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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA RENATA DE MORAIS MACHADO LUTO NA CONTEMPORANEIDADE: discursos, prescrições e expertises Rio de Janeiro 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA

RENATA DE MORAIS MACHADO

LUTO NA CONTEMPORANEIDADE:

discursos, prescrições e expertises

Rio de Janeiro

2017

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RENATA DE MORAIS MACHADO

LUTO NA CONTEMPORANEIDADE:

discursos, prescrições e expertises

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

requisito parcial à obtenção do título de Mestre em

Saúde Coletiva.

Orientador: Profª. Drª. Rachel Aisengart Menezes

Rio de Janeiro

2017

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M149

Machado, Renata de Morais.

Luto na contemporaneidade: discursos, prescrições e expertises /

Renata de Morais Machado. – Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de

Estudos em Saúde Coletiva, 2017.

110 f.; 30 cm.

Orientadora: Rachel Aisengart Menezes

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro /

Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-Graduação

em Saúde Coletiva 2017.

Referências: f. 100-105.

1. Morte. 2. Luto. 3. Emoções. I. Menezes, Rachel Aisengart. II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde

Coletiva. III. Título.

CDD 155.937

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FOLHA DE APROVAÇÃO

RENATA DE MORAIS MACHADO

LUTO NA CONTEMPORANEIDADE:

discursos, prescrições e expertises

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

requisito parcial à obtenção do título de Mestre em

Saúde Coletiva.

Aprovada em: __________________

__________________________________________________________

Profa. Dra. Rachel Aisengart Menezes (Orientadora)

PPGSC/IESC/UFRJ

__________________________________________________________

Profa. Dra. Neide Emy Kurokawa e Silva

PPGSC/IESC/UFRJ

__________________________________________________________

Profa. Dra. Cláudia Carneiro da Cunha

IP/UERJ

__________________________________________________________

Profa. Dra. Fernanda de Carvalho Vecchi Alzuguir

IESC/UFRJ

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À minha família,

por todo o incentivo e apoio

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AGRADECIMENTOS

À CAPES pelo financiamento de minha formação acadêmica.

À minha orientadora, Profa. Rachel Aisengart Menezes, pela competência, dedicação,

generosidade e estímulo ao longo desses dois anos de pesquisa e crescimento pessoal.

Às professoras da Banca Examinadora, Cláudia Carneiro da Cunha, Fernanda Vecchi Alzuguir

e Neide Emy Kurokawa e Silva, pela disponibilidade e colaborações valiosas.

Às psicólogas e colaboradoras Mayla Cosmo, Cecilia Rezende e Erika Pallottino, que tanto me

ensinaram sobre um tema tão pesado e apaixonante.

A Roberto Unger, pela contribuição e dedicação inigualável a esta pesquisa.

Às funcionárias da secretaria de pós-graduação, Fátima e Nadja, pela atenção e paciência que

tornam os meios burocráticos mais humanos.

Aos colegas Priscila Cassemiro, Carolina Peres, Angela Speroni, Amanda Vargas, Cassiano

Dezotti, Polyana Loureiro, Nathalia Ramos, Priscylla Knopp-Riani e Daniel Azevedo pela

amizade e companheirismo nesses dois anos de trajetória.

À Cecilia Athias pelo incentivo, companheirismo, paciência e afeto inestimáveis.

À minha mãe, Andrea e minha irmã, Fernanda, pelo apoio e comemoração a cada etapa

conquistada.

Aos amigos Diego, Henrique, João Pedro, Renata, Marianna, Guilherme, Aryane, Iraman, pela

torcida e compreensão pela ausência na reta final.

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Por mais que a gente se prepare para perder, e

eu me prepare há muitos anos, a morte é um

buraco (…). Percebo que envelhecer e perder

é andar por aí com o corpo esburacado pelos

olhares que a gente já não tem. Passamos a

ser carregadores de ausências.

Eliane Brum

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RESUMO

MACHADO, Renata de Morais. Luto na contemporaneidade: discursos, prescrições e

expertises. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde

Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

A análise das formulações acerca dos processos saúde-doença, morte e luto evidencia

transformações social e culturais, ocorridas em determinado contexto histórico. Com o

processo de secularização, ocorreu uma perda de sentido do sofrimento associado à

transcendência, nas sociedades ocidentais. A ênfase no presente, a busca contínua de prazer e o

exercício do livre-arbítrio se tornam referências centrais. Neste contexto, movimentos sociais e

da classe médica afirmam o direito do doente a não sofrer. O sofrimento, se não evitado, deve

ter a menor duração e intensidade possível. É neste sentido que as propostas de atenção sobre o

luto se inserem. Pelo fato de o luto constituir um processo em que o sofrimento é inerente, ele

deve ser compreendido, cuidado e, na medida do possível, elaborado, amenizado ou, até,

evitado. Manuais destinados a profissionais de saúde abordam o tema sugerindo a superação

do luto independente da perspectiva teórica adotada. É delimitada uma duração, referente ao

que seria uma vivência normal ou patológica do luto, assim como são elaboradas prescrições,

sejam elas preventivas ou curativas. Manuais e livros-texto, nacionais e internacionais, com

caráter prescritivo, destinados a profissionais de saúde, configuram-se como objeto de análise

nesta pesquisa, uma vez que tais formulações refletem o contexto sociocultural. Na gestão

contemporânea do processo de morrer, profissionais de saúde buscam promover uma aceitação

social da morte e preparação para o luto, para todos os atores sociais envolvidos nos cuidados

no final da vida. O conceito de ‘luto antecipatório’ é cunhado por profissionais da área ‘psi’,

em referência ao luto vivido quando a morte é iminente. Este conceito se insere nas práticas

profissionais, de modo a garantir uma vivência considerada normal, evitando um “luto

patológico”. A proliferação de pesquisas e de propostas terapêuticas sobre o luto evidencia-se

pela recente publicação de manuais específicos sobre o tema a partir do século XXI. Afinal, o

que o luto representa na cultura ocidental contemporânea, de modo a se encontrar cercado da

atenção dos profissionais de saúde que objetivam sua superação? Frente ao risco de o processo

de luto se tornar patológico, os saberes ‘psi’ não promoveriam um controle e/ou

autorregulação das emoções no sentido de uma normatização deste evento? A partir da análise

documental de manuais e livros-texto direcionados para profissionais de saúde, esta pesquisa

objetiva apreender e analisar as teorias acerca do luto na contemporaneidade, que

fundamentam as prescrições terapêuticas a ele referidas. Na medida em que saberes e práticas

institucionais são reconfigurados, com uma oferta de modelos de elaboração de perdas, com

possibilidade de “experts da conduta humana”, novas subjetividades e (in)sensibilidades são

produzidas socialmente.

Palavras-chave: Vida/morte. Pesar. Emoções. Superação.

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ABSTRACT

MACHADO, Renata de Morais. Luto na contemporaneidade: discursos, prescrições e

expertises. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde

Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

The analysis of the statements regarding the processes of illness and health, death and grief

indicates social and cultural transformations which took place in a particular historical context.

Along with the process of secularization, there was a loss of the meaning of suffering

associated to transcendence in eastern societies. The emphasis on the present, the ceaseless

search for pleasure and the use of free will become central ideas. In this context, social and

medical movements affirm the ill’s right of not suffering. The suffering, unless avoided, must

have the smallest intensity and duration as possible. It is in this direction which are inserted the

proposals of attention to grief. Since the grief holds inherent suffering it should be understood,

taken care of and, as far as possible, elaborated, softened or even avoided. Manuals addressed

to health professionals approach the theme suggesting the overcoming of the grief regardless

the theoretical perspective. A duration is settled according to what would be a normal or

pathological experience of grief, as well as prescriptions, being them preventive or healing.

Manuals and textbooks, national and international, of prescriptive manner addressed to health

professionals are the object of analysis of this research, since they reflect the social and

cultural context. In the contemporary management of the dying process, health professionals

seek death’s social acceptance and also the preparation for the process of grief for all the social

actors involved in the care of the ending of life. The concept of “anticipatory grief” is coined

by professionals of the ‘psy’ disciplines referring to the grief which is experienced when death

is imminent. This concept is inserted in professional practices so as to ensure a normal

experience avoiding a “pathological grief”. The upcoming publishing of specific manuals

about the theme reveals the proliferation of researches and therapeutic proposals as of the

twenty-first century. Afterall, what does grief represent in the eastern contemporary culture in

order to be surrounded of the health professionals’ attention which aims to its overcoming?

Facing the risk of the grief process becoming pathological, wouldn’t the ‘psy’ disciplines

promote a control and/or a self-regulation of emotions in the sense of standardizing this event?

From the documental analysis of manuals and textbooks addressed to health professionals, this

research aims to seize and analyze the theories regarding grief in contemporaneity which found

the therapeutic prescriptions referred to it. As far as studies and institutional practices are

rebuilt with an offer of models of elaboration of losses and with the possibility of “experts of

the human relations”, new personhoods and (in)sensibilities are socially produced.

Keywords: Monograph. Life/death. Grief. Emotions. Overcoming.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AHP Academy of Hospice Physicians

ANCP Academia Nacional de Cuidados Paliativos

BVS Biblioteca Virtual em Saúde

CID Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com

a Saúde

CTI Centro de Tratamento Intensivo

DeCS Descritores em Ciências da Saúde

DSM Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais

DSM-IV Manual de Diagnóstico e Estatística 4ª. Edição

DSM-V Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais 5ª. edição

FFGT Family Focused Grief Therapy

FTPC “Fora de possibilidades terapêuticas de cura”

IAHPC International Association for Hospice and Palliative Care

IHIC International Hospice Institute and College

INCA Instituto Nacional do Câncer

PUC-Rio Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

SBGG Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia

SECPAL Sociedade Espanhola de Cuidados Paliativos

TEPT Transtorno de Estresse Pós-Traumático

UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

UTI Unidade de Tratamento Intensivo

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10

2 CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA ............................................................ 16

2.1 GESTÃO CONTEMPORÂNEA DO PROCESSO DO MORRER ................................. 16

2.2 O LUTO NA CONTEMPORANEIDADE ..................................................................... 26

3 OBJETIVOS ................................................................................................................... 30

3.1 OBJETIVO GERAL ...................................................................................................... 30

3.2 OBJETIVOS SECUNDÁRIOS ...................................................................................... 30

4 METODOLOGIA ........................................................................................................... 31

4.1 ESCOLHA DA METODOLOGIA ................................................................................. 31

4.2 ANÁLISE DOCUMENTAL .......................................................................................... 31

4.3 BUSCA E SELEÇÃO DE ARTIGOS ............................................................................ 33

5 DESCRIÇÃO DO MATERIAL...................................................................................... 35

5.1 LUTO: DEFINIÇÃO E REFERENCIAIS TEÓRICOS .................................................. 45

5.2 LUTO: FATORES DE RISCO E INTERVENÇÕES PROFISSIONAIS ........................ 61

6 O LUTO NA SOCIEDADE OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA ............................... 72

6.1 SECULARIZAÇÃO, PSICOLOGIZAÇÃO E PSIQUIATRIZAÇÃO ............................ 72

6.2 SOFRIMENTO COMO RISCO: UMA SOCIEDADE DO DESEMPENHO .................. 86

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 93

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 99

ANEXOS .......................................................................................................................... 105

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1 INTRODUÇÃO

A inspiração para esta pesquisa surgiu a partir de minha experiência profissional e

acadêmica. Ainda durante o processo de formação em Psicologia na Universidade Federal do

Rio de Janeiro (UFRJ), meus interesses se direcionaram para as áreas de pesquisa e da clínica,

quando, pela primeira vez, me deparei com os conflitos e dilemas associados à passagem da

teoria à prática. Dois anos após a conclusão da graduação, em 2013, ingressei em um curso de

especialização em Psicologia da Saúde na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(PUC-Rio), quando tive a oportunidade de estagiar como psicóloga em um Centro de Terapia

Intensiva (CTI) de um hospital privado da cidade do Rio de Janeiro. Neste contexto, a maioria

dos pacientes que acompanhava era acometida por doenças crônicas degenerativas1. Eram

doentes que conviviam ou começavam a conviver com alguma limitação física em decorrência

de doença crônica e que, devido a um agravamento, encontravam-se internados, para

restabelecimento de um equilíbrio, ou para receber cuidados ao fim da vida em ambiente

hospitalar.

Nos atendimentos aos enfermos e seus familiares identifiquei minhas dificuldades em me

posicionar como profissional supostamente detentora de um saber especializado sobre os

processos saúde-doença, o morrer e o luto. Afinal, com qual finalidade são formulados saberes

que delimitam um tempo e uma forma de expressão de sentimentos considerados ‘normais’,

em relação ao sofrimento decorrente da perda de um familiar? Até que ponto deveria aplicar

propostas diretivas, nos diferentes e particulares casos por mim acompanhados? A bibliografia

referenciada na especialização em Psicologia da Saúde indica, por exemplo, concepções de

pacientes com comportamentos considerados problemáticos, sugestões de manejo (BOTEGA,

2012) e meios de mensurar a dor (STRAUB, 2014). O trabalho do psicólogo que objetiva uma

resolução deste tipo de situação atende aos interesses dos enfermos e/ou da instituição

hospitalar?

A análise das formulações científicas acerca dos processos saúde-doença, morte e luto

evidencia as transformações culturais ocorridas em determinado contexto. Na sociedade

1 Segundo Burlá e Azevedo (2013, p. 1728), entende-se por doenças crônico-degenerativas “aquelas de curso

evolutivo e incapacitante, que não são passíveis de cura, porém podem ser controladas (...). As doenças crônico-

degenerativas podem acometer pessoas de todas as faixas etárias, porém o envelhecimento é o maior fator de

risco para sua ocorrência, aliado à comorbidade”.

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ocidental contemporânea, marcada por seu caráter hedonista, os significados de sofrimento – e

os sentimentos articulados a essa categoria – são transformados (MENEZES; VENTURA,

2013, p. 224). A partir do processo de secularização da sociedade, a ênfase no sofrimento

vivido em vida, como garantia de salvação no juízo final, perde sentido. O sofrimento deixa de

ter o sentido de via de acesso à vida eterna, não mais cumprindo uma “função social2”. Nesse

processo, o foco não mais incide sobre a transcendência, mas recai sobre a existência terrena.

Trata-se então de uma exaltação na preeminência do tempo presente, com uma busca de prazer

– intenso e imediato. Nesse processo de secularização, ocorre uma ênfase na legitimação da

vontade (livre arbítrio) do indivíduo. Deste modo, o sofrimento, se não evitado, deve ter a

menor duração e intensidade possível, a fim de manter ao máximo uma funcionalidade

‘normal’ e adequada daquele indivíduo. É neste contexto que se afirma a defesa pelo direito do

doente a não sofrer, por parte da classe médica e da sociedade em geral. É neste sentido que as

propostas de construção de uma “boa morte” e um cuidado sobre o luto3estão inseridas. Pelo

fato de o luto constituir um processo em que o sofrimento é inerente, ele deve ser

compreendido, cuidado e, na medida do possível, elaborado e amenizado ou, até, evitado.

Na gestão contemporânea4 do processo do morrer, profissionais de saúde buscam uma

preparação para o luto na proximidade de uma perda, e aceitação da morte, por todos os atores

sociais envolvidos. Nesta elaboração, de acordo com os pressupostos teóricos formulados

acerca do processo de morrer, os sujeitos poderiam absorver a realidade da perda

gradualmente, resolver questões sociais, legais e afetivas relativas ao doente e produzir

transformações nas configurações familiares. Viver-se-ia a experiência de um “luto

antecipatório”, termo cunhado pelos profissionais para se referir ao luto vivido enquanto a

morte ainda não ocorreu, mas é iminente. A atenção ao “luto antecipatório” se insere nas

2A ideia de “função social” do sofrimento está associada à noção vinculada ao dolorismo cristão, em que o

sofrimento em vida era justificado como meio de acesso ao Paraíso. A partir da secularização da sociedade, esta

“função social” perde sentido – o sofrimento deve ser evitado e a vida terrena passa a ser caracterizada pela

busca contínua do prazer. Esta e outras ideias associadas à noção de secularização da sociedade serão abordadas

com mais detalhes mais adiante nesta dissertação. 3A partir do advento da Psicanálise, o luto passa a ser objeto de reflexão e atenção. Freud (2006, p. 249) define

luto como “a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente

querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”. O luto, portanto, seria uma reação

intrapsíquica normal subsequente a uma perda, opondo-se à melancolia, que se refere a uma disposição

patológica. 4Por gestão contemporânea do processo de morrer entende-se os saberes e práticas característicos do século XXI

referentes a este evento, influenciados pela ideologia dos Cuidados Paliativos e pelo esforço de “humanização”

do morrer. Este processo e os conceitos a ele relacionados serão descritos com mais detalhes adiante nesta

dissertação.

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práticas profissionais, de modo a garantir uma vivência de luto considerada normal, evitando o

desenvolvimento na direção de um “luto patológico”. A partir da noção presente na sociedade

ocidental contemporânea de que, quando não evitado, o sofrimento deve ser o menor possível,

são formulados saberes e práticas sobre o que seria um luto ‘normal’ e um luto ‘patológico’.

Esta pesquisa parte da constatação da elaboração do que seria um luto normal, no

Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais, o DSM, elaborado pela

Associação Americana de Psiquiatria, evidenciando uma construção teórica em torno da

experiência subjetiva do luto. O DSM-IV, formulado e publicado em 2000, se refere ao luto

como diagnóstico diferencial do Episódio Depressivo Maior5, princípio organizador para

classificação de transtornos do humor. Por compartilhar características com este episódio de

alteração de humor, o Manual (2002, p. 252) explicita que, “se os sintomas começaram dentro

do período de dois meses após a perda de um ente querido, e não persistirem para além desses

dois meses, são geralmente considerados como resultante do luto”. Assim, destaca a duração e

expressão do luto ‘normal’, ainda que admitindo variações culturais. Caso os sintomas

permaneçam dois meses após a perda, deve ser considerada a caracterização de um Episódio

Depressivo Maior.

No DSM-V publicado em 2013, o luto permanece como diagnóstico diferencial do

Episódio Depressivo Maior, porém a duração normal considerada é de doze meses. Além desta

distinção, observa-se nesta edição a formulação do Transtorno do Luto Complexo Persistente,

inserido no tópico “Condições para estudos posteriores”. Apesar de ainda não ser categorizado

como diagnóstico oficial, o Manual propõe o conceito de luto patológico, que se distingue do

normal pelo tempo de vivência: patológico é o luto que persiste com severidade para além dos

12 meses que sucedem o falecimento.

O luto é posto em discurso a partir do momento em que os saberes psi (seja a Psicologia

ou a Psiquiatria, num segundo momento) buscam enquadrá-lo em definições, sinais, sintomas e

intervenções cabíveis. Guias e manuais – internacionais e nacionais – são organizados, por

autores ou instituições especializadas, para orientar profissionais no acompanhamento a

5A característica essencial para a atribuição deste diagnóstico é apresentar humor depressivo ou perda de

interesse por um período de, pelo menos, duas semanas. Além disso, o sujeito deve apresentar pelo menos quatro

sintomas adicionais de uma lista apresentada no Manual, que inclui alterações comportamentais (apetite e sono,

por exemplo) e emocionais, como sentimento de desvalorização pessoal.

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pessoas enlutadas. Estas obras contêm afirmativas sobre o que esperar do processo do luto6,

quais sentimentos, sensações físicas, cognições e comportamentos, e como intervir. Estas

produções acadêmicas indicam que, com auxílio de intervenção profissional, os familiares

podem se preparar para a perda e, em seguida, para sua superação.

A partir da aproximação com este objeto de pesquisa, chamou atenção a expressiva

oferta de cursos de especialização7 e grupos de discussão sobre o luto

8. A divulgação em sites

evidencia a ideia de que falar sobre a experiência da perda, seja com profissionais

especializados, ou em grupo de pessoas que vivenciaram situações semelhantes, propiciaria

uma possibilidade de uma trajetória saudável no processo de luto. Deste modo, para uma

elaboração passível de qualificação no espectro da normalidade, seria necessário um

compartilhamento da experiência íntima do sofrimento em ambiente público e, ao mesmo

tempo, controlado9. A troca de experiências torna o tema público, que começa a ilustrar

produções culturais, como filmes, e a literatura, como no caso do livro bestseller “O ano do

pensamento mágico” de Joan Didion, além de produções dirigidas a profissionais.

Parto aqui do princípio de que os saberes “psi”10

e a biomedicina11

objetivam responder

questões estabelecidas em dado contexto histórico, social e cultural. Uma vez formuladas, tais

construções científicas acarretam transformações da e na sociedade, bem como nas

subjetividades, de modo a gerar novas demandas sociais. Quais seriam os constructos teóricos

e prescritivos referentes ao luto na sociedade ocidental contemporânea? O quê esses discursos

e prescrições produzem, em termos de mudanças nas subjetividades? Qualquer vivência de

luto deve contar com acompanhamento profissional? Quais situações e/ou ‘sintomas’ de luto

6Para maiores informações ver capítulo da Genezini (2012), no Manual de Cuidados Paliativos, da Academia

Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). 7Como exemplo, ver site “Instituto Entrelaços” (http://www.institutoentrelacos.com) ou Anexo A. 8Como exemplo, ver site “Mãe sem nome” (http://www.maessemnome.com.br) ou Anexo B. 9Para exemplos de depoimentos sobre o benefício de compartilhar sobre o luto ver links

(https://estilo.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2015/08/25/anne-ficou-nove-anos-de-luto-e-precisou-

de-tratamento-especial-para-superar.htm e http://vamosfalarsobreoluto.com.br/2016/07/21/251-dias-sem-voce/)

ou Anexo C e Anexo D. 10 Os saberes “psi” englobam a Psiquiatria, a Psicologia e a Psicanálise, sendo os dois primeiros “profissões oficialmente reconhecidas e controladas pelo Estado, que exigem um diploma específico para seu exercício”

(RUSSO, 2002, p. 8), enquanto a Psicanálise é um ofício “extra-oficial”, transmitida de forma artesanal por

“iniciados”. 11Segundo Camargo Jr. (2003, p. 101), Biomedicina é uma racionalidade médica vinculada ao conhecimento

produzido no campo da Biologia, composto por cinco elementos teóricos fundamentais: morfologia, fisiologia,

sistema de diagnósticos, sistema de intervenções terapêuticas e uma doutrina médica. Esta racionalidade pode ser

delineada em três proposições: caráter generalizante (discursos com validade universal), caráter mecanicista

(modelos tendem a naturalizar máquinas produzidas pela tecnologia humana) e caráter analítico (o

funcionamento do todo é necessariamente dado pela soma das partes).

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seriam patológicos? Esta pesquisa tem a finalidade de apreender e analisar as formulações

teóricas referentes à proposta de intervenção em torno do luto na contemporaneidade. A partir

de análise socioantropológica sobre o luto objetivo apreender como ele passa a constituir

objeto de um saber específico, a partir da divulgação de ideais do processo do morrer, com

base no ideário paliativista. A análise faz-se necessária, uma vez que tais prescrições

terapêuticas acerca do luto, que orientam profissionais de saúde, desencadeiam novos

discursos, novas categorias profissionais e novas propostas de intervenção, por estes “experts

da conduta humana12

”.

Este estudo se insere no campo de investigações da Saúde Coletiva, especificamente na

área de Ciências Humanas e Sociais. A perspectiva teórica desta pesquisa baseia-se na

Antropologia da Saúde e na Antropologia das Emoções, que constitui um eixo de discussão

acerca da gestão das emoções dos sujeitos enlutados, a partir da construção de teorias e

práticas sobre o luto proporcionadas pelos saberes ‘psi’.

Com o objetivo de desenvolver o exame do campo criado e legitimado de discursos e de

construções de sensibilidades acerca do luto, esta dissertação está organizada em cinco

capítulos, além das considerações finais. O primeiro se refere às transformações do processo

do morrer nas sociedades ocidentais contemporâneas, influenciado pelas tecnologias

biomédicas e pela recente expansão e valorização da ideologia dos Cuidados Paliativos. A

partir deste cenário apresento a hipótese de que a evidência das características da “boa morte”

na cultura ocidental contemporânea provoca transformações na gestão do processo de luto. O

segundo capítulo contém os objetivos que nortearam esta pesquisa. O terceiro capítulo destina-

se à explicitação da metodologia empregada: análise documental. Neste capítulo apresento a

justificativa da escolha por esta metodologia, seu embasamento teórico e o processo de seleção

de artigos realizado em um momento prévio à entrada no campo. No quarto capítulo apresento

os dados coletados no campo de pesquisa: as construções teóricas e as práticas sobre o luto,

legitimadas pelos saberes ‘psi’. Explicito e justifico a escolha de cada manual selecionado e,

então, exponho o campo do saber ‘psi’ sobre o luto, a partir das principais construções que o

constituem: as definições de tipos de luto, os principais modelos teóricos que norteiam as

12Por “experts da conduta humana” entendo, em concordância com Rose (2011), as ciências humanas – e, neste

caso, os saberes ‘psi’ especificamente – não apenas como um campo de teorias e explicações abstratas, mas

como “parte da história dos modos pelos quais os seres humanos têm regulado os outros e a si mesmos à luz de

certos jogos de verdade” (p. 25). Neste sentido, considera-se que a história dos saberes ‘psi’ está intrinsecamente

vinculada à história do governo, no sentido foucaultiano. Esta questão será desenvolvida no quinto capítulo.

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práticas contemporâneas em torno do luto, a construção teórica que classifica o luto como um

risco ao indivíduo, e as propostas de intervenções profissionais. No quinto capítulo é

desenvolvida uma análise do luto na contemporaneidade, enquanto efeito e consequência dos

processos de secularização, psicologização e psiquiatrização da sociedade ocidental

contemporânea, e sua consequente categorização como potencial situação de risco de ordem

física, emocional e social. Por fim, as considerações finais contêm reflexões sobre os processos

sociais que desencadearam a forma de gestão do luto na cultura ocidental contemporânea,

produzindo novas sensibilidades e expertises.

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2 CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA

2.1 GESTÃO CONTEMPORÂNEA DO PROCESSO DO MORRER

A morte não é apenas um fato biológico, mas um fenômeno que sofre alterações, de

acordo com o momento histórico e o contexto sociocultural (MENEZES, 2004, p. 24). Este

tema, que integrava os primeiros estudos etnológicos, recebeu maior atenção como objeto de

estudo das ciências sociais no início do século XX, ganhando força a partir da década de 1960.

Pesquisas realizadas (ARIÈS, 2012; ELIAS, 2001; ADAM; HERZLICH, 2001; MENEZES,

2004) por sociólogos, antropólogos e historiadores apontam significativas mudanças nas

práticas e representações relativas à morte e ao morrer.

