosa, volta de São Paulo em 1968 e resolve se

organizar com outros camponeses locais para questionar a injustiça cometida

pelos grileiros da família Penteado. Marcelo Penteado denuncia os

trabalhadores à Polícia Militar de Eldorado, acusando-os de praticar agitação,

o que lhes render o nome de “O Grupo dos Doze” (Depoimento de Antonio,

2014). Antonio também conta que o Exército chegou a visitá-los diversas

vezes devido à confusão, para apurar a situação e “buscar relação entre o

grupo dos doze e os guerrilheiros” (Depoimento de Antonio). Contudo,

mesmo com as inúmeras visitas não se resolveu o problema.

Os camponeses recorreram ao Dr. Ribas, advogado de Jacupiranga,

que também passou a ser intimidado pelos jagunços da família Penteado e

acusado de estimular a agitação. Pressionado, acabou por abandonar o

caso.

Em 1972, a família Penteado vendeu parte da propriedade à

Guaribaldo Vilares, empresário paulista, que plantou mais 500 mil pés de

banana na propriedade. Com o insucesso da produção os Vilares deixaram

novamente a propriedade. Antonio e outros trabalhadores rurais do local

voltaram a ocupar a antiga propriedade. Foi a terceira confusão: Vilares não

teve medo de se utilizar da violência para reprimir os camponeses. Antonio

chegou a mencionar uma briga com um dos jagunços, onde teria golpeado o

preposto dos Vilares com a foice.

O quadro de terror e violência perdurou até o começo da década de

1990. Entre idas e vindas, novas ocupações e a continuidade da ameaça por

parte da família Vilares, a Comissão Pastoral da Terra começou a atuar na

região em 1992, auxiliando os antigos proprietários a recuperarem suas

terras. Hoje, parte da propriedade tornou-se um assentamento de reforma

agrária, reconhecido pelo INCRA.

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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Fontes:

Depoimento de Antonio. Agência Pública de Jornalismo investigativo. Sete

Barras, agosto de 2014.

Napalm no Vale do Ribeira: Operação Registro

A Operação Registro foi uma das maiores mobilizações da história do

II Exército. Foram empregados 2954 homens, entre membros do Centro de

Informações do Exército, regimentos de infantaria e pára-quedistas das

forças especiais, policiais militares, Polícia Rodoviária de São Paulo, do

DOPS e da Marinha para vasculhar a área e capturar 9 integrantes da

organização VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), comandados pelo

Capitão Carlos Lamarca, que instalou dois centros de treinamento de

guerrilha na área.

Segundo o relatório acessado pela Comissão da Verdade Rubens

Paiva1 , escrito pelo comandante do II Exército, General José Canavarro

Pereira - e minuciosamente comentado pelo General Ernani Ayrosa da Silva -

, a Força Aérea Brasileira também teria participado ativamente da Operação

Registro através da 1ª Força Aerotática, comandada pelo Brigadeiro Hipólito.

No dia 20 de abril de 1970, foram enviados 4 helicópteros - dois deles

com poder de fogo - e 4 aviões T-6 armados para a captura dos militantes. O

relatório menciona ainda aviões B-26, que realizaram os bombardeios na

região, sem dar nenhuma proteção aos camponeses.

A única medida de segurança adotada pelos agentes militares foi

proibir camponeses de entrar na floresta onde estavam os roçados, a caça e

o palmito, como contou Nelson Vieira numa reportagem recente (AGÊNCIA

PÚBLICA, 2014a):

O Exército, eles vieram de carro primeiro. Então pra nós aqui eles falaram: “Ninguém vai pro sítio. Não vão pra lá que o negócio nós vamos queimar esse mundo aí, porque nos vamos pegar esse

1 Disponível em https://www.dropbox.com/s/3z5lj0gbry7y1zv/docregistro.compressed.pdf?dl=0 , acessado em outubro de 2014.

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povo. Se vocês tiverem lá também vocês vão morrer” (Agência Pública, 2014).

Adilson Vieira Alves, pequeno proprietário da região de Cajati, tinha 8

anos quando aconteceu a Operação Registro. Afirmou que “ficou com mais

medo do Exército do que deles [os membros da VPR]” (AGÊNCIA PÚBLICA,

2014a). O medo era devido às práticas truculentas do Exército, que prendia

camponeses, torturava eventuais suspeitos, ameaçava membros da

comunidade com armas, etc. Valiam todas as táticas para achar os

guerrilheiros.

Eram comuns ofensas, práticas de torturas e xingamentos à população

como forma de impor medo e arrancar informações sobre o eventual

paradeiro dos membros da VPR.

Fizeram disfeita com a gente. Humilhavam. Chamavam de vagabundo, ladrão, bandido, “onde que estão os outros?”, “você é da raça”. Nós fomos maltratados pela Polícia. Depois eles trataram bem, depois que decifraram a coisa (Depoimento de Adilson, em AGÊNCIA PÚBLICA, 2014a).

Outros moradores também cometaram da intervenção dos militares

nas festas, comemorações e bebedeiras realizadas durante a ocupação da

região. Para outros camponeses, a chagada do Exército foi anunciada pelas

bombas:

O aviação tava aí mesmo. A bombaiada que jogaram nesse mato. Uuh! Tinha dias que esses jatões eram um atraz do outro (Depoimento de José Vieira, em AGÊNCIA PÚBLICA 2014a). Aí os aviões já fizeram esse rasante né, e já começaram a jogar bomba, nesse mesmo dia. - E você viu? - Vi, vi. - E como é que era? - Então, eles vinham em formação né, quatro, seis aviões [...], aí eles passavm por cima do morro, da montanha e do seu Manoel pra lá, eles faziam assim [desciam] e começava a descer, parecia ovo [bombas] né (..) e a gente escutava os estrondo (Adilson Alves, em AGÊNCIA PÚBLICA, 2014a).

Em parceria com a Agência Pública de Jornalismo Investigativo, a

Comissão da Verdade Rubens Paiva conseguiu encontrar dois estilhaços de

bomba, devidamente coletados e encaminhados ao Ministério Público

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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Estadual de São Paulo. Oficialmente, a Força Aérea Brasileira jamais

reconheceu que bombardeou áreas rurais povoadas durante a ditadura. No

entanto, em outro documento escrito pelo adido militar francês Yves Boulnois

em 1970, relatavam-se as táticas militares utilizadas pelos militares

brasileiros assim como o uso da bomba napalm pela FAB (AGÊNCIA

PÚBLICA, 2014b).

Assim, enquanto o II Exército tentava distanciar os jornalistas

brasileiros do palco dos acontecimentos, o adido francês tinha acesso livre e

acompanhou a Operação Registro com muito interesse durante um mês. Em

seu informe ao Ministério de Defesa francês, escrito em maio de 1970,

descreve tudo o que pôde observar no terreno, incluindo técnicas militares e

o material utilizado, já que um dos objetivos dos adidos era vender material

bélico da indústria francesa (Agência Pública, 2014b).

Os moradores do Vale do Ribeira não sabem, até hoje, a que perigos

foram expostos pela ditadura. Durante a permanência de nossa equipe no

município de Cajati, foram diversos os relatos de moradores que acharam

bombas (muitas até não detonadas), ou a exposição à componentes

químicos provenientes do interior das mesmas, que “pareciam enxofre”,

“ardiam os olhos” ou causavam algum tipo de desconforto.

Nelson Vieira, que chegou a trabalhar como mateiro para o Exército na

busca, ainda se lembra do dia em que dois militantes da VPR foram presos.

Eles chegavam aqui no pátio, tudo rasgado, aí ponhavam eles no chão assim algemado, com a cara no cascaio ali, “ó peguemos mais um aqui”. E iam lá as polícias, pegavam sanduíche e vinham do lado do cara e falavam pra ele, “quer um lanche?”, ele virava a cara, chacoalhava a cabeça assim, e falavam “táqui o lanche docê”, e péeim com aquela botinona na cara dele. Ai eles comiam o lanche. Dava dó. Era demais a judiação. Batiam demais. Não sei se deram um fim nesse povo (Agência Pública, 2014a).

O relato de Nelson é interessante por diversos motivos. O primeiro, e

talvez o mais óbvio, diz respeito ao conjunto das agressões e violências

cometidas pelos militares contra os membros da VPR. O livro Lamarca: o

capitão da guerrilha, escrito a partir de relatos e cartas escritas pelo próprio

militante comunista, aponta que os presos, por exemplo, eram deixados nus,

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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amarrados à estacas em pleno sol e ali permaneciam por vários dias

(EMILIANO e MIRANDA, 1984).

Outros camponeses comentaram o tratamento dado a Manoel, o

Maneco de Lima, então prefeito de Cajati e que seria o antigo dono do sitio

vendido à VPR, que foi barbaramente torturado e pendurado de ponta cabeça

numa árvore.

O segundo ponto interessante diz respeito à própria ocupação de

Nelson Vieira na época e o que ela nos revela: mateiro à serviço das Forças

Armadas. Isso significa reconhecer que no caso da Operação Registro, o

Exécito se utilizava do expediente de contratação de alguns moradores locais

para que servissem como mateiros nas caminhadas em meio às matas

densas e fechadas do Vale do Ribeira. E Nelson foi um destes trabalhadores

que, embora estivesse a serviço do Exército e convencido da má reputação

atribuida aos militantes da VPR, se compadeceu e reconheceu a truculência

dos grupos militares nos episódios de tortura e agressão contra seus

opositores.

Não obstante a prática, o General Ernani Ayrosa da Silva, avaliando a

execução da Operação Registro, chega a mencionar que o Exército não teria

lançado mão do expediente da contratação de “informantes locais” de forma

adequada:

É necessário ainda, que a Central de Informações disponha também de recursos financeiros para poder recompensar informantes da região e pagar agentes recrutados na área, que deixam de trabalhar para nos servir. Em alguns casos a informação tem que ser considerada como um produto que se compra com dinheiro (Relatório da Operação Registro, pág. 20).

Além da contratação dos “informantes locais” o Exército também atual

na localidade através das Ações cívico sociais (ACISOs), como forma de se

legitimar sua presença diante das comunidades do Vale do Ribeira. Nas

ACISOs o exército prestava assistência odontológica, mantinha contato

íntimo e estimulava a confiança e colaboração da população local. No

entanto, como pudemos ver nos relatos, dificilmente essa era uma postura

geral dos militares.

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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A combinação entre ACISO, relatórios, contrarrelatórios de avaliação,

dos gastos financeiros com informantes, da ação coordenada entre forças

policias e militares é indicativa do tamanho e importância dada à operação.

