Religião e Memória na obra de Allan Kardec
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8/6/2019 Religião e Memória na obra de Allan Kardec
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Religião e memória na obra de Allan Kardec.
Augusto César Dias de Araujo 1
Resumo:
A análise crítica dos escritos de Kardec tem-nos mostrado que, com certeza, este autordesejava que a doutrina e o movimento por ele iniciados tivessem um alcance universal. Noentanto, ao contrário desta aspiração, não se pode deixar de notar que não só Kardec fundauma nova religião, como a vincula de maneira irrevogável à tradição e à memória cristãs. Issofica claro não apenas com a publicação, em 1864, de L’Évangile selon le Spiritisme. Mas,desde a Conclusion de Le Livre des Esprits (1860), quando vincula a nova doutrina aoconjunto dos dogmas católico-romanos, e lhe atribui o caráter de uma chave hermenêuticapara a recondução destes dogmas a seu verdadeiro significado. O objetivo deste trabalho éanalisar os elementos desta vinculação, discutindo como aquilo que se constitui como oprojeto pessoal de Allan Kardec para o espiritismo se converte, ainda durante em sua vida,num movimento de recuperação da memória da religião cristã, principalmente católico-romana, dos “desvios doutrinários” a que teria sido submetida. Um processo que, a meu ver,culminará na cristalização de uma nova identidade para a doutrina dos espíritos, a de“cristianismo redivivo”. Palavras-chave: Espiritismo, Allan Kardec, Religião, Memória.
Résumé:
L‟analyse critique des écrits de Allan Kardec (1804-1869) nous a montré en effet que cetauteur a voulu la doctrine et le mouvement qu'il a fondé a une portée universelle. Toutefois, ilconvient de noter que contrairement à ses aspirations, non seulement Kardec fonda unenouvelle religion, mais une religion liée irrévocablement à la tradition et mémoire chrétienne.C'est clair, non seulement par la publication de L'Evangile selon le Spiritisme en 1864, maisaussi dans la Conclusion de Le Livre des Esprits (1860), où relie la nouvelle doctrine àl‟ensemble du dogmes catholique romaines, et lui attribue le caractère d‟une clé
herméneutique pour le renouvellement de ces principes à leur véritable signification.L'objectif de cette étude est d'analyser les éléments de ce lien, d'examiner comment ce qui estconsidéré comme le projet personnel d'Allan Kardec pour le Spiritisme devient, mêmependant sa vie, un mouvement pour récupérer la mémoire de la religion chrétienne, enparticulier Catholique Romaine, des «déviations doctrinales» qui ont été soumis. Unprocessus qui aboutira, à mon avis, dans la cristallisation d'une nouvelle identité pour ladoctrine des esprits: «le christianisme ressuscité ».Mots-clés: Spiritisme, Allan Kardec, Religion, Mémoire.
1 Doutorando em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da UniversidadeFederal de Juiz de Fora (PPCIR / UFJF). Pesquisa realizada com financiamento da Fundação de Amparo àPesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). E-mail: [email protected]
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Introdução:
A análise crítica dos escritos de Allan Kardec (1804-1869) tem mostrado que, embora esteautor desejasse que a doutrina e o movimento por ele iniciados tivessem um caráter laico e um
alcance universal, não se pode deixar de perceber que, com sua obra, não apenas é fundada
uma nova religião, mas uma religião que se vincula de maneira irrevogável à tradição e à
memória cristãs. Quando, na Conclusion de Le Livre des Esprits (1860), Kardec vincula a
nova doutrina ao conjunto dos dogmas católico-romanos e nela encontra uma chave
hermenêutica para a recondução destes dogmas a seu verdadeiro significado; ou quando, em
1864, com a publicação de L’Évangile selon le Spiritisme, apresenta o Espiritismo como a
terceira revelação da lei de Deus, em continuidade com as revelações mosaica e cristã;
encontra-se implícita a ideia de que “o Espiritismo [...] é o Cristianismo apropriado ao
desenvolvimento da inteligência e isento dos abusos [...]” 2. Em outras palavras, para Kardec é
como se o Espiritismo fosse um médium para a tradição cristã, atualizando-a para a
mentalidade racional e científica do século XIX.
