Remuneração por competências: alternativas e implicações · insucesso; preocupações...

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1 Remuneração por competências: alternativas e implicações José Antonio Monteiro Hipólito Célia Bueno de André Plothow A revisão do modelo de recompensas de uma empresa está intimamente ligada ao estudo das competências das pessoas, suas responsabilidades e complexidade do seu trabalho Sumário Introdução Por que mudar limitações e virtudes do modelo de recompensas diante das transformações do ambiente e das organizações Modelos centrados em cargos A evolução do conceito de competências, da visão de capacidade para o foco na contribuição, como condição de vínculo à remuneração Sistemáticas de remuneração por competências e cuidados no seu desenvolvimento e implementação O caso da Volvo Considerações finais Referências bibliográficas

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Remuneração por competências: alternativas e implicações

José Antonio Monteiro Hipólito Célia Bueno de André Plothow

A revisão do modelo de recompensas de uma empresa está intimamente ligada

ao estudo das competências das pessoas, suas responsabilidades e complexidade do seu trabalho

Sumário

Introdução Por que mudar – limitações e virtudes do modelo de recompensas diante das transformações do ambiente e das organizações Modelos centrados em cargos A evolução do conceito de competências, da visão de capacidade para o foco na contribuição, como condição de vínculo à remuneração Sistemáticas de remuneração por competências e cuidados no seu desenvolvimento e implementação O caso da Volvo Considerações finais Referências bibliográficas

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Introdução

A gestão da remuneração, de forma mais específica, e a de recompensas, numa perspectiva mais ampla, têm se constituído num dos aspectos fundamentais na gestão de pessoas. Justifica-se sua importância pelo impacto potencial das decisões que ocorrem nessa dimensão, seja para a organização – interferindo diretamente na estrutura de custos da empresa – seja para as pessoas — ao traduzir, de forma altamente simbólica, o que a organização valoriza e recompensa. Essa característica torna o alinhamento entre o sistema de recompensas e os movimentos de evolução na gestão de pessoas crítico: se não realizado, reduz-se a credibilidade em relação ao que se vem fazendo em outros processos de recursos humanos. Pode-se, por exemplo, passar a percepção de que o discurso de modernização da área ou os movimentos de evolução organizacional é muito “bonito”, mas que, no momento de sua aplicação, as organizações continuam administrando seus profissionais pelo método tradicional, baseado nas premissas tayloristas-fordistas de organização do trabalho. Isso quando as práticas de recompensas não terminam por contradizer ou mesmo chocar-se frontalmente com o discurso organizacional...

No entanto, apesar da importância do alinhamento do sistema de recompensas com os movimentos do ambiente e com a evolução das organizações, verifica-se, que o desenvolvimento das práticas de compensação ocorre com certa defasagem temporal quando comparado a outros processos de gestão de pessoas1 (Fischer, 1998). Justifica-se essa defasagem pelo próprio impacto que decisões sobre recompensas causam, bem como pelo receio em se distanciar dos parâmetros que tradicionalmente orientam e dão consistência às diferenciações de remuneração. A importância e o impacto de se mexer na dimensão remuneratória geram, portanto, um grande paradoxo: ao mesmo tempo em que sinaliza para a premência de alinhamento com os outros movimentos em gestão de pessoas – até para que estes se sustentem – serve como um freio para que esse avanço ocorra ou para que as organizações se disponham a introduzir evoluções nas práticas compensatórias. Quando o assunto é remunerar por competências, porém, alguns fatores adicionais têm impulsionado essa resistência: as diversas formas com que esse conceito tem sido operacionalizado nas organizações, podendo-se instituí-lo ou não como parâmetro consistente para suportar decisões em remuneração; a descrença em relação à aproximação entre competências e remuneração, acentuada por algumas experiências de insucesso; preocupações associadas à legislação trabalhista e, sobretudo, a noção de que a introdução da remuneração por competências significa romper com os parâmetros que tradicionalmente suportam a gestão da remuneração, mudando o foco de análise do cargo para a pessoa.

Este capítulo tem como objetivo, portanto, clarificar se, como e em quais condições o conceito de competências pode ser utilizado para subsidiar decisões em compensação. Foco será dado na questão da remuneração fixa, por estar mais alinhada ao conceito de competências explorado neste livro: sua

1 Não estamos, com isso, negando as inúmeras evoluções que os sistemas de remuneração e recompensa

têm apresentado nos últimos anos (sobretudo no que diz respeito à expansão inconteste das práticas de

remuneração variável),

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associação com a entrega ou contribuições definitivas que a pessoa traz ao repertório de conhecimentos da organização. Para isso, exploraremos:

Por que mudar – as limitações e virtudes do modelo funcional de recompensas diante das transformações do ambiente e das organizações;

A importância da evolução do conceito de competências de uma visão de capacidade para entrega como substrato necessário para vinculá-lo à remuneração. Nesta parte, exploraremos algumas falácias presentes no discurso sobre gestão por competências, as quais têm levado organizações a incorrerem em sérios erros no percurso de incorporação desse conceito;

A estruturação de sistemáticas de remuneração por competências e os principais cuidados a serem tomados no seu desenvolvimento e implementação;

A apresentação do caso da Volvo, explorando o processo de amadurecimento da organização no uso do conceito de competências para fins remuneratórios;

Considerações finais, consolidando os principais aprendizados que podemos depreender da análise do caso e da evolução teórica sobre o assunto.