E o acesso à documentação oficial, combinada a relatos e

depoimentos, nos permite atentar para uma realidade mais complexa, cheia

de embates, de discordância e de múltiplas visões e discursos sobre o

acontecido. Muitos camponeses foram convencidos de que havia uma luta

entre o bem e o mal na região. Outros já se mostram mais insatisfeitos com o

tratamento rude e truculento empregado pelo Exército. Também ouvimos

histórias de que outros moradores locais teriam apoiado Lamarca e seu

grupo. Por outro lado, se o uso de agressão, de ameaças e da truculência foi

constante, também se empregaram táticas de convencimento e de

persuasão, como as ACISOs e o assalariamento temporário.

Por outro lado, o próprio relatório elaborado pelo Exército e

comentando pelos escalões superiores evidenciam a existência de estruturas

e hierarquias internas de coordenavam a execução desta e de tantas outras

operações. A busca de militantes contrários ao regime foi tão sistemática,

que no caso da Operação Registro, o general Ayrosa discorre, em

aproximadamente 20 páginas, sobre os diversos equívocos observados na

execução da campanha.

Fontes:

AGÊNCIA PÚBLICA. Napalm no Vale do Ribeira. Disponível em:

http://apublica.org/2014/08/napalm-no-vale-do-ribeira/ . Acesso em

10/10/2014.

AGÊNCIA PÚBLICA. Um torturador francês na Ditadura brasileira. Disponível

em http://apublica.org/2014/04/um-torturador-frances-na-ditadura-brasileira/,

acessado em outubro de 2014.

EMILIANO, Jose. MIRANDA, Oldack de. Lamarca: o capitão da guerrilha.

Global Editora, 1984

O Judiciário e a grilagem de terras no Vale do Ribeira

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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Moradores se queixaram, durante reunião do Sindicato de Trabalhador

Rural de Registro, no município de Eldorado, que grileiros tentaram se

apropriar de suas terras. O caso se arrastava na região desde meados da

década de 1970. Segundo os relatos o grileiro se chamava Abel Bernardino

dos Santos, era de Jundiaí e se utilizava de um “grupo de jagunços de

Eldorado” para “infernizar a vida do pessoal do bairro” (REALIDADE RURAL,

1980: 7). Cerca de 200 pessoas dos bairros de Pedro Cubas, Morangaba e

Onça Parda sofriam com as ameaças e intervenções à mando de Abel.

De acordo com a reportagem da FETAESP sobre o caso, em setembro

de 1980, o Forum de Eldorado “estaria engavetando os processos e

rejeitando até reconhecimento de firma (um tal de Márcio faz isso)” (idem). O

sindicato também denunciava Abel por ter cometido violência contra um dos

moradores.

Grilagem também na região de Juréia. A família Prado, vive há oito

gerações no município de Iguape. Dauro Prado conta que na década de 1970

a especulação imobiliária chegou na região. A família de Dauro teria sido

obrigada a ceder parte de sua propriedade, posto que os interessados

intimidavam e amedrontavam os moradores como forma de incentivá-los a

vender parte ou a totalidade das propriedades:

Obrigaram minha avó a vender a terra dela. Ela tinha escritura, escritura do tempo da Coroa, e falaram “Óh Dona Joana, você tem que vender sua terra, porque você não vai conseguir pagar os impostos, se você não vender pra gente outros caras vão pegar” [...] (COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”, 2014).

Como ela não sabia escrever, Dauro conta que os grileiros colheram

suas digitais, afirmando que levariam ao cartório de Iguape para regularizar a

transação. Trariam o dinheiro assim que finalizassem o procedimento. Os

dois homens voltaram no dia posterior trazendo um pouco de remédio e uma

pequena compra de supermercado.

Dauro conta que a família era proprietária de 600 alqueires que,

gradativamente, foram sendo apropriados por terceiros. Os novos

proprietários começaram a colocar jagunços armados para pressionar a

família de Dauro e outros moradores do local a sair das propriedades. Um

jagunço chamado “Ozuza” ficou bastante conhecido pelas práticas

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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extremamente violentas. Dentre elas estavam a queima de casas, de roças e

ameaças aos moradores. Tanto os avós como o pai de Dauro foram

obrigados a sair.

Em 1979, a Gomes de Almeida Fernandes (atualmente denominada

Gafisa), uma construtora paulista, adquiriu a região que continha as terras

griladas da família Prado. A empresa teria apresentado uma escritura de

compra do conjunto das propriedades. Como contrapartida ao

empreendimento planejado, a empresa cedeu 25% do território para o Estado

de São Paulo, como forma de mitigar os impactos do empreendimento que

seria construído na região. O território dos Prado, e de outras famílias, foi

loteado para a construção de moradias.

Fontes:

COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA.” Audiência Pública sobre a

repressão no Campo. Eldorado, junho, 2014.

Realidade Rural. Em Registro núcleos sindicais começam a acertar firma o

passo. Federação dos Trabalhadores rurais da agricultura do estado de São

Paulo (FETAESP), set, 1980: 7.

Não reconhecimento de direitos: posseiros de Miracatu

Cerca de 160 posseiros do bairro Vista Grande, no município de

Miracatu, foram alvo de ameaças e agressões por, pelo menos, 5 anos,

devido disputas pela posse da terra. As famílias organizaram uma comissão,

visando se queixar à Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado de São

Paulo (FETAESP), queixa que se transformou em reportagem no jornal da

entidade em março de 1981. De acordo com a FETAESP, as terras dos

proprietários originais já estavam cadastradas junto ao INCRA, mas sofreram

sucessivas investidas de um pretenso dono, chamado de Angelo Pappalardo,

que reivindicava a propriedade da área para plantar palmito e retirar madeira.

A maioria das famílias teria vindo de Minas Gerais, da cidade de São

Geraldo da Piedade. De acordo com a reportagem o jornal Realidade Rural,

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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[...] depois de oito anos que o pessoal estava na gleba do bairro Vista Grande, em Miracatu, depois que o pessoal abriu as estradas e separou os lotes em áreas de 10 alqueiras para cada família é que apareceu o tal de Pappalardo, residente da cidade de Pedro de Toledo, no litoral. (REALIDADE RURAL, 1981).

Um dos moradores relatou na época que Pappalardo aparecia com

papéis em branco, colhendo assinatura dos moradores locais e que,

inclusive, “teve companheiro que o homem enganou e tomou a assinatura”.

A maioria dos trabalhadores residia lá desde 1961. Passaram a

conviver com ameaças e agressões a partir de 1975, através de prepostos à

mando de Pappalardo. Os trabalhadores relataram que jagunços de Angelo

passaram a residir em alguns lotes já abandonados, tornado as ameaças

constantes. Angelo também acionava a Polícia Florestal, acusando os

trabalhadores a desmatar áreas nativas. Procurava inviabilizar a abertura de

novas roças e, consequentemente, a permanência das famílias.

Fontes:

Realidade Rural – FETAESP. Posseiros de Miracatu pedem apoio à

FETAESP. Edição de março, 1981: 6.

Assassinatos e impunidade em Iguape

Yoshio Muritani e seu amigo Sadao produziam bananas

conjuntamente, numa pequena propriedade em Iguape. Suas terras eram

alvo de disputas, e alegava-se que o principal interessado tinha o nome de

Otoniel de Almeida. Em 11 de junho de 1984, Yoshio e Sadao perderam 12

mil pés de banana, que teriam sido derrubados por Manoel Paixão, mais

conhecido como “Pancinha”, preposto à mando de de Otoniel (A TRIBUNA

DO RIBEIRA, 1986).

Yashio era uma importante liderança local, estimulando os demais

posseiros a trabalharem coletivamente. O Relatório de Atividades da Diocese

de Registro afirma que

Segundo amigos de Yoshio, ele queria criar uma cooperativa para exploração agrícola na área de Canela e Casqueira, porque acreditava que só assim conseguiria forças para continuar em sua

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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posse, na qual residia com a família havia mais de 15 anos [...] (O SÃO PAULO, 1986).

Em 11 de março de 1985, Yoshio e Sadão foram alvos de um

atentado, sendo baleados por Manoel Paixão, o "Pancinha". Sadao recebeu

quatro tiros, ficando permanentemente surdo. Yoshio recebeu dois tiros.

Otoniel de Almeida era o principal suspeito de ser o mandando do atentando.

Em 3 de janeiro de 1986, Yoshio foi encontrado morto, vítima de

facadas desferidas nas costas e na jugular, além da barriga aberta. Segundo

o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, foi instaurado um inquérito que

não puniu ninguém (MST, 1987, p. 476).

No mesmo município, Koishi Ise, era detentor de uma pequena

propriedade de terras, no bairro de Utinga Grande. Estava em casa no dia 15

de novembro de 1985 quando uma pessoa não identificada disparou um tiro

contra sua cabeça, enquanto lia no interior de sua casa. Após os disparos, os

suspeitos figuram num carro Volkswagen, que teria sido visto no dia anterior

rondando o bairro. Kioshe tinha sido jurado de morte por um antigo

proprietário das terras, conhecido como Genésio Vieira.

Fontes:

A Tribuna do Ribeira, 08/01/1986.

O São Paulo, 06/06, 13/06/1986.

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Assassinatos no campo:

crime e impunidade, 1964-1986. 2ª edição, Global. São Paulo, 1987.

Comunidade Quilombola é expulsa por mineradora

O quilombo de Peropava fica situado no município de Registro. Entre o

final da década de 1960 e início da década de 1970, toda a região foi palco

de inúmeras grilagens de terra, intimidações e violência contra as populações

rurais locais.

Clóvis e Maria, moradores do local desde a infância, relataram que a

mineradora SOCAL foi uma das principais responsáveis pelos inúmeros

confrontos travados e casos de grilagens de terra. A Revista Consultor

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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Jurídico (2012), citando uma ação rescisória efetuada pela Defensoria

Pública de São Paulo, afirma que por diversas vezes funcionários da

empresa teriam ido até Peropava para propor a compra de terras aos

camponeses. Quiseram até colocar um portão na estrada e foram impedidos

por um advogado amigo da família (idem).

Quando as negociações não davam certo, os funcionários da empresa

faziam uso da intimidação e violência. Maria, num depoimento prestado à

Comissão da Verdade, relata um dos episódios:

Eu tinha uns 10 anos [...] eu nasci em 59. Fomos expulsos, toda a minha família. Só ficaram duas famílias. - Qual o nome da mineradora? - SOCAL, né... A SOCAL. Pegou a maior parte dos terrenos, está tudo na mão dessa mineradora. Eu era criança, mas eu lembro que meu pai saia pra trabalhar, minha mãe. Eu ficava em casa com meus irmãos, e daí vinha aqueles caminhões e paravam bem em frente a casa. Falavam que iam queimar a casa, e eu pegava os meus irmãos e corria pro mato e ficava lá até até o pai e a mãe chegar, porque nós tinha medo. E eles pegaram a maior parte do terreno. Nós ficamos com um pedacinho que não dá pra fazer nada (Depoimento de Maria e Antonio, em COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”, 2014).