O objetivo deste trabalho é analisar alguns elementos desta mediação e discutir de que
maneira aquilo que se constitui como o projeto pessoal de Allan Kardec para o Espiritismo se
converte, ainda durante em sua vida, num movimento de recuperação da memória da religião
cristã. Antes, porém, será necessário retomar a problemática da formação identitária do
Espiritismo, na obra de seu fundador, a fim de compreendermos porque Kardec rejeita
identificá-lo como uma religião. Em seguida, analisaremos como, em suas obras, este autor
cria vínculos suficientes com o cristianismo para caracterizar o Espiritismo como uma
atualização do cristianismo para o século XIX. Por fim, verificaremos que, nesta dinâmica de
reinterpretação da tradição cristã, encontra-se em jogo a ressemantização da memória coletiva
de toda a tradição à qual o Espiritismo se vincula 3.
O Espiritismo não é uma religião:
2 KARDEC, Allan. Nova tática dos adversários do Espiritismo. In: ______. Revista Espírita. Jornal de EstudosPsicológicos. Ano Oitavo – 1865. Junho de 1865, n. 6. Rio de Janeiro: FEB, 2006. p. 255.3 Este trabalho é o desenvolvimento de ideias apresentadas no artigo ARAUJO, Augusto. Identidade e Fronteiras
do Espiritismo na obra de Allan Kardec. Horizonte, v. 8 n. 16, jan./mar. 2010. (Em Edição); e da comunicaçãopor mim apresentada no 23º Congresso Internacional da SOTER, de 12 a 15 de Julho de 2010, O Espiritismo
segundo Allan Kardec: um médium para a tradição cristã, a ser publicada em breve nos anais do referidoCongresso.
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Em Identidade e Fronteiras do Espiritismo na obra de Allan Kardec 4, artigo no qual
proponho uma reflexão sobre o processo de formação identitária do Espiritismo – doutrina e
movimento – a partir de seu discurso fundador presente na obra de Allan Kardec, trabalho
com a relação entre “Espiritismo” e as três instâncias a que Kardec recorre a fim de legitimar
seu discurso: ciência, filosofia e religião. O objetivo ali era demonstrar como, nesta interação,
a identidade do Espiritismo se consolida ao estabelecer fronteiras, numa relação de relativa
superioridade e de superação, frente a essas três instâncias, sem, no entanto, abrir mão do uso
de sua linguagem e de suas fontes. Neste contexto, o conceito de Espiritismo se apresentaria
como um conceito híbrido, o qual indicaria o caráter mediador da nova doutrina e do
movimento articulado em seu entorno.
Já neste artigo ficava claro que embora o Espiritismo tangencie aquilo que AllanKardec considera os elementos essenciais de toda religião – a existência de deus, a
imortalidade da alma e as penas e recompensas da vida futura – , para ele de forma alguma
este deve ser confundido com uma nova religião 5. De fato, para o autor, considerar o
Espiritismo como uma religião é “[...] um erro grave e pode dar uma ideia muito falsa, quer
do Espiritismo em geral, quer do caráter e do objetivo dos trabalhos da Sociedade Parisiense
de Estudos Espíritas” 6. Kardec chega mesmo a dizer que é “fácil demonstrar” que o
espiritismo não é uma religião posto que “se o fosse teria seu culto, seus templos, seusministros. [...]” 7. Ao contrário, afirma Kardec:
[...] o Espiritismo se ocupa de fatos e não das particularidades de tal ou qualcrença, da pesquisa das causas, da explicação que esses fatos podem dar defenômenos conhecidos, assim na ordem moral como na ordem física¸ e nãoimpõe nenhum culto aos seus partidários, como a astronomia não impõe oculto dos astros, nem a pirotecnia o culto do fogo 8.
