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© Herdeiros de Octavio Paz

Título: Vislumbres da ÍndiaTítulo original: Vislumbres de la India (1995)

Autor: Octavio PazTradução: José Colaço Barreiros

Revisão de texto: João Carlos AlvimCapa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)

sobre fotografia do Taj Mahal

© Relógio D’Água Editores, janeiro de 2017

Esta tradução segue o novo Acordo Ortográfico.

Encomende os seus livros em:www.relogiodagua.pt

ISBN 978 ‑989 ‑641‑659‑1

Composição e paginação: Relógio D’Água EditoresImpressão: Guide Artes Gráficas, Lda.

Depósito Legal n.º 420745/17

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Octavio Paz

Vislumbres da ÍndiaTradução de

José Colaço Barreiros

Viagens

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W. H. Auden. Explicou ‑me que o monumento era um arco, eri‑gido em 1911 para receber o rei Jorge II e a sua esposa (Queen Mary). Pareceu ‑me uma versão fantasista dos arcos romanos. Mais tarde vim a saber que o estilo do arco se inspirava no que, no século xvi, predominava em Gujarat, uma província indiana. Atrás do monumento, flutuando no ar cálido, via ‑se a silhueta do hotel Taj Mahal, enorme pastel, delírio de um Oriente fim ‑de‑‑século, que como uma gigantesca bola não de sabão mas de pedra tivesse ido parar a um recanto de Bombaim. Esfreguei os olhos: o hotel aproximava ‑se ou afastava ‑se? Ao reparar na mi‑nha surpresa o engenheiro Auden contou ‑me que o aspeto do hotel se devia a um erro: os construtores não tinham sabido in‑terpretar os planos que o arquiteto enviara de Paris e ergueram o edifício ao contrário, quer dizer, a fachada para a cidade, vi‑rando as costas ao mar. O erro pareceu ‑me um «ato falhado» que denunciava uma negação inconsciente da Europa e a vontade de se internar para sempre na Índia. Um gesto simbólico, um pouco como o incendiar dos navios de Cortés. Quantos não teríamos já experimentado esta tentação?

Uma vez em terra, rodeados de uma multidão que vociferava em inglês e em várias línguas nativas, percorremos uns cinquen‑ta metros do sujo cais e chegámos ao destrambelhado edifício da alfândega. Era uma balbúrdia enorme. O calor era asfixiante e a desordem indescritível. Não sem dificuldade identifiquei a mi‑nha pequena bagagem e submeti ‑me ao embaraçoso interrogató‑rio do empregado alfandegário. Creio que a Índia e o México têm os piores serviços alfandegários do mundo. Finalmente li‑bertado, saí da alfândega e dei comigo na rua, no meio da bulha dos carregadores, guias e motoristas. Encontrei por fim um táxi, que me levou numa corrida louca ao meu hotel, o Taj Mahal. Se este livro não fosse um ensaio mas sim um livro de memórias, dedicaria várias páginas a este hotel. É real e é quimérico, é os‑

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tentoso e é cómodo, é presumido e é sublime. É o sonho inglês da Índia de princípios do século, povoado por homens escuros, de bigodes pontiagudos e cimitarra à cinta, por mulheres de pele de âmbar, pestanas e cabelos pretos como asas de corvo, e imen‑sos olhos de leoa no cio. Os seus arcos de complicados ornamen‑tos, as suas reviravoltas imprevistas, os seus pátios, terraços e jardins encantam ‑nos e enjoam ‑nos. Os seus corredores são as galerias de um sonho faustoso, sinistro e infindável. Cenário para um conto sentimental e também para uma crónica deprava‑da. Mas o Taj Mahal já não existe; mais exatamente foi moder‑nizado e assim de gra da ram ‑no como se fosse um motel para tu‑ristas do Middle West… Um criado de turbante e imaculada jaqueta branca le vou ‑me ao meu quarto. Era pequeno mas agra‑dável. Arrumei as minhas coisas no roupeiro, tomei um banho rápido, e pus uma camisa branca. Desci a escada a correr e lan‑cei ‑me na cidade. Lá fora esperava ‑me uma realidade insólita:

vagas de calor, vastos edifícios cinzentos e vermelhos como os de uma Londres vitoriana erguidos entre as palmeiras e os vendedores ambulantes, os banianos, como um pesadelo perti‑naz, paredes leprosas, largas e bonitas avenidas, grandes árvo‑res desconhecidas, ruelas malcheirosas,

torrentes de automóveis, vaivém de gente, vacas esqueléti‑cas sem dono, mendigos, carros a chiar puxados por bois abú‑licos, rios de bicicletas,

algum sobrevivente do British Raj de rigoroso e puído traje branco e chapéu de chuva preto,

outra vez um mendigo, quatro santarrões seminus pintalga‑dos, manchas avermelhadas de bétele no chão,

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batalhas de buzinadelas entre um táxi e um autocarro poei‑rento, mais bicicletas, outras vacas e outro santarrão seminu,

ao dobrar uma esquina, a aparição de uma rapariga como uma flor que se entreabre,

rajadas de mau cheiro, matérias em decomposição, hálitos de perfumes frescos e puros,

banquinhas de vendedores de cocos e rabanadas de ananás, desempregados andrajosos sem ofício nem benefício, um ban‑do de adolescentes como um tropel de veados,

mulheres de saris vermelhos, azuis, amarelos, cores deliran‑tes, umas solares e outras noturnas, mulheres morenas de pul‑seiras nos tornozelos e sandálias não para andarem no asfalto ardente mas num prado,

jardins públicos asfixiados pelo calor, macacos nas cornijas dos prédios, merda e jasmins, crianças vagabundas,

uma bananeira, imagem da chuva como o cato é o emblema da secura, e encostada a uma parede uma pedra besuntada de tinta vermelha, aos seus pés umas flores murchas: a silhueta do deus macaco,

o riso de uma rapariguinha esbelta como uma vara de nardo, um leproso sentado debaixo da estátua de um prócere parsi,

à porta de um tugúrio, olhando com indiferença para a gen‑te, um ancião de rosto nobre,

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um eucalipto generoso na desolação de uma lixeira, o enor‑me cartaz num terreno baldio com a foto de uma estrela de cinema: lua cheia sobre o terraço de um sultão,

mais muros decrépitos, e paredes caiadas e nelas pichagens políticas escritas em carateres vermelhos e negros incom‑preensíveis para mim,

grades douradas e negras de uma vivenda luxuosa com uma insolente inscrição: Easy Money, outras grades ainda mais lu‑xuosas que deixavam ver um jardim exuberante, na porta uma inscrição dourada sobre o mármore negro,

no céu, violentamente azul, em círculos ou em ziguezague, os voos de gaviões e abutres, corvos, corvos, corvos…

Ao anoitecer, regressei ao hotel, rendido. Jantei no quarto, mas a minha curiosidade era mais forte que o cansaço e, após outro banho, lancei ‑me de novo à cidade. Encontrei muitos vultos brancos deitados nos passeios: homens e mulheres que não tinham casa. Apanhei um táxi e percorri zonas desertas e bairros populosos, ruas animadas pela dupla febre do vício e do dinheiro. Vi monstros e cegaram ‑me relâmpagos de beleza. Deambulei por ruelas infames e assomei a bordéis e barracões: putas pintalgadas e Gitões com colares de vidro e saias de co‑res garridas. Vagueei por Malabar Hill e os seus jardins sere‑nos. Caminhei por uma rua solitária e, no fim, uma visão ver‑tiginosa: lá em baixo o mar negro batia nas rochas da costa e cobria ‑as com um manto fervilhante de espuma. Apanhei outro táxi e voltei às redondezas do hotel. Mas não entrei; a noite atraía ‑me e decidi dar outro passeio pela grande avenida que bordejava os cais. Era uma zona de calma. No céu ardiam si‑

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lenciosamente as estrelas. Sentei ‑me ao pé de uma grande árvo‑re, estátua da noite, e tentei fazer um resumo do que tinha visto, ouvido, cheirado e sentido: enjoo, horror, espanto; assom bro, alegria, entusiasmo, náuseas, invencível atração. O que me atraía? Era difícil responder: Human kind cannot bear much reality. Sim, o excesso de realidade torna ‑se irrealidade mas esta irrealidade para mim transformara ‑se numa súbita varanda à qual eu assomava para quê? Para o que está para além e que ainda não tem nome…

