Remissao Da Pena - Patrick Modiano

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“Rara é a família que remonta a quatro gerações e conseguereivindicar o direito a algum título, castelo ou propriedade;direitos que não poderiam ser provados em nenhum tribunal,mas que satisfazem à fantasia e abreviam as horas de ócio.“A reivindicação de um homem ao próprio passado é aindamenos legítima.”R. L. Stevenson,A Chapter on Dreams.

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CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJModiano, Patrick, 1945-Remisso da pena [recurso eletrnico] / Patrick Modiano; traduo Maria de Ftima Oliva doCoutto. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2015.recurso digitalTraduo de: Remise de peineFormato: epubRequisitos do sistema: adobe digital editionsModo de acesso: world wide webISBN 978-85-01-10394-9 (recurso eletrnico)1. Fico francesa. 2. Livros eletrnicos. I. Coutto, Maria de Ftima Oliva do. II. Ttulo.CDD: 843CDU: 821.133.1-3Ttulo original: REMISE DE PEINECopyright Editions du Seuil, 1988Texto revisado segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, no todo ou em parte, atravs de quaisquer meios. Osdireitos morais do autor foram assegurados.Direitos exclusivos de publicao em lngua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 Rio de Janeiro, RJ 20921-380 Tel.: 2585-2000,que se reserva a propriedade literria desta traduo.Produzido no BrasilISBN 978-85-01-10394-9Seja um leitor preferencial Record.Cadastre-se e receba informaes sobre nossos lanamentos e nossas promoes.Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.Para DominiqueRaraafamliaqueremontaaquatrogeraeseconseguereivindicarodireitoaalgumttulo,castelooupropriedade;direitosquenopoderiamserprovadosemnenhumtribunal,mas que satisfazem fantasia e abreviam as horas de cio.Areivindicaodeumhomemaoprpriopassadoaindamenos legtima.R. L. Stevenson,A Chapter on Dreams.Era uma poca em que as turns de teatro no percorriam apenas a Frana,a Sua e a Blgica mas tambm o norte da frica. Eu tinha dez anos. Minhame viajara em turn com uma pea e morvamos, meu irmo e eu, na casade umas amigas dela, em um vilarejo nas cercanias de Paris.Umacasadedoisandarescobertadehera.Umadessasjanelasqueseprojetam da fachada, que os ingleses chamam de bow-windows, prolongavaa sala de estar. Atrs da casa, um jardim suspenso. Nos fundos do primeironveldojardim,escondidosobasclematites,otmulododoutorGuillotin.Teria ele morado nessa casa? E teria aperfeioado ali sua mquina de cortarcabeas? Bem no alto do jardim, duas macieiras e uma pereira.Nasaladeestar,aspequenasplacasesmaltadas,penduradasporcorrentinhasprateadassgarrafasdelicor,exibiamnomes:Izarra,Sherry,Curaao.Amadressilvainvadiaabordadopoonomeiodoquintalqueprecediaojardim.Otelefoneficavaemcimadeumgueridom,pertinhodeuma das janelas da sala de estar.Umagradeprotegiaafachadadacasa,ligeiramenterecuadadarueduDocteur-Dordaine.Umdia,pintaramagradedenovoapscobri-ladezarco. Seria mesmo zarco aquele revestimento cor de laranja ainda vvidoemminhamemria?ArueduDocteur-Dordainetinhaumaaparnciaprovinciana,sobretudonofimdela:umconventodefreiras,depoisumagranja, onde amos buscar leite, e, mais alm, o castelo. Ao descer a rua, nacaladadireita,passava-sediantedocorreio;namesmaaltura,doladoesquerdo,viam-se,atrsdeumagrade,asestufasdoflorista,cujofilhosesentavaameuladonasaladeaula.Umpoucomaisafastado,namesmacaladadocorreio,omurodaescolaJeanne-dArc,escondidosobasfolhagens dos pltanos.Diantedacasa,umaavenidaemaclive.Ladeadadireitapelotemploprotestante e por um bosque onde encontramos no meio do mato o capacetedeumsoldadoalemo,e,esquerda,porumaresidnciacompridaebrancacomumfronto,umgrandejardimeumsalgueiro-choro.Maisabaixo, adjacente a esse jardim, a estalagem Robin des Bois.Nofimdaladeira,perpendicularaela,aestrada.direita,apraadaestao de trem, sempre deserta, onde aprendemos a andar de bicicleta. Naoutradireo,ladeava-seojardimpblico.Nacaladaesquerda,umaconstruocomumagaleriadeconcretoondesesucediamabancadejornal,ocinemaeafarmcia.Ofilhodofarmacuticoeraumdemeuscolegas deturma,ecerta noiteopaidele sematoupendurando-seemumacordapresanoterraodagaleria.Parecequeaspessoasseenforcamnovero.Nasoutrasestaes,preferemsematarafogando-senosrios.Foioprefeito do vilarejo quem o disse ao jornaleiro.Emseguida,umterrenodesertoondessextasaconteciaafeira.Devezem quando, ali era erguida a lona de um circo itinerante e as barracas de umparque de diverses.Chegava-sediantedaprefeituraedapassagemdenvel.Depoisdessatravessia,seguia-sepelaruaprincipaldovilarejo,quesubiaatapraadaigrejaeomonumentoaosmortos.EmumamissadeNatal,fomos,meuirmo e eu, meninos do coro nessa igreja.Havia apenas mulheres na casa onde ns dois morvamos.ApequenaHlneeraumamorenadeunsquarentaanos,testalargaemasdorostosalientes.Suabaixaestaturaaaproximavadens.Elamancavaligeiramenteporcausadeumacidentedetrabalho.Tinhasidoamazonaedepoisacrobata,oquelheconferiaprestgioanossosolhos.Ocircoquedescobrimos,meuirmoeeu,emumatardeemMedranoera um mundo ao qual queramos pertencer. Ela nos contou que no exerciaa profisso havia muito tempo e nos mostrou um lbum no qual tinha coladosuas fotos em trajes de amazona e de acrobata e pginas dos programas dascasasdeespetculosquemencionavamseunome:HlneToch.Comfrequncia,eulhepediaolbumemprestadoparafolhe-lonacamaantesde dormir.Formavamumtriocurioso,ela,AnnieeamedeAnnie,MathildeF.Annie era uma loura de cabelos curtos, nariz reto, olhos claros, rosto doce edelicado.Masalgoderudeemsuaposturacontrastavacomadouradorosto,talvezporcausadavelhajaquetadecouromarromumajaquetamasculinaqueusavacomcalaspretasmuitojustasduranteodia.noite,frequentementeusavaumvestidoazul-clarocomacinturaapertadapor um cinto preto largo, e eu a preferia assim.AmedeAnnienosepareciacomafilha.Seriarealmentesuame?AnnieachamavadeMathilde.Cabelosgrisalhosemumcoque.Rostorgido.Semprevestiaroupasescuras.Elamedavamedo.Emborameparecesse velha, no o era: Annie tinha vinte e seis anos na poca, e a me,unscinquenta.Lembro-medoscamafeusqueprendiablusa.TinhaumsotaquedosulquemaistardeencontreinosnativosdeNmes.QuantoaAnnie, no tinha esse sotaque, e sim, como meu irmo e eu, o de Paris.TodavezqueMathildesedirigiaamim,elamechamavadeimbecilafortunado.Certamanh,quandoeudesciademeuquartoparatomarocaf da manh, ela me disse, como sempre: Bom dia, imbecil afortunado.Eu lhe respondi: Bom dia, senhora.E,apstodosessesanos,aindaescutosuarespostaemumavozsecaecom o sotaque de Nmes: Senhora?... Pode me chamar de Mathilde, imbecil afortunado...ApequenaHlne,portrsdesuagentileza,deviaserumamulhercomnervos de ao.EusoubemaistardequeelahaviaconhecidoAnniequandoestatinhadezenoveanos.ExerciatalinflunciasobreAnnieesuame,MathildeF.,que as duas partiram com ela e abandonaram o senhor F.Certodia,comcerteza,ocircoondeapequenaHlnetrabalhavaparouem uma cidadezinha do interior onde viviam Annie e sua me. Annie estavasentadapertodaorquestra,eastrombetasanunciaramachegadadapequenaHlnemontadaemumcavalopretocomarreiosprateados.Ou,ento,euaimaginolnoalto,notrapzio,preparando-separaumarriscado salto triplo.EAnnieaencontra,depoisdoespetculo,notrailerqueapequenaHlne divide com a contorcionista.Uma amiga de Annie F. ia com frequncia a casa. Chamava-se Frede. Hoje,ameusolhosdeadulto,elaapenasumamulherquepossua,nosanoscinquenta,umacasanoturnanaruePonthieu.Naquelapoca,pareciateramesmaidadedeAnnie,pormeraumpoucomaisvelha,comseustrintaecincoanos.Morena,cabeloscurtos,corpoesbeltoetezplida.Usavapaletsmasculinos,maisjustosnacintura,queeuacreditavaseremdeamazona.Outrodia,emumsebo,eufolheavaumaedioantigadeLaSemaineParis,datadadejulhode1939,emqueconstavamasprogramaesdecinemas, teatros, casas de espetculos e cabars. Fiquei surpreso ao depararcomumaminsculafotodeFrede:aosvinteanos,jeramestredecerimniasdeumacasanoturna.Compreiessaprogramao,umpoucocomoquemcoletaumaevidncia,umaprovatangveldequenohaviasonhado.Nela estava escrito:LA SILHOUETTE58, rue Notre-Dame-de-LoretteMontmartre. TRI 64-72.FREDE apresenta das 22h ao amanhecerseu espetculo de cabar femininoRecm-chegado da Suada famosa orquestra DON MARYOO guitarrista Isidore LangloisBetty and The Nice Boys.E reencontro, fugidia, a imagem que tnhamos de Frede, meu irmo e eu,quandoaovoltardaescolaaavistvamosnojardimdacasa:umamulherpertencenteaomundodocircocomoapequenaHlne,equeessemundoeraenvoltoemmistrios.ParansnohaviaamenordvidadequeFredecomandavaumcircoemParis,menorqueoMedrano,umcircosobumalonabrancalistradadevermelhochamadoCarrolls.Essenomesaamuitas vezes da boca de Annie e de Frede: Carrolls a casa noturna na ruedePonthieu,pormeuviaalonabrancaevermelhaeosanimaisdocirco.Frede,comsuasilhuetadelgadaeseuspaletsacinturados,eraadomadora.De vez em quando, s quintas, ela trazia o sobrinho a casa, um menino denossaidade.Epassvamosatardejuntosbrincandoostrs.ElesabiabemmaisquenssobreoCarrolls.Lembro-medeumafraseenigmticaquenos disse e que ainda ressoa em meus ouvidos: Annie chorou a noite toda no Carrolls...Talvezeletivesseouvidoessafrasedabocadatiasemacompreender.Quandoelanootrazia,amosbusc-lo,meuirmoeeu,squintas,noinciodatarde,naestaodetrem.Jamaisochamvamospelonome,queignorvamos. Ns o chamvamos de o sobrinho de Frede.Elas contrataram uma moa para me buscar na escola e tomar conta de ns.Elamoravanacasa,noquartovizinhoaonosso.Prendiaseuscabelosnegros em um coque muito severo, e seus olhos eram de um verde to claroquelheconferiaumolhartransparente.Quasenofalava.Seusilncioeseusolhostransparentesnosintimidavam,ameuirmoeamim.Parans,apequenaHlne,FredeeatAnniepertenciamaomundodocirco,masessa jovem silenciosa de coque negro e olhos claros era uma personagem deconto de fadas. Ns a chamvamos de Branca de Neve.Guardoalembranadosjantaresemquenosreunamostodosnoaposentoqueserviadesaladejantar,separadodasaladeestarpelocorredordaentrada.BrancadeNevesesentavacabeceiradamesa,meuirmo a sua direita, e eu a sua esquerda. Annie ficava a meu lado, a pequenaHlnenafrente,eMathildenaoutracabeceira.Certanoite,porcausadeumapaneeltrica,oaposentofoiiluminadoporumalamparinaaleoinstalada sobre a lareira e que deixava reas de penumbra a nosso redor.Asoutras,comons,chamavam-nadeBrancadeNevee,vezporoutra,de minha querida. Elas a tratavam sem cerimnia. E logo uma intimidadeseestabeleceuentreelas,postoqueBrancadeNeveastratavadamesmaforma.Suponho que tivessem alugado a casa. A menos que a pequena Hlne fosseaproprietria,umavezqueerabastantepopularentreoscomerciantesdovilarejo.TalvezacasapertencesseaFrede.Lembro-medequeFrederecebia muitas correspondncias na rue du Docteur-Dordaine. Toda manh,antes da escola, era eu quem pegava as cartas na caixa de correio.AnnieiaquasetodososdiasaParis,emseuRenault4CVbege.Elavoltavamuitotardee,devezemquando,ausentava-seatodiaseguinte.Comfrequncia,apequenaHlneaacompanhava.Mathildenosaadacasa.Elafaziaascompras.CompravaumarevistachamadaNoiretBlanc,cujosexemplares se espalhavam pela sala de jantar. Eu os folheava nas tardes dequinta,quandochoviaeescutvamosumprogramainfantilnordio.Mathilde arrancava a Noir et Blanc de minhas mos. Largue isso, imbecil afortunado! Voc no tem idade para isso...BrancadeNevemeesperavanasadadaescolacommeuirmo,aindajovemdemaisparacomearaestudar.AnniehaviamematriculadonaescolaJeanne-dArc,nofimdarueduDocteur-Dordaine.Adiretoralheperguntou