O modo como os indivíduos lidam com o processo de morrer está inserido no campo

simbólico da vida humana. Seus elementos contêm significados que refletem as formas como

os grupos e as culturas vivem e relacionam-se, suas crenças e valores, relações com os corpos

e os cuidados referentes a eles. Philippe Ariès (2012) formula a ideia de diferentes modelos de

morte, de acordo com as atitudes sociais frente a este evento, em momentos históricos

distintos. Este autor distingue o modelo de morte “tradicional” e o modelo de morte

“moderna”. No modelo de morte “moderna”, os cuidados aos doentes são institucionalizados e

rotinizados, pela instituição e saber biomédicos – assim, a morte ocorre apesar dos

investimentos médicos – com um processo de ocultamento e exclusão social de quem está em

processo do morrer. Este modelo foi formulado em contraste ao modelo denominado

“tradicional”, característico dos séculos anteriores ao XIX, quando a morte era ritualizada,

comunitária e, portanto, socialmente aceita.

Na constituição da sociedade ocidental moderna, em um longo processo histórico, os

hospitais tornaram-se centro de referência na assistência à saúde, à doença e à morte. Em “O

nascimento do hospital”, Foucault (2014) aborda como o hospital passou a se configurar como

instituição terapêutica, deslocando os cuidados dos doentes e a atenção ao processo de morte,

dos religiosos para os médicos. No final do século XVIII, a construção da racionalidade

anatomoclínica – que inaugura a medicina ocidental moderna – e a introdução de mecanismos

disciplinares foram responsáveis pela estruturação de um saber, com suas propostas de

intervenção curativa, que conduziram à organização do hospital da forma como é atualmente

conhecido. Menezes (2004) afirma que a consolidação da instituição hospitalar – medicamente

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17

administrada e controlada – iniciou um processo de ‘medicalização do social’, em que “[a]

medicina, seu saber e sua instituição tornam-se referências centrais no que se refere à saúde,

vida, sofrimento e morte” (p. 28).

Ao longo do século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, foi

desenvolvida uma prática médica padronizada e tecnologizada. Novas técnicas e tecnologias

médicas, como a reanimação, alimentação e respiração artificiais, viabilizaram a possibilidade

de prolongamento do tempo de vida. Esta medicina tecnologizada tem sua expressão máxima

nos Centros ou Unidades de Tratamento Intensivo. Este setor hospitalar surgiu entre 1946 e

1948, nos Estados Unidos, no tratamento de doentes (em sua maioria crianças) com

poliomielite e com o uso dos respiradores artificiais, para a manutenção de suas vidas. No final

da década de 60 do século XX, pesquisadores ingleses e americanos demonstraram que

pacientes graves têm problemas fisiopatológicos comuns, demandando uma série de cuidados

e tecnologias específicas para suprir funções corporais deficientes. Deste modo, foi necessário

o desenvolvimento de equipamentos e terapêuticas e sua devida organização para concretizar

esta unidade de tratamento13

. A UTI tem o objetivo de concentrar os doentes mais graves, o

equipamento técnico mais caro e sofisticado e a equipe com conhecimento e experiência

específica para manipular tais doentes e aparelhos tecnológicos (MENEZES, 2006, p. 30).

Com o emprego de tecnologia médica para a manutenção da vida, especialmente com o

advento do respirador artificial, a morte deixa de ser um fato pontual, transformando-se em um

processo prolongado, vivido em etapas. Tanto o processo do morrer como o próprio conceito

de morte sofrem transformações com o uso de técnicas de manutenção da vida. O fenômeno da

morte torna-se mais complexo, pois com o uso do respirador artificial a referência deixa de ser

a parada cardiorrespiratória, e passa a ser o funcionamento cerebral – é construído o conceito e

diagnóstico de morte cerebral.

Com a mudança do cenário da morte, antes vivida na comunidade, para os hospitais, este

fenômeno torna-se alvo da ação e da eficácia técnica da medicina. Assim, torna-se

inconveniente morrer em casa. A morte é monitorizada e controlada, para que possa ser

13A UTI foi idealizada por Florence Nightingale, enfermeira italiana que exerceu sua carreira na Inglaterra. No

século XIX, durante a Guerra da Crimeia, preocupada com a alta taxa de mortalidade, Florence se baseia no

modelo biomédico para organizar os soldados de acordo com a gravidade de cada caso. Seu esforço resultou em

significativos resultados, estabelecendo diretrizes para a enfermagem moderna e para a organização da UTI.

Disponível em: http://www.florence-nightingale.co.uk/resources/biography/?v=19d3326f3137. Último acesso

em:18 de fevereiro de 2017.

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evitada ao máximo. Na medida em que os cuidados são rotinizados, a assistência se caracteriza

como impessoal, mecânica e asséptica. É neste sentido que se orientam as críticas ao modelo

de “morte moderna”, julgando-o como um processo de desumanização, assujeitamento ou

objetificação do doente (MENEZES, 2004, p. 32).

Na década de 1970, com o crescimento de uma população com doenças crônicas

degenerativas, movimentos sociais de caráter antimédico criticam a situação de “perda de

autonomia” dos pacientes devido aos excessos de poder médico, com práticas racionalizadas e

automatizadas que objetivam a sobrevivência, acima de qualquer custo. Nos Estados Unidos,

emerge um discurso pelos direitos dos doentes, com propostas que abrangem desde o direito de

“morrer bem”, com “dignidade”, até reivindicações pela regulamentação da eutanásia.

Evidencia-se então a inserção do tema da saúde no conjunto dos direitos humanos.

Na Inglaterra, a filosofia hospice14

, criada por Cicely Saunders, enfermeira, assistente

social e médica inglesa, postula uma assistência baseada na preservação da autonomia do

doente, no controle dos sintomas e respeito aos desejos dos enfermos. Nos Estados Unidos, a

partir de críticas aos excessos de poder médico, o movimento inicial pelos Cuidados Paliativos

teve origem em organizações populares, dirigidas por voluntários e enfermeiras, com caráter

antimédico (MENEZES, 2004, p. 54). Com a adesão da classe médica ao movimento,

configura-se um novo campo de saber, com novos conhecimentos e competências técnicas,

que fornecem aos Cuidados Paliativos legitimidade social.

A ideologia dos Cuidados Paliativos propõe um novo modo de prática em relação à

morte, com uma assistência ativa e integral aos pacientes cuja doença não responde mais ao

tratamento curativo. Entende-se que, neste estágio, o paciente categorizado como “fora de

possibilidades terapêuticas de cura” (FPTC) pode ter seu sofrimento associado a diversas

origens, referentes à sua “totalidade” ‘bio-psico-social-espiritual’. É sob este prisma que as

intervenções dos paliativistas devem atuar para garantir um processo de morrer capaz de

produzir uma “boa morte”, com “qualidade de vida”. As intervenções profissionais não se

direcionariam mais à manutenção e prolongamento da vida a todo custo, mas aos desejos e

vontades do enfermo, oferecendo conforto e autonomia. Para tanto, é necessário envolvimento

de uma equipe multiprofissional, alinhada no mesmo propósito, composta por médicos,

enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais e outras categorias

14St. Christopher Hospice, fundado em 1967 em Londres, foi o primeiro hospice inaugurado e reconhecido como

instituição de assistência, ensino e pesquisa no cuidado de “pacientes terminais” e seus familiares.

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profissionais, criadas na implantação dos Cuidados Paliativos enquanto novo campo de saber

específico, como, por exemplo, assistente espiritual, “midwifes for the dying15

”, entre outras.

A morte é colocada em discurso, tanto no meio profissional como na sociedade em geral. O

pressuposto central dos Cuidados Paliativos é que, permitindo “autonomia” e “independência”

do paciente, seria possível garantir “qualidade de vida” até o final de sua vida. Para atingir este

objetivo, os paliativistas têm como referência o conceito de “dor total”, cunhado por Saunders,

que é um tipo de dor complexo, abrangendo aspectos físicos, mentais, sociais e espirituais.

Para que o suporte ao doente seja pleno é preciso, portanto, uma atenção e ação de uma equipe

interdisciplinar e multiprofissional. Diante da proposta paliativista de cuidado sobre a

totalidade do indivíduo, Menezes (2003, p. 141), formula a hipótese de que o modelo de

“morte contemporânea” consiste em uma busca de acesso a uma totalidade perdida na

fragmentação da identidade individual, no modelo de morte moderna.

De acordo com o ideário paliativista, a meta da assistência é propiciar a produção de uma

“boa morte”, a partir da expressão dos desejos do doente. Para tanto, é fundamental que ele

efetue escolhas terapêuticas e referentes ao final de sua vida, a partir das informações sobre as

possibilidades terapêuticas, transmitidas pela equipe de saúde. Para que seja possível tomar

decisões é preciso uma “comunicação franca” entre todos os atores sociais envolvidos no

processo do morrer. Este aspecto contrapor-se-ia ao modelo curativo da “morte moderna”, uma

vez que, explicitados os limites da medicina e os desejos do paciente, passou a ser possível que

este efetue escolhas e tome decisões quanto ao seu último período de vida.

O modelo de morte “contemporânea” valoriza, portanto, o morrer com “autonomia” e

“dignidade” – categorias relacionadas aos sujeitos e suas vontades – valores importantes na

cultura individualista, em que a vida de um sujeito é considerada única e singular. A morte não

é mais ocultada, pelo contrário, ela deve ser anunciada para que o paciente, a partir da

consciência de sua proximidade, possa tomar decisões. No modelo da “morte contemporânea”

o foco se desloca da doença, como na “morte moderna”, para a pessoa do doente, o que está

15“Parteiras para o moribundo”, como a expressão foi traduzida para o português, refere-se a uma nova categoria

profissional relacionada ao processo de morte, de acordo com os moldes do ideário da “morte natural”. Este

modelo, que teve início na Inglaterra na década de 1990 e começa a ser mencionado no Brasil, foi inspirado no

movimento do parto natural e da “humanização” do parto. Os ideários propõem que, da mesma forma que

haveria uma preparação para o parto com exercícios corporais, rituais e retorno à natureza, o mesmo deveria ser

feito em relação ao morrer, para que este momento seja vivido com menos ansiedade e, até, com a possibilidade

de êxtase. As “parteiras para o moribundo” têm a função de acompanhar e atender o morredor em suas

necessidades físicas, emocionais e espirituais, para que este momento possa ser vivido “naturalmente”, como

parte do ciclo da vida (MENEZES, 2003, p. 113).

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associado à proposição de um tratamento e assistência “humanizados”. Neste sentido, a “boa

morte” é aquela que acontece à maneira do paciente, na busca por uma “morte digna”.

O trabalho possibilitado pelo anúncio da proximidade da morte, em contraposição ao modelo

de “morte moderna”, representa, de certa forma, um resgate do modelo da “morte tradicional”,

que perdurou da Idade Média até o século XX, com a institucionalização do hospital. Assim

como no modelo tradicional, o ideário paliativista propõe que a morte aconteça, sempre que

possível, na residência do doente cercado por seus familiares, que cumpririam ritualmente os

desejos do paciente, visibilizando a morte na cena social.

Conforme apontado por Menezes (2004), a proposta da “qualidade de vida”, até a última

etapa da vida, objetiva dar a “oportunidade” de um último trabalho sobre si e sua identidade

pessoal, condição valorizada na cultura individualista. Segundo Rose (2011, p. 136), por meio

da confissão de seus sentimentos e desejos, o indivíduo constrói sua identidade, afirmando

uma verdade própria. É neste sentido que este processo da “boa morte” representa a

possibilidade de um trabalho sobre si para o doente e, também, para os que o cercam, pois o

processo não se resumiria à reflexão, exigiria também uma expressão e compartilhamento de

sentimentos e desejos.

Desta forma, contrapondo-se à temida imagem da “morte moderna” do doente internado

em um leito de hospital, no ideário do modelo da “morte contemporânea”, o doente, seus

familiares e a equipe de profissionais de saúde mobilizariam esforços no sentido de produzir

uma “boa morte”. A construção deste processo, embora se baseie nas vontades do doente, está

associada à ideia de uma estetização da morte como um fenômeno aceito socialmente, calmo,

harmonioso, pacífico, e que configure uma cena bela.

A proposta de construção de uma “boa morte” está alinhada a valores característicos da

sociedade ocidental moderna16

, como a autonomia e o hedonismo. Deste modo, uma vez

informado sobre as possibilidades terapêuticas, ninguém melhor do que o doente para tomar

decisões acerca dos investimentos a serem feitos para viver bem, e não apenas sobreviver. A

“boa morte” seria então construída no encontro da maximização da extensão da vida17

,

16Segundo Duarte (2005), algumas dimensões da sociedade ocidental contemporânea se referem ao

“’individualismo ético’ (subjetivismo, culto do eu, privilégio da escolha, ênfase na adesão ou na

responsabilidade pessoal), do ‘hedonismo’ (privilégio da satisfação pessoal, desqualificação da dimensão moral

do sofrimento, afirmação do self etc.) e do ‘naturalismo’ (fisicalismo, cientificismo etc.)” (p. 143). 17De acordo com Duarte (1999), o “hedonismo moderno” opera com uma estratégia qualitativa, com uma busca

de intensidade sempre maior, ao contrário do “hedonismo tradicional” que opera com um consumo quantitativo.

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enquanto esta possibilitar qualidade de vida, entendida como a busca por prazer e a perda de

sentido transcendente do sofrimento.

De acordo com o modelo dos Cuidados Paliativos, a produção efetiva de uma “boa

morte” depende da aceitação social do processo do morrer. Elizabeth Kübler-Ross, psiquiatra

suíça radicada nos Estados Unidos, se tornou referência mundial na assistência a doentes

terminais, a partir de suas pesquisas, quando escutou pacientes com câncer avançado, em

estágio terminal, e seus familiares. A partir do acompanhamento e das entrevistas com os

doentes, Kübler-Ross postulou a existência de repetidos padrões de respostas emocionais

adaptativas, frente à noticia da proximidade da morte pela equipe médica. Esta pesquisa

resultou no primeiro livro publicado pela autora, em 1969, intitulado “Sobre a morte e o

morrer”. Nele, Kübler-Ross apresenta o modelo de cinco etapas que considerou que o enfermo

vivencia a partir do conhecimento do avanço da doença na direção da morte. Os estágios são:

negação, raiva, negociação, depressão e, por fim, aceitação. As etapas não indicam um

percurso necessariamente vivenciado pelo doente, mas um modelo de compreensão deste

processo subjetivo. A teoria de Kübler-Ross representa uma inovação no tema, pois sugere

uma modificação nas representações do morrer como um fenômeno da vida humana que deve

ser vivido e elaborado, passível de receber intervenções de profissionais capacitados com

conhecimentos específicos (MENEZES, 2004, p. 59). Para alcançar uma “boa morte”, o

doente, seus familiares e equipe de saúde devem aceder à quinta etapa, de aceitação, como

última fase de elaboração do morrer.

Apesar da atribuição de responsabilidade ao modelo dos Cuidados Paliativos, pela

construção de um discurso crítico em relação aos excessos de intervenções médicas, o modelo

da “boa morte” se baseia em diferentes níveis de intervenção. As ações dos profissionais de

saúde são direcionadas ao controle e alívio da dor e demais sintomas, por meio do uso de

medicamentos e bloqueios neurais. Os procedimentos não se restringem à dimensão corporal,

mas à “totalidade” do doente, se estendendo aos aspectos psicológicos, sociais e espirituais, a

partir do conceito de “dor total”, cunhado por Saunders. Neste sentido, são formuladas

intervenções que estimulam uma elaboração psicológica em torno dos sentidos da própria vida,

uma expressão de sentimentos dos pacientes e de seus familiares, com enunciação para

Duarte afirma que as diversas estratégias de maximização da vida e otimização do corpo presentes nas

especialidades médicas e de saúde só puderam surgir em função da sistemática exploração do corpo como sede

de intensificação do prazer.

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subsequente realização de seus desejos, resolução de pendências legais, sociais e afetivas,

planejamento em relação ao período final da própria vida e os rituais após a morte. As medidas

também estimulam um equilíbrio “espiritual”, passível de ser alcançado por técnicas que

seguem o modelo da Nova Era, como mentalizações, visualizações, meditação, uso de mantras,

aromaterapia, cromoterapia e, mais recentemente, até ingestão de substâncias psicoativas,

como a psilocibina (POLLAN, 2015).

Para a produção de uma “boa morte”, o ideário dos Cuidados Paliativos recomenda um

cuidado personalizado e integral para controlar o sofrimento, por meio de uso limitado da

tecnologia médica. Contudo, segundo Juan Pedro Alonso (2013, p. 2545), a proposta de um

cuidado mais “humanizado” ocorre por intermédio de habilidades e saberes técnicos

específicos, mediante um avanço profissional sobre áreas tidas como da intimidade das

pessoas. Portanto, trata-se de uma expansão da esfera do controle médico para além das áreas

às quais a atenção médica se centrava, passando a englobar também aspectos psicológicos,

sociais e espirituais.

A fim de proporcionar uma “morte digna”, mediante um processo único e singular

daquele indivíduo, os profissionais de saúde devem solicitar e registrar informações relevantes

acerca do paciente. Constrói-se um conhecimento íntimo sobre ele, objetivando detectar

possíveis problemas ou vulnerabilidades em sua experiência ou de seus familiares para que, a

partir de uma intervenção mediada pelos profissionais envolvidos, tais aspectos possam ser

elaborados para viabilizar uma “boa morte”. Deste modo, os Cuidados Paliativos aconteceriam

na confluência de aspectos caracterizados por competência (linguagem, conhecimento e

habilidades da medicina) e aspectos do cuidado (compaixão e empatia). Esta integração

compõe um saber técnico e discurso específicos sobre a morte e o morrer.

Novos espaços de intervenção profissional são construídos e legitimados, medicalizando

a experiência do morrer em sentido mais amplo, em comparação com o modelo da “morte

moderna”. Os defensores da “boa morte” postulam que a proposta paliativista se afasta dos

excessos do modelo de “morte moderna”, tido como medicalizado, tecnologizado, frio e

“desumano”. No entanto, a produção das ciências sociais que investiga o modelo de “morte

contemporânea” apresenta dois debates críticos: a rotinização e crescente medicalização das

unidades paliativas (CLARK; SEYMOUR, 1999, p. 104; MENEZES, 2004, p. 66). Uma vez

que a biomedicina e os saberes “psi” possuem status de autoridades enquanto saberes

científicos nas sociedades ocidentais contemporâneas, poderia a construção teórica e prática

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acerca do processo de morrer apontar para uma consequente normatização deste evento? Deste

modo, tais normas e práticas científicas acerca deste evento transformariam subjetividades e

demandas dos indivíduos de um determinado contexto social, histórico e cultural.

De acordo com Peter Conrad (2007, p. 4), medicalização é o processo pelo qual

fenômenos ‘não-médicos’ são definidos e tratados sob a esfera da medicina. Assim, cada vez

mais a medicina atua sobre eventos da vida, afirmando-se como autoridade sobre

comportamentos e cuidados corporais. É neste sentido que o processo do morrer se torna

objeto de intervenção do saber e práticas médicas. A produção de uma “boa morte” está

associada ao fluxo da vida daquele indivíduo único e singular, uma vez que medicalização e

individualização são processos intrinsecamente vinculados e articulados (MENEZES;

GOMES, 2011, p. 103).

A formulação do conceito de uma “boa morte” abre espaço para a expressão dos desejos

e temores do indivíduo doente. Ao posicioná-lo no centro deste processo, possibilita que ele

tome decisões sobre sua trajetória, inclusive na negociação acerca de intervenções médicas.

Tais escolhas não são isentas da influência de valores socialmente compartilhados e

normatizados.

Ainda de acordo com Alonso (2013, p. 2547), a ampliação das esferas de atuação

profissional pode dar lugar a intervenções normativas sobre a experiência de morrer, ao

abordar sentimentos, relações e dinâmicas familiares. A “humanização” dos cuidados no

processo do morrer não significa, portanto, uma “desmedicalização”, mas a afirmação de uma

nova especialização profissional, dotada de habilidades técnicas e discursos específicos. Para

Kellehear (2016, p. 393), o modelo de “boa morte” também pode produzir uma “morte

indigna”18

na medida em que se mantém uma relação de dependência dos serviços

especializados dos profissionais de saúde paliativistas e pela perspectiva de uma identidade em

desaparecimento – o status social de indivíduo saudável e autônomo é substituído pelo status

de indivíduo doente e dependente.

18Segundo Kellehear (2016, p. 401) a ideia de “morte indigna” está associada à noção de “estigma” de Erving

Goffman, em que uma pessoa estigmatizada é excluída da aceitação social plena, introjetando a vergonha

oriunda da característica estigmatizada. Assim, a ‘morte indigna’ tem as seguintes características: erosão da

consciência do morrer (os sintomas da morte não são reconhecidos como tal, mas como condições relacionadas

ao envelhecimento ou à doença), erosão do apoio ao morrer (devido à falta de reconhecimento da identidade de

pessoa morrendo há escassez de apoio no processo de morrer) e o estigma, uma vez que os indivíduos não são

vistos como pessoas morrentes, mas socialmente estigmatizadas devido à falta de autonomia (KELLEHEAR,

2016, p. 385).

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A proposta da constituição do processo de morrer como um trabalho sobre si se dá com o

auxílio de técnicas e intervenções da ação de profissionais especializados, orientados por um

modelo considerado ideal. Cabe então questionar que transformações sociais esta nova

especialização profissional produz, a partir da difusão de novos saberes e propostas de

intervenção, na busca por uma “boa morte” ideal.

O modelo de “morte contemporânea”, assim como o modelo da “morte moderna”, deve

ser entendido como “tipo ideal”, no sentido weberiano19

. A ideia de um modelo de “morte

contemporânea” não sugere a evidência de um único modelo de “boa morte”, em determinada

cultura. Entretanto, pode ser entendido como uma norma, servindo como norteador das

intervenções e expectativas dos atores sociais envolvidos.

A normatização de um evento, mediante sua apropriação por um saber técnico

especializado categoriza, nos termos de Nikolas Rose (1988, p. 35), o “governo”, em que, por

meio de uma ação calculada sobre os indivíduos, busca-se a realização de fins sociais e

políticos. Para governar os sujeitos é preciso primeiro conhecê-los. No caso dos fenômenos da

vida humana, como a morte e o morrer, são os saberes “psi” que fornecem os conceitos pelos

quais a subjetividade e intersubjetividade podem ser calculáveis. Desta forma, os indivíduos

são objetos de intervenção externa, mas também sujeitos de uma ação sobre si próprios, em

nome de suas capacidades subjetivas. A expertise da subjetividade20

trabalha, portanto, por

intermédio da persuasão inerente às suas verdades, fornecendo aos indivíduos a ilusão de

permanecerem livres a agir conforme suas escolhas, desejos e condutas. Estaria então o

modelo de morte “contemporânea”, a partir de suas prescrições biomédicas, representando

uma forma de normatização sobre as condutas sociais frente a este fenômeno?

Na medida em que o processo de morrer é elaborado como um trabalho sobre si com o

auxílio da ação de profissionais especializados, é possível elaborar metas e etapas para

alcançar este fim ideal. Esta busca pela objetivação de aspectos subjetivos poderia caracterizar

uma normatização do morrer. Assim, é possível aventar a hipótese de um processo de

19O “tipo ideal” é um recurso metodológico com a finalidade de orientar o pesquisador diante da gama de

fenômenos observáveis na vida social. Consiste em enfatizar determinado traço de realidade, não

correspondendo, de fato, às situações observáveis. Desta forma, é “ideal” em sentido puramente lógico, não

correspondendo à ideia de “deve ser”, de “exemplar” (COHN, 2008, p. 8). 20Segundo Rose (2011), “[p]or expertise entende-se a capacidade que a Psicologia tem de gerar um corpo de

pessoas treinadas e credenciadas alegando possuir competências especiais na administração de pessoas e de

relações interpessoais, e um corpo de técnicas e procedimentos pretendendo tornar possível a gerência racional e

humana dos recursos humanos na indústria, na força militar e na vida social de forma geral” (p. 24).

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domesticação do final da vida, para garantir uma construção de uma morte pacífica e

controlada pelo aparato biomédico.

A “boa morte” não representa, portanto, um trabalho sobre si isento de influências do

aparato médico, mas um “refinamento e capilarização de suas formas de exercício de controle”

(MENEZES, 2004, p. 214). Assim como a sexualidade, conforme análise de Foucault (2006),

o morrer, enquanto processo da vida, é apropriado como objeto dos saberes científicos. O

desenvolvimento de conhecimentos e técnicas sobre a vida produzem procedimentos de poder

e de saber que objetivam controlar e modificar este evento e seus significados. Deste modo, o

processo de morrer se configuraria como fonte de exercício de biopoder, uma vez que o

domínio sobre ele implicaria em um poder-saber, agente de transformação da vida humana. De

acordo com Menezes (2004),

Assim como o sexo se tornou significante único e significado universal,

possibilitando acesso à identidade individual, o mesmo ocorre com a morte

administrada pela assistência paliativa. Um dispositivo da morte é gestado e gerado,

incitando à produção de um desejo de aceder à morte, de descobri-la, liberá-la,

articulá-la em discurso, formulando-a como a verdade última da vida do doente. (p.

214).

Os dispositivos do biopoder podem ocorrer tanto por intermédio do que é público,

visível e anunciado como pelo que é privado, oculto e silenciado. É neste sentido que a gestão

do processo do morrer, no modelo de “morte contemporânea”, por meio das prescrições de

uma expressão de emoções e de comportamentos considerados adequados, transforma o social,

criando (in)sensibilidades.

De acordo com ideólogos da ‘boa morte’, o processo de morrer deve ser vivido na

intimidade. Cabe indagar a que intimidade está se referindo, pois, certamente, não é

a do paciente, já que este personagem é exposto a uma rede de profissionais. Sua biografia passa a ser tema de investigação e de discussão entre a equipe. A

privatização do morrer é instrumentalizada pela conversão da morte em um

problema psicológico. (MENEZES, 2004, p. 216).

Segundo Sennett (2014), na sociedade ocidental contemporânea os sentimentos são

compreendidos como da ordem do natural, do biológico, enquanto a expressão dos sentimentos

estaria sujeita às regras sociais. Deste modo, os indivíduos seriam dotados de um domínio

interno, entendido como um “sentimento verdadeiro”, e um domínio público, que poderia ser

falso, na medida em que os sentimentos devem ser modulados, para que sua expressão seja

adequada.

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Esta construção de noção de indivíduo define, nos termos do autor, o declínio do homem

público. Uma vez que a interioridade é valorizada, a expressão das emoções de forma

ritualizada pode ser interpretada como falsa. Por outro lado, é quando a expressão foge do

controle do indivíduo que ela é considerada autêntica, permitindo acesso ao seu domínio

privado. Em uma sociedade intimista (SENNETT, 2014), as motivações e intenções, por serem

reveladoras dos verdadeiros sentimentos, contam mais do que as ações.