O meu repentino fascínio não me parece insólito: naquela época eu era um jovem poeta bárbaro. Juventude, poesia e barbárie não são inimigas: no olhar do bárbaro há inocência, no do jovem, apetite de vida, e no do poeta há assombro. No dia seguinte telefonei a Shanta e a Faubian. Convidaram ‑me para beber um copo em casa deles. Viviam com os pais de Shanta numa luxuosa mansão que, tal como todas as de Bom‑baim, estava rodeada por um jardim. Sentámo ‑nos no terraço, em volta de uma mesa com refrescos. Pouco tempo depois chegou o pai. Um homem elegante. Fora o primeiro embaixa‑dor da Índia junto do governo de Washington e acabava de deixar o seu posto. Ao saber a minha nacionalidade, perguntou‑‑me com uma gargalhada: «E o México é uma das listas ou uma das estrelas?» Corei e estava prestes a replicar com uma insolência mas Shanta interveio e respondeu com um sorriso: «Perdão, Octavio. Os europeus não sabem geografia mas os meus compatriotas não sabem história.» O senhor Rama Rau desculpou ‑se: «Era só uma piada… Nós próprios, até há pouco tempo éramos uma colónia.» Pensei nos meus compatriotas: também diziam asneiras semelhantes quando falavam da Índia. Shanta e Faubian perguntaram ‑me se tinha visitado alguns dos edifícios e lugares famosos. Recomendaram ‑me que fosse ao museu e, sobretudo, que visitasse a Ilha de Elefanta.

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Um dia depois voltei ao porto e tomei lugar num barquinho que fazia o serviço entre Bombaim e Elefanta. Comigo viaja‑vam alguns turistas e poucos indianos. O mar estava calmo; atravessámos a baía sob um céu sem nuvens e em menos de uma hora chegámos à ilhota. Altos penhascos brancos e uma vegetação rica e violenta. Caminhámos por um carreiro pardo e vermelho que nos levou à boca da gruta imensa. Penetrei num mundo feito de penumbra e súbitas claridades. Os jogos de luz, a amplitude dos espaços e as suas formas irregulares, as figuras entalhadas nas paredes, tudo dava ao lugar um caráter sagrado, no sentido mais profundo da palavra. Entre as som‑bras, os relevos e as estátuas poderosas, muitas mutiladas pelo zelo fanático dos portugueses e dos muçulmanos, mas todas majestosas, sólidas, feitas de uma matéria solar. Beleza corpó‑rea, tornada pedra viva. Divindades da terra, encarnações se‑xuais do pensamento mais abstrato, deuses ao mesmo tempo intelectuais e carnais, terríveis e pacíficos. Shiva sorri de um além onde o tempo é uma nuvenzinha à deriva e essa nuvem logo se transforma num jorro de água e o jorro de água numa esbelta rapariga que é a própria primavera: a deusa Parvati. O par divino é a imagem da felicidade que a nossa condição mortal só nos oferece para, um instante depois, a dissipar. Esse mundo palpável, tangível e eterno não é para nós. Visão de uma felicidade ao mesmo tempo terrestre e inalcançável. As‑sim começou a minha iniciação na arte da Índia.

Deli

Uma semana depois apanhei o comboio para Deli. Não le‑vava máquina fotográfica mas sim um guia seguro: o Murray’s

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Handbook of India, Pakistan, Burma and Ceylan, na edição de 1949, comprada na véspera no book ‑stall do Taj Mahal. Na primeira página, três versos de Milton:

India and the Golden ChersoneseAnd utmost Indian Isle Trapobane,Dusk faces with white silken turbans wreathed.