se era minha me e ela respondeu: sim.Estvamos os dois sentados diante da mesa da diretora. Annie usava suavelha jaqueta de couro e uma cala de tecido azul desbotado que uma amigaquesvezesiaacasaZinaRachewskyhaviatrazidodaAmrica:umbluejeans.Viam-sepoucosnaFrananaquelapoca.Adiretoranosavaliava com olhar desconfiado.Seufilhoprecisausarumjalecocinzaparafrequentaraescolaavisou ela. Como todos os outros coleguinhas.Nocaminhodevolta,aolongodarueduDocteur-Dordaine,Anniecaminhava a meu lado e tinha colocado a mo em meu ombro.Eudissequeerasuameporqueseriacomplicadodemaisexplicar.Patoche, voc se importa?Quantoamim,euestavacuriosopelojalecocinzaquedeviausar,comotodos os meus outros coleguinhas.No permaneci muito tempo no instituto Jeanne-dArc. O cho do ptio erapreto por causa da escria. E esse preto se harmonizava bem com a casca eas folhagens dos pltanos.Certa manh, durante o recreio, a diretora se aproximou de mim e disse:Gostariadefalarcomsuame.Peaaelaquevenhahojetarde,noincio do turno.Comosempre,elafalavacomigocomumtomseco.Adiretoranogostava de mim. O que eu tinha feito?Na sada da escola, Branca de Neve e meu irmo me aguardavam. Que cara esquisita! comentou Branca de Neve. Algum problema?Perguntei-lhe se Annie estava em casa. Eu s tinha um medo: de que elano tivesse voltado de Paris durante a noite.Por sorte havia retornando, mas muito tarde. Ainda dormia no quarto nofim do corredor, cujas janelas se abriam para o jardim. V acord-la disse a pequena Hlne, a quem eu tinha explicado quea diretora da escola queria falar com minha me.Batiportadeseuquarto.Elanorespondeu.AfrasemisteriosadosobrinhodeFredevoltouaminhamemria:AnniechorouanoitetodanoCarrolls.Sim,elaaindadormiaaomeio-diaporquetinhachoradoanoitetoda no Carrolls.Girei a maaneta e empurrei a porta bem devagar. O quarto estava claro.Annienotinhafechadoascortinas.Estavaestiradanabeiradagrandecamaepoderiacairaqualquermomento.Porqueelanosedeitavanomeiodacama?Dormia,osbraosencolhidos,comosesentissefrio,apesardeestartodavestida.Nohaviatiradosequerossapatoseusavasuavelhajaquetadecouro.Sacudideleveseuombro.Elaabriuosolhosemefitoufranzindo o cenho. Ah... voc, Patoche...Ela andava de um lado para o outro sob os pltanos do ptio com a diretoradoinstitutoJeanne-dArc.Adiretoratinhamandadoqueeuasaguardassealienquantoconversavam.Meuscolegasvoltaramparaasaladeaulaaosoardacampainhadascincoparaasduas,eeuosobservavallonge,portrsdasvidraas,sentadosemsuascarteiras,semmim.Tentavaescutaroqueasduasdiziam,masnoousavameaproximar.Annievestiasuavelhajaqueta de couro por cima de uma camisa masculina.E depois ela se afastou da diretora e caminhou em minha direo. SamososdoispelapequeninaportanomuroquedavanarueduDocteur-Dordaine. Coitadinho do meu Patoche... Expulsaram voc...Senti vontade de chorar, mas, ao erguer o rosto para ela, vi que sorria. Eisso me tranquilizou. Voc um mau aluno... como eu...Sim,fiqueialiviadoporqueelanomerepreendeu,masumpoucosurpreso,dequalquerforma,queesseacontecimento,ameusolhosgrave,fizesse com que Annie sorrisse.Patoche,meuamigo,nosepreocupe...Matriculamosvocemoutraescola...Nocreiotersidopiorquenenhumdosoutrosalunos.Semdvida,adiretoradoinstitutoJeanne-dArchaviaseinformadosobreminhafamlia.DeviaterpercebidoqueAnnienoeraminhame.Annie,apequenaHlne, Mathilde e mesmo Branca de Neve: que famlia esquisita... Ela ficaracommedodequeeufosseummauexemploparameuscolegasdeturma.De que poderiam nos censurar? Primeiro, pela mentira de Annie. Talvez derepenteissotivessechamadoaatenodadiretora:Anniepareciamaisjovem do que era, e teria sido melhor dizer que era minha irm mais velha...Edepoissuajaquetadecouroe,sobretudo,aquelejeansdesbotado,toraronapoca...NadapeloquecensurarMathilde.Umasenhoracomoasoutras,comsuasroupasescuras,suablusa,seucamafeueseusotaquedeNmes...Poroutrolado,devezemquandoapequenaHlnesevestiadeum jeito esquisito quando nos levava missa ou s lojas do vilarejo: cala demontariacombotas,blusasdemangasbufanteseapertadasnospunhos,fuseaudeesquipretoeatboleroincrustadodemadreprolas...Erafciladivinharqualhaviasidosuaantigaprofisso.E,noentanto,ojornaleiroeoconfeiteiropareciamgostarbastantedelaesemprelhediziamcommuitaeducao:Bomdia,senhoritaToch...Atlogo,senhoritaToch...Eparaasenhorita Toch, o que vai ser?EpeloquepodiamcensurarBrancadeNeve?Seusilncio,seucoquenegroeseusolhostransparentesinspiravamrespeito.Adiretoradoinstituto Jeanne-dArc certamente se perguntava por que aquela moa vinhamebuscarnasadadaescolaenominhame;eporqueeunovoltavasozinhoparacasa,comomeusoutroscoleguinhas.Eladeviapensarqueramos ricos.Quemsabe?BastaradiretorabotarosolhosemAnnieparadesconfiardens.Eumesmotinhaentreouvido,certanoite,algunsfragmentosdeconversa entre a pequena Hlne e Mathilde. Annie ainda no tinha voltadoem seu 4CV de Paris e Mathilde parecia inquieta. Ela capaz de tudo tinha dito Mathilde com ar pensativo. Linou,sabe muito bem que ela cabea quente. Ela no pode fazer nada grave respondera a pequena Hlne.Mathilde havia permanecido em silncio um instante e dissera: Veja bem, Linou, suas companhias so bem estranhas...O rosto da pequena Hlne havia endurecido. Companhias estranhas? O que voc quer dizer com isso, Thilda?Falou com uma voz seca que eu no conhecia.Nofiquezangada,LinouhaviafaladoMathildecomumartemeroso e dcil.No era mais a mesma mulher que me tratava de imbecil afortunado.Apartirdaqueledia,acheiqueAnnie,durantesuasausncias,nodedicava seu tempo apenas a chorar a noite toda no Carrolls. Talvez fizessealgograve.Maistarde,quandopergunteioquetinhaacontecido,responderam-me: Uma coisa muito grave; e foi como o eco de uma frase jescutada. Mas naquela noite a expresso cabea quente me inquietava. Pormais que eu analisasse o rosto de Annie, nele s encontrava doura. Por trsdaquelesolhoslmpidosedaquelesorrisohaviaentoalgumcomumacabea quente?Euagoraeraalunodaescolapblicadovilarejo,umpoucomaisafastadaqueoinstitutoJeanne-dArc.EraprecisoseguirarueduDocteur-Dordaineat o fim e atravessar a estrada que ia em direo prefeitura e passagemde nvel. Um porto de ferro de duas folhas se abria para o ptio.Ltambmusvamosjalecoscinza,masoptionoerarecobertodeescria.Haviaunicamenteterra.Oprofessorgostavademimepedia,todamanh,queeulesseumpoemanasaladeaula.Umdia,naausnciadeBranca de Neve, a pequena Hlne fora me buscar. Usava cala de montaria,botaseajaquetaqueeuchamavadeajaquetadecaubi.Elahaviaapertado a mo do professor e lhe dissera ser minha tia. Seu sobrinho l poemas muito bem comentara o professor.Eu lia sempre o mesmo, o que ns, meu irmo e eu, sabamos de cor: quantos marinheiros, quantos capites...Fizbonsamigosnaquelaturma:ofilhodofloristadarueduDocteur-Dordaine, o filho do farmacutico, e me lembro da manh em que soubemosqueseupaihaviaseenforcado...OfilhodopadeirodopovoadodeMets,cujairmtinhaminhaidadeecabeloslourosecacheadosquedesciamatos tornozelos.MuitasvezesBrancadeNevenovinhamebuscar;elasabiaqueeuvoltariacomofilhodoflorista,cujacasaeravizinhanossa.Nasadadaescola,nosfinsdetardequandonotnhamosdeverdecasa,amosembando ao outro extremo do vilarejo, para alm do castelo e da estao, at ograndemoinhodegua,smargensdoBivre.Emboraaindafuncionasse,pareciadecrpitoeabandonado.squintas,quandoosobrinhodeFredenoestaval,eulevavameuirmo.Eraumaaventuraqueprecisvamosmanteremsegredo.Esgueirvamo-nospelabrechanomuroesentvamosnocho,ladoalado.Agranderodagirava.Ouvamosumzumbidodemotoreumestrondodecascata.Faziafrioesentamosoaromadegramamolhadaegua.Essagranderodaquereluziasobolusco-fusconosassustavaumpouco,masramosincapazesderesistiraobserv-lagirar,sentados lado a lado, os braos cruzados sobre os joelhos.MeupainosvisitavaentreduasviagensaBrazzaville.Elenodirigia,e,como era preciso que algum o trouxesse de carro de Paris ao vilarejo, seusamigosserevezavamparaescolt-lo:AnnetBadel,SachaGordine,RobertFly,JacquesBoudot-Lamotte,GeorgesGiorgini,GezaPellmont,ogordoLucienP.,quesesentavaemumapoltronadasaladeestaretodaveztemamos que o mvel fosse desabar ou rasgar sob seu peso; Stioppa de D.,queusavamonculoepelia,ecujoscabelos,detobesuntadosdebrilhantina,deixavammanchasnossofsenasparedesondeapoiavaanuca.Essasvisitasocorriamsquintas,emeupainosconvidavaaalmoarnaestalagemRobindesBois.AnnieeapequenaHlnenoestavampresentes. Mathilde ficava em casa. S Branca de Neve nos acompanhava noalmoo. E, de vez em quando, o sobrinho de Frede.MeupaifrequentaraaestalagemRobindesBoismuitotempoatrs.Elecomentava sobre isso, durante um de nossos almoos, com seu amigo GezaPellmont, e eu escutava a conversa.Vocselembra?...tinhaperguntadoPellmont.Vnhamosaquicom Eliot Salter... O castelo est em runas havia comentado meu pai.OcasteloficavanofimdarueduDocteur--Dordaine,doladoopostoaoinstitutoJeanne-dArc.Sobreagradeentreabertaestavafixadaumaplacademadeirameiopodrenaqualaindaerapossveller:PropriedaderequisitadapeloExrcitoamericanoparaogeneraldebrigadaFranckAllen.squintas,esgueirvamo-nosentreasduasfolhasdagrade.Napradaria,agramaaltachegavaatquaseacintura.Aofundo,erguia-seumcasteloestiloLusXIII,cujafachadaeraflanqueadapordoispavilhesproeminentes.Eusoubemaistarde,contudo,queelehaviasidoconstrudonofimdosculoXIX.Saltvamospipanapradaria,umapipadetelavermelhaeazulemformatodeavio.Eramuitodifcilfaz-laganharaltitude. L longe, direita do castelo, uma colina coberta de pinheiros, comumbancodepedranoqualBrancadeNevesesentava...ElaliaNoiretBlancouentotricotava,enquantonssubamosnosgalhosdospinheiros.Massentamosvertigem,meuirmoeeu,eapenasosobrinhodeFredealcanava a copa das rvores.Porvoltadomeiodatarde,seguamosatrilhaquepartiadacolinaeadentrvamos, na companhia de Branca de Neve, a floresta. Caminhvamosat o povoado de Mets. No outono, colhamos castanhas. O padeiro de Metserapaidemeucolegadeturma,etodavezqueentrvamosemsualoja,airmdemeuamigoestaval,eeuadmiravaseuscabeloslouroscacheadosquedesciamatostornozelos.Edepoisvoltvamospelomesmocaminho.Nocrepsculo,afachadaeosdoispavilhesproeminentesdocasteloadquiriamumaspectosombrioeissonosdeixava,ameuirmoeamim,com o corao palpitando. Vamos ver o castelo?Deagoraemdiante,eraafrasequemeupaisemprepronunciavaaofimdoalmoo.E,comonasoutrasquintas,seguamosarueduDocteur-Dordaine e nos esgueirvamos pelo porto entreaberto na pradaria. Porm,nessesdias,meupaieumdeseusamigosBadel,Gordine,StioppaouRobert Fly acompanhavam-nos.BrancadeNeveiasesentarnobanco,aopdospinheiros,nolugardesempre.Meupaiseaproximavadocasteloecontemplavaafachadaeasaltasjanelastapadas.Empurravaaportaprincipalensadentrvamosumsaguocujopisodesapareciasobosentulhoseasfolhasmortas.Nofundodo saguo, a cabine de um elevador. , eu conheci o proprietrio desse castelo dizia meu pai.Elepercebiaqueestvamosinteressados,meuirmoeeu.Ento,contava-nosahistriadeEliotSalter,marqusdeCaussade,queaosvinteanos,duranteaPrimeiraGuerra,haviasidoumheridaaviao.Depois,tinhadesposadoumaargentinaesetornadooreidoarmanhaque.OarmanhaqueexplicavameupaiumabebidaalcolicaqueSalter,marqusdeCaussade,fabricavaedepoisvendiacaminheslotadosdabebidaemgarrafasmuitobonitas.Euoajudavaadescarregartodososcaminhesdiziameupai.Contvamosascaixasmedidaqueasdescarregvamos.Eletinhacompradoessecastelo.Haviadesaparecidonofim da guerra com a mulher, mas no tinha morrido e um dia retornaria.Meu pai arrancara com