Reliquias casa velha

download Reliquias casa velha

If you can't read please download the document

Transcript of Reliquias casa velha

  • 1. Relquias de Casa Velha, de Machado de AssisTexto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.Texto-base digitalizado por: NUPILL - Ncleo de Pesquisas em Informtica, Literatura e Lingstica Universidade Federal de Santa CatarinaEste material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que as informaes acima sejam mantidas. Para maiores informaes, escreva para .Estamos em busca de patrocinadores e voluntrios para nos ajudar a manter este projeto. Se voc quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para e saiba como isso possvel.Relquias de Casa Velha Machado de AssisNDICE:1. 2. 3. 4. 5.PAI CONTRA ME MARIA CORA MARCHA FNEBRE UM CAPITO DE VOLUNTRIOS SUJE-SE, GORDO!6. 7. 8. 9. 10.UMAS FRIAS EVOLUO PLADES E ORESTES ANEDOTA DO CABRIOLET PGINA CRTICAS E COMEMORATIVAS

2. PAI CONTRA ME A ESCRAVIDO levou consigo ofcios e aparelhos, como ter sucedido a outras instituies sociais. No cito alguns aparelhos seno por se ligarem a certo ofcio. Um deles era o ferro ao pescoo, outro o ferro ao p; havia tambm a mscara de folha-de-flandres. A mscara fazia perder o vcio da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha s trs buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrs da cabea por um cadeado. Com o vcio de beber. perdiam a tentao de furtar, porque geralmente era dos vintns do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e a ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal mscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcana sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, venda, na porta das lojas. Mas no cuidemos de mscaras. O ferro ao pescoo era aplicado aos escravos fujes. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa tambm direita ou esquerda, at ao alto da cabea e fechada atrs com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. H meio sculo, os escravos fugiam com freqncia. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravido. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia algum de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono no era mau; alm disso, o sentimento da propriedade moderava a ao, porque dinheiro tambm di. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, no raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganh-lo fora, quitandando. Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anncios nas folhas pblicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito fsico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificao. Quando no vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se- generosamente", -- ou "receber uma boa gratificao". Muita vez o anncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalo, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse. Ora, pegar escravos fugidios era um ofcio do tempo. No seria nobre, mas por ser instrumento da fora com que se mantm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implcita das aes reivindicadoras. Ningum se metia em tal ofcio por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptido para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir tambm, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pr ordem desordem. Cndido Neves, -- em famlia, Candinho,-- a pessoa a quem se liga a histria de uma fuga, cedeu pobreza, quando adquiriu o ofcio de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, no agentava emprego nem ofcio, carecia de estabilidade; o que ele chamava caiporismo. Comeou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez no ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comrcio chamou-lhe a ateno, era carreira boa. Com algum esforo entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigao, porm, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartrio, contnuo de uma repartio anexa ao Ministrio do Imprio, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. 3. Quando veio a paixo da moa Clara, no tinha ele mais que dvidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofcio. Depois de vrias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofcio do primo, de que alis j tomara algumas lies. No lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. No fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofs e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento no se demorou muito. Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era rf, morava com uma tia, Mnica, e cosia com ela. No cosia tanto que no namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; no tinham outro empenho. Passavam s tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, at que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de canio, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era s para andar roda da isca, mir-la, cheir-la, deix-la e ir a outras. O amor traz sobrescritos. Quando a moa viu Cndido Neves, sentiu que era este o possvel marido, o marido verdadeiro e nico. O encontro deu-se em um baile; tal foi--para lembrar o primeiro ofcio do namorado, -- tal foi a pgina inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relaes dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arred-la do passo que ia dar. No negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas. --Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, no caso com defunto. --No, defunto no; mas que... No diziam o que era. Tia Mnica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, faloulhes uma vez nos filhos possveis. Eles queriam um, um s, embora viesse agravar a necessidade. --Vocs, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia sobrinha. --Nossa Senhora nos dar de comer, acudiu Clara. Tia Mnica devia ter-lhes feito a advertncia, ou ameaa, quando ele lhe foi pedir a mo da moa; mas tambm ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. A alegria era comum aos trs. O casal ria a propsito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cndido; no davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforo. Ela cosia agora mais, ele saa a empreitadas de uma cousa e outra; no tinha emprego certo. Nem por isso abriam mo do filho. O filho que, no sabendo daquele desejo especfico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porm, deu sinal de si a criana; varo ou fmea, era o fruto abenoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mnica ficou desorientada, Cndido e Clara riram dos seus sustos. --Deus nos h de ajudar, titia, insistia a futura me. A notcia correu de vizinha a vizinha. No houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, alm das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criana. fora de pensar nela, vivia j com ela, media-lhe fraldas, 4. cosia-lhe camisas. A poro era escassa, os intervalos longos. Tia Mnica ajudava, certo, ainda que de m vontade. --Vocs vero a triste vida, suspirava ela. --Mas as outras crianas no nascem tambm? perguntou Clara. --Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... --Certa como? --Certa, um emprego, um ofcio, uma ocupao, mas em que que o pai dessa infeliz criatura que a vem gasta o tempo? Cndido Neves, logo que soube daquela advertncia, foi ter com a tia, no spero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se j algum dia deixara de comer. --A senhora ainda no jejuou seno pela semana santa, e isso mesmo quando no quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... --Bem sei, mas somos trs. --Seremos quatro. --No a mesma cousa. -- Que quer ento que eu faa, alm do que fao? -- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipgrafo que casou sbado, todos tm um emprego certo... No fique zangado; no digo que voc seja vadio, mas a ocupao que escolheu vaga. Voc passa semanas sem vintm. -- Sim, mas l vem uma noite que compensa tudo, at de sobra. Deus no me abandona, e preto fugido sabe que comigo no brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo. Tinha glria nisto, falava da esperana como de capital seguro. Da a pouco ria, e fazia rir tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado. Cndido Neves perdera j o ofcio de entalhador, como abrira mo de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. No obrigava a estar longas horas sentado. S exigia fora, olho vivo, pacincia, coragem e um pedao de corda. Cndido Neves lia os anncios, copiava-os, metia-os no bolso e saa s pesquisas. Tinha boa memria. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em ach-lo, segur-lo, amarr-lo e lev-lo. A fora era muita, a agilidade tambm. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificao; interrompia a conversa e ia atrs do vicioso. No o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificao nas mos. Nem sempre saa sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranho. Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos no vinham j, como dantes, meter-se nas mos de Cndido Neves. Havia mos novas e hbeis. Como o negcio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anncios e deitou-se caada. No prprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dvidas de Cndido Neves comearam de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difcil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguis. Clara no tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mnica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava tarde, via-se-lhe pela cara que no trazia vintm. Jantava e saa outra vez, cata de algum fugido. J lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a servio de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem. -- o que lhe faltava! exclamou a tia Mnica, ao v-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equvoco e suas conseqncias. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego. 5. Cndido quisera efetivamente fazer outra cousa, no pela razo do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofcio; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior que no achava mo negcio que aprendesse depressa. A natureza ia andando, o feto crescia, at fazer-se pesado me, antes de nascer. Chegou o oitavo ms, ms de angstias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narrao dispenso tambm. Melhor dizer somente os seus efeitos. No podiam ser mais amargos. --No, tia Mnica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca! Foi na ltima semana do derradeiro ms que a tia Mnica deu ao casal o conselho de levar a criana que nascesse Roda dos enjeitados. Em verdade, no podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criana, para beij-la, guard-la, v-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar qu? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. --Titia no fala por mal, Candinho. --Por mal? replicou tia Mnica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que o melhor que vocs podem fazer. Vocs devem tudo; a carne e o feijo vo faltando. Se no aparecer algum dinheiro, como que a famlia h de aumentar? E depois, h tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem sero recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este ser bem criado, sem lhe faltar nada. Pois ento a Roda alguma praia ou monturo? L no se mata ningum, ningum morre toa, enquanto que aqui certo morrer, se viver mngua. Enfim... Tia Mnica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha j insinuado aquela soluo, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mo ao marido, como a amparar-lhe o nimo; Cndido Neves fez uma careta, e chamou maluca tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por algum que batia porta da rua. --Quem ? perguntou o marido. --Sou eu. Era o dono da casa, credor de trs meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaar o inquilino. Este quis que ele entrasse. --No preciso... --Faa favor. O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos moblia para ver se daria algo penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguis vencidos, no podia esperar mais; se dentro de cinco dias no fosse pago, p-lo-ia na rua. No havia trabalhado para regalo dos outros. Ao v-lo, ningum diria que era proprietrio; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cndido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinao de promessa e splica ao mesmo tempo. O dono da casa no cedeu mais. --Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mo no ferrolho da porta e saindo. Candinho saiu por outro lado. Nesses lances no chegava nunca ao desespero, contava com algum emprstimo, no sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anncios. Achou vrios, alguns j velhos, mas em vo os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, no achou recursos; lanou mo de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietrio, no alcanando mais que a ordem de mudana. 6. A situao era aguda. No achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. No contavam com a tia. Tia Mnica teve arte de alcanar aposento para os trs em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um ptio. Teve ainda a arte maior de no dizer nada aos dous, para que Cndido Neves, no desespero da crise comeasse por enjeitar o filho e acabasse alcanando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, f-los-ia espantar com a notcia do obsquio e iriam dormir melhor do que cuidassem. Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criana. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza tambm. Tia Mnica insistiu em dar a criana Roda. "Se voc no a quer levar, deixe isso comigo; eu vou Rua dos Barbonos." Cndido Neves pediu que no, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse noite, assentou o pai lev-lo Roda na noite seguinte. Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificaes pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porm, subia a cem mil-ris. Tratava-se de uma mulata; vinham indicaes de gesto e de vestido. Cndido Neves andara a pesquis-la sem melhor fortuna, e abrira mo do negcio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porm, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cndido Neves a fazer um grande esforo derradeiro. Saiu de manh a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anncio. No a achou; apenas um farmacutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma ona de qualquer droga, trs dias antes, pessoa que tinha os sinais indicados. Cndido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notcia. No foi mais feliz com outros fugidos de gratificao incerta ou barata. Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mnica arranjara de si mesma a dieta para a recente me, e tinha j o menino para ser levado Roda. O pai, no obstante o acordo feito, mal pde esconder a dor do espetculo. No quis comer o que tia Mnica lhe guardara; no tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. No podia esquecer o prprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mnica pintara-lhe a criao do menino; seria maior a misria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cndido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da me. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direo da Rua dos Barbonos. Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, certo; no menos certo que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preserv-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cndido Neves comeou a afrouxar o passo. --Hei de entreg-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas no sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acab-la; foi ento que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar direita, na direo do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. No dou aqui a comoo de Cndido Neves por no pod-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele tambm; a poucos passos estava a farmcia onde obtivera a informao, que referi acima. Entrou, achou o farmacutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criana por um instante; viria busc-la sem falta. --Mas... 7. Cndido Neves no lhe deu tempo de dizer nada; saiu rpido, atravessou a rua, at ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. Jos, Cndido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. --Arminda! bradou, conforme a nomeava o anncio. Arminda voltou-se sem cuidar malcia. Foi s quando ele, tendo tirado o pedao de corda da algibeira, pegou dos braos da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era j impossvel. Cndido Neves, com as mos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ningum viria libert-la, ao contrrio. Pediu ento que a soltasse pelo amor de Deus. --Estou grvida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peo-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moo! -- Siga! repetiu Cndido Neves. --Me solte! --No quero demoras; siga! Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente no acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com aoutes,--cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar aoutes. --Voc que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cndido Neves. No estava em mar de riso, por causa do filho que l ficara na farmcia, espera dele. Tambm certo que no costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direo da Alfndega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava ps os ps parede, recuou com grande esforo, inutilmente. O que alcanou foi, apesar de ser a casa prxima, gastar mais tempo em l chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vo. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. --Aqui est a fujona, disse Cndido Neves. -- ela mesma. --Meu senhor! --Anda, entra... Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-ris de gratificao. Cndido Neves guardou as duas notas de cinqenta mil-ris, enquanto o senhor novamente dizia escrava que entrasse. No cho, onde jazia, levada do medo e da dor, e aps algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da me e os gestos de desespero do dono. Cndido Neves viu todo esse espetculo. No sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqncias do desastre. Quando l chegou, viu o farmacutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esgan-lo. Felizmente, o farmacutico explicou tudo a tempo; o menino estava l dentro com a famlia, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fria com que pegara a escrava fujona de h pouco, fria diversa, naturalmente, fria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu s carreiras, no para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de emprstimo com o filho e os cem mil-ris de gratificao. Tia Mnica, ouvida a explicao, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-ris. Disse, verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, alm da fuga. Cndido Neves, beijando o filho, entre lgrimas, verdadeiras, abenoava a fuga e no se lhe dava do aborto. --Nem todas as crianas vingam, bateu-lhe o corao. 8. MARIA CORA CAPTULO PRIMEIRO UMA NOITE, voltando para casa, trazia tanto sono que no dei corda ao relgio. Pode ser tambm que a vista de uma senhora que encontrei em casa do comendador T... contribusse para aquele esquecimento; mas estas duas razes destrem-se. Cogitao tira o sono e o sono impede a cogitao; s uma das causas devia ser verdadeira. Ponhamos que nenhuma, e fiquemos no principal, que o relgio parado, de manh, quando me levantei, ouvindo dez horas no relgio da casa. Morava ento (1893) em uma casa de penso no Catete. J por esse tempo este gnero de residncia florescia no Rio de Janeiro. Aquela era pequena e tranqila. Os quatrocentos contos de ris permitiam-me casa exclusiva e prpria; mas, em primeiro lugar, j eu ali residia quando os adquiri, por jogo de praa; em segundo lugar, era um solteiro de quarenta anos, to afeito vida de hospedaria que me seria impossvel morar s. Casar no era menos impossvel. No que me faltassem noivas. Desde os fins de 1891 mais de uma dama, -- e no das menos belas, -- olhou para mim com olhos brandos e amigos. Uma das filhas do comendador tratava-me com particular ateno. A nenhuma dei corda, o celibato era a minha alma, a minha vocao, o meu costume, a minha nica ventura. Amaria de empreitada e por desfastio. Uma ou duas aventuras por ano bastavam a um corao meio inclinado ao ocaso e noite. Talvez por isso dei alguma ateno senhora que vi em casa do comendador, na vspera. Era uma criatura morena, robusta, vinte e oito a trinta anos, vestida de escuro; entrou s dez horas, acompanhada de uma tia velha. A recepo que lhe fizeram foi mais cerimoniosa que as outras; era a primeira vez que ali ia. Eu era a terceira. Perguntei se era viva. -- No; casada. -- Com quem? -- Com um estancieiro do Rio Grande. -- Chama-se? -- Ele? Fonseca, ela Maria Cora. -- O marido no veio com ela? -- Est no Rio Grande. No soube mais nada; mas a figura da dama interessou-me pelas graas fsicas, que eram o oposto do que poderiam sonhar poetas romnticos e artistas serficos. Conversei com ela alguns minutos, sobre cousas indiferentes, -- mas suficientes para escutar-lhe a voz, que era musical, e saber que tinha opinies republicanas. Vexou-me confessar que no as professava de espcie alguma; declarei-me vagamente pelo futuro do pas. Quando ela falava, tinha um modo de umedecer os beios, no sei se casual, mas gracioso e picante. Creio que, vistas assim ao p, as feies no eram to corretas como pareciam a distncia, mas eram mais suas, mais originais. CAPTULO II 9. DE MANH tinha o relgio parado. Chegando cidade, desci a Rua do Ouvidor, at da Quitanda, e indo a voltar direita, para ir ao escritrio do meu advogado, lembrou-me ver que horas eram. No me acudiu que o relgio estava parado. -- Que