Aquela viagem interminável, com as suas estações cheias de gente e os seus vendedores de guloseimas e quinquilharias fez‑‑me pensar não nas visões de um poeta inglês do século xvii mas nos versos de um mexicano do século xx:

… Pátria: tu casa todavíaes tan grande que el tren va por la víacomo aguinaldo de juguetería…*

Era impossível não recordar, diante daquela paisagem, du‑rante longos bocados desolada e sempre com a monotonia que é um dos atributos da imensidão, outra viagem da minha infân‑cia, não menos longa, feita com a minha mãe da Cidade do México a San Antonio, Texas. Foi durante o período final da Revolução mexicana. Para nos proteger dos guerrilheiros que assaltavam os comboios, viajava connosco uma escolta militar. A minha mãe olhava com receio os oficiais: ia juntar ‑se ao meu pai, exilado político nos Estados Unidos e adversário da‑queles militares. Tinha a obsessão dos enforcados, com a lín‑gua de fora e a balançar pendurados dos postes do telégrafo ao longo da linha. Tinha ‑os visto diversas vezes, noutras viagens

* «Pátria: a tua casa ainda / é tão grande que o comboio vai pela linha / como brinquedo de criança.» (N. T.)

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do México a Puebla. Ao chegar a um lugar onde haviam com‑batido pouco tempo antes um grupo de insurretos com as tro‑pas federais, tapou ‑me a cara com um movimento rápido da mão enquanto com a outra baixava a cortina da janela. Eu es‑tava a dormir e o seu movimento fez ‑me abrir os olhos: entre‑vi uma sombra comprida, pendurada de um poste. A visão foi muito rápida e antes que me desse conta do que vira já se tinha desvanecido. Teria então uns seis anos e ao recordar este inci‑dente enquanto via a interminável planície da Índia, pensei nas matanças de 1947 entre os hindus e os muçulmanos. Matanças à beira de uma linha férrea, a mesma coisa no México e na Índia… Desde o princípio, tudo o que via provocava em mim, sem que eu mo propusesse, a aparição de imagens esquecidas do México. A estranheza da Índia suscitava na minha mente a outra estranheza, a do meu próprio país. Os versos de Milton e o seu exotismo fundiam ‑se com o meu próprio e íntimo exotis‑mo de mexicano. Acabava de escrever O Labirinto da Solidão, tentativa para responder à pergunta que me fazia o México; agora a Índia esboçava à minha frente outra interrogação ainda mais vasta e enigmática.

Instalei ‑me em Nova Deli num hotel pequeno e agradável. Nova Deli é irreal, como o são a arquitetura gótica erigida em Londres no século passado ou a Babilónia de Cecil B. DeMil‑le. Quero dizer: é mais um conjunto de imagens do que de edifícios. O seu equivalente estético não está tanto na arquite‑tura como no romance: percorrer esta cidade é passear pelas páginas de uma obra de Victor Hugo, Walter Scott ou Alexan‑dre Dumas. A história e a época são diferentes mas o encanto é o mesmo. Nova Deli não foi edificada lentamente, através dos séculos e com a imaginação de sucessivas gerações, mas sim, como Washington, foi planeada e construída em poucos anos por um arquiteto: Sir Edwin Lutyens. Apesar do ecletis‑

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mo do estilo — uma visão pitoresca da arquitetura europeia clássica e da Índia — o conjunto não só é atraente como tam‑bém, com frequência, até imponente. Os grandes volumes marmóreos do antigo palácio vice ‑real, hoje residência do presidente da República (Rashtrapati Bhawan) têm grandeza. Os seus jardins de estilo mongol são de um traçado perfeito e fazem pensar num tabuleiro de xadrez em que cada peça fosse um grupo de árvores ou uma fonte. Há outros edifícios notá‑veis no mesmo estilo híbrido. O desenho da cidade é harmo‑nioso: largas avenidas plantadas de renques de árvores, praças circulares e uma infinidade de jardins. Nova Deli foi concebida como uma cidade ‑jardim. Infelizmente, na minha última visita, em 1985, surpreendeu ‑me a sua deterioração. O excessivo cres‑cimento da população, os automóveis, o fumo que deitam e os novos bairros, quase todos construídos com materiais baratos e num estilo grosseiro, desfearam Nova Deli. No entanto, em certas zonas ergueram ‑se algumas construções bonitas; por exemplo, a embaixada dos Estados Unidos. Também há outra, mais pequena e menos conhecida: a da Bélgica, imaginativa criação de Satish Gujrat, um notável pintor transformado em arquiteto e que se inspirou na pesada arquitetura, não isenta de grandeza, de Tughlakabad (século xiv)*.