Grande parte dos camponeses, por conta das agressões e ameaças,

resolvem sair das terras que habitavam, passando a ocupar outra parte do

território, situada mais ao fundo do atual quilombo. Segundo o relato de

Maria, aproximadamente 15 das 40 famílias deixaram a comunidade a partir

da década de 1960.

Em 1972, os membros da comunidade conquistaram o título de

domínio da terra pelo governo do Estado de São Paulo. Contudo, como à

época não possuam recursos para se deslocarem até a cidade e pagar as

taxas cartoriais, os camponeses cederam cerca de 39 hectares a João

Augusto Aby-Azar, como forma de pagamento pela regularização das terras e

pela execução dos trâmites cartoriais. João Augusto Aby-Azar é citado como

advogado no caso, mas também como vereador de Registro entre 1948-

1951, segundo a Câmara Municipal de Registro (2011).

Maria relembra que após esse acordo e quitação das dívidas iniciais,

João Augusto Aby Azar começou a vender outras parcelas da propriedade:

E também tem uns “terceiros” que estão [hoje] no que é nosso. Meu avô tinha uns impostos pra pagar e como ele não tinha dinheiro [...] falou para ele [João Azar]: “você me dá uma parte eu

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pago o imposto.” Aí ele vendeu o pedaço. Esse homem que pagou o imposto foi vendendo. E quando vendia pra outros eles iam aumentando [o tamanho da propriedade vendida]. E foi assim que eles pegaram quase tudo (Depoimento de Maria e Antonio, 2014).

Os inúmeros casos de revenda das terras, irregularmente apropriadas

por João e outros compradores, também gerou diversos confrontos. Antonio,

conta um episódio envolvendo um familiar

Um tio meu foi assassinado lá por causa desse terreno. Esse terceiro, que vendeu a terra para o último que está lá [na propriedade], foi quem matou o meu tio. E depois que este último entrou lá também, ele trouxe o mesmo cara que matou meu tio para tomar conta do terreno dele. [...] Aí um dia ele foi lá em casa, com uma espingarda cartucho 28 e ameaçou meu pai: “olha, se vocês entrarem ali eu mato vocês” (Depoimento de Maria e Antonio, 2014).

Atualmente, alguns desses “terceiros” correm com ações judiciais

pedindo a usucapião de algumas propriedades irregularmente vendidas por

João Azar e seus revendedores.

Fontes:

CÂMARA MUNICIPAL de REGISTRO. 1ª Legislatura: 1948-1951, 2011.

Disponível em http://www.camararegistro.sp.gov.br/historia/legislaturas .

Acesso em out, 2014.

COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”. Audiência Pública sobre

repressão no Vale do Ribeira. Eldorado, junho, 2014.

Revista Consultor Jurídico. Ação rescisória quer reaver terras de quilombolas.

3 de maio de 2012. Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-mai-

03/acao-rescisoria-reaver-terras-quilombolas-interior-paulista . Acesso em

out., 2014.

O quilombo de Mandira e o discreto charme da burguesia paulistana

Os membros da comunidade de Mandira orgulham-se ao dizer: sempre que vocês encontrarem alguém de sobrenome Mandira, saberão que é daqui, que é parente nosso. Os moradores geralmente se atrapalham ao responder se a localidade se chama Mandira por cauda deles ou se eles se chamam Mandira devido à localidade, o que prenuncia a intrinseca e sólida relação entre espaço físico e a identidade observada na

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comunidade Mandira. A dimensão ontológica desta comunidade é definida quase como um prolongamento da terra, que seus membros ocupam e de onde vieram, compartilhando com ela a própria nominalidade. Este apreço pela condição de mandirano pode ser visto como um dos elementos responsáveis pelas consideráveis ocorrências de uniões endogâmicas na comunidade (TURATTI, 2002, p. 37).

É assim que María Cecília Turatti, antropóloga do Instituto de Terras

de São Paulo (ITESP) descreve a relação quase simbiótica entre os

quilombolas de Mandira e seu território. É do território que os mandiranos

tiram seu sustento: a palha para os telhados das casas, as plantas medicinais

para a cura física e espiritual, a água para as necessidades cotidianas, a

madeira para a construção, para fogueira, e até mesmo o nome que

denomina a estirpe negra da qual fazem parte. O território de Mandira, hoje

reconhecidamente um quilombo, fica no município de Cananeia, porção sul

do litoral de São Paulo, região do Vale do Ribeira.

Desde o século XVII a região recebeu africanos submetidos à

escravidão, explorados primeiramente na atividade de mineração e, mais

tarde, no cultivo do arroz. Há relatos de que desde então o local já servia

como locus de resistência, abrigando negros sem sobrenome que se

refugiavam na então chamada Serra de Mandira.

A origem territorial deste quilombo é remetida à figura de Francisco

Mandira, patriarca da comunidade, oriundo de uma relação “amorosa” entre

um senhor branco e sua escrava, cujo nome não se sabe ao certo

(ALMEIDA, 2012). Este primeiro mandirano recebeu o território em 1868 de

sua meia irmã, Celestina Benícia de Andrade, filha “legítima” de Antônio

Florêncio de Andrade, a qual doou um antigo sítio, denominado Sítio

Mandira, a seu meio irmão, totalizando cerca de 2.900 hectares. O contexto

abolicionista, somado ao pouco interesse dos herdeiros legítimos em

continuar com o negócio agrícola fez com que a terra fosse doada ao escravo

bastardo.

Com a morte de Francisco Mandira, décadas depois, seus dois filhos,

João Mandira e Antonio Mandira herdaram cada um metade do território. Ao

primeiro coube as terras altas, no topo da serra, enquanto que ao segundo

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couberam as terras baixas, situadas entre os rios Aracaú e Cambupuçava

(ALMEIDA, 2012).

Antonio Mandira e seus descendentes, com o tempo, desfizeram-se de

sua porção do território, enquanto que João Mandira se estabeleceu e criou

raízes na porção serrana. Décadas mais tarde, Mandira se tornaria palco de

uma escalada crescente de ameaçadas e assédios pela disputa da terra.

Em 1974, Amâncio Mandira, neto de João Mandira, é convencido

pelos sócios paulistanos Affonso Splendore e Aluísio de Assis Buzaid a se

desfazer do território, persuadindo os demais moradores para que tamém

vendessem suas propriedades aos empresários. O Relatório Técnico

Científico (RTC) produzido por Maria Cecilia Turatti chega a nominar os

prepostos subordinados aos empresários paulistanos: Jesuel, “um corretor de

imóveis de Registro” e “um policial florestal chamado Magalhães” (TURATTI,

2002, p. 27).

Consta ainda que Amâncio Mandira quis desistir do negócio, motivado

pela forte pressão dos outros mandiranos, mas os referidos intermediários lhe

ameaçavam constantemente, chegando a afirmar que, caso o fizesse,

“Splendore e Buzaid iriam atrás dele até no inferno” (idem).

Affonso Splendore, oriundo de uma família de médicos paulistanos, e

Aluisio de Assis Buzaid, filho do então Ministro da Justiça Alfredo Buzaid,

através de duas empresas, a Splendore e Associados Densenvolvimento

Econômico S. C. Ltda. e a Trepco Desenvolvimento Agrário Ltda., buscavam

consolidar a aquisição de terras na região do Vale do Ribeira. A euforia

imobiliária da região oferecia aos empresários paulistanos uma grande

expectativa de lucros com transações desse tipo.

Diante da compra de parte das terras e da resistência de alguns

mandiranos em abandonar seus territórios, Splendore e Buzaid, subta e

arbitrariamente, demarcaram 56 alqueires paulistas, aleatoriamente

distribuídos, e forçadamente reassentaram os moradores que se recusavam

a sair de suas propriedades. Inúmeras irregularidades foram notadas neste e

em etapas posteriores do procedimento cartorial, conforme descrito por Fábio

Almeida:

[...] os Mandira que resistiram à venda das terras e permaneceram em seu território foram iludidos pelo processo de regularização de

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suas propriedades e transformados pelo documento “Compromisso de Compra e Venda” em compradores de suas próprias terras. Os resistentes Mandiras, totalmente vulneráveis e submetidos às determinações dos especuladores só poderiam receber os alqueires referentes às suas partes se estes fossem localizados em uma das extremidades do território geral. Os novos proprietários não queriam os quilombolas habitando o meio de suas terras, por isso forçaram os que permaneceram a abandonarem suas casas, habituais áreas de plantio, os locais entre mangues e perto do rio utilizados como porto para as canoas e todos os espaços habitados [...] (ALMEIDA, 2012, p. 63-64).

Arbitrariamente, Splendore e Buzaid impuseram que os mandiranos

remanescentes abandonassem suas glebas. Providenciaram, com auxílio de

seus prepostos, a divisão das terras em lotes individualizados, numa

conformação espacial totalmente estranha ao modo tradicional de uso e

ocupação do território.

Parte dos Mandira que não se adaptaram às novas localidades - seja

pelo difícil acesso ou pelas precárias condições oferecidas à caça, pesca e

roçado - acabaram por se deixar o território. Alguns foram viver no bairro de

Porto Cubatão, onde hoje acham-se inúmeras famílias de sobrenome

Mandira.

Benedito Mandira, num depoimento a Delegacia de Polícia de

Cananeia, em 3 de abril de 2004, no bojo do processo de emancipação e

regularização da comunidade/território, comunicou que a procuração

outorgada a Amancio Mandira, e que resultou na venda do território aos

empresários paulistanos, continha ao menos duas assinaturas falsas: a sua e

a de sua esposa, que sempre foi analfabeta.

A Defensoria Pública de Registro também alegou que “outros

mandiranos prestaram depoimento, muitos negando [...] que haviam

consentido a venda de suas terras aos réus paulistanos” (DEFENSORIA

PÚBLICA DE REGISTRO, 2013, p. 31). Exames grafotécnicos posteriores

confirmaram a falsidade das assinaturas atribuídas a Benedito Mandira e sua

esposa, sem que, no entanto, se chegasse à autoria da fraude.

Numa petição de 18 de março de 2005, Affonso Splendore, em

resposta as denúncias atribuídas à sua pessoa e à de seu sócio, acusaria de

“criminosos” os denunciantes, chamando atenção para suas credenciais e

“antecedentes, quer civis ou criminais, ou mesmo empresariais”, bem como

advertindo sobre a influência e os relacionamentos que possuía, “os quais

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não teremos dúvidas em usar para fazer valer nossa honra, nossos direitos

[...]”. (DEFENSORIA PÚBLICA DE REGISTRO, 2013, p. 31-32).