Por que mudar – limitações e virtudes do modelo de recompensas diante das transformações do ambiente e das organizações

Em geral, as empresas e organizações complexas desenvolvem, no curso de sua história, formas específicas de administrar o trabalho humano e obter, por ele, resultados. Criam, assim, seus sistemas de gerir pessoas, intervindo no comportamento dos grupos e dos indivíduos a partir de uma lógica, que é própria de cada organização. Ao longo do tempo, essa lógica se consolida na cultura organizacional, sendo por ela justificada e legitimada. As necessidades e possibilidades das empresas, apoiadas em seu sistema de valores, acabam definindo a configuração que irá tomar o seu modelo de gestão.

O modelo a ser utilizado é decisão crítica para o estabelecimento do sistema de remuneração, assim como a composição da remuneração, a priorização de posições-chave, o mercado de trabalho a ser utilizado como base de comparação, dentre outras questões presentes na definição do sistema de compensação. Este sofre, portanto, influência tanto dos fundamentos e princípios da gestão remuneratória como das escolhas estratégicas da organização, dos objetivos esperados, da filosofia e cultura organizacionais e, fundamentalmente, não pode ser analisado de forma descontextualizada do ambiente no qual a organização se insere.

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Figura 1: Sistema de remuneração: políticas e decisões. Adaptado de Milkovich e Newman (1887)

A decisão do modelo a ser adotado não está associada, portanto, a uma

escolha universal, à existência de uma alternativa “certa” ou “errada”, mas à opção por aquele mais adequado ao conjunto de necessidades da organização, às suas características, cultura, momento histórico, dentre outros fatores. Compreender as características dos modelos existentes, no entanto, é condição necessária para uma escolha adequada. Em função disso, faremos uma breve descrição das características do modelo de remuneração centrado em cargos para, depois, explorarmos a configuração daquele orientado à competências.

Modelos centrados em cargos Os modelos de remuneração centrados em cargos, também conhecidos

como modelos funcionais, tiveram origem na necessidade de se introduzir um método sistematizado para diferenciar a remuneração dos profissionais, à medida que as organizações iam ganhando complexidade (pós-revolução industrial). Como, na origem dos métodos funcionais, a expectativa era de que as pessoas restringissem seu trabalho àquelas atividades previamente descritas no cargo que ocupavam, situação típica de um ambiente de baixa mudança e competitividade, parece natural que a dimensão cargo traduza a contribuição do profissional e, portanto, se constitua em ponto de partida para a definição salarial.

Para a atribuição de valor aos cargos e, conseqüentemente, para cada profissional, pode-se utilizar de uma série de técnicas, com diferentes graus de sofisticação. Elas apresentam-se classificadas na literatura nas categorias “qualitativa” e “quantitativa”, segundo a abordagem que prevalece na identificação dos valores atribuídos.

As técnicas qualitativas baseiam-se em comparações que não envolvem medição. Como expoentes típicos dessa classificação podemos citar a técnica de escalonamento, que consiste na ordenação dos cargos em função de sua complexidade e importância, a partir da comparação sucessiva entre eles, e na posterior atribuição dos salários respeitando este ordenamento, e a técnica das categorias predeterminadas, onde a determinação dos salários é antecedida da

Objetivos Gerais e

Específicos

• Eficiência• Equidade• Atendimento à legislação• Etc.

centrado em cargo

ênfase no fixo

foco no curto prazo

critérios abertos

gestão centralizada

pessoa

longo prazo

fechados

descentralizada

Objetivos Gerais e

Específicosí

• eficiência• eqüidade• atendimento à legislação• etc.eqüidade externa interna

Políticas do

Sistema de

Remuneração

Decisões sobre o

Modelo de

Compensação

X

X

X

X

X

variável

X

fun

dam

ento

s

consistênciainterna

competitividadeexterna

contribuição

individual/ equipes

esco

lhas

est

raté

gic

as

Objetivos Gerais e

Específicos

• Eficiência• Equidade• Atendimento à legislação• Etc.

centrado em cargo

ênfase no fixo

foco no curto prazo

critérios abertos

gestão centralizada

pessoa

longo prazo

fechados

descentralizada

Objetivos Gerais e

Específicosí

• eficiência• eqüidade• atendimento à legislação• etc.eqüidade externa interna

Políticas do

Sistema de

Remuneração

Decisões sobre o

Modelo de

Compensação

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consistênciainterna

competitividadeexterna

contribuição

individual/ equipes

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raté

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alocação do cargo em uma descrição resumida de padrões de complexidade de trabalho.

As técnicas quantitativas, mais sofisticadas, atribuem pontos aos cargos, na medida em que vão sendo avaliados num conjunto de fatores previamente definidos e caracterizados de acordo com níveis crescentes de complexidade/dificuldade. Esses fatores, como por exemplo, o nível de autonomia requerida, o grau de responsabilidade, o grau de estruturação das atividades desempenhadas, dentre outros, variam conforme a natureza do cargo. A avaliação dos cargos, em geral, é realizada por um comitê, sob mediação de profissionais da área de gestão de pessoas. O estabelecimento do salário é função direta da pontuação obtida pelo cargo e calculada com base na aplicação de técnicas estatísticas.

Os defensores das metodologias centradas em cargos – notadamente daquelas quantitativas – ressaltam a “objetividade” do processo, na medida em que se correlacionam estatisticamente os pontos obtidos nas avaliações dos cargos com os salários praticados, na empresa ou no mercado. Entretanto, há que se ressaltar que existe uma forte dose de subjetividade no processo, presente na escolha dos fatores para os quais serão atribuídos valores ou pontos, na valorização (ponderação) desses fatores e na definição do conceito atribuído a cada cargo em cada fator. O processo não se constitui, na verdade, em uma “medida” do valor do cargo, e sim num consenso entre avaliadores ou comitê de avaliação.