cuidado um pequeno aviso afixado atrs da portaprincipal. E o tinha oferecido a mim. Ainda hoje posso recitar, sem a menorhesitao, seu texto:Confisco de ganhos ilcitostera-feira, 23 de julho s 14h.Desapropriada no povoado de Mets.Magnfica propriedadecompreendendo castelo e 300 hectaresde florestas.Vigiembemocastelo,crianasavisavameupai.Omarqusvaivoltar quando menos esperam...E, antes de entrar no carro do amigo que lhe servia de motorista naqueledia,elenossaudavacomamodistrada,queaindavamosacenarvagamente atravs do vidro enquanto o carro seguia em direo a Paris.Havamosdecidido,meuirmoeeu,visitarocastelonoite.Seriaprecisoesperartodomundodormir.OquartodeMathildeocupavaotrreodeumminsculopavilhonosfundosdoquintal:nenhumperigodesermossurpreendidosporela.OquartodapequenaHlneficavanoprimeiroandar, na outra extremidade do corredor, e o de Branca de Neve, ao lado donosso. O assoalho do corredor rangia um pouco, porm, uma vez na base daescada,notnhamosmaisnadaatemereocaminhoestarialivre.EscolheramosumanoiteemqueAnnienoestivesseemcasapoiseladormiamuitotarde,umanoiteemqueelaestivessechorandonoCarrolls.Tnhamospegadoalanternanoarmrioembutidodacozinha,umalanternademetalprateadaqueprojetavaumaluzamarela.Enosvestimos.Mantnhamos o palet do pijama por baixo do suter. Para permanecermosacordados,falvamossobreEliotSalter,marqusdeCaussade.Perdamo-nos, por turnos, nas mais diversas conjecturas a respeito dele. Segundo meuirmo, nas noites em que o marqus ia ao castelo, ele chegava estao dovilarejo no ltimo trem de Paris, o das onze e meia, do qual podamos ouviroroncocadenciadodajaneladenossoquarto.Elenochamavaatenoparasieevitavaestacionarocarrodiantedasgradesdocastelo,oquelevantariasuspeitas.Eraap,comoumsimplespedestre,quesedirigiaasua propriedade para passar uma noite.Compartilhvamos os dois a mesma convico: nessas noites, Eliot Salter,marqusdeCaussade,permanecianosaguodocastelo.Antesdesuachegada, algum removia as folhas mortas e o entulho e depois os colocavadevoltaparanodeixarnenhumvestgiodesuapassagem.Equempreparavaavisitadeseupatroassimeraoguarda-florestaldeMets.Elemoravanafloresta,entreopovoadoeasmargensdoaerdromodeVillacoublay. Ns o encontrvamos com frequncia durante nossos passeioscomBrancadeNeve.Havamosperguntadoaofilhodopadeiroonomedesse fiel criado que escondia to bem seu segredo: Grosclaude.Noporacaso,Grosclaudemoraval.Tnhamosdescoberto,naquelareadaflorestaqueladeavaoaerdromo,umapistadepousodesativadaeumgrandehangar.Omarqusutilizavaaquelapistanoiteepartiadeaviorumoaumdestinolongnquoumailhadosmaresdosul.Passadoalgumtempo,voltava.E,nessasnoites,Grosclaudeinstalavanapistapequenossinaisluminososparaomarquspoderaterrissarsemdificuldade.OmarqusestavasentadoemumapoltronadeveludoverdediantedamacialareiraqueGrosclaudehaviaacendido.Atrsdele,umamesaarrumada:candelabrosdeprata,rendasecristal.Entrvamosnosaguo,meuirmoeeu.Apenasofogodalareiraeaschamasdasvelasoiluminavam.Grosclaudeeraoprimeiroanosver.Caminhavaemnossadireo com suas botas e sua cala de montaria. O que vocs esto fazendo aqui?Suavozeraameaadora.Eledariaduasbofetadasemcadaumenoscolocariaparafora.Aoentrarnosaguoseriamelhoravanar,omaisrpidopossvel,emdireoaomarqusdeCaussadeelhefalar.Equeramos preparar antecipadamente o que lhe diramos. Viemos aqui porque meu pai amigo do senhor.Eu diria essa primeira frase. Em seguida, um de cada vez falaria: Boa noite, senhor marqus.E eu acrescentaria: Sabemos que o senhor o rei do armanhaque.Contudo, um detalhe me causava grande apreenso: o instante em que omarqusEliotSalterdeCaussadevirasseorostoparans.Meupainostinha contado que, durante um combate areo na Primeira Guerra, ele haviaqueimadoorostoedisfaravaessaqueimaduracobrindoapelecomumamaquiagemdecorocre.Nosaguo,sobaclaridadedasvelasedofogonalareira,esserostodeviaterumaaparnciainquietante.Mas,porfim,euveriaoquetentavaencontrarportrsdosorrisoedosolhosclarosdeAnnie: uma cabea quente.Havamosdescidoaescadarianapontadospscomossapatosnamo.Orelgiodacozinhamarcavaonzeevinteecinco.TnhamosfechadodevagarinhoaportadacasaeaportinhagradeadaquedavaparaarueduDocteur-Dordaine.Sentadosnabeiradacalada,amarrvamosnossossapatos. O ronco do trem se aproximava. Ele entraria na estao em poucosminutosedeixariaapenasumnicopassageironaplataforma:EliotSalter,marqus de Caussade e rei do armanhaque.Escolhamosnoitesemqueocuestivesseclaroeemqueasestrelaseumaluanoquartocrescentebrilhassem.Comossapatosamarradosealanternaescondidaentremeusutereopaletdopijama,emseguidadevamoscaminharatocastelo.Aruadesertasoboluar,osilncioeossentimentosquenosinvadiamporterdeixadoparasempreacasanosfaziamdiminuirpoucoapoucoopasso.Aofimdeunscinquentametros,voltvamos.Entodesamarrvamosnossossapatosefechvamosaportadaentradada casa. O relgio da cozinha marcava vinte para a meia-noite. Eu guardavaa lanterna no armrio embutido e subamos a escada na ponta dos ps.Enroscadosemnossascamasdesolteirobemprximas,experimentvamoscertoalvio.Falvamosemvozbaixasobreomarqusecadaumdensdescobriaumnovodetalhe.Passavademeia-noiteellonge, no saguo, Grosclaude lhe servia a ceia. Da prxima vez, antes de darmeia-volta,iramosmaislongenarueduDocteur-Dordainequeessanoite.Iramos at o convento de freiras. E, da prxima vez, ainda mais longe, at agranja eabarbearia.E, daprximavez,mais longeainda.Todanoite,umanovaetapa.Faltariamapenasalgumasdezenasdemetrosaatravessarechegaramosdiantedagradedocastelo.Daprximavez...Acabvamosadormecendo.Bem rpido eu havia percebido que Annie e a pequena Hlne recebiam emcasapessoastomisteriosasedignasdenotaquantoEliotSalter,marqusde Caussade.SeriaAnniequemmantinhalaosdeamizadecomelas?OuapequenaHlne?Tantoumaquantoaoutra,acho.QuantoaMathilde,elaguardavauma espcie de reserva na presena delas e com frequncia se retirava paraoquarto.Talvezaquelaspessoasaintimidassemounosentissenenhumasimpatia por elas.Tentohojerelacionartodososrostosquevisoboalpendreenasaladeestarsempoderidentificaramaioria.Quepena.Seeupudessedarumnomeaessadezenaderostosdesfilandoemminhamemria,incomodariaalgumaspessoasaindavivashoje.Elasselembrariamdequeandavamemm companhia.Aquelas cujas imagens permanecem mais ntidas so Roger Vincent, JeanD. e Andre K., que diziam ser a mulher de um doutor famoso. Vinham anossa casa duas ou trs vezes por semana. Iam almoar na estalagem RobindesBoiscomAnnieeapequenaHlnee,apsoalmoo,aindapermaneciam um tempo na sala de estar. Ou ento jantavam na casa.De vez em quando, Jean D. vinha sozinho. Annie o havia trazido de Parisemseu4CV.EleaparentavaseroamigomaisprximodeAnniee,semdvida,lheapresentaraosoutrosdois.JeanD.eAnnietinhamamesmaidade.QuandoJeanD.nosvisitava,acompanhadodeRogerVincent,vinhasemprenocarroamericanoconversveldeRogerVincent.AndreK.osacompanhavavezporoutra,sentadanobancodianteirodocarroamericano,aoladodeRogerVincent;JeanD.,nobancotraseiro.RogerVincentdeviaterunsquarentaecincoanosnapoca,eAndreK.,trintaecinco.Lembro-me da primeira vez que vimos o carro americano de Roger Vincentestacionadoemfrentecasa.Nofinzinhodamanh,depoisdaescola.EuaindanotinhasidoexpulsodoinstitutoJeanne-dArc.Delonge,aqueleenorme carro conversvel, cuja carroceria bege e bancos de couro vermelhobrilhavamaosol,surpreendeu-nostanto,ameuirmoeamim,quantosenos vssemos na presena do marqus de Caussade ao dobrar a esquina deumarua.Alis,pensamosamesmacoisanaqueleinstante,comoconfessamos mais tarde: aquele carro era do marqus de Caussade, de voltaao vilarejo aps todas as suas aventuras e a quem meu pai havia pedido quenos visitasse.Perguntei a Branca de Neve: De quem esse carro? De um amigo de sua madrinha.ElasemprechamavaAnniedesuamadrinha,oqueeraverdade,poishavamossidobatizadosumanoantesnaigrejaSaint-MartindeBiarritzeminha me tinha incumbido Annie de ser minha madrinha.Quando entramos em casa, a porta da sala estava aberta e Roger Vincentse encontrava sentado no sof diante da bow-window. Venham cumprimentar a visita disse a pequena Hlne.Ela acabava de encher trs copos e fechava a tampa de uma das garrafasde licor com placa esmaltada. Annie falava ao telefone.Roger Vincent se levantou. Ele me pareceu muito grande. Usava um ternoprncipedeGales.Seuscabeloserambrancos,bem-penteadosepuxadospara trs, mas no parecia velho. Debruou-se sobre ns. Ele nos sorria. Bom dia, crianas...Cumprimentou-nos com um aperto de mo. Eu tinha largado a pasta paraapertar a mo dele. Usava meu jaleco cinza. Est chegando da escola?Respondi: Sim. Tudo bem na escola? Sim.AnniedesligouotelefoneeseaproximoucomapequenaHlne,quecolocouabandejadelicoresnamesinhadiantedosof.Elaestendeuumcopo a Roger Vincent. Patoche e o irmo moram aqui explicou Annie.EntosadedePatocheedeseuirmobrindouRogerVincenterguendo o copo com um largo sorriso.Essesorrisopermanece,emminhamemria,comoaprincipalcaractersticadeRogerVincent:elesemprepairavaemseuslbios.RogerVincentmergulhavanessesorrisoquenoerajovial,esimdistante,sonhador,eoenvolviacomoumabrumamuitoleve.Haviaalgodeaveludado nesse sorriso, em sua voz e aparncia. Roger Vincent nunca faziabarulho.Vocnooescutavachegare,aosevirar,lestavaeleatrsdevoc. De vez em quando, da janela de nosso quarto, ns o vamos chegar aovolantedeseucarroamericano.Estacionavaemfrentecasa,omotordesligado,talqualumbarcodepatrulhatrazidopelaressacaequeancorana costa imperceptivelmente. Roger Vincent saa do carro, os gestos lentos,seu sorriso nos lbios. Nunca batia a porta do carro, mas sim a fechava comdelicadeza.Naqueledia,depoisdenossoalmoocomBrancadeNevenacozinha,elescontinuaramnasaladeestar.QuantoaMathilde,elaseocupavadaroseiraquehaviaplantadonoprimeironveldojardim,pertodotmulododoutorGuillotin.Euseguravaminhapasta,eBrancadeNeveiameacompanharaoinstitutoJeanne-dArcparaasaulasdatarde,quandoAnnieapareceunobatente da porta da sala de estar e me disse: Estude direito, Patoche...Atrs dela, eu via a pequena Hlne e Roger Vincent, sorrindo seu sorrisoimutvel. Deviam estar de sada para almoar na estalagem Robin des Bois. Voc vai escola a p? perguntou Roger Vincent.Mesmo quando falava, sorria. Sim. Se quiser, levo voc de carro... Voc viu o carro de Roger Vincent? perguntou-me Annie. Sim.ElasemprefalouRogerVincentcomumafetorespeitoso,comoseseunomeesobrenomenopudessemserseparados.Euaescutavadizeraotelefone:Al,RogerVincent...Bomdia,RogerVincent...Annieotratavacomdeferncia.ElaeJeanD.oadmiravammuito.JeanD.tambmochamavadeRogerVincent.AnnieeJeanD.conversavamsobreeleepareciamfalardashistriasdeRogerVincentcomoquemcontalendasantigas. Andre K., a mulher do doutor famoso, chamava-o simplesmentede Roger e o tratava com intimidade.Querqueeulevevocescoladecarro?perguntou-meRogerVincent.Ele havia adivinhado o que ns queramos, meu irmo e eu. Sentamos osdois no banco dianteiro ao lado dele.Roger Vincent deu uma bela marcha a r na avenida em declive e o carroseguiu a rue du Docteur-Dordaine.Deslizvamossobreumaguaparada.Eunoescutavaobarulhodomotor.Eraaprimeiravezqueandvamosemumconversvel,meuirmoeeu. E esse carro era to grande que balanava por toda a largura da rua. Minha escola ali...Ele parou o carro e, estendendo o brao, abriu a porta para eu saltar. Boa sorte, Patoche.FiqueiorgulhosoporRogerVincentmechamardePatoche,comoseme conhecesse havia muito tempo. Ento, meu irmo ficou sentado sozinhoaoladodele,epareciaaindamenornaquelegrandebancodecourovermelho.Virei-meantesdeentrarnoptiodoinstitutoJeanne-dArc.Roger