Detalhe aparentemente insiginificante, a postura do empresário

paulista é expressiva das formas de atuação do Estado brasileiro na época,

seja por atuação direta ou pela omissão diante dos processos de grilagem de

terras e de violência contra as populações rurais.

Os contatos a que Splendore se referia, provavelmente, se referiam às

inúmeras relações estabelecidas com influentes nomes do mundo da política.

A família Buzaid, neste caso, é um forte exemplo. Tendo o filho do então

Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, como um dos sócios do negócio -

comprovadamente fraudulento -, Splendore apela para a força de seus

contatos, não só como forma de intimidar eventuais opositores, mas também

como forma de se desvencilhar das ilicitudes apontadas.

O assédio e a postura fraudulenta do negócio tocado pelo filho do

Ministro da Justiça e seu sócio Splendore, exemplifica os mecanismos sociais

pelos quais as arbitrariedades e violências eram estimuladas na época da

ditadura civil militar: conhecidos e amigos do regime, quando não nomes

diretamente ligados aos centros de poder e às instituições públicas, recorriam

indiscriminadamente ao uso da intimidação e da violência como forma de

fazer valer seus interesses, sem que se subornidassem à leis ou a direitos

constitucionais de outros grupos sociais. Já que membros do Estado, a

impunidade era garantida.

A ameaça, a violação de direitos e o recurso à violência como vias

para efetivar o favorecimento pessoal, dirigido à parcerios políticos ou

econômicos do regime, destituído de qualquer formalidade e contrapartidas

sociais, são repertórios recorrentes na cultura política brasileira. O caso

relatado, mais do que simples descrição de violências e violações, nos

permite refletir sobre um leque variado de relações, posturas e “modos de

atuação” estimulados pela própria Ditadura civil militar, sobretudo diante das

populações rurais.

Lista de Mandiranos que moravam no território na época do episódio de

grilagem (DEFENSORIA PÚBLICA DE REGISTRO, 2013):

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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- Arnaldo Mandira - Benedito Mandira - Benedita Gregório

Mandira

- Angelo Mandira - Augusta Mandira

Alves

- Enrico Bernardo

Coutinho

- Elza Mandira Alves - Deflino Mandira - Judith Mandira

- Amancio Mandira - Maria Mandira - Teodora Mandira

- Eugenia Mandira - Lauro Mandira - Maria dos Prazeres

Mandira

- Rosa Miguel Mandira - Laura Miguel

Mandira

- Antonio Mandira

Sobrinho

- Manria Bitencourt

Mandira

- Luiz Gonzaga

Mandira

- Eva Bitencourt Mandira

- Carmo Mandira - Venina de Souza

Mandira

- Tereza Mandira

Bitencourt

- João Bitencourt - Maria Egidia

Mandira

- Veronica Alves da Cunha

Mandira

- João Mariano - Elpidio Mariano - Henriqueta Mandira

- Lucio Vicente Mandira - Santina Ribeiro

Mandira

- Maria Izidia Mandira

- Andrelina Mandira

Domingues

- Gonçalo Domingues - Antonia da Silva Mandira

- Margarida Bitencourt

Mandira

- Florindo Mandira - Izoraide Mariano Mandira

- Frederico Mandira - Maria Mateus

Mandira

- Diva Bitencourt Mandira

- Cristino Mandira - Linha Cunha

Mandira

- Ambrósio Alves

- Maria Helena Mandira

Cunha

- Inazareth Cunha - Leopoldina Alves

Mandira

- Vernesio Mandira - Veronica Sergio

Mandira

- Henrique Mandira

- Andrlina Bordes

Mandira

- Rubens de Oliveira - Saturnina Mandira de

Oliveira

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- Maria Mandira Ribeiro - Antonio Bitencourt

Ribeiro

- Maria Vicente Mandira

- Angelina Mandira - João Elis Mandira - Luisa de Souza Mandira

- Antonio Maximiano

dos Santos

- Maria Benedita

Mandira dos Santos

- Leonel Madalena

Mandira

- Juracina Mandira - Maria Mandira da

Silva

- Trajano da Silva

Fontes:

ALMEIDA, Fabio Guaraldo. Arqueologia da Resistência e Etnoarqueologia no

Território Mandira. Municipio de Cananeia/SP. Dissertação de Mestrado em

Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, pp.

47-48.

DEFENSORIA PÚBLICA DE REGISTRO. Ação ordinária de tutela territorial

quilombola por meio da declaração de inexistência de negócios Jurídicos,

com pedido liminar de bloqueio de matrícula de imóvel. São Paulo, 2013.

TURATTI, Maria Cecilia Manzoli. Relatório Técnico Científico sobre os

remanescentes da comunidade de quilombo de Mandira/Canananeia-SP.

São Paulo: Fundaão do Instituto de Teras di Estado de São Paulo “José

Gomes da Silva” (ITESP), 2002, p. 37.

Negação de direitos: o Quilombo de São Pedro

A atual Associação dos Remanescentes de Quilombo de São Pedro

nasceu em 1980, quando ainda era chamada de Associação dos Moradores

do Bairro de São Pedro, município de Eldorado (ITESP, 1998). Elvira, atual

presidenta da entidade, conta que o processo organizativo nasceu da

intenção de “fortalecer a luta, procurar por direitos e lutar contra a violência

por parte dos grileiros de terra” que então ameaçavam a comunidade

(Depoimento de Elvira, em COMISSÃO DA VERDADE RUBENS PAIVA,

2014). A associação mudaria de nome anos depois, após se reconhecida

pelo Instituto de Terras de São Paulo como comunidade quilombola.

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Elvira afirma que em 1982, um fazendeiro passou a ameaçar a

comunidade de São Pedro, assegurando ser proprietário de 1.522 hectares

da propriedade quilombola. A partir de então, tiveram início inúmeros

episódios de perseguições e violência contra as populações tradicionais do

local. Elvira afirma que a comunidade de São Pedro já vivia alí há muitos

anos quando,

[...] Silvestre, Bartolomeu, Antonio Egídio, Joaquim, Ernesto, Erpídeo e Carlos da Silva foram assassinados em 3 de julho de 1982, defendendo nossas terras. João Antônio Egidio da Silva, que era seu padrasto [de Carlos] também foi baleado, só não morreu porque no momento foi levado ao pronto socorro de Pariquera e resistiu... [Depoimento de Elvira, 2014].

Elvira afirmou ainda que desde então a comunidade passou a

vivenciar continuamente outros episódios de “terrorismo” dentro da

comunidade. O próprio João Egídio, que sobreviveu ao atentado descrito

acima, morreu tempos depois “pelo mesmo motivo” (idem).

Fontes:

COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”. Audiência pública sobre

repressão no Vale do Ribeira. Eldorado, junho de 2014.

ITESP. Relatório Técnico científico sobre os remanescentes de quilombo de

São Pedro, no Vale do Ribeira, São Paulo. 1998. Disponível em

http://www.itesp.sp.gov.br/br/info/acoes/rtc/RTC_Sao_Pedro.pdf. Acesso em

outubro, 2014.

REGIÃO ADMINISTRATIVA DE RIBEIRÃO PRETO

DEOPS, a repressão às Ligas e a militantes comunistas

Com receio em relação ao ascenso do Partido Comunista Brasileiro

em São Paulo, e sob uma forte pressão do então Presidente Eurico Gaspar

Dutra, o Supremo Tribunal Eleitoral cancelou o registro partidário do PCB em

7 de maio de 1947. Segundo Welch (2010), Dutra teria ameaçado Adhemar

de Barros com uma intervenção “a menos que ele ordenasse que sua polícia

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desmantelasse o partido e seus grupos filiados, confiscando documentos e

prendendo militantes” (WELCH, 2010: 145).

Em 9 de maio, a polícia invadiu o partido na sede da União Geral dos

Trabalhadores (UGT) em Ribeirão Preto, confiscando materiais, inclusive

“seis convites vermelhos para os Trabalhadores Rurais de Barrinha”, um

estatuto para os “trabalhadores Assalariados Agrícolas” e dois recibos

mensais da Liga Camponesa de Dumont.

Num intervalo de um dia, a polícia militar também invadiu a casa dos

país de João Guerreiro Filho, militante comunista da região. Lá também

houve confisco de materiais políticos. Outros seis policiais saquearam a casa

do camponês Pedro Salla, embora não tenha sido “encontrado nenhum

documento” (WELCH, 2010: 145). Em entrevista, Pedro Sallas mencionou

impactos da perseguição ao cotidiano familiar: “Ela [sua esposa] me

repreendeu muito [...]. O trabalho me afastava demais da minha família e ela

estava com medo que eu fosse preso” (Depoimento de Pedro Sallas, em

WELCH, 2010).

No mesmo contexto, João Rojo, natural do município de Jaú, era

ferroviário e militante do Partido Comunista Brasileiro. Foi preso em 29 de

julho de 1949 acusado de comunismo. Em busca realizada em sua

residência, na cidade de Pitangueiras, a polícia apreendeu boletins de

propaganda considerada subversiva, jornais e cartas. No prontuário do

DEOPS também consta a informação de que como militante, dedicava-se a

distribuição dos impressos “Notícias de Hoje” e “a Crítica”.

Segundo o DEOPS, os materiais foram distribuídos na Fazenda Santa

Vitória e na Usina São Vicente, ambos em Pitangueiras. Segundo o

documento, o objeto da distribuição dos materiais era “incitar a greve entre o

operariado agrícola” (SILVA, 2003: 134). Foi libertado em 9 de agosto do

mesmo ano.

Já em 23 de fevereiro de 1948 João Rojo teve seu nome incluído

numa relação de comunistas da região de Barretos e em uma relação de

distribuidores de jornais comunistas. O prontuário do DEOPS de Barretos é

90575.

Em Serrana, a serviço do PCB, Saviero estabeleceu-se na fazenda

Martinópolis, no ano de 1953 e tentou mobilizar os trabalhadores em uma

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organização trabalhista. No entanto, quando estava em vias de estabelecer o

sindicato, foi preso pelo DEOPS, sendo interrogado sobre a atividade

“subversiva” e sua possível filiação comunista. Permaneceu preso por 2

meses, sendo liberado após o DEOPS entender que o proprietário da

fazenda estava realmente fora da lei em relação aos baixos salários.

Fontes:

SILVA, Emiliana Andreo da. Despertar do campo: Lutas camponesas no

interior do Estado de São Paulo. São Paulo, Arquivo do Estado, Imprensa

Oficial do Estado de São Paulo, 2003.

WELCH, Clifford Andrew. A semente foi plantada: as raízes paulistas do

movimento sindical camponês no Brasil, 1942-1964. 1ª edição, São Paulo.

Expressão Popular, 2010.

Pressões e exílios.