De todo modo, as críticas mais contundentes aos sistemas de avaliação baseados em cargos são focadas em dois fatos: o fato de a noção de “cargo” ou posto de trabalho ser um referencial estático/rígido, e por impossibilitar o reconhecimento do ocupante e de suas qualificações/contribuições.

A utilização da noção de “cargo” como elemento-chave da gestão de pessoas remonta o início do século XX, desde o início da administração científica, e teve seu ápice na década de 70 — época de grande estabilidade no ambiente de negócios (Hipólito, 2001). Como já vem sendo recorrente na literatura acerca das organizações, sabe-se que a intensa transformação ocorrida no ambiente empresarial após os anos 70 exigiu das organizações maior capacidade de adaptação a ambientes mutáveis, principalmente pelo surgimento de concorrência em níveis globais. Tais alterações no ambiente de negócios vêm implicando na revisão nos padrões de comportamento e das relações organizacionais. São mudanças de grande impacto, que engendram desafios que vêm questionar a eficácia das práticas tradicionais de gestão de pessoas. Uma atitude “reativa” nessa área ou um descompasso entre a mudança organizacional e os procedimentos de gestão de pessoas podem colocar em risco todos os esforços aplicados para o reposicionamento da organização.

Autores como Lawler (1981, p.34) ressaltam que, nesse novo ambiente de negócios, os sistemas baseados em cargos podem desestimular o aprendizado e o desenvolvimento de novas habilidades e competências, quando estas não são diretamente exigidas para o exercício do trabalho de cada cargo. Além disto, dependendo dos critérios definidos para valorização, pode-se estimular os profissionais a terem mais subordinados ou mais recursos, tirando o foco das reais necessidades organizacionais. Trata-se de uma sistemática que tende, ainda, a valorizar em demasia as posições gerenciais, o que pode ser um problema, sobretudo para organizações que precisam de uma forte atuação de especialistas.

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Observa-se, portanto, que a metodologia centrada em cargos tem se mostrado pouco operante num ambiente mutável, uma vez que suas premissas (ambiente estável) colidem com as novas exigências das organizações sobre as pessoas — atualização constante, flexibilidade e adaptabilidade — tidas como fundamentais para a sobrevivência das organizações. Assim, como alternativa aos sistemas baseados em cargos, surgiram, a partir da década de 70, os sistemas baseados nas habilidades e competências, procurando dirigir seu olhar para as pessoas que ocupam os cargos.

Não podemos, no entanto, deixar de reconhecer as virtudes da reflexão presente na abordagem funcional, ao permitir um olhar estruturado sobre a contribuição das diversas posições para as organizações. Embora os sistemas funcionais sejam elaborados para um ambiente estável, a diversidade entre as organizações que os implementaram propiciou o desenvolvimento de critérios para permitir a comparabilidade entre postos de trabalho em diferentes segmentos de negócios e a identificação de parâmetros estáveis quanto a sua capacidade de traduzir o desenvolvimento e a agregação de valor. Esses parâmetros, presentes nos fatores de avaliação do modelo funcional (ou seja, nos critérios a partir dos quais os cargos são medidos), têm mantido a propriedade de refletir o valor do cargo (ou como veremos adiante, o valor dos profissionais) ou, ao menos, de traduzir o que o mercado de trabalho tem reconhecido nas diferenciações salariais que pratica2. A evolução do conceito de competências, da visão de capacidade para o foco na contribuição, como condição de vínculo à remuneração

Visando ultrapassar as limitações do modelo funcional em ambientes de mudança, apregoa-se, desde a década de 70, a possibilidade de sustentar diferenciações salariais com base nas pessoas e não nos cargos, ou seja, no indivíduo e toda sua potencialidade de aprendizado. Nesse sentido, a análise da pessoa a partir do mapeamento de suas habilidades foi a que conquistou maior espaço, consistindo, segundo Milkovich e Newman (1987:84), em pagar pelo que os profissionais “podem fazer” e não pelo que “estão fazendo”. Procura-se, dessa forma, valorizar o profissional com base em suas capacidades, estimular a aquisição destas e reconhecer a importância da atuação dos indivíduos na configuração de seu trabalho e na obtenção de resultados.

As primeiras experiências nesse sentido foram focadas no nível operacional, com vistas ao reconhecimento da multifuncionalidade. Nesses sistemas, procura-se encorajar o desenvolvimento e aprendizagem de novas habilidades, porém, seu uso tem ficado restrito a grupos específicos de profissionais: recai, sobretudo, àqueles trabalhadores em posições operacionais (onde há uma maior proximidade entre o domínio de habilidades e a contribuição da pessoa para a organização) ou àqueles locados em posições de extrema especialidade em centros avançados de pesquisa e desenvolvimento (situação em que a contribuição desses profissionais para a empresa é difícil de mensurar).

2 Pesquisa realizada por Hipólito (2000) demonstra a força dos parâmetros utilizados para medir cargos

enquanto referencial que explica os níveis remuneratórios praticados pelo mercado. Considerando

organizações de diferentes segmentos na região de Campinas (SP), percebeu-se uma forte relação (com

confiabilidade estatística superior a 99%) entre os salários praticados e a pontuação obtida nesses fatores,

independentemente dos cargos considerados.

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A possibilidade de analisar diretamente a pessoa como forma de equacionar algumas das limitações que o método funcional vinha apresentando, levou alguns autores a sugerirem, a partir da década de 90, a adoção do conceito de competência (que já vinha sendo trabalhado na área de treinamento e desenvolvimento) para remunerar profissionais em posições técnicas, de análise e gerenciais, na esteira das discussões sobre habilidades. (Caudron, 1993; Ledford Jr, 1995). Segundo Ledford (1995 apud Hipólito, 2001:82), competências são um “conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes (isto é, o conjunto de capacidades humanas) que justificam uma alta performance”. Tal definição assume que a competência está lastreada na inteligência e na personalidade da pessoa, e admite a proximidade entre os conceitos de habilidades e competências, diferenciando-os apenas por focarem públicos diferentes (habilidades para posições operacionais e competência para posições de nível superior).