maada! exclamei. Felizmente, naquela mesma Rua da Quitanda, esquerda, entre as do Ouvidor e Rosrio, era a oficina onde eu comprara o relgio, e a cuja pndula usava acert-lo. Em vez de ir para um lado, fui para outro. Era apenas meia hora; dei corda ao relgio, acertei-o, troquei duas palavras com o oficial que estava ao balco, e indo a sair, vi porta de uma loja de novidades que ficava defronte, nem mais nem menos que a senhora de escuro que encontrara em casa do comendador. Cumprimentei-a, ela correspondeu depois de alguma hesitao, como se me no houvesse reconhecido logo, e depois seguiu pela Rua da Quitanda fora, ainda para o lado esquerdo. Como tivesse algum tempo ante mim (pouco menos de trinta minutos), dei-me a andar atrs de Maria Cora. No digo que uma fora violenta me levasse j, mas no posso esconder que cedia a qualquer impulso de curiosidade e desejo; era tambm um resto da juventude passada. Na rua, andando, vestida de escuro, como na vspera, Maria Cora pareceu-me ainda melhor. Pisava forte, no apressada nem lenta, o bastante para deixar ver e admirar as belas formas, mui mais corretas que as linhas do rosto. Subiu a Rua do Hospcio, at uma oficina de ocularista, onde entrou e ficou dez minutos ou mais. Deixei-me estar a distncia, fitando a porta disfaradamente. Depois saiu, arrepiou caminho, e dobrou a Rua dos Ourives, at do Rosrio, por onde subiu at ao Largo da S; da passou ao de S. Francisco de Paula. Todas essas reminiscncias parecero escusadas, seno aborrecveis; a mim do-me uma sensao intensa e particular, so os primeiros passos de uma carreira penosa e longa. Demais, vereis por aqui que ela evitava subir a Rua do Ouvidor, que todos e todas buscariam quela ou a outra hora para ir ao Largo de S. Francisco de Paula. Foi atravessando o largo, na direo da Escola Politcnica, mas a meio caminho veio ter com ela um carro que estava parado defronte da Escola; meteu-se nele, e o carro partiu. A vida tem suas encruzilhadas, como outros caminhos da terra. Naquele momento achei-me diante de uma assaz complicada, mas no tive tempo de escolher direo, -- nem tempo nem liberdade. Ainda agora no sei como que me vi dentro de um tlburi, certo que me vi nele, dizendo ao cocheiro que fosse atrs do carro. Maria Cora morava no Engenho Velho; era uma boa casa, slida, posto que antiga, dentro de uma chcara. Vi que morava ali, porque a tia estava a uma das janelas. Depois, saindo do carro, Maria Cora disse ao cocheiro (o meu tlburi ia passando adiante) que naquela semana no sairia mais, e que aparecesse segunda-feira ao meio-dia. Em seguida, entrou pela chcara, como dona dela, e parou a falar ao feitor, que lhe explicava alguma cousa com o gesto. Voltei depois que ela entrou em casa, e s muito abaixo que me lembrou de ver as horas, era quase uma e meia. Vim a trote largo at Rua da Quitanda, onde me apeei porta do advogado. -- Pensei que no vinha, disse-me ele. -- Desculpe, doutor, encontrei um amigo que me deu uma maada. No era a primeira vez que mentia na minha vida, nem seria a ltima. CAPTULO III 10. FIZ-ME ENCONTRADIO com Maria Cora, na casa do comendador, primeiro, e depois em outras. Maria Cora no vivia absolutamente reclusa, dava alguns passeios e fazia visitas. Tambm recebia, mas sem dia certo, uma ou outra vez, e apenas cinco a seis pessoas da intimidade. O sentimento geral que era pessoa de fortes sentimentos e austeros costumes. Acrescentai a isto o esprito, um esprito agudo, brilhante e viril. Capaz de resistncias e fadigas, no menos que de violncias e combates, era feita, como dizia um poeta que l ia casa dela, "de um pedao de pampa e outro de pampeiro". A imagem era em verso e com rima, mas a mim s me ficou a idia e o principal das palavras. Maria Cora gostava de ouvir definir-se assim, posto no andasse mostrando aquelas foras a cada passo, nem contando as suas memrias da adolescncia. A tia que contava algumas, com amor, para concluir que lhe saa a ela, que tambm fora assim na mocidade. A justia pede que se diga que, ainda agora, apesar de doente, a tia era pessoa de muita vida e robustez. Com pouco, apaixonei-me pela sobrinha. No me pesa confess-lo, pois foi a ocasio da nica pgina da minha vida que merece ateno particular. Vou narr-la brevemente; no conto novela nem direi mentiras. Gostei de Maria Cora. No lhe confiei logo o que sentia, mas provvel que ela o percebesse ou adivinhasse, como todas as mulheres. Se a descoberta ou adivinhao foi anterior minha ida casa do Engenho Velho, nem assim deveis censur-la por me haver convidado a ir ali uma noite. Podia ser-lhe ento indiferente a minha disposio moral, podia tambm gostar de se sentir querida, sem a menor idia de retribuio. A verdade que fui essa noite e tornei outras, a tia gostava de mim e dos meus modos. O poeta que l ia, tagarela e tonto, disse uma vez que estava afinando a lira para o casamento da tia comigo. A tia riu-se; eu, que queria as boas graas dela, no podia deixar de rir tambm, e o caso foi matria de conversao por uma semana; mas j ento o meu amor outra tinha atingido ao cume. Soube, pouco depois, que Maria Cora vivia separada do marido. Tinham casado oito anos antes, por verdadeira paixo. Viveram felizes cinco. Um dia, sobreveio uma aventura do marido que destruiu a paz do casal. Joo da Fonseca apaixonou-se por uma figura de circo, uma chilena que voava em cima do cavalo, Dolores, e deixou a estncia para ir atrs dela. Voltou seis meses depois, curado do amor, mas curado fora, porque a aventureira se enamorou do redator de um jornal, que no tinha vintm, e por ele abandonou Fonseca e a sua prataria. A esposa tinha jurado no aceitar mais o esposo, e tal foi a declarao que lhe fez quando ele apareceu na estncia. -- Tudo est acabado entre ns; vamos desquitar-nos. Joo da Fonseca teve um primeiro gesto de acordo; era um quadragenrio orgulhoso, para quem tal proposta era de si mesma uma ofensa. Durante uma noite tratou dos preparativos para o desquite; mas, na seguinte manh, a vista das graas da esposa novamente o comoveram. Ento, sem tom implorativo, antes como quem lhe perdoava, entendeu dizer-lhe que deixasse passar uns seis meses. Se ao fim de seis meses, persistisse o sentimento atual que inspirava a proposta do desquite, este se faria. Maria Cora no queria aceitar a emenda, mas a tia, que residia em Porto Alegre e fora passar algumas semanas na estncia, interveio com boas palavras. Antes de trs meses estavam reconciliados. -- Joo, disse-lhe a mulher no dia seguinte ao da reconciliao, voc deve ver que o meu amor maior que o meu cime, mas fica entendido que este caso da nossa vida nico. Nem voc me far outra, nem eu lhe perdoarei nada mais. Joo da Fonseca achava-se ento em um renascimento do delrio conjugal; respondeu mulher jurando tudo e mais alguma cousa. Aos quarenta anos, concluiu ele, no se fazem duas aventuras daquelas, e a minha foi de doer. Voc ver, agora para sempre. 11. A vida recomeou to feliz, como dantes, -- ele dizia que mais. Com efeito, a paixo da esposa era violenta, e o marido tornou a am-la como outrora. Viveram assim dous anos. Ao fim desse tempo, os ardores do marido haviam diminudo, alguns amores passageiros vieram meter-se entre ambos. Maria Cora, ao contrrio do que lhe dissera, perdoou essas faltas que alis no tiveram a extenso nem o vulto da aventura Dolores. Os desgostos, entretanto, apareceram e grandes. Houve cenas violentas. Ela parece que chegou mais de uma vez a ameaar que se mataria; mas, posto no lhe faltasse o preciso nimo, no fez tentativa nenhuma, a tal ponto lhe doa deixar a prpria causa do mal, que era o marido. Joo da Fonseca percebeu isto mesmo, e acaso explorou a fascinao que exercia na mulher. Uma circunstncia poltica veio complicar esta situao moral. Joo da Fonseca era pelo lado da revoluo, dava-se com vrios dos seus chefes, e pessoalmente detestava alguns dos contrrios. Maria Cora, por laos de famlia, era adversa aos federalistas. Esta oposio de sentimentos no seria bastante para separ-los, nem se pode dizer que, por si mesma, azedasse a vida dos dous. Embora a mulher, ardente em tudo, no o fosse menos em condenar a revoluo, chamando nomes crus aos seus chefes e oficiais; embora o marido, tambm excessivo, replicasse com igual dio, os seus arrufos polticos apenas aumentariam os domsticos, e provavelmente no passariam dessa troca de conceitos, se uma nova Dolores, desta vez Prazeres, e no chilena nem saltimbanca, no revivesse os dias amargos de outro tempo. Prazeres era ligada ao partido da revoluo, no s pelos sentimentos, como pelas relaes da vida com um federalista. Eu a conheci pouco depois, era bela e airosa; Joo da Fonseca era tambm um homem gentil e sedutor. Podiam amar-se fortemente, e assim foi. Vieram incidentes, mais ou menos graves, ate que um decisivo determinou a separao do casal. J cuidavam disto desde algum tempo, mas a reconciliao no seria impossvel, apesar da palavra de Maria Cora, graas interveno da tia; esta havia insinuado sobrinha que residisse trs ou quatro meses no Rio de Janeiro ou em S.Paulo. Sucedeu, porm, uma cousa triste de dizer. O marido, em um momento de desvario, ameaou a mulher com o rebenque. Outra verso diz que ele tentara esgan-la. Quero crer que a verdica a primeira, e que a segunda foi inventada para tirar violncia de Joo da Fonseca o que pudesse haver deprimente e vulgar. Maria Cora no disse mais uma s palavra ao marido. A separao foi imediata, a mulher veio com a tia para o Rio de Janeiro, depois de arranjados amigavelmente os interesses pecunirios. Demais, a tia era rica. Joo da Fonseca e Prazeres ficaram vivendo juntos uma vida de aventuras que no importa escrever aqui. S uma cousa interessa diretamente minha narrao. Tempos depois da separao do casal, Joo da Fonseca estava alistado entre os revolucionrios. A paixo poltica, posto que forte, no o levaria a pegar em armas, se no fosse uma espcie de desafio da parte de Prazeres; assim correu entre os amigos dele, mas ainda este ponto obscuro. A verso que ela, exasperada com o resultado de alguns combates, disse ao estancieiro que iria, disfarada em homem, vestir farda de soldado e bater-se pela revoluo. Era capaz disto; o amante disse-lhe que era uma loucura, ela acabou propondo-lhe que, nesse caso, fosse ele bater-se em vez dela, era uma grande prova de amor que lhe daria. -- No te tenho dado tantas? -- Tem, sim; mas esta a maior de todas, esta me far cativa at morte. -- Ento agora ainda no at morte? perguntou ele rindo. -- No. 12. Pode ser que as cousas se passassem assim. Prazeres era, com efeito, uma mulher caprichosa e imperiosa, e sabia prender um homem por laos de ferro. O federalista, de quem se separou para acompanhar Joo da Fonseca, depois de fazer tudo para reav-la, passou campanha oriental, onde dizem que vive pobremente, encanecido e envelhecido vinte anos, sem querer saber de mulheres nem de poltica. Joo