Dirigentes sindicais rurais de Ribeirão Preto, Cravinhos e Pontal, no

dia 29 de agosto de 1979, ou viram da Subdelegada do Trabalho da região

de Ribeirão Preto, Aluíza Pélicom, que a entidade não fiscalizaria o

cumprimento dos acordos coletivos entre usinas e organizações sindicais.

A subdelegada do trabalho afirmou, durante reunião com os sindicatos,

que o motivo da não fiscalização se dava em função da série de ameaças

que estaria sofrendo dos empreiteiros da região. Segundo cálculos feitos pela

Federação dos Trabalhadores Rurais (FETAESP), cerca de três mil

trabalhadores seriam prejudicados.

Assim como houve pressões a funcionários, a professora da

Faculdade de Serviço Social de Lins, Nobuco Kameyama foi perseguida e

teve que se exilar na Bélgica, fugindo com a ajuda do Bispo Dom Pedro

Paulo. A perseguição se devia ao trabalho desenvolvido por Nobuco aos

trabalhadores rurais da região de Jales e Andradina, em especial os

assalariados temporários da cana de açúcar.

Nobuko era assistente Social, Doutora pela École des Hautes Études

em Sciences Sociales (Paris, 1978) e Professora Titular da Escola de Serviço

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Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu trabalho era voltado

para a organização dos trabalhadores rurais da região. Estudou Serviço

Social na Faculdade de Serviço Social de Lins (SP), onde foi professora por

um longo período. Foi ainda nessa cidade a primeira diretora do Instituto

Paulista de Promoção Humana (IPPH), com o Pe. Augusti, onde iniciou seu

trabalho social no campo da organização dos trabalhadores rurais, em

especial os voltantes do corte de cana.

Em audiência à Comissão da Verdade Rubens Paiva, Maria Aparecida

Trazzi Vernucci da Silva fez um relato emocionado sobre a trajetória de

Nobuko Kameyama, explicando os motivos da sua perseguição por parte do

regime militar:

Muito lhe devem os cortadores de cana, os sem-terra, os grupos e movimentos de mulheres, entre elas lavadeiras e empregadas domésticas. Por estar sofrendo ameaças dos militares, Dom Pedro Paulo, bispo local, enviou-a para estudar em Louvain, na Bélgica. Depois de um tempo ela se transferiu para Paris, onde concluiu seu doutorado em sociologia, estudando a mobilização e a organização dos lavradores na região de Jales e procurando entender melhor as condições de vida, de trabalho e as lutas sociais dos camponeses. Esteve presente na criação e organização do Partido dos Trabalhadores em Lins, pelo qual foi candidata a deputada estadual. Saindo de Lins, Nobuco assumiu a escola de formação política do PT em Cajamar (SP). Trabalhou na pós-graduação de Serviço Social da PUC de São Paulo e depois assumiu a pós-graduação nessa mesma área na Universidade Federal do Rio de Janeiro (COMISSÃO DA VERDADE RUBENS PAIVA, 2014).

Fontes:

Entrevista à imprensa, O Diário de Ribeirão Preto, sem data mencionada

(provavelmente ago/set).

Realidade Rural. Federação dos Trabalhadores da Agricultura em São Paulo.

Out/1979, p. 4.

COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”. Audiência Pública sobre a

repressão no campo. São Carlos, setembro, 2014.

A prisão de Celso Ibson de Syllos, Antônio Crispim da Cruz, Irineu de

Moraes, Nazareno Ciavatta e Mário Bugliani

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No período pré golpe de 1964 já ocorriam perseguições as lideranças

rurais de Ribeirão Preto, especialmente àquelas vinculadas ao Partido

Comunista Brasileiro (PCB). Os registros sobre Irineu Luiz de Moraes,

conhecido como Índio, segundo relato de Cidinha Santos “um homem alto,

magro, voz forte, feições de indigena. Era inconfundível numa multidão. Tinha

um jeito original de contar histórias, um sorriso largo e uma gargalhada

sincera e uma personalidade forte”. Ele passa a ter contatos com militantes

Comunistas em Araraquara no ano de 1933. Em 1935, é preso com esse

grupo.

Na década de 1940, participou na organização da Liga Camponesas

de Dumond. No início dos anos sessenta, Índio continuava junto com seus

companheiros de PCB, na luta dos trabalhadores rurais, na União dos

Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) e urbanos pela

UGT (União Geral dos Trabalhadores), sendo o homem do campo, a

preferência de seu trabalho. Segundo registros Índio teria sido perseguido

pelo DEOPS em 1963, sob acusação de “subversão” e de “ameaça à órdem

pública” (TERRA LIVRE, 1963). A polícia estadual chegava a parar ônibus

para tentar capturar o militante. Com a desarticulação e destruição das

organizações políticas após o golpe de 1964. O partido passa por profunda

luta interna, e Irineu com outros companheiros partem para dissidência com

Carlos Marighella, na ALN (Ação Libertadora Nacional). Em 1969 foi preso e

barbaramente torturado, sucedenso-se mais prisões. Ao longo de sua vida

de militante, Irineu (Indío) teve aproximadamente umas 20 prisões, algumas

mais longas, outras somente para declarações aos orgão de repressão. Em

1970, após ser submetido a sessões de choques, pancadas, murros e urros

de dor, na Operação Bandeirante, é solto para morrer, pelo estado precário

com cabeça, braços e pernas enfaixados, colocado em um vagão para o

interior. Consegue chegar em Ribeirão Preto, ser operado, e salvar-se. No

final da década de 1970, após sofrer um atropelamento, mesmo com

dificuldades de locomoção, participou da campanha de venda de bônus para

os operários em greve em 1979, no ABC.

Nazareno Ciavatta, também militante do Partido Comunista Brasileiro,

outra liderança perseguida no período pré-golpe de 1964 foi o primeiro

presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ribeirão Preto. Na

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década de 1950, Ciavatta sofreu cinco processos judiciais que traduziram as

perseguições por atuar junto aos trabalhadores da lavoura. Em 26 de março

de 1955, o fazendeiro Quintino Facci, contando com apoio da polícia militar e

civil, montam um flagrante para prisão de Nazareno, sobre acusão de

agressor e baderneiro, sendo incurso na Lei de Segurança Nacional . Forma

que encontraram para impedir a ação do sindicato em transmitir aos

trabalhadores da lavoura seus direitos. Não conseguindo este intento,

tentaram processá-lo por estelionato alegando que o sindicato não tinha

existência legal. O fazendeiro interrogou e constrangeu dentro das

dependências da delegacia os trabalhadores levados presos, como ameaças.

Este primeiro processo lhe valeu três meses de prisão, condenado por

lesões corporais e resistência, na sentença de 06 de dezembro de 1957,

Concedido “sursis”, para que não fosse para cadeia. Durante o cumprimento

da pena teve seus direitos políticos suspensos por cinco anos, pois Nazareno

era um potencial canditato a cargo público eletivo em 1958, isto preocupara o

poder local e regional.

Em 17 de maio de 1955, quando ainda se encontrava preso pelo

primeiro processo, Nazareno é acusado por ser responsável pela distribuição

de panfleto, onde são feitas denúnicas contra autoridades e fazendeiros, em

particular Quintino Facci. Em 08 de agosto de 1955, outro inquérito é

montado novamente tentando incriminá-lo pela Lei de Segurança Nacional.

Em 22 de Fevereiro de 1957, Nazareno é acusado novamente por

estelionato, sob alegação de que o Sindicato não havia sido reconhecido pelo

Ministério do Trabalho. Este processo começa quando ele encaminha um

Ofício para o Delegado de Polícia da cidade de Guará, solicitando devolução

de nove carteiras de associados do sindicato e que residiam e trabalhavam

em fazendas daquela cidade. Assim, no prazo de doi anos, Nazareno,

respondeu por cinco processso, o que afetou sua vida familiar, de amigos e

companheiros, transformando num grande transtorno. Em 01 de abril de

1964, trabalhava como furador de buracos na rua, para prefeitura municipal,

foi preso e levado para o Quartel de Polícia Militar de Ribeirão Preto, passou

por interrogatório, e forte pressão psicológica. Por trinta dias a família ficou

sem informações de Nazareno. Não existe data de sua saída.

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Mário Bugliani era outro militante constantemente ameaçado.

Vinculado ao Sindicato de Trabalhadores Rurais de Pontal, era procurado por

subverão e “ameaça a ordem pública”. De forma semelhante às ameaças

proferidas à Irineu de Moraes, Mario Bugliani já era intimado desde março de

1963 (TERRA LIVRE, 1963).

Em maio de 1964, no pós golpe, Padre Celso Ibson de Syllos, membro

da Frente Agrária Paulista, organização da Igreja Católica fortemente atuante

na sindicalização dos trabalhadores rurais em alguns municípios vizinhos à

Ribeirão Preto, teve de se esconder em um santuário franciscano, em

Petropólis, por três meses, por ter se colocado em oposição ao golpe. De

volta à cidade de Ribeirão Preto, mesmo sem nenhum mandado, o padre foi

levado à prisão e colocado junto a outros opositores (WELCH, 2010).

Antônio Crispim da Cruz, do Sindicato Trabalhadores Rurais

Cravinhos, e Otávio Sampaio do STR de Batatais, também foram intimidados,

todos a mando de um fazendeiro local. No caso, Crispim teve a casa invadida

pela polícia:

Os militares intimidaram líderes da frente agrária, como Otávio Sampaio, de Batatais, e Antônio Crispim da Cruz, de Cravinhos, mas, no final, permitiram que continuassem a exercerem as funções de presidentes de seus respectivos sindicatos. Na verdade, se por um lado os militares destruíram a Supra, fecharam centenas de sindicatos, e forçaram os comunistas notórios a buscarem a clandestinidade, por outro eles não arrancaram totalmente as árvores do movimento camponês […]. Nas recordações de Crispim a respeito do golpe, a legitimidade fundamental do movimento merece destaque. No dia 1º de abril, a polícia chegou a sua casa orientada por seu patrão, o proprietário da Fazenda São José de Colônia Preta. Como sua casa servia de escritório do sindicato, a polícia revirou-a, recolhendo papéis e quebrando os móveis, em busca de documentos escondidos, armas e explosivos. Eles levaram Crispim à delegacia de Ribeirão Preto, onde diversos agentes do Deops o interrogaram. Para cada acusação, ele protestava não ter feito nada de ilegal. O fazendeiro que o tinha denunciado é que havia violado a lei, ao maltratar seus empregados, pagando mal, e “até proibiu o padre de entrar na fazenda pra socorrer uma família lá que estava passando fome”. Nas memórias de Crispim, essa acusação transformou a polícia de inquisidores em advogados. “O capitão do exército pegou e perguntou para ele se era verdade tudo que eu estava dizendo, ele pegou e disse: Infelizmente é verdade”. Aparentemente, a polícia considerou as acusações de Crispim emocionantes e legítimas, porque, algumas horas depois, ele foi liberado para ir para casa (Welch, 2010, p.414).