Vincent acenou com a mo. E ele sorria.QuantoaJeanD.,elenotinhaumcarroamericanoconversvel,masumgranderelgioemcujomostradorvamosossegundos,osminutos,ashoras,osdias,osmeseseosanos.Elenosexplicavaofuncionamentocomplicado daquele relgio de mltiplos ponteiros. Era muito mais amistosoconosco que Roger Vincent. E mais jovem.Usavajaquetadecamura,pulveresportivodegolarulesapatoscomsoladodecrepe...Tambmeraaltoemagro.Cabelosnegroserostodetraosharmoniosos.Quandoseusolhoscastanhosrepousavamsobrens,ummistodemalciaetristezailuminavaseuolhar.Arregalavaosolhos,comosetudoosurpreendesse.Euinvejavaseuscabeloscompridosenquantoosmeuseramaparadospelobarbeiroacadaquinzedias,umcortetocurtoqueespetavaquandoeupassavaamonacabeaeacimadasorelhas.Masnopodiadizernada.Obarbeiropegavaamquinadecortar cabelo sem pedir minha opinio.Jean D. vinha a casa com mais frequncia que os outros. Annie sempre otraziaemseu4CV.ElealmoavaconoscoesesentavaaoladodeAnniegrandemesadejantar.MathildeochamavademeuqueridoJeanenolhededicavaamesmareservaqueaosoutrosvisitantes.ElechamavaapequenaHlnedeLinouassimcomoMathilde.Semprelheperguntava:Ea,tudobem,Linou?emechamavadePatoche,comoAnnie.Elenosemprestouseurelgio,ameuirmoeamim.Podamosus-lo,umdecadavez,duranteumasemana.Apulseiradecouroeragrandedemais e Jean D. fez um furo para ficar bem-ajustada nos pulsos. Fui com orelgioaoinstitutoJeanne-dArceoexibiaoscolegasdeturmaquemerodeavam,naqueledia,noptio.Talvezadiretoratenhareparadonaquelerelgioenormeemmeupulsoe,desuajanela,visto-medescerdocarroamericanodeRogerVincent...Entodecidiuqueeramelhorpararporaeque meu lugar no era no instituto Jeanne-dArc. Que tipo de livro voc l? perguntou-me um dia Jean D.Todos tomavam caf na sala de estar, depois do almoo: Annie, Mathilde,apequenaHlneeBrancadeNeve.Eraumaquinta.EspervamosFrede,quedeviachegarcomosobrinho.Havamosdecidido,meuirmoeeu,entrarnosaguodocastelonaquelatarde,comojotnhamosfeitocommeu pai. A presena a nosso lado do sobrinho de Frede nos daria coragempara empreender a aventura. Patoche l muito respondeu Annie. No , Branca de Neve? Ele l demais para sua idade acrescentou Branca de Neve.Meuirmoeeuhavamosmergulhadoumtorrodeacarnaxcaradecaf de Annie e o mastigamos, conforme exigia a etiqueta. Quando tivessemterminadodebeberocaf,Mathildeleriaofuturodelesnasxcarasvazias,na borra do caf, dizia ela. Mas o que voc l? perguntou Jean D.Eu lhe respondi a srie de livros de capa verde para crianas: Jlio Verne,O ltimo dos moicanos... mas eu preferia Os trs mosqueteiros por causa daflor de lis marcada no ombro de Milady. Voc devia ler a srie negra disse Jean D.Vocestlouco,Jean...interveioAnnie,rindo.Patocheaindanovo demais para a srie negra... Ele ainda vai ter muito tempo para ler a srie negra acrescentou apequena Hlne.Aparentemente, nem Mathilde nem Branca de Neve sabiam o significadoda expresso srie negra. Elas permaneceram em silncio.Alguns dias depois, ele voltou a casa no 4CV de Annie. Chovia naquele fimdetardeeJeanD.usavaumaparca.Ouvamos,meuirmoeeu,umprogramaderdio,sentadosmesadejantar,e,quandoovimosentrarcom Annie, levantamo-nos para cumpriment-lo. Tome disse Jean D. , trouxe para voc um da srie negra...Ele tirou do bolso da parca um livro amarelo e preto que me estendeu. No d ouvidos a ele, Patoche... falou Annie. brincadeira... Issono livro para voc.JeanD.mefitavacomseusolhosmeioarregalados,seuolharternoetriste.Emdeterminadosmomentos,eutinhaaimpressodequeeleeraumacrianacomons.AnniecostumavafalarcomJeanD.nomesmotomde voz com que falava conosco.sim...insistiuJeanD.Apostoquevaiseinteressarporesselivro.Euopegueiparanoomagoar,e,aindahoje,todavezquevejoumadaquelascapasdurasamarelasepretas,umavozbaixaemeioarrastadaressoaemmeusouvidos.AvozdeJeanD.,quenosrepetianoite,ameuirmoeamim,ottulogravadonolivroquetinhamedado:Notoquenodinheiro.Foinomesmodia?Chovia.TnhamosacompanhadoBrancadeNevebancadejornalporqueelaqueriacomprarenvelopesepapisdecarta.Quandosamosdecasa,AnnieeJeanD.estavamsentados,osdois,dentrodo4CVestacionadonaportadecasa.Conversavam,edetoabsortosnaconversa nem nos viram. E, no entanto, eu lhes acenava com a mo. Jean D.havia levantado a gola de pele de seu casaco em torno do pescoo. Na volta,os dois ainda continuavam dentro do 4CV. Eu me inclinei para eles, mas nemsequermeolharam.Conversavame,tantoumquantoooutro,pareciampreocupados.ApequenaHlnejogavapacincianamesadejantarouvindordio.Mathilde devia estar no quarto. Subimos para o nosso, meu irmo e eu. Pelajanelaeuolhavao4CVsobachuva.Osdoisficaramldentroconversandoat a hora do jantar. Que segredos poderiam trocar?Roger Vincent e Jean D. vinham com frequncia jantar na casa com AndreK.Outrosconvidadoschegavamdepoisdarefeio.Naquelasnoites,todosficavamattardenasaladeestar.Denossoquarto,escutvamosgritosegargalhadas. E o toque do telefone. E a campainha da porta. Jantvamos sseteemeianacozinhacomBrancadeNeve.Amesadejantarjestavaposta para Roger Vincent, Jean D., Andre K., Annie, Mathilde e a pequenaHlne.ApequenaHlnepreparavaacomidaetodosdiziamqueelaerauma verdadeira cordon-bleu.Antesdesubirparadeitar,amosdarboa-noitenasaladeestar.JdepijamaeroupodoisroupesdetecidoxadrezescocsqueAnnienostinha dado de presente.Osoutroschegavammaistarde.Eunoconseguiaevitarespi-lospelasfrestas das persianas de nosso quarto, assim que Branca de Neve apagava aluzenosdesejavaumaboanoite.Umaum,chegavametocavamacampainha.Eudistinguiaseusrostossobaluzfortedalmpadadoalpendre.Algunsficaramgravadosemminhamemriaparasempre.Emesurpreendoqueospoliciaisnotenhammeinterrogado:entretantoascrianas veem. E ouvem tambm. Vocs tm uns roupes muito bonitos dizia Roger Vincent.E ele sorria.PrimeiroapertvamosamodeAndreK.,quesempresesentavanapoltrona de tecido florido perto do telefone. Ela recebia telefonemas quandoestava na casa. A pequena Hlne atendia o telefone e dizia: Andre, para voc...AndreK.nosestendiaobraocomumgestodesenvolto.Sorriatambm, mas seu sorriso durava menos que o de Roger Vincent. Boa noite, crianas.Orostoerasalpicadodesardas,massalientes,olhosverdes,cabeloscastanho-claros com franja. Fumava muito.Cumprimentvamos Roger Vincent com um aperto de mo, e ele sempresorria.DepoisfazamosomesmocomJeanD.BeijvamosAnnieeapequenaHlne.AntesdedeixarmosasaladeestarcomBrancadeNeve,Roger Vincent elogiava mais uma vez a elegncia de nossos roupes.Quandojestvamosaopdaescada,acabeadeJeanD.surgiapelaabertura da porta da sala de estar. Durmam bem.Elenosfitavacomseusolhosternoselevementearregalados.Davaumapiscadela e dizia baixinho, como se fosse um segredo entre ns: No toque no dinheiro.Certaquinta,BrancadeNevetirouumafolga.IavisitaralgumdafamliaemParise,depoisdoalmoo,foiemboracomAnnieeMathildeno4CV.Ficamossozinhos,sobavigilnciadapequenaHlne.Brincvamosnojardim armando uma tenda de lona que Annie me dera de presente em meultimo aniversrio. No meio da tarde, Roger Vincent chegou sozinho. Ele e apequena Hlne conversavam no quintal da casa, mas eu no escutava o quediziam.ApequenaHlnenosavisouqueprecisavamdarumapassadaemVersalhes e nos pediu que os acompanhassem.FicamoscontentesdeandardenovonocarroamericanodeRogerVincent. Era abril, durante o feriado da Pscoa. A pequena Hlne se sentounafrente.Usavasuacalademontariaesuajaquetadecaubi.Sentamos,meuirmoeeu,nograndebancotraseiroenossospsnoalcanavamocho.Roger Vincent dirigia devagar. Ele se voltou para ns com seu sorriso. Querem que eu ligue o rdio?Ordio?Entopodamosouvirrdionaquelecarro?Eleapertouumboto de marfim no painel e logo escutamos uma msica. Mais alto ou mais baixo, crianas? perguntou-nos ele.Noousamosresponder.Escutvamosamsicaquesaadopainel.Edepois uma mulher comeou a cantar com uma voz rouca.Edithcantando,crianasexplicouRogerVincent.umaamiga...Ele perguntou pequena Hlne: Tem visto Edith? De vez em quando respondeu a pequena Hlne.PercorramosumagrandeavenidaechegvamosaVersalhes.Ocarroparouemumsinalvermelhoeadmiramosanossaesquerda,nogramado,um relgio cujos numerais eram canteiros de flores.Outrodiadisse-nosapequenaHlnetragovocsparavisitaropalcio.ElapediuaRogerVincentqueparasseemfrenteaumalojademveisantigos. Vocs, crianas, fiquem no carro pediu Roger Vincent. Fiquem deolho no carro...Estvamosorgulhosospordesempenharumamissotoimportanteeobservvamosasidasevindasdospassantesnacalada.Atrsdavitrine,RogerVincenteapequenaHlnefalavamcomumhomemmorenodeimpermevelebigode.Conversarammuitotempo.Elestinhamnosesquecido.Saramdaloja.RogerVincentcarregavaumamaletadecouroeaguardounoporta-malas.Sentou-seaovolanteeapequenaHlne,aseulado. Ele se virou para mim. Nada a reportar? No... Nada... respondi. Melhor assim disse Roger Vincent.Nocaminhodevolta,emVersalhes,percorremosumaavenidanofimdaqualseerguiaumaigrejadetijolos.Algumasbarracasocupavamaplataformaemtornodeumacintilantepistadecarrinhosbate-bate.RogerVincent estacionou ao longo da calada.Quetallevarascrianasparadarumavoltanoscarrinhosbate-bate? perguntou pequena Hlne.Espervamososquatroaoladodapista.Amsicaquesaadosalto-falantesestavabemalta.Apenastrscarrosocupados,dosquaisdoisperseguiamoterceiroeoabalroavamaomesmotempo,dosdoislados,provocandogritosegargalhadas.Ashastesdeixavamrastrosdefascasnotetodocircuito.Pormoquemaismeatraaeraacordoscarros:azul-turquesa,verde-claro,amarelo,violeta,vermelhovivo,malva,rosa,azul-noite...Elespararameseusocupantesdeixaramapista.MeuirmosubiuemumcarrinhoamarelocomRogerVincent,eeu,comapequenaHlne,em um carrinho azul-turquesa.ramos os nicos no circuito e no batamos. Roger Vincent e a pequenaHlnedirigiam.DvamosavoltanapistaeapequenaHlneeeuseguamosocarrodeRogerVincentedemeuirmo,deslizandoemzigue-zague entre os outros carros vazios e imveis. A msica tocava mais baixo eohomemquehavianosentregadoosbilhetesnosolhavacomtristeza,parado ao lado da pista, como se fssemos os ltimos clientes.Jeraquasenoite.Paramosbeiradapista.Contempleimaisumaveztodosaquelescarrosdecoresvivas.Conversvamosemnossoquarto,meuirmo e eu, depois da hora de dormir. Tnhamos decidido instalar uma pistanoquintal,nodiaseguinte,comasvelhastbuasdodepsito.Evidentemente,seriadifcilarrumarumcarrinhobate-bate,mastalvezencontrssemosalgumvelho,foradeuso.Acor,sobretudo,interessava-nos: eu hesitava entre o malva e o azul-turquesa; meu irmo preferia o verdebem claro.O ar estava morno e Roger Vincent no tinha fechado a capota do carro. Elefalava com a pequena Hlne e eu pensava demais naqueles carrinhos bate-batequehavamosacabadodedescobrirparaprestaratenoconversadosadultos.Margevamosoaerdromoelogoviraramosesquerdaparapegar a estrada em aclive que conduzia ao vilarejo. Eles elevaram a voz. Nobrigavam, simplesmente falavam de Andre K.Masclaro...disseRogerVincent.Andrepertenciaaobandodarue Lauriston...Andre pertencia ao bando da rue Lauriston. Esta frase me chocou. Nsnaescolatambmformvamosumbando:ofilhodoflorista,ofilhodobarbeiro e dois ou trs outros de quem no me lembro mais e que moravamtodos na mesma rua. ramos conhecidos como o bando da rue du Docteur-Dordaine.AndreK.tinhafeitopartedeumbando,comons,masdeoutra rua. Aquela mulher que nos intimidava, a meu irmo e a mim, com suafranja,suassardas,seusolhosverdes,seuscigarroseseusmisteriosostelefonemas,parecia-mederepentemaisprxima.RogerVincenteapequena Hlne tambm davam a impresso de