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    Revista de Teologia e Cincias da Religio

    Religio:fora propulsora das

    comunidades afro-brasileiras

    Profa. Dra. Irene Dias de Oliveira

    ResumoA noo de sistema religioso afro-brasileiro no se deixa captar facil-mente pelos esquemas mentais do Ocidente. Sabe-se que a conceporeligiosa africana (bantu) complexa e, apesar de constituir o epicentrode uma herana cultural, poltica e social, reveste-se de formas variadasque se fundem com a histria, a lngua, o espao geogrfico de cadaetnia. Para compreend-la, necessrio apelar para a noo de sistemasimblico religioso para, depois, fazermos algumas consideraes sobrea religio enquanto processo dinamizador da identidade e cidadania dascomunidades afro-brasileirasPalavras-chave: afro-brasileiro; religio; identidade cultural.

    AbstractNotion about African-Brazilian religious system is not easily understood,comprehended by Western frames, systems of references one knowsthat African religious conception (Bantu) is complex and, in spite of beinga cultural, political and social heritage epicenter it is enclosed in severalforms that are melted with each ethnic group History, language andgeographic space. In order to understand it, i.e., the above-mentionedheritage it is necessary to apeal to religious symbolic systems notionand then one will be unable to ponder about Religion as a process thatwill be able to energize African-Brazilian communities identity andcitizenship.Key words: African-Brasilian; Religion; cultural identity.

    1 A religio como fora propulsora da cultura

    A primeira considerao a ser feita sobre o conceito de religio.Tomaremos aqui emprestadas algumas definies que iro servirde suporte nossa reflexo.

    Para muitos estudiosos, a religio uma fora central, propulso-ra e unificadora da cultura. Por isso mesmo, nessa concepo, no

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    existe ruptura entre sagrado e profano. Para Bello, essa integrao to forte que seria difcil compreender a estrutura da cultura e da soci-edade sem compreendermos a centralidade da religio em toda ex-presso cultural que envolve o ser humano na sua ntima constituio: aestrutura sacral e a religiosa (1998, p.146). Mesmo levando em consi-derao essa dimenso ntima entre cultura e religio, preciso consi-derar seu aspecto inacessvel compreenso, indefinvel e inefvel; areligio pertence ao domnio do irracional e o elemento mais ntimo; o mysterium tremendum e fascinans; o sagrado que, alm de seuaspecto irracional, reveste-se tambm do racional, que encontra ex-presso nos smbolos e em sinais estabelecidos e vlidos, conferindoassim religio uma estrutura slida e vlida universalmente. Graas centralidade da religio na cultura que a religio pode contribuir paradeterminar o ethos de um povo, o carter e a qualidade de sua vida,como tambm sua viso de mundo (GEERTZ, 1989, p. 103). Porisso, a religio constitui um modo de conceber a vida e ajustar a ordemcsmica imaginada s aes humanas e apresenta-se como suporteessencial para a construo da identidade, da alteridade e, ao mesmotempo, um meio que oferece pessoa humana possibilidades parasuperar as experincias adversas, frgeis e o caos com os quais nosdeparamos durante o nosso peregrinar terreno, permitindo viver nummundo que tenha sentido, significado e esperana. Atravs da religio,o ser humano soube imaginar, em todos os tempos, maneiras de su-perar suas limitaes recorrendo ao sagrado(...). Na experincia reli-giosa (...) o caos deve ser vencido pelo ato cosmognico, que no simples criao do mundo, mas especialmente, sua organizao, quefaz do mundo um espao inteligvel e funcional (CROATTO, 2001, p.45-47).

    Desse modo, a religio constitui um sistema simblico com sualinguagem especfica, sua estruturao, suas regras de combinao ede uso. O smbolo a chave da linguagem da experincia religiosa quese manifesta atravs do rito e do mito. Por smbolo entendemos tudoaquilo que une (do grego sim-ballo = unio de duas coisas); duas coi-sas separadas que, ao mesmo tempo, se complementam. No smbolo,uma parte remete outra, por exemplo: um pr-do-sol uma realida-de especfica com suas prprias caractersticas, mas que remete a um

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    outro sentido: nostalgia, beleza, saudade etc.. O smbolo, portanto,um elemento desse mundo fenomnico que foi transignificado enquan-to algo que vai alm de seu sentido primrio.

    A partir do que j foi exposto, se assumirmos a cultura como

    um padro de significados transmitido histori-camente, incorporado em smbolos, um siste-ma de concepes herdadas expressas emformas simblicas por meio das quais os ho-mens comunicam, perpetuam e desenvolvemseu conhecimento e suas atividades em rela-o vida (GEERTZ, 1989, p.103),

    ento podemos afirmar que a religio por constituir a centralidade dacultura um sistema simblico. Seus smbolos sagrados funcionampara sintetizar o ethos de um povo o tom, o carter e a qualidade dasua vida, seu estilo e disposies morais e estticos e sua viso demundo (p.103). Desse modo, a cultura e a religio com seus sistemassimblicos acabam permitindo a elaborao de um mapa socioculturalque define campos de significaes e demarca identidades.

    Concluindo, podemos afirmar que o sistema simblico pe emrelevo a coerncia lgica dos saberes filosficos, religiosos, artsticos,cientficos existentes num grupo. Por isso, para compreendermos ospovos afro-brasileiros, necessrio compreender um pouco de seusistema simblico.

    1.1 Herana cultural africana

    No podemos compreender a cultura afro-brasileira sem pene-trarmos um pouco na cultura africana. Pois nunca sabemos ou apren-demos o suficiente sobre a cultura de um povo quando sua concepocultural ou quando o seu sistema simblico, seu modo de ver o mundo,a vida e a realidade so diferentes do nosso1.

    O encontro entre duas pessoas sempre o encontro de duasconscincias, de dois imaginrios simblicos cuja recproca compre-enso passa pela capacidade de entender e reviver, a partir de dentro,a experincia do(a) outro(a), dentro do relativo contexto de elementos

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    visveis e observveis que so conhecidos. Por isso, ao falar de culturaafro-brasileira, necessrio analisar como as comunidades afro-brasi-leiras vem a si prprias e interpretam o seu mundo atravs de suasfestas e de sua religiosidade.

    A cultura afro-brasileira encontra suas razes na religio tra-dicional africana, que uma cultura integradadora na qual sagradoe profano so distintos mas no separados. O aspecto religiosoabrange, assim, toda a vida e no apenas uma parte dela. O africa-no uma pessoa essencialmente religiosa. Entre eles a religio coextensiva vida, experincia vivida intensamente e concreta-mente; no baseada nas palavras, nos conceitos e noes, masna experincia, que transmitida de gerao em gerao, permitin-do acompanhar o(a) outro (a) e ver com os mesmos olhos queo(a) outro(a) viu. A tradio se torna central para a compreensoda cosmoviso africana. Existe uma expresso popular que diz oseguinte: em frica quando morre um velho desaparece uma bi-blioteca, pois a literatura oral sempre foi uma grande riqueza cul-tural e os povos grafos so considerados povos de extraordinriamemria. A palavra est impregnada de respeito por aquele que alegou e o seu dinamismo vital comunica-se e prolonga-se em cadapessoa e no grupo. A transmisso ocorre por meio dos ritos e mi-tos, atravs das festas que so sempre espaos sagrados. atra-vs delas, com os ritos que as regem, que a pessoa atinge o mundopleno do ser. Atravs da dana ritual, conseguem sair da situaoatual para alcanar o mundo das origens, realizando uma mudanade identidade atravs de um processo simples e eficaz: as msca-ras. A festa submerge o homem no mar infinito do ser (ALTUNA,p. 32-37). Dessa forma, cada setor da vida de cada indivduo, dasociedade e da natureza est inserido numa viso sacral, que dsentido realidade.

    Como possvel traduzir para a nossa realidade ocidental umaespiritualidade que priveligia a linguagem smblica? Sabe-se que, entreos povos africanos, a terra, a mulher, o corpo, a rvore, a lua sosmbolos carregados de uma fora e tm um carter pragmtico. To-dos esses elementos confluem para a compreenso da vida dos afro-brasileiros, de seu sentido, seu significado e de sua unidade mais pro-

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    funda. a partir da unidade da pessoa com a natureza, com o cosmos,com a famlia e com a terra que encontramos a chave para a compre-enso do modo de ser do povo afro brasileiro.

    1.1.2 O fluir da vida integral

    O paradigma para o qual converge toda a compreenso da cul-tura africana a vida, ou seja, o ciclo vital. a partir da participaona vida que se fundamenta a religio tradicional africana.

    A vida para o bantu um dom de Deus, transmitida pelosantepassados e, por isso, sagrada. O nexo vital entre vivos e ante-passados sagrado. Por isso que a fecundidade entre os povos ne-gros est enraizada nas profundidades msticas do sagrado.

    Quem renuncia procriao rompe a corren-te vital e atraioa gravemente os antepassa-dos na continuidade de seu existir. A procria-o prova do dinamismo vital . Muitos soos ritos que protegem a fecundidade. Os vivosesto unidos na grande unidade do ser com osantepassados. O estril esgota os recursos m-gicos para arrancar esse apreciado dom dosantepassados, para escapar do influxo nefastode um feiticeiro ou anular um tabu quebrado.Abundam os feitios, amuletos e talisms, dafecundidade (ALTUNA, p. 67).

    Dessa forma, podemos perceber como a sociedade bantu sexiste enquanto h uma continuidade vital, solidria, de vivos e ante-passados e de vivos entre si. Toda a ordem social, a vida comunitriae as instituies fundamentam-se nessa corrente vital que permite aunio dos dois mundos. Por isso, necessrio cuidar, defender, reali-zar rituais, pois esta a primeira obrigao tica tanto do indivduocomo do grupo.

    Assim, a vida para o bantu: sentir o(a) outro(a), danar come para o(a) outro(a), fazer amor para e com o(a) outro(a) e, por isso,ele(a) sente a sua existncia, sente-se, sente o(a) outro(a), encaminha-

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    se para o(a) outro(a), no ritmo do outro(a); somente assim, o(a)negro(a) e, especialmente o bantu, sente a si mesmo e a sua existncia.Ele(a) conhece vivendo, porque vive a vida do(a) outro(a) ao identifi-car-se com o outro(a), mas especialmente com o Outro e oantepassado.

    Tendo apontado alguns elementos fundantes da concepo devida bantu, veremos, a seguir, como esses elementos esto presentesem algumas comunidades afro-brasileiras em Gois e como se mani-festam.

    2 A construo do afro-brasileiro passa pelo resgate da mem-ria da ancestralidade

    No Brasil, durante o perodo da Colnia e do Imprio, estabe-lecem-se processos de resistncias por intermdio dos quilombos edas manifestaes religiosas e culturais. Diante do racismo, que nega odireito e a igualdade aos negros, s suas comunidades, s suas mani-festaes religiosas e a seus movimentos, os negros, aos poucos, vo-se organizando, ampliando e consolidando o leque de seus direitos.Mas, ao observamos a realidade dos afro- brasileiros, percebemosque eles desejam, cada vez mais, uma forma de cidadania que lhesgaranta a sua especificidade por meio de uma identidade que lhe prpria e que lhes garanta ser brasileiros, mas de maneira diferencia-da. E isso acontece porque os negros, ao se pautarem por um sistemasimblico que tem como pressuposto a ancestralidade e o ciclo vital,vo buscar exatamente como referencial uma memria negra. A cons-truo de um ser brasileiro diferenciado passa pelo pertencimento acomunidades onde cultuam, possuem e buscam, como referencial, umamemria-negra (MENDONA, 1998, p. 43). Segundo Braga, (1992apud MENDONA, p. 43) ao se pautarem por um modelo deancestralidade africana, os indivduos redefinem-se como pessoas den-tro de suas comunidades, sem perder de vista as conexes e articula-es com a sociedade envolvente. Segundo Peressini (1993 apudMENDONA, p. 44), afirmar a diferena, reencontrar os funda-mentos de sua cultura, fortalecer a solidariedade do grupo e aspirar auma autonomia poltica representam, ento, iniciativas necessrias e

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    vlidas para sair de um estado de subordinao e (recuperao) decerta dignidade.

    Vejamos, a seguir, como, em algumas comunidadesafrodescendentes em Gois, as pessoas vem a si prprias; como es-to presentes os elementos ancestrais e como estes so ressignificados.

    2.1 Grurayne: a conscincia de pertena e de ser negro(a)

    Nas comunidades entrevistadas, observou-se uma busca cont-nua pela ancestralidade, pela necessidade dos indivduos e grupos as-sumirem com determinao sua identidade. Notou-se que, ao mesmotempo em que eles (as) tm uma conscincia relevante de serem dife-renciados, buscam, na maioria das vezes, atravs de vrias maneiras,mostrar essas dimenses.

    Quanto ancestralidade, vejamos o que um integrante do grupoGrurayne disse:

    Nossa finalidade resgatar as razes africa-nas atravs da dana, da corporeidade e doteatro. (...) Temos que dar valor ao lugar dasnossas origens, de onde ns viemos (...). Te-mos que voltar atrs. Sabemos que nossa cul-tura veio de l. Esta conscincia muito im-portante para ns.

    Observa-se nestas colocaes um desejo de retorno s razes ede respeito por elas:

    preciso valorizar a cultura africana no dia adia e nas comemoraes atravs de teatro, dadana, das cores de tudo aquilo que nos fazlembrar a Africa. muito importante tambmestudarmos e conhecer as nossas razes osnossos ancestrais.

    Quanto conscincia de ser brasileiro diferenciado, eles afir-mam: Ns nos sentimos bem aqui, gostamos de nos vestir de maneira

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    colorida, gostamos de cores fortes, de alegria, festa e felicidade; deoutro lado, h uma conscincia de que esse ser diferente ser discri-minado, no ser respeitado na sua dignidade: a dana afro, as co-res, a religio so discriminadas... elas mostram tambm a nossa po-breza a nossa marginalizao. Uma jovem assim nos dizia a respeitodas roupas, comidas e danas afro, mas especialmente em relao aomodo de vestir: Sinto-me meio a meio. Muitos temos medo de mos-trar o que somos. Muitos no se mostram, tm vergonha de si mesmose de sua cor. Mas ns continuamos dando valor cultura que nsrecebemos.

    Perguntados sobre como a capoeira lhes permite resgatar a cul-tura africana eles respondem:

    Ns somos um grupo de 150 pessoas. Estenmero assim to grande porque as pessoasvm aqui e se sentem bem. Eu mesmo j fuifazer cultura japonesa (jud, karat) mas muito fria, tentei jogar volei mas no tinha nadaa ver. Na capoeira tem uma energia, tudo organizado. Ela est no nosso sangue... bastaouvir os sons do berimbaus para a gente sesentir um novo modo de vida.

    Outra jovem do grupo acrescentava:

    Na capoeira ns expressamos a nossacorporeidade, fui aprendendo a me defender,criar auto estima e a ter respeito pelos outrose pela cultura dos nossos antepassados. Te-mos que mostrar que somos negros mesmo.Temos que assumir nossa negritude sem ne-cessitar que os outros nos lembrem que so-mos negros . Capoeira um esporte que dana e ao mesmo tempo resgata a culturavivida, voc se torna voc.

    Diante desta colocao, podemos falar de um processo de iden-tificao que comea a ser construdo pela comunidade negra. Esse

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    processo se d de forma dinmica e diante do qual a pessoa vai elabo-rando os seus smbolos, vai construindo a si e a seu mundo. A pessoacomea a construir um mundo simblico com o qual se identifica e pormeio do qual organiza suas experincias. Na maior parte dos gruposentrevistados, observa-se uma valorizao dos elementos simblicosda cultura negra. Esse resgate que se d em funo das inter-relaesmediadas especialmente pelas crenas e prticas religiosas. SegundoFerreira (2000, p. 40), os valores ancestrais africanos passam a parti-cipar da constituio sociocultural e sua sabedoria est presente nasmanifestaes culturais, nos gestos, nas relaes e, aos poucos, vo-se constituindo parte fundamental do processo de formao da cida-dania.

    Perguntados sobre o que eles entendiam por cultura, responde-ram: cultura vida, procurar as razes, ser saudvel, buscar pelavida, auto-estima. No nosso grupo no temos preconceito por ser-mos negros e capoeristas. Ns somos felizes quando os brancos estoconosco. Parece que, nesse grupo, ou ao menos para boa parte dele, um orgulho ser negro. Ao longo da entrevista, fomos sentindo queeles agem como se existisse uma identidade negra de maneira clara eobjetiva da qual eles fazem parte.

    Sabemos que essa identidade no dada, ela um processodinmico, ela construda. No sentimos, por parte dos grupos estu-dados, sentimentos de revolta para com as pessoas brancas. Helms(apud FERREIRA, 2000, p. 79) descreve esse momento como umaverdadeira experincia de converso religiosa. Pode-se supor noter ainda a pessoa, no final desse estgio, desenvolvido uma identida-de articulada em torno de valores negros, mas de j haver tomado adeciso de tornar-se negra.

    Ferreira (2000), em suas pesquisas, afirma que at os afro-des-cendentes assumirem a conscincia de ser negro ou negra, eles pas-sam por vrios estgios: diante da discriminao racial, o negro tendea manter uma tendncia de aceitao do imaginrio simblico branco eesse fato faz com que ele sofra todo tipo de discriminao, de afronta sua dignidade: agresses fsicas, verbais ou psicolgicas em funode suas caractersticas e, por isso, ele no aceita a sua negritude; ele arejeita. Este o estgio de submisso. A seguir; o negro que sofre a

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    discriminao comea a tomar conscincia da discriminao sofridaao longo da vida pelo grupo hegemnico branco atravs de participa-o em grupos de conscincia e valorizao dos aspectos culturais ereligiosos negros, atravs de grupos artsticos, de movimentos em quecirculam informaes favorveis a respeito da cultura negra, das suasrazes histricas, das suas experincias de lutas e de seus valores e acomea a repensar suas concepes sobre o ser negro. A partir da, oindivduo ou o grupo comea a se dar conta de quanto foi vtima deatitudes racistas ao longo de sua vida, sofrendo assim uma desarticu-lao de seu mundo simblico, o que sempre acompanhado de an-gstia (FERREIRA, 2000, p. 78) e de uma crise profunda de identi-dade. Essas situaes provocam um impacto muito grande e gerammuita ansiedade e conflito interno nas pessoas negras. Nlas sentem-seconfusas, assustadas e anmicas. Isto pudemos sentir na fala de umajovem negra quando relatava sua experincia: eu ainda me sinto meioa meio; ainda no consigo vestir as roupas afros ou me dedicar total-mente s atividades do grupo afro. Ainda sinto medo de mostrar o quesou. Vejo que tambm muitos so como eu, eles tm vergonha de semostrarem como so, tm vergonha de si mesmos e de sua cor.

    Em seguida, os negros e negras vo lidando com as novas per-cepes com seu novo sistema simblico e sua nova construoidentitria que geram grande energia. Assim, a pessoa passa, normal-mente, por uma fase de rejeio do mundo branco, do seu imaginriosimblico, de uma extrema valorizao das roupas afros, de suas co-midas, suas msicas, sua cultura etc. No grupo pesquisado, um dosintegrantes dizia: ns hoje nos sentimos bem, temos alegria, felicida-de. Gostamos das roupas coloridas, no temos vergonha da nossacor, nos interessamos pelas nossas razes africanas e procuramos estu-dar sobre elas.

    Eles(as) descobrem a dimenso da negritude como valor, comovida e vida plena. A descoberta da negritude lhes fornece o espaopara que eles e elas sejam, para que elas e eles vivam. da que ocor-re, segundo Helms (apud FERREIRA), uma espcie de conversoreligiosa pela qual a pessoa assume a deciso de tornar-se negra(FERREIRA, 2000, p. 75-79): 40% assume a sua negritude mas tam-bm tem branco que se sentem negros e negros que ainda no se acei-

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    tam. Aqueles que assumem sua negritude se sentem bem mas elas nosabem porque. Segundo Ferreira (2000), nesse estgio, as pessoasparticipam de movimentos e de organizaes voltadas busca de es-tratgias de combate discriminao, valorizao racial e, ao mes-mo tempo, muito da hostilidade contra os brancos diluda nessa fase:nos sentimos felizes quando os brancos esto conosco, participamconosco, dizia um rapaz do grupo.

    Percebe-se que, nesse grupo, h uma busca contnua pela suaidentidade negra e uma conscincia de que essa identidade mais au-tntica medida que h uma maior conscientizao e conhecimentodos valores africanos e medida que se assume o ser negro como algoque garante ao grupo poder resgatar sua cidadania e seus valores en-quanto pessoa.

    2.2 Congada da Vila Santa Helena: a ancestralidade como prin-cpio de nomia

    No grupo de congada2, pesquisado em Goinia, um membrodizia:

    eu sou branco, mas eu sou misturado com ne-gro e me considero igual a ele que preto.Antigamente no era permitido (em Catalo)os brancos participarem das festas dos negros.Eu comecei a participar atravs de uma pro-messa feita por meu pai que na poca estavamuito doente e fez um voto. Se ele melhoras-se eu (na poca tinha 12 anos) iria participarda congada em Catalo s por um ano e assimo grupo me deixou entrar. Eu dancei um ano,hoje tenho sessenta e nove anos e nunca dei-xei de danar um ano.

    Na entrevista com esse grupo, pudemos identificar a importn-cia da organizao do grupo baseada na vontade de um antepassado:o av, o tio, um antepassado. Isso nos remete ao conceito deancestrolatria e ao peso que os antepassados tm na cultura das co-munidades afro-brasileiras estudadas.

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    A ancestralidade assegura o vnculo entre os seres visveis einvisveis. No acatar a ordem de um ancestral significa trazer paraa comunidade desequilbrio, angstia, anomia e desordem. Nessesentido, as pessoas entrevistadas afirmavam a importncia de po-der participar dessas festas, pois, somente assim, o mundo, paraeles, tm sentido (nomia) e, alm do mais, cumprindo o desejo dosantepassados, esto evitando que algo de mal lhes acontea: Euno deito na minha cama se no rezar para Nossa Senhora do Ro-srio e no pedir para ela a proteo ou agradecer. Tudo isso aju-da a gente se manter.

    A festa, para essa comunidade, tem um significado e est pro-fundamente enraizada nas realidades pessoal e comunitria, que soelementos constantes da cultura bantu. Na festa da congada, existe umcompromisso entre pais e filhos e entre os parentes. Essa promessalembra aspectos da tradio oral dos bantu: aquilo que dito pelosmais velhos deve ser ouvido, respeitado e cumprido e, alm dos mais,a festa fortalece os laos sociais e comunitrios do grupo.

    Compreende-se da o quanto o fazer memria importante paraesses grupos e como tudo isso estabelece a nomia, necessria paraque as pessoas se valorizem e se assumam em plenitude.

    Concluso

    Da anlise deste trabalho podemos perceber como esto pre-sentes elementos da cultura bantu nas comunidades pesquisadas ape-sar das ressignificaes aparentemente estruturais. Essas comunida-des exprimem uma relao profunda com seus antepassados e com ame frica. H uma busca contnua para a recuperao da tradio eda memria no como algo do passado mas como algo que nos leve acompreender o presente dessas comunidades: por que sou negro (a)?Por que sou discriminado (a) no meu corpo, no meu jeito de ser e deme expressar? E, afinal, quem sou eu?

    Pudemos observar que na concepo religiosa da vidaque os afro-brasileiros (as) encontram respostas a vrias perguntas.As religies afro-brasileiras constituem tambm o espao onde essascomunidades vo buscar o espao para o resgate de suas tradies,

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    de sua cidadania, sua auto-estima e onde a identidade e os valoresculturais so garantidos pela harmonia da vida.

    Notas

    1 A muitas informaes que aqui se encontram tivemos acesso atravsde autores africanos como Langa (1992); Ngoenha (1992); e deafricanistas europeus Altuna (1985); Geffray (1991), que se debru-aram sobre o mundo bantu.

    2 Entrevistamos, em Goinia, o grupo de Congada da Vila Santa Hele-na (11/6/02). Participaram da entrevista trs pessoas: d. Maria Jos,sr. Osrio Alves, d. Aurlia e o sr. Joo Honorrio.

    Referncias

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    FERREIRA, Franklin Ricardo. Afro descendente: identidade emconstruo. Rio de Janeiro/So Paulo: Pallas/Educ, 2000, 186 p.

    GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro:LTC 1989, 323 p.

    GEFFRAY, Christian. A causa das armas: antropologia da guerracontempornea. Porto: Afrontamento, 1991, 186 p.

    LANGA, Adriano Langa. Questes crists religio tradicionalafricana: Moambique. Braga: Franciscana, 1992, 256 p.

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    MENDONA, Cleonice Pitangui. Mesa redonda: universalidade,identidade e minorias tnicas. In: Freitas, Carmelita Brito de (org.).Memria: anais do I Seminrio e da II Semana de Antropologia daUniversidade Catlica de Gois. Goinia: UCG, 1998. 189 p.

    NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimenso moambicana daconscincia histrica. Porto: Salesianas, 1992, 157 p.

    Breve Curriculum VitaeIrene Dias de Oliveira teloga pela Pontifcia Faculdade Teolgicada Itlia Meridional. Viveu em Moambique onde desenvolveu proje-tos de pesquisa sobre a cultura bantu e desde 1998 vive em Goinia(Brasil) onde desenvolve sua atividade acadmica na UniversidadeCatlica de Gois. pesquisadora junto ao Ncleo de Pesquisa daReligio onde se dedica s questes da cultura bantu e suas influnciasna realidade dos afro-brasileiros especialmente no Centro Oeste. membra do Centro Atabaque de Cultura Negra e autora de vriosartigos e livros sobre o assunto entre os quais se destaca o livro Iden-tidade negada e o rosto desfigurado do povo africano (os Tsongas).

    Endereo para contato:Profa. Dra. Irene Dias de OliveiraE-mail: [email protected]