De fato, sua compreensão ao longo de todo o período em que se dedicou ao estudo,
sistematização, divulgação e apologia da doutrina espírita era que o espiritismo fosse uma
4 Cf.: ARAUJO, Augusto. Identidade e Fronteiras do Espiritismo... op. cit. 5 Em abril de 1859 Kardec se envolve numa discussão com o Abade Chesnel. Em artigo publicado no Jornal
L’Univers, e reproduzido por Kardec na Revue, o Abade denomina o espiritismo de nova religião e é refutadopelo codificador que ressalta o que compreende como caráter científico do espiritismo, e nega, peremptoriamenteque o mesmo seja uma nova religião.6 KARDEC, Allan. Refutação de um Artigo do “Univers”. In: ______. Revista Espírita. Jornal de EstudosPsicológicos. Ano Segundo. Maio de 1859. n. 5. Rio de Janeiro: FEB, 2007. p. 196.7 Idem, ibidem. p. 206.8 Idem, ibidem.
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filosofia de bases científicas, ou uma ciência filosófica. Como se pode verificar em O que é o
Espiritismo (1860):
O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e umadoutrina filosófica. Como ciência prática, consiste nas relações que seestabelecem entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas asconsequências morais que decorrem de tais relações. Podemos defini-loassim: O Espiritismo é uma Ciência que trata da origem e do destino dosEspíritos, bem como de suas relações com o mundo corpóreo.9
Contudo, a veemente negação da natureza religiosa do Espiritismo¸ sua insistência em afirmar
que este não é um culto novo, não significa, em definitivo, que Kardec aceite a acusação de
que o Espiritismo seja antirreligioso. Ao contrário, ele seria mesmo “[...] o mais potente
auxiliar da religião” 10, uma vez que lhe oferece a prova empírica de seus postulados básicos:
a existência de deus, a imortalidade da alma e as penas e recompensas da vida futura.
Na ambiguidade deste posicionamento se, por um lado, Kardec propõe uma cisão
frente ao pensamento e às práticas religiosas, por outro, diante do crescente descrédito
enfrentado pelas doutrinas e instituições religiosas ao longo do século XIX, o Espiritismo se
apresenta como a chave que pode salvá-las do naufrágio absoluto. E, em O Evangelho
segundo o Espiritismo (1864), chega a afirmar que o espiritismo é o traço de união quepromove, enfim, a aliança entre ciência e religião. Conferindo a esta última seu caráter
racional.
A Ciência e a Religião não puderam, até hoje, entender-se, porque,encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo,reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o vazio que asseparava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço de união está noconhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com omundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem os movimentos dos
astros e a existência dos seres. Uma vez comprovadas pela experiência essasrelações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se à razão; esta nada encontrou deilógico na fé: vencido foi o materialismo 11.
No entanto, ainda que pese sua opinião e seu desejo de que a nova doutrina e o movimento
articulado a partir dela seja a expressão laica e universal (científica e filosófica) de verdades
fundamentais comuns a todo culto ou confissão religiosa 12, será frente à tradição cristã – suas
fontes, seus dogmas, suas práticas, que Kardec e o Espiritismo nascente terão de se
9 KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009. p.10-11.10 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2007. p. 132.11 KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2008. p. 61.12 Cf.: KARDEC, Refutação de um artigo do “Univers”, op.cit., p. 205-206.