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O caso mostra não só a virada da polícia local após o relato de Crispim

relação aos verdaderiso culpados pelos conflitos, mas também a forma pela

qual a relação entre expoentes fazendeiros e organizações policiais de

davam. No caso de Crispim e Padre Celso Ibson de Syllos, as prisões eram

feitas tendo como suporte a indicação de fazendeiros.

Fontes:

SANTOS, Maria Aparecida dos , Irineu Luiz de Moraes ou Irineu de Moraes,

breve notas. Texto inédito.

WELCH, Clifford Andrew. A semente foi plantada. Expressão Popular. São

Paulo 2010.

TERRA LIVRE. Ribeirão preto: líder camponês Irineu de Moraes ameaçado

de prisão. Março, 1963.

TRIBUNA DE RIBEIRÃO, Entrevista com Claudinei Nacarato, 07 dezembro,

1996.

Assassinato e perseguição: o conflito social de Guariba

Em julho de 1983, as usinas da Região de Guariba modificaram o

sistema de trabalho no eito dos canaviais. Até então, cada trabalhador

recebia cinco ruas para cortar, devendo amontoar a cana na rua do meio.

Com as modificações propostas pelos usineiros, eles passaram a receber

sete ruas, o que significava ter que andar mais três metros com a cana

cortada nos braços para poder soltá-la (BARONE, 1999). Isso diminuiu a

produtividade de seu trabalho e, consequentemente, tornava o trabalho ainda

mais exaustivo, além de reduzir o rendimento ao final da jornada.

Diversos atores, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e

sindicatos de trabalhadores rurais, lideranças de partidos políticos

questionaram o sistema de sete ruas e fizeram a denúncia publicamente. “A

partir dessas articulações, surgiram as 14 reivindicações que os Sindicatos

dos Trabalhadores Rurais da região tentavam negociar com os patrões, pelo

menos noventa dias antes da revolta de 15 de maio de 1984”. (PENTEADO,

1995, p. 41). Eram comuns que estes atores fossem frequentemente

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proibidos de entrar nas fazendas para fiscalizar as medições do corte. Um

dos mediadores locais, num relato, descreve o clima de ameaça constante

aos trabalhadores que optavam por reivindicar melhores nas condições de

trabalho:

No alojamento, o trabalhador não tem liberdade nenhuma. [...] Um dia que estava em Guariba, um colega meu disse que a Usina tinha ameaçado mandar ele embora porque ele tinha entrado em contato com a gente, conversado com a gente e que é proibido até parente entrar no alojamento. A gente fica igual que numa senzala na época da escravidão. Trabalhador tá no cativeiro ainda (NOVAES e ALVES, 2001).

Não bastasse a exploração e a privação de liberdade, houve um outro

fato que de alguma forma resultou no estopim da greve de 1984: uma

mudança no cálculo da taxa de água e esgosto por parte da SABESP

(Saneamento Básico do Estado de São Paulo). A cota de consumo para a

cobrança da tarifa mínima foi aumentada, o que fez com as contas de água

tivessem aumento enorme. Como afirma Barone (1999), tal situação levou a

disparates nas contas de água de uma população que iniciava a safra de

1984 certa de que já estava sendo lesada com a implantação do novo

sistema de corte de cana. Com essas mudanças, conforme a grande

imprensa da época, um trabalhador do corte da cana gastava cerca de 40%

do seu salário pagando contas de água. Somava-se ainda a isso, a questão

do transporte precário a que eram submetidos os trabalhadores, em

carrocerias de caminhões conhecidos como “pau de arara”.

No dia 14 de maio, 17 turmas de cortadores de cana interromperam o

trabalho nas fazendas da Usina São Martinho. Em 15 de maio de 1984, os

trabalhadores feharam as principais saídas da cidade com piquetes

impedindo a passagem de caminhões com os bóias-frias que iriam para as

fazendas das Usinas Santa Adélia, São Carlos, Bomfim e Santa Luzia, além

da São Martinho. No mesmo dia, o escritório da SABESP foi queimado pelos

trabalhadores revoltados.

O amanhencer da quarta-feira revelou o clima tenso que ainda pairava no cotidiano dos cidadãos guaribenses. As casas comerciais permaneceram com suas portas fechadas, havia perspectiva de faltar alimentos, principalmente nas casas dos trabalhadores. Os piquetes aconteceram por todos os cantos da

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cidade, ainda fortemente patrulhada pela milícia. (PENTEADO, 1995, p. 44, grifo nosso).

Por volta das 11 horas daquela manhã, duzentos homens do Batalhão

de Choque da Polícía Militar, vindos de Araraquara, iniciaram a repressão. A

Folha de São Paulo em 16 de maio de 1984 relatou o seguinte ocorrido:

Um grupo entre 150 e 200 policiais foi enviado dos municípios vizinhos (Ribeirão Preto, Araraquara, Bebedouro, Jaboticabal e outras). Quando tudo estava tranquilo, o grupo comandado pelo Major Fábio (de Araraquara), atacou com bombas e tiros, causando ferimentos e morte de um espectador. o Secretário de segurança pública de SP, Michel Temer, afirmou que manterá as tropas na cidade para evitar novas ações dos trabalhadores. O comandante do policiamento do interior, Coronel PM Bonifácio Gonçalves, afirmou que as tropas não teriam sacado suas armas.

Conforme depoimento de Francisco Alves em audiência para o Grupo

de Trabalho da Comissão Estadual da Verdade, os usineiros responderam à

greve associando-se a uma empresa de nome Imagem, responsável pela

publicidade do setor. Essa empresa entrou em contato com o então

governador do Estado de São Paulo, Franco Montoro e estabeleceu acordo

para pagamento de serviço extra aos batalhões da polícia militar com vistas à

repressão da greve. Os usineiros teriam pago soldo extra, bem como

alimentação e alojamento para que os batalhões pudessem reprimir como

milícia armada dos usineiros qualquer foco grevista. Esse uso da polícia

militar para fins privado e de repressão se repetiu também no ano de 1985,

1986, quando ondas grevistas se repetiram no interior do Estado (Comissão

da Verdade “Rubens Paiva”, 2014).

Após cinco horas de levante, a revolta do dia 15 foi contida, totalizando

trinta pessoas feridas (sendo quatoze à bala) e uma morta. A ocupação de

Guariba pela polícia militar resultou na morte de Amaral Vaz Meloni com um

tiro na cabeça. Meloni era um metalúrgico aposentado de sessenta anos que

observava e apoiava os trabalhadores piqueteiros . O processo judicial

instaurado sobre o homicídio até hoje não foi localizado (MENDES, 1999).

Nele é apresentada denúncia da SABESP e de Cláudio Amorim, referente a

destruição da autarquia e saque do supermercado, respectivamente. É

possível que conste neste processo os inquéritos policiais com a denúncia de

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homicídio. Uma vez que os arquivados na delegacia da cidade, segundo

relato do atual delegado de Guariba, foram destruídos em incêndio

provocado em rebelião na cadeia, no início da década de 1990. Pesquisas

realizadas no primeiro semestre de 2014, no Fórum da Comarca de Guariba,

apontaram que no livro Registros de Feitos (17.01.1978 a 19.12.1990), o

Processo Judicial no qual consta o Inquérito Policial aberto em 18 de junho

de 1984, foi encaminhado para Justiça Federal. Em setembro tentou -se

peticionar o desarquivamento do processo, porém a recusa do distribuidor

gerou o posicionamento da Vara Penal, pela emissão da Certidão de Objeto

e Pé, pronunciando-se que o processo da Greve de Guariba ainda está em

curso em Brasília, sem especificar em qual Tribunal Federal. (ARONI, 2014)

Além da repressão aos piquetes realizados pelos trabalhadores,

Francisco Alves contou que os batalhões da polícia se dirigiram aos bairros

onde rezidiam os bóia-frias, espancando diversas famílias dentro de suas

próprias casas. O trabalhador Domingos Dias Bicalho, por exemplo, foi

espancado por cinco policiais. No documentário Guariba 84 (NOVAES e

ALVEZ, 2001) é possível ver cenas de pessoas sendo espancadas por

policiais, casas sendo invadidas por eles e moradores sendo espancados

dentro das próprias casas: “A polícia chegou dentro de casa. Mas foi uma

chuva de couro em quem tava dormindo. [...] Bateram em todo mundo. Até

rapaizinho que era de menor apanhou no dia. (idem)”.

Nos dias que se seguiram, dez mil trabalhadores em Guariba se

mantiveram em greve.

Ao longo da década de 1980 milhares de trabalhadores rurais de toda

a região se mobilizaram, fazendo novas exigências e pedindo o cumprimento

de antigos acordos. Em 1987, por exemplo, mais de cem mil trabalhadores

de 42 municípios entraram em greve. Eles deixaram claro que, na nova era

democrática, os trabalhadores volantes de São Paulo esperavam tratamento

igual àquele dispensado aos trabalhadores rurais permanentes, mostrando a

sua determinação em definir a democracia como a rejeição da condição de

marginalidade a que a ditadura militar os havia condenado (Welch, 2010).

O padre José Domingos Bragheto, à época membro da CPT de

Jaboticabal, relata ameças vivenciadas durante os conflitos de Guariba:

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Eu, pessoalmente não estava lá em Guariba no dia da eclosão do movimento […]. Ao ser informado pelo secretário da CPT a respeito da eclosão da greve, rumei para Guariba chegando no dia seguinte. O clima ainda era muito tenso (…). A repressão que já agira no dia da greve (…), ameaçavam com voos rasantes de helicóptero junto à assembleia dos trabalhadores. O clima era aterrador e de revolta. A imprensa oficial notadamente de direita, como revista VEJA e o jornal O Estado de São Paulo, conspiravam contra os trabalhadores e colocavam a culpa em mim pelos acontecimentos, o que me deixou muito aborrecido, pois procuravam deslegitimar a classe trabalhadora, como sendo incapaz de agir por conta própria. Nos piquetes da greve, que durou dias é que a repressão se fez sentir mais forte pela Policia Militar. Vários batalhões foram direcionados a Guariba, que praticamente ficou sitiada. No bairro chamado "João de Barro", sofremos a repressão forte. A PM com sua tropa de choque avançou sobre os trabalhadores, que dispersaram. Como eu estava junto levei uma surra forte e fiquei alquebrado no chão. Não contentes, a tropa avançou sobre as casas dos trabalhadores e bateu neles dentro de suas próprias casas, num flagrante abuso dos direitos humanos. Vários ficaram feridos. Tive que me refugiar na sede do sindicato em meio aos gases das bombas de efeito moral […]. No entanto, o acordo foi alcançado (BRAGHETO, 2014).