Essa visão do conceito de competências, no entanto, traz consigo uma série de dificuldades, muitas das quais já presentes na idéia de se remunerar por habilidades. Dentre elas, Hipólito (2001:61-62; 86-87), ao resgatar a produção de diversos autores, destaca:

Dificuldade em se estabelecer o valor de cada habilidade tanto para garantir a eqüidade interna quanto o equilíbrio com o mercado;

Tendência a aumentar os valores destinados à folha de pagamento; Aumento no investimento em treinamento e no monitoramento do

desenvolvimento e certificação de habilidades; Dificuldade de gerenciar a expectativa dos profissionais; Estímulo à rotação de posições como forma de aumentar o ganho

individual, não promovendo, necessariamente, aumento na eficiência organizacional;

Dificuldade de atualização da sistemática e complexidade administrativa, sobretudo em situações onde o ritmo de mudanças na organização do trabalho e na tecnologia é acelerado;

Risco de reproduzir a realidade vigente e desenhar uma sistemática focada no passado e no presente, e não no futuro;

Induzir as pessoas a um foco em comportamentos, em vez de em realizações, e a organização a tentar homogeneizar as características de seus profissionais, em contextos onde a diversidade se constitui em elemento determinante da competitividade;

Risco de ação legal (trabalhista).

Portanto, excetuando algumas realidades operacionais muito específicas, a experiência de remuneração por habilidades tem se demonstrado ineficiente, sobretudo por provocar um desbalanceamento entre aquilo que se está pagando e a contrapartida obtida por parte da organização. Por mais que possa parecer “justo” o profissional ser remunerado por suas habilidades, essa lógica desconsidera premissas fundamentais de uma boa gestão remuneratória. Dentre elas, destacam-se a necessidade de se considerar a estratégia e a necessidade organizacionais, as limitações advindas da natureza do negócio e da capacidade financeira da empresa e, sobretudo, o princípio de reconhecer as pessoas na medida de sua contribuição, uma vez que nem sempre a aquisição das habilidades se reverte em desempenho para a empresa. O foco da remuneração, portanto, deve continuar sendo o de

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recompensar resultados obtidos para a organização, mesmo em se tratando de sistemas de reconhecimento com base em competências.

Deve-se considerar, ainda, que o movimento de remunerar por competências como uma transposição do conceito de habilidades acentua os riscos e dificuldades já apresentadas por esses sistemas, uma vez que, para posições onde a atuação é mais abstrata, fica ainda mais difícil identificar os conhecimentos e capacidades que justificariam uma performance diferenciada. A compreensão desta dimensão é importante, pois a referência de que a remuneração por competências tem por foco a pessoa tem induzido a uma percepção enganosa de que ela valoriza o indivíduo por aquilo que ele é, quando, na verdade, ele é valorizado pelo que contribui, e é justamente esta configuração que permite seu alinhamento com os propósitos organizacionais. Com base nessas constatações, o que poderemos utilizar como medidas para remunerar por competências?

Sistemáticas de remuneração por competências e cuidados no seu desenvolvimento e implementação

Para remunerar por competências, deve-se observá-las a partir de sua

manifestação concreta e real, ou seja, mediante a observação dos comportamentos das pessoas e dos resultados obtidos. Para isso, não pode ser usado “qualquer” instrumento de avaliação de competências, mas aquele que está lastreado em aspectos que sinalizem para entregas “definitivas” do profissional, de caráter não-pontual. Essa característica dos critérios é imperiosa para seu sucesso, uma vez que a remuneração fixa apresenta caráter incremental, não podendo, na prática, ser reduzida. Deve, então, estar associada ao desenvolvimento do profissional.

Para medir esse desenvolvimento, sugerimos abordagem similar à explorada pelo prof. Joel Dutra no capítulo sobre carreiras e no capítulo sobre instrumentos de avaliação, a qual articula os conceitos de complexidade de trabalho e espaço ocupacional. O espaço ocupacional consiste das responsabilidades assumidas pela pessoa no contexto de trabalho, resultantes “da interação entre as necessidades organizacionais e a capacidade da pessoa” (Dutra, 2001, p.75). Dutra (2001) constata ainda que, ao assumir atribuições e responsabilidades de maior complexidade, o indivíduo agrega mais valor à organização, condição que, como vimos, é necessária para que se possa sustentar diferenciações em remuneração. Pode-se, então, basear a evolução salarial nos níveis de responsabilidade desempenhados pelos profissionais, desde que organizados de forma a demarcar espaços ocupacionais cada vez mais complexos. A noção de cargo passa, então, a ser elemento secundário na gestão das pessoas e das recompensas, na medida em que o foco recai agora na interação dinâmica entre a pessoa e as necessidades organizacionais.

Um outro aspecto relevante do conceito de espaço ocupacional diz respeito à maior flexibilidade que propicia na gestão de pessoas, já que possibilita descrições que abrangem diferentes tipos de atividades de mesma complexidade, favorecendo a multifuncionalidade e tirando foco da tarefa em si, dando ênfase às contribuições e entregas. Mas como articular esses conceitos de modo a permitir a sustentação de decisões remuneratórias?