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posicionar. E será a esta mesma tradição que a nova doutrina recorrerá em busca de
legitimação para sua pretensão de se configurar como “traço de união” entre ciência e
religião13. Isso fica claro desde 1860 quando, na Conclusão de O Livro dos Espíritos, Kardec
afirma:
O Espiritismo não é obra de um homem. Ninguém pode dizer que é seucriador, pois ele é tão antigo quanto a Criação. Encontra-se por toda a parte,em todas as religiões, principalmente na religião católica e aí com maisautoridade do que em todas as outras, pois no catolicismo se acha o princípiode tudo quanto existe no Espiritismo: os Espíritos em todos os graus deelevação, suas relações ocultas e ostensivas com os homens, os anjos daguarda, a reencarnação, a emancipação da alma durante a vida, a dupla vista,as visões, todos os gêneros de manifestações e mesmo as aparições tangíveis.Quanto aos demônios, não passam de Espíritos maus e, salvo a crença de que
os primeiros foram destinados a permanecer perpetuamente no mal, ao passoque a via do progresso não está proibida aos outros, não há entre eles maisdo que simples diferença de nomenclatura. 14
E para explicar qual é papel da “moderna ciência espírita” frente a tais diferenças de
nomenclatura, afirma logo em seguida que esta: “Reúne em corpo de doutrina o que estava
esparso explica, em termos apropriados, o que só era dito em linguagem alegórica; suprime o
que a superstição e a ignorância haviam criado, para só deixar o que é real e positivo: eis o
seu papel” 15
. Esta dupla citação demonstra, portanto, que a doutrina espírita se constitui comoo espaço da correta interpretação dos dados da tradição cristã. Para Kardec, não é que a
tradição seja de todo inválida, ela revela a verdade a seu modo, através da linguagem
alegórica, que os modernos erram ao assumir como a descrição objetiva da verdade. Em
outras palavras, o codificador identifica que falta à tradição uma chave hermenêutica que
atualize seu verdadeiro sentido. E, para ele, esta chave é o Espiritismo.
O Espiritismo é a terceira revelação da lei de deus:
Contudo, para Kardec, a tarefa do Espiritismo não se encerra com a correta interpretação das
fontes do Cristianismo, engloba ainda a percepção de que o primeiro é o sucessor deste. A
partir de 1861 o autor principia a elaboração do que tenho chamado “a teoria das três
revelações”, e que nada mais é que a perspectiva kardeciana de que o Espiritismo seria a
13 Cf.: KARDEC, O Evangelho segundo o Espiritismo. op. cit. p. 60-61.14 KARDEC, O Livro dos Espíritos. op. cit. 632-633.15 Idem, ibidem.
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“terceira revelação da lei de Deus” em linha de sucessão contínua e de complementaridade
com as revelações mosaica e cristã.
A lei do Antigo Testamento teve em Moisés a sua personificação; a do NovoTestamento tem-na no Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da lei deDeus, mas não tem a personificá-la nenhuma individualidade, porque é frutodo ensino dado, não por um homem, sim pelos Espíritos, que são as vozes do
Céu, em todos os pontos da Terra, com o concurso de uma multidãoinumerável de intermediários 16.
A origem desta “teoria” remonta a uma série de comunicações, obtidas por um médium de
Mulhouse e publicadas por Kardec nas edições de Março e Setembro de 1861 da Revista
Espírita 17. Em uma dessas comunicações, o Espírito identificado como Mardoché R...,
explica que, a moral evangélica é a moral mais pura, mais elevada e está destinada a
aproximar todos os homens, tornando-os irmãos. Além disso, pela prática generalizada de tal
moral, a Terra se tornaria morada para Espíritos superiores aos que atualmente a habitam.
Explica ainda que Moisés foi enviado por Deus para torná-lo conhecido de todos os povos, e
não apenas dos hebreus. Mas, a moral ensinada por Moisés estava circunscrita e era
apropriada ao grau de adiantamento da humanidade de seu tempo e que ele se propunha
regenerar. Mas, “os mandamentos de Deus, dados por intermédio de Moisés, contêm os
germes da mais ampla moral cristã” 18. E, conclui: “Moisés abriu o caminho; Jesus continuou
a obra; o Espiritismo a concluirá”. 19
Na edição de Setembro do mesmo ano, sob o título Um Espírito Israelita a seus
Correligionários, Kardec publica na Revista três novas comunicações produzidas pelo mesmo
médium, e assinadas pelo Espírito Edouard Pereyre. O teor das duas primeiras é bem
semelhante ao da comunicação assinada por Mardoché R..., possuindo, no entanto, o formato
de cartas dirigidas a outros judeus pedindo-lhes que abracem o Espiritismo. O argumentocentral desta solicitação é baseado na seguinte assertiva: “Hoje, pois, é preciso alargar as
bases do ensino; o que a lei de Moisés vos ensinou já não basta para fazer avançar a
16 Idem, ibidem. p. 64-65.17 Para a discussão específica das comunicações que deram origem à “teoria das três revelações” remeto o leitor a meu texto O Espiritismo segundo Allan Kardec: um médium para a tradição cristã, a ser publicado
brevemente nos anais do 23º Congresso Internacional de Teologia e Ciências da Religião da SOTER.18 KARDEC, Allan. A lei de Moisés e a lei do Cristo. In: ______. Revista Espírita. Jornal de EstudosPsicológicos. Ano IV. Março 1861. Rio de Janeiro: FEB, 2007. p. 144.19 Idem, ibidem.