Na esteira da greve de Guariba, também em 1985 vários trabalhadores

da Região de Ribeirão Preto entraram em greve por direitos, como por

exemplo, 100 mil apanhadores de laranja de Bebedouro. Lá também a

repressão se fez sentir, como apontou Bragheto.

Num dos piquetes a noite, a tropa de choque investiu contra eles e os dispersou. Nesta noite fui cercado pela PM, recebi além de uma cacetada na cabeça, a voz de prisão. Detido, fui levado para a delegacia de Bebedouro. A Diocese de Jaboticabal, na pessoa do bispo D. Luiz Eugenio Perez (já falecido), enviou no dia seguinte um advogado que conseguiu me liberar. Mas a repressão não terminou. Em Pitangueiras durante essa greve, os trabalhadores eram presos na rua e nos bares, indiscriminadamente. Até mulheres boias-frias apanhavam da Polícia militar. A cidade também ficou sitiada.

Em Audiência da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva,

12.11.2014, em Ribeirão Preto, Padre Bragueto relatou sua posição de

fundar sindicatos de luta pelos trabalhadores, os quais sofreram infiltração de

policiais, que culminou em sua prisão ao dar apoio aos piquetes. Além de

suas atuações posteriores as greves de Barrinha, em 1985, quando passou a

sofrer ameaças de morte pelo setor patronal e de ex-sindicalistas, o que

levaram ao auto-exílio.

Fontes:

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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ARONI, Rafael. A greve de Guariba (1984) no imaginário sociológico de

estudantes secundaristas, Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v.3,

n.3, prelo.

BARONE, Luis Antonio. A economia moral num mundo de agricultura

modernizada: o caso da greve dos boias-frias de Guariba. Em: Retratos de

Assentamentos. Ano 5, nº 7, 1999.

BRAGHETO, José Domingos. Depoimento à Comissão da Verdade Rubens

Paiva, 2014.

COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”. Audiência Pública sobre a

repressão no campo. São Carlos, setembro, 2014.

NOVARES, Roberto e ALVES, Francisco. Guariba 1984. Universidade

Federal de São Carlos, 2001. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=3aLBbG6iIqI. Acesso em novembro de

2014.

PENTEADO, Maria Antonieta. Estratégia da fome: trabalhadores e

trabalhadoras da cana, maio de 1984. Dissertação de Mestrado, Campinas,

SP, 1995. 232pp.

WELCH, Clifford Andrew. A semente foi plantada. Expressão Popular. São

Paulo 2010.

REGIÃO ADMINISTRATIVA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS

Negação de direitos nos investimentos públicos: a inundação de

Natividade da Serra

Este relato retrata fatos ligados à construção de grandes obras durante

a ditadura militar, a ação autoritária do Estado Brasileiro e de seus entes

federados, bem como o agravante de naquele período da História do país

não existir a obrigatoriedade de se realizar estudos de impactos ambientais,

ou seja, além de reprimidas, as populações impactadas não tiveram direito a

nada.

O caso de Natividade da Serra é emblemático porque à época da obra

houve um consenso entre os ditadores, seus nomeados no Estado, a

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sociedade estadual e da região em torno do empreendimento. Este quadro

deixou a cidade de Natividade ainda mais isolada.

Nos planos governamentais a proposta era que a cidade, localizada na

região da Serra do Mar do Vale do Paraíba paulista, simplesmente deixasse

de existir. Isto só não ocorreu porque a população e o poder local decidiram

ao seu modo resistir e construir a nova cidade à revelia das autoridades.

O caso nunca foi tratado sobre o ponto de vista da reparação dos

diferentes direitos usurpados, tampouco das compensações para apoiar a

reorganização da vida das pessoas afetadas e a retomada do

desenvolvimento do município. A estimativa é que aproximadamente 5 mil

pessoas (nas zonas rural e urbana) tenham sido afetadas.

A construção de grandes obras, nos anos 70, constituíram-se em um

marco histórico no qual, na maioria das vezes, acentuou as disparidades

econômicas e sociais existentes. A construção de usinas hidrelétricas

resultou, até 1995, em mais de 29.000 km2 de terras inundadas e, na

expulsão ou deslocamento de cerca de 200 mil famílias, em sua maioria

ribeirinhos, indígenas e agricultores. Esta população, na maioria das vezes,

contou com pouca ou nenhuma capacidade de reação frente aos prejuízos

ocasionados (Ab'Saber, 1998; Bermam, 1995).

A construção da Represa de Paraibuna é mais um exemplo de como

se justificam os grandes projetos. Para os que apoiavam a obra ela

representava a criação de empregos e progresso, mas para os moradores de

Natividade da Serra essas eram uma "abstração", pois trouxe apenas a

inundação de sua cidade, a migração forçada e a perda de suas melhores

terras sem gerar nenhum benefício. Os estudos e documentos das

consultorias que projetaram a obra deste reservatório referiam-se à região

como se esta fosse um território despovoado, a alusão ao município de

Natividade foi quanto à necessidade de deslocamento de sua população já

que estas terras seriam inundadas.

Para reconstituir este episódio foi necessária a realização de

entrevistas com a população local, pois naquele período, esta questão não

repercutiu na imprensa que, além da censura, estava a favor da obra. As

represas de Paraibuna e Paraitinga, juntamente com outras quatro, faziam

parte do plano para a regularização da vazão e controle de enchentes no rio

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Paraíba do Sul. Também, acreditava-se que, além de gerar energia elétrica,

ali surgiria um polo industrial e agropecuário, com o aproveitamento das

várzeas para a produção através da agricultura irrigada.

Em 1964 começaram as obras de construção da represa. Porém, em

1966 elas são interrompidas por um ato do general Castelo Branco que

revogou o decreto que permitia a derivação de água dos rios Paraibuna e

Paraitinga. Pelo visto, esta intervenção foi para desobrigar a Light de

construir uma represa, em Barra do Piraí, para armazenar água e garantir as

transferências realizadas do rio Paraíba do Sul para o rio Guandu (Folha de

São Paulo, 27/04/1966).

Esta iniciativa, pelo que foi possível concluir, deveu-se ao fato da Light,

concessionária de energia, ter sido uma aliada histórica dos governos

autoritários e apoiadora do Golpe Militar de 1964 . O argumento do governo

federal foi que não era da alçada da Light o plano de regularização da vazão

do rio Paraíba do Sul, cujas obras estavam em andamento (Diário Oficial,

04/05/1966).

Apesar do apego à terra e o rechaço à possibilidade de ver sua cidade

representada por "um ponto em branco no mapa" não foram registrados

movimentos coletivos de resistência (Folha de São Paulo, 27/04/1966).

Segundo depoimento do vereador José Benedito, Natividade da Serra não

desapareceu do mapa porque seus habitantes não permitiram, pois esta era

a vontade do governo estadual e da CESP. O então Governador Laudo Natel

primeiramente negou-se a ajudar a construção da nova cidade, mas a partir

da iniciativa do prefeito, Otacílio Fernandes da Silva, em desapropriar terras

para construir a nova cidade o Estado financiou a construção da nova escola

municipal e da nova agência do Banespa, os únicos investimentos realizados

pelo Estado naquele período (A Tribuna, 18/01/74).

Em janeiro de 1974 a cidade foi realocada depois de uma forte chuva

que provocou uma enchente na cidade velha, deixando dezenas de famílias

desalojadas (A Tribuna, 17 e 20 /01/74). Segundo Ana de Faria, ex-

funcionária da prefeitura, os últimos momentos foram de angústia e tensão:

A gente não tinha noção do que iria acontecer, não pudemos documentar nada sobre a antiga cidade. Apareciam pessoas acompanhadas dos funcionários da CESP, dizendo-se funcionários

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do patrimônio histórico e carregavam portas, grades, tudo que parecia ter valor histórico. A gente não sabia o que falar [...]. Em 1973, o governo do Estado avisou pela primeira vez que a cidade iria ser inundada e que seriam feitas as desapropriações. Era um monte de advogados, e na época teve muita gente que nem foi indenizada [...] a inundação ocorreu em 1974 e foi tudo muito rápido, não houve reação por parte da população, já em Paraibuna isto ocorreu. A prefeitura aprovou legalizou a doação dos terrenos. Não acreditávamos que a cidade iria ser reerguida, o trabalho foi árduo. A prefeitura e a população não possuíam recursos para a obra [...] a tromba d'água que inundou a cidade velha obrigou as pessoas a mudarem para as casas inacabadas. Moramos seis meses sem luz e água. A água e o esgoto foram obra dos moradores e da prefeitura [...] não havia casas, não havia transporte, não haviam recursos e a CESP queria que as pessoas mudassem à força e deixassem seus pertences. Para as pessoas mais simples a empresa ameaçava atear fogo nas residências, por fim cederam e ajudaram na mudança (ALY JÚNIOR, 2000).

O depoimento da Sra Ana de Faria representa o sentimento que a

maioria das pessoas do núcleo urbano viveu e é distinto dos que vivem na

zona rural. Para estes, a zona rural foi a parte do município onde o estrago

da inundação das terras foi irreparável. Os prejuízos foram muitos: a perda

das melhores terras, a perda de vizinhos, a regressão econômica e a

migração.

Enquanto na sede do município a busca de construir a nova cidade foi

uma atividade que envolveu todos os moradores, na zona rural essa

alternativa não existiu, a busca de alternativas ocorreu de forma

individualizada. Não existiam áreas onde os agricultores desalojados

pudessem ser reassentados e reconstruir suas vidas. Os valores das

indenizações não permitiram a compra de terra no próprio município e

favoreceu o êxodo e muitos agricultores não possuíam títulos de suas terras,

isso reduziu ainda mais o valor recebido. Não houve o mínimo apoio para

ajudar a reorganização da produção agropecuária do município.

A inundação das terras mais planas e férteis aumentou o isolamento

dos bairros e a distância da sede do município dando início a um processo

centrífugo nas relações locais e desorganizou a base social e cultural da vida

no meio rural. Natividade perdeu 14% do total do seu território, a maioria das

suas terras baixas foram inundadas (A Tribuna, 21/12/73; CESP, 1992).

Entre 1960 a 1980, os dados demográficos acusam uma queda de

mais de 4 mil habitantes. Nesse período mais da metade da população saiu

do campo, o que permite afirmar que a represa acelerou o êxodo rural. A

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queda no total da população foi de 3,2%, 11,4% e 31%, respectivamente nas

décadas de 50, 60 e 70, reduzindo para 6,1% na de 80.