A literatura aponta para a possibilidade de se criar gabaritos que definam “o que tem que ser realizado e como tem que ser realizado” (Gross,

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1997) e que permitam o acompanhamento do desenvolvimento dos profissionais, ao lidarem com desafios cada vez mais complexos. Como estamos falando de desenvolvimento, pode-se associar a esses padrões de complexidade ou gabaritos os critérios de progressão nos salários, uma vez que eles traduzem o valor do profissional em função de sua bagagem/conjunto de experiências. Ou seja, as realizações e experiências demonstradas no passado e presente sinalizam para a capacidade de realização futura.

Para que o referencial de competências possa ser utilizado para remuneração propomos, portanto, que se tenha por base uma descrição apoiada em níveis de complexidade de trabalho, os quais devem retratar o desenvolvimento das pessoas. Deve-se, então, ter uma caracterização que traduza a evolução dos profissionais em termos de responsabilidade, grau de estruturação das atividades, autonomia, variabilidade, dentre outros fatores. Conjugando esses dois conceitos (complexidade e competências), teríamos, portanto, uma caracterização suficientemente robusta para sustentar decisões acerca da estrutura remuneratória.

No capítulo sobre avaliação de pessoas, mostramos o que seria uma caracterização de competência com essa formatação. Imaginemos que, dentre as competências escolhidas pela organização como esperadas de seus gestores, figure “orientação para resultados”. Poderíamos descrever a evolução dessa competência de várias maneiras, mas, para que retrate o desenvolvimento, a descrição deveria estar sustentada numa gradação crescente de desafio e complexidade. Dessa forma, no primeiro nível da carreira gerencial — digamos o de um gerente operacional —, a expectativa de contribuição desse profissional para os resultados é de que atinja os objetivos e metas estabelecidas, cumprindo os prazos definidos e utilizando adequadamente os recursos disponíveis. Já para um profissional em nível mais elevado de carreira — como um diretor —, o foco passaria a ser a definição dos objetivos esperados, não para uma área/processo mas para a empresa toda, numa perspectiva de longo prazo. Dessa forma, a lógica de complexidade torna mais concreto o olhar sobre a manifestação da competência, bem como a torna passível de ser associada ao desenvolvimento salarial do profissional. Mas, ao introduzirmos essas variáveis (complexidade, responsabilidades, grau de autonomia, nível de responsabilidade) à caracterização de competências, não estamos retornando o olhar sobre as pessoas para uma série de dimensões já presentes no modelo funcional? O que muda, então? Trata-se apenas de uma nova “roupagem” para o sistema de pontos? De fato, embora se perceba que os sistemas baseados em espaço ocupacional e competências vêm se mostrando como uma alternativa à rigidez dos sistemas tradicionais, baseados em cargos, em uma série de situações (Quadro 1, Dutra, 2001; Gomez- Mejia; Welbourne,1988; Lawler, 1981; Schuster; Ingelheim,2004), devemos admitir que ele se apropria da mesma lógica implícita nos modelos funcionais de remuneração, uma vez que nesses modelos, o cargo é avaliado por fatores como complexidade, responsabilidades, grau de autonomia etc. Por outro lado, algumas diferenças entre um modelo e outro devem também ser ressaltadas (Quadro 2, Dutra, 2001; Gomez- Mejia; Welbourne,1987; Lawler, 1981; Schuster; Ingelheim,2004).

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Quadro 1: Situações em que o modelo de competências se mostra mais eficiente que o funcional

Quando as descrições de cargo mostram-se inadequadas para retratar a expectativa que a organização tem em relação às contribuições esperadas dos profissionais, em função da dinâmica com que estes reconfiguram sua atuação;

Onde há predominância de profissionais de alta especialidade ou onde a atração e retenção de profissionais desse tipo de profissional seja elemento crítico;

Onde se espere alta mobilidade e flexibilidade na atuação dos profissionais;

Onde exista forte necessidade de aprendizado e desenvolvimento de novas habilidades e competências de maneira contínua;

Onde a filosofia de gestão de pessoas é baseada em participação e confiança.

Quadro 2: Características do modelo de competências que o distinguem do funcional

Possibilidade de sinalizar, através das competências, o que a empresa espera das pessoas, a partir de sua estratégia e intento, de forma muito mais evidente do que aquela presente no sistema funcional;

Foco direto na contribuição/responsabilidade e não em atividades. A lógica de complexidade, que no modelo funcional é de conhecimento de poucos (fica muitas vezes restrita aos profissionais de cargos e salários), passa para “a linha de frente” do sistema, tornando mais clara para as pessoas a dinâmica a partir da qual o desenvolvimento – e, conseqüentemente, a progressão salarial – ocorre;

Maior estabilidade nos critérios que balizam a relação da pessoa com a empresa, uma vez que a atuação em padrões de responsabilidade não sofre alterações na mesma intensidade que o foco em atividades.

A transição de um modelo funcional para o foco em competências é complexa, pois envolve lidar de forma mais transparente com os critérios que determinam a valorização das pessoas, e toda dimensão simbólica que essa valorização traz. Além disso, exige uma postura mais atuante dos gestores, tanto no momento de decidirem sobre aqueles profissionais que receberão aumento, baseado em um conjunto de informações que têm sobre o profissional e as necessidades do negócio, quanto para dialogarem sobre os motivos dessas escolhas, os quais envolvem, por natureza, subjetividade.