conhecer bem esse bandoda rue Lauriston. Mais tarde voltei a entreouvir esse nome na conversa dosdoisemehabitueiasuasonoridade.Algunsanosdepois,euoescuteidabocademeupai,masignoravaqueobandodarueLauristonmeassombraria por tanto tempo.QuandochegamosrueduDocteur-Dordaine,o4CVdeAnnieestaval.Atrsdele,umamotocicletagrande.Nocorredordaentrada,JeanD.nosdissequeamotolhepertenciaequenaquelanoitetinhavindocomeladeParis at a casa. Ainda no havia tirado sua parca. Prometeu nos levar parapasseardemoto,umdecadavez,masnaquelanoitejestavamuitotarde.BrancadeNevevoltariaamanhdemanh.Mathildetinhaidodeitar,eAnnienospediuquesubssemosparanossoquartouminstante,poiselesprecisavamconversar.RogerVincententrounasaladeestarcarregandoamaletadecouronamo.ApequenaHlne,AnnieeJeanD.oseguiramefecharamaporta.Euoshaviaobservadodoaltodaescada.Oquepodiamestar conversando na sala de estar? Ouvi o telefone tocar.Apsumtempo,Annienoschamou.Jantamostodosjuntosmesadejantar:Annie,apequenaHlne,JeanD.,RogerVincentensdois.Naquelanoite,duranteojantar,nousvamosnossosroupescomosempre,masnossasroupasdesair.ApequenaHlnepreparavaacomidaporque ela era uma verdadeira cordon-bleu.MoramosmaisdeumanonarueduDocteur-Dordaine.Asestaessesucedem em minha memria. No inverno, na Missa do Galo, fomos meninosdo coro na igreja do vilarejo. Annie, a pequena Hlne e Mathilde assistiammissa.BrancadeNevepassavaoNatalcomafamlia.Navolta,encontramosRogerVincentnacasaeelenosdissequealgumnosaguardava na sala de estar. Entramos, meu irmo e eu, e vimos, sentado napoltronadetecidofloridopertodotelefone,oPapaiNoel.Elenofalava.Estendiaacadaum,emsilncio,pacotesembrulhadosempapelprateado.Masnotnhamostempodedesembrulh-los.Eleselevantavaenossinalizavaparasegui-lo.OPapaiNoeleRogerVincentnoslevavamataportaenvidraadaquedavaparaoquintal.RogerVincentacendiaalmpadadoquintal.Sobreastbuasdemadeiraquetnhamosarrumadoladoalado,haviaumcarrinhobate-bateverde-clarocomomeuirmogostava. Depois, jantamos com eles. Jean D. veio se juntar a ns. Ele tinha amesma altura e o mesmo gestual do Papai Noel. E o mesmo relgio.A neve no ptio da escola. E os temporais de maro. Descobri que choviadiasim,diano,equeeupodiapreverotempo.Sempreacertava.Pelaprimeiraveznavida,fomosaocinema.ComBrancadeNeve.Eraumfilmede o Gordo e o Magro. As macieiras do jardim voltaram a florescer. De novoeuacompanhavaobandodarueduDocteur-Dordaineatomoinho,cujagranderodaaindagirava.Oscampeonatosdepipadiantedocastelorecomearam.Notnhamosmaismedo,meuirmoeeu,deentrarnosaguoedecaminharentreosentulhoseasfolhasmortas.Nsnosinstalvamosdentrodoelevador,umelevadorcomduasportasgradeadas,de madeira clara e lambrisada, com um banco de couro vermelho. No tinhateto,ealuzseinfiltravapeloaltodacabine,davidraaaindaintacta.Apertvamososbotesefingamossubiraosandaresondetalvezomarqus Eliot Salter de Caussade nos aguardasse.Masnoovimosnovilarejonaqueleano.Faziamuitocalor.Asmoscasficavampresasnopapeladesivoestendidonacozinha.OrganizamosumpiqueniquenaflorestacomBrancadeNeveeosobrinhodeFrede.Preferamos,meuirmoeeu,tentarfazerocarrinhobate-batedeslizarsobreasvelhastbuasessecarrinhobate-bateque,soubemosdepois,apequena Hlne havia encontrado graas a um amigo que trabalhava em umparque de diverses.Para o 14 de Julho, Roger Vincent nos convidou para jantar na estalagemRobindesBois.EletinhavindodePariscomJeanD.eAndreK.Ocupamosumamesanojardimdaestalagem,umjardimenfeitadocomalamedaseesttuas.Todomundoestaval:Annie,apequenaHlne,BrancadeNeveeatMathilde.Annieusavaseuvestidoazul-claroeseucinto preto largo bem apertado na cintura. Sentado ao lado de Andre K., eutinhavontadedelhefazerperguntassobreobandoaoqualhaviapertencido, o da rue Lauriston. Mas no ousava.E o outono... amos com Branca de Neve catar castanhas na floresta. Notnhamosnotciasdenossospais.Oltimocarto-postaldenossameeraumavistaareadacidadedeTnis.NossopainoshaviaescritodeBrazzaville. Depois de Bangui. E depois disso mais nada. Chegou o perododavoltasaulas.Oprofessor,apsaeducaofsica,mandava-noslimparasfolhasmortasdoptio.Noquintaldacasa,nsasdeixvamoscairsemqueaslimpssemos,easfolhasadquiriamumacordeferrugemquecontrastavacomoverde-clarodocarrinhobate-bate.Estepareciaqueficariaatofimdostemposnomeiodapistadefolhasmortas.Ns,meuirmoeeu,sentvamo-nosnocarrinhobate-bateeeuficavaaovolante.Amanh,descobriramosumaformadefaz-lodeslizar.Amanh...Sempreamanh, como as visitas noturnas sempre adiadas ao castelo do marqus deCaussade.Outrapaneeltrica,eiluminamosasalacomumalamparinaaleoparaojantar. s noites de sbado, Mathilde e Branca de Neve acendiam o fogo nalareiradasaladejantarenosdeixavamouvirrdio.DevezemquandoouvamosEdith,aamigadeRogerVincentedapequenaHlne,cantar.noite, antes de dormir, eu folheava o lbum da pequena Hlne, em que elaeseuscolegasdetrabalhoapareciam.Doisdelesmeimpressionavam.OamericanoChesterKingston,demembrostoflexveisquantoborrachaeque se contorcia to bem que o chamavam de o homem quebra-cabea. EAlfredoCodona,otrapezistadequemapequenaHlnenosfalavacomfrequnciaequehavialheensinadooofcio.Essemundodocircoedascasasdeespetculoseraoniconoqualqueramosvivernofuturo,meuirmoeeu.Talvezporquenossamenoslevasse,quandoramospequenos, a camarotes e bastidores de teatros.Os outros vinham sempre a casa. Roger Vincent, Jean D., Andre K. e osquetocavamacampainhanoiteecujosrostos,iluminadospelalmpadadaentrada,euespiavaatravsdasfrestasdaspersianas.Vozes,risosetoques de telefone. E Annie e Jean D. dentro do 4CV sob a chuva.Aolongodosanosposteriores,nuncamaisosrevi,excetoJeanD.,umanica vez. Eu tinha vinte anos. Morava em um quarto na rue Coustou, pertodaplaceBlanche.Tentavaescrevermeuprimeirolivro.Umamigomeconvidouparajantaremumrestaurantedobairro.Quandocheguei,eleestava com dois convidados: Jean D. e uma moa, que o acompanhava.JeanD.quasenotinhaenvelhecido.Unspoucoscabelosgrisalhosnastmporas,masomesmocabelocomprido.Minsculasrugasaoredordosolhos. No usava mais uma parca, e sim um terno cinza muito elegante. Tiveaimpressodequenoramosmaisosmesmos,eleeeu.Durantetodaarefeionofizemosnenhumaalusoaosvelhostempos.JeanD.meperguntou o que eu fazia da vida. Tratava-me sem cerimnia e me chamavade Patrick. Ele certamente havia explicado aos outros dois que me conheciafazia muito tempo.Quantoamim,sabiaumpoucomaissobreelequepocademinhainfncia.Naqueleano,osequestrodeumpolticomarroquinohaviaestadoemtodasasmanchetes.Umdosprotagonistasdocasohaviamorridoemcircunstnciasmisteriosas,narueDesRenaudes,noinstanteemqueospoliciaisforavamaporta.JeanD.eraamigodestepersonagemefoioltimo a t-lo visto com vida. Seu testemunho tinha sido assunto nos jornais.Masosartigoscontinhamoutrosdetalhes:JeanD.haviapassado,outrora,sete anos na priso. No explicavam o porqu; porm, considerando a data,seus problemas comearam nos tempos da rue du Docteur-Dordaine.No trocamos uma s palavra acerca desses artigos. Eu simplesmente lheperguntei se morava em Paris.Tenhoumescritrio.FaubourgSaint-Honor.Vocprecisamevisitar...Depoisdojantar,meuamigodesapareceu.VisozinhocomJeanD.eamoaqueoacompanhava,umamorenaquedeviaserunsdezanosmaisjovem que ele. Deixo voc em algum lugar?EleabriaaportadeumJaguarestacionadoemfrenteaorestaurante.Pelosartigos,euhaviadescobertoque,emcertomeio,chamavam-nodeoGrandedoJaguar.Desdeoinciodojantar,eubuscavaumabrechaparalhepediresclarecimentosarespeitodeumpassadoqueataquelediapermanecia um enigma.porcausadessecarroqueochamamdeoGrandedoJaguar?perguntei.Mas ele deu de ombros sem me responder.JeanD.quisvisitarmeuquartonarueCoustou.Eleeamoasubiram,atrsdemim,apequenaescadacujotapetevermelhogastoexalavaumcheiro esquisito. Entraram no quarto e a moa se sentou no nico assento uma poltrona de vime. Quanto a Jean D., ficou de p.Eraestranhov-lonaquelequarto,comseuternocinzamuitoeleganteegravata de seda escura. A moa olhava ao redor e no parecia entusiasmadacom o ambiente. Voc escreve? Est dando certo?Jean D. havia se curvado sobre a mesa de bridge e contemplava as folhasde papel que eu tentava preencher, dia aps dia. Voc escreve com uma caneta Bic?Ele me sorria. Aqui no tem aquecimento? No. E d para se virar?Oquelhedizer?Eunosabiacomoiriapagaroalugueldaquelequartono fim do ms: quinhentos francos. Claro, ns nos conhecamos havia muitotempo, mas isso no era motivo para lhe confiar minhas preocupaes. Eu me viro respondi. No parece.Duranteummomentoficamoscaraacaranovodajanela.Emboraochamassem de o Grande do Jaguar, agora eu era um pouco mais alto queele.JeanD.meenvolveucomumolharafetuosoeingnuo,omesmodostemposdarueduDocteur-Dordaine.Passoualnguanoslbiosemelembreidequefaziaissonacasaquandorefletia.Essejeitodepassaralngua nos lbios e se perder em pensamentos observei mais tarde em outrapessoa alm de Jean D.: Emmanuel Berl. E isso me emocionou.Elesecalou.Eutambm.Suaamigacontinuavasentadanapoltronadevimeefolheavaumarevistajogadanacamaquehaviapegadoaopassar.Melhor, no fundo, que aquela moa estivesse ali, seno teramos conversadoabertamente,JeanD.eeu.Noerafcil,liemseuolhar.sprimeiraspalavras,agiramoscomoosalvosnosestandesdetiroquedesabamquandoabalaatingeumpontoestratgico.Nacerta,Annie,apequenaHlne e Roger Vincent acabaram na priso... Eu tinha perdido meu irmo.Ofiohaviaserompido.UmfiodaVirgem.Nadamaisrestavadetudoaquilo...Ele se voltou para a amiga e lhe disse: A vista daqui bonita... a prpria Cte dAzur...AjaneladavaparaaestreitaruePuget,ondeningumjamaispassava.Umbarnojentonaesquinadarua,umvelhoestabelecimentodevendadevinhoecarvo,diantedoqualumamoasolitriafaziaponto.Sempreamesma. E para nada. Bela vista, no?Jean D. inspecionava o quarto, a cama, a mesa de bridge sobre a qual euescreviatodososdias.Euoviadecostas.Suaamigaapoiavaatestanovidro e contemplava l embaixo a rue Puget.Despediram-se e me desejaram boa sorte. Alguns instantes depois, acheisobre a mesa de bridge quatro notas de quinhentos francos cuidadosamentedobradas.Tenteiencontraroendereodeseuescritrio.FaubourgSaint-Honor. Em vo. E nunca mais revi o Grande do Jaguar.squintaseaossbados,quandoBrancadeNevenoestava,Annienoslevava,ameuirmoeamim,aParisemseu4CV.Otrajetoerasempreomesmoe,graasaumesforodememria,conseguireconstitu-lo.SeguamospelaautoestradanosentidooesteepassvamospelotneldeSaint-Cloud.AtravessvamosumapontesobreoSenaedepoismargevamos os cais de Boulogne e de Neuilly. Lembro-me das manses aolongo desses cais, protegidas por grades e folhagens; das chatas e das casasflutuantessquaissetinhaacessoporescadasdemadeira,cadaumacomum nome na caixa de correio, ao p das escadas. Vou comprar uma chata aqui e vamos todos morar nela dizia Annie.ChegvamosPorteMaillot.ConseguilocalizaressaetapadenossoitinerrioporcausadotrenzinhodoJardindAcclimatation.Umatarde,Annienoshavialevadoparadarumavoltanele.Echegvamosaotrminoda viagem naquela rea onde Neuilly, Levallois e Paris se confundem.Era uma rua ladeada de rvores cujas folhagens formavam uma abbada.Nenhumprdionessarua,masgalpeseoficinas.Parvamosdiantedamaior e mais moderna oficina, com uma fachada bege e um fronto.Nointerior,umaposentoeraprotegidoporvidros.Umhomemnosrecebia, um louro de cabelos cacheados, sentado em uma poltrona de couroatrsdeumamesademetal.TinhaaidadedeAnnie.Tratavam-secomintimidade. Ele se vestia, como Jean D., com uma camisa