da Fonseca acabou cedendo; ela pediu para acompanh-lo, e at bater-se, se fosse preciso; ele negou-lho. A revoluo triunfaria em breve, disse; vencidas as foras do governo, tornaria estncia, onde ela o esperaria. -- Na estncia, no, respondeu Prazeres; espero-te em Porto Alegre. CAPTULO IV NO IMPORTA dizer o tempo que despendi nos incios da minha paixo, mas no foi grande. A paixo cresceu rpida e forte. Afinal senti-me to tomado dela que no pude mais guard-la comigo, e resolvi declarar-lha uma noite; mas a tia, que usava cochilar desde as nove horas (acordava s quatro), daquela vez no pregou olho, e, ainda que o fizesse, provvel que eu no alcanasse falar; tinha a voz presa e na rua senti uma vertigem igual que me deu a primeira paixo da minha vida. -- Sr. Correia, no v cair, disse a tia quando eu passei varanda, despedindo-me. -- Deixe estar, no caio. Passei mal a noite; no pude dormir mais de duas horas, aos pedaos, e antes das cinco estava em p. -- preciso acabar com isto! exclamei. De fato, no parecia achar em Maria Cora mais que benevolncia e perdo, mas era isso mesmo que a tornava apetecvel. Todos os amores da minha vida tinham sido fceis; em nenhum encontrei resistncia, a nenhuma deixei com dor; alguma pena, possvel, e um pouco de recordao. Desta vez sentia-me tomado por ganchos de ferro. Maria Cora era toda vida; parece que, ao p dela, as prprias cadeiras andavam e as figuras do tapete moviam os olhos. Pe nisso uma forte dose de meiguice e graa; finalmente, a ternura da tia fazia daquela criatura um anjo. banal a comparao, mas no tenho outra. Resolvi cortar o mal pela raiz, no tornando ao Engenho Velho, e assim fiz por alguns dias largos, duas ou trs semanas. Busquei distrair-me e esquec-la, mas foi em vo. Comecei a sentir a ausncia como de um bem querido; apesar disso, resisti e no tornei logo. Mas, crescendo a ausncia, cresceu o mal, e enfim resolvi tornar l uma noite. Ainda assim pode ser que no fosse, a no achar Maria Cora na mesma oficina da Rua da Quitanda, aonde eu fora acertar o relgio parado. -- fregus tambm? perguntou-me ao entrar. -- Sou. -- Vim acertar o meu. Mas, por que no tem aparecido? -- E verdade, por que no voltou l casa? completou a tia. -- Uns negcios, murmurei; mas, hoje mesmo contava ir l. -- Hoje no; v amanh, disse a sobrinha. Hoje vamos passar a noite fora. 13. Pareceu-me ler naquela palavra um convite a am-la de vez, assim como a primeira trouxera um tom que presumi ser de saudade. Realmente, no dia seguinte, fui ao Engenho Velho. Maria Cora acolheu-me com a mesma boa vontade de antes. O poeta l estava e contou-me em verso os suspiros que a tia dera por mim. Entrei a freqent-las novamente e resolvi declarar tudo. J acima disse que ela provavelmente percebera ou adivinhara o que eu sentia, como todas as mulheres; referi-me aos primeiros dias. Desta vez com certeza percebeu, nem por isso me repeliu. Ao contrrio, parecia gostar de se ver querida, muito e bem. Pouco depois daquela noite escrevi-lhe uma carta e fui ao Engenho Velho. Achei-a um pouco retrada; a tia explicou-me que recebera notcias do Rio Grande que a afligiram. No liguei isto ao casamento e busquei alegr-la; apenas consegui v-la corts. Antes de sair, perto da varanda, entreguei-lhe a carta; ia a dizer-lhe: "Peo-lhe que leia", mas a voz no saiu. Vi-a um pouco atrapalhada, e para evitar dizer o que melhor ia escrito, cumprimentei-a e enfiei pelo jardim. Pode imaginar-se a noite que passei, e o dia seguinte foi naturalmente igual medida que a outra noite vinha. Pois, ainda assim, no tornei casa dela; resolvi esperar trs ou quatro dias, no que ela me escrevesse logo, mas que pensasse nos termos da resposta. Que estes haviam de ser simpticos, era certeza minha; as maneiras dela, nos ltimos tempos, eram mais que afveis, pareciam-me convidativas. No cheguei, porm, aos quatro dias; mal pude esperar trs. Na noite do terceiro fui ao Engenho Velho. Se disser que entrei trmulo da primeira comoo, no minto. Achei-a ao piano, tocando para o poeta ouvir; a tia, na poltrona, pensava em no sei que, mas eu quase no a vi, tal a minha primeira alucinao. -- Entre, Sr. Correia, disse esta; no caia em cima de mim. -- Perdo... Maria Cora no interrompeu a msica; ao ver-me chegar, disse: -- Desculpe, se lhe no dou a mo, estou aqui servindo de musa a este senhor. Minutos depois, veio a mim, e estendeu-me a mo com tanta galhardia, que li nela a resposta, e estive quase a dar-lhe um agradecimento. Passaram-se alguns minutos, quinze ou vinte. Ao fim desse tempo, ela pretextou um livro, que estava em cima das msicas, e pediu-me para dizer se o conhecia; fomos ali ambos, e ela abriu-mo; entre as duas folhas estava um papel. -- Na outra noite, quando aqui esteve, deu-me esta carta; no podia dizer-me o que tem dentro? -- No adivinha? -- Posso errar na adivinhao. -- isso mesmo. -- Bem, mas eu sou uma senhora casada, e nem por estar separada do meu marido deixo de estar casada. O senhor ama-me, no ? Suponha, pelo melhor, que eu tambm o amo; nem por isso deixo de estar casada. 14. Dizendo isto, entregou-me a carta; no fora aberta. Se estivssemos ss, possvel que eu lhe lesse, mas a presena de estranhos impedia-me este recurso. Demais, era desnecessrio; a resposta de Maria Cora era definitiva ou me pareceu tal. Peguei na carta. e antes de a guardar comigo: -- No quer ento ler? -- No. -- Nem para ver os termos? -- No. -- Imagine que lhe proponho ir combater contra seu marido, mat-lo e voltar, disse eu cada vez mais tonto. -- Prope isto? -- Imagine. -- No creio que ningum me ame com tal fora, concluiu sorrindo. Olhe, que esto reparando em ns. Dizendo isto, separou-se de mim, e foi ter com a tia e o poeta. Eu fiquei ainda alguns segundos com o livro na mo, como se deveras o examinasse, e afinal deixei-o. Vim sentar-me defronte dela. Os trs conversavam de cousas do Rio Grande, de combates entre federalistas e legalistas, e da vria sorte deles. O que eu ento senti no se escreve; pelo menos, no o escrevo eu, que no sou romancista. Foi uma espcie de vertigem, um delrio, uma cena pavorosa e lcida, um combate e uma glria. Imaginei-me no campo, entre uns e outros, combatendo os federalistas, e afinal matando Joo da Fonseca, voltando e casando-me com a viva. Maria Cora contribua para esta viso sedutora; agora, que me recusara a carta, parecia-me mais bela que nunca, e a isto acrescia que se no mostrava zangada nem ofendida, tratava-me com igual carinho que antes, creio at que maior. Disto podia sair uma impresso dupla e contrria, -uma de aquiescncia tcita, outra de indiferena, mas eu s via a primeira, e sa de l completamente louco. O que ento resolvi foi realmente de louco. As palavras de Maria Cora: "No creio que ningum me ame com tal fora" -- soavam-me aos ouvidos, como um desafio. Pensei nelas toda a noite, e no dia seguinte fui ao Engenho Velho; logo que tive ocasio de jurar-lhe a prova, fi-lo. -- Deixo tudo o que me interessa, a comear pela paz, com o nico fim de lhe mostrar que a amo, e a quero s e santamente para mim. Vou combater a revolta. Maria Cora fez um gesto de deslumbramento. Daquela vez percebi que realmente gostava de mim, verdadeira paixo, e se fosse viva, no casava com outro. Jurei novamente que ia para o Sul. Ela, comovida, estendeu-me a mo. Estvamos em pleno romantismo. Quando eu nasci, os meus no acreditavam em outras provas de amor, e minha me contava-me os romances em versos de cavaleiros andantes que iam Terra Santa libertar o sepulcro de Cristo por amor da f e da sua dama. Estvamos em pleno romantismo. CAPTULO V 15. FUI PARA O SUL. OS combates entre legalistas e revolucionrios eram contnuos e sangrentos, e a notcia deles contribuiu a animar-me. Entretanto, como nenhuma paixo poltica me animava a entrar na luta, fora confessar que por um instante me senti abatido e hesitei. No era medo da morte, podia ser amor da vida, que um sinnimo; mas, uma ou outra cousa, no foi tal nem tamanha que fizesse durar por muito tempo a hesitao. Na cidade do Rio Grande encontrei um amigo, a quem eu por carta do Rio de Janeiro dissera muito reservadamente que ia l por motivos polticos. Quis saber quais. -- Naturalmente so reservados, respondi tentando sorrir. -- Bem; mas uma cousa creio que posso saber, uma s, porque no sei absolutamente o que pense a tal respeito, nada havendo antes que me instrua. De que lado ests, legalistas ou revoltosos? -- boa! Se no fosse dos legalistas, no te mandaria dizer nada; viria s escondidas. -- Vens com alguma comisso secreta do marechal? -- No. No me arrancou ento mais nada, mas eu no pude deixar de lhe confiar os meus projetos, ainda que sem os seus motivos. Quando ele soube que aqueles eram alistar-me entre os voluntrios que combatiam a revoluo, no pde crer em mim, e talvez desconfiasse que efetivamente eu levava algum plano secreto do presidente. Nunca da minha parte ouviu nada que pudesse explicar semelhante passo. Entretanto, no perdeu tempo em despersuadir-me; pessoalmente era legalista e falava dos adversrios com dio e furor. Passado o espanto, aceitou o meu ato, tanto mais nobre quanto no era inspirado por sentimento de partido. Sobre isto disse-me muita palavra bela e herica, prpria a levantar o nimo de quem j tivesse tendncia para a luta. Eu no tinha nenhuma, fora das razes particulares; estas, porm, eram agora maiores. Justamente acabava de receber uma carta da tia de Maria Cora, dando-me notcias delas, e recomendaes da sobrinha, tudo com alguma generalidade e certa simpatia verdadeira. Fui a Porto Alegre, alistei-me a marchei para a campanha. No disse a meu respeito nada que pudesse despertar a curiosidade de ningum, mas era difcil encobrir a minha condio, a minha origem, a minha viagem com o plano de ir combater a revoluo. Fez-se logo uma lenda a meu respeito. Eu era um republicano antigo, riqussimo, entusiasta, disposto a dar pela Repblica mil vidas, se as tivesse, e resoluto a no poupar a nica. Deixei dizer isto e o mais, e fui. Como eu indagasse das foras revolucionrias com que estaria Joo da Fonseca, algum quis ver nisto uma razo de dio pessoal; tambm no faltou quem me supusesse espio dos rebeldes, que ia por-me em comunicao secreta com aquele. Pessoas que sabiam das relaes dele com a Prazeres, imaginavam que era um antigo amante desta que se queria vingar dos amores dele. Todas aquelas suposies morreram, para s ficar a do meu entusiasmo poltico; a da minha espionagem ia-me prejudicando; felizmente, no passou de duas cabeas e de uma noite. Levava comigo um retrato de Maria Cora; alcanara-o dela mesmo, uma noite, pouco antes do meu embarque, com uma pequena dedicatria cerimoniosa. J disse que estava em pleno romantismo; dado o primeiro passo, os outros vieram de si mesmos. E agora juntai a isto o amor-prprio, e compreendereis que de simples cidado indiferente da capital sasse um guerreiro spero da