Evitando uma ruptura mais acentuada com o modelo funcional e com a referência que a estrutura de cargos traz para as pessoas sobre seu posicionamento na organização e sobre sua identidade profissional para o mercado, tem sido comum a adoção de modelos híbridos, que conciliam a lógica de cargos com a de competências. Nesses modelos, o cargo continua sendo parâmetro presente para permitir o “diálogo” entre a estrutura salarial

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interna da empresa e o mercado, para manter a identidade do profissional e para servir de elemento auxiliar diante de questionamentos na justiça do trabalho. Essa associação entre uma metodologia e outra se torna possível (e natural) pelo fato de ambas sustentarem as diferenciações salariais em uma origem comum: a especificação de padrões de complexidade e de responsabilidade. A introdução da dimensão competências, no entanto, vem suprir uma carência muitas vezes presente no modelo funcional, ou seja, determina os critérios a partir dos quais as pessoas caminham na estrutura salarial.

Antes de avançarmos no assunto, vamos analisar o caso da Volvo, uma das empresas pioneiras no uso dos conceitos habilidades e competências para fins remuneratórios. A empresa passou pelos vários estágios de desenvolvimento do conceito, contribuindo para que compreendamos as dificuldades de cada um deles e as soluções que foram sendo obtidas. Mais do que isso, o caso ilustra, de forma contundente, alguns cuidados necessários ao desenho e operacionalização das sistemáticas de remuneração por competências.

O caso da Volvo

A Volvo do Brasil foi uma das organizações pioneiras no uso do conceito

de competências como parâmetro para decisões em remuneração, utilizando-o, desde 1999, para todo o contingente de profissionais. Vale destacar que, desde o início, o conceito de competências foi utilizado com o objetivo de “oferecer às lideranças da empresa referências que subsidiassem as decisões de gestão de pessoas nos diversos processos de recursos humanos”, ou seja, os resultados esperados não se resumiam à dimensão da remuneração, pretendendo subsidiar os gestores nas diversas decisões sobre pessoas. No entanto, o trabalho de concepção e implementação do modelo foi conduzido principalmente pela área de remuneração e, dessa forma, foi visto pela organização como tendo no aspecto recompensas seu principal propósito.

O sistema implementado na ocasião seguiu abordagem em voga na época, ou seja, entendia as competências como uma extensão do conceito de habilidades, só que orientado para o público de nível superior. Alinhava-se, portanto, ao modelo sugerido por Lawler (1981), no qual se especificavam as habilidades/competências exigidas para determinados cargos, caracterizados de forma ampla, e a aquisição ou aumento na proficiência delas é que condicionavam a progressão na faixa salarial. A faixa salarial apresentava-se como ampla (broadbanding), decorrência natural da eliminação das nomenclaturas ‘“júnior”, “pleno” e “sênior” dos cargos, tornando-se crítica a consistência dos critérios de progressão (Figura 2). Além disso, aproveitou-se a ocasião para propor um horizonte maior às carreiras profissionais, as chamadas “carreiras em Y”, estendendo seu teto salarial.

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Figura 2: O modelo de remuneração (broadbanding) adotado pela Volvo*

*Adaptado pelos autores a partir de documentação interna da Volvo.

Como dito, com faixas salariais amplas, os pontos críticos do sistema

passam a ser a legitimidade e a consistência dos critérios para posicionamento dos profissionais na faixa salarial. Na ocasião, adotou-se um modelo em que esse posicionamento era dado em função da pontuação obtida pelo profissional num processo de avaliação que considerava competências genéricas e competências específicas. O peso de cada competência nesses grupamentos poderia variar por posição e, conforme o nível obtido na avaliação, gerava-se certa pontuação. Essa pontuação era remetida a steps (degraus salariais), os quais definiam a remuneração a ser percebida pelo profissional. A Figura 3 a seguir procura ilustrar essa dinâmica.

Analista de cobrança júnior

Analista financeiro júnior

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Figura 3. Dinâmica de funcionamento da sistemática de posicionamento salarial na faixa ampla*

*Adaptado pelos autores a partir de documentação interna da Volvo.

Considerando-se o dinamismo da organização, definiu-se que os

critérios estabelecidos no sistema (as habilidades e competências definidas para os cargos), especialmente aqueles de caráter específico, deveriam ser mantidos atualizados pelos próprios gestores, e a estes cabia também dimensionar as competências necessárias para suas áreas.

Em 2003, fizemos, a convite da Volvo, um diagnóstico da prática remuneratória adotada pela organização, consultando profissionais de gestão de pessoas e, sobretudo, gestores de outras áreas da empresa. Nele, alguns problemas foram apontados, destacando-se:

Foco do sistema na remuneração, levando à não-aplicação do processo avaliativo quando da ausência de verba para aplicar na progressão salarial. Perdia-se, com isso, a oportunidade de se estabelecer um momento de diálogo entre gestor e profissional em torno do desenvolvimento, além de gerar enorme expectativa e pressão em relação ao momento e ao resultados das avaliações;

Percepção de fragilidade dos critérios de alocação das pessoas nas faixas salariais, decorrente, sobretudo, do excesso de subjetividade nos itens de avaliação e do desalinhamento entre

Faixa Salarial

(Amplitude 120% - 12 steps salariais)Cargo X – Nível

Superior

124

1500

1401

4

116

1400

1301

3

108

1300

1201

2

100

1200

1000

1

144

1700

1601

6

134

1600

1501

5

166

1900

1801

8

154

1800

1701

7

192

2100

2001

10

178

2000

1901

9 1211

220205Valor de Referência

em R$ (Tabela Salarial)

23002200Pontos (máximo)

22012101Pontos (mínimo)

Faixa Salarial

(Amplitude 120% - 12 steps salariais)Cargo X – Nível

Superior

124

1500

1401

4

116

1400

1301

3

108

1300

1201

2

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1200

1000

1

144

1700

1601

6

134

1600

1501

5

166

1900

1801

8

154

1800

1701

7

192

2100

2001

10

178

2000

1901

9 1211

220205Valor de Referência

em R$ (Tabela Salarial)