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Humanidade e Deus não quer que fiqueis sempre no mesmo ponto, porquanto, o que era bom
há cinco mil anos já não o é hoje”. 20 E, continua:
Pois bem! São chegados os tempos, meus amigos, em que Deus quer ampliaro quadro dos vossos conhecimentos. O próprio Cristo, embora tenha feito alei mosaica avançar um passo, não disse tudo, pois não teria sidocompreendido, mas lançou sementes que deveriam ser recolhidas eaproveitadas pelas gerações futuras. Deus, em sua infinita bondade, vosenvia hoje o Espiritismo, cujas bases estão, inteiras, na lei bíblica e na leievangélica, para vos elevar e ensinar a vos amardes uns aos outros. 21
No entanto, a terceira e última comunicação desta série é a mais elaborada do ponto de
vista que nos ocupa. Ela apresenta a teoria das três revelações de maneira explícita e com sualógica plenamente articulada, tal como será assumida por Kardec posteriormente em O
Evangelho segundo o Espiritismo (1864) e no primeiro capítulo de A Gênese, os Milagres e
as Predições segundo o Espiritismo (1868). Em seu fundamento encontra-se a crença,
tipicamente espírita, de que a história se desenvolve em sentido progressivo e com um fim
ordenado por Deus, segundo sua previdência, para que se cumpra a perfeição intelecto-moral
de todos os Espíritos. Ao longo dessa história, periodicamente, Deus envia personagens –
Espíritos mais avançados – a fim de acelerar o progresso humano através de seu ensino e darevelação das leis divinas. Tudo isso é feito de modo também progressivo, de acordo com o
grau de adiantamento da humanidade num certo período da história.
Assim, segundo essa lógica, teria havido três revelações: a primeira delas veio a lume
com Moisés; a segunda com o Cristo; e, a terceira, com os Espíritos que são, conforme o
Prefácio de O Evangelho segundo o Espiritismo assinado pelo “Espírito de Verdade” 22, “[...]
as virtudes dos céus [...]” 23, “[...] as grandes vozes do céu [...]” 24, responsáveis por
restabelecer todas as coisas no seu verdadeiro sentido, dissipar as trevas, confundir os
orgulhosos e glorificar os justos 25.
Se, na primeira revelação, Moisés revelara aos homens a existência de um Deus único;
espiritual e não material como os deuses da antiguidade; se ele lançou os alicerces da
20 KARDEC, Alan. Um Espírito Israelita a seus Correligionários. In: ______. Revista Espírita. Jornal de EstudosPsicológicos. Ano IV. Setembro 1861. Rio de Janeiro: FEB, 2007. p. 408-409.21 Idem, ibidem. p. 409.22 Em toda a sua obra Kardec nunca identificou positivamente quem teria sido esse “Espírito de Verdade” o qual,
desde 1856, se apresentara como seu “guia espiritual”. No entanto, existem diversos indícios de que, sob tal
pseudônimo, Kardec compreendia que este fosse ninguém menos que o próprio Jesus de Nazaré.23 Cf.: KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. op. cit. p.19-20.24 Idem, ibidem.25 Idem, ibidem.
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verdadeira fé e estabeleceu os pilares da moralidade na lei do Sinai; o Cristo trouxe a
revelação da vida futura e das penas e recompensas que o homem receberá após sua morte, e
assim, ampliou e completou o sentido da revelação mosaica. Contudo, a principal diferença
do ensino do Cristo daquele dado por Moisés, “a parte mais importante [...]” de sua revelação,
“[...] no sentido de fonte primeira, de pedra angular de toda a sua doutri na é o ponto de vista
inteiramente novo sob o qual Ele considera a Divindade”. 26 Em Jesus, já não se trata do “[...]