Nova Deli é a última de uma série de cidades, edificadas na mesma área. A mais antiga, de que não restam vestígios, cha‑mou ‑se Indrapashta, segundo se diz no poema épico Mahabha‑rata. Supõe ‑se que floresceu mil e quinhentos anos antes de Cristo. A cidade que antecedeu Nova Deli foi obra do impera‑dor Shah Khahan, neto de Akbar e a quem devemos o Taj Mahal, de fama universal. Old Delhi, como se chama agora à cidade de Shah Khahan, embora prejudicada pela pletora de

* As suas ruínas, grandiosas e severas, podem ver ‑se nos arredores de Deli.

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habitantes e pela pobreza, contém edifícios muito bonitos, infe‑lizmente maltratados pelo tempo e pela incúria. As suas ruas e ruelas fervilhantes de vida popular evocam o que poderão ter sido as grandes cidades do Oriente nos séculos xvii e xviii, tal como as descrevem os relatos dos viajantes europeus. O Forte Vermelho, à beira do largo rio Khamuna, é poderoso como uma fortaleza e gracioso como um palácio. Nas suas vastas salas, jardins e espelhos de água é soberana a simetria. Qua se todos os grandes monumentos de Deli pertencem à arte islâmica: mesquitas, mausoléus, minaretes. Para ver a grande arte hindu tem de se sair de Deli. Mas eu não pude viajar muito durante esta primeira estada na Índia, que só durou uns meses. O impla‑cável senhor Tello voltou a mudar ‑me, desta vez para Tóquio. Mas essa é outra história.

É difícil encontrar uma torre que reúna qualidades tão opos‑tas como a altura, a solidez e a esbelta elegância do Kutb Minar (século xiii). A cor avermelhada da pedra, contrastando com a transparência do ar e o azul do céu, dão ao monumento um dinamismo vertical, como que um imenso foguete que preten‑desse perfurar as alturas. É uma «torre de vitória», bem assen‑te na terra e que ascende, qual inflexível e prodigiosa árvore pétrea. Parece que a construção original foi obra de Prithvi Raj, o último rei hindu de Deli. A torre fazia parte de um templo que albergava também o famoso Pilar de Ferro, que apresenta uma inscrição do período Gupta (século iv). Não menos belo mas mais sereno, como se a geometria tivesse decidido transformar‑‑se em água corrente e colunatas de árvores, é o mausoléu do imperador Humayum. Tal como noutros mausoléus muçulma‑nos, nada nesse monumento faz lembrar a morte. A alma do defunto desapareceu, partiu para o transmundo, e o seu corpo tornou ‑se um monte de pó. Tudo se transformou numa constru‑ção feita de cubos, meias esferas e arcos: o universo reduzido

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aos seus elementos geométricos essenciais. A abolição do tem‑po convertido em espaço e o seu espaço num conjunto de for‑mas simultaneamente sólidas e leves, criadoras de outro espa‑ço, por assim dizer, feito de ar. Edifícios que duraram séculos e que parecem um pestanejar da fantasia. Uma ordem de que desapareceu, como no poema de Baudelaire, «o vegetal irregu‑lar», salvo como estilização para decorar uma parede. O mau‑soléu pode comparar ‑se a um poema composto não de palavras mas de árvores, lagos, avenidas de areia e flores: metros rigo‑rosos que se cruzam e entrecruzam em ângulos que são rimas previstas e, não obstante, surpreendentes.

Na arquitetura islâmica nada é escultórico, exatamente o con‑trário do que acontece na hindu. Um dos grandes atrativos destes edifícios é que estão rodeados de jardins regidos por uma geo‑metria feita de variações que se repetem regularmente. Combi‑nação de prados e avenidas de areia ladeadas de árvores. Entre as avenidas de palmeiras e os prados multicores, imensos peque‑nos lagos retangulares que refletem, conforme a hora e as mu‑danças da luz, diferentes aspetos dos edifícios imóveis e das nuvens viajantes. Jogos incansáveis, sempre diferentes e sempre os mesmos, da luz e do tempo. A água cumpre uma dupla e mágica função: refletir o mundo e dissipá ‑lo. Vemos, e depois de ver não nos resta senão um punhado de imagens que fogem. Não há nada de assustador nestes túmulos: dão ‑nos a sensação de infinito e pacificam a alma. A simplicidade e a harmonia das suas formas satisfazem uma das necessidades mais profundas do nosso espírito: o anseio de ordem, o amor à proporção. Ao mes‑mo tempo, exaltam a nossa fantasia. Estes monumentos e estes jardins incitam ‑nos a sonhar e a voar. São tapetes mágicos.