23002200Pontos (máximo)

22012101Pontos (mínimo)

Total1500

pontos

XXXX4Competência E

XXXX2,5Competência D

XXXX2Competência C

XXXX3Competência B

Ge

rica

s

(20

%)

XXX43213

XXXX3Competência A

Es

pe

cífic

as

(80

%)

XXXX3Visão sistêmica

XXXX4Foco no cliente

XXXX5Orientação para resultados

XXXX4Trabalho em equipe

TotalProficiênciaPeso

Cargo X – Nível Superior

co

mp

etê

nc

ias

Total1500

pontos

XXXX4Competência E

XXXX2,5Competência D

XXXX2Competência C

XXXX3Competência B

Ge

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s

(20

%)

XXX43213

XXXX3Competência A

Es

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(80

%)

XXXX3Visão sistêmica

XXXX4Foco no cliente

XXXX5Orientação para resultados

XXXX4Trabalho em equipe

TotalProficiênciaPeso

Cargo X – Nível Superior

co

mp

etê

nc

ias

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os critérios utilizados para a progressão salarial e a lógica de carreira e desenvolvimento;

A complexidade do modelo levava a dificuldade de sinalizar as possibilidades de carreira; de subsidiar decisões; de traduzir a atuação real de alguns profissionais; e de passar uma percepção do todo, isto é, de integrar as várias decisões em gestão de pessoas;

Com o tempo, foi se perdendo a uniformidade dos critérios aplicados na organização, pelo fato de cada gestor atualizar as habilidades/competências a seu modo. Observamos, na ocasião, uma mesma competência possuindo diferentes significados;

Aumento, nos anos antecedentes ao diagnóstico, do número de cargos, uma vez que as descrições de competências/habilidades continuavam a se relacionar com eles. Esse aumento era decorrente da necessidade de se diferenciarem as competências específicas para cada cargo e, às vezes, dentro de um mesmo cargo que atuava em diferentes áreas da organização;

Número excessivo de competências;

Volatilidade das competências, especialmente aquelas calcadas em conhecimentos;

Pressão sobre a massa salarial, uma vez que a aquisição e aplicação de novas competências implicariam em aumento remuneratório. Controlar essa progressão por meio de dimensionamento de necessidades de competências não se demonstrava suficiente.

As dificuldades em relação ao exercício do modelo não se originavam

apenas da sua configuração, mas eram observadas também em função da falta de sincronização entre as diversas ferramentas de avaliação e a ausência de um sistema de informação para facilitar a avaliação em si quanto o processamento e a análise dos dados dele decorrentes. Apesar dos problemas, atribui-se à experiência com o modelo uma série de avanços na gestão de pessoas da Volvo, como:

A possibilidade de se eliminarem algumas barreiras ao desenvolvimento, típicas do modelo funcional;

A introdução de uma cultura de gestão de pessoas voltada para competências e para a visão de negócio;

A revisão do papel dos gestores e da área de recursos humanos, necessária diante dos novos tempos;

A adoção de critérios mais transparentes em gestão de pessoas, com foco no que é aplicado (competência aplicada);

O estímulo ao desenvolvimento profissional e organizacional.

Com o tempo, puderam-se perceber, em algumas áreas da empresa, ações de evolução no uso dos critérios, permitindo sua utilização também para outros processos de gestão de pessoas, de forma integrada (reduzindo o foco em remuneração), e a introdução da lógica de complexidade/responsabilidade nas competências, de maneira similar àquela explorada conceitualmente neste texto. A consciência em relação à necessidade de ajustes no sistema original e a clareza quanto às possibilidades concretas de fazê-lo, advindas da

15

experiência dessas áreas, levou a Volvo a adotar um projeto de revisão dos critérios em 2003. Nele, considerou-se:

Necessidade de reforço em relação ao foco em um “sistema integrado de gestão de pessoas”, reduzindo a ênfase inicialmente dada à remuneração;

Explicitação dos critérios de complexidade como parâmetro presente na caracterização das competências, de modo a utilizá-las como base para se discutir carreira e desenvolvimento;

Organização das funções e competências de acordo com as trajetórias de carreira definidas para a empresa, possibilitando descrições comuns de acordo com a trajetória e uma maior estabilidade nessas descrições;

Clarificação dos horizontes de desenvolvimento conforme as necessidades da organização;

Revisão do conceito dos cargos amplos – modificando-se a amplitude das faixas salariais e clarificando-se as diversas fases de desenvolvimento das pessoas de acordo com os níveis de complexidade do trabalho;

Simplificação do processo de revisão dos critérios, de forma a mantê-lo consistente ao longo do tempo e a reduzir a demanda de tempo sobre os gestores;

Separar, nos critérios, aquilo que é capacidade (input) de competências (com foco na contribuição/output);

Revisão dos cargos e de sua associação com o modelo de competências. Essa associação tornou-se natural quando da incorporação da lógica de complexidade/responsabilidades na descrição das competências (Figura 4);

Adoção de um novo software capaz de subsidiar o processo avaliativo e de gerar com facilidade relatórios e informações para balizarem a tomada de decisão gerencial.