campanha rio-grandense. Nem por isso conto combates, nem escrevo para falar da revoluo, que no teve nada comigo, por si mesma, seno pela ocasio que me dava, e por algum golpe que lhe desfechei na estreita rea da minha ao. Joo da Fonseca era o meu rebelde. Depois de haver tomado parte no combate de Sarandi e Cochila Negra, ouvi que o marido de Maria Cora fora morto, no sei em que recontro; mais tarde deram-me a 16. notcia de estar com as foras de Gumercindo, e tambm que fora feito prisioneiro e seguira para Porto Alegre; mas ainda isto no era verdade. Disperso, com dois camaradas, encontrei um dia um regimento legal que ia em defesa da Encruzilhada, investida ultimamente por uma fora dos federalistas; apresenteime ao comandante e segui. A soube que Joo da Fonseca estava entre essa fora; deram-me todos os sinais dele, contaram-me a histria dos amores e a separao da mulher. A idia de mat-lo no turbilho de um combate tinha algo fantstico; nem eu sabia se tais duelos eram possveis em semelhantes ocasies, quando a fora de cada homem tem de somar com a de toda uma fora nica e obediente a uma s direo. Tambm me pareceu, mais de uma vez, que ia cometer um crime pessoal, e a sensao que isto me dava, podeis crer que no era leve nem doce; mas a figura de Maria Cora abraava-me e absolvia com uma bno de felicidades. Atirei-me de vez. No conhecia Joo da Fonseca; alm dos sinais que me haviam dado, tinha de memria um retrato dele que vira no Engenho Velho; se as feies no estivessem mudadas, era provvel que eu o reconhecesse entre muitos. Mas, ainda uma vez, seria este encontro possvel? Os combates em que eu entrara, j me faziam desconfiar que no era fcil, ao menos. No foi fcil nem breve. No combate da Encruzilhada creio que me houve com a necessria intrepidez e disciplina, e devo aqui notar que eu me ia acostumando vida da guerra civil. Os dios que ouvia, eram foras reais. De um lado e outro batiam-se com ardor, e a paixo que eu sentia nos meus ia-se pegando em mim. J lera o meu nome em uma ordem do dia. e de viva voz recebera louvores, que comigo no pude deixar de achar justos, e ainda agora tais os declaro. Mas vamos ao principal, que acabar com isto. Naquele combate achei-me um tanto como o heri de Stendhal na batalha de Waterloo; a diferena que o espao foi menor. Por isso, e tambm porque no me quero deter em cousas de recordao fcil, direi somente que tive ocasio de matar em pessoa a Joo da Fonseca. Verdade que escapei de ser morto por ele. Ainda agora trago na testa a cicatriz que ele me deixou. O combate entre ns foi curto. Se no parecesse romanesco demais, eu diria que Joo da Fonseca adivinhara o motivo e previra o resultado da ao. Poucos minutos depois da luta pessoal, a um canto da vila, Joo da Fonseca caiu prostrado. Quis ainda lutar, e certamente lutou um pouco; eu que no consenti na desforra, que podia ser a minha derrota, se que raciocinei; creio que no. Tudo o que fiz foi cego pelo sangue em que o deixara banhado, e surdo pelo clamor e tumulto do combate. Matava-se, gritava-se, vencia-se; em pouco ficamos senhores do campo. Quando vi que Joo da Fonseca morrera deveras, voltei ao combate por instantes; a minha ebriedade cessara um pouco, e os motivos primrios tornaram a dominar-me, como se fossem nicos. A figura de Maria Cora apareceu-me como um sorriso de aprovao e perdo; tudo foi rpido. Haveis de ter lido que ali se apreenderam trs ou quatro mulheres. Uma destas era a Prazeres. Quando, acabado tudo, a Prazeres viu o cadver do amante, fez uma cena que me encheu de dio e de inveja. Pegou em si e deitou-se a abra-lo; as lgrimas que verteu, as palavras que disse, fizeram rir a uns; a outros, se no enterneceram, deram algum sentimento de admirao. Eu, como digo, achei-me tomado de inveja e dio, mas tambm esse duplo sentimento desapareceu para no ficar nem admirao; acabei rindo. Prazeres, depois de honrar com dor a morte do amante, ficou sendo a federalista que j era; no vestia farda, como dissera ao desafiar Joo da Fonseca, quis ser prisioneira com os rebeldes e seguir com eles. claro que no deixei logo as foras, bati-me ainda algumas vezes, mas a razo principal dominou, e abri mo das armas. Durante o tempo em que estive alistado, s escrevi duas cartas a Maria Cora, uma pouco depois de encetar aquela vida nova, -- outra depois do combate da Encruzilhada; nesta no lhe contei nada 17. do marido, nem da morte, nem sequer que o vira. Unicamente anunciei que era provvel acabasse brevemente a guerra civil. Em nenhuma das duas fiz a menor aluso aos meus sentimentos nem ao motivo do meu ato; entretanto, para quem soubesse deles, a carta era significativa. Maria Cora s respondeu primeira das cartas, com serenidade, mas no com iseno. Percebia-se, -- ou percebia-o eu, -- que, no prometendo nada, tudo agradecia, e, quando menos, admirava. Gratido e admirao podiam encaminhla ao amor. Ainda no disse, -- e no sei como diga este ponto, -- que na Encruzilhada, depois da morte de Joo da Fonseca, tentei degol-lo; mas nem queria faz-lo, nem realmente o fiz. O meu objeto era ainda outro e romanesco. Perdoa-me tu, realista sincero, h nisto tambm um pouco de realidade, e foi o que pratiquei, de acordo com o estado da minha alma: o que fiz foi cortar-lhe um molho de cabelos. Era o recibo da morte que eu levaria viva. CAPTULO VI QUANDO VOLTEI ao Rio de Janeiro, tinham j passado muitos meses do combate da Encruzilhada. O meu nome figurou no s em partes oficiais como em telegramas e correspondncias, por mais que eu buscasse esquivar-me ao rudo e desaparecer na sombra. Recebi cartas de felicitaes e de indagaes. No vim logo para o Rio de Janeiro, note-se; podia ter aqui alguma festa; preferi ficar em S. Paulo. Um dia. sem ser esperado, meti-me na estrada de ferro e entrei na cidade. Fui para a casa de penso do Catete. No procurei logo Maria Cora. Pareceu-me at mais acertado que a notcia da minha vinda lhe chegasse pelos jornais. No tinha pessoa que lhe falasse; vexava-me ir eu mesmo a alguma redao contar o meu regresso do Rio Grande; no era passageiro de mar, cujo nome viesse em lista nas folhas pblicas. Passaram dous dias; no terceiro, abrindo uma destas, dei com o meu nome. Dizia-se ali que viera de S. Paulo e estivera nas lutas do Rio Grande, citavam-se os combates, tudo com adjetivos de louvor; enfim, que voltava mesma penso do Catete. Como eu s contara alguma cousa ao dono da casa, podia ser ele o autor das notas; disse-me que no. Entrei a receber visitas pessoais. Todas queriam saber tudo; eu pouco mais disse que nada. Entre os cartes, recebi dous de Maria Cora e da tia, com palavras de boas-vindas. No era preciso mais; restava-me ir agradecer-lhes, e dispus-me a isso; mas, no prprio dia em que resolvi ir ao Engenho Velho, tive uma sensao de... De qu? Expliquem, se podem, o acanhamento que me deu a lembrana do marido de Maria Cora, morto s minha mos. A sensao que ia ter diante dela encheu-me inteiramente. Sabendose qual foi o mvel principal da minha ao militar, mal se compreende aquela hesitao; mas, se considerares que, por mais que me defendesse do marido e o matasse para no morrer, ele era sempre o marido, ters entendido o mal-estar que me fez adiar a visita. Afinal, peguei em mim e fui casa dela. Maria Cora estava de luto. Recebeu-me com bondade, e repetiu-me, como a tia, as felicitaes escritas. Falamos da guerra civil, dos costumes do Rio Grande, um pouco de poltica, e mais nada. No se disse de Joo da Fonseca. Ao sair de l, perguntei a mim mesmo se Maria Cora estaria disposta a casar comigo. "No me parece que recuse, embora no lhe ache maneiras especiais. Creio at que est menos afvel que dantes... Ter mudado?" Pensei assim, vagamente. Atribu a alterao ao estado moral da viuvez; era natural. E continuei a freqent-la, disposto a deixar passar a primeira fase do luto para lhe pedir formalmente a mo. No tinha que fazer declaraes novas; ela sabia tudo. Continuou a receber-me bem. Nenhuma pergunta me fez sobre o marido, a tia tambm no, e da prpria revoluo no se falou mais. Pela minha parte, tornando 18. situao anterior, busquei no perder tempo, fiz-me pretendente com todas as maneiras do ofcio. Um dia. perguntei-lhe se pensava em tornar ao Rio Grande. -- Por ora, no. -- Mas ir? -- possvel; no tenho plano nem prazo marcado; possvel. Eu, depois de algum silncio, durante o qual olhava interrogativamente para ela, acabei por inquirir se antes de ir, caso fosse, no alteraria nada em sua vida. -- A minha vida est to alterada.. . No me entendera; foi o que supus. Tratei de me explicar melhor, e escrevi uma carta em que lhe lembrava a entrega e a recusa da primeira e lhe pedia francamente a mo. Entreguei a carta, dous dias depois, com estas palavras: -- Desta vez no recusar ler-me. No recusou, aceitou a carta. Foi sada, porta da sala. Creio at que lhe vi certa comoo de bom agouro. No me respondeu por escrito, como esperei. Passados trs dias, estava to ansioso que resolvi ir ao Engenho Velho. Em caminho imaginei tudo; que me recusasse, que me aceitasse, que me adiasse, e j me contentava com a ltima hiptese, se no houvesse de ser a segunda. No a achei em casa; tinha ido passar alguns dias na Tijuca. Sa de l aborrecido. Pareceu-me que no queria absolutamente casar; mas ento era mais simples diz-lo ou escrev-lo. Esta considerao trouxe-me esperanas novas. Tinha ainda presentes as palavras que me dissera, quando me devolveu a primeira carta, e eu lhe falei da minha paixo: ''Suponho que eu o amo; nem por isso deixo de ser uma senhora casada". Era claro que ento gostava de mim, e agora mesmo no havia razo decisiva para crer o contrrio, embora a aparncia fosse um tanto fria. Ultimamente, entrei a crer que ainda gostava, um pouco por vaidade, um pouco por simpatia, e no sei se por gratido tambm; tive alguns vestgios disso. No obstante, no me deu resposta segunda carta. Ao voltar da Tijuca, vinha menos expansiva, acaso mais triste. Tive eu mesmo de lhe falar na matria; a resposta foi que por ora, estava disposta a no casar. -- Mas um dia ...? perguntei depois de algum silncio. -- Estarei velha. -- Mas ento... ser muito tarde? -- Meu marido pode no estar morto. Espantou-me esta objeo. -- Mas a senhora est de luto. -- Tal foi a notcia que li e me deram; pode no ser exata. Tenho visto desmentir outras que se reputavam certas. 