Religiosidade

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Religiosidade Filosófica Por Elaine Herrera Todas as coisas subjetivas ou não, estão inseridas num contexto cosmológico. O conhecer-se, como o descobrir ou redescobrir a origem das convenções, numa perspectiva cadente de conceituar todos os fenômenos e acontecimentos que despertam no homem, as efêmeras decodificações do universo. Que se traduz num grande mito cosmológico. A necessidade de analisar, organizar e descrever a existência que o permeia. Mas seria ingenuidade pensar apenas nesse interesse particular pelo presente, ele vai muito além. O homem carrega em si uma intrínseca curiosidade pelo passado longínquo, uma permanente busca de explicações, para fundamentar seus delírios ávidos por sanidade. Nessa estruturação o homem propôs-se a determinar todas as questões que lhe rodeiam. Estipulando, leis, normas, estabelecendo sua própria justiça e criando neste universo, explicações as quais achar convenientes para exemplificar o que ele na verdade, no mais intimo de seu intelecto não conhece. Uma analogia pragmática visando estabelecer a idéia do sobrenatural, numa simetria do homem e do divino. O homem envolto na ânsia da decodificação dos códigos de tudo que é inerente a sua vida. Estabelece padrões de comportamento, de moralidade; fixando regras questionáveis de favorecimento humano. Organizar o lugar em que vive a formação do estado, da cidade; carregando todas suas especificidades regionais e climáticas. Junto à formação legislatória, que regulamenta e propicia que o homem caminhe e prepare novas gerações para a civilidade humana. Essa incumbência ocupa o tempo do homem, num tempo que na verdade não é dele,

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Religiosidade Filosófica

Por Elaine Herrera

Todas as coisas subjetivas ou não, estão inseridas num contexto cosmológico. O

conhecer-se, como o descobrir ou redescobrir a origem das convenções, numa perspectiva

cadente de conceituar todos os fenômenos e acontecimentos que despertam no homem, as

efêmeras decodificações do universo. Que se traduz num grande mito cosmológico.

A necessidade de analisar, organizar e descrever a existência que o permeia. Mas seria

ingenuidade pensar apenas nesse interesse particular pelo presente, ele vai muito além. O

homem carrega em si uma intrínseca curiosidade pelo passado longínquo, uma permanente

busca de explicações, para fundamentar seus delírios ávidos por sanidade.

Nessa estruturação o homem propôs-se a determinar todas as questões que lhe

rodeiam. Estipulando, leis, normas, estabelecendo sua própria justiça e criando neste universo,

explicações as quais achar convenientes para exemplificar o que ele na verdade, no mais

intimo de seu intelecto não conhece. Uma analogia pragmática visando estabelecer a idéia do

sobrenatural, numa simetria do homem e do divino.

O homem envolto na ânsia da decodificação dos códigos de tudo que é inerente a sua

vida. Estabelece padrões de comportamento, de moralidade; fixando regras questionáveis de

favorecimento humano. Organizar o lugar em que vive a formação do estado, da cidade;

carregando todas suas especificidades regionais e climáticas. Junto à formação legislatória,

que regulamenta e propicia que o homem caminhe e prepare novas gerações para a civilidade

humana.

Essa incumbência ocupa o tempo do homem, num tempo que na verdade não é dele,

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mas do cosmo. Num momento em que despertada a reflexão, desvenda o quão sinuosas são as

tradicionais instituições conceituadas pelo homem. Que enxerga no universo divindades

astrais antagônicas, pois são carentes de culto e reverência. E também são possuidoras de um

poder mítico reguladoras da vida no cosmo. Goldschmidt, (1970, p. 111) “as divindades

astrais não se desinteressam de nenhuma parcela deste mundo confiado à sua solicitude”.

O pensamento carnal se refugia no pensamento espiritual que transcende em

manifestações ideológicas das essências que vão perpetrar num movimento cíclico; e eficaz

do cosmo. A religiosidade estabelece cronogramas para toda uma gama de eventos que são

firmados na retórica das necessidades e ensejos da alma.