É neste sentido que as propostas da construção de uma “boa morte” caminham. O

estímulo ao compartilhamento de emoções no período final da vida objetiva produzir uma

“morte íntima”, conforme denominação criada por Hennezel (2004). Para esta psicóloga, trata-

se de uma última oportunidade de um trabalho sobre si, quando o doente deve compartilhar

suas emoções com os paliativistas, de modo a reescrever a própria biografia, produzindo

sentido para sua vida. Contudo, cabe questionar qual intimidade é possível, no modelo de

“morte contemporânea”. A partir da construção prescritiva sobre a totalidade do doente,

expressões de sentimentos que fogem de um roteiro pré-determinado pelo ideário paliativista,

seja por intensidade ou duração, estariam passíveis de intervenções profissionais, para adequá-

las ao ambiente pacífico e controlado dos Cuidados Paliativos. Tornar público o que era

privado permitiria o governo, nos termos de Rose (1988), sobre a experiência do morrer e do

luto.

2.2 O LUTO NA CONTEMPORANEIDADE

O modo como a morte emerge socialmente – como evento que deve ser evitado ou

regulado, e afastado a qualquer custo, ou que deve ser aceito e vivenciado socialmente –

implica consequências na forma como o luto poderá ocorrer. Em um contexto em que a morte

é entendida como etapa natural da vida, seu entorno ideal, de acordo com os paliativistas, é

caracterizado como um momento calmo e tranquilo.

A partir do momento em que o paciente é diagnosticado como “fora de possibilidades

terapêuticas de cura”, as intervenções paliativistas direcionadas a todos os atores sociais

propõem uma aceitação deste evento. A preparação para a morte ainda em vida possibilita um

processo de luto denominado pelos profissionais de saúde como “luto antecipatório”,

entendido como o conjunto de sentimentos associados à notícia do diagnóstico de uma doença

potencialmente mortal, indicando uma iminente perda concreta ou simbólica para o doente e

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27

seus familiares (GENEZINI, 2012, p. 571). Diante desta categoria, é formulada uma

modalidade de assistência específica, dirigida a todos os envolvidos no acompanhamento do

processo do morrer. Desde o final do século XX são criados e proliferam cursos de

especialização para profissionais de saúde – sobretudo psicólogos – em terapia do luto, com

uma produção bibliográfica prescritiva, voltada à prevenção de um “luto patológico”.

A busca de produção de uma morte controlada, em uma cena ordenada, harmoniosa e

pacífica, denota um processo de normatização do luto. O sofrimento acarretado pela situação

de perda, quando não evitado, deve ser vivido de forma calma, tranquila e comedida, a fim de

não interferir na configuração do ambiente construído pelos paliativistas. Especialistas em luto

formulam o que seria uma experiência normal após uma perda.

De acordo com Rose (2011, p. 118), na sociedade ocidental moderna, os saberes ‘psi’

configuram disciplinas científicas de conhecimento positivo dos indivíduos, afirmando uma

verdade sobre os humanos e uma forma de agir sobre eles. De modo geral, a construção desse

conhecimento não emerge da reflexão do indivíduo normal, da personalidade normal ou, ainda,

da emoção normal, mas, pelo contrário, a própria noção de normalidade emerge da

preocupação com o que é considerado problemático, perigoso ou patológico.

Assim como na designação dos modelos de “morte moderna” e “morte contemporânea”,

a ideia de um modelo de conduta normal, em contraste a um patológico, não pretende sugerir a

evidência de um único modelo de pessoa numa determinada cultura. Conforme o conceito de

tipo ideal weberiano,

Em nosso próprio tempo, [...] a Psicologia, na forma de um modelo de indivíduo

psicológico, têm sido a base de tentativas similares de unificação da conduta de vida

em torno de um único modelo do que seja subjetividade apropriada. Mas a

unificação da subjetivação deve ser vista como um objetivo de programas

específicos, ou como um pressuposto de certos estilos de pensamento, não como

uma característica das culturas humanas. (ROSE, 2011, p. 48).

A elaboração de conhecimento acerca da subjetividade gera uma expectativa sobre as

condutas humanas. É neste recorte que busco analisar a experiência do luto. A expertise ‘psi’

fornece conhecimento, a partir da observação da vivência social do luto em um contexto

histórico-cultural, que instaura uma norma, uma forma como o luto deve ser vivido. A partir da

construção deste conceito são elaboradas as categorias referentes à experiência normal e

patológica deste fenômeno, como formulado no DSM-V.

A construção de saberes sobre o luto, pela delimitação de uma vivência esperada e de

outra, passível de intervenção por ser considerada uma ameaça à vida, gera regras que seriam

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interiorizadas pelos indivíduos inseridos naquele contexto. A construção destes saberes produz

uma nova categoria de sintomatologia e, portanto, novas necessidades cultivadas. É neste

sentido em que propostas são elaboradas para cuidar do luto preventivamente, de maneira que

ele não evolua para uma experiência patológica. Na medida em que saberes, práticas

institucionais e profissionais são reconfigurados, com oferta de modelos para elaboração de

perdas, com a possibilidade de intervenção de “experts da conduta humana”, novas

subjetividades e sensibilidades – e insensibilidades – são produzidas socialmente.

As técnicas da conduta humana pretendem agir sobre os indivíduos sem violar sua

autonomia. Os saberes ‘psi’ não configurariam uma dominação sobre os indivíduos, mas uma

“condução da conduta”, uma orientação ao governo de si (ROSE, 2011, p. 139). Desta forma, a

partir da concepção de uma experiência de luto patológico, delimitada pelos saberes ‘psi’, o

indivíduo busca autorregular suas emoções, para adequá-las a um padrão normal. De acordo

com Elias (1993, p. 193), os indivíduos da sociedade ocidental moderna se configuram como

sujeitos com emoções autocontroladas, uma vez que controles externos são interiorizados.

Deste modo, a partir da formulação de um luto normal e um luto patológico, os indivíduos

controlariam a duração e intensidade de suas emoções e comportamentos, enquadrando suas

experiências em um conceito normatizado do luto.

Neste cenário são criadas técnicas inovadoras e, consequentemente, demandas de

atendimento especializado a partir da interiorização destes valores. A apropriação deste

fenômeno pelos saberes ‘psi’ fornece um modelo de elaboração dos eventos traumáticos ou de

perda ocorridas na vida, e uma possibilidade de ação pelos “experts da conduta humana”, tanto

com propostas curativas de uma vivência patológica, como intervenções preventivas.

Na sociedade ocidental contemporânea, caracterizada pela busca contínua do prazer,

configura-se um campo científico, com especializações para profissionais ‘psi’, direcionado ao

controle do sofrimento pela perda. A estruturação de um saber, uma teoria e uma prática

específicos para esta etapa da vida possibilita a oferta e, consequentemente, a construção de

demanda por serviços específicos para acompanhamento do luto. Observa-se recentemente

uma oferta crescente de clínicas e cursos de especialização direcionados para este fim. O tema

começa a ser amplamente divulgado nos meios profissionais e em meios de comunicação

destinados à população geral. De acordo com Menezes e Gomes (2011, p. 121), a crescente

visibilidade de temas acerca da morte e morrer pode ser interpretado como um meio de

elaboração coletiva em consequência de uma secularização da sociedade, reverenciando o

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indivíduo até o último momento de sua vida. Grupos terapêuticos, encontros, conversas e

relatos de experiências vividas por enlutados são divulgados na internet. O luto se configura,

portanto, como um período da vida que merece acompanhamento profissional, seja como

tratamento do luto patológico ou como acompanhamento na elaboração do luto normal, a fim

de garantir que aquele status de sofrimento tenha a menor duração possível, prevenindo-se de

um luto patológico. O achatamento do processo de luto, com controle da duração e intensidade

de sua expressão configura uma situação aparentemente paradoxal, em relação à visceralização

do processo do morrer. A morte é reinserida socialmente como um processo “normal”, na

medida em que é posta em discurso com o objetivo de atender aos desejos do morredor. O luto,

por sua vez, apesar de considerado como fenômeno “natural”, tem suas expressões

controladas, pelas construções dos saberes ‘psi’. É neste sentido que esta dissertação tem a

proposta de analisar o luto, a partir de seus discursos e prescrições de influência paliativista,

como ferramenta das tecnologias de si, da gestão da conduta humana.

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3 OBJETIVOS

3.1 OBJETIVO GERAL

Apreender a constituição do corpus teórico dos saberes ‘psi’ acerca do luto na

contemporaneidade, a partir das prescrições terapêuticas a ele referidas.

3.2 OBJETIVOS SECUNDÁRIOS

Analisar a formulação das prescrições a partir do corpus teórico;

Identificar os saberes que o profissional deve adquirir para sua habilitação no manejo

do cuidado com o luto;

Identificar as modalidades de luto sujeitas à recomendação de acompanhamento

profissional.

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31

4 METODOLOGIA

4.1 ESCOLHA DA METODOLOGIA

Esta pesquisa qualitativa, com abordagem socioantropológica, objetivou analisar as

construções e particularidades da forma como o luto é entendido nas sociedades ocidentais

contemporâneas. Para isto optou-se por analisar o discurso produzido acerca deste tema pelos

profissionais de saúde em manuais e livros-texto. Os manuais configuram um campo de

análise privilegiado, uma vez que, de acordo com Schiavinatto e Pataca (2016), este material

apresenta com clareza os conceitos elaborados em determinado período e cultura, além de

indicar forte associação entre teoria e prática. Assim, os manuais representam uma íntima

associação entre a produção e conhecimento, e sua difusão.

O material analisado é, em sua maioria, de função didática, destinado ao público

profissional (médicos, psiquiatras e psicólogos, principalmente) ou, ainda, destinado aos

familiares enlutados, com a função de orientá-los sobre o processo de luto, sugerindo possíveis

intervenções formais ou informais. Na medida em que os manuais apresentam uma síntese

teórica e a prática a ela associada, eles se configuram como referência norteadora da expertise

que, por sua vez, reflete noções do público leigo em geral.

Deste modo, o campo de investigação de especial enfoque foi composto por manuais e

livros-texto destinados aos profissionais da área da saúde sobre o tema da morte e luto, como o

DSM, manuais de Cuidados Paliativos, manuais de Geriatria e Gerontologia, e manuais

específicos sobre luto. A partir do conteúdo extraído desta literatura foi possível identificar

definições, modelos teóricos, prescrições e intervenções que refletem a forma como o luto é

apreendido pela classe profissional e, também, pelo público geral.

4.2 ANÁLISE DOCUMENTAL

Esta pesquisa de metodologia de análise documental objetiva examinar as diversas fontes

selecionadas, a fim de apreender um possível ‘fio condutor’ que explicite características do

luto na contemporaneidade. Para os fins desta pesquisa, esta metodologia foi selecionada como

mais vantajosa devido à possibilidade de levantamento e análise de grande volume de

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documentos e informações em um breve período de tempo (VÍCTORA; KNAUTH; HASSEN,

2000, p. 72), adequando-se, inclusive, ao tempo restrito de realização do mestrado.

De acordo com Sá-Silva (2009, p. 2), a metodologia empreendida depende de fatores

característicos da pesquisa. No caso da pesquisa documental, esta possibilita a extração e

resgate de grande quantidade de informação. Segundo Kamler e Thomson (2015, p. 46), é

importante o exame de grande quantidade de informação, pois a literatura não é monolítica,

mas plural, o que significa que as literaturas compreendem um ou vários campos de produção

de conhecimento. Portanto, é possível extrair delas diferentes categorias que embasam o

campo de estudo. É diante do exame deste material plural que o pesquisador pode assumir uma

postura avaliativa, frente à construção científica diversa acerca do tema.

O uso metodológico da análise documental é frequentemente justificado nas Ciências

Sociais, por ampliar a análise de objetos cuja compreensão necessita de contextualização

histórica e sociocultural. Permite ainda analisar a dimensão temporal a partir da compreensão

do social ao possibilitar a observação do processo de maturação ou de evolução de indivíduos,

grupos, conceitos, comportamentos, práticas, entre outras categorias. (SÁ-SILVA, 2009, p. 2).

Ainda de acordo com Sá-Silva (2009, p. 5), a pesquisa documental engloba a busca de

informações em fontes primárias, que são os documentos que não receberam nenhum

tratamento científico e, portanto, são analisados primeiramente pelo pesquisador. Esta análise é

relevante, pois, segundo o conceito de documento apresentado pela Escola dos Anais21

(SÁ-

SILVA, 2009, p. 7), documento é qualquer fonte que, por apresentar um vestígio do passado,

tem a função de testemunho de uma história construída social e culturalmente.

Segundo Cellard (2012, p. 299) a interpretação dos documentos deve ser precedida por

uma avaliação crítica sobre o contexto, o autor, a autenticidade e confiabilidade do texto, sua

natureza e seus conceitos-chave. Esta análise do corpus documental é de suma importância,

pois, devido à sua ausência de neutralidade, o pesquisador deve considerar a intencionalidade

expressa no documento. Deste modo, a análise destes documentos possibilita produzir ou

21A école des Annales funda a chamada Nova História, movimento de oposição ao paradigma tradicional. Como

características desse movimento é possível citar seu interesse por quase qualquer atividade humana, uma vez que

a realidade é construída social e culturalmente; formula a história mediante análise das estruturas ao interpretar

as transformações das mentalidades; interesse pela cultura popular descentralizando o discurso dos “grandes

homens” e, para isto, utiliza-se de outras fontes além dos documentos oficiais, englobando fontes visuais, orais e

até estatísticas; associa os fatos tanto aos movimentos coletivos como a ações individuais e, por fim, considera

ser impossível a objetividade na história. Portanto, se faz sempre necessário justificar a perspectiva de inserção

de seu relato uma vez que este, assim como qualquer documento, não será neutro (BURKE, 1996, p. 14).

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reelaborar conhecimentos e criar novas formas de compreender os fenômenos. Uma vez que os

fatos, por si mesmos, nada explicam, é a interpretação do pesquisador que poderá sintetizar as

informações e, na medida do possível, realizar inferências.

É neste sentido que Kamler e Thomson (2015, p. 45) apontam algumas tarefas

fundamentais na pesquisa baseada em literaturas. As autoras orientam a iniciar a pesquisa

reconhecendo os campos concernentes à investigação, a partir do desenvolvimento histórico

dos campos e do exame de suas bases e tendências empíricas e teóricas. Após esta primeira

imersão é possível estabelecer quais estudos e ideias são mais pertinentes ao embasamento da

pesquisa a ser realizada. O pesquisador pode então criar a justificativa para sua pesquisa,

definindo a contribuição concreta que pretende alcançar ao fim da pesquisa.

4.3 BUSCA E SELEÇÃO DE ARTIGOS

Esta pesquisa iniciou com o reconhecimento do campo. Para esta finalidade foi realizado

levantamento bibliográfico na base de dados da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS). Em

consulta ao DeCS (Descritores em Ciências da Saúde) da BVS, averiguou-se que o descritor

correspondente ao termo ‘luto’ para pesquisa nesta base de dados é ‘pesar’. O DeCS descreve

o pesar (ou grief, como descritor correspondente em inglês) como: “Tristeza normal e

apropriada em resposta a uma causa imediata. É autolimitante e desaparece gradativamente

dentro de um período razoável de tempo” (BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE).

Com o objetivo de construir um panorama das construções científicas sobre o campo nos

diversos aspectos englobados pelo processo do luto, a busca por artigos ocorreu por meio da

combinação do termo “pesar” com outros termos relativos à sua vivência pelos atores sociais

envolvidos. Os demais termos eleitos foram: “adaptação psicológica”, “atitude frente à morte”,

“assistência terminal”, “morte”, “ética”, “cuidados paliativos”, “doente terminal”, “revisão” e

“direito de morte”. A princípio foi priorizado o filtro apenas pelo idioma, realizando a busca

por artigos em português. Os artigos encontrados, em sua maioria, foram produzidos após os

anos 2000, salvo duas exceções, do final da década de 1990, em revistas de enfermagem. Os

demais artigos foram publicados em revistas de Psicologia, Medicina, Saúde Coletiva, Bioética

e, também, Enfermagem. O levantamento foi finalizado, na medida em que os resultados

começaram a se esgotar, apresentando artigos repetidos.

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O acesso aos manuais e livros-texto ocorreu por meio de pesquisa na bibliografia

recomendada em sites, internacionais e nacionais, de instituições que são referências em

Cuidados Paliativos, além de indicações de profissionais da área e a partir do conteúdo

abordado em cursos de especialização em terapia do luto. Durante o processo de análise deste

material também foram levadas em consideração notícias veiculadas na internet,

principalmente por mídias nacionais, destinadas ao público leigo. Este material foi considerado

de caráter complementar à análise, a fim de analisar as atuais perspectivas culturais sobre o

tema na sociedade brasileira contemporânea.

A escolha de livros-texto, manuais e conteúdo dos cursos de especialização como objeto

de análise permitiu o exame da ideologia que caracteriza as normas de conduta do sofrimento

devido à perda. Por sua vez, o conteúdo observado em mídias destinadas ao público leigo tem

por objetivo analisar a difusão do tema no âmbito social, assim como suas possíveis

consequências. Neste sentido, a ausência de neutralidade destes documentos, por cumprir uma

função social, permite emergir certas características sobre o tema (LUCA, 2006). Uma vez que

estes materiais são produzidos a partir de um contexto social e produzem intervenções sobre a

sociedade, a marca da intencionalidade de seu conteúdo reflete características de determinada

cultura. Segundo Mendoza (2000, p. 98), são considerados, portanto, como fonte legítima de

dados, por “possibilitar a construção racional de um processo de pesquisa e/ou

desenvolvimento científico”.

Dentre as fontes bibliográficas destinadas a profissionais de saúde, foram considerados

os documentos produzidos a partir do final do século XX, momento em que se inicia a

produção de conteúdos prescritivos acerca da morte e luto, sob a perspectiva dos Cuidados

Paliativos. O levantamento bibliográfico foi composto por textos produzidos por profissionais

militantes da proposta dos Cuidados Paliativos, com o intuito de difundir esta expertise e por

textos da área das Ciências Sociais, que possibilitam um diálogo entre o objeto observado e o

tema da pesquisa.

No capítulo seguinte apresento as fontes escolhidas para análise do material. Em seguida,

no mesmo capítulo, aponto as perspectivas teóricas dos manuais, com a finalidade de expor as

principais características do discurso sobre o luto na contemporaneidade ocidental.

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5 DESCRIÇÃO DO MATERIAL

Inicialmente a busca por material didático sobre o luto orientou-se em torno de manuais

de Cuidados Paliativos. Estes manuais foram considerados fundamentais para começar a

análise das construções científicas sobre o luto, devido à legitimidade da especialização

paliativista na sociedade ocidental contemporânea, enquanto cuidado direcionado aos atores

sociais envolvidos no processo do morrer. A partir do momento em que o paciente é

considerado “fora de possibilidades terapêuticas de cura”, o foco dos cuidados dos

profissionais de saúde sobre o paciente e seus familiares gira em torno da preparação e

elaboração do processo de morrer. Esta ideologia abre espaço para uma estruturação de um

saber específico sobre o luto, que deve ser assistido pelos profissionais de saúde envolvidos

nos cuidados paliativos, a fim de prevenir e/ou oferecer tratamento para uma possível

complicação do processo de luto.

Apesar do foco desta pesquisa incidir sobre as construções científicas brasileiras, foram

também consideradas produções internacionais, em especial as oriundas da Inglaterra e

Estados Unidos. Esta atenção especial deve-se ao pioneirismo destas duas nações na

formulação do ideário paliativista, seja pela filosofia hospice, criada pela inglesa Cicely

Saunders, ou pelo movimento norte-americano que deu origem aos Cuidados Paliativos.

Assim, tradicionalmente, as produções e práticas inglesas e norte-americanas são consideradas

referências pelos pesquisadores e pensadores da área, ora como construção teórica norteadora

para a aplicação prática em instituições das demais nacionalidades, ora sob um olhar crítico

sociológico relativizador dos traços culturais de tais construções.

Foram, portanto, selecionados manuais de Cuidados Paliativos, internacionais e

nacionais, que são considerados referências pelos profissionais da área. Foi também

considerado um manual nacional de Geriatria e Gerontologia por tratar da morte, do morrer e

do luto, sob perspectiva paliativista. Em seguida foram selecionados manuais e livros-texto,

internacionais e nacionais, específicos sobre luto22

. Cabe ressaltar que as publicações das

22Na língua inglesa há três termos distintos relativos à ideia de luto. ‘Bereavement’ é o estado do luto, o fato de

perceber a perda, a descrição do status social de alguém que sofreu uma perda significativa (KNOTT, 2002, p.

51). ‘Grief’ se refere ao emocional do indivíduo que está em estado de luto (KNOTT, 2002, p. 51). ‘Mourning’ é

a resposta psicológica à morte e sua expressão ou comunicação na sociedade (KAUFFMAN, 2002, p.311). Uma

vez que esses três termos são igualmente traduzidos como “luto”, não houve discriminação nem prevalência por

qualquer destes conceitos durante a busca na literatura internacional.

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primeiras edições destes documentos são mais recentes do que as edições de lançamento dos

manuais de Cuidados Paliativos, o que indica a consequente legitimação de uma nova

expertise e nova categoria profissional sobre o luto.

O tratamento sobre os documentos selecionados iniciou-se pelos títulos internacionais,

com o objetivo de analisar o conteúdo científico basal usado como referência pelos autores

nacionais dedicados a esta temática. Em um segundo momento foram analisadas as referências

nacionais, a fim de apreender uma possível construção científica sobre o luto, que evidencie

marcas culturais da sociedade brasileira.

O Oxford Textbook of Palliative Medicine teve sua primeira edição publicada em 1993,

cinco anos após o reconhecimento da medicina paliativa23

como uma subespecialidade da

medicina, no Reino Unido. Em 2015 foi publicada a quinta edição deste livro-texto, indicando

a expansão da medicina paliativa, sua aceitação e legitimidade na sociedade ocidental

contemporânea. A terceira edição, versão utilizada nesta pesquisa, representa uma ampliação

da abordagem do conteúdo, em relação às edições anteriores. Além de contar com a revisão e

atualização dos capítulos preexistentes, contou com a inclusão de novos capítulos, sobre a

aplicação da medicina paliativa em torno de condições não-malignas e, também, com a

inserção de uma nova seção sobre contribuições de psicoterapias, terapias ocupacionais,

musicoterapia e arteterapia. Deste modo, o Oxford Textbook of Palliative Medicine se

estabeleceu como um manual internacional sobre os Cuidados Paliativos. Assim, apesar de ser

desenvolvido especialmente para médicos, ele é consultado por profissionais e pesquisadores

de outras categorias profissionais e disciplinas da área de saúde.

A terceira edição do manual Oxford, publicada em 2003, conta com mais de 160

colaboradores renomados, de diversos países. Esta edição contém 100 capítulos divididos em

21 seções, o que demonstra o caráter interdisciplinar da especialização. São eles: Introdução; O

desafio da Medicina Paliativa; Questões éticas; Comunicação e Medicina Paliativa; Pesquisa

em Medicina Paliativa; Evolução do paciente e mensuração de resultados; Princípios do uso de

drogas em Medicina Paliativa; Controle de sintomas; Medicina Paliativa pediátrica; Medicina

Paliativa em doenças não-malignas; Aspectos culturais e espirituais da Medicina Paliativa;

Questões emocionais da Medicina Paliativa; Assistência social na Medicina Paliativa;

23O Oxford Textbook of Palliative Medicine se refere à ‘medicina paliativa’ enquanto uma subespecialidade

dentro do campo de conhecimento da Medicina, enquanto os ‘cuidados paliativos’, campo ainda mais recente, se

referem aos cuidados da equipe multidisciplinar (DOYLE, 2010, p. xxi).

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Reabilitação na Medicina Paliativa; Contribuição à Medicina Paliativa das profissões de saúde

aliadas; Terapias complementares em Medicina Paliativa; Medicina Paliativa domiciliar; A

fase terminal; Luto; Educação e treinamento em Medicina Paliativa; Medicina Paliativa – uma

perspectiva global24

. Conta ainda com uma apresentação de autoria de Cicely Saunders, em

que relembra o leitor da história do movimento hospice e o situa em relação às novas

ferramentas disponíveis, e aos atuais desafios e princípios. Afirma que esta edição do manual

abrange um campo mais amplo, que vai além da abordagem sistemática ao controle de

sintomas, preocupando-se com o impacto total da doença persistente sobre a pessoa e sua

família (SAUNDERS, 2005, p. xvii). De fato, uma das novidades da terceira edição é um novo

capítulo, destinado à medicina alternativa e complementar para pacientes em Cuidados

Paliativos, e uma seção sobre as contribuições das demais profissões de saúde aliadas à

Medicina Paliativa, como a psicologia clínica, arte e musicoterapia e fisioterapia. Os capítulos

preexistentes foram reescritos, após revisão, a fim de introduzir as novas ideias e novas

tecnologias desenvolvidas desde a última edição.

Devido ao interesse desta presente pesquisa, foram levantados para análise dois capítulos

da terceira edição do manual25

: “Bereavement issues and staff support” inserido na seção de

Medicina Paliativa Pediátrica, e “Bereavement”, capítulo único de seção homônima. Segundo

os autores dos capítulos selecionados, o luto é entendido como uma resposta adaptativa

essencial à experiência de perda, de modo que é considerado um fenômeno biológico que,

contudo, sofre influências culturais. Apesar da experiência de perda ser considerada como

vivência universal e, portanto, o luto ser considerado um processo normal, o manual indica

alguns contextos potencialmente desencadeadores de complicações de ordem fisiológica,

psicológica ou social. Para compreensão do que pode ser considerado normal no processo de

luto, o manual situa o leitor em relação às principais teorias formuladas sobre o luto. São elas:

a Teoria do Apego, de Bowlby; o modelo psicodinâmico, de Freud; as teorias interpessoais,

como a de Horowitz; os modelos sociológicos; modelos comportamentais; e o Modelo de

Processo Dual, de Stroebe e Schut26

. O manual apresenta ainda as principais apresentações

clínicas do luto, como o luto antecipatório, e formas de luto complicado e seus possíveis

24 Tradução de minha autoria assim como todas a seguir, exceto menção expressa. 25 Nesta pesquisa foi utilizada a terceira edição do Oxford Textbook of Palliative Medicine devido à inviabilidade

de acesso ao conteúdo na íntegra das edições mais recentes. Contudo, optou-se por apresentar os dados editoriais

da quarta edição, para ilustrar as mudanças do livro-texto, enquanto documento internacional. 26 Estas teorias serão abordadas adiante.

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fatores desencadeantes. A partir destas referências teóricas, o manual formula possíveis formas

de tratamento e intervenções, assim como as habilidades necessárias ao profissional de saúde

envolvido com o processo de luto de seus pacientes e familiares. A adaptação ao evento da

perda sofrida é entendida como um processo de crescimento pessoal.