19. -- Quer certeza absoluta? perguntei. Eu posso d-la. Maria Cora empalideceu. Certeza. Certeza de qu? Queria que lhe contasse tudo, mas tudo. A situao era to penosa para mim que no hesitei mais, e, depois de lhe dizer que era inteno minha no lhe contar nada, como no contara a ningum, ia faz-lo, unicamente para obedecer intimao. E referi o combate, as suas fases todas, os riscos, as palavras, finalmente a morte de Joo da Fonseca. A nsia com que me ouviu foi grande, e no menor o abatimento final. Ainda assim, dominou-se, e perguntou-me: -- Jura que me no est enganando? -- Para que a enganar? O que tenho feito bastante para provar que sou sincero. Amanh, trago-lhe outra prova, se preciso mais alguma. Levei-lhe os cabelos que cortara ao cadver. Contei-lhe, -- e confesso que o meu fim foi irrit-la contra a memria do defunto, -- contei-lhe o desespero da Prazeres. Descrevi essa mulher e as suas lgrimas. Maria Cora ouviu-me com os olhos grandes e perdidos; estava ainda com cimes. Quando lhe mostrei os cabelos do marido, atirou-se a eles, recebeu-os, beijou-os, chorando, chorando, chorando... Entendi melhor sair e sair para sempre. Dias depois recebi a resposta minha carta; recusava casar. Na resposta havia uma palavra que a nica razo de escrever esta narrativa: "Compreende que eu no podia aceitar a mo do homem que, embora lealmente, matou meu marido". Comparei-a quela outra que me dissera antes, quando eu me propunha sair a combate, mat-lo e voltar: "No creio que ningum me ame com tal fora". E foi essa palavra que me levou guerra. Maria Cora vive agora reclusa; de costume manda dizer uma missa por alma do marido, no aniversrio do combate da Encruzilhada. Nunca mais a vi; e, cousa menos difcil, nunca mais esqueci de dar corda ao relgio.MARCHA FNEBRE O DEPUTADO Cordovil no podia pregar olho uma noite de agosto de 186... Viera cedo do Cassino Fluminense, depois da retirada do Imperador, e durante o baile no tivera o mnimo incmodo moral nem fsico. Ao contrrio, a noite foi excelente, to excelente que um inimigo seu, que padecia do corao, faleceu antes das dez horas, e a notcia chegou ao Cassino pouco depois das onze. Naturalmente concluis que ele ficou alegre com a morte do homem, espcie de vingana que os coraes adversos e fracos tomam em falta de outra. Digo-te que concluis mal; no foi alegria, foi desabafo. A morte vinha de meses, era daquelas que no acabam mais, e moem, mordem, comem, trituram a pobre criatura humana. Cordovil sabia dos padecimentos do adversrio. Alguns amigos, para o consolar de antigas injrias, iam contar-lhe o que viam ou sabiam do enfermo, pregado a uma cadeira de braos, vivendo as noites horrivelmente, sem que as auroras lhe trouxessem esperanas, nem as tardes desenganos. Cordovil pagava-lhes com alguma palavra de compaixo, que o alvissareiro adotava, e repetia, e era mais sincera naquele que neste. Enfim acabara de padecer; da o desabafo. Este sentimento pegava com a piedade humana. Cordovil, salvo em poltica, no gostava do mal alheio. Quando rezava, ao levantar da cama: "Padre Nosso, que ests no cu, santificado seja o teu nome, venha a ns o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no cu, o po nosso de cada dia nos d hoje, perdoa as nossas dvidas, como ns perdoamos aos nossos devedores"... no imitava um de seus amigos que rezava a mesma prece, sem todavia perdoar aos devedores, como dizia de lngua; esse chegava a cobrar alm do que eles lhe deviam, isto , se ouvia maldizer de algum, decorava tudo e mais alguma 20. cousa e ia repeti-lo a outra parte. No dia seguinte, porm, a bela orao de Jesus tornava a sair dos lbios da vspera com a mesma caridade de ofcio. Cordovil no ia nas guas desse amigo; perdoava deveras. Que entrasse no perdo um tantinho de preguia, possvel, sem alis ser evidente. Preguia amamenta muita virtude. Sempre alguma cousa minguar fora ao do mal. No esquea que o deputado s gostava do mal alheio em poltica, e o inimigo morto era inimigo pessoal. Quanto causa da inimizade, no a sei eu, e o nome do homem acabou com a vida. -- Coitado! descansou, disse Cordovil. Conversaram da longa doena do finado . Tambm falaram das vrias mortes deste mundo, dizendo Cordovil que a todas preferia a de Csar, no por motivo do ferro, mas por inesperada e rpida. -- Tu quoque? perguntou-lhe um colega rindo. Ao que ele, apanhando a aluso, replicou: -- Eu, se tivesse um filho, quisera morrer s mos dele. O parricdio, estando fora do comum, faria a tragdia mais trgica. Tudo foi assim alegre. Cordovil saiu do baile com sono, e foi cochilando no carro, apesar do mal calado das ruas. Perto de casa. sentiu parar o carro e ouviu rumor de vozes. Era o caso de um defunto, que duas praas de polcia estavam levantando do cho. -- Assassinado? perguntou ele ao lacaio, que descera da almofada para saber o que era. -- No sei, no, senhor. -- Pergunta o que . -- Este moo sabe como foi, disse o lacaio, indicando um desconhecido, que falava a outros. O moo aproximou-se da portinhola, antes que o deputado recusasse ouvi-lo. Referiu-lhe ento em poucas palavras o acidente a que assistira. -- Vnhamos andando, ele adiante, eu atrs. Parece que assobiava uma polca. Indo a atravessar a rua para o lado do Mangue, vi que estacou o passo, a modo que torceu o corpo, no sei bem, e caiu sem sentidos. Um doutor, que chegou logo, descendo de um sobradinho, examinou o homem e disse que "morreu de repente". Foi-se juntando gente, a patrulha levou muito tempo a chegar. Agora pegou dele. Quer ver o defunto? -- No, obrigado. J se pode passar? -- Pode. -- Obrigado. Vamos, Domingos. 21. Domingos trepou almofada, o cocheiro tocou os animais, e o carro seguiu at Rua de S. Cristvo, onde morava Cordovil. Antes de chegar casa , Cordovil foi pensando na morte do desconhecido. Em si mesma, era boa; comparada do inimigo pessoal, excelente. Ia a assobiar, cuidando sabe Deus em que delcia passada ou em que esperana futura; revivia o que vivera, ou antevia o que podia viver, seno quando, a morte pegou da delcia ou da esperana, e l se foi o homem ao eterno repouso. Morreu sem dor, ou, se alguma teve, foi acaso brevssima, como um relmpago que deixa a escurido mais escura. Ento ps o caso em si. Se lhe tem acontecido no Cassino a morte do Aterrado? No seria danando; os seus quarenta anos no danavam. Podia at dizer que ele s danou at aos vinte. No era dado a moas, tivera um afeio nica na vida, -- aos vinte e cinco anos, casou e enviuvou ao cabo de cinco semanas para no casar mais. No que lhe faltassem noivas, -- mormente depois de perder o av, que lhe deixou duas fazendas. Vendeu-as ambas e passou a viver consigo, fez duas viagens Europa, continuou a poltica e a sociedade. Ultimamente parecia enojado de uma e de outra, mas no tendo em que matar o tempo, no abriu mo delas. Chegou a ser ministro uma vez, creio que da Marinha, no passou de sete meses. Nem a pasta lhe deu glria, nem a demisso desgosto. No era ambicioso, e mais puxava para a quietao que para o movimento. Mas se lhe tivesse sucedido morrer de repente no Cassino, ante uma valsa ou quadrilha, entre duas portas? Podia ser muito bem. Cordovil comps de imaginao a cena, ele cado de bruos ou de costas, o prazer turbado, a dana interrompida... e dali podia ser que no; um pouco de espanto apenas, outro de susto, os homens animando as damas, a orquestra continuando por instantes a oposio do compasso e da confuso. No faltariam braos que o levassem para um gabinete, j morto, totalmente morto. "Tal qual a morte de Csar", ia dizendo consigo. E logo emendou: "No, melhor que ela; sem ameaa, nem armas, nem sangue, uma simples queda e o fim. No sentiria nada." Cordovil deu consigo a rir ou a sorrir, alguma cousa que afastava o terror e deixava a sensao da liberdade. Em verdade, antes a morte assim que aps longos dias ou longos meses e anos, como o adversrio que perdera algumas horas antes. Nem era morrer; era um gesto de chapu, que se perdia no ar com a prpria mo e a alma que lhe dera movimento. Um cochilo e o sono eterno. Achava-lhe um s defeito, -- o aparato. Essa morte no meio de um baile defronte do Imperador, ao som de Strauss, contada, pintada, enfeitada nas folhas pblicas, essa morte pareceria de encomenda. Pacincia, uma vez que fosse repentina. Tambm pensou que podia ser na Cmara, no dia seguinte, ao comear o debate do oramento. Tinha a palavra; j andava cheio de algarismos e citaes. No quis imaginar o caso, no valia a pena; mas o caso teimou e apareceu de si mesmo. O salo da Cmara, em vez do do Cassino, sem damas ou com poucas, nas tribunas. Vasto silncio. Cordovil em p comearia o discurso, depois de circular os olhos pela casa, fitar o ministro e fitar o presidente: "Releve-me a Cmara que lhe tome algum tempo, serei breve, buscarei ser justo..." Aqui uma nuvem lhe taparia os olhos, a lngua pararia, o corao tambm, e ele cairia de golpe no cho. Cmara, galerias, tribunas ficariam assombradas. Muitos deputados correriam a ergu-lo; um, que era mdico, verificaria a morte; no diria que fora de repente, como o do sobradinho do Aterrado, mas por outro estilo mais tcnico. Os trabalhos seriam suspensos, depois de algumas palavras do presidente e escolha da comisso que acompanharia o finado ao cemitrio ... 22. Cordovil quis rir da circunstncia de imaginar alm da morte, o movimento e o saimento, as prprias notcias dos jornais, que ele leu de cor e depressa. Quis rir, mas preferia cochilar; os olhos que, estando j perto de casa e da cama, no quiseram desperdiar o sono, e ficaram arregalados. Ento a morte, que ele imaginara pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no dia seguinte em plena sesso da Cmara, apareceu ali mesmo no carro. Sups ele que, ao abrirem-lhe a portinhola, dessem com o seu cadver. Sairia assim de uma noite ruidosa para outra pacfica, sem conversas, nem danas, nem encontros, sem espcie alguma de luta ou resistncia. O estremeo que teve fez-lhe ver que no era verdade. Efetivamente, o carro entrou na chcara, estacou, e Domingos saltou da almofada para vir abrirlhe a portinhola. Cordovil desceu com as pernas e a alma vivas, e entrou pela porta lateral, onde o aguardava com um castial e vela acesa o escravo Florindo. Subiu a escada, e os ps sentiam que os degraus eram deste mundo; se fossem do outro, desceriam naturalmente. Em cima, ao entrar no quarto, olhou para a cama; era a mesma dos sonos quietos e demorados. -- Veio algum? -- No, senhor, respondeu o escravo distrado, mas corrigiu logo: Veio, sim, senhor; veio aquele doutor que almoou com meu senhor domingo passado. -- Queria alguma cousa? -- Disse que vinha dar a meu senhor uma boa notcia, e deixou este bilhete -- que eu botei ao p da cama. O bilhete referia a morte do inimigo; era de um dos amigos que usavam contar-lhe a marcha da molstia. Quis ser o primeiro a anunciar o desenlace, um alegro, com um abrao apertado. Enfim, morrera o patife. No disse a cousa assim por esses termos claros, mas os que empregou vinham a dar neles, acrescendo que no atribuiu esse nico objeto visita. Vinha passar a noite; s ali soube que Cordovil fora ao Cassino. Ia a sair, quando lhe lembrou a morte e pediu ao Florindo que lhe deixasse escrever duas linhas. Cordovil entendeu o significado, e ainda uma vez lhe doeu a agonia do outro. Fez um gesto de melancolia e exclamou a meia voz: -- Coitado! Vivam as mortes sbitas! Florindo, se referisse o gesto e a frase ao doutor