Deus de um único povo privilegiado, o Deus dos exércitos, presidindo aos combates para
sustentar a sua própria causa contra o Deus de outros povos, mas pai comum do gênero
humano, que estende sua proteção sobre todos os seus filhos e os chama todos a si [...]” 27.
Não se trata mais de um Deus que deseje ser temido, mas de um Deus que, sobretudo, quer ser
amado.Por sua vez, a terceira revelação, o Espiritismo, que, “assim como o Cristo disse: “Não
vim destruir a lei, porém cumpri-la”, também diz: „Não venho destruir a lei cristã, mas dar -lhe
execução‟.” 28 Em outras palavras: “O Espiritismo, partindo das próprias palavras do Cristo,
como este partiu das de Moisés, é consequência direta da sua doutrina”.29 Ou, como diria José
Herculano Pires (1914-1979), tido como o maior intérprete do pensamento kardeciano no
Brasil:
O Espiritismo é o desenvolvimento histórico e profético do Cristianismo.Histórico na sucessão dos tempos, no lento e penoso desenvolvimento daCivilização Cristã, que ainda não superou a condição de esboço, mas jáestendeu sua influência a todo o mundo. Profético no sentido real, objetivo,sem a mística deformadora das igrejas, de cumprimento da Promessa doConsolador, do Paráclito, do Espírito da Verdade que viria restaurar o ensinolegítimo de Cristo 30.
Em outras palavras, o Espiritismo é o mais autêntico sucessor do Cristianismo posto que “[...]
desenvolve, completa e explica, em termos claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob
forma alegórica” 31 na mensagem evangélica, assim como o Cristo, a seu tempo, o fez com a
revelação de Moisés.
26 KARDEC, Allan. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB: 2009. p.35.27 Idem, ibidem. p. 36-37.28 KARDEC, O Evangelho segundo o Espiritismo. op. cit. p. 59-60.29 KARDEC, A Gênese..., op.cit. p. 39.30 PIRES, J. H. Mediunidade. Conceituação da Mediunidade e Análise Geral dos seus Problemas Atuais. SãoPaulo: Paideia, 2002. p. 127-128.31 KARDEC, O Evangelho segundo o Espiritismo. op.cit. p. 59-60.
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[...] a lei mosaica e sobretudo sua profética esperança messiânica já nãopodiam ser entendidas literalmente. Mas, já que Jesus apelava explicitamentepara a sua autoridade, a tradição judaica também não podia ser simplesmenteposposta. Recomendava-se, pois, interpretá-la alegoricamente e reelacioná-la(sic) integralmente com a pessoa de Jesus. Jesus era o espírito, a partir doqual a letra do Antigo Testamento devia ser interpretada. [...] o messianismo
judaico levava [...] a esperar por um poderoso soberano, que haveria derestaurar o reino dos judeus em sua antiga magnificência, e não um messiasque se estabelecesse acima da lei e morresse crucificado como um blasfemo.Aqui não era possível sofismar sobre o sentido literal das Escrituras. Porisso, precisava ser proposta uma interpretação alegórica, com ajuda da chavehermenêutica, a qual era fornecida pela pessoa de Jesus. 35
Dessa forma, e de maneira similar ao que sucedeu com os fundadores do Cristianismo,
Kardec encontra no Evangelho, e na Bíblia, lacunas de sentido que pretende preencher com aprática da alegorese à luz do Espiritismo. Assim, quando Jesus afirma: “Tenho ainda muito
que vos dizer, mas não podeis agora suportar. Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos
conduzirá à verdade plena [...]” 36; o fundador do Espiritismo compreende que: “Se, portanto,
o Espírito de Verdade devia vir mais tarde para ensinar todas as coisas, é que Cristo não
dissera tudo; se ele vem relembrar o que o Cristo disse, é que o seu ensino foi esquecido ou
mal-compreendido”. 37 Para ele, Jesus “falou de tudo mas em termos mais ou menos
explícitos. Para apanhar o sentido de certas palavras suas, era necessário que novas ideias e
novos conhecimentos lhes trouxessem a chave, e essas ideias não podiam surgir antes que o
espírito humano houvesse alcançado um certo grau de maturidade” 38. Portanto:
O Espiritismo vem no tempo previsto cumprir a promessa do Cristo: presideao seu advento o Espírito de Verdade. Ele chama os homens à observânciada lei; ensina todas as coisas fazendo compreender o que o Cristo só disse por parábolas. Disse o Cristo: “Ouçam os que têm ouvidos para ouvir”. OEspiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porque fala sem figuras e semanalogias; levanta o véu intencionalmente lançado sobre certos mistérios.Vem, finalmente, trazer a suprema consolação aos deserdados da Terra e atodos os que sofrem, atribuindo causa justa e fim útil a todas as dores. [...] OEspiritismo mostra a causa dos sofrimentos nas existências anteriores e nadestinação da Terra, onde o homem expia o seu passado. [...] Assim, oEspiritismo realiza o que Jesus disse do Consolador prometido:conhecimento das coisas, fazendo que o homem saiba de onde vem, paraonde vai e porque está na Terra; um chamamento aos verdadeiros princípiosda lei de Deus e consolação pela fé e pela esperança. 39
35 Idem, ibidem. p. 64-65.36 Jo 16, 12-13. (Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2000).37 KARDEC, O Evangelho segundo o Espiritismo. op. cit. p. 15038 Idem, ibidem, p. 58.39 Idem, ibidem. p. 150.151.
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Assim configurado o Espiritismo se apresenta na obra kardeciana, e no processo de formação
de sua identidade, como meio (médium) de interpretação/tradução da tradição cristã para o
século XIX.
Conclusão: O Espiritismo como recuperação da memória cristã.
Como afirma o sociólogo francês, Maurice Halbwachs (1877-1945), “[...] para melhor
mostrar a originalidade da doutrina cristã, os fundadores do Cristianismo, em particular São
Paulo, o opuseram ao Judaísmo tradicional: por meio de termos retirados do Antigo
Testamento, e pela interpretação de profecias das quais os Judeus não entendiam senão osentido literal [...]” 40, e, em seus textos fundacionais “[...] a oposição entre fariseus e cristãos,
entre o Judaísmo ortodoxo e a religião do Filho do homem é evocad a incessantemente [...]” 41
fazendo com que a história do Cristianismo nascente transforme-se na história de sua
diferenciação do Judaísmo. Contudo, se esta oposição não contivesse em si os germes de uma
aparente atualização – se as profecias e a lei mosaica não fossem interpretadas à luz da figura
de Jesus – em outras palavras, se o Cristianismo nascente não se inserisse na linhagem
judaica, “[...] se não tivesse se apresentado como a continuação, em certo sentido, da religião
hebraica, pode-se questionar se teria podido se constituir como religião” 42.
É que, para Halbwachs, como afirma Danièle Hervieu-Léger, ao interpretar sua obra,
“[...] a dinâmica própria de uma tradição religiosa reside em sua capacidade de organizar
sistematicamente, do ponto de vista dos jogos atuais da sociedade, ritos e crenças que vêm do
passado [...]” 43, pois, “a dinâmica das relações sociais, a evolução dos saberes e das técnicas,
as relações que a sociedade mantém com seu meio ambiente, os interesses das camadas
dominantes em seu seio transformam as crenças antigas e fazem emergir ideias religiosasnovas” 44. Assim aconteceu com as religiões antigas, cujo estudo revela “[...] a existência de
diferentes estratos de crenças, que correspondem a cultos distantes no tempo e de orientações
opostas” 45. Assim, com o Cristianismo Primitivo em sua relação com o Judaísmo. E, assim,
40 HALBWACHS, Maurice. Les Cadres Sociaux de la Mémoire. Une édition électronique réalisée à partir dulivre de Maurice Halbwachs (1925), Les cadres sociaux de la mémoire. Paris : Félix Alcan, 1925. Collection LesTravaux de l‟Année sociologique. p. 136. (Tradução minha).41 Idem, ibidem. p. 136. (Tradução minha).42 Idem, ibidem. p. 137. (Tradução minha).43 HERVIEU-LÉGER, Danièle. Maurice Halbwachs (1877-1945). In: HERVIEU-LÉGER, Danièle;WILLAIME, Jean-Paul. Sociologia e Religião. Abordagens Clássicas. Aparecida : Ideias & Letras, 2009. p. 229.44 Idem, ibidem.45 Idem, ibidem.