quadriculada, umajaquetadecamura,umaparcanoinvernoesapatoscomsoladodecrepe.Meuirmoeeuochamvamos,entrens,deBuckDannyporqueeuoachavaparecidocomopersonagemdeumarevistaemquadrinhosinfantilque lia naquela poca.SobreoqueAnnieeBuckDannyconversavam?Oquefaziamquandoaportadoescritrioeratrancadachavepordentroeumacortinadelonalaranjaerafechadaatrsdosvidros?Meuirmoeeupassevamospelaoficina, ainda mais misteriosa que o saguo do castelo abandonado por EliotSalter, marqus de Caussade. Admirvamos, um aps o outro, os carros aosquaisfaltavaumpara-lama,umcap,opneudeumaroda;umhomemdemacaco deitado debaixo de um conversvel consertava algo com uma chaveinglesa;outro,umcanonamo,enchiadegasolinaotanquedeumcaminhoquetinhaparadocomomotorroncandodeformaterrvel.UmdiareconhecemosocarroamericanodeRogerVincent,comocapaberto,e conclumos que Buck Danny e Roger Vincent eram amigos.DevezemquandoamosbuscarBuckDannyemcasa,emumcondomnioaolongodeumbulevar,ehojemeparecequeeraoboulevardBerthier.EspervamosAnnienacalada.ElachegavacomBuckDanny.Deixvamoso4CVestacionadodiantedoprdiodeapartamentosensquatrocaminhvamosataoficinapelasruazinhasladeadasdervoresegalpes.Faziafrionaquelaoficinaeocheirodegasolinaeramaisfortequeodegramamolhadaegua,quandonosmantnhamosimveisdiantedarodadomoinho.Pairavaomesmolusco-fuscoemalgunscantosondedormiamautomveisabandonados.Suascarroceriasreluziamsuavementenesselusco-fuscoeeunoconseguiadesgrudarosolhosdeumaplacademetalpresa parede, uma placa amarela na qual eu lia um nome de sete letras emcaracterespretos,cujosdesenhoesonoridadeaindahojemexemcommeucorao: CASTROL.Certaquinta,elamelevousozinhoemseu4CV.MeuirmotinhaidofazercomprasemVersalhescomapequenaHlne.Estacionamosdiantedoedifcio onde Buck Danny morava. Mas, dessa vez, ela voltou sem ele.Na oficina, ele no estava no escritrio. Entramos no 4CV. Percorramos asruazinhasdobairro.Acabamosnosperdendo.Virvamosaquelasruastodas parecidas com suas rvores e seus galpes.Elaacabouestacionandopertodeumaconstruodetijolinhos.HojemeperguntosenoseriaoantigopostofiscaldeNeuilly.Masdequeadiantatentarencontraroslugares?ElaseviroueestendeuobraoemdireoaobancotraseiroparaapanharummapadePariseoutroobjetoquememostrouecujousoeudesconhecia:umacigarreiradecourodecrocodilomarrom. Tome, Patoche... para voc... Um dia vai ser til...Eucontemplavaoestojodecourodecrocodilo.Tinhaumaarmaometlicanointeriorecontinhadoiscigarrosdetabacolouro,deperfumemuitosuave.Retirei-osdoestojoe,nomomentoemqueiaagradeceropresente e lhe entregar os dois cigarros, vi seu rosto de perfil. O olhar fixo frente. Uma lgrima escorria por sua bochecha. Eu no ousava dizer nada, eafrasedosobrinhodeFrederessoavaemminhacabea:Anniechorouanoite toda no Carrolls.Eumexianacigarreira.Aguardava.Elavirouorostoparamim.Sorriapara mim. Gostou?E,comumgestobrusco,deuapartida.Seusgestoseramsemprebruscos.Usavasemprejaquetasecalasmasculinas.Excetonoite.Seuscabeloslouroserammuitocurtos.Mashavianelatantadourafeminina,uma fragilidade to grande... No caminho de volta, eu pensava em seu rostograve, quando ela ficava com Jean D. dentro do 4CV sob a chuva.Volteiquelebairrohvinteanos,maisoumenosnapocaemquereviJeanD.Passeiosmesesdejulhoeagostomorandoemumquartominsculonosto,nosquaredeGraisivaudan.Apiaseencostavanacama,cujopficavaaalgunscentmetrosdaporta.Paraentrarnoquartoeraprecisopassarporcimadacama.Eutentavaterminarmeuprimeirolivro.Passeavasmargensdo17arrondissement,emNeuillyeLevallois,aondeAnnienoslevava,ameuirmoeamim,nosdiasdefolga.TodaaquelareaindistintaquenosesabeseaindaParis,todasaquelasruasforamriscadasdomapanapocadaconstruodoanelvirio,varrendocom elas suas oficinas e seus segredos.NopenseiumnicoinstanteemAnniequandomoravanaquelebairroquetantasvezespercorremosjuntos.Umpassadomaisremotomeassombrava, por causa de meu pai.Ele havia sido preso em uma noite de fevereiro em um restaurante da ruedeMarignan.Notinhadocumentos.Apolciadavabatidasobedecendoaumanovaordemalem:aproibioaosjudeusdefrequentarlugarespblicosdepoisdasoitodanoite.Eletinhaseaproveitadodapenumbraedeuminstantededesatenodospoliciaisnafrentedocamburoparafugir.No ano seguinte, capturaram-no em sua casa. Conduziram-no delegaciaedepoisaumanexodocampodeconcentraodeDrancy,emParis,nocais da estao de trem, um gigantesco armazm de mercadorias onde eramguardados todos os bens pilhados dos judeus pelos alemes: mveis, loua,roupadecama,mesaebanho,brinquedos,tapeteseobjetosdeartedispostosporrecintoseemprateleirascomonasGaleriesLafayette.Osprisioneirosesvaziavamascaixasmedidaqueelaschegavameenchiamoutras de partida para a Alemanha.Certa noite, algum tinha ido de carro ao cais da estao de trem e haviamandadosoltarmeupai.Euimaginavacomrazoounotratar-sedeumtalLouisPagnon,conhecidocomoEddy,fuziladonaLiberaojuntamentecomosintegrantesdobandodarueLauriston,aoqualpertencia.Sim,algumtiroumeupaidoburaco,segundoaexpressoqueelemesmohaviaempregadocertanoiteemqueestvamossozinhoseeleesteveaumtrizdemefazeralgumasconfidnciasquandoeutinhaquinzeanos.Naquelanoite,sentiqueelequeriametransmitirsuaexperinciasobreascoisascomplicadasedolorosasdavida,masnoencontravapalavras.Pagnonoualgumoutro?Eubemprecisavaderespostasparaminhasperguntas.Queligaopoderiahaverentreaquelehomememeupai? Um antigo colega de regimento? Um encontro fortuito antes da guerra?Na poca em que eu morava no square de Graisivaudan, tentei elucidar esseenigmaseguindopistasdePagnon.Deram-meautorizaoparaconsultaros antigos arquivos. Ele havia nascido em Paris no 10 arrondissement entreaRpubliqueeocanalSaint-Martin.Meupaitambmtinhapassadoainfnciano10arrondissement,pormumpoucomaisafastado,pertodacit dHauteville. Teriam se conhecido na escola pblica do bairro? Em 1932,Pagnon havia sido condenado a uma pena branda, pelo tribunal correcionalde Mont-de-Marsan, por controlar uma casa de jogo. De 1937 a 1939, tinhasido funcionrio de uma oficina no 17 arrondissement. Conhecera um certoHenri, representante de vendas dos automveis Simca, que morava perto daPortedesLilas;eumoutrohomemchamadoEdmondDelehaye,chefedeseonaSavary,umafbricadecarroceriasemAubervilliers.Ostrscostumavamseencontrar,poistodoselestrabalhavamnoramodeautomveis.Aguerrachegou,ecomelaaOcupao.Henrimontaraumalojaparaavendadeprodutosnomercadonegro.EdmondDelehayelheservia de secretrio, e Pagnon, de motorista. Instalaram-se em uma mansona rue Lauriston, perto da toile, com outros indivduos de ndole duvidosa.Essesmauselementossegundoaexpressodemeupaiinfiltraram-sepoucoapouconaengrenagem:dosnegciosnomercadonegroelessedeixaram seduzir pelos alemes para executar os servios sujos da polcia.Pagnon havia participado de um contrabando que o relatrio do inquritochamavadeonegciodasmeiasdeBiarritz.Tratava-sedeumagrandequantidadedemeiasquePagnonrecolhiadediferentescontrabandistasdaregio.Eleasacondicionavaempacotesdedozepareseasdepositavanasproximidades da gare de Bayonne. Encheram seis vages. Na Paris vazia daOcupao,Pagnonandavadecarro,tinhacompradoumcavalodecorrida,moravaemumimveldeluxonaruedesBelles-Feuilleseeraamantedaesposadeummarqus.FrequentavamjuntosaspistasdecorridadeNeuilly,Barbizon,aestalagemduFruitDfendu,emBougival...Quandomeu pai tinha conhecido Pagnon? Durante o negcio das meias de Biarritz?Quemsabe?Emumatardede1939,no17arrondissement,meupaihaviaparadodiantedeumaoficinaparatrocaropneudeseuFord,ePagnonestaval.Elesconversaram,PagnontalvezlhetenhaencomendadoumserviooupedidoumconselhoeforamtomaralgumacoisanobaraoladocomHenrieEdmondDelehaye...Conhecemosgentemuitoestranhanavida.EuhaviaperambuladopertodaPortedesLilas,naesperanadequeaindaselembrassemdeumrepresentantedosautomveisSimcaquemorava ali perto por volta de 1939. Um tal Henri. Mas nada. Ningum tinhaouvidofalardele.EmAubervilliers,naavenueJean-Jaurs,ascarroceriasSavary,queempregavamEdmondDelehaye,noexistiamhaviamuito.Eaoficinado17arrondissementondePagnontrabalhava?Seeuconseguisselocaliz-la,umantigomecnicoselembrariadePagnoneassimeuesperavademeupai.Eporfimeusaberiatudooquedeveriasaber,eque meu pai sabia.Prepareiumalistadeoficinasdo17,priorizandoaslocalizadasnosarredoresdoarrondissement.MinhaintuiodiziaquePagnontrabalhavaem uma delas:Garage des RservoirsSocit Ancienne du Garage-Auto-StarVan ZonVicar et CieVilla de lAutoGarage Cte dAzurGarage CarolineChamperret-Marly-AutomobilesCristal GarageDe KorsakEden GarageLtoile du NordAuto-Sport GarageGarage Franco-AmricainS.O.C.O.V.A.Majestic AutomobilesGarage des VillasAuto-LuxGarage Saint-PierreGarage de la ComteGarage BleuMatford-AutomobilesDiakGarage du Bois des CauresAs GarageDixmude-Palace-AutoBuffalo-TransportsDuvivier (R) S.A.R.L.Autos-RemisesLancien FrreGarage aux Docks de la JonquireHojedigoamimmesmoqueaoficinaaondeAnniemelevavacommeuirmo deve constar nessa lista. Talvez a de Pagnon fosse a mesma. Revejo asfolhagensdasrvoresdarua,agrandefachadabegecomfronto...Elesademoliram com as outras, e todos aqueles anos no passaram, para mim, deuma longa e v busca de uma oficina perdida.AnniemelevavaaoutrobairrodeParisquemaistardemefoifcilreconhecer:avenueJunot,emMontmartre.Elaestacionavao4CVdiantedeumpequenoprdiobrancocomportaenvidraadadeferroforjado.Pediapara eu esperar. No demoraria. Ela entrava no prdio.Eupasseavapelacaladadaavenida.Talvezminhapredileoporessebairrodatedaquelapoca.Umaescadangremelevavaoutrarua,lembaixo,eeumedivertiadescendo.RueCaulaincourt.Percorriaalgunsmetrosap,masnomeaventuravalongedemais.EusubiadepressaaescadacommedodequeAnniefosseemboraemseu4CVemedeixassesozinho.Maseraeuquemchegavaprimeiroeprecisavaesperar,comoaespervamos na oficina, quando a cortina laranja era fechada atrs do vidrodasaladeBuckDanny.ElasaadoprdiocomRogerVincent.Elemesorria. Fingia ter me encontrado por acaso. Olhe s... O que voc est fazendo aqui no bairro?Nosdiassubsequentes,elediziaaAndreK.,aJeanD.epequenaHlne:Engraado...EncontreiPatocheemMontmartre...Nofaoideiadoque ele podia estar fazendo l...E se virava para mim. No diga nada a eles. Quanto menos falar, melhor.AvenueJunot.Annieobeijava.ElaochamavadeRogerVincenteotratava de maneira formal, mas o beijava.Umdiaconvidovocparairaminhacasadizia-meRogerVincent. Eu moro aqui...E apontava para a porta de ferro forjado do pequeno prdio branco.Nstrscaminhvamospelacalada.Seucarroamericanonoestavaestacionado diante de sua casa e eu lhe perguntei por qu. Eu o guardo na garagem ali em frente...PassvamosnaportadohotelAlsina,pertodaescadaria.Umdia,Anniedisse:Foiaquiquemorei,noincio,comapequenaHlneeMathilde...Setivessem visto a cara de Mathilde...RogerVincentsorria.Eeu,semmedarconta,ouviatodasassuaspalavras e elas ficavam gravadas em minha memria.Bemmaistarde,eumecaseiemoreialgunsanosnaquelebairro.PassavaquasetododiapelaavenueJunot.Umatarde,tiveumestalo:empurreioportoenvidraadodoprdiobranco.Toqueiacampainhadaportadozelador. Um homem ruivo enfiou a cabea pelo vo da porta. O que o senhor deseja? a respeito de algum que morava nesse prdio faz uns vinte anos... Ah, mas eu ainda no trabalhava aqui, senhor... O senhor no sabe como eu poderia obter informaes a respeito dele?Perguntenagaragemaliemfrente.Aquelesaliconheceramtodomundo.Mas no perguntei na garagem em frente. Eu havia dedicado tantos diasbuscadeoficinasemParis,semsucesso,quejnoacreditavamaisqueconseguiria.No vero, os dias se estendem, e Annie, menos severa que Branca de Neve,deixava-nosbrincarattardenaavenidaemdeclive,nafrentedacasa.Naquelapocanovestamosnossosroupes.Depoisdojantar,Annienosacompanhava