do bilhete, talvez o fizesse arrepender da canseira. Nem pensou nisso; ajudou o senhor a preparar-se para dormir, ouviu as ltimas ordens e despediu-se. Cordovil deitou-se. -- Ah! suspirou ele estirando o corpo cansado. Teve ento uma idia, a de amanhecer morto. Esta hiptese, a melhor de todas, porque o apanharia meio morto, trouxe consigo mil fantasias que lhe arredaram o sono dos olhos. Em parte, era a repetio das outras, a participao Cmara, as palavras do presidente, comisso para o saimento, e o resto. Ouviu lstimas de amigos e de fmulos, viu notcias impressas, todas lisonjeiras ou justas. Chegou a desconfiar que era j sonho. No era. Chamou-se ao quarto, cama, a si mesmo: estava acordado. A lamparina deu melhor corpo realidade. Cordovil espancou as idias fnebres e esperou que as alegres tomassem conta dele e danassem at cans-lo. Tentou vencer uma viso com outra. Fez at uma cousa engenhosa, convocou os cinco sentidos, porque a memria de todos eles era aguda e fresca; foi assim evocando lances e rasgos longamente extintos. Gestos, cenas de sociedade e de famlia, panoramas, 23. repassou muita cousa vista, com o aspecto do tempo diverso e remoto. Deixara de comer acepipes que outra vez lhe sabiam, como se estivesse agora a mastig-los. Os ouvidos escutavam passos leves e pesados, cantos joviais e tristes, e palavra de todos os feitios. O tacto, o olfato, todos fizeram o seu ofcio, durante um prazo que ele no calculou. Cuidou de dormir e cerrou bem os olhos. No pde, nem do lado direito, nem do esquerdo, de costas nem de bruos. Ergueu-se e foi ao relgio; eram trs horas. Insensivelmente levou-o orelha a ver se estava parado; estava andando, dera-lhe corda. Sim, tinha tempo de dormir um bom sono; deitou-se, cobriu a cabea para no ver a luz. Ah! foi ento que o sono tentou entrar, calado e surdo, todo cautelas, como seria a morte, se quisesse levlo de repente, para nunca mais. Cordovil cerrou os olhos com fora, e fez mal, porque a fora acentuou a vontade que tinha de dormir; cuidou de os afrouxar, e fez bem. O sono, que ia a recuar, tornou atrs, e veio estirar-se ao lado deles, passando-lhe aqueles braos leves e pesados, a um tempo, que tiram pessoa todo movimento. Cordovil os sentia, e com os seus quis concheg-los ainda mais... A imagem no boa, mas no tenho outra mo nem tempo de ir busc-la. Digo s o resultado do gesto, que foi arredar o sono de si, to aborrecido ficou este reformador de cansados. -- Que ter ele hoje contra mim? perguntaria o sono, se falasse. Tu sabes que ele mudo por essncia. Quando parece que fala o sonho que abre a boca pessoa, ele no, ele a pedra, e ainda a pedra fala, se lhe batem, como esto fazendo agora os calceteiros da minha rua. Cada pancada acorda na pedra um som, e a regularidade do gesto torna aquele som to pontual que parece a alma de um relgio. Vozes de conversa ou de prego, rodas de carro, passos de gente, uma janela batida pelo vento, nada dessas cousas que ora ouo, animava ento a rua e a noite de Cordovil. Tudo era propcio ao sono. Cordovil ia finalmente dormir, quando a idia de amanhecer morto apareceu outra vez. O sono recuou e fugiu. Esta alternativa durou muito tempo. Sempre que o sono ia a grudar-lhe os olhos, a lembrana da morte os abria, at que ele sacudiu o lenol e saiu da cama. Abriu uma janela e encostou-se ao peitoril. O cu queria clarear, alguns vultos iam passando na rua, trabalhadores e mercadores que desciam para o centro da cidade. Cordovil sentiu um arrepio; no sabendo se era frio ou medo, foi vestir um camiso de chita, e voltou para a janela. Parece que era frio, porque no sentia mais nada. A gente continuava a passar, o cu a clarear, um assobio da estrada de ferro deu sinal de trem que ia partir. Homens e cousas vinham do descanso, o cu fazia economia de estrelas, apagando-as medida que o sol ia chegando para o seu ofcio. Tudo dava idia de vida. Naturalmente a idia da morte foi recuando e desapareceu de todo, enquanto o nosso homem, que suspirou por ela no Cassino, que a desejou para o dia seguinte na Cmara dos Deputados, que a encarou no carro, voltou-lhe as costas quando a viu entrar com o sono, seu irmo mais velho, -- ou mais moo no sei. Quando veio a falecer, muitos anos depois, pediu e teve a morte, no sbita, mas vagarosa, a morte de um vinho filtrado, que sai impuro de uma garrafa para entrar purificado em outra; a borra iria; para o cemitrio. Agora que lhe via a filosofia; em ambas as garrafas era sempre o vinho que ia ficando, at passar inteiro e pingado para a segunda. Morte sbita no acabava de entender o que era.UM CAPITO DE VOLUNTRIOS UM CAPITO DE VOLUNTRIOS 24. Indo a embarcar para a Europa, logo depois da proclamao da Repblica, Simo de Castro fez inventrio das cartas e apontamentos; rasgou tudo. S lhe ficou a narrao que ides ler; entregou-a a um amigo para imprimi-la quando ele estivesse barra fora. O amigo no cumpriu a recomendao por achar na histria alguma cousa que podia ser penosa, e assim lho disse em carta. Simo respondeu que estava por tudo o que quisesse; no tendo vaidades literrias, pouco se lhe dava de vir ou no a pblico. Agora que os dous faleceram, e no h igual escrpulo, d-se o manuscrito ao prelo. ramos dous, elas duas. Os dous amos ali por visita, costume, desfastio, e finalmente por amizade. Fiquei amigo do dono da casa, ele meu amigo. As tardes, sobre o jantar, -- jantava-se cedo em 1866, -- ia ali fumar um charuto. O sol ainda entrava pela janela, onde se via um morro com casas em cima. A janela oposta dava para o mar. No digo a rua nem o bairro; a cidade posso dizer que era o Rio de Janeiro. Ocultarei o nome do meu amigo, ponhamos uma letra, X... Ela, uma delas, chamava-se Maria. Quando eu entrava, j ele estava na cadeira de balano. Os mveis da sala eram poucos, os ornatos raros, tudo simples. X... estendia-me a mo larga e forte; eu ia sentar-me ao p da janela, olho na sala, olho na rua. Maria, ou j estava ou vinha de dentro. ramos nada um para o outro; ligava-nos unicamente a afeio de X... Conversvamos; eu saa para casa ou ia passear, eles ficavam e iam dormir. Algumas vezes jogvamos cartas, s noites, e, para o fim do tempo, era ali que eu passava a maior parte destas. Tudo em X... me dominava. A figura primeiro. Ele robusto, eu franzino; a minha graa feminina, dbil, desaparecia ao p do garbo varonil dele, dos seus ombros largos, cadeiras largas, jarrete forte e o p slido que, andando, batia rijo no cho. Dai-me um bigode escasso e fino; vede nele as suas longas, espessas e encaracoladas, e um dos seus gestos habituais, pensando ou escutando, era passar os dedos por elas, encaracolando-as sempre. Os olhos completavam a figura, no s por serem grandes e belos, mas porque riam mais e melhor que a boca. Depois da figura, a idade; X... era homem de quarenta anos, eu no passava dos vinte e quatro. Depois da idade, a vida; ele vivera muito, em outro meio, donde sara a encafuar-se naquela casa, com aquela senhora, eu no vivera nada nem com pessoa alguma. Enfim, -- e este rasgo capital, -- havia nele uma fibra castelhana, uma gota do sangue que circula nas pginas de Caldern, uma atitude moral que posso comparar, sem depresso nem riso, do heri de Cervantes. Como se tinham amado? Datava de longe. Maria contava j vinte e sete anos, e parecia haver recebido alguma educao. Ouvi que o primeiro encontro fora em um baile de mscaras, no antigo Teatro Provisrio. Ela trajava uma saia curta, e danava ao som de um pandeiro. Tinha os ps admirveis, e foram eles ou o seu destino a causa do amor de X... Nunca lhe perguntei a origem da aliana; sei s que ela tinha uma filha, que estava no colgio e no vinha casa; a me que ia v-la. Verdadeiramente as nossas relaes eram respeitosas, e o respeito ia ao ponto de aceitar a situao sem a examinar. Quando comecei a ir ali, no tinha ainda o emprego no banco. S dous ou trs meses depois que entrei para este, e no interrompi as relaes. Maria tocava piano; s vezes, ela e a amiga Raimunda conseguiam arrastar X... ao teatro; eu ia com eles. No fim, tomvamos ch em sala particular, e, uma ou outra vez, se havia lua, acabvamos a noite indo de carro a Botafogo. A estas festas no ia Barreto, que s mais tarde comeou a freqentar a casa. Entretanto, era bom companheiro, alegre e rumoroso. Uma noite, como sassemos de l, encaminhou a conversa para as duas mulheres, e convidou-me a namor-las. -- Tu escolhes uma, Simo, eu outra. Estremeci e parei. 25. -- Ou antes, eu j escolhi, continuou ele, escolhi a Raimunda. Gosto muito da Raimunda. Tu, escolhe a outra. -- A Maria? -- Pois que outra h de ser? O alvoroo que me deu este tentador foi tal que no achei palavra de recusa, nem palavra nem gesto. Tudo me pareceu natural e necessrio. Sim, concordei em escolher Maria; era mais velha que eu trs anos, mas tinha a idade conveniente para ensinar-me a amar. Est dito, Maria. Deitamo-nos s duas conquistas com ardor e tenacidade. Barreto no tinha que vencer muito; a eleita dele no trazia amores, mas at pouco antes padecera de uns que rompera contra a vontade, indo o amante casar com uma moa de Minas. Depressa se deixou consolar. Barreto um dia, estando eu a almoar, veio anunciar-me que recebera uma carta dela, e mostrou-ma. -- Esto entendidos? -- Estamos. E vocs? -- Eu no. -- Ento quando? -- Deixa ver, eu te digo. Naquele dia fiquei meio vexado. Com efeito, apesar da melhor vontade deste mundo, no me atrevia a dizer a Maria os meus sentimentos. No suponhas que era nenhuma paixo. No tinha paixo, mas curiosidade. Quando a via esbelta e fresca, toda calor e vida, sentia-me tomado de uma fora nova e misteriosa; mas, por um lado, no amara nunca, e, por outro, Maria era a companheira de meu amigo. Digo isto, no para explicar escrpulos, mas unicamente para fazer compreender o meu acanhamento. Viviam juntos desde alguns anos, um para o outro. X... tinha confiana em mim, confiana absoluta, comunicava-me os seus negcios, contava-me cousas da vida passada. Apesar da desproporo da idade, ramos como estudantes do mesmo ano. Como entrasse a pensar mais constantemente em Maria, provvel que por algum gesto lhe houvesse descoberto o meu recente estado, certo que, um dia, ao apertar-lhe a mo, senti que os dedos dela se demoravam mais entre os meus. Dous dias depois, indo ao correio, encontrei-a selando uma carta para a Bahia. Ainda no disse que era baiana? Era baiana. Ela que me viu primeiro e me falou. Ajudei-lhe a pr o selo e despedimo-nos. porta ia a dizer alguma cousa, quando vi ante ns, parada, a figura de X... -- Vim trazer a carta para mame, apressou-se ela em dizer. Despediu-se de ns e foi para casa; ele e eu tomamos outro rumo. X... aproveitou a ocasio para fazer muitos elogios de Maria. Sem entrar em minudncias acerca da origem das relaes, assegurou-me que fora uma grande paixo igual em ambos, e concluiu que tinha a vida feita. -- J agora no