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genuinamente cristão, e não apenas, mas o Espiritismo como um retorno ao “Cristianismo
primitivo”, um Cristianismo que não desnatura o genuíno pensamento de Jesus; outros grupos
e pensadores, vinculados à Confederação Espírita Pan-americana (CEPA), não reconhecem
como legítima – fundada na obra kardeciana – a adjetivação do Espiritismo como cristão 49.
Como vimos, no entanto, ao longo deste trabalho: apesar da pretensão de
universalidade da doutrina proposta por Kardec, pode-se, sim, encontrar em sua obra
elementos suficientes para se afirmar a existência de uma identidade cristã da doutrina
espírita. Em minha pesquisa tenho procurado trabalhar o problema da identidade do
Espiritismo na obra de Kardec através do conceito de mediação. Um conceito caro ao próprio
Kardec já que a doutrina é, segundo acredita, o resultado da mediação entre o mundo visível e
o mundo invisível através dos médiuns (indivíduos que possuiriam a capacidade ostensiva decomunicação com os Espíritos); e, conforme defendo, pode igualmente ser aplicado para se
compreender a doutrina espírita e o movimento que se articulou em seu entorno como
médiuns para a tradição cristã, pois como afirma Kardec, “O Espiritismo [...] é o Cristianismo
apropriado ao desenvolvimento da inteligência e isento dos abusos [...]” 50. Em outras
palavras, o Espiritismo seria o Cristianismo, em sua forma mais pura, apresentado de maneira
adequada à mentalidade moderna. Afirmação que encontrará eco nas palavras de Léon Denis,
acima citadas e na prática da maioria dos adeptos da doutrina criada por Allan Kardec.
Bibliografia:
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BENCHAYA, Salomão J. Da Religião Espírita ao Laicismo. A trajetória do Centro CulturalEspírita de Porto Alegre. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2006. (Disponível em
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DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2008.
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: Uma História da Condenação e Legitimaçãodo Espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
49 Sobre os posicionamentos da CEPA e de seus afiliados, sugiro a leitura de: IMBASSAHY, Carlos de Brito; et
al. Espiritismo: O Pensamento Atual da CEPA. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2002. E BENCHAYA, Salomão J. Da Religião Espírita ao Laicismo. A trajetória do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre. Porto Alegre:Imprensa Livre, 2006. Ambos os volumes estão disponíveis no site da CEPA: http://cepanet.org .50 KARDEC, Allan. Nova tática dos adversários do Espiritismo... op. cit. p. 255.
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GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Ed. UNISINOS,1999.
HALBWACHS, Maurice. Les Cadres Sociaux de la Mémoire. Une édition électronique
réalisée à partir du livre de Maurice Halbwachs (1925), Les cadres sociaux de la mémoire.Paris : Félix Alcan, 1925. Collection Les Travaux de l‟Année sociologique . (Disponível em :http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html).
HERVIEU-LÉGER, Danièle. Maurice Halbwachs (1877-1945). In: HERVIEU-LÉGER,Danièle; WILLAIME, Jean-Paul. Sociologia e Religião. Abordagens Clássicas. Aparecida:Ideias & Letras, 2009. p. 215-254.
IMBASSAHY, Carlos de Brito; et al. Espiritismo: O Pensamento Atual da CEPA. PortoAlegre: Imprensa Livre, 2002. (Disponível em http://cepanet.org ).
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______. Nova tática dos adversários do Espiritismo. In: ______. Revista Espírita. Jornal deEstudos Psicológicos. Ano Oitavo – 1865. Junho de 1865, n. 6. Rio de Janeiro: FEB, 2006. p.254-260.
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