at a porta e me entregava seu relgio de pulso.Podembrincaratasnoveemeia...snoveemeiaentrem...Presteateno na hora, Patoche... Confio em voc...Quando Jean D. estava l, ele me confiava seu enorme relgio. Ajustava-ode tal modo que s nove e meia em ponto um alarme baixinho como o deum despertador anunciava-nos a hora de voltar para casa.Descamos os dois pela avenida at a estrada, onde alguns poucos carrosaindapassavam.Acemmetros,direita,aestaodetrem,umapequenaconstruodeenxaimelemrunaspareciaumamansobeira-mar.frente, uma esplanada deserta ladeada por rvores e pelo CAF DE LA GARE.Certaquinta,meupainotinhavindodecarrocomumdeseusamigos,massimdetrem.Nofimdatarde,nsdoisohavamosacompanhadoestao.E,comotnhamoschegadoantesdahora,elenosconvidaraaoterraodoCafdelaGare.MeuirmoeeuhavamosbebidoCoca-Cola,eele, um conhaque com gua.Jhaviapagoacontaeselevantadoparapegarotrem.Antesdenosdeixar, dissera:Noseesqueam...Se,poracaso,encontraremomarqusdeCaussade no castelo, digam que Albert manda lembranas...Na esquina da estrada com a avenida, protegidos por uma abundncia dealfeneiros,vigivamosaestao.Detemposemtempos,umgrupodeviajantessaaesedispersavaindoemdireoaovilarejo,aomoinhodeBivre,aopovoadodeMets.Osviajanteseramcadavezmaisraros.Poucodepois,umanicapessoaatravessavaaesplanada.OmarqusdeCaussade?Definitivamente,naquelanoitedevamostentaragrandeaventuraeiraocastelo.Mastnhamoscertezadequeesseprojetoseriaadiado sem cessar para o dia seguinte.Permanecemos,porumbomtempo,imveisdiantedascercasvivasqueprotegiamaestalagemRobindesBois.Escutvamosasconversasdaspessoasjantandonojardim.Emboraescondidospelascercasvivas,ouvamossuasvozespertinho.Ouvamosotinidodostalheres,opassodosgaronssobreocascalho.Ocheirodecertospratossemisturavaaoperfumedosalfeneiros.Pormesteeramaisforte.Todaaavenidacheiravaa alfeneiro.Lnoalto,abow-windowdasaladeestarseiluminava.OcarroamericanodeRogerVincentestavaestacionadodiantedacasa.Naquelanoite,eletinhavindocomAndreK.,amulherdodoutorfamoso,aquehavia feito parte do bando da rue Lauriston e que tratava Roger Vincent comintimidade.Aindanoeramnoveemeia,masAnniesaadacasa,seuvestido azul-claro apertado na cintura. Atravessvamos de novo a avenida, omaisrpidopossvel,abaixados,enosescondamosatrsdosarbustosdobosquepertodotemploprotestante.Annieseaproximava.Seuscabeloslouros formavam uma mancha no crepsculo. Escutvamos seus passos. Elatentavanosencontrar.Eraumabrincadeiranossa.Todasasvezesnosescondamosemumlugardiferente,nesseterrenoabandonadoqueasrvoreseavegetaoinvadiram.Elaacabavadescobrindonossoesconderijoporquetnhamosumataquederisoquandoseaproximavademais. Voltvamos os trs para casa. Annie era uma criana como ns.Algumasfrasespermanecemgravadasemnossamenteparasempre.Umatarde montaram uma espcie de quermesse no ptio do templo protestante,na outra calada. Da janela de nosso quarto, tnhamos uma vista panormicadasbarraquinhas,emtornodasquaissecomprimiamcrianaseseuspais.Durante o almoo, Mathilde me perguntou: Gostaria de ir festa do templo, imbecil afortunado?Elanoslevou.Compramosumarifaeganhamosdoispacotesdenougatine. Na volta, Mathilde me disse:Deixaramvocsentraremnafestaporquesouprotestante,imbecilafortunado!Austera como sempre, usava seu camafeu e seu vestido preto.Evoulogoavisando:osprotestantesveemtudo!Nadasepodeesconderdeles!Osprotestantesnotmapenasdoisolhos!Tambmtmoutro atrs da cabea! Entendeu?Ela me apontava o coque. Entendeu, imbecil afortunado? Um olho atrs da cabea!Desdeento,ns,meuirmoeeu,sentamo-nosincomodadosemsuapresena,sobretudoquandopassvamosportrsdela.Demoreimuitoaentenderqueosprotestanteseramiguaisatodomundoeanotrocardecalada toda vez que encontrava um.Nuncamaisnenhumafraseterparanstalrepercusso.Eracomoosorriso de Roger Vincent. Nunca mais encontrei sorriso semelhante. MesmonaausnciadeRogerVincent,seusorrisopairavanoar.Lembro-medeoutra frase que Jean D. tinha me dito. Certa manh, ele havia me levado demoto at a estrada de Versalhes. No ia rpido demais, e eu o segurava pelaparca.Navolta,paramosnaestalagemRobindesBois.Elequeriacomprarcigarros.Adonaestavasozinhanobardaestalagem,umamulherloura,jovem e muito bonita, que no era a que meu pai havia conhecido na pocaque frequentava aquela estalagem com Eliot Salter, marqus de Caussade, etalvez com Eddy Pagnon. Um mao de Balto pediu Jean D.Adonalheentregouomaodecigarroslanandoumsorrisoparansdois. Quando samos da estalagem, Jean D. me disse com uma voz grave:Estvendo,meuamiguinho...Asmulheres...Elasparecemextraordinrias de longe... Mas, de perto... preciso desconfiar...Bruscamente, sua expresso ficou triste.Certaquinta,brincvamosnacolinaaoladodocastelo.ApequenaHlne,sentadanobancoemgeralocupadoporBrancadeNeve,vigiava-nos.Escalvamos os galhos dos pinheiros. Eu tinha subido alto demais na rvoree,aopulardeumgalhoparaooutro,quasehaviacado.Quandodescidarvore,apequenaHlneestavaplida.Naqueledia,usavasuacalademontaria e seu bolero incrustado de madreprola. No tem graa... Voc podia ter se matado...Jamais eu a tinha ouvido falar naquele tom rspido. Nunca mais repita isso...Euestavatopoucohabituadoav-lazangadaquetivevontadedechorar.Fuiobrigadaaabandonarminhacarreiraporcausadeumabobagemdessas...ApequenaHlnemepegoupeloombroemearrastouatobancodepedrasobasrvores.Elameobrigouasentar.TiroudobolsointernodoboleroumacarteiradecourodecrocodilodamesmacordacigarreiraqueAnnietinhamedadoequedeviaserdamesmaloja.E,dessacarteira,retirou um papel e o estendeu a mim. Voc sabe ler?Era uma matria de jornal com uma foto. Li o que estava escrito em letrasgarrafais: A TRAPEZISTA HLNE TOCH VTIMA DE UM GRAVE ACIDENTE. MUSTAPHA AMAR ASUA CABECEIRA. Ela pegou de volta a matria e a guardou na carteira. Na vida, os acidentes acontecem muito rpido... Eu era como voc... Euno sabia... Eu era confiante...ApequenaHlnepareceutersearrependidodefalarcomigocomoseeu fosse um adulto. ... Vamos lanchar... Vamos comprar doces na padaria...Ao longo da rue du Docteur-Dordaine, eu me deixava ficar um pouco paratrs para observ-la andar. Mancava ligeiramente, e at ento no havia meocorridoqueelanemsempretinhamancado.Portanto,navida,acidentesacontecem. Essa descoberta me incomodava muito.NatardeemquetinhaidosozinhoaParisno4CVdeAnnieenaqualelahaviamepresenteadocomacigarreiradecourodecrocodilo,acabamosencontrandoocaminhonasruazinhashojedestrudasdo17arrondissement.SeguamososcaisdoSena,comodecostume.Havamosparadouminstantebeiradorio,pertodeNeuillyedailhadePuteaux.Observvamos,doaltodasescadasdemadeiraquedavamacessoaospontesdecoresclaras,ascasasflutuanteseaschatasconvertidasemapartamentos.Vamosprecisarnosmudarembreve,Patoche...Ealiquequeromorar...Elajhavianosfaladodamudana,vriasvezes.Estvamosumpoucoinquietos ante a perspectiva de deixar a casa e o vilarejo. Mas morar a bordode uma daquelas chatas... Dia aps dia aguardvamos a partida rumo a essanova aventura.Vamosarrumarumquartoparaosdois...Comescotilhas...Eteremosuma grande sala de estar e um bar...Anniesonhavaemvozalta.Entramosno4CV.ApsotneldeSaint-Cloud,naautoestrada,elavirouorostoparamim.Envolvia-mecomumolhar ainda mais cintilante que o normal.Sabeoquevocdeviafazer?Deviaescrevertodasasnoitesoquefezdurante o dia... Vou comprar um caderno s para isso...Eraumaboaideia.Euenfiavaamonobolsoparaverificarseaindatinha a cigarreira.Certosobjetosdesaparecemdenossavidaaoprimeiromomentodedesateno,masaquelacigarreirapermaneceufielamim.Eusabiaqueelasempreestariaaoalcancedeminhamo,nagavetadeumamesinhadecabeceira,emumcompartimentodoarmrio,nofundodeumaescrivaninha,nobolsointernodeumpalet.Tinhatantacertezadelaedesuapresenaquemeesqueciadela.Excetonosmomentosdemelancolia.Entoeuacontemplavasobtodososngulos.Eraonicoobjetoquetestemunhavaumperododeminhavidadoqualeunopodiafalarcomningum e que s vezes me perguntava se realmente tinha vivido.Noentantoquaseaperdiumdia.Euestavaemumdaquelescolgiosonde esperei o tempo passar at completar dezessete anos. Minha cigarreiradespertavaacobiadedoisirmosgmeospertencentesaltaburguesia.Elestinhamvriosprimosemoutrasturmaseopaiostentavaottulodemelhor atirador da Frana. Se todos se unissem contra mim, eu no teria amenor chance de me defender.Onicomeiodeescapardeleseradarumjeitodeserexpulsodaquelecolgioomaisrpidopossvel.FugiumdiademanheaproveiteiparavisitarChantilly,Mortefontaine,ErmenonvilleeaabadiadeChaalis.Volteiaocolgionahoradojantar.Odiretoranunciouminhaexpulso,masnohaviaconseguidofalarcommeuspais.Meupaitinhapartidohaviaalgunsmeses para a Colmbia, em busca de um terreno aurfero recomendado porumamigo;minhameestavaemturnparaosladosdeLaChaux-de-Fonds.Colocaram-medequarentenaemumquartodeenfermariaaguardandoquealgumfossemebuscar.Eunotinhadireitoaassistirsaulas nem a fazer as refeies com meus colegas no refeitrio. Essa espciedeimunidadediplomticamedeixavadefinitivamenteasalvodosdoisirmos, de seus primos e do melhor atirador da Frana. Toda noite, antes dedormir, eu verificava debaixo do travesseiro a presena de minha cigarreirade couro de crocodilo.Esseobjetoatrairiaaatenosobreelealgunsanosdepoisumaltimavez.HaviaseguidooconselhodeAnniedeescrevertododiaemumcaderno: acabava de terminar meu primeiro livro. Estava sentado no balcodeumcafdaavenuedeWagram.Ameulado,dep,umhomemdeunssessentaanos,cabelospretos,culosdearosmuitofinosetrajetoimpecvelquantoasmos.Euoobservavahaviaalgunsminutosemeperguntava o que ele fazia na vida.Eletinhapedidoaogaromummao,masnaquelecafnosevendiacigarro. Estendi-lhe minha cigarreira de couro de crocodilo. Muito obrigado, senhor.Elepegouumcigarro.Seuolharpermaneceufixonacigarreiradecourode crocodilo. O senhor me permite?Tomou-a de minhas mos. Com o cenho franzido, ele a virava e revirava. Eu tinha uma igual.Devolveu-a e me examinou com um olhar atento. Roubaram todo o estoque desse artigo. Depois, no o vendemos mais.O senhor possui uma pea de coleo muito rara...Elemesorria.Tinhaocupadoocargodediretoremumagrandemarroquinaria na Champs-lyses, mas agora estava aposentado. Eles no se contentaram com cigarreiras como essa. Roubaram tudo daloja.Havia inclinado o rosto para mim e continuava sorrindo.Nopensequetenhoamenorsuspeitadosenhor...Osenhoreramuito jovem na poca... Isso faz muito tempo? perguntei a ele. Uns quinze anos. E eles foram presos? Nem todos. Os envolvidos fizeram coisas bem mais graves que aquelearrombamento...Coisasbemmaisgraves.Essaspalavraseujconhecia.AtrapezistaHlne Toch vtima de um GRAVE ACIDENTE.Eorapazdegrandesolhosazuisque, mais tarde, tinha me respondido: uma coisa muito grave.L fora, na avenue de Wagram, eu caminhava com uma curiosa exaltaonopeito.Depoisdemuitotempo,eraaprimeiravezquesentiaapresenadeAnnie.Elaandavaatrsdemimnaquelanoite.RogerVincenteapequenaHlnetambmdeviamseencontraremalgumapartedessacidade. No fundo, eles jamais me deixaram.Branca de Neve foi embora para sempre sem nos avisar. No caf da manh,Mathilde me disse:Elafoiemboraporquenoqueriamaiscuidardevoc,imbecilafortunado!Annie deu de ombros e piscou para mim.Nodigabobagens,mame!Elafoiemboraporqueprecisavavoltarpara a famlia.Mathilde semicerrou os olhos e lanou sobre a filha um olhar rancoroso. No se fala desse jeito com a me na frente das crianas!Annie fingia no ter escutado. Ela nos sorria.Vocouviu?perguntouMathildefilha.Vocvaiacabarmal!Como