Partindo para os documentos americanos, o primeiro analisado foi The IAHPC Manual

of Palliative Care27

. A International Association for Hospice and Palliative Care28

(IAHPC) é

uma associação dedicada à promoção e desenvolvimento dos Cuidados Paliativos. A história

da associação29

tem início no International Hospice Institute30

, fundado em 1980 pela

oncologista filipina Josefina Magno, que, após sua experiência pessoal de tratamento ao câncer

de mama, estabeleceu um dos primeiros programas hospice nos Estados Unidos. Este instituto

promovia conferências anuais para médicos, enfermeiros e membros da equipe

multidisciplinar, que deu origem ao Academy of Hospice Physicians31

(AHP). Posteriormente,

da AHP formaram-se duas organizações independentes: a American Academy for Hospice and

Palliative Medicine32

e a International Hospice Institute and College33

(IHIC) presidida pela

Josefina Magno. Em 1996, o médico Derek Doyle foi eleito presidente da faculdade do IHIC.

Derek Doyle promoveu uma perspectiva internacional ao IHIC, enfatizando que os Cuidados

Paliativos não deveriam ter um modelo único. Pelo contrário, cada país deveria ser encorajado

e capacitado a desenvolver seu próprio modelo de cuidado paliativo, de acordo com seus

recursos e condições. A partir de então, os membros da IHIC desenvolveram a IAHPC, uma

organização com perspectiva internacional guiada pela ideologia multimodal de Derek Doyle.

A IAHPC estabelece então como objetivo a promoção de cuidados paliativos com acesso

universal e de alta qualidade, por meio de sua integração a todos os níveis de cuidados de

saúde, com diagnóstico e tratamentos precoces e assegurando que os pacientes, familiares e

cuidadores tenham ao máximo seu sofrimento aliviado. Para objetivar um caráter universal, a

associação é composta por um grupo de profissionais de diversos países com diferentes

experiências, expertises e habilidades. Além de promover encontros, seminários e workshops,

27 Manual de Cuidados Paliativos da IAHPC, em português. 28 Associação Internacional para Hospice e Cuidados Paliativos, em português. 29 Informação obtida no site da associação, disponível em: http://hospicecare.com/home/. Último acesso em: 10

de janeiro de 2017. 30 Instituto Internacional de Hospice, em português. 31 Academia de Médicos de Hospice, em português. 32 Academia de Hospice e Medicina Paliativa, em português. 33 Instituto e Faculdade Internacional de Hospice, em português.

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esta associação divulga vasto material sobre a temática dos Cuidados Paliativos, inclusive

conteúdos de diretrizes assistenciais, controle de dor com uso de opióides e discussões éticas

sobre eutanásia e suicídio assistido. Dentre as publicações disponibilizadas no site da

associação, é possível acesso ao IAHPC Manual of Palliative Care, elaborado por Derek

Doyle e Roger Woodruff. Este manual é proposto com fins didáticos aos provedores de

cuidados de saúde sobre os principais aspectos dos cuidados paliativos. Contudo, não objetiva

ser um documento completo ou preciso e, portanto, não deve sugerir um curso de tratamento

em particular.

A terceira edição do manual, publicada em 2013, conta com sete seções: Princípios e

práticas dos Cuidados Paliativos; Questões éticas nos Cuidados Paliativos; Dor; Controle de

sintomas; Psicossocial; Aspectos organizacionais dos Cuidados Paliativos; e Recursos. Embora

o manual não apresente uma seção ou capítulo específico sobre luto, devido à importância da

IAHPC no campo dos Cuidados Paliativos, optei por analisar a seção “Psicossocial”, por tratar

de aspectos relacionados à morte e o morrer. Esta seção aborda o sofrimento psicológico,

espiritual e existencial acarretado pelo processo de morrer de um ente querido, e indica

algumas orientações de manejo profissional sobre este sofrimento, que pode se transformar em

um transtorno depressivo.

Outro manual americano analisado foi a segunda edição do Handbook of Palliative

Care34

, organizado por Cristina Faull, Yvonne Carter e Lilian Daniels, respectivamente duas

médicas e uma enfermeira paliativistas, com a colaboração de autores de diversas

especialidades da área de saúde. Este livro-texto propõe apresentar os recentes

desenvolvimentos na proposta dos Cuidados Paliativos e como coloca-los em prática, além de

abordar as variações inaceitáveis que podem derivar de um cuidado paliativo inadequado

(2005, p. viii). Assim, este manual se estrutura como material didático para estudantes e

profissionais e como resultado do desenvolvimento dos Cuidados Paliativos. Este documento é

composto por 23 capítulos, que abordam os principais princípios e práticas paliativistas, como

questões éticas, habilidades comunicacionais, controle da dor e demais sintomas. Destes

capítulos, dois foram selecionados para análise. O primeiro é intitulado “Adapting to death,

dying and bereavement35

”, de autoria de Brian Nyatanga, professor da University of Central

England, na divisão de Oncologia e Cuidados Paliativos. O outro capítulo, intitulado

34 Manual de Cuidados Paliativos, em português. 35 Adaptando à morte, ao morrer e ao luto, em português.

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40

“Terminal Care and dying36

”, de autoria de Brian Nyatanga e da farmacêutica Christine

Hirsch, foi posteriormente descartado, devido a seu conteúdo técnico, não apresentando

diálogo com as prescrições analisadas nesta pesquisa.

O capítulo analisado não oferece uma definição clara do que seria uma vivência de luto

considerada normal. No entanto, aborda o luto enquanto processo passível de intervenção

profissional, seja no luto antecipatório, com indicações de intervenções para a adaptação

necessária à perda, seja nos tipos de luto categorizados como complicados. Nyatanga

reconhece que a maioria das pessoas tem recursos para enfrentar o luto, mas para alguns esta

vivência pode representar um risco à saúde. É sobre este grupo que o capítulo pretende

elucidar, mediante apresentação de modelos teóricos e de fatores de risco, além de discriminar

habilidades consideradas necessárias aos profissionais, e os níveis possíveis de intervenção.

Ainda na categoria de materiais internacionais sobre Cuidados Paliativos, foi analisado o

capítulo sobre luto do Guía de Cuidados Paliativos da Sociedade Espanhola de Cuidados

Paliativos (SECPAL). A SECPAL foi fundada em 1992, reunindo profissionais de saúde

comprometidos com a tarefa diária de atender e cuidar de pacientes “fora de possibilidade

terapêutica de cura”. A sociedade nasce com a finalidade de divulgar os Cuidados Paliativos na

Espanha, organizando congressos e jornadas, além da criação de uma revista e de guias

temáticos. Atualmente a SECPAL é considerada uma sociedade científica de referência na

língua espanhola e, também, no mundo37

.

O Guia de Cuidados Paliativos da SECPAL, disponível para download gratuito no site, é

um material breve, destinado a profissionais de saúde e leigos. Ele apresenta, em dezoito

capítulos, os principais tópicos acerca do tema, como definição de doença terminal, principais

sintomas, tratamento de dor e um capítulo exclusivo sobre luto. Este breve capítulo apresenta

em duas páginas os principais tópicos, como forma de situar o leitor acerca das construções

que orientam o trabalho sobre o luto. O guia define o luto como processo para se retomar o

equilíbrio e se refere ao modelo teórico de William Worden, que destaca as tarefas necessárias

para que o enlutado finalize o processo de luto. Aponta ainda algumas orientações e

intervenções, com o objetivo de facilitar o rompimento de vínculo com quem faleceu.

36 Cuidado terminal e o morrer, em português. 37 Informação obtida no site da sociedade, disponível em: http://www.secpal.com/inicio. Último acesso em: 10

de janeiro de 2017.

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41

Após levantamento sobre a morte, o morrer e o luto nos manuais internacionais sobre

Cuidados Paliativos, a análise voltou-se para os manuais internacionais específicos sobre luto.

A Encyclopedia of Death and Dying38

configurou-se como um documento essencial para a

compreensão das diferentes palavras da língua inglesa para se referir aos aspectos do que em

português englobamos no termo ‘luto’. Deste compêndio interdisciplinar sobre o tema da

mortalidade, escrito por mais de 100 colaboradores, foram analisados os verbetes

“bereavement”, “mourning” e “grief”. Cabe observar que este último não apresenta uma

definição do termo isolado – “grief” aparece somente como adjetivo ou sendo adjetivado por

outro termo, como terapia do luto (grief therapy) ou luto antecipatório (anticipatory grief).

Segundo os editores desta enciclopédia (HOWARTH; LEAMAN, 2002, p. xvi), a morte

é um dos poucos aspectos da vida que é verdadeiramente interdisciplinar e de importância para

toda a humanidade. Contudo, o fato de ser interdisciplinar pode dificultar a entrada de um

pesquisador no tema, pois a literatura tende a se organizar por disciplinas e não por temas. Este

documento, portanto, tem o objetivo de apresentar conteúdos sobre a morte e o morrer, das

diversas perspectivas interdisciplinares e culturais, em ordem alfabética. Os verbetes

consultados foram também considerados como objeto de análise, pois evidenciam definições

de luto, os modelos teóricos e os trabalhos empíricos no campo e modelos terapêuticos. Ao

final de cada verbete são ainda sugeridas referências bibliográficas, para o leitor que tenha

interesse em aprofundamento em determinado tema.

Conforme apresentado, outro manual utilizado foi o Manual Diagnóstico e Estatístico de

Transtornos Mentais, o DSM, elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria. Contudo,

para fins específicos de análise, apenas a quinta edição, a mais recente, foi considerada. O

DSM se propõe a ser um guia prático, funcional e flexível de informações, para auxiliar no

diagnóstico preciso e no tratamento adequado de transtornos mentais. Trata-se, portanto, de um

recurso essencial para clínicos, estudantes, profissionais e pesquisadores da área, uma vez que

viabiliza uma linguagem comum entre os profissionais de diferentes orientações (AMERICAN

PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. xli).

Nesta edição do manual constam três seções e um apêndice: a primeira seção comunica as

informações básicas sobre o DSM; a segunda aborda os critérios diagnósticos e os códigos; e a

terceira seção trata dos instrumentos de avaliação e modelos emergentes. Esta última seção

38 Enciclopédia da morte e do morrer, em português.

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destaca transtornos que, por não estarem suficientemente bem estabelecidos, carecem de mais

estudos para integrar a classificação oficial de transtornos mentais, como é o caso do

Transtorno do Luto Complexo Persistente. No Apêndice constam ainda algumas informações,

como as principais mudanças que a edição atual apresenta em relação com a edição anterior, a

correlação dos códigos do DSM com os códigos da Classificação Estatística Internacional de

Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), manual também usado

internacionalmente, e um índice. Por meio deste, foi possível localizar e analisar todas as

páginas do manual que continham a palavra ‘luto’, seja como diagnóstico diferencial ou como

transtorno.

Ao situar o luto como diagnóstico diferencial do Transtorno Depressivo Maior e do

Transtorno de Ansiedade de Separação, o DSM aponta sintomas referentes ao que considera

normal em um processo de luto e que, portanto, não deve ser confundido com tais transtornos.

Na formulação do que poderá vir a ser classificado como Transtorno do Luto Complexo

Persistente, o manual destaca certos sintomas, que devem ser percebidos como disfuncionais,

para um diagnóstico de um luto complicado, e discrimina fatores de risco.

O Handbook of Bereavement Research and Practice: Advances in theory and

intervention39

também foi utilizado. A atual terceira edição deste livro-texto, organizado por

Margaret Stroebe e colaboradores apresenta aos leitores o vasto campo científico sobre o luto,

com a colaboração dos principais pensadores e pesquisadores sobre o tema. Este manual busca

abranger a gama de conhecimento sobre o luto, abordando desde análises evolutivas e

biológicas até perspectivas construtivistas e sociológicas. Além disso, apresenta diversos

tópicos acerca desta temática, como o luto após um desastre e o luto não-autorizado. Deste

modo, este livro-texto abrange o luto sobre diferentes contextos familiares, sociais, religiosos e

culturais, além de abordar as principais teorias, como também suas implicações e aplicações

(OYEBODE, 2009).

Este conteúdo está dividido em 27 capítulos, organizados em seis seções. São elas:

Introdução; Abordagens e questões científicas contemporâneas; Preocupações sociais

contemporâneas40

; Padrões e consequências do luto: fenômenos e manifestações; Padrões e

consequências do luto: perspectivas relacionais; Conclusão. Devido à sua visão geral do

estado-da-arte do tema, foram selecionados capítulos de caráter teórico para a análise.

39 Manual de pesquisa e práticas em luto: avanços na teoria e na intervenção, em português. 40 “Contemporary societal and practice concerns” no original em inglês.

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Contudo, apesar destes capítulos apresentarem modelos teóricos sobre luto, definições de luto

complicado e fatores de risco, o material analisado, em conjunto com outros capítulos de

perspectiva sociológica, acabaram por contribuir de maneira mais relevante na discussão

apresentada nesta pesquisa.

Ainda sobre os materiais internacionais específicos sobre luto, foi também analisado o

Guía para familiares en duelo, da SECPAL. Este guia, elaborado a partir da experiência

profissional dos autores, é destinado aos familiares de pacientes em cuidados paliativos e tem

por objetivo proporcionar os elementos necessários para enfrentar os momentos da perda de

um ente querido. Assim, o guia busca transmitir informações teóricas e práticas sobre o luto, a

partir de um texto breve, com linguagem coloquial. As orientações contidas neste guia

objetivam auxiliar o familiar enlutado a enfrentar os momentos difíceis do luto, para alcançar

um reequilíbrio de sua vida, prévia à perda. Segundo o guia, o enfrentamento pode acontecer

com ou sem acompanhamento profissional.

A análise das construções científicas nacionais também foi baseada em manuais de

Cuidados Paliativos e em um manual específico sobre o luto. O primeiro material analisado foi

o Manual de Cuidados Paliativos, organizado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos

(ANCP). A ANCP foi idealizada durante o Congresso Internacional de Cuidados Paliativos &

Dor, em 2004, realizado no Instituto Nacional do Câncer (INCA), no Rio de Janeiro. Até

então, os profissionais interessados no ideário paliativista pertenciam a grupos estaduais de

assistência e/ou ensino dos Cuidados Paliativos. Constatou-se neste evento a necessidade de

organizar uma entidade que representasse e lutasse pelo reconhecimento dos Cuidados

Paliativos, enquanto especialidade médica e por sua viabilidade junto ao Sistema Único de

Saúde, a fim de garantir o conhecimento e acessibilidade a esta alternativa de tratamento em

todo o território brasileiro. Em 2005 a ANCP foi fundada, e conta com 35 médicos signatários

da ata de fundação, momento em que também se elegeu a primeira diretoria e um estatuto que

delineia os objetivos da academia. A fundação da ANCP é um marco na medicina ensinada e

praticada no Brasil, uma vez que almeja o reconhecimento e divulgação dos Cuidados

Paliativos, frente às instâncias políticas e à população brasileira41

.

A segunda edição do Manual de Cuidados Paliativos ANCP, lançada em 2012, foi

elaborada por profissionais de saúde comprometidos com o tema e sua divulgação. O manual

41 Informação obtida no site da ANCP, disponível em: http://www.paliativo.org.br/home.php. Último acesso em:

10 de janeiro de 2017.

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foi produzido com o objetivo de promover a melhora da qualidade de vida dos pacientes e seus

familiares, na medida em que previne e trata do sofrimento físico, psicológico, social e

espiritual. Seus 56 capítulos estão organizados em nove seções: Introdução; Controle de

Sintomas; Síndromes clínicas; Procedimentos em Cuidados Paliativos; A equipe

multiprofissional em Cuidados Paliativos; Cuidando do paciente e de sua família; Tópicos

especiais em Cuidados Paliativos; Assistência ao fim da vida; Anexos.

Foi selecionado para análise o único capítulo do Manual de Cuidados Paliativos ANCP

que trata exclusivamente do luto. Neste capítulo, Débora Genezini efetua uma síntese das

principais construções teóricas, de modo a situar o profissional de saúde que se aproxima do

tema. A autora apresenta uma definição de luto, luto antecipatório e luto complicado, faz

referência ao modelo teórico de Worden e aos demais modelos de fases de luto de forma

crítica e, ainda, indica algumas possíveis intervenções e situações de risco para as quais os

profissionais devem estar atentos.

O Tratado de Geriatria e Gerontologia, outra referência nacional analisada, teve sua

primeira edição lançada em 2002. Em 2011 chegou à sua terceira edição, mantendo sua

responsabilidade com a construção científica que perpassa questões ético-científicas, políticas

e socioeconômicas contemporâneas. Esta obra, editada por Elizabete Viana de Freitas e Ligia

Py, é realizada em parceria com a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG),

organização que desde sua fundação em 1961, mantém o compromisso acadêmico, com o

intuito de divulgar e fortalecer estas especialidades42

. Este tratado reúne estudos sobre as

patologias relacionadas com o envelhecimento, sejam as adquiridas na velhice ou nos anos que

a precedem. A existência de pacientes crônicos, fora de perspectivas terapêuticas e terminais,

destaca a importância de uma geriatria paliativa que enfoque temas de ordem biopsicossocial.

Os 157 capítulos do livro estão divididos em oito partes, sendo as três primeiras

compostas por 82 capítulos destinados a temas especiais em geriatria, enquanto as demais

seções abordam temas ligados à gerontologia. Destes, foram selecionados para análise três

capítulos, das seções destinadas à Gerontologia, que abordam especificamente a presença da

morte (própria ou dos outros) na velhice e o luto nesta etapa da vida. Entre as principais

questões apresentadas nos capítulos, destacam-se: as definições de qualidade de vida e

“qualidade de morte” como prevenção de um processo de luto complicado; a viuvez como

42 Informação obtida no site da associação, disponível em: http://sbgg.org.br/. Último acesso em: 10 de janeiro

de 2017.

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fator de risco agravada pela questão de gênero, e críticas a alguns modelos e construções

teóricas.

Por fim, mas não menos importante, adicionou-se o Tratado Brasileiro de Perdas e Luto

aos demais objetos de análise. Este tratado, lançado em 2014, é um material ainda único na

literatura brasileira, por reunir mais de 60 autores nacionais e estrangeiros, no intuito de

abranger a pluralidade e interdisciplinaridade da temática do luto. Para além da abordagem

psiquiátrica e psicológica, o tratado atende à tendência contemporânea de dar voz às

contribuições provenientes de outros campos de conhecimento, como a religiosa, a filosófica, a

pedagógica, a estética e assistencial. Deste modo, os 54 capítulos do livro encontram-se

divididos em quatro grandes módulos: Luto – visões plurais e interdisciplinares; Fundamentos,

conceitos, pesquisas e contextos; Luto e a educação; Assistência aos enlutados.

Uma vez que o objetivo desta pesquisa é analisar a construção científica e de um corpus

teórico acerca do luto na contemporaneidade que ditam as prescrições terapêuticas a ele

referidas, foram selecionados sete capítulos, cujos títulos demostram abordar diretamente esta

temática. O capítulo de conceituação do luto situa o leitor acerca das produções teóricas nas

quais os principais manuais sobre luto se baseiam. Apresenta a teorias de certos autores, como

Colin Parkes, Erich Lindemann, John Bowlby, Elisabeth Kübler-Ross e William Worden, além

de localizar o luto no DSM e no CID. No segundo capítulo selecionado, “Modelos de luto

‘normal’”, o autor, João Paulo Solano, aprofunda alguns dos modelos teóricos já apresentados

no capítulo anterior e pontua algumas críticas a eles. Em outro capítulo, ao abordar o luto

complicado, Solano expõe certos fatores de risco, previstos por pesquisas prévias, e algumas

críticas presentes na literatura, quanto ao diagnóstico e inclusão do luto complicado no DSM.

Outras questões apresentadas no tratado que merecem destaque referem-se à resiliência e à

importância da construção de narrativas no processo de elaboração do luto.

5.1 LUTO: DEFINIÇÃO E REFERENCIAIS TEÓRICOS

Para fins didáticos, optou-se por dividir de forma temática o conteúdo analisado dos

documentos selecionados. Primeiramente, foram examinados os conceitos dos tipos de luto

abordados e os modelos teóricos citados. Estas categorias são essenciais para adentrar o campo

uma vez que são estas construções teóricas que embasam as práticas profissionais – categoria

que será analisada adiante.

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46

Em um plano geral, os manuais não diferem significativamente em relação aos conceitos

e modelos teóricos. Alguns capítulos apresentam um panorama mais amplo da construção

teórica, abordando de forma crítica as definições de luto e os modelos teóricos. Outros

capítulos, mais breves, oferecem uma definição de luto e se restringem a algumas teorias. Uma

vez que essa diferença de abordagem não corresponde à origem disciplinar do capítulo –

oriundo de manual de luto ou de Cuidados Paliativos – esta diferença parece refletir a

finalidade do manual. Algumas obras parecem apresentar o tema de forma a orientar leigos ou

profissionais que possam vir a se deparar com uma situação de luto, enquanto outros

aprofundam as questões teóricas, instigando reflexões dos profissionais de saúde e

pesquisadores sobre suas condutas. Não se trata, portanto, de divergências teóricas, mas de

exames mais ou menos profundos acerca do tema.

É consenso entre os manuais que o luto é um fenômeno natural, vivenciado em

decorrência da morte de uma pessoa querida, que sofre influências culturais. Contudo, esse

aspecto de sua natureza não é explorado pela maioria dos manuais, que tendem a naturalizar

este conceito. As únicas exceções que fundamentam a questão biológica do luto são o capítulo

escrito por John Archer, “Theories of grief: past, present, and future perspectives43

”, no

Handbook of bereavement research and practice44

, e o capítulo de Adriana de Oliveira e Silva,

“Conceituando o luto”, para o Tratado brasileiro de perdas e luto. Estes autores fazem

referência às pesquisas de Charles Darwin que, apesar de não desenvolver uma teoria

específica sobre o luto, observou expressões faciais comuns ao processo de enlutamento em

adultos, crianças e animais. Conforme explicitado por Silva (2014, p. 72) a obra de Darwin

intitulada “The expression. of the emotions in men and animals45

”, publicado em 1972, embasa

o desenvolvimento posterior do tema, que entende o luto em termos de seleção natural, uma

vez que é encontrado em aves e mamíferos.

Em geral, os demais capítulos iniciam sua fundamentação teórica a partir dos estudos

psicanalíticos de Freud ou Bowlby, que focam na questão da vinculação afetiva, que é abalada

no evento da morte. Frente a essa desestabilização do vínculo ocasionada pela morte, parece

ser um consenso entre os teóricos da área a ideia de que o processo de luto é um trabalho de

adaptação a uma nova realidade, sem a existência da pessoa amada. Segundo William Worden,

43 Teorias do luto: perspectivas do passado, do presente e do futuro, em português. 44 Manual de pesquisa e prática em luto, em português. 45 A expressão das emoções nos homens e nos animais, em português.

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psiquiatra americano, a perda definitiva de uma pessoa amada ou a iminência desta perda

provoca um desequilíbrio no estado de bem-estar do indivíduo, configurando uma situação

psicologicamente traumática (GENEZINI, 2009, p. 323). O Guía para familiares en duelo, da

SECPAL, com material elaborado especificamente para auxiliar os familiares enlutados com

elementos necessários para o enfrentamento, explicita este caráter adaptativo em sua primeira

página de conteúdo. Segundo o guia: “O luto é o processo de adaptação que permite

reestabelecer o equilíbrio pessoal e familiar rompido com a morte de um ser querido” (2007, p.

7). Portanto, retornar a um estado similar de equilíbrio é um processo que demanda tempo.

Apesar de alguns manuais, como o DSM-V e o Guía para familiares en duelo, estipularem

uma média normal de tempo para elaboração desta nova realidade, entende-se que o período de

tempo necessário sofre influência de algumas variáveis individuais, relacionais (entre o

enlutado e o falecido) e circunstanciais (relativos ao evento da morte).

O primeiro relato teórico sobre luto do qual se tem ciência é a teoria desenvolvida por

Sigmund Freud em “Luto e Melancolia” (2006), publicado em 1917. Neste artigo, Freud

afirma que, embora o luto envolva grave afastamento daquilo que se constitui a atitude normal

da pessoa perante a vida, este fenômeno não deve ser considerado uma condição patológica e

ser submetido a tratamento médico – os episódios agudos de dor e a busca pelo objeto perdido

são considerados como reações instintivas, a serviço da sobrevivência (ALVES, 2014, p. 349).

Segundo Freud, o luto tem a função específica de romper os vínculos afetivos com o falecido,

por meio de um trabalho ativo realizado pelo enlutado (ARCHER, 2011, p. 45). O luto é

descrito como um período em que a realidade da perda é repetidamente testada por meio de

confrontações com memórias e pensamentos relativos à perda (NYATANGA, 2005, p. 105). O

período de luto é entendido como um mecanismo de adaptação em que o enlutado ativamente

promove o esvaziamento de energia investida no falecido, para que possa ser redirecionada a

outros objetos (KNOTT, 2002, p. 51). Nesta concepção, a completa retirada do vínculo é

fundamental para que o processo de luto se complete e o enlutado continue seguindo com sua

vida.

Apesar das críticas de pesquisadores, a concepção freudiana ainda influencia teorias e

práticas. Ao relativizar a concepção do ‘trabalho de luto’ proposto por Freud, advoga-se que o

processo de adaptação não depende do rompimento de vínculos estabelecidos com o falecido.

Ao contrário, os enlutados devem enfrentar sua perda e ressignificar este vínculo.

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Após Freud, Erich Lindemann, psiquiatra alemão-americano, desenvolveu o primeiro

estudo científico sobre as reações de luto, inaugurando um campo de descrições empíricas

nesta área, com o intuito de compreender as reações de luto e como manejá-las (KAUFFMAN,

2002, p. 313). Lindemann acompanhou e estudou familiares das quase 500 pessoas que

morreram em um incêndio ocorrido na discoteca Coconut Grove Night Club, em Boston, em

1942. A partir deste estudo, Lindemann publicou, em 1944, “Symptomatology and

manegement of acute grief46

”, obra clássica na área. Seguindo os passos do seminário de

Freud, este estudo aborda as reações de luto, em sua complexidade emocional e somática. A

partir das entrevistas realizadas com os familiares após o desastre, Lindemann definiu seis

características comuns à experiência de uma morte repentina, que nomeou de “luto agudo”.

Elas seriam: estresse físico, ruminações sobre a perda, culpa, raiva, redução da funcionalidade

e tendência a internalização do ser perdido (SILVA, 2014, p. 73).

Lindemann considera o luto uma síndrome emocional cujas consequências podem ser

normais ou patológicas – em outros termos, um luto normal ou disfuncional. Conforme

enumerado por Silva (2014, p. 73) e por Kauffman (2002, p. 313), Lindemann distingue nove

reações disfuncionais do luto:

Hiperatividade, sem um sentimento de perda;

Sensação de sintomas em semelhança aos sofridos pelo falecido;

Reações psicossomáticas;

Alterações nos relacionamentos sociais;

Raiva e hostilidade contra pessoas específicas;

Repressão da hostilidade, acarretando um comportamento rígido;

Perda duradoura dos padrões de interação social;

Ações prejudiciais ao próprio bem-estar social;

Depressão agitada.