me caso; vivo maritalmente com ela, morrerei com ela. Tenho uma s pena, ser obrigado a viver separado de minha me. Minha me sabe, disse-me ele parando. E continuou andando: sabe, e at j me fez uma aluso muito vaga e remota, mas que eu percebi. Consta-me que no desaprova; sabe que 26. Maria sria e boa, e uma vez que eu seja feliz, no exige mais nada. O casamento no me daria mais que isto... Disse muitas outras cousas, que eu fui ouvindo sem saber de mim; o corao batia-me rijo, e as pernas andavam frouxas. No atinava com resposta idnea; alguma palavra que soltava, saa-me engasgada. Ao cabo de algum tempo, ele notou o meu estado e interpretou-o erradamente; sups que as suas confidncias me aborreciam, e disse-mo rindo. Contestei srio: -- Ao contrrio, ouo com interesse, e trata-se de pessoas de toda a considerao e respeito. Penso agora que cedia inconscientemente a uma necessidade de hipocrisia. A idade das paixes confusa, e naquela situao no posso discernir bem os sentimentos e suas causas. Entretanto, no fora de propsito que buscasse dissipar no nimo de X... qualquer possvel desconfiana. A verdade que ele me ouviu agradecido. Os seus grandes olhos de criana envolveram-me todo, e quando nos despedimos, apertou-me a mo com energia. Creio at que lhe ouvi dizer: "Obrigado!" No me separei dele aterrado, nem ferido de remorsos prvios. A primeira impresso da confidncia esvaiu-se, ficou s a confidncia, e senti crescer-me o alvoroo da curiosidade. X... falara-me de Maria como de pessoa casta e conjugal; nenhuma aluso s suas prendas fsicas, mas a minha idade dispensava qualquer referncia direta. Agora, na rua, via de cor a figura da moa, os seus gestos igualmente lnguidos e robustos, e cada vez me sentia mais fora de mim. Em casa escrevi-lhe uma carta longa e difusa, que rasguei meia hora depois, e fui jantar. Sobre o jantar fui casa de X... Eram ave-marias. Ele estava na cadeira de balano, eu sentei-me no lugar do costume, olho na sala, olho no morro. Maria apareceu tarde, depois das horas, e to anojada que no tomou parte na conversao. Sentou-se e cochilou; depois tocou um pouco de piano e saiu da sala. -- Maria acordou hoje com a mania de colher donativos para a guerra, disse-me ele. J lhe fiz notar que nem todos querero parecer que... Voc sabe... A posio dela... Felizmente, a idia h de passar; tem dessas fantasias... -- E por que no? -- Ora, porque no! E depois, a guerra do Paraguai, no digo que no seja como todas as guerras, mas, palavra, no me entusiasma. A princpio, sim, quando o Lpez tomou o Marqus de Olinda, fiquei indignado; logo depois perdi a impresso, e agora, francamente, acho que tnhamos feito muito melhor se nos alissemos ao Lpez contra os argentinos. -- Eu no. Prefiro os argentinos. -- Tambm gosto deles, mas, no interesse da nossa gente, era melhor ficar com o Lpez. -- No; olhe, eu estive quase a alistar-me como voluntrio da ptria. -- Eu, nem que me fizessem coronel, no me alistava. Ele disse no sei que mais. Eu, como tinha a orelha afiada, escuta dos ps de Maria, no respondi logo, nem claro, nem seguido; fui engrolando alguma palavra e sempre escuta. Mas o diabo da moa no vinha; imaginei que estariam arrufados. Enfim, propus cartas, podamos jogar uma partida de voltarete. 27. -- Podemos, disse ele. Passamos ao gabinete. X... ps as cartas na mesa e foi chamar a amiga. Dali ouvi algumas frases sussurradas, mas s estas me chegaram claras: -- Vem! s meia hora. -- Que maada! Estou doente. Maria apareceu no gabinete, bocejando. Disse-me que era s meia hora; tinha dormido mal, doa-lhe a cabea e contava deitar-se cedo. Sentou-se enfastiada, e comeamos a partida. Eu arrependia-me de haver rasgado a carta; lembrava-me alguns trechos dela, que diriam bem o meu estado, com o calor necessrio a persuadi-la. Se a tenho conservado, entregava-lhe agora; ela ia muita vez ao patamar da escada despedirse de mim e fechar a cancela. Nessa ocasio podia dar-lha; era uma soluo da minha crise. Ao cabo de alguns minutos, X... levantou-se para ir buscar tabaco de uma caixa de folha-de-flandres, posta sobre a secretria. Maria fez ento um gesto que no sei como diga nem pinte. Ergueu as cartas altura dos olhos para os tapar, voltou-os para mim que lhe ficava esquerda, e arregalou-os tanto e com tal fogo e atrao, que no sei como no entrei por eles. Tudo foi rpido. Quando ele voltou fazendo um cigarro, Maria tinha as cartas embaixo dos olhos, abertas em leque, fitando-as como se calculasse. Eu devia estar trmulo; no obstante, calculava tambm, com a diferena de no poder falar. Ela disse ento com placidez uma das palavras do jogo, passo ou licena. Jogamos cerca de uma hora. Maria, para o fim, cochilava literalmente, e foi o prprio X... que lhe disse que era melhor ir descansar. Despedi-me e passei ao corredor, onde tinha o chapu e a bengala. Maria, porta da sala, esperava que eu sasse e acompanhou-me at cancela, para fech-la. Antes que eu descesse, lanou-me um dos braos ao pescoo, chegou-me a si, colou-me os lbios nos lbios, onde eles me depositaram um beijo grande, rpido e surdo. Na mo senti alguma coisa. -- Boa noite, disse Maria fechando a cancela. No sei como no ca. Desci atordoado, com o beijo na boca, os olhos nos dela, e a mo apertando instintivamente um objeto. Cuidei de me pr longe. Na primeira rua, corri a um lampio, para ver o que trazia. Era um carto de loja de fazendas, um anncio, com isto escrito nas costas, a lpis: "Espere-me amanh, na ponte das barcas de Niteri, a uma hora da tarde". O meu alvoroo foi tamanho que durante os primeiros minutos no soube absolutamente o que fiz. Em verdade, as emoes eram demasiado grandes e numerosas, e to de perto seguidas que eu mal podia saber de mim. Andei at ao Largo de S. Francisco de Paula. Tornei a ler o carto; arrepiei caminho, novamente parei, e uma patrulha que estava perto talvez desconfiou dos meus gestos. Felizmente, a respeito da comoo, tinha fome e fui cear ao Hotel dos Prncipes. No dormi antes da madrugada; s seis horas estava em p. A manh foi lenta como as agonias lentas. Dez minutos antes de uma hora cheguei ponte; j l achei Maria, envolvida numa capa, e com um vu azul no rosto. Ia sair uma barca, entramos nela. O mar acolheu-nos bem. A hora era de poucos passageiros. Havia movimento de lanchas, de aves, e o cu luminoso parecia cantar a nossa primeira entrevista. O que dissemos foi to de atropelo e confuso que no me ficou mais de meia dzia de palavras, e delas nenhuma foi o nome de X... ou qualquer referncia a ele. Sentamos ambos que traamos eu o meu amigo, ela o seu amigo e protetor. Mas, ainda que o no sentssemos, no provvel que falssemos dele, to pouco era o tempo para o nosso infinito. Maria 28. apareceu-me ento como nunca a vi nem suspeitara falando de mim e de si, com a ternura possvel naquele lugar pblico, mas toda a possvel, no menos. As nossas mos colavam-se, os nossos olhos comiam-se e os coraes batiam provavelmente ao mesmo compasso rpido e rpido. Pelo menos foi a sensao com que me separei dela, aps a viagem redonda a Niteri e S. Domingos. Convidei-a a desembarcar em ambos os pontos, mas recusou; na volta, lembrei-lhe que nos metssemos numa calea fechada: "Que idia faria de mim?" perguntou-me com gesto de pudor que a transfigurou. E despedimonos com prazo dado, jurando-lhe que eu no deixaria de ir v-los, noite, como de costume. Como eu no tomei da pena para narrar a minha felicidade, deixo a parte deliciosa da aventura, com as suas entrevistas, cartas e palavras, e mais os sonhos e esperanas, as infinitas saudades e os renascentes desejos. Tais aventuras so como os almanaques, que, com todas as suas mudanas, ho de trazer os mesmos dias e meses, com os seus eternos nomes e santos. O nosso almanaque apenas durou um trimestre, sem quartos minguantes nem ocasos de sol. Maria era um modelo de graas finas, toda vida, toda movimento. Era baiana, como disse, fora educada no Rio Grande do Sul, na campanha, perto da fronteira. Quando lhe falei do seu primeiro encontro com X... no Teatro Provisrio, danando ao som de um pandeiro, disse-me que era verdade, fora ali vestida castelhana e de mscara; e, como eu lhe pedisse a mesma cousa, menos a mscara, ou um simples lundu nosso, respondeu-me como quem recusa um perigo: -- Voc poderia ficar doudo. -- Mas X... no ficou doudo. -- Ainda hoje no est no seu juzo, replicou Maria rindo. Imagina que eu fazia isto s... E em p, num maneio rpido, deu uma volta ao corpo, que me fez ferver o sangue. O trimestre acabou depressa, como os trimestres daquela casta. Maria faltou um dia entrevista. Era to pontual que fiquei tonto quando vi passar a hora. Cinco, dez, quinze minutos; depois vinte, depois trinta, depois quarenta... No digo as vezes que andei de um lado para outro, na sala, no corredor, espreita e escuta, at que de todo passou a possibilidade de vir. Poupo a notcia do meu desespero, o tempo que rolei no cho, falando, gritando ou chorando. Quando cansei, escrevi-lhe uma longa carta; esperei que me escrevesse tambm, explicando a falta. No mandei a carta, e noite fui casa deles. Maria pde explicar-me a falta pelo receio de ser vista e acompanhada por algum que a perseguia desde algum tempo. Com efeito, haviam-me j falado em no sei que vizinho que a cortejava com instncia; uma vez disse-me que ele a seguira at porta da minha casa. Acreditei na razo, e propus-lhe outro lugar de encontro, mas no lhe pareceu conveniente. Desta vez achou melhor suspendermos as nossas entrevistas, at fazer calar as suspeitas. No sairia de casa. No compreendi ento que a principal verdade era ter cessado nela o ardor dos primeiros dias. Maria era outra, principalmente outra. E no podes imaginar o que vinha a ser essa bela criatura, que tinha em si o fogo e o gelo, e era mais quente e mais fria que ningum. Quando me entrou a convico de que tudo estava acabado, resolvi no voltar l, mas nem por isso perdia a esperana; era para mim questo de esforo. A imaginao, que torna presentes os dias passados, faziame crer facilmente na possibilidade de restaurar as primeiras semanas. Ao cabo de cinco dias, voltei; no podia viver sem ela. X... recebeu-me com o seu grande riso infante, os olhos puros, a mo forte e sincera; perguntou a razo da minha ausncia. Aleguei uma febrezinha, e, para explicar o enfadamento que eu no podia vencer, disse 29. que ainda me doa a cabea. Maria compreendeu tudo; nem por isso se mostrou meiga ou compassiva, e, minha sada, no foi at ao corredor, como de costume. Tudo isto dobrou a minha angstia. A idia de morrer entrou a passar-me pela cabea; e, por uma simetria romntica, pensei em meter-me na barca de Niteri, que primeiro acolheu os nossos amores, e, no meio da baa, atirar-me ao mar. No iniciei tal plano nem outro. Tendo encontrado casualmente o meu amigo Barreto, no vacilei em lhe dizer tudo; precisava de algum para falar comigo mesmo. N