o imbecil afortunado!De novo, Annie deu de ombros. Calma, Thilda interveio a pequena Hlne.Mathilde apontou para o coque na parte de trs da cabea para mim. Voc sabe o que isso quer dizer, hein? Agora que Branca de Neve noest mais aqui, quem vai vigiar voc sou eu, imbecil afortunado!Anniemeacompanhouescola.Comosempre,colocouamoemmeuombro.Vocnodeveprestaratenoaoquemamediz...Elavelha...Osvelhos falam qualquer besteira...Havamos chegado cedo. Espervamos diante da porta de ferro do ptio.Voceseuirmovodormirumaouduasnoitesnacasadafrente...sabe,aquelacasabranca...Vamosreceberumasvisitasquevomorarnanossa casa uns dias...Ela deve ter se dado conta de que fiquei inquieto. Mas, de todo modo, vou ficar com vocs... Vai ver, vocs vo se divertirbastante...Nasala,eunomeconcentravanaaula.Pensavaemoutracoisa.Brancade Neve tinha ido embora, e ns, ns amos morar na casa da frente.Depois da escola, Annie nos levou, a meu irmo e amim,acasadafrente.Tocouacampainhanaentradinha que dava para a rue du Docteur-Dordaine.Uma senhora morena bem gorda e toda de preto abriuaporta.Eraacaseira,porqueosproprietriosnomoravam l. O quarto est pronto avisou a caseira.Subimosumaescadailuminadaporluzeltrica.Todasaspersianasdacasaestavamfechadas.Atravessamosumcorredor.Acaseiraabriuumaporta. Aquele quarto era maior que o nosso e tinha duas camas com barrasde lato, duas camas de adulto. Um papel azul-claro com desenhos cobria asparedes.AjaneladavaparaarueduDocteur-Dordaine.Aspersianasestavam abertas. Vocs vo ficar muito bem aqui, crianas comentou Annie.A caseira nos sorria. Ela nos disse: Amanh cedo preparo o caf da manh para vocs.Descemosaescadaeacaseiranosmostrouotrreo.Nagrandesaladeestardepersianasfechadas,doislustresdecristalcintilavamcomtodoseubrilhoenosofuscavam.Osmveisestavamprotegidosporcapastransparentes. Exceto o piano.Apsojantar,samoscomAnnie.Usvamosnossospijamasenossosroupes. Uma noite de primavera. Era divertido sair de roupo, e descemosaavenidacomAnnieataestalagemRobindesBois.Gostaramosdeterencontrado algum para que nos vissem passeando de roupo na rua.Tocamosacampainhadacasadafrentee,denovo,acaseiraaabriuenosconduziuanossoquarto.Deitamosnascamasdebarrasdelato.Acaseiranosdissequedormiaaoladodasaladeestareque,seprecisssemos de qualquer coisa, era s chamar. De qualquer maneira, estou pertinho, Patoche... acrescentou Annie.Ela nos deu um beijo na testa. J havamos escovado os dentes depois dojantar, em nosso quarto de verdade. A caseira fechou as persianas, apagou aluz e as duas foram embora.Naquelaprimeiranoite,conversamospormuitotempo,meuirmoeeu.Queramosdescersaladeestarparacontemplaroslustres,osmveisdebaixodascapaseopiano,mastnhamosmedodequeamadeiradaescada rangesse e a caseira nos repreendesse.Amanhseguinteeraumaquinta.Eunotinhaaula.Acaseiratrouxenosso caf da manh em uma bandeja para o quarto. Ns lhe agradecemos.OsobrinhodeFredenoapareceunaquelaquinta.Ficamosnojardimgrande,diantedafachadadacasacomsuasportasdevidroepersianasfechadas.Haviaumsalgueiro-choroe,lnofundo,umacercadebambusatravsdaqualvamosoterraodaestalagemRobindesBoiseasmesasnasquaisosgaronsarrumavamostalheresparaoalmoo.Aomeio-diacomemossanduches.Forampreparadospelacaseira.Sentamosnascadeirasdojardimcomnossossanduches,comoparaumpiquenique.noite,otempoestavabom,ejantamosnojardim.Acaseirapreparoudenovo sanduches de presunto e queijo. Duas tortas de ma de sobremesa. ECoca-Cola.Annie veio depois do jantar. Tnhamos colocado nossos pijamas e nossosroupes.Samoscomela.Dessavez,atravessamosaestrada,lembaixo.Encontramospessoaspertodojardimpblicoeelaspareciamatnitasdenosverderoupo.QuantoaAnnie,elausavasuavelhajaquetadecouroeseu jeans. Passamos em frente estao. Achei que fssemos pegar o trem,com nossos roupes, para Paris.Na volta, Annie nos beijou no jardim da casa branca e, a cada um de ns,deu uma harmnica.Acordeinomeiodanoite.Ouviaobarulhodeummotor.Levantei-meefuiolharpelajanela.Acaseiranotinhafechadoaspersianas,haviaapenascerrado as cortinas vermelhas.Dooutrolado,abow-windowdasaladeestarestavailuminada.OcarrodeRogerVincentseencontravaestacionadodiantedacasa,acapotapretaarriada. O 4CV de Annie tambm estava l. Mas o barulho do motor vinha deum caminho coberto por uma lona, parado do outro lado da rua, diante domurodotemploprotestante.Desligaramomotor.Doishomenssaramdocaminho. Reconheci Jean D. e Buck Danny, e os dois entraram na casa. Euvia um vulto passar vez por outra diante da bow-window da sala de estar. Euestavacomsono.Namanhseguinte,acaseiranosacordoutrazendoabandejacomocafdamanh.Elaemeuirmomeacompanharamataescola. Na rue du Docteur-Dordaine no vi mais o caminho nem o carro deRoger Vincent. Porm o 4CV de Annie continuava l, defronte da casa.Na sada da escola, meu irmo me esperava, sozinho. No tem mais ningum na nossa casa.Ele me contou que a caseira o havia levado para a casa pouco antes. O 4CVdeAnnieestaval,masnotinhaningum.AcaseiratinhaprecisadosairparafazercomprasemVersalhesatofinalzinhodatardeedeixarameuirmonacasalheexplicandoqueAnnievoltariaembreve,poisseucarroestava l. Meu irmo tinha esperado na casa vazia.Ele ficou aliviado em me ver. At ria, como algum que sentiu medo masj est totalmente tranquilizado. Eles foram a Paris declarei. No se preocupe.Seguimos a rue du Docteur-Dordaine. O 4CV de Annie estava l.Ningumnasaladejantarounacozinha.Nemnasaladeestar.Noprimeiroandar,oquartodeAnnieestavavazio.OdapequenaHlnetambm. O de Mathilde, no fundo do quintal, tambm. Entramos no quartode Branca de Neve. Afinal de contas, talvez Branca de Neve tivesse voltado.No.Eracomoseningumjamaistivessehabitadoaquelesquartos.Pelajanela do nosso, eu observava, l embaixo, o 4CV de Annie.O silncio da casa nos assustava. Liguei o rdio e comemos duas mas eduasbananasquerestavamnafruteirasobreobuf.Abriaportaquedavapara o jardim. O carrinho bate-bate continuava l, no meio do ptio. Vamos esperar que voltem eu disse a meu irmo.Otempopassava.Osponteirosdorelgiodacozinhamarcavamvinteparaasduas.Erahoradeirparaaescola.Maseunopodiadeixarmeuirmosozinho.Ficamossentados,umdefrenteparaooutro,mesadejantar. Ouvamos rdio.Samos da casa. O 4CV de Annie continuava l. Abri uma das portas e sentei-menobancodianteiro,nomeulugardecostume.Remexinoporta-luvasevasculhei o banco traseiro. Nada. Exceto um velho mao de cigarros vazio. Vamos passear at o castelo propus a meu irmo.Ventava.SeguimosarueduDocteur-Dordaine.Meuscolegasjhaviamentradonasalaeodiretortinhanotadominhaausncia.medidaquecaminhvamos,osilncioanossoredoreracadavezmaisprofundo.Sobosol, essa rua e todas essas casas pareciam abandonadas.Oventoagitavasuavementeocapimaltodapradaria.Nuncatnhamosvindoosdoissozinhosaqui.Asjanelastapadasdocastelomecausavamamesmainquietaoqueocomeodanoite,devoltadenossospasseiosnafloresta com Branca de Neve. A fachada do castelo era escura e ameaadoranaqueles momentos. Como agora, em plena tarde.Sentamosnobanco,londesesentavamBrancadeNeveeapequenaHlne enquanto escalvamos os galhos dos pinheiros. O silncio ainda nosenvolvia,eeutentavatocarumamsicanaharmnicaqueAnnietinhamedado.Na rue du Docteur-Dordaine, vimos de longe um carro preto estacionado emfrente casa. Um homem ao volante, sua perna ultrapassava a porta abertaeeleliaumjornal.Diantedaportadacasa,umgendarmeparado,muitoempertigado, a cabea sem chapu. Era jovem, cabelos louros curtos, e seusgrandes olhos azuis fitavam o vazio.Sobressaltou-seenosobservou,ameuirmoeamim,comosolhosarregalados. O que vocs esto fazendo a? Essa minha casa respondi a ele. Aconteceu alguma coisa? Uma coisa muito grave.Tive medo. Mas ele tambm, sua voz tremia um pouco. Uma caminhonetecom um guindaste despontou na esquina da avenida. Gendarmes descerameprenderamo4CVdeAnnienoguindaste.Depois,acaminhoneteacelerouarrastandolentamenteatrsdesio4CVdeAnnieaolongodarueduDocteur-Dordaine.Issofoioquemaismeincomodoueoquemaismefezsofrer. muito grave disse ele. Vocs no podem entrar.Masnsentramos.Algumfalavaaotelefonenasaladeestar.Umhomemmoreno,degabardine,estavasentadonabeiradadamesadejantar. Ele nos viu, a meu irmo e a mim. Veio em nossa direo. Ah... So vocs... as crianas?Repetiu: Vocs so as crianas?Elenoslevousaladeestar.Ohomemaotelefonedesligou.Erabaixo,ombrosmuitolargoseusavaumcasacodecouropreto.Eledisse,comoooutro: Ah... So as crianas...Falou ao homem de gabardine: preciso lev-las ao comissariado de Versalhes... Ningum atende emParis...Uma coisa muito grave, tinha dito o gendarme de grandes olhos azuis. Eume lembrava da folha de jornal que a pequena Hlne guardava na carteira:A TRAPEZISTA HLNE TOCH VTIMA DE UM GRAVE ACIDENTE. Eu permanecia atrs delaparaobserv-laandar.ApequenaHlnenemsemprehaviamancadoassim.Ondeestoospaisdevocs?perguntou-meomorenodegabardine.Euprocuravaumaresposta.Eracomplicadodemaisexplicar.Anniemedisseraissonodiaemquetnhamosidojuntosaoescritriodadiretoradoinstituto Jeanne-dArc e ela tinha fingido ser minha me. Voc no sabe onde esto seus pais?Minhamerepresentavasuapeadeteatroemalgumlugardonortedafrica.MeupaiestavaemBrazzavilleouemBangui,oumaislongeainda.Era complicado demais. Eles morreram respondi.Elesesobressaltou.Franziaocenhoenquantomeolhava.Seriapossveldizerquederepentesentiamedodemim.Ohomembaixodecasacodecourotambmmefitavacomumaexpressoinquieta,boquiaberto.Doisgendarmes entraram na sala de estar.Continuamosarevistaracasa?perguntouumdelesaomorenodegabardine. Sim... Sim... Continuem...Eles foram embora. O moreno de gabardine se inclinou para ns.Vobrincarnojardimdissecomumavozmuitodoce.Daquiapouco falo com vocs.Ele nos pegou pela mo e nos levou para fora. O carrinho bate-bate verdecontinuava l. O homem estendeu o brao em direo ao jardim. Vo brincar... At daqui a pouco...E entrou na casa.Subimos pela escadaria de pedra at o primeiro nvel do jardim, l onde otmulododoutorGuillotinficavaescondidosobasclematiteseondeMathildehaviaplantadoumaroseira.AjaneladoquartodeAnnieestavaescancarada,e,comonosencontrvamosnaalturadajanela,euosviarevistando tudo no quarto dela.Embaixo,ohomempequenodecasacodecouropretoatravessavaoquintal,umalanternanamo.Curvava-seporcimadabordadopoo,afastavaamadressilvaetentavaenxergaralgonofundocomsualanterna.Os outros continuavam a revistar o quarto de Annie. Outros mais chegavam,gendarmesehomensusandoroupascomuns.Revistavamtudo,atointeriordenossocarrinhobate-bate,andavampeloquintal,apareciamnasjanelasdacasa,falavamaomesmotempo,muitoalto.Ens,meuirmoeeu, fingamos brincar no jardim, esperando que algum viesse nos buscar.Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Servios de Imprensa S.A.Remisso de penaMatria sobre o livro Vejahttp://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/resenha/remissao-da-pena-modiano-e-o-silencio-da-historia/Matria sobre o autor Folhahttp://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/10/1538643-apos-nobel-patrick-modiano-tera-seis-livros-publicados-no-brasil-em-5-meses.shtmlSkoob do livrohttp://www.skoob.com.br/livro/431724#_=_Wikipedia do autorhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Patrick_ModianoMatria sobre o autorhttp://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2014/12/patrick-modiano-diz-na-sede-do-nobel-que-redes-sociais-tiram-intimidade.htmlCapaRostoCrditosDedicatriaEpgrafeLivreColofoSaiba mais