TABELA 1- Análises Sócio-Econômicas - Censos Agropecuários 1940-1998

Município População 1960 1970 1980 1991 1998

Natividade da

Serra

Total 11.335 10.039 6.934 6.466 6.892

Urbana 1.170 1.405 1.940 2.250 3.020

Rural 10.165 8.634 4.991 4.207 3.872

Fontes: IBGE 1960, 1970, 1980; FSEADE, acesso em 2000;

Considera-se que devem ser feitas para reparar os danos morais,

econômicos, culturais e sócias sofridos pela população afetada e pelo

município de Natividade. Existe, ainda, um passivo ambiental e social a ser

mitigado pela CESP, Governo Federal, governos de São Paulo e Rio de

Janeiro e a Light.

Fontes:

MÜLLER-PLATENBER, C.; AB'SABER, A. N. Previsão de Impactos, São

Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.

ALY JUNIOR, O. Políticas Ambientais e Desenvolvimento Local Sustentável:

o caso de Natividade da Serra. SP: USP: PROCAM, Dissertação de

mestrado, 2000.

BERMAM, C. Reassentamento e auto-gestão- um estudo de caso: a

barragem de Itá no sul do Brasil. Conferência Internacional "Hidropower into

the next century: potential, opportunities, challenges". Espanha: Madri, 1995

(mimeo).

IBGE. Censo Populacional. RJ:FIBGE, 1960, 1970 e 1980.

FUNDAÇÃO SEADE. Dados municipais do estado de São Paulo. SP: Seade,

www.seade.gov.br

FOLHA DE SÃO PAULO, 27/04/1966.

A TRIBUNA. SP: Taubaté, 17,18 e 20 de janeiro de 1994.

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 1966.

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REGIÃO ADMINISTRATIVA DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO

Internamento manicomial de Antonio Galdino Jacinto

Aparecido Galdino Jacinto liderou um movimento de caráter

messiânico contra a construção de uma barragem que desalojaria diversas

famílias da região de Santa Fé do Sul em São Paulo. De acordo com

reportagem de Ricardo Carvalho, publicada na Folha de São Paulo em 1979,

Galdino, nos anos 1950, era proprietário de uma pequena área em uma

região de intensos conflitos fundiários. José de Souza Martins aponta que era

uma espécie de guarda-costas de Jôfre Corrêa Netto, principal liderança da

revolta do arranca capim, no final dos anos 50. Mas, segundo entrevista

realizada em 1999, Galdino era capataz dos jagunços que trabalhavam para

o principal fazendeiro da região para extinguir o movimento de Jôfre.

Posteriormente parece ter se tornado boiadeiro, viveu em Goiás e

quando voltou a sua região, tornou-se benzedor. Sua casa recebia muita

gente em busca de benção e melhorias de saúde. Tornou-se na sequência

um pregador, exortando os camponeses da região a não pagar impostos,

porque a terra era dom de Deus. Ficou preso por três meses em Santa Fé do

Sul e, depois de liberto, voltou a benzer.

Nesse momento, circulou a notícia de que Rubineia, cidade próxima de

Santa Fé, seria inundada. Nesse momento, Galdino formou um “Exército da

Salvação”, composto por 16 pessoas, duas mulheres, alguns menores,

alguns idosos. Segundo José de Souza Martins, passou a condenar as

barragens construídas no rio que separa São Paulo de Mato Grosso, porque

tiravam a liberdade dos peixes, impedindo a piracema e a sua reprodução.

Segundo matéria de Ricardo Carvalho, na Folha de São Paulo de

14/01/1979, em 01/12/1970, um destacamento de 17 homens o prendeu na

capela onde rezava, bem como os que estavam com ele. Estes foram soltos

depois, mas Galdino não. Perguntado sobre o que estava fazendo,

respondeu que estava rezando. Segundo as palavras de Galdino, na matéria

de Carvalho, “ele então me pegou pelo cabelo e saiu arrastando e juntou uns

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soldados, dando pancada, então o sargento trupicou e caiu e eu caí por cima

do sargento. Depois eles me puseram algema”.

Enquadrado na Lei de Segurança Nacional, ficou preso, segundo

Martins, acusado de curandeirismo e prática ilegal da medicina. Foi defendido

gratuitamente por um advogado local, Dr. Alcides Silva, que apoiou sua

defesa, como narra Martins, em estudos sociológicos sobre messianismo e

milenarismo, em particular em casos ocorridos no Brasil. Galdino foi

absolvido, mas o promotor apelou para a Justiça Militar, pois entendia que ele

era subversivo.

Foi transferido para São Paulo, como preso político e aguardou a

decisão da Justiça Militar. De acordo com Martins, o então delegado Fleury

aconselhou os juízes a declararem Galdino louco, mandá-lo para o

Manicômio Judiciário. O mesmo sociólogo afirma que os juízes convocaram

dois peritos do Manicômio, que declararam Galdino esquizofrênico paranóide.

Embora ele tivesse direito a uma contra-perícia, isso não ocorreu.

Segundo Tavolaro, Galdino reconheceu a fotografia de vários

militantes de esquerda que haviam desaparecido como estando no

manicômio junto com ele.

Martins fez a denúncia do caso no final dos anos 1970, num grande

ato público que tinha como tema os direitos humanos, organizado pelo

Cardeal-Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. O caso foi

assumido pela Comissão de Justiça e Paz.

Depois de liberto, voltou para Santa Fé do Sul, onde o prefeito, do

MDB, partido de oposição ao regime militar, lhe deu o emprego de jardineiro

da Prefeitura, para que pudesse sobreviver.

Fontes:

CARVALHO, Ricardo. Matéria publicada na Folha de São Paulo, em

14/01/1979.

LOPREATO, Cristina Roquete. Milagres da Fé. Campinas: Editora da

Unicamp.

MARTINS, José de Souza. Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo,

em 15/11/2004, p. 04.

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TAVOLARO, Douglas. A casa do delírio: reportagem no Manicômio Judiciário

de Franco da Rocha. São Paulo: Editora Senac, 2001.

WELCH, Clifford A. Jôfre Corrêa Netto, capitão camponês (1921 a 2002). São

Paulo: Editora Expressão Popular, 2010.

REGIÃO ADMINISTRATIVA DE SOROCABA

O caso do Quilombo de Porto Velho

Em 1969, o governo do Estado de São Paulo, através da Procuradoria

do Patrimônio Imobiliário (PPI), dá inicio a titulação de uma série de

propriedades em diversos municípios do Vale do Ribeira, dentre eles

Iporanga. O processo se deu em função do crescente interesse imobiliário na

região e, de certa forma, acabou também por reforçá-lo.

Patrícia Scalli, descreve no Relatório Técnico Científico (RTC) da

comunidade quilombola de Porto Velho, elaborado pelo Instituto de Terras do

Estado de São Paulo (ITESP) em 2003, que alguns moradores da região

teriam sido ameaçados, naquela época, por pretensos compradores,

inclusive com episódios envolvendo a expulsão violenta e armada dos

proprietários originais (SCALLI, 2003, p. 36).

Benedito Barbosa de Andrade era um dos pretensos proprietários que

alegavam ter a posse do território. Desde o início da década de 1960,

Benedito já se apossava das terras de Porto Velho e convencia os

trabalhadores de que poderiam permanecer no local desde que trabalhassem

em seu favor. Os trabalhadores chegaram a plantar cana de açúcar para a

produção de melaço, que por sua vez, “era comercializado por Barbosa”

(SCALLI, 2003, p. 37). Ainda segundo Patrícia Scalli, Barbosa

[...] pagava os membros da comunidade de Porto Velho como e quanto queria, sem que os mesmos pudessem questionar o valor pago pelo produto que havia sido vendido. Eles eram parceiros na fábrica [de melaço], e por serem analfabetos não sabiam o que assinavam, e qual o valor em espécie (dinheiro) que recebiam por cada safra (SCALLI, 2003, p. 37).

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Barbosa se apropriava indevidamente do território, já historicamente

ocupado por descendentes de escravos, indígenas e trabalhadores libertos

da região. Alguns moradores de Porto Velho portavam títulos de propriedade,

mas todo o processo foi ignorado (SCALLI, 2003, p. 36).

Ainda que a documentação que comprovasse a posse do imóvel por

parte de Barbosa não constasse no projeto de regularização empreendido

pelo PPI (SCALLI, 2003), este permaneceu durante décadas em Porto Velho

expulsando os pequenos proprietários por meios violentos. Osvaldo, uma

atual liderança do quilombo, conta que este foi o caso de sua família e de

outros moradores da localidade, que foram expulsos da terra em 1984,

através de prepostos de Barbosa.

Na década de 1990, em função de uma cheia do Rio Ribeira e da

destruição de algumas das casas dos quilombolas, Barbosa teria se

aproveitado e impedido a (re)construção das moradias. Em função das

constantes táticas de expulsão, o quilombo de Porto Velho “chegou a ter 9

famílias”, sendo que já fora ocupado por cerca “de 7 a 8 núcleos de

moradores, com famílias que iam desde Porto Velho até Bombas...”

(Depoimento de Osvaldo, 2014) .

Se não bastasse o caso específico entre o moradores originais e

grileiro Barbosa, Osvaldo também oferece o nome de outros pretensos

proprietários que, de acordo com a titulação da PPI, também reivindicavam a

posse do território quilombola:

[...] eu tive a sorte de em 2002, quando foi fundada a associação, [quando] foi buscado o relatório científico da comunidade, [de perceber] que essas terras, onde meus avós viveram, meus ancestrais, [iam] desde Porto Velho até a divisa com o Paraná. [Elas eram] tituladas em nome de “Dr Eununcio”, “Dr. Manuel”, “pesquisadores de minério”.. Quando nós fomos levantar, na verdade, os territórios dos meus avós estavam titulados no nome desses caras que nós nunca sabíamos que existiam (Depoimento de Osvaldo, em COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”, 2014).

O episódio nos mostra não só as táticas de expulsão e repressão das

comunidades e proprietários originais, mas principalmente as lacunas que o

processo de regularização de propriedades teve durante os governos

militares. São inúmeros os casos de apropriação ilícita de terras, de

pretensos donos e escrituras sobrepostas para uma mesma região.

Relatório - Tomo IV - Contribuições - Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho Sobre a Repressão no Campo no Estado de São Paulo, 1946-1988.

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Fontes:

COMISSÃO DA VERDADE “RUBENS PAIVA”. Audiência Pública. Eldorado,

14 de junho de 2014.

SCALLI, Patrícia. Relatório Técnico Científico sobre os remanescentes da

comunidade de quilombo de porto velho/ Iporanga, São Paulo. ITESP, julho

de 2003. Disponível em

http://www.itesp.sp.gov.br/br/info/acoes/rtc/RTC_Porto_Velho.pdf, acesso em

agosto de 2014.

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