John Bowlby, médico psiquiatra e psicoterapeuta inglês, na década de 1960, desenvolveu

a teoria psicanalítica conhecida como Teoria do Apego, baseando-se nas reações emocionais,

cognitivas e biológicas da criança, diante da separação temporária com a mãe. Posteriormente

o autor expandiu o contexto de seus estudos, englobando as demais relações biológicas

importantes, como as sociais. Segundo a Teoria do Apego, o desenvolvimento de vínculos

46 Sintomatologia e manejo do luto agudo, em português.

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afetivos com outras pessoas é fundamental no desenvolvimento da pessoa, uma vez que gera

segurança e potencial de sobrevivência (KISSANE, 2005, p. 1138). Os primeiros laços

afetivos estabelecidos, em geral na relação do bebê com a mãe e os demais laços familiares,

dependendo do contexto, podem transmitir padrões de segurança ou insegurança. Estes

padrões emocionais, cognitivos e comportamentais se repetem, frente a situações de perda de

alguém com que se tinha um vínculo considerado importante (SILVA, 2014, p. 74).

O processo de vinculação envolve um sistema motivacional que tem como objetivo

orientar comportamentos para que esta ligação seja mantida (ARCHER, 2011, p. 48). Assim,

separações temporárias induzem a reações emocionais e a motivações comportamentais para

retomar contato com a pessoa com quem se está vinculado. Segundo Bowlby, essas reações

frente a uma situação de separação temporária são consideradas uma resposta adaptativa, uma

vez que os vínculos são importantes para a sobrevivência. Contudo, no caso do luto, essas

reações ocorrem em uma situação em que a reunião não é possível. Já que separações

temporárias acontecem com frequência geralmente maior do que perdas permanentes devido à

morte, o luto é então considerado como um preço a se pagar, frente às reações de separação

adaptativas (ARCHER, 2011, p. 48).

Assim, Bowlby estudou as reações das pessoas frente às perdas e elaborou um modelo de

cinco fases sobre a tentativa de adaptação característica do luto. A primeira seria definida por

um estado de torpor e protesto. A duração desta fase pode variar entre poucos instantes a

vários dias, e é marcada por emoções extremas, que podem envolver a negação e a raiva. A

segunda fase, que pode durar semanas ou anos, tem como principal característica a busca

motivada pelo desejo intenso pela presença da pessoa perdida, acarretando sentimentos de

preocupação pela pessoa falecida e inquietação física. Quando o enlutado começa a perceber

que suas “tentativas de busca” não surtem efeito, ocorre o início de um momento caracterizado

pela desorganização e desespero. Neste estágio, a realidade da perda começa a ser assimilada e

as memórias são revividas, de modo que pode haver sensação de sobrecarga e pouca energia.

A quarta fase é marcada pela reorganização, em que o enlutado redefine novos objetivos para

sua vida, desencadeando uma readaptação ao cotidiano (SILVA, 2014, p. 313-314).

Colin Murray Parkes, psiquiatra inglês, iniciou seus estudos sobre luto no final da década

de 1950 e, poucos anos depois, ingressou na equipe de John Bowlby, parceria que se manteve

até 1992, com a morte de Bowlby. Na década de 1970, Parkes expande os estudos sobre luto

de Bowlby, ao abarcar estudos empíricos pioneiros (ARCHER, 2011, p. 46). Segundo a teoria

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do colapso da visão de mundo desenvolvida por Parkes, a morte de alguém é entendida como

uma catástrofe, o que exige do enlutado uma transição psicossocial vivida em duas fases de

reação. A primeira se refere a uma reação aguda, caracterizada por um tumulto de emoções

intensas, enquanto a segunda fase, a crônica, é caracterizada por vivências de vazio, de perda

do sentido da vida e de isolamento social (SOLANO, 2014, p. 110).

Outra proposta apresentada por Parkes é a “teoria biológica do luto”, que aborda as

seguintes reações de luto: alarme, procura, alívio, raiva e culpa, e obtenção de nova realidade.

No ‘alarme’ observam-se reações fisiológicas relacionadas ao estresse, como aumento da

pressão arterial e frequência cardíaca, perda de apetite, insônia, problemas digestivos, além de

sentimentos de raiva e irritação, e lembranças intrusivas. A ‘procura’ envolve uma dor

emocional aguda, inquietação, preocupações e pensamentos relacionados com o falecido, com

uma diminuição de interesse pela própria aparência e cotidiano. O ‘alívio’ ocorre devido às

percepções, sensações ou crenças na presença do falecido ou de contato com ele por meio do

sonho. A negação ou descrença na realidade também podem acontecer, com a finalidade de

produzir alívio. Raiva e culpa também são sentimentos frequentes no processo de luto,

podendo ser autodirigidos, direcionados ao falecido ou a outras pessoas. Com a sensação de

obtenção de uma nova identidade o processo de luto chegaria ao fim, segundo Parkes. Esta

sensação é necessária, já que a morte pode provocar alterações no entendimento do mundo,

provocando modificações nos papéis assumidos pelo enlutado, devido à falta do falecido

(SILVA, 2014, p. 73).

No final dos anos 1960, Elisabeth Kübler-Ross foi pioneira nos estudos sobre a morte e o

morrer, em uma época em que a temática da morte era tabu em discussões sociais e, até,

profissionais. A partir de seu trabalho com pacientes terminais, a autora estabelece os cinco

estágios que seriam vividos no processo do morrer e, também, no processo de luto. A proposta

de Kübler-Ross é a mais conhecida entre leigos no Ocidente, mas também por vezes mal

interpretada, inclusive por profissionais, ao considerarem o processo de luto como uma

progressão linear (KNOTT, 2002, p. 51). De fato, a autora esclarece que nomeia de estágios

por falta de um termo mais adequado, mas aponta que não há uma linearidade a ser seguida,

nem a obrigatoriedade de passar por todos os estágios (SILVA, 2014, p. 74). Assim, Genezini

(2009, p. 324) lembra aos leitores que a delimitação em fases tem função norteadora para o

profissional, auxiliando a identificação de alterações não-adaptativas ao luto, mas não como

um protocolo, já que o luto é um processo individual e subjetivo.

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51

As cinco fases descritas por Kübler-Ross são: negação, raiva, negociação, depressão e

aceitação. A primeira é caracterizada pela negação cognitiva da realidade e manutenção da

realidade pelo enlutado – é uma negação simbólica. A raiva surge conforme a evitação

cognitiva falha, e pode ser expressa com intensidade ou abafada devido a sentimentos de culpa

ou inadequação. Quando expressa, a raiva pode ser dirigida às pessoas e aos profissionais

envolvidos, ou para si mesmo, produzindo sentimentos de culpa. Na etapa da negociação,

dependendo do sistema de crenças do enlutado, pode haver uma tentativa de contato ou elo que

facilite a aceitação da perda. Conforme a morte é entendida como real e que a raiva ou a

negociação não irão reverter a situação, aproxima-se a fase da depressão. O enlutado passa a se

centrar no tempo presente e, com tal reação, pode experimentar determinadas emoções, como

tristeza, pesar e percepção de “vazio”, assim como isolamento social, que pode dificultar a

readaptação à vida. Por fim, na fase de aceitação, a morte é entendida como inevitável e o

enlutado começa a se reorganizar, interiorizando as características positivas do falecido e

readaptando-se de forma construtiva à vida (SILVA, 2014, p. 74).

Apesar de pouco citada (KAUFFMAN, 2002; SILVA, 2014), Therese Rando,

tanatologista e psicóloga clínica norte-americana, especialista em ciências comportamentais,

oferece importante colaboração, especialmente sobre o tema do luto antecipatório. Seu

trabalho, desenvolvido a partir do final da década de 1980, integra aspectos provenientes de

distintas observações e teorias. Rando propõe três fases de luto, que devem ser cumpridas para

que se alcance uma resolução saudável. Contudo, apesar de serem apresentadas em distintos

períodos de tempo, Silva afirma que fica claro na obra de Rando que as fases não têm uma

ordem fixa, podendo se sobrepor ou serem revividas, do mesmo modo em que não há a

obrigatoriedade de vivenciar todas as fases. A primeira fase seria a evitação, típica do

momento após o recebimento da notícia. As reações assemelham-se às observadas em

situações traumáticas e há uma necessidade de reconhecimento de que a perda é real. Em

seguida, a fase da confrontação é considerada como a mais intensa emocionalmente, uma vez

que há uma vivência da dor da separação, e a percepção de perdas secundárias, em decorrência

da morte. Nesta fase é possível experienciar certas emoções, como tristeza, raiva, protesto,

busca pelo ser perdido e o relativo enfrentamento desses sentimentos. Na terceira fase de

acomodação, conforme os sintomas de luto agudo são suavizados, o enlutado passa a se

readaptar social e emocionalmente à nova realidade sem a pessoa perdida, investindo em

novos projetos e novas relações (SILVA, 2014, p. 75). No enfrentamento, Rando distingue

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ainda seis processos que ocorrem sequencialmente: reconhecimento da perda, reação à

separação, recordar o morto e o relacionamento, abandonar vínculos antigos com o morto e

com o mundo pressuposto, reajustamento de forma adaptativa frente ao novo mundo (sem

esquecer-se do antigo) e reinvestimento (KAUFFMAN, 2002, p. 312).

Talvez o trabalho mais citado nos manuais analisados seja a concepção de J. Willian

Worden, sobre suas construções teóricas ou em torno de suas indicações de intervenção

profissional (WORDEN, 2002; KISSANE, 2005; NYATANGA, 2005; REVERTE e

CÀRCER, 2007; GENEZINI, 2009; DOLL, 2013; SANTOS, 2014; SILVA, 2014; SOLANO,

2014). Há, inclusive, um verbete na Encyclopedia of death and dying, escrita pelo próprio

autor, sobre sua teoria, que explica o processo de luto como tarefas. Seu trabalho,

desenvolvido a partir da década de 1980, tem como referência inicial a Teoria do Apego de

Bowlby, e entende o luto como um processo contínuo, que parte da intensa dor aguda devido à

perda, até o momento de ajustamento às novas relações. Este processo pode ser facilitado por

determinadas intervenções profissionais, como aconselhamento ou terapia.

Segundo Worden (2002, p. 217), o processo de luto envolve quatro tarefas, que não

precisam ser concluídas em uma ordem específica e podem ser revisitadas. Contudo, faz a

ressalva de que o processo de luto pode sofrer complicações, quando essas tarefas não são

efetivamente completadas. A primeira tarefa diz respeito à aceitação da perda, não sendo

apenas uma aceitação racional, mas também emocional. É frequente o sentimento de

irrealidade imediatamente após a perda, o que pode provocar atitudes de busca. Por esta razão,

esta aceitação pode ser facilitada, com a visão do corpo do falecido, com conversas sobre a

morte e suas circunstâncias. A segunda tarefa implica a experiência e o processo do sofrimento

psicológico resultante da perda, a fim de que este não se manifeste por algum sintoma

somático ou reapareça em uma perda futura, o denominado ‘luto adiado’. O luto é

multideterminado e, portanto, a dor pode ser experimentada de maneiras diferentes, de acordo

com o tipo e natureza de relacionamento. Assim, enquanto algumas dores podem ser amenas,

outras podem desencadear complicações médicas, como transtorno de ansiedade ou depressão

(WORDEN, 2002, p. 218). A terceira tarefa envolve o ajustamento interno e externo do

enlutado ao ambiente sem o falecido. Worden formula essa tarefa de forma ampla, pois o

ajustamento irá depender do relacionamento estabelecido e dos papéis que o falecido

desempenhava na vida do enlutado. O tempo desta tarefa também é especialmente variável,

uma vez que pode contar com um tempo de meses, até uma percepção de todas as perdas

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secundárias acarretadas por aquela morte. A última tarefa implica em realinhar os laços com o

falecido, para que o enlutado possa seguir em frente. Ao contrário da teoria de rompimento de

vínculos de Freud, Worden entende que o falecido nunca estará completamente fora da vida do

enlutado e, assim, este precisa achar um lugar para que a pessoa possa ser lembrada, ao mesmo

tempo em que um espaço é deixado livre, para que o sobrevivente possa seguir com sua vida e

estabelecer novos relacionamentos.

Este modelo de trabalho de luto de Worden é considerado revolucionário, ao declarar

que o sofrimento deve ser vivido de forma ativa, por meio das quatro tarefas. O autor

considera que a espera passiva do enlutado pelo término do processo de luto é, de fato, um

fator de risco que pode resultar em um luto complicado (SOLANO, 2014, p. 109). De acordo

com Doll (2013, p. 1872), a ideia proposta por Worden de elaboração do luto em fases, com

uma expectativa de voltar a um status considerado normal, em certo período de tempo,

influencia o trabalho prático de profissionais ou leigos sobre o luto, como intervenções e

terapias – assunto que será abordado adiante com mais detalhes, no próximo tópico.

Apesar das diferenças e das críticas aos modelos apresentados, especialmente quanto ao

suposto caráter prescritivo e linear das fases e tarefas, estas teorias são consideradas de grande

relevância pelos profissionais e pesquisadores da área, influenciando teorias e práticas até o

momento. Contudo, nenhum desses modelos em isolado é considerado suficiente para explicar

o fenômeno do luto.

Magaret Stroebe e Henk Schut, professores alemães na área de psicologia clínica e da

saúde criticam essas teorias, alegando que elas explicam o fenômeno do luto de forma ampla,

sem explorar as vias de enfrentamento individuais (KISSANE, 2005, p.1138). É neste sentido

que, em 1995, os autores propuseram o Modelo de Processo Dual, na busca de abranger os

diferentes conhecimentos dos modelos preexistentes e, ainda, ampliar a teoria, abordando o

enfrentamento sobre o luto. De fato, este modelo foca no enfrentamento individual,

entendendo que este fator é determinante na boa adaptação.

Os autores sugerem que, frente a um evento de perda, o enlutado irá oscilar entre dois

processos. Um dos processos diz respeito ao enfrentamento orientado para a perda em si,

enquanto o outro processo se refere ao enfrentamento orientado para restauração. Segundo a

proposta, o enlutado oscila entre os dois tipos de enfrentamento de forma não padronizada.

Contudo, é frequente que, nos primeiros momentos após a perda, apresente-se um foco maior

no enfrentamento orientado para a perda. Os dois processos são compostos por pensamentos,

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sentimentos e comportamentos que podem ter significados positivos ou negativos, como

reavaliação ou ruminação, revisão de metas e interpretação do evento, que podem acontecer de

forma construtiva ou não. Os exemplos de enfrentamento são oferecidos pelos autores,

podendo se referir aos dois processos, independente do caráter positivo ou negativo, que os

classificam.

Deste modo, o Modelo de Processo Dual propõe um confronto ativo ao luto. Este

confronto é feito de forma dinâmica, a fim de alcançar um equilíbrio entre o enfrentamento e a

evitação. Os autores entendem que por vezes o enlutado precisa de tempo para ‘descansar’ do

estresse do sofrimento ocasionado pela perda. Assim, estas emoções negativas são

compensadas por uma reavaliação positiva e pela construção de significados. O equilíbrio

proposto consiste em viver o luto e permitir a restauração e ambos sofrem influências

interpessoais e culturais (KISSANE, 2005, p. 1138).

Alguns manuais (MALKINSON, 2002; KISSANE, 2005; NYATANGA, 2005; DOLL,

2013) citam ainda a contribuição das teorias sociológicas construtivistas a partir do trabalho de

Tony Walter, do final da década de 1990. A perspectiva sociológica baseada no interacionismo

simbólico reconhece a importância dos grupos e redes, como a família e amigos, no processo

de luto. Apesar das variações culturais nos padrões de socialização, é considerado que as redes

de suporte têm uma influência fundamental no ajustamento (KISSANE, 2005 p. 1138). Walter

entende que o significado da perda e da pessoa falecida é negociado em interações sociais

entre o enlutado e as pessoas em seu entorno. Assim, a partir das relações, constrói-se uma

biografia da pessoa falecida, de modo que o processo de luto é resolvido quando a pessoa

enlutada consegue construir uma biografia estável, integrando a memória da pessoa falecida à

sua vida atual (DOLL, 2013, p. 1879). Portanto, segundo a teoria de Walter, a recuperação do

luto não significa voltar ao mesmo estado anterior, mas incluir a memória do falecido na vida

futura, o que pode implicar em crescimento e amadurecimento pessoal.

Ao considerar o luto como fenômeno natural e cultural, as teorias buscam elucidar que

seus sinais e ‘sintomas’ são normais nesse momento. Por englobar angústia emocional,

processos cognitivos, respostas físicas, aspectos comportamentais e, até, mudanças

fisiológicas, considera-se que o luto e a depressão se encontram em um continuum biológico

(KISSANE, 2005, p. 1138). Assim, é frequente, entre as teorias, a proposta de orientar o

enlutado e o profissional acerca de reações usuais ao luto, para que este evento não seja

medicalizado desnecessariamente, por ser diagnosticado de forma errônea como um transtorno

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depressivo. No entanto, com exceção do Guía de Cuidados Paliativos da SECPAL, de alguma

forma, todos os manuais abordam o tema concernente a uma possível complicação do luto,

seja orientando quanto ao trabalho de prevenção no momento do luto antecipatório ou

definindo os tipos de luto complicado e seus possíveis fatores de risco. A frequência desse

tema indica a preocupação profissional e, portanto, social e possivelmente individual, sobre a

vivência do luto, de forma a garantir que este evento não seja mais devastador do que seria

naturalmente.

Prigerson, Vanderwerker e Maciejewski (2011, p. 168) afirmam que aproximadamente

de 80% a 90% dos enlutados vivenciam uma experiência ‘normal’ de luto. Segundo os autores,

por mais doloroso e disruptivo que seja o ‘luto normal’, o enlutado supera a sensação inicial de

descrença e, gradualmente, começa a aceitar a perda como uma realidade. Assim, consideram

que a grande maioria dos enlutados é capaz de eventualmente seguir com suas vidas, suas

funções e atividades diárias, ao se ajustar à perda de forma mais ou menos adaptativa.

Contudo, sob algumas circunstâncias, o luto pode ser extremamente angustiante e

debilitante – caso que configuraria um ‘luto complicado’ (PRIGERSON, VANDERWERKER

e MACIEJEWSKI, 2011, p. 165). Portanto, a ideia de um luto complicado está associada à

noção de disfuncionalidade, devido à inabilidade de adaptação à perda e de conduzir o luto a

uma conclusão satisfatória (DAVIES e ORLOFF, 2005, p. 833).

É considerado normal o luto com algum grau de perturbação emocional e de déficit nas

atividades diárias, por um período de tempo. No entanto, diante da incapacidade do enlutado

de retornar a um funcionamento adequado, o luto passa a ser classificado como complicado, e

a intervenção profissional é indicada. Deste modo, a barreira entre uma disfuncionalidade

‘normal’ e uma ‘anormal’ está vinculada às noções de duração e intensidade dos sintomas.

Ainda assim, essa definição é pouco objetiva e não possibilita um consenso sobre um corte,

que determine quando o luto ‘normal’ pode começar a ser considerado ‘anormal’.

Nyatanga (2005, p. 107) afirma que, apesar da sugestão de tempo como critério de

diferenciação ser útil, ela também é arbitrária e pode ser discriminativa, já que os tempos dos

indivíduos variam e podem se afastar da curva prevista. Malkinson e Witztum (2002) criticam

as abordagens tradicionais, originárias de modelos médicos, que baseiam suas definições de

luto complicado nas noções de intensidade, duração e desvinculação com o falecido. Para estes

autores, apesar de haver embasamento para a ideia de diminuição da intensidade de reações no

decorrer do tempo, não há sustentação para a suposição de que há um limite de tempo para o

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luto e que sua consequência é a desvinculação. Desta forma, eles consideram que o luto é um

processo vitalício, e que o ‘luto patológico’ pode ser entendido como a intensificação do luto,

de modo que o funcionamento é afetado e a pessoa permanece em uma espécie de luto

contínuo, sem conseguir progredir para uma reorganização ou adaptação (MALKINSON e

WITZTUM, 2002, p. 219).

Apesar da dificuldade de mensurar e delimitar uma fronteira entre o luto ‘normal’ e o

‘complicado’, a atenção dada a esse tema pelos manuais reflete a preocupação social e

profissional com o evento do luto. Além de caracterizar o que pode ser considerado normal no

luto, é importante determinar em quais aspectos o luto pode ser considerado complicado e

como preveni-lo. Deve-se evitar ao máximo que o sofrimento causado pela morte de alguém

ou sua iminência não seja intenso nem duradouro, a ponto de causar alguma disfuncionalidade.

É no intuito de prevenir uma complicação do luto que se torna crucial a atenção profissional

sobre o período do ‘luto antecipatório. Na Encyclopedia of death and dying, Charles A. Corr

afirma que este conceito foi introduzido por Erich Lindemann, em 1944, para aludir às reações

de luto referentes a uma perda que ainda não ocorreu ou ao luto de uma morte iminente (2002,

p. 217). Segundo o autor, Therese Rando, em seu livro Loss and antecipatory grief47

, definiu

este fenômeno abrangendo o processo de luto, o enfrentamento, a interação, o planejamento e a

reorganização psicossocial. Corr propõe, ainda, um estreitamento da definição, ao limitá-la às

reações e respostas às perdas que ainda não ocorreram e que ainda não estão em processo de

ocorrer, ou seja, aos processos de morte que estão no futuro e ainda não se iniciaram, não se

moveram da expectativa para a realidade (2002, p. 217). Essa proposta de definição objetiva

diferenciar o luto, devido a um enfrentamento diante um processo de morte de um luto

antecipatório ‘puro’. O autor argumenta que o luto antecipatório não deveria ser confundido

com o luto que se inicia na iminência da morte, uma vez que, neste caso, algumas perdas já se

encontram presentes. De todo modo, o ‘luto antecipatório’, como proposto por Corr, também

pode afetar o luto em si, funcionando como um fator de prevenção.

De modo geral, o luto antecipatório amplia o que se entende por processo de luto. O luto

não se refere apenas à perda final provocada pela morte física, ele pode começar antes, quando

uma doença anuncia o processo do morrer. Kissane (2005, p. 1139) chama a atenção para as

mudanças que a doença e o tratamento provocam, e que podem ser consideradas como perdas

47 Perda e luto antecipatório, em português.

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secundárias. Dependendo das circunstâncias, uma doença pode ocasionar a perda do trabalho,

do lazer, de uma segurança financeira, da autonomia, do sentimento de certeza sobre a vida e

mudanças sobre a imagem corporal e em torno da percepção de bem-estar. Estas mudanças

exigem o início de um processo de ressignificação do vínculo com o doente, e de um processo

de aceitação de um conjunto de perdas, até a perda definitiva provocada pelo evento da morte.

O luto antecipatório se configura então como uma experiência que pode ser vivida nas esferas

cognitiva, emocional e comportamental (GENEZINI, 2009, p. 323). Assim, entende-se que

neste período é indicado o acompanhamento e, quando necessário, intervenções profissionais,

a fim de prevenir complicações futuras. A prevenção é considerada possível, uma vez que

algumas condições que se configuram como fatores de risco já estão presentes antes do

momento da morte.

Conforme referido, após o evento da morte é frequente que o enlutado apresente reações

emocionais, cognitivas, comportamentais e fisiológicas, assim como é esperado que essas

respostas típicas do luto provoquem alterações na funcionalidade diária da pessoa enlutada. É

neste sentido que Genezini alerta para a necessidade de cautela, ao se considerar um luto como

complicado, pois uma depressão reativa à perda é esperada e, portanto, se deve levar em

consideração os fatores ‘duração’ e ‘intensidade’ (2009, p. 324).

Essa noção de que o luto é considerado ‘anormal’ a partir de certa duração e intensidade

se reflete nas definições de tipos de luto complicado e nas orientações sobre os diagnósticos e

nas futuras prescrições. Baseando-se nessas categorias, os manuais se referem principalmente a

três tipos principais de luto complicado: o luto inibido ou adiado, o luto crônico ou prolongado

e o luto traumático ou inesperado48

.

Os teóricos sobre o luto consideram se tratar de um mecanismo de defesa comum, algum

grau de negação entre os enlutados nos primeiros momentos após a morte. Esta forma de

autoproteção é considerada válida, na medida em que viabiliza a assimilação gradual da morte

do ente querido. Contudo, a persistência desse estado pode ser considerada como uma

48 Baseando-se no trabalho de Erich Lindemann, Colin Parkes sugeriu que o ‘luto patológico’ poderia ser

descrito como crônico, adiado ou inibido. Sob outra perspectiva, a partir da Teoria do Apego, John Bowlby

explorou as ligações entre as experiências da infância e o desenvolvimento de um ‘luto patológico’. A partir

deste estudo de Bowlby, cada vez mais o foco das pesquisas se volta para a exploração dos vários fatores

antecedentes que podem tornar as pessoas mais vulneráveis a reações adversas. É neste sentido que a

reformulação da nomenclatura de tipos de ‘luto patológico’ proposta por Parkes e Weiss, entre síndrome do luto

inesperado, síndrome do luto ambivalente e síndrome do luto crônico pode ser considerada mais vantajosa. Além

de esboçar os sintomas clínicos distintos de cada tipo, este esquema indica uma etiologia de reações

insatisfatórias do luto, auxiliando na escolha de intervenção terapêutica (BRADBURY, 2002, p. 221).

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complicação do processo de luto. Este estado de ‘luto adiado’ pode ser considerado

problemático, na medida em que se entende que o luto deve ser sentido para ser elaborado.

Malkinson e Witztum (2002, p. 220) alertam que, nesses casos, o indivíduo pode passar a

impressão de estar enfrentando bem a perda sofrida, mas, de repente, pode se mostrar

deprimido ou ansioso. Segundo Kissane (2005, p. 1140), o adiamento do luto pode estar

associado com dificuldades de relacionamento ou com a emergência de um estado de

hipomania em indivíduos com transtorno bipolar. Essa evitação do contato com as emoções

pode consistir uma reação automática ou um esforço consciente, caso frequente em indivíduos

compulsivamente autoconfiantes e independentes (NYATANGA, 2005, p. 108).

Pesquisas recentes criticam a caracterização do luto considerado adiado, como uma

reação patológica. Não necessariamente tal condição refletiria uma evitação disfuncional, mas

ao contrário, é argumentado, a partir do conceito de resiliência49

, que tal resposta pode ser

consequência de um ajustamento rápido, diante de uma perda antecipada (DOLL, 2013 p.

1874). Para a Psicologia, resiliência pode ser entendida como um “construto associado às

características pessoais que permitem a um indivíduo adaptar-se e superar situações adversas”

(SOLANO, 2014, p. 171). Considera-se que a resiliência é tanto uma capacidade inata quanto

uma característica que pode ser aprimorada ao longo da vida por fatores ambientais. É neste

sentido que Solano cita as pesquisas de Bonanno e colaboradores, que têm mostrado que a

maioria das pessoas não demonstra sofrimento por luto e, por esta razão, são definidas como

grupo resiliente. Assim, a resiliência é considerada uma característica que previne o luto

complicado, ao mesmo tempo em que a experiência de luto pode consolidar um patamar maior

de resiliência, tornando as pessoas mais aptas ao enfrentamento de crises e estresse (SOLANO,

2014, p. 175).