16

Figura 4. Associação entre cargos e níveis de complexidade definidos para a trajetória de carreira operacional

materiais

VImontador

multifuncional II

eletricista

autos IIIajustador III

controlador

materiais VIpintor IV

funileiro

IV

operador

VI

técnico de

usinagem

Vmontador

multifuncional I

eletricista

autos IIajustador II

controlador

materiais V

soldador

Vpintor V

funileiro

IV

operador

V

técnico de

usinagem

IVmontador volante

II

eletricista

autos Iajustador I

controlador

materiais IV

soldador

IVpintor IV

funileiro

IV

operador

IV

técnico de

usinagem

III montador volante Icontrolador

materiais IIIoperador III

soldador

IIIpintor III

operador

IIIpintor

II montador IIcontrolador

materiais IIoperador II operador II

I montador Icontrolador

materiais Ioperador I operador I

cabinesmotores

níveis de

complexidademontagem

O esforço de revisão do sistema de gestão por competências contou

com o apoio de consultoria externa e com a mobilização dos gerentes da organização e da Comissão de Fábrica (representante dos trabalhadores), sob a coordenação dos profissionais de gestão de pessoas. O grande envolvimento da empresa possibilitou incorporar, no processo de revisão, toda a experiência obtida com a prática anterior e, em função disso, direcionar as análises de modo a mitigar as dificuldades encontradas naquele modelo e reforçar seus aspectos positivos. Ao final, foi amplamente divulgado para os profissionais. As principais mudanças efetuadas nessa revisão estão listadas na Tabela 1.

17

Tabela 1. Principais alterações realizadas no modelo de gestão por competências adotado pela Volvo*

Modelo inicialmente adotado (1999) Modelo revisado (2003)

Foco principal na remuneração; Foco na integração de gestão de pessoas – entre seus processos e com o negócio;

Aquisição de conhecimento interferindo em remuneração;

Aquisição de conhecimento não interferindo na remuneração – foco na contribuição;

Faixas salariais largas (broadbanding); Faixas salariais por níveis de complexidade;

Definição de necessidade organizacional (quadro de demanda) por competência;

Definição de necessidade organizacional (quadro de demanda) por eixo de carreira e nível de complexidade;

Visão pontual das áreas; Visão integral da empresa e das oportunidades de desenvolvimento;

Atualização do sistema complexa e demandante;

Simplificação no processo de atualização e gestão do sistema;

Níveis de exigência diferentes para cada competência em função do cargo;

Níveis de exigência nas competências alinhados conforme os níveis de complexidade do trabalho;

Ausência de uniformidade nos critérios entre as áreas;

Uniformização nos critérios entre as áreas;

Rigidez na gestão de pessoas. Respeito às características e contribuições individuais.

*Elaborado pela área de gestão de pessoas da Volvo, para comunicação das alterações efetuadas no sistema de gestão por competências.

Considerações finais

Como apontado por Fischer (1998), não é raro que alterações na prática

de remuneração avancem a passos mais lentos do que os movimentos de modernização observados em outros processos de recursos humanos; o mesmo acontecendo, em geral, quando o assunto é a incorporação do conceito de competências. Embora a evolução tardia do sistema de recompensas justifique-se pelo seu impacto potencial, há que se ter em mente que sua exclusão do debate sobre competências tiraria deste conceito a propriedade de funcionar, de fato, como elemento integrador da gestão de pessoas e articulador entre esta e as necessidades do negócio. Ao se desenvolverem sistemáticas de gestão por competências, deve-se, portanto, antever como se relacionarão com o sistema de valorização de pessoas, mesmo que se pretenda fazer essa associação apenas no futuro.

O resgate teórico realizado neste capítulo e o caso estudado apontam algumas pistas de como essa associação pode ser realizada e de quais cuidados deve-se tomar ao fazê-la. Destacamos:

A importância de dar foco ao desenvolvimento profissional e não à remuneração como principal contribuição esperada da introdução de modelos de gestão por competências. O foco em remuneração pode limitar a potencial contribuição do modelo ao reduzir o olhar da organização somente para essa relação. Ademais, inúmeras variáveis – além das competências – influenciam decisões remuneratórias, como a relevância estratégica da posição em análise, o mercado de trabalho, as características do negócio, a capacidade financeira da organização, dentre outros;

18

Deve-se eliminar a crença de que a inserção do modelo de gestão por competências significa, necessariamente, romper com as premissas que sustentam o modelo funcional de recompensas, por mudar o foco do cargo para a pessoa. Apesar da mudança de foco, para que o modelo de competências possa dialogar com o processo remuneratório, é necessário observar a pessoa pela sua contribuição/agregação de valor e não por aquilo que ela é, pelo seu conjunto de capacidades e conhecimentos. São raras as situações de trabalho nas quais a correspondência entre capacidades e contribuição ocorrem de maneira tão direta, a ponto de poderem ser, isoladamente, relacionadas com remuneração;

Observar os elementos de complexidade de trabalho/responsabilidades como elemento vital na sustentação de diferenciações salariais. Trata-se de uma lógica presente na determinação dos salários desde os métodos tradicionais e, ainda hoje, explica diferenciações praticadas pelo mercado. A ruptura dessa lógica tem sido a causa de inúmeras dificuldades de introdução do conceito de competências para fins remuneratórios. Sua manutenção permite que se estabeleça um diálogo natural entre o modelo de competências, a estrutura de cargos e parâmetros para progressão salarial;

Por fim, vale destacar que a escolha do modelo que organizará a prática remuneratória deve considerar o momento e o processo de evolução pelos quais estão passando as organizações, não existindo aquele mais apropriado a qualquer situação. Tanto as metodologias centradas em cargos quanto as centradas nas pessoas possuem pontos positivos e também imperfeições, se constituindo em desafio, portanto, o estabelecimento de um desenho compatível com as necessidades e características da empresa. As empresas que saíram na frente na adoção de competências para remuneração, como a Volvo, certamente pagaram um ônus pelo pioneirismo, mas levam consigo um aprendizado que as colocam à frente das demais no que diz respeito à reconfiguração de papéis na gestão de pessoas.

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