Nunca esquecerei uma tarde numa mesquita minúscula, em que entrei por casualidade. Não havia ninguém. As paredes eram de mármore e exibiam inscrições do Alcorão. Por cima,

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o azul de um céu impassível e benévolo, só interrompido, de vez em quando, por uma bandada verde de periquitos. Passei um longo bocado sem fazer nem pensar em nada. Momento de beatitude, quebrado por fim pelo voo circular dos morcegos. Sem dizê ‑lo, diziam ‑me que eram horas de voltar ao mundo. Visão do infinito no retângulo azul de um céu sem mácula. Anos mais tarde, em Herat, tive uma experiência semelhante. Não numa mesquita, mas sim na varanda de um minarete em ruínas. Quis fixá ‑la num poema. Reproduzo os versos finais porque, se calhar, dizem mais bem e simplesmente o que eu agora quero dizer ao recordar estas experiências:

No tuve la visión sin imágenes,no vi girar las formas hasta desvanecerseen claridad inmóvil,el ser ya sin substancia del sufí.No bebí plenitud en el vacío…Vi un cielo azul y todos los azules,del blanco al verdetodo el abanico de los álamos,y sobre el pino, más aire que pájaro,el mirlo blanquinegro.Vi al mundo reposar en si mismo.Vi las apariencias.Y llamé a esa media hora:Perfección de lo Finito.*

* «Não tive a visão sem imagens, / não vi rodar as formas até se desvanecer/ em claridade imóvel, / o ser já sem substância do sufi. / Não bebi plenitude no vazio… / Vi um céu azul e todos os azuis, / do branco ao verde / todo o leque dos álamos, / e no pinheiro, mais ar que pássaro, / o melro branco e negro. / Vi o mundo repousar em si mesmo. / Vi as aparências. / E chamei a essa meia hora: Perfeição do Finito.» (N. T.)

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Apesar da brevidade da minha estada, fiz algumas amizades. Os indianos são hospitaleiros e cultivam a esquecida religião da amizade. Muitas destas relações duram ainda, salvo as que‑bradas pela morte. Seria fastidioso mencionar todos esses amigos e amigas mas tenho de fazer três exceções: J. Kripalla‑ni e a mulher, sobrinha do poeta Tagore, iniciaram ‑me na mo‑derna literatura em hindi e em bengali. Creio que é a eles que devo — ou foi a Henri Michaux? — o ter conhecido Lokenath Bhattacharya, autor de contos e textos em que, num estilo sim‑ples, consegue evocar a realidade menos tangível: a ausência. Narayan Menon, notável musicólogo e amante da poesia, introduziu ‑me com tato, paciência e sabedoria em duas artes complexas e subtis: a música e a dança; e por fim, tive a sorte de ajudar um jovem pintor de talento, Satish Gujrat, a conse‑guir uma bolsa para o México. Convidado pelos meus amigos e sob a sua direção comecei a frequentar os concertos de mú‑sica e de dança. Muitos deles nos bonitos jardins da Deli da‑quela época. As duas artes entreabriram ‑me as portas das len‑das, dos mitos e da poesia; ao mesmo tempo deram ‑me uma compreensão mais cabal da escultura que, por sua vez, é a chave da arquitetura hindu. Tem ‑se dito que a arquitetura góti‑ca é música petrificada; pode dizer ‑se que a arquitetura hindu é dança esculpida. Mas nesta ocasião mal fiz uma visita à arte indiana. A minha visita foi interrompida quando ainda mal começava. Fiz de novo as malas e apanhei o primeiro avião disponível. Esperava ‑me uma experiência não menos fascinan‑te: a do Japão.