O luto crônico é o tipo de luto complicado mais abordado pelos manuais. Trata-se do

único tipo de luto considerado como transtorno pelo DSM-V, sob a denominação de

Transtorno do Luto Complexo Persistente, caracterizado pelas reações de luto e pesar

persistentes (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 290). De modo amplo, o

49 Resiliência é um conceito oriundo das ciências físicas, para se referir à capacidade de determinado material de

retornar ao seu estado original após uma deformação sofrida por uma força, tensão ou pressão. O conceito foi

apropriado pela psicologia e pela pedagogia na década de 1970, quando Michaell Rutter utilizou o termo para se

referir à capacidade de resistência de crianças frente a adversidades. Apesar do surgimento recente do termo em

Psicologia e de seu uso crescente nas últimas décadas, Santos (2003) argumenta que, no passado, diversos

autores se referiam à mesma ideia, utilizando outros termos, como “recursos pessoais”, por exemplo.

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luto crônico é definido pela condição de expressões emocionais intensas referentes à perda

(MALKINSON; WITZTUM, 2002, p. 220). Nyatanga (2005, p. 108) considera que as reações

do luto crônico correspondem às emoções normais do luto, porém vivenciadas com a mesma

intensidade dos momentos iniciais, sem redução com a passagem do tempo. Entende-se que

esta condição está associada a relacionamentos superdependentes, em que o enlutado evita o

sentimento de abandono por meio da perpetuação do relacionamento vivenciado por meio do

luto (MALKINSON; WITZTUM, 2002, p. 220; KISSANE, 2005, p. 140).

Prigerson, Vanderwerker e Maciejewski (2011, p. 170), ao discutirem a inclusão de um

diagnóstico relativo ao luto no DSM-V, destacam que, durante os meses iniciais após a perda,

muitos dos sinais e sintomas do luto ‘normal’ são semelhantes aqueles vivenciados por

indivíduos que apresentaram complicações, devido ao prolongamento do luto. Contudo,

afirmam que seis meses após a morte, a maioria dos enlutados alcança concordância com a

maioria algum grau de aceitação e, consequentemente, reestabelece, ao menos em parte, seu

funcionamento normal. Essa observação justifica a delimitação de um tempo mínimo

necessário para a ocorrência dos sintomas para diagnóstico.

Além do tempo, Shimshon, Malkinson e Witztum (2001) destacam que a adequação e

extensão do funcionamento biopsicossocial do enlutado é importante na avaliação. Contudo, é

insuficiente para medir o impacto. Segundo os autores (SHIMSHON; MALKINSON;

WITZTUM, 2011, p. 190), o eixo central da medição de resposta se refere à relação com o

falecido. Consideram, portanto, que a atenção a esses dois domínios, do funcionamento e do

relacionamento, é vantajoso do ponto de vista teórico, empírico, diagnóstico e de estratégias de

intervenção.

Segundo Prigerson, Vanderwrker e Maciejewski (2011, p. 170), a angústia vivida no luto

crônico tem origem em um protesto psicológico contra a realidade da perda e uma relutância

em se adaptar à vida sem aquela pessoa. Esta conceituação reflete os critérios delimitados no

DSM-V para o diagnóstico do Transtorno do Luto Complexo Persistente. De acordo com o

manual (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 789-790), esse transtorno

tem como critério fundamental a especificidade das reações estarem relacionadas à experiência

da morte de alguém com quem se tinha um relacionamento próximo. Além disso, os sinais e

sintomas ainda devem se encaixar em outros quatro critérios. O enlutado deve experimentar,

desde a morte, ao menos um dos quatro sintomas discriminados no critério B por, pelo menos,

doze meses entre os adultos, e seis meses entre crianças. Os sintomas do critério B se referem à

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angústia de separação, como saudade persistente, intenso pesar e dor emocional. Os sintomas

do critério C devem ser experimentados em um grau “clinicamente significativo” na maioria

dos dias, persistindo por doze meses nos adultos e seis meses nas crianças. É preciso detectar

ao menos seis dos doze sintomas do critério C, que estão divididos entre sintomas acerca do

sofrimento reativo à morte e sintomas associados à perturbação social/da identidade. É ainda

necessário que a perturbação do sentimento do luto cause sofrimento significativo ou prejuízo

no funcionamento social, profissional, ou em outras áreas importantes (critério D), e que a

reação seja desproporcional às normas culturais, religiosas ou inapropriadas à idade (critério

E).

O luto traumático, também conhecido como inesperado, pode ser desencadeado a partir

de uma morte repentina, inesperada ou, de alguma forma, chocante. Segundo Malkinson e

Witztum (2002, p. 220), o processo de luto se iniciaria de forma complicada, pois, devido à

imprevisibilidade da morte nestes casos, o enlutado tem especial dificuldade de aceitar sua

realidade. Este contexto facilitaria a manutenção de forte sentimento de obrigação com o

falecido, impedindo o desenvolvimento do processo de luto. Segundo Kissane (2205, p. 1140)

nestes casos, a integração e aceitação da morte podem ser interferidas pela excitação e

aumento da angústia que as memórias do evento podem disparar. A imprevisibilidade ou o

contexto chocante da morte podem provocar reações de luto semelhantes às respostas

características do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)50

, como lembranças

intrusivas, flashbacks, pesadelos, irritabilidade e dificuldade de concentração.

50 Segundo o DSM-V (2014) o Transtorno de Estresse Pós-Traumático é um transtorno que especifica a

“exposição a episódio concreto ou ameaça de morte, lesão grave ou violência sexual” (p. 271). Admite que tal

exposição é considerada válida na vivência direta, no testemunho pessoal, no conhecimento do evento

traumático com familiar ou amigo próximo ou ser exposto de forma repetida ou extrema a detalhes aversivos. O texto faz a ressalva de que, no caso de evento concreto ou ameaça de morte a terceiros é preciso que o evento

tenha sido violento ou acidental. Entre os sintomas o manual destaca: lembranças intrusivas, angustiantes,

recorrentes e involuntárias; sonhos angustiantes e recorrentes de conteúdo e/ou sentimento relacionado; reações

dissociativas como se o evento estivesse ocorrendo novamente; sofrimento psicológico intenso ou prolongado;

reações fisiológicas intensas e prolongadas; evitação persistente a estímulos associados ao evento traumático;

alterações negativas em cognições e no humor associadas ao evento traumático e alterações marcantes na

excitação e na reatividade associadas ao evento. As perturbações presentes devem persistir por mais de um mês e

causar sofrimento clinicamente significativo e prejuízo social, profissional ou em outras áreas importantes

(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 271-272).

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5.2 LUTO: FATORES DE RISCO E INTERVENÇÕES PROFISSIONAIS

A construção de uma ideia de que o luto deve ser um processo de ruptura ou uma

ressignificação dos vínculos rumo à aceitação da perda estabelece uma expectativa de que o

sofrimento deve ser superado. Além da superação, em um bom trabalho de luto deve haver

uma busca existencial por um significado, viabilizando uma percepção do enlutado, de

vivência de crescimento pessoal ao final do processo. Deste modo, considera-se que o

sofrimento deve ser autolimitado e funcional, uma vez que o foco no potencial de crescimento

não objetiva minimizar a dor do luto, mas canalizar esta dor e raiva para gerar esforços

significativos que possam contribuir para sua recuperação (DAVIES; ORLOFF, 205, p. 834).

Esta expectativa por uma finalidade positiva do processo de luto gera uma ideia normativa do

luto normal. O “normal” é definido pelo resultado normativo, ao mesmo tempo em que as

normas do resultado também definem o processo do luto (KAUFFMAN, 2002, p. 313).

O luto complicado, por sua vez, é entendido como qualquer situação que se desvie ou

ameace se desviar dessa norma. É com a finalidade de garantir que o luto seja vantajoso para o

crescimento pessoal, ou ao menos que não seja prejudicial, que pesquisadores e profissionais

da área buscam delimitar fatores de risco que possam interferir negativamente no processo.

As possibilidades circunstanciais evidenciadas nos manuais como fatores de risco configuram

uma longa lista. Afirma-se que determinados fatores prescreveriam ou, ao menos aumentariam

a chance de complicação do luto, e que o luto complicado é, por sua vez, um fator de risco

para outras consequências prejudiciais. É neste sentido que Genezini (2009, p. 329) se refere à

Kóvacs, para ressaltar que o luto mal elaborado começa a se tornar um problema de saúde

pública, tanto para familiares quanto para profissionais, devido à excessiva carga de

sofrimento, por vezes sem possibilidade de elaboração, podendo acarretar doenças psíquicas

e/ou físicas. Assim, de acordo com o foco específico de cada manual e de capítulo, os autores

abordam características pré-morte que ameaçam o percurso normal do luto, para que seja

implementada uma intervenção preventiva, ainda no luto antecipatório. Quando a prevenção

não é possível ou foi insuficiente, caberia uma ação reparadora sobre os aspectos negativos que

interferem no processo, a fim de facilitar o reequilíbrio, evitando maiores prejuízos.

Apesar da dificuldade de delinear uma pesquisa científica sobre os riscos que o luto

representa para a saúde, os manuais confirmam a ideia do senso comum, de que uma pessoa

enlutada é uma pessoa fragilizada e, nesse sentido, teria maiores chances de desenvolver

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alguma condição patológica. Nyatanga (2005) admite a dificuldade de provar a prevalência de

morbidades psiquiátricas em enlutados ou de condições cardíacas devido ao “coração partido”.

Ainda que os resultados não tenham sido significativos ou objetivos, o autor considera os

enlutados como um grupo de risco para condições como depressão, ansiedade, abuso de álcool

e drogas prescritas e tendências e comportamentos suicidas. Por fim, afirma que as pesquisas

foram ainda mais inconclusivas, na confirmação de uma associação entre luto e doença física

(NYATANGA, 2005, p. 107).

Outros manuais afirmam o luto como fator de risco para consequências físicas,

psicológicas e sociais negativas, apesar da aparente falta de confirmação científica sólida.

Kissane (2005, p. 1141), Prigerson, Vanderwerker e Maciejewski (2011, p. 174) alertam que o

luto, por si só, representa um fator de risco para a saúde, mas que pessoas em processo de luto

complicado apresentam riscos ainda maiores de disfunções físicas, psicológicas ou sociais. Os

autores listam possíveis consequências do luto, como aumento do uso de planos de saúde para

consultas médicas e hospitalização devido a queixas somáticas, depressão ou ansiedade;

efeitos cardiovasculares, neuroendócrinos e no sistema imunológico; prejuízos funcionais de

ordem social, familiar e ocupacional e qualidade de vida reduzida. Alguns estudos chegam a

indicar um aumento da taxa de mortalidade em enlutados entre 45 e 75 anos devido a causas

cardiovasculares, acidentes, suicídio e abuso de álcool e outras substâncias, podendo ainda

estar relacionado ao isolamento social e à alienação (KISSANE, 2005, p. 1141).

Segundo Nyatanga (2005, p. 104), as crises emocionais relacionadas ao luto não surgem

sem um fator de vulnerabilidade pré-existente à morbidade. Portanto, seria possível a

identificação de contextos potencialmente prejudiciais e uma intervenção preventiva a

pacientes e familiares considerados vulneráveis. A gama de condições que potencialmente

vulnerabilizariam o enlutado é extensa, e frequentemente são apresentadas nos manuais sem

um embasamento que justifique o prognóstico. Solano (2014, p.113) expõe essa situação de

forma didática, ao contextualizar cronologicamente as pesquisas que deram origem a tais

resultados. Segundo o autor, é possível indicar uma primeira leva de investigações, realizadas

entre 1950 e 2000, que se centraram em observações clínico-qualitativas. Apesar de serem

consideradas pouco científicas, devido à falta de controle na obtenção dos resultados, estas

pesquisas ainda constituem referência em alguns manuais observados. Kissane, autor da seção

sobre luto no manual Oxford, baseia-se em resultados obtidos nesta época, para apresentar as

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quatro categorias de fatores de risco capazes de indicar candidatos ao acompanhamento

preventivo do luto.

O primeiro conjunto se refere à natureza da morte, englobando certas circunstâncias,

como mortes fora do tempo esperado de um ciclo de vida (por exemplo, de crianças), mortes

repentinas, inesperadas, traumáticas ou estigmatizadas, como nos casos de AIDS e suicídio. A

segunda categoria aborda as forças e vulnerabilidades do enlutado, como a existência de um

histórico psiquiátrico prévio, a personalidade, o estilo de enfrentamento (por exemplo,

preocupação extrema e baixa autoestima), e o acúmulo de experiências de perda. A natureza

do relacionamento entre o falecido e o enlutado também pode influenciar negativamente a

vivência do luto, como nos casos de relações superdependentes, simbióticas, ou de relações

ambivalentes. A última categoria discriminada é referente à rede de apoio familiar e social, em

que pessoas com famílias disfuncionais51

, com pouca coesão e comunicação, pessoas isoladas

e pessoas com percepção de uma rede de apoio precária estariam mais suscetíveis a

complicações no processo de luto (KISSANE, 2005, p. 1141).

A segunda leva de pesquisas, produzidas de 2001 até a data presente, é caracterizada por

estudos delineados de forma mais criteriosa e, portanto, teriam um grau de evidência maior.

Estas pesquisas organizam os fatores em cinco grupos. O primeiro grupo se refere aos fatores

relacionados à vida afetiva na infância, em que históricos de intensa angústia de separação, de

negligência ou de super dependência podem afetar negativamente. Os fatores relacionados a

antecedentes pré-mórbidos do enlutado também são evidenciados, como histórico de doença

psiquiátrica e características precárias da rede de suporte social disponível. O terceiro grupo

distingue os fatores relacionados ao tipo e contexto da morte, como múltiplas perdas

concorrentes ou morte por suicídio. Aspectos pessoais do enlutado também podem configurar

fatores de risco, como a viuvez, o estilo pessoal de enfrentamento, a personalidade e, às vezes,

a prática religiosa é considerada como proteção contra o luto complicado. O quinto grupo

evidencia os fatores concernentes à relação do enlutado com o falecido, tanto sobre a

51 Segundo Kissane (2005, p. 1140), a noção de funcionalidade/disfuncionalidade familiar se refere à sua

influência sistêmica no resultado do luto. A partir das dimensões de coesão, expressão e conflito, o autor

apresenta cinco categorias de ambiente familiar: dois funcionais e três disfuncionais. As consideradas funcionais

são aquelas que, por apresentarem forte coesão e/ou comunicação eficaz, são capazes de adaptação ao luto,

apesar das diferenças internas de opinião. As famílias disfuncionais são aquelas com pouca coesão, comunicação

ineficaz e, portanto, são conflituosas ou, ainda, são aquelas que apresentam um nível precário de comunicação,

silenciando certos sentimentos, como a raiva.

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proximidade de parentesco como por uma possível sobrecarga do enlutado-cuidador

(SOLANO, 2014, p. 114).

Além da identificação de grupos de risco, algumas categorias específicas de enlutados

são destacadas em alguns manuais, por serem consideradas merecedoras de uma abordagem

especialmente cuidadosa (KISSANE, 2005, p. 1144; REVERTE e CÀRCER, 2007, p 16). O

primeiro grupo evidenciado se refere às crianças enlutadas. Elas podem apresentar reações

imediatamente após a perda, ou depois de passado algum tempo. Reverte e Càrcer (2007, p.

17) listam como reações mais frequentes:

comoção ou confusão diante da perda,

raiva e irritabilidade que podem ser manifestas em jogos e brincadeiras ou

diretamente a algum membro familiar,

medo de perder quem ainda está vivo, retorno a etapas anteriores do

desenvolvimento,

sentir-se responsável pela morte devido a coisas que tenha dito, feito ou

desejado,

tristeza,

insônia,

falta de apetite,

falta de interesse por coisas que costumavam lhe motivar,

medo prolongado de estar só,

diminuição do rendimento escolar,

desejo de estar com a pessoa falecida.

A intervenção profissional com a criança, seja como prevenção ou tratamento, deve

proporcionar uma comunicação franca, explicativa e adequada à idade e possibilidade

cognitiva, uma vez que apenas por volta dos dez anos de idade que a criança entende o caráter

definitivo da morte (KISSANE, 2005, p. 1144). Assim, os familiares e profissionais devem

buscar ser honestos, informando e respondendo de maneira sensível, assim que possível, sobre

os acontecimentos, respeitando um momento e local adequados. Reverte e Càrcer (2007, p. 20)

incentivam que os familiares permitam que a criança participe dos rituais funerários caso ela

deseje, contanto que lhe seja explicado o que acontecerá neste momento. Por fim, é importante

que, no acompanhamento do luto infantil, os adultos incentivem a criança a expressar o que

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sente, e que eles se mantenham física e emocionalmente próximos da criança, com o objetivo

de oferecer o máximo de estabilidade possível (KISSANE, 2005, p. 1144; REVERTE;

CÀRCER, 2007, p. 20).

Os adolescentes também constituem um grupo vulnerável por si. Nesta faixa etária, eles

já são conscientes do caráter definitivo da morte e das mudanças que ela produz. É frequente

que, diante do processo de luto, os adolescentes deixem de participar da vida familiar, como

forma de buscar reduzir o sofrimento causado pela perda. Enquanto no luto das crianças e

adolescentes mais jovens predominam os efeitos fisiológicos, como dor de cabeça ou

estômago, nos adolescentes mais velhos, assim como nos adultos, o maior sofrimento é

psicológico. Contudo, Reverte e Càrcer (2007, p. 24) alertam que um luto mal resolvido nesta

idade pode acarretar problemas graves e duradouros, como abuso de drogas, delinquência,

promiscuidade sexual e suicídio. As autoras orientam os familiares de adolescentes enlutados

que forneçam informações, permitam a expressão de sentimentos no tempo desejado pelo

adolescente, disponibilizem sua participação em rituais, mostrem-se próximos e disponíveis,

mantenham ao máximo a rotina e evitem que o adolescente assuma papéis que não sejam seus,

reafirmando sua personalidade (REVERTE; CÀRCER, 2007, p. 25).

Por serem estigmatizados e interpretados como frágeis e vulneráveis, os idosos configuram o

terceiro grupo, para o qual os profissionais e familiares devem dedicar especial atenção, a fim

de não os excluírem do processo de luto familiar. Provavelmente o idoso já vivenciou uma

série de experiências de perdas, podendo ter algum conhecimento sobre seu processo pessoal

de luto. Por outro lado, esta sequência de perdas de familiares e amigos também pode

proporcionar maior sentimento de solidão, e uma consequente percepção de rede de apoio

precária, frente ao recente evento de morte. Devido ao possível nível de isolamento, programas

voluntários e grupos de apoio são recomendados aos idosos, para promover sua socialização

(KISSANE, 2005, p. 1144). Familiares e profissionais devem acompanhar e facilitar o luto e a

recuperação, por meio de demonstrações de carinho e compreensão (REVERTE; CÀRCER,

2007, p. 27).

Detectar fatores de risco nas vivências do luto é importante para determinar o tipo de

intervenção profissional mais adequado para cada caso. É interessante que esta percepção da

necessidade de tratamento se dê precocemente, para que não ocorra ‘desperdício’ de

investimento profissional em casos que poderiam ser autogeridos. Apesar das reações físicas,

emocionais e sociais provocadas pelo luto, pesquisadores concordam que a maioria das

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pessoas enlutadas se adapta ao longo do tempo, não demonstrando maior benefício em uma

terapia do luto. De fato, há uma preocupação quanto ao perigo do luto ser medicado

excessivamente, prejudicando o potencial crescimento pessoal do qual os enlutados podem se

beneficiar (NYATANGA, 2005, p. 109). Contudo, considera-se que entre 10% e 20% dos

enlutados evoluem para um luto complicado, casos em que a intervenção terapêutica é

justificada (ALVES, 2014, p. 349). Assim, a avaliação dos riscos é considerada como

componente essencial na gestão do luto.

Postular que nem todos os enlutados necessitam de acompanhamento profissional neste

momento não significa afirmar que os enlutados não precisam de suporte. Em geral, há dois

tipos de suporte, que devem estar disponíveis à pessoa em processo de luto: o informal e o

formal. O primeiro tipo é composto por familiares e amigos e, geralmente, é a rede de suporte

a qual o enlutado primeiro tem acesso. Apesar de algumas vezes as intensas emoções de

tristeza e raiva do enlutado dificultarem tais relações, a família e amigos podem ser de ajuda

prática, nos preparativos do funeral, na resolução de questões burocráticas, por exemplo, ou

em auxílio emocional, ao proporcionar uma atmosfera de conforto e de segurança que o

enlutado precisa. As ajudas formais são prestadas por profissionais ou voluntários

institucionalizados, especialmente nas áreas da saúde, assistência social, grupos de autoajuda e,

até, em comunidades religiosas (DOLL, 2013, p. 1880).

Quanto à ajuda exercida por profissionais de saúde, especialistas no tema propõem

intervenções que servem de guia aos profissionais para uma prática mais eficaz. Em geral estas

propostas se baseiam na teoria de William Worden. Apesar das recentes críticas, que

questionam a ausência de reconhecimento da negação como mecanismo de defesa válido, a

falta de evidência de efetividade e a inconsistência com perspectivas culturais e históricas, os

conceitos de Worden sobre o ‘trabalho de luto’ e suas quatro tarefas seguem embasando as

práticas profissionais (NYATANGA, 2005, p. 112). Ao entender que, no trabalho de luto, o

enlutado deva assumir uma posição ativa objetivando a superação, Worden considera

importante demarcar dois diferentes tipos de intervenção: o aconselhamento e a terapia do luto.

Segundo o autor, o aconselhamento do luto teria a função de facilitar o ‘luto normal’ em

pessoas com capacidade de autogerir o processo e, por esta razão, teria uma duração mais

breve. A terapia do luto, por sua vez, é composta por técnicas especializadas, para intervir no

luto complicado. Sua duração é mais longa e variável, de acordo com as condições

psicossociais do enlutado (NYATANGA, 2005, p. 112).

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A fim de auxiliar o profissional na escolha das intervenções psicoterapêuticas, alguns

manuais as dividem em três níveis: primário, secundário e terciário (NYATANGA, 2005, p.

110; DOLL, 2013, p. 1881; ALVES, 2014, p.350). A intervenção primária consiste na ajuda

profissional que deve estar disponível a todos os enlutados, independente da indicação por

avaliação de risco. Este tipo de suporte acontece pela oferta de informações sobre a

experiência do luto e acerca do acesso a outras formas de apoio. Uma intervenção primária

pode ser o suficiente para as pessoas que vivenciam um processo normal do luto. As

intervenções secundárias se destinam às pessoas identificadas como grupo de risco e, portanto,

podem se beneficiar em uma oportunidade mais formal, para rever e refletir sobre a

experiência da perda. Estas oportunidades podem acontecer em trabalhos voluntários de apoio

ao luto, nos grupos de autoajuda com pessoas que passaram ou estão passando por situações de

luto semelhantes, e em grupos ou comunidades religiosas que ofereçam espaço para este tipo

de apoio. O terceiro nível é composto por intervenções especializadas, desenhadas para o

grupo minoritário dos casos de luto complicado. Nestes casos são necessárias intervenções dos

serviços de saúde mental, de apoio psicológico, de aconselhamento ou psicoterapia

especializada, de especialistas em Cuidados Paliativos e serviços gerais de luto.

Historicamente pode-se considerar que o luto, enquanto processo natural, sempre foi

facilitado por redes de apoio informais. Segundo Malkinson (2002, p. 223), o ser humano

possui uma resposta básica de ajuda, conforto e consolo, que sempre esteve disponível por

meio da família, da igreja e da comunidade. Contudo, em geral, este tipo de apoio

incondicional teria retrocedido, ou não estaria mais disponível na sociedade ocidental

contemporânea. Segundo a autora, uma variedade de abordagens terapêuticas desenvolvidas,

como grupos de autoajuda, aconselhamento e terapia do luto, acaba por ocupar esse espaço,

deixado pela rede de apoio pessoal do enlutado, em virtude do crescente processo social de

individualização na sociedade ocidental contemporânea (MALKINSON, 2002, p. 223).

Pesquisadores sobre terapia do luto apresentam algumas críticas quanto à falta de

comprovação científica da eficácia do tratamento e de uma suposta homogeneidade e

normatização do processo de luto, por meio das intervenções profissionais (DOLL, 2013, p.

1881). No entanto, as intervenções são consideradas vantajosas, ao menos para a redução de

risco de patologias subsequentes para alguns enlutados avaliados em alto risco

(MALKINSON, 2002, p. 224; KISSANE, 2005, p. 1141).

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As terapias do luto sofreram mudanças, conforme o desenvolvimento do campo, tanto no

âmbito teórico como prático. O luto já foi definido como um processo com tempo limitado,

chegando à conclusão com a retomada da vida considerada ‘normal’. Sob esta perspectiva, a

terapia do luto era proposta como uma ferramenta para facilitar a restauração da vida prévia ao

evento da morte, o que significa, da vida considerada ‘normal’. Pesquisadores mais recentes

entendem o luto como um processo mais complexo. A começar pelo fato de o luto por vezes

ser entendido como um processo inconclusivo, pois ao invés de alcançar a retomada de um

estado prévio, seu objetivo buscaria um reequilíbrio, do que foi abalado no evento da perda. É

considerada inviável a retomada a um estado prévio, pois a vida nunca mais será a mesma sem

a existência daquela pessoa que faleceu. Deste modo, as terapias de luto são conduzidas de

múltiplas formas, e o processo é direcionado a uma construção de significado e atenção à vida

emocional e interpessoal do enlutado. A terapia do luto é então caracterizada por um processo

de aceitação de uma nova realidade, que está em constante mudança, e da ressignificação do

falecido (MALKINSON, 2002, p. 223).

Os manuais evidenciam diferentes enfoques teóricos que delineiam algumas

intervenções terapêuticas para o evento do luto. Segundo Kissane (2005, p. 1142), o modelo

mais básico seria uma intervenção focada no suporte e na expressão, em que o enlutado é

convidado a compartilhar com o profissional de saúde seus sentimentos sobre a perda. Por sua

vez, o profissional deve escutar com atenção empática, para perceber e acolher a angústia

alheia. Assim, a proposta é que, por meio do compartilhamento do sofrimento e da escuta de

forma confortante, o enlutado mude a avaliação cognitiva da nova realidade que foi alterada

para sempre.

A partir desse modelo, que é base para qualquer intervenção terapêutica com enlutados,

podem-se destacar as duas habilidades profissionais mais evidenciadas nos manuais: a

comunicação clara e franca, e a empatia (MALKINSON, 2002, p. 223; DAVIES; ORLOFF,

2005, p. 835; NYATANGA, 2005, p. 103; GENEZINI, 2009, p. 325; BURLÁ; AZEVEDO,

2013, p. 1730; SANTOS, 2014, p. 368). Não raro os manuais afirmam a importância, para os

profissionais, de habilidades subjetivas, para além das habilidades técnicas. Ao mesmo tempo

em que a promoção de uma comunicação clara e eficaz pode ser aperfeiçoada com o

aprendizado de técnicas, outras habilidades subjetivas são valorizadas no profissional. Davies e

Orloff (2005, p. 835) destacam determinadas capacidades, como: alta tolerância à

ambiguidade, flexibilidade e apreciação das diferenças individuais, boa rede de apoio externa e

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consciência realista de seus limites pessoais, alegria de viver e bom humor, empatia, desejo de

continuar aprendendo e comodidade com a morte.

A partir do modelo básico de compartilhamento das emoções e suporte empático,

diferentes linhas teóricas disponibilizam uma variedade de modalidades terapêuticas. A

abordagem de perspectiva psicodinâmica encara o relacionamento entre o cliente e o terapeuta,

marcado pela transferência e contratransferência52

, como ponto focal do processo terapêutico.

Contudo, diante de um luto disfuncional, ao objetivar retrabalhar a relação do enlutado com o

falecido, este relacionamento deve assumir a centralidade no tratamento, e a figura

transferencial pode ser o falecido, ao invés do terapeuta (MALKINSON, 2002, p. 224). É,

portanto, uma terapia de tempo variável, de acordo com a individualidade do enlutado, para

conseguir desconstruir os vínculos estabelecidos em vida e elaborar a dor da perda (ALVES,

2014, p. 350).

As terapias cognitivas enfatizam que o enlutado não tem controle sobre os significados

por ele construídos em torno do evento. A terapia cognitiva reconhece tanto o valor curativo

do processo de luto como a natureza traumática da morte e seu efeito sobre o sistema de

crenças do enlutado. Uma vez que esse abalo no sistema de crenças pode aumentar a tendência

a pensamentos distorcidos, a terapia busca conectar o mapa cognitivo do enlutado com suas

respostas comportamentais relacionadas à perda (MALKINSON, 2002, p. 224).

A abordagem cognitiva-comportamental tem contribuição especialmente reconhecida

para os casos de luto crônico. Nestes casos, a abordagem comportamental regula a exposição

do enlutado aos “gatilhos” que impulsionam as rememorações que têm efeito de construir

obstáculos ao progresso do luto. Simultaneamente há um reenquadramento cognitivo das

ideias negativas (como exemplo, o sentimento de deslealdade por se autorizar a seguir em

frente na vida) conduzindo a uma adaptação construtiva (KISSANE, 2005, p. 1143). Alguns

autores indicam especificamente para os casos de luto crônico, a combinação de terapia

individual e terapia de grupo, para promover a socialização do enlutado e, se necessário, o uso

de psicofármacos, como antidepressivos (KISSANE, 2005, p. 1143; SILVA, 2014, p. 77).

52 O conceito de ‘transferência’ nas abordagens psicodinâmicas se refere ao relacionamento do paciente com o

terapeuta, revivendo, nesta oportunidade, os primeiros vínculos afetivos relacionados às figuras parentais ou seus

substitutos. Por sua vez, o conceito de ‘contratransferência’ é concernente à inevitável reação do analista,

provocada pela transferência do paciente. Os dois conceitos são centrais na relação terapêutica, em diversas

vertentes psicanalíticas.

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A terapia de perspectiva construtivista entende o luto como uma construção de

significado sobre a perda, finalidade objetivada por esta intervenção profissional. Deste modo,

o luto e suas implicações são compreendidos mais como uma vantagem para o processo de

construção de significados do que como sequelas emocionais e sintomáticas. Uma vez que o

modo como o enlutado interpreta sua experiência, outras características comumente

relacionadas ao luto perdem influência, como as noções de tempo, resultado e recuperação

(MALKINSON, 2002, p. 225).

A abordagem de terapia familiar53

propõe uma Terapia do luto focada na família (Family

Focused Grief Therapy – FFGT), que pode ser aplicada preventivamente às famílias

consideradas de alto risco ou nos casos já estabelecidos de luto complicado. Kissane (2005, p.

1143) afirma que os terapeutas de família já reconhecem há algum tempo a importância da

rede familiar no processo de luto. De acordo com seu grau de funcionalidade ou

disfuncionalidade, a família pode assumir um papel positivo ou negativo, frente ao

enfrentamento individual concernente ao luto. O autor apresenta a Escala de Ambiente

Familiar54

, uma tipologia do funcionamento familiar, desenvolvida com o objetivo de auxiliar

na identificação de famílias funcionais e famílias pertencentes ao grupo de risco. Esta escala

determina cinco classes familiares: dois tipos funcionais e três disfuncionais. As funcionais

podem ser do tipo “solidária”, com alta coesão, que facilita a adaptação do luto, e a do tipo

“focada em resolver conflitos”, que apresentam comunicação coesa e efetiva, e alto grau de

tolerância de diferenças e opiniões. Quando às famílias disfuncionais, elas podem ser do tipo

“hostil”, caracterizada pela falta de coesão, comunicação ineficaz e relacionamentos

conturbados, do tipo “taciturno”, com raiva silenciada e alto nível de depressão, e, ainda, do

tipo “intermediário” que, com níveis medianos de comunicação, coesão e conflito, coloca a

família em risco de deterioração, frente a eventos estressores (KISSANE, 2014, p. 1141).

Este modelo terapêutico focado na família tem como objetivo melhorar o funcionamento

familiar, sobre certos aspectos, como comunicação e coesão. A família é convidada a

identificar e trabalhar os aspectos da vida familiar reconhecidos por eles como motivo de

53 A abordagem de terapia familiar tem como foco o funcionamento sistêmico da família, ao invés de

centramento no indivíduo. Segundo Kissane (2005, p. 1143), este modelo tem como objetivo melhorar o

funcionamento familiar, a partir da identificação e reconhecimento de aspectos familiares como causa do

problema. O trabalho terapêutico promove, então, a coesão, a comunicação aberta de pensamentos e sentimentos,

e a busca por soluções eficazes de problemas, de forma a reduzir os conflitos e melhorar a tolerância das

diferenças de opinião, fortalecendo a família como uma unidade. 54 Family Environment Scale, no original em inglês.

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preocupação. O modo de funcionamento familiar é aperfeiçoado como unidade, mediante a

melhora da coesão, da livre comunicação de pensamentos e sentimentos e do aprendizado de

uma efetiva forma de resolução de problemas (KISSANE, 2005, p. 1143).

As definições, teorias, fatores de risco e modelos terapêuticos apresentados nos manuais

são diversos e, por vezes, divergentes. Contudo, exceto pela constatação da ênfase atribuída a

determinados autores e teorias (como o exemplo de William Worden, com suas propostas), os

manuais não elegem nem contrapõem tais formulações. Os modelos são apresentados de forma

harmônica, de modo que as diferenças nas teorias podem ser consideradas complementares. A

partir da exposição do conteúdo teórico apresentado pelos manuais, no capítulo seguinte

abordo estas formulações, enquanto técnicas da gestão da conduta humana na sociedade

ocidental contemporânea.

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6 O LUTO NA SOCIEDADE OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA

De acordo com os manuais e literaturas atuais sobre o tema, o luto é considerado um

fenômeno universal que sofre alterações culturais, tanto em seu referencial teórico quanto nas

práticas a ele referidas. É neste sentido que esta pesquisa tem por objetivo analisar este

fenômeno, enquanto constructo que reflete noções e valores característicos da ideologia

ocidental moderna. Torna-se, portanto, necessário evidenciar tais aspectos, a fim de possibilitar

uma apreensão do luto na contemporaneidade, sob a ótica do estranhamento, desnaturalizando

a suposta universalidade do fenômeno.

A proposta de desnaturalização é fundamental para esta pesquisa, uma vez que a cultura

ocidental moderna, assim como as demais culturas, é considerada como se fosse “a cultura”

por excelência, o que conduz à tendência de sua universalização (DUARTE, 1999, p. 21). De

acordo com Duarte (1999, p. 22), trata-se de uma hipótese antropológica, de que a “cultura

ocidental moderna” é composta por um sistema de significação específico, que implica em

determinada maneira de percepção e entendimento dos fenômenos da vida. Estes valores

tornam-se culturais, uma vez que são internalizados, portados, praticados e transmitidos a cada

nova geração. Deste modo, esta análise parte desta configuração da sociedade ocidental

moderna, de sua constituição de verdades e da noção de pessoa vigente no contexto, com o

objetivo de evidenciar ideologias e valores presentes nas formulações em torno do luto.

6.1 SECULARIZAÇÃO, PSICOLOGIZAÇÃO E PSIQUIATRIZAÇÃO

O processo de secularização da sociedade ocidental moderna se encontra vinculado ao

processo de constituição da interioridade, um elemento fundamental da ideologia moderna.

Norbert Elias (1993) parte da ideia de que ocorreu uma profunda transformação em diversos

aspectos da vida em sociedade, o que foi abordado em sua obra intitulada “O processo

civilizatório”. Para o autor, a constituição dos Estados modernos é decorrente desse longo

processo, de cerca de cinco séculos. O exame do conjunto de etiquetas e representações

públicas características das sociedades de corte possibilitou uma compreensão do que se

passou, tanto nas esferas públicas quanto na configuração do plano íntimo, associado uma série

de atos e pensamentos. De acordo com Ferreira (2006, p. 15), o processo de constituição da

interioridade, abordado por Elias, também é contemplado por Michel Foucault, em sua análise,

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desde a Antiguidade pagã, acerca da história das técnicas de si, sobre as relações de trato e

cuidado do próprio corpo. No contexto da Antiguidade pagã, as técnicas de si não se baseavam

em uma reflexividade em busca da revelação de um ‘eu’ pré-social. De fato, a máxima do

oráculo de Delfos, “conhece-te a ti mesmo”, se refere à construção de si, por meio do

autogoverno, de acordo com as verdades e ensinamentos dos grandes mestres – trata-se de um

‘eu’ constituído a partir da sociedade.

A interioridade individualizada começa a se delinear a partir da ética cristã, que tem

início no século II d.C. (FERREIRA, 2006, p. 16). Neste momento, o homem se destaca da

sociedade, na medida em que se volta para seu interior, em busca de Deus. Este exame de si é

decorrente do uso de instrumentos religiosos e jurídicos, como a confissão, e tem a finalidade

de alcançar a purificação da alma, pela distinção entre bem e mal, presentes no interior de seu

verdadeiro ‘eu’. Esta ideia de interioridade enquanto técnica de si se propaga até a

modernidade, com algumas modificações, com suas práticas culturais, instituições e hábitos

individuais. Na modernidade, a interioridade passa a ser associada às ideias de intimidade e

subjetividade. Assim, o exame de si adquire caráter reflexivo: a interioridade é a busca do

verdadeiro ‘eu’ pré-social.

As sociedades tradicionais ou holistas são fundadas no princípio onipresente da

hierarquia. De acordo com Salem (1992), a sociedade hierárquica é aquela na qual a

configuração de valores se organiza em torno de uma norma, geralmente consolidada na

religião, englobando todos os níveis e planos da vida social (SALEM, 1992, p.62). Neste

contexto, a noção de identidade é associada à posição que o sujeito ocupa socialmente – o

sujeito está submetido à totalidade social que o contém. Em contraposição, na ideologia

ocidental moderna, com a desestruturação da totalidade hierárquica produzida pela lógica

religiosa, o indivíduo desponta como valor moral central, rejeitando os englobamentos de

outrora, que o definiam a partir de um todo. Na sociedade ocidental moderna, o indivíduo é o

todo em si mesmo, uma vez que lhe é atribuído o estatuto de um ser moralmente autônomo e

pré-social.

Esta desestruturação da totalidade hierárquica religiosa não significa a extinção das

religiões, na sociedade ocidental moderna. Leaman (2002, p. 399) considera que,

frequentemente, na medida em que a sociedade se industrializa e se moderniza, mais ela se

torna secular. No entanto, Leaman (2002, p. 399) faz a ressalva de que esta tese não é

inteiramente verdade, uma vez que muitas sociedades modernas e científicas persistem com

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compromissos religiosos. Pesquisadores da área afirmam que, apesar do processo de

secularização observado na sociedade ocidental não ter extinguido as expressões religiosas do

espaço público (LEAMAN, 2002, p. 400; MENEZES; GOMES, 2012, p. 96), considera-se que

a partir deste processo é concebida uma nova noção de pessoa, produzindo novas “verdades”

sociais, referentes à ideologia individualista. O mesmo ocorre com as religiões, que se

transformam, aderindo aos valores vinculados ao individualismo, de modo que as fronteiras

entre o caráter religioso e o não religioso no mundo moderno se tornam imprecisas

(MENEZES; GOMES, 2012, p. 90).

Com a secularização da sociedade, na medida em que o sujeito deixa de se definir a

partir de uma hierarquia religiosa, o indivíduo se configura como valor central. Segundo

Duarte (1999, p. 24), a configuração do indivíduo como valor se remete à construção de um

“dispositivo de sensibilidade”, entre os séculos XVII e XVIII. O autor destaca três aspectos

envolvidos nessa construção ideológica e institucional: a perfectibilidade ou aperfeiçoamento,

a experiência e o fisicalismo.

A construção desses aspectos característicos da individualização da sociedade ocidental

moderna constitui reflexo de transformações histórico-culturais. Na passagem do século XVII

para o XVIII, o ser humano ocidental passa a se entender como dotado de uma capacidade de

se aperfeiçoar indefinidamente (Duarte, 1999, p. 24). Esta noção se configura na medida em

que o sujeito ocidental se entende fora da hierarquia totalizante da religiosidade. Ele começa a

se considerar um ser dotado de razão própria – razão esta que, outrora, respondia a uma razão

divina hierarquicamente superior. A ‘razão’ ocidental moderna, entendida como uma

“verdade”, está localizada no ‘interior’ do sujeito e responde à sua ‘vontade’. Como busca da

‘verdade’, a interiorização, além de demarcar a responsabilização ativa do sujeito frente à

divindade, a si e a outrem, indica o uso sistemático da razão, como ferramenta do

conhecimento. Esta característica distingue o ser humano dos demais entes terrestres, pois é

por meio do uso desta razão que o sujeito constrói conhecimento – em busca de constante

aperfeiçoamento de si, e de suas condições de relação com o mundo.

É pelo movimento de busca da perfectibilidade que a cultura ocidental moderna está

orientada pelas ideias de progresso, desenvolvimento e transformação ilimitada (DUARTE,

1999). Contudo, este aperfeiçoamento só pode se desencadear por meio da “experiência” em

relação ao mundo exterior. O sujeito percebe o mundo externo por seus ‘sentidos’, construindo

novas formas de relação com a exterioridade e com o “mundo interno”, aperfeiçoando-se de

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modo a obter mais controle sobre seu futuro. A preeminência da experiência reside no cerne do

empirismo que, posteriormente, sustenta o cientificismo e o positivismo. Os sentidos são

afirmados como veículo de articulação das relações humanas: eles estão localizados tanto na

raiz da razão como na das “emoções”. Assim, são considerados como meio de conhecimento

do mundo externo e de si, enquanto mundo interno (DUARTE, 1999, p. 25).

A partir da separação radical entre corpo e espírito, em que a corporalidade humana

passa a ser dotada de uma lógica própria, o fisicalismo se constitui como uma revolução

cosmológica da teoria da pessoa (DUARTE, 1999, p. 25). A corporalidade torna-se uma

dimensão autoexplicativa do humano. É o momento, por exemplo, da dissecação de corpos

humanos enquanto matéria que define o ser humano – definição que antes se baseava na ideia

de alma divina. Ao abordar como o fisicalismo acarreta modificações na concepção do

funcionamento do corpo e na condição humana, Duarte (1999, p. 26) ilustra com a história do

sistema nervoso, invenção do século XVIII. A partir desta concepção, os ‘sentidos’ são

articulados ao cérebro, que centraliza as informações, possibilitando o avançar rumo à

perfectibilidade. Em suma, entende-se então que o corpo humano é dotado de uma matéria,

organizada em um sistema nervoso, que articula as experiências vivenciadas sensivelmente em

uma razão, em torno da qual o sujeito se move em direção a um aperfeiçoamento de si e de

suas condições no mundo externo. Assim, os nervos são dotados de sensibilidade, que articula

a passagem da linguagem “científica” dos nervos para a linguagem moral, psicológica das

emoções (DUARTE, 1999, p. 26). Observa-se uma concepção “fisiológica” e uma

“sentimental” em torno da sensibilidade, sendo a última a mais englobante, uma vez que é, ao

mesmo tempo, dependente e autônoma do “substrato” nervoso.

Este “dispositivo da sensibilidade”, conforme designado por Duarte (1999), viabiliza a

preeminência de um estilo de vida que privilegia os recursos de prazer, os meios de

sensibilização do corpo. Este privilégio caracteriza a sociedade ocidental moderna como

hedonista55

. Campbell ainda distingue o hedonismo moderno, pela contínua estratégia

qualitativa de busca por intensidade, ao contrário do hedonismo “tradicional”, focado no

consumo quantitativo de recursos limitados (DUARTE, 1999, p. 28). Esta característica

55 A característica hedonista da sociedade ocidental moderna se opõe à ênfase dolorista do cristianismo, na

medida em que se desloca o privilégio da satisfação ou prazer a ser obtido no mundo terreno sob a forma de

realização emocional pessoal. Contudo, esta característica não promove a extinção da religião, mas viabiliza um

universo religioso moderno em que “o motor da experiência religiosa passa a estar sediado na interioridade do

sujeito” (DUARTE, 2006, p. 21).

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influencia desde o consumo de drogas ilícitas e de uma alimentação suntuária, ao acelerado

desenvolvimento de tecnologias terapêuticas e preventivas, orientadas à maximização da

extensão da vida e otimização do uso do corpo.

Desta forma, entende-se por ‘cosmologia moderna’ o conjunto de linhas de força

ideológica supostamente articuladas em torno de valores conceituados como ‘subjetivismo’,

‘naturalismo’, ‘hedonismo’ e ‘racionalização corporal’ (DUARTE, 2006, p. 17). Estes valores

configuram não apenas a noção de um ‘ethos privado’, mas uma ordem púbica liberal moderna

presente em suas instituições, tanto nas construções científicas vigentes como nas

religiosidades modernas. Neste sentido, é importante distinguir o que Duarte (2006, p. 16)

chama de ‘difusão formal’ e ‘difusão material’ da ideologia moderna. O autor define a

primeira como “a que atinge e conforma as ordens institucionais da nação, no âmbito tanto do

Estado quanto da sociedade civil organizada” (DUARTE, 2006, p. 17), enquanto a ‘difusão

material’ se refere à internalização desses novos valores, que organizam as ações dos

indivíduos. É sob este viés que observa-se um processo de psicologização dos indivíduos e da

sociedade como um todo.

A concepção de um “indivíduo psicológico” consiste em um desdobramento do

individualismo característico da cultura ocidental moderna. O processo de individualização

indica uma subjetivação do sujeito: o indivíduo é dotado de uma “verdade” singular, que está

contida em seu “mundo interno”. A noção de sujeito psicológico frequentemente está

vinculada aos saberes “psi”. Segundo Figueiredo (2014, p. 19), a psicologia aparece no século

XVIII, como um projeto de uma ciência natural do subjetivo, enquanto tentativa de colonizar

este novo território da natureza interna.

Ao abordar a relação entre o indivíduo psicológico e os saberes ‘psi’, por vezes encontra-

se na literatura a defesa de que estes saberes fornecem uma “linguagem” para os aspectos

modernos característicos do sujeito. Em outras perspectivas, destaca-se a “fabricação” do

próprio sujeito, como efeito da difusão das estratégias disciplinares. De todo modo, segundo

Salem (1992, p. 67), ainda que se admita o sujeito psicológico como imperativo de um

conhecimento de si, este sujeito está associado aos saberes ‘psi’. Esta associação se configura

na medida em que a busca de si passa a ser mediada por um ‘outro’, no caso, pelos

especialistas ‘psi’. Contudo, a autora considera a coexistência do sujeito auto-constituinte

(“sujeito ético”), e do sujeito que depende de um ‘outro’ para consumar o encontro consigo

(“sujeito psicológico”) – condição em que também é necessária a afirmação de certas

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propensões culturais, como ‘interiorização’, ‘introspecção’ e ‘subjetivação’. Assim, ao abordar

o ‘sujeito psicológico’ não significa afirmar que o sujeito é ‘fabricado’ pelos ‘saberes-

poderes’, mas que “os saberes ‘psis’ afirmam-se como importante foco de produção social de

representações sobre o indivíduo moderno” (SALEM, 1992, p. 68).

Figueiredo (2012, p. 129) sugere que o campo psicológico como atualmente é conhecido

nasceu da articulação conflitiva entre o liberalismo, o romantismo e as práticas disciplinares. O

autor considera o liberalismo enquanto práticas políticas que viabilizaram o desenvolvimento

de uma sociedade individualista e atomizada. A ideia de ‘liberdade’ está associada às noções

de autonomia e autodesenvolvimento, com influência do ideário romântico, em articulação

com o projeto individual. Assim, apresenta-se uma ênfase nas concepções de diversidade,

singularidade e interioridade dos indivíduos. Por fim, a disciplina se refere às novas

tecnologias de poder exercidas sobre as identidades, que são manipuláveis. Esses três polos

atraem-se e, ao mesmo tempo repelem-se, formando um território triangular, balizado por estes

valores iluministas. É este território que Figueiredo (2012, p. 151) considera fértil à construção

das psicologias, no final do século XIX e início do XX. Com o fortalecimento do polo da

disciplina em relação aos outros dois, a partir do desenvolvimento da sociedade administrada

(ou do capitalismo tardio), este território ganha densidade e volume. Uma nova camada é

experimentada e reconhecida como o ‘psicológico’, dotado de especificidade, e disponível

como objeto de saber e intervenção.

A psicologia, enquanto construção de um conhecimento sobre a subjetividade, justifica-

se na busca de colonizar o território “íntimo” do indivíduo. Uma vez que esta natureza interna

é presumida como hostil à disciplina do método científico, ela deve ser neutralizada,

fiscalizada e controlada, devido à preocupação epistemológica e metodológica

(FIGUEIREDO, 2014, p. 19).

Este conhecimento acerca da subjetividade configura o que Foucault denomina de

“micropoder” (SALEM, 1992, p. 69). De acordo com este autor, os micropoderes são

articulados e condensados em torno do “poder disciplinar”. Assim, trata-se de formas de

apreensão e de tratamento dos sujeitos que, consequentemente, produzem efeitos

singularizantes. O poder disciplinar conta com uma eficácia produtiva: seus dispositivos de

individualização produzem realidades e sentimentos, ao mesmo tempo em que institui o

próprio indivíduo e a individualidade. Deste modo, Foucault evidencia que o indivíduo é um

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dos primeiros efeitos do poder. A partir de sua “fabricação”, o sujeito tem a “obrigação” à

subjetivação.

Os saberes ‘psi’, enquanto poderes disciplinares, instituem o sujeito, ao mesmo tempo

em que os sujeitam, em um processo nomeado por Salem (1992, p. 71) como “despossessão

subjetiva”. Este processo é marcado por uma dissociação entre o indivíduo e a “posse” de si,

pois ao pressupor a necessidade da presença de um “outro”, na busca obsessiva pela “verdade

interna”, o sujeito é convertido em objeto de investigação do especialista ‘psi’ que,

supostamente, sabe mais de sua “verdade” do que o próprio sujeito.

É neste sentido que a história da constituição das profissões referentes aos saberes ‘psi’

está vinculada à história da lenta e inexorável penetração das novas crenças psicologizantes,

oriundas de uma cosmologia individualista, no imaginário social (RUSSO, 2002, p. 7). A

noção de pessoa na cultura moderna transforma os saberes socialmente legitimados – no caso,

os “científicos”, representados pelos saberes ‘psi’ –, ao mesmo tempo em que é transformada

por eles.

Segundo Russo (2002), a história dessa subjetivação do sujeito, enquanto objeto de um

saber institucionalizado, está associada à difusão e à prática psicanalítica que, em geral,

marcou o mundo ocidental no século XX. De fato, sua história tem início na Europa no século

XVIII, com o surgimento da psiquiatria, a partir do aparecimento do hospício como espaço de

observação e cura, administrado por médicos e enfermeiras profissionais. Tal processo teve

início no Brasil somente no século XIX. Foi apenas no século XX que a psiquiatria brasileira

começou a se desvincular do alienismo francês e de sua concepção moral de doença mental,

alinhando-se com a proposta científica alemã, que buscava uma causa orgânica da doença

mental no cérebro e no sistema nervoso. Para Russo (2002, p. 16), as relações da psicanálise

com a medicina foram ambíguas desde o início. Embora Freud tenha negado a necessidade de

uma formação em medicina para praticar a psicanálise, seus colaboradores mantinham o

vínculo entre as duas disciplinas, na busca de legitimidade e cientificidade à especialidade

psicanalítica.

A promulgação da lei brasileira que reconhece a psicologia como profissão se deu

somente em 1962. Como atribuições reconhecidas do profissional psicólogo, o diagnóstico

psicológico, a orientação e seleção profissional, a orientação psicopedagógica e a solução de

problemas de ajustamento. Desde o início do século XX a psicanálise se difundia no Brasil,

mas foi na década de 1970 que a especialidade conquistou as camadas médias urbanas. Russo

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(2002, p. 38) atribui a certos fatores políticos, econômicos e culturais esse boom da

psicologização da sociedade brasileira. O fechamento político, em decorrência das ditaduras

militares da época acarretou um período de obscurantismo, censura e repressão da sociedade.

Nesse sentido, diante da impossibilidade de preocupação com o social, o indivíduo se voltou à

preocupação com o “mundo interno”. Em termos de “micropolítica”, a disseminação da

contracultura também influenciou o processo de psicologização: a “moral burguesa”, ao

carregar a crítica da opressão, promove um retorno do sujeito para dentro de si, para repensar

suas pequenas atitudes cotidianas, suas escolhas íntimas, seu modo de ser (RUSSO, 2002, p.

41). Por fim, o “milagre econômico” que, à época, proporcionou uma expressiva mobilidade

ascendente, implicou em modificações no estilo de vida e no desenraizamento em relação ao

meio de origem, promovendo questionamentos sobre os modelos tradicionais.

Na década de 1990, a clientela brasileira da especialidade psicanalítica começa a

diminuir, devido tanto à aparição das “concorrentes” terapias corporais e práticas alternativas

como à “psiquiatrização” da sociedade (RUSSO, 2002, p. 73). Até então, a psiquiatria

mantinha uma relação ambígua no interior da medicina: por um lado, baseava-se na afirmação

de uma causalidade somática para os transtornos mentais; por outro, configurava-se como uma

medicina “especial”, por voltar-se a uma doença não propriamente somática. Contudo, em

paralelo às vertentes “morais” da psiquiatria (a abordagem psicanalítica sobre os transtornos

mentais e o movimento “antipsiquiátrico” de teor psico-político-social) que se afastavam da

doença mental como fato biológico, a vertente “somaticista” se manteve, por meio do

desenvolvimento significativo da pesquisa farmacológica em psiquiatria.

Em um primeiro momento, a vertente moral e a somática conviviam de forma pacífica –

os medicamentos possibilitavam o tratamento pela palavra de pacientes antes inabordáveis.

Assim, os medicamentos atingiam os sintomas, enquanto a psicanálise visava acessar a causa.

Contudo, os sucessos da terapêutica medicamentosa (e seu forte movimento econômico)

atraíram o interesse dos jovens psiquiatras, em detrimento da longa e cara formação

psicanalítica. Ademais, a “revolução medicamentosa” possibilitou que o psiquiatra se

posicionasse como médico, assim como as demais especializações da área.

A década de 1990 é considerada a década do cérebro, o que se somou às pesquisas sobre

o funcionamento cerebral, que inauguraram o novo campo científico da neurociência (Russo,

2002, p. 76). Neste momento tem início um movimento inverso: a psiquiatria e as demais

“descobertas científicas” passam a influenciar os psicanalistas norte-americanos, que propõem

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uma revisão da teoria freudiana, na direção da incorporação de novas teorias neurocientíficas.

Este cenário conduz à afirmação de que “o atual sucesso da psiquiatria biológica e da ideologia

que a fundamenta talvez signifique que, mais que a anatomia, a biologia seja nosso destino”

(RUSSO, 2002, p. 77).

Embora o movimento dos saberes ‘psi’ siga a tendência de um direcionamento para

maior evidência do saber psiquiátrico, tal panorama não implica na total deslegitimação da

psicologia e da psicanálise, enquanto “verdades” sobre a natureza humana. A ‘psiquiatrização’

do social é também efeito de transformações dos valores sociais. A partir da secularização da

sociedade ocidental moderna, instaura-se um processo crescente de medicalização56

do social,

vinculado à crença generalizada na ciência e na razão, como método de construção do

conhecimento sobre o homem e a natureza. É neste sentido que, graças aos desenvolvimentos

científicos em torno da natureza humana, que a psiquiatria vem se estabelecendo como

referência de “verdade” sobre as sensibilidades, emoções e comportamentos dos indivíduos.

Na medida em que a psiquiatria passa a se basear em aspectos médico-científicos, a

especialização se legitima na cultura ocidental, como disciplina de referência, dentre as

ciências do homem.

Vidal (2006, p. 64) considera que as disciplinas das ciências do homem só adquirem

valor social o passo em que contribuem com a ‘perfectibilidade’ da humanidade – um dos

aspectos considerados de maior importância na cultura moderna. Apesar da análise de Vidal

focar na psicologização e na disciplina psicologia, pode-se considerar uma extrapolação da

ideia, englobando a psiquiatrização e a psiquiatria, devido à sua crescente afirmação frente à

sociedade. Assim, neste caso, entende-se que a ‘perfectibilidade’ está relacionada a fatores

biológicos e ao equilíbrio de neurotransmissores a ser reestabelecido, mediante intervenção

medicamentosa.

Uma vez que a psiquiatrização da sociedade promove e é promovida pela construção

social da profissão do psiquiatra, Vidal (2006, p. 65) afirma que uma das consequências sociais

é a estipulação deste saber como mecanismo de definição de normas e de controle do

56Nesta pesquisa considero o conceito mais tardio e amplo de ‘medicalização’. Segundo Zorzanelli, Ortega e

Bezerra Júnior (2014), o uso restrito do termo, referindo-se somente às práticas médicas (mais exatamente, as

biomédicas) obscurece outros níveis de sua ocorrência. A ampliação da noção de medicalização para além da

medicina engloba o processo de ‘farmacologização’ (CAMARGO JR, 2013), inclusive o papel ativo dos

usuários de medicamentos, e os processos de ‘psicologização’ e ‘psiquiatrização’, enquanto ferramentas da

biopolítica (como explorado nesta dissertação).

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funcionamento humano. Ao mesmo tempo em que os saberes ‘psi’ promoveriam o avançar da

humanidade no sentido da perfectibilidade, eles também apoiam a formação de autoridades,

uma vez que resultariam de um suposto conhecimento da natureza humana. Deste modo, a

psicologia e a psiquiatria se definem como dispositivos no “governo dos homens”, no sentido

foucaultiano.

Os saberes ‘psi’ se configuram como produção cultural difusora de um ideário e

produtora de sensibilidades em torno da concepção bio-psico-social dos indivíduos. A partir do

momento em que tais ciências produzem verdades e novas subjetividades acerca do fenômeno

do luto, pode-se considerar que estas especializações atuam como um dispositivo da morte à

semelhança do dispositivo foucaultiano da sexualidade.

De acordo com Agamben (2005), o conceito de “dispositivo” começa a ser usado com

maior frequência por Foucault em meados dos anos 1970, momento em que este autor se

debruça sobre a temática da “governabilidade” ou, em outros termos, do “governo dos

homens”. Embora Foucault nunca tenha apresentado uma definição para ‘dispositivo’, a partir

da análise de sua obra e discursos, Agamben (2005) destaca algumas características do

conceito. Assim, ‘dispositivo’ é entendido como uma rede ampla e heterogênea de elementos

linguísticos e não-linguísticos, que tem sempre uma função estratégica concreta, inscrita em

uma relação de poder. Portanto, inclui em si a própria episteme57

. Uma vez que ‘dispositivo’ é

entendido como rede, não é possível resumir o conceito a uma tecnologia de poder específica,

tampouco como uma generalização abstrata. ‘Dispositivo’ é um termo técnico de uma rede,

que se estabelece entre elementos históricos – a concretização em relações de poder de

instituições, processos de subjetivação e regras.

A partir da relação entre a classe dos seres viventes e os dispositivos, resulta um terceiro

elemento: o sujeito. Um indivíduo pode comportar vários sujeitos, conforme a proliferação de

processos de subjetivação. Portanto, o dispositivo é “uma máquina de produção de

subjetivações, e só enquanto tal é uma máquina de governo” (AGAMBEN, 2005, p. 15). Para

Agamben (2005, p. 13), ‘dispositivos’ é literalmente “qualquer coisa que tenha de algum modo

a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os

gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”. O conjunto de elementos é

extrapolado para além das instituições e das práticas, cuja conexão com o poder é

57 Segundo Agamben, episteme para Foucault é aquilo que em certa sociedade permite distinguir entre o que é

aceito como enunciado científico daquilo que não é científico (AGAMBEN, 2005, p. 10).

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relativamente evidente – engloba, por exemplo, a caneta, os computadores e a própria

linguagem, que talvez seja o dispositivo mais antigo.

Os dispositivos não são elementos completamente exteriores e independentes aos

indivíduos, pois “na raiz de cada dispositivo está [...] um desejo demasiadamente humano de

felicidade e a captura e a subjetivação deste desejo em uma esfera separada constitui a potência

específica do dispositivo” (AGAMBEN, 2005, p. 14). Portanto, todo dispositivo implica um

processo de subjetivação, ao mesmo tempo em que sem o processo de subjetivação o

dispositivo não pode funcionar como dispositivo de governo. É deste modo que, na concepção

de Foucault, os dispositivos criam corpos dóceis e, ao mesmo tempo, ‘livres’.

A concepção de ‘dispositivo’ como produtor de subjetividades e, portanto, como

“governo dos homens”, é o que permite que Nikolas Rose (1988) afirme que é uma ilusão

julgar nossas personalidades, subjetividades e “relacionamentos” como questões privadas,

reflexos de nossos verdadeiros ‘eus’. De fato, estas instâncias são analisadas como objetos de

poder, são governadas na medida em que são “socialmente organizados e administrados nos

mínimos detalhes” (ROSE, 1988, p. 31). Este governo do ‘eu’ contemporâneo acontece

mediante a incorporação das capacidades pessoais e subjetivas dos indivíduos, aos objetivos e

aspirações dos poderes públicos. A subjetividade integra os cálculos das forças políticas,

inserindo-se nas estratégias sociais, de modo a regular as condutas dos sujeitos, a partir de uma

ação sobre suas capacidades e propensões mentais. Esta administração da subjetividade é

crucial na organização moderna, na medida em que preenche o espaço entre as vidas

“privadas” e as preocupações “públicas” – extrapolando-se a administração das forças e

potências, como na ‘sociedade disciplinar de Foucault, ao englobar as subjetividades, para

aumentar a produtividade e a harmonia. Assim, a partir do momento em que se torna

necessário regular as subjetividades, configura-se uma nova expertise, encarregada de

classificar e medir a psique, predizer e diagnosticar suas alterações e prescrever tratamentos.

Tal expertise confere a estes profissionais a autoridade e legitimidade social de compreender e

agir sobre os indivíduos – institui-se como uma nova autoridade sobre o ‘eu’.

Contudo, estas novas formas de pensar não se restringem às figuras de autoridade, elas

afetam os “leigos” em suas crenças pessoais, desejos e aspirações. As formulações dos saberes

‘psi’ caracterizam o processo de subjetivação das sociedades ocidentais modernas,

reconstruindo a ideia que os indivíduos têm de si próprios, e remodelando as técnicas de

administração de suas emoções. É neste sentido que as construções dos saberes ‘psi’ acerca do

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luto favorecem uma formulação de novas relações com este evento. Ao estabelecer, por

exemplo, um tempo normal de luto, fases e comportamentos esperados (ainda que com fins

didáticos), cria-se uma expectativa dos próprios indivíduos enlutados, sobre suas reações e

sensibilidades. No governo de si durante a vivência do luto, a percepção de um desvio do

“padrão” (ou sua possibilidade) pode ser considerada como uma ameaça a si ou à sua

adequação social. Cabe, portanto, ao profissional ‘psi’ restaurar ou facilitar o equilíbrio

subjetivo que, de certo modo, foi abalado, a partir da introjeção de suas definições e regras

acerca do luto.

A preocupação de Rose (1988) não é determinar se o conhecimento da vida subjetiva é

uma “verdade” epistêmica, mas como estes sistemas de verdades são estabelecidos, produzidos

e avaliados. Nesse sentido, o autor não entende que tais sistemas reprimem a liberdade do

indivíduo, mas estimulam a subjetividade e a autoconsciência, promovendo a

‘perfectibilidade’. Portanto, os sistemas de verdade são fundamentais na produção de

indivíduos, uma vez que os mantêm “livres para escolher”, conforme seus sentidos orientados

para o auto-aperfeiçoamento e para sentimentos subjetivos de prazer.

Em suma, a subjetividade se tornou um recurso na administração dos problemas sociais,

uma vez que a expertise configurada pelos saberes ‘psi’ atua como forma de ‘governo’.

Entende-se por ‘governo’ “certa forma de buscar a realização de fins sociais e políticos através

da ação, de uma maneira calculada, sobre as forças, atividades e relações dos indivíduos que

constituem uma população” (ROSE, 1988, p. 35). As ações das autoridades têm como objetivo

maximizar as forças de cada indivíduo, minimizar seus problemas e organizá-los da forma

mais eficaz. Portanto, faz-se necessário conhecer os indivíduos. Esse conhecimento deve

transformar aquilo que deve ser governado, no caso as subjetividades, em traços materiais, de

modo que possam ser comparados e contrastados, para que se estabeleça um entendimento

geral e individual. Delimita-se, assim, o território dos saberes ‘psi’ e seu papel-chave na

governamentabilidade dos indivíduos: seus sistemas conceituais geram uma ‘linguagem’ de

análise e uma explicação que fornece o meio que possibilita que a subjetividade e a

intersubjetividade humanas sejam objeto de cálculos das autoridades. Segundo Rose (1988, p.

39), a “avaliação psicológica não é meramente um momento de um projeto epistemológico

(...): ao tornar a subjetividade calculável, elas tornam as pessoas sujeitas a que sejam efetuadas

intervenções com e sobre elas – e que façam coisas a elas próprias – em nome de suas

capacidades subjetivas”.

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A organização desse conhecimento constitui o que pode ser nomeado de “tecnologias

humanas”, que envolvem a forças e as capacidades calculadas, outras forças (biológicas e

mecânicas, por exemplo) e artefatos, formando redes operacionais de poder. Estas técnicas

organizam os humanos no espaço e no tempo, para alcançar certos resultados, orientados em

função de uma noção ampla de produtividade, que ultrapassa o âmbito do trabalho laboral,

atingindo os momentos de lazer – o sujeito deve consumir cultura (filmes, livros, viagens etc.),

associando o hedonismo à noção de produtividade.

O conhecimento psicológico, enquanto “tecnologia humana”, é estruturado em resposta a

determinado problema, que surgiu em uma circunstância social específica, cuja origem não

predestina somente o tipo de solução proposta. A própria psicologia é composta por diversas

escolas que, muitas vezes, são conflitantes. De todo modo, diferenças e divergências à parte,

em uma perspectiva ampla, o governo é o mesmo, ao se infiltrar sutilmente regulando

existências e experiências, atuando como “técnicas de si”.

Certamente, a diversidade de vertentes da psicologia produzem teorias e terapias do luto

que apresentam divergências conceituais, teóricas, diagnósticas e prescritivas. Contudo, de

modo geral, estas construções dos saberes ‘psi’ produzem ‘verdades’, que delimitam uma

intensidade e um tempo para a vivência das reações decorrentes de uma perda. Mesmo nos

casos em que não é explicitado um tempo específico de superação do luto, devido às inúmeras

variáveis subjetivas e circunstanciais, o entendimento de que as reações se abrandam com o

passar do tempo gera expectativas sobre o sujeito enlutado. A ideia de que este processo pode

ser mais ou menos difícil para cada sujeito e, portanto, se tratar de um processo mais ou menos

longo, promove uma autogestão das emoções e das reações de luto e, até, de busca por

terapias, de modo a facilitar a recuperação, por meio de um reequilíbrio da subjetividade.

As “técnicas de si” envolvidas na regulação das sensibilidades, em torno do processo de

morte e do luto são enquadradas no amplo conceito de biopoder – “campo composto por

tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir sobre as características vitais da existência

humana” (RABINOW; ROSE, 2006, p. 28). O biopoder consiste na produção de discursos de

‘verdade’ sobre o caráter ‘vital’ dos sujeitos e suas respectivas autoridades, em estratégias de

intervenção sobre a existência coletiva, em nome da vida e da morte, e em modos de

subjetivação, por meio dos quais os indivíduos agem sobre si próprios, de acordo com os

discursos legitimados e, também, em nome do coletivo.

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O biopoder não é um mecanismo estatal de repressão. Corpos não-estatais exercem

importante papel nas disputas e estratégias biopolíticas. No âmbito da saúde, por exemplo,

desde o fim da Segunda Guerra, agências estatais e não-estatais adquiriram importância,

constituindo um “complexo bioético em que o poder e tecnologias médicas são reguladas por

novas autoridades (RABINOW; ROSE, 2006, p. 37). Estes biopoderes seguem se

transformando, conforme sua relação com o social. De fato, segundo Rabinow e Rose (2006),

As racionalidades, estratégias e tecnologias do biopoder mudaram ao longo do

século XX, assim como a administração da saúde e da vida coletiva tornou-se um

objetivo chave de Estados governamentalizados, e novas configurações da verdade,

do poder e da subjetividade surgiram para dar suporte às racionalidades do bem-estar e da segurança, assim como aquelas de saúde e higiene. (p. 38).

Rabinow e Rose (2006, p. 48) sugerem um aprimoramento nas ferramentas conceituais,

para uma análise crítica mais refinada, acerca das relações entre a biopolítica, o biocapital e a

bioeconomia. Os autores consideram que o biopoder, que atravessa certas questões, como raça,

sexualidade e, em âmbito mais molecular, o aconselhamento genético, não deve ser entendido

simplesmente como uma questão de eugenia. As técnicas de biopoder podem ser exercidas de

forma mais sutil sobre a saúde e a vitalidade, de modo a beneficiar as relações de mercado –

problemas de saúde física ou emocional são “problemas”, na medida em que afetam a

produtividade do indivíduo.

É neste sentido que a psicologia e psiquiatria exercem poder regulatório. Rabinow e

Rose (2006) se referem a uma pesquisa empreendida por Rose (2006), acerca de uma nova

geração de medicamentos antidepressivos, baseando-se na justificativa de que a depressão se

tornará a segunda maior causa de doença, tanto nos países centrais quanto nos periféricos, por

volta de 2020, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Esta crença (e preocupação)

com a depressão é derivada da concepção humanista de que o sofrimento é resultado de uma

condição clínica subdiagnosticada, da preocupação dos governos com as consequências em

seus orçamentos, devido aos dias perdidos, em decorrência da depressão e, também, do

marketing da indústria farmacêutica, por uma “conscientização da doença”. Assim, é possível

considerar que a busca dos indivíduos por “qualidade de vida” e felicidade é influenciada por

aspectos que extrapolam o campo “privado” e, até, a esfera da subjetividade.

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6.2 SOFRIMENTO COMO RISCO: UMA SOCIEDADE DO DESEMPENHO

A construção científica acerca do luto é formulada com a finalidade de garantir sua

elaboração, no sentido de aceitação da perda vivida. Diante da necessidade criada de

acompanhamento da equipe de profissionais de saúde sobre o luto, os manuais sobre o tema

indicam orientações para o reconhecimento de características que poderiam facilitar ou

dificultar uma passagem sadia e satisfatória pelo processo de luto. Deste modo, a partir da

configuração de indicadores presentes em cada caso, as intervenções profissionais são

estabelecidas. Em alguns casos, elas assumem o caráter de acompanhamento dos familiares,

em sua trajetória por um luto considerado ‘normal’. No entanto, outros casos exigiriam

intervenções profissionais, a fim de garantir uma devida adaptação à perda. Estas intervenções

podem ser preventivas – evitando ou, ao menos, minimizando uma possível complicação do

processo de luto – ou curativas, agindo sobre um luto pós-morte considerado complicado.

Desde o final do século XX são criados cursos de especialização para profissionais de

saúde – sobretudo psicólogos – em terapia do luto, com uma produção bibliográfica

prescritiva, voltada à prevenção de um “luto patológico”. A busca da produção de uma morte

controlada em uma cena ordenada, harmoniosa e pacífica, conforme o ideal paliativista, denota

um processo de normatização da morte e do luto. O sofrimento acarretado pela situação de

perda, quando não evitado, deve ser vivenciado de forma calma e comedida, para não interferir

neste cenário pacífico construído. É neste sentido que especialistas em luto formulam o que

seria uma experiência normal após uma perda.

A psicologização e a psiquiatrização do luto configuram a normatização deste processo,

na medida em que os sujeitos enlutados se tornam objetos de intervenção externa e interna,

mediante técnicas de si, em nome de suas capacidades subjetivas. A normatização do processo

de luto, a partir de sua apropriação por estes saberes técnicos especializados, naturaliza e

universaliza determinados aspectos considerados ‘normais’, enquanto qualquer possível desvio

é abordado como potencial fator de risco. Pesquisadores e profissionais ‘psi’ consideram que o

luto ‘normal’ pode durar um ou dois anos. Contudo, conforme observado nos manuais sobre

luto, este período não é respeitado para a identificação de indivíduos em risco de luto

complicado. Se o luto representa um risco de provocar um prejuízo maior, ele deve ser

identificado e tratado precocemente. Segundo Walter (2006, p. 76), a preocupação em

identificar o fator de risco antes que ele provoque consequências adversas reflete uma

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sociedade caracterizada por uma impossibilidade de sofrer e, portanto, obcecada em predizer e

eliminar o risco, garantindo segurança e, até, felicidade – a “sociedade de risco”, conforme

conceituação de Beck (1992).

O indivíduo enlutado deve compartilhar suas emoções com os profissionais de saúde, de

preferência no luto antecipatório ou no momento inicial do luto pós-morte, para que potenciais

riscos sejam detectados, amenizados ou minados. Cria-se uma dupla exigência: o sujeito

enlutado deve compartilhar sua experiência e o profissional deve ser empático – habilidade

explicitamente recomendada pelos manuais. A exigência da publicização do luto, por meio do

compartilhamento com a equipe profissional (ou com os pares, em grupos de apoio) cria uma

expectativa social que pode ser conflitante com as necessidades emocionais do indivíduo

enlutado (WALTER, 2011, p. 255). A abordagem do profissional de saúde institucionalizado

pode não ser convidativa, quando interpretada como intervenção prescritiva, protocolar. O

sujeito enlutado pode desejar privacidade ou compartilhar sua experiência com um profissional

com quem tenha intimidade – que pode não ser o caso do profissional ‘psi’ da equipe

paliativista ou hospitalar. Ao mesmo tempo, este profissional pode considerar esta evitação

como uma resposta reativa, indicativa de um luto ‘adiado’ e, portanto, possível luto

complicado. A ideia de que há um risco no luto que deve ser evitado pode provocar tentativas

terapêuticas obstinadas, ou insistentes recomendações dos familiares, na busca por adequação

do indivíduo que apresenta respostas desviantes da ‘norma familiar’ (WALTER, 2006, p. 75).

A ideia de risco está presente nos manuais sobre luto em dois sentidos: o luto em si como

fator de risco para o desenvolvimento de aspectos prejudiciais, e o destaque de características

internas e externas ao sujeito, que se configuram como fatores de risco para o desenvolvimento

de um luto complicado. Os manuais evidenciam, especialmente, três tipos de luto complicado,

devido à intensidade e/ou duração do sofrimento: o luto adiado, o luto crônico e o luto

traumático. Outra categoria importante é a conceituação do luto antecipatório enquanto

momento propício para intervenções preventivas, agindo sobre os fatores de risco, evitando ou

minimizando uma complicação do luto.

Diante da elaboração de conceitos de lutos complicados e da estipulação de fatores

determinantes ou, ao menos, facilitadores destes quadros, torna-se necessária uma análise do

luto, a partir da categoria de risco. Afinal, qual risco o luto complicado representa para a

sociedade ocidental contemporânea? O que é “complicado” no luto, para que especialistas

determinem fatores de risco associados a este fenômeno?

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De acordo com Lupton (2003), a categorização de alguma pessoa, objeto ou fenômeno

enquanto ‘risco’ não é passível de explicação por análise meramente racional, tampouco por

uma relação de causalidade, em que uma emoção precede o pensamento lógico em um

processo linear. O risco é um processo permeado por influências socioculturais e, portanto, é

dinâmico e heterogêneo, na medida em que seus entendimentos são constantemente

configurados e reconfigurados. Trata-se de um processo complexo e ambivalente, de modo que

não deve ser representado somente como nocivo e negativo. Em parte, experienciar emoções

intensas e superá-las evidencia uma sensação de autocontrole e de autenticidade da

individualidade (LUPTON, 2013, p. 636).

Para os teóricos da abordagem socioantropológica, as respostas emocionais ao risco não

são conceituadas de maneira análoga à de modelos psicológicos comportamentais, que as

classificam como respostas inerentes e involuntárias a estímulos ameaçadores. As reações

emocionais são entendidas como construções sociais, culturalmente produzidas por

significados compartilhados, e experiências passadas (LUPTON, 2013, p. 636). As emoções

são fluidas, relacionais e contextuais, têm uma história construída em experiências prévias, têm

culturas localizadas no tempo e no espaço, e são coletivas – podem ser compartilhadas, não se

restringem ao indivíduo e à esfera individual.

Uma vez que as emoções se constituem como elemento essencial para a apreensão do

mundo pelo corpo, é na constante relação com outros corpos que as emoções são construídas

culturalmente. Assim, a vivência de determinado fenômeno pelo indivíduo sofre influências

socioculturais. A partir da interpretação – racional e emocional, se é que é possível tal

distinção – coletiva, alguns fenômenos são categorizados como risco, integrando um sistema

de significações sociais, usado na busca por compreensão do mundo.

Na medida em que o risco é construído coletivamente, ele é uma potencialidade. Risco é

a projeção de ideias no futuro, é imaginar as consequências de uma ação ou evento.

Fenômenos são definidos como risco quando considerados como ameaçadores para um

indivíduo ou comunidade. De acordo com Lupton (1997, p. 78), ter conhecimento do risco de

determinada situação faz com que indivíduos tenham atitudes, com a finalidade de se proteger.

Assim, a categorização como “população de risco” pode significar uma oportunidade de

garantir maior controle sobre a situação, possibilitando uma ação, em face da desordem

provocada pela possibilidade de adoecimento. Uma vez que o risco sobre a saúde é

identificado, ele deve ser prevenido. A prevenção ocorre por meio do controle do tempo, na

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busca por disciplinar o futuro. Na medida em que o risco é apenas uma, entre tantas outras

possibilidades, de que as condições atuais se encaminhem para uma condição patológica, as

intervenções preventivas visam minar ao máximo tais possibilidades, a fim de garantir um

desenrolar sadio, ‘normal’.

É sob esta perspectiva que o luto antecipatório se configura como uma das ideias centrais

no atual processo do morrer influenciado pelo ideário paliativista. Enquanto na relação com o

paciente58

, os pontos chave da atenção podem ser resumidos no controle da dor total e na

manutenção da consciência, preservando ao máximo sua identidade e autonomia, a atenção aos

familiares incide, sobretudo, no âmbito emocional que configura o luto antecipatório. A morte

de alguém próximo pode ser uma experiência caótica, sendo potencialmente prejudicial para o

próprio enlutado e, consequentemente, para seu entorno. Apesar das tentativas de singularizar

o processo da morte, permanece a necessidade de manter este cenário ordenado e controlado.

A atenção ao luto antecipatório com o objetivo de garantir reações controladas e manejáveis é

do interesse do sujeito enlutado, que evita e regula sofrimentos excessivos e suas

consequências, e dos profissionais e instituições de saúde, que mantêm sua rotina sob controle.

Neste sentido, a consciência do risco, na sociedade ocidental contemporânea, assume uma

ótica da responsabilidade. A crença social é que, ao se perceber suscetível a uma situação de

risco à saúde, a conscientização seria suficiente para motivar uma modificação do

comportamento (LUPTON, 1997, p. 82). Assim, categorizar algum evento como risco é

chamar atenção para ele, e reconhecer sua importância para a subjetividade e bem-estar. Deste

modo, o fenômeno do luto se configura como risco, na medida em que é tido como ameaça à

subjetividade e ao bem-estar do indivíduo – e, possivelmente, da coletividade em que ele está

inserido.

Quando indivíduos decidem o que é risco e julgam seu “peso”, avaliam o significado

social do fenômeno e seus valores, baseando-se em sensibilidades. A compreensão e

categorização de risco, portanto, não são estáticos, não seguem necessariamente modelos

preditivos de comportamento. O que é risco para um indivíduo pode não ser para outro. Então,

como considerar manuais que classificam o que é risco no luto e suas respectivas

58 Segundo o ideário paliativista, o paciente também deve ser acompanhado no luto antecipatório da perda de sua

própria vida, a fim de garantir um processo de morrer calmo, pacífico, com seus desejos e vontades atendidos.

Contudo, nos manuais selecionados observou-se maior ênfase no controle fisiológico e sintomático ao ser

abordado o cuidado com o paciente. Considera-se que a dor e o sofrimento físico são as necessidades primárias e

urgentes do paciente, de modo que só é viável atender aos demais aspectos após controle destes sintomas.

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intervenções? Certamente, os manuais organizam o conhecimento teórico e prático acerca de

determinado tema, auxiliando o profissional a se posicionar. Contudo