O homem inserido nas transições cotidianas entrega-se as sutilezas celestiais quando

se desprende de si mesmo, por amor ao outro. Filosoficamente as virtudes como a mansidão e

a benevolência repousam na comunicação para o bem comum. Enquanto a alma carregada de

culpa leva a interpretações imersas em superstições. O culto oficial enverniza o homem como

cidadão piedoso desde que fielmente inserido no grupo.

Platão contrário ao governo dos sacerdotes abre espaço a dialética que intervém não de

questionamentos a consciência religiosa, mas nas curiosidades sobre quanto a veracidade das

divindades astrais. Esse questionamento é descrito por Detienne em Dionísio a Céu Aberto,

que de maneira direta relata as comparações entre os homens e as divindades, num discurso

conciso de um Deus que oscila diante de seu adepto. Um Deus que demonstra em seu íntimo

estranheza, de Deus estrangeiro, ausente, mascarado, usurpador, qual desses seria a verdadeira

face de Dionísio.

Essas indagações só poderão ser justificáveis no pensamento filosófico aberto a

flexibilidade, como no pensamento de Platão contrário a unidade de corpo e alma. No

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pensamento platônico a alma está temporariamente inserida no corpo, e é nele onde são

guardados todos os desejos mundanos, a alma está acima das conjecturas essencialmente

humanas e terrenas.

E neste misticismo pitagórico, que se cristaliza a essência da transitoriedade e pureza

da alma. Que apoiada na consciência da prática de suas virtudes desprenderiam eternamente

do corpo exposto ao ciclo migratório da alma dentro de um contexto associado às provações e

tentações supostamente carnal, portanto impura. A alma deveria dirigir-se na contemplação de

espaços elevados da essência espiritual para atingir um estágio de celeste imortalidade.

Este processo empírico do desprendimento da matéria está atrelado a uma

religiosidade mítica, na qual Aristóteles teoriza como elemento a seguir a total generalização

das experiências adquiridas com conhecimento sugestionando a razão. O que especula que

todos os acontecimentos são conseqüências de uma interiorização positiva ou negativa do ser.

Um avanço em concepções alheias as experiências cientificas, mas totalmente voltada para as

expressões abstraídas de uma subjetividade comportamental de ideologias humanas.

A filosofia sensorial capaz de promover as verdades e realidades num epicurismo

revelador dos sistemas mentais de natureza atemporal. Explicável somente pelo caminho

A busca pela razão centrada num conhecimento filosófico, apoiada na serenidade da

memória como método de preservação das satisfações vivenciadas para subtrair a

negatividade evidenciada num período de fatalidades trágicas e a fuga das paixões que

acometem o homem num ambiente impiedoso de situações transbordantes de caos que

conceituam o epicurismo revelam a natureza dogmática numa densa e complexa concepção da

filosofia iônica, que análoga ao epicurismo centrado no esforço humano em apoiar-se nas

virtudes, traz as dimensões dos acontecimentos ao âmbito dos deuses.

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Na mentalidade filosófica do século VI, existia uma clareza das verdades análogas.

Como pensavam os pré-socráticos que se despiram das conotações míticas e religiosas da

natureza, comum em sua época, adotando pensamentos científicos mais impregnados de

preocupações cosmológicas. Assim como nos oráculos de Apolo que inseriam aos

acontecimentos a parcialidade do destino. Uma sucessão imutável da ação na fatalidade,

concentrada por vezes na dubiedade das explicativas.

Como na genialidade expressa por Empédocles da harmonia e desarmonia no

movimento cíclico dos elementos fundamentais: terra, água, fogo e ar. Em seu pensamento

cosmológico eles ocupam o espaço na medida das necessidades cósmicas. Assim como a alma

estava sujeita também a este movimento cíclico de reencarnação numa transmigração.

Pensamento também partilhado por Pitágoras.

Empédocles foi um cientista, um mago, um curandeiro. Ou exerceu apenas a função de

um filósofo capaz de imaginar num mesmo contexto paradoxos que se associam para

estabelecer todas as funções cosmológicas da natureza. Submerso nos pensamentos que

esclarecem a natureza das coisas, influenciado pela doutrina epicurista Lucrécio também se

concentrou nas explicativas do universo, através do científico, mas atrelado a mãe das

religiões. Numa projeção do que é fato, imagens sem referente, equívocos causados pelo

simulacro, a superstição.

Numa visão atomista, de cisão do universo, na negativa da provação do destino, a não

conceituação pela fatalidade. Ainda aberto na descoberta dos mitos de criação e na aventura

da liberdade de seus pensamentos, Lucrécio permite-se prever o futuro, pressentindo os mitos

de destruição. Ainda que suas indagações não se concretizassem, isso não o afetava de modo

algum em suas convicções.

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Como na narrativa de Cornford (1975, p. 103) “A instituição poética de Lucrécio

distingue, por detrás da doutrina aparentemente prosaica e materialista da ‘apreensão mental’

de Epicuro, uma analogia com as intuições do vidente ou profeta inspirado”. Lucrécio expõe-

se através de sua obra um materialista, anti-religioso, que privilegia o prazer na argumentação

ontológica e de sua cultura científica e filosófica.

Anormalidade era o que sugeria Demócrito nos segmentos envoltos de adivinhações,

previsões, e nas relações com o divino. A emoção seria o canal de ligação dos átomos

psíquicos num movimento de contínua excitação, capacitando adentrar num ambiente

divinizado e estabelecendo supostamente uma comunicação com deuses ou entidades sobre-

humanas. Um misterioso interpolar no universo místico e sobrenatural calcado numa

temporária loucura.

Assim como na ausência da racionalidade ou na falta de um dos sentidos esta conexão

pode também se estabelecer num formato instintivo. A formação do universo pelos átomos e

pelo vácuo se caracteriza neste contexto de edificação dos conceitos de Demócrito sobre a

constituição da tradição asceta contemplativa. Da fuga do espírito para as regiões celestiais e

invisíveis para realidade sucinta da inteligência.

Reside neste pensamento uma analogia entre Demócrito e Platão que uniram a

inspiração, a sabedoria intuitiva do filósofo. Faz-se necessário no processo de criação a

loucura das musas, a arte poética e a criação inspiratória. Mas esse perspicaz homem munido

de tamanhos talentos religiosos e capacidade poética não impressionaram a Sócrates que

buscava um conhecimento explícito, fundamentados na lógica.

Sócrates formula o conhece-te a ti mesmo, num conceito filosófico moral. Mas

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Sócrates acredita num governante, legislador e provedor, um ser superior1. O conhecimento

de Deus fundado na razão humana. E ele carrega nos momentos finais de sua vida, tomado

por uma condenação impiedosa a essência do sagrado, onde atribui-se estar a serviço de

Apolo e estabelece na filosofia uma prática inserida na missão divina.

Acreditando que através da morte pode-se encontrar a benção pelo desligamento da

alma ao corpo. Que em vida terrena está presa as vontades dos sentidos dificultando a

aquisição da sabedoria. Neste sentido Sócrates demonstra uma tendência inspiratória,

praticada na loucura e vidência poética. Pois esta loucura revela na iniciação e na purificação

a consistência da absolvição e da libertação decorrente da busca infindável pelos deuses.

Neste processo de purificação, a figura do profeta patente das adivinhações passadas e

futuras especifica as profecias, que como Aristóteles as identificava como ocultos presságios

do passado. Essas profecias eram perseguidas por amargurados de alma, sofrendo as

investidas perturbadoras de espectros e por contrair enfermidades funestas.

Esses aflitos de espíritos eram levados pelo oráculo de Delfos a recorrerem aos

purificadores. Cabe suscitar a lembrança que a visão profética não se restringia só a alento das

amarguras como ocorrido a Epiménides que no serviço a Apolo introduziu o culto apolíneo

até então reservado a aristocracia ateniense numa religiosidade nacional, reformulou aos

mistérios e envolveu Sólon numa investidura sobrenatural.

A união de Mnemósine, memória e Zeus procedem as Musas que habitam o Olimpo e

divinizam a memória e inspirando o conhecimento do mundo, as artes e as ciências. Através

de sua visão introduzem o advento da memória para celebração de virtudes heróicas. Assim

como na condução da imortalidade, já que o morto foi perdido, e conseqüentemente

1 PLATÃO.Fédon. – Coimbra: Livraria Minerva, 1998.

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esquecido. Enquanto a imortalidade traz em si a perene memória sagrando o heroísmo.

Esse conhecimento inspirado pelas Musas habitava somente na alma, única capaz de

armazenar e recuperar o conhecimento que num corpo transitório se perderia com a

mortalidade. Neste contexto toda utilidade concentra-se na alma que move-se em si mesma

incitada pelo desejo das conexões que a orientam na posse de seus objetos.

Os desejos forjados por essas conexões determinadas por partes da alma, racional ou

emotiva, acompanham as atitudes reveladas nesta ambigüidade que determinam o despertar

do princípio filosófico de contemplação da verdade na percepção do conhecimento resvalando

na sabedoria.

Sendo essa sabedoria, fruto de um conhecimento verdadeiro de fé, as virtudes se

cristalizam e nas fases intermediárias entre o divino e o mortal pode resvalar em posições

sábias ou ignorantes. Já que os portadores da comunicação com o divino, os mensageiros

neste canal sacro são espíritos. Que levam petições, rituais e sacrifícios dos mortais e trazem

dos deuses respostas, adivinhações e bênçãos.

Existem nestas indagações da sabedoria e da ignorância, ensejos guardados que não

cabem aos especificados rótulos. Na realística dos termos há uma variável que se encontra

entre aqueles que não são nem sábios nem ignorantes. Mesmo porque o ignorante, não tem em

si está percepção da ciência do saber.

Neste sentido variável entre o saber, e o não saber encontra-se o tema atribuído a Eros,

a felicidade pela beleza e bondade, centrada no amor pela sabedoria. Eros não se restringe ao

amor passional, mas também a toda forma de desejo de felicidade e de coisas boas numa

aquisição atemporal. Nessa imortalidade a raça, a fama, os pensamentos, e a criação se

apropriam dos sentidos na essência da energia. O amor pela beleza em si, a verdadeira

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natureza de Eros, concentra-se na paixão pela imortalidade, na eternidade do mundo.

O adestramento da alma para melhor vivenciá-la sem sujeitar-se ao jugo de um mundo

profano em meio à consciência divina intitulada na busca pela educação racionalizada

sugestionando o adestramento da razão. A alma divinizada não está inserida na pura e simples

racionalização ou na contemplação da verdade, ela insiste no princípio de energia do belo

classificado no desejo a bondade.

Nos mistérios de Elêusis2 onde são celebrados o culto de retorno da vegetação, na

primavera. As formas míticas relacionadas aos ritos mágicos para fertilidade dos elementos

naturais eram preceitos destes mistérios. O sentimento religioso sucedia as revelações dos

símbolos da divindade e a revelação da alma associando a beleza divina que se apropria da

imortalidade divina. Constituindo o conceito da verdadeira virtude que procede do amor

aliado a beleza natural.

Concluímos com este aparato que profeta, poeta e sábio eram intrinsecamente ligados,

formados para ser em sua originalidade uma só figura que no observatório de seus históricos

deveriam seguir critérios cristalizados na imortalidade. Dependentes da inspiração de Apolo,

das ninfas e de Eros. A adivinhação intuitiva do poeta unida a sabedoria do filósofo o levaria

a transcender de uma experiência comum e carnal na formação de uma religiosidade

implicitamente filosófica.

2 CORNFORD, F.M. - Principium Sapientiae. As Origens do Pensamento Filosófico Grego. 2ª Ed. Lisboa: FCG.

1975. E VERNAT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. – São Paulo: Martins Fontes, 2006. Nesta

ultima obra o autor explica as principais singularidades do culto Eleusiano.

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Bibliografia:

CORNFORD, F.M. - Principium Sapientiae. As Origens do Pensamento Filosófico Grego. 2ª

Ed. Lisboa: FCG. 1975.

DETIENNE, Marcel. Dioniso a Céu Aberto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

GOLDSCHMIDT, Victor. A Religião de Platão. 2ª Ed. São Paulo: Difusão Européia do

Livro, 1970.

PLATÃO. Fédon. Coimbra, 1998.

VERNANT, Jean- Pierre. Mito e Religião Na Grécia Antiga. São Paulo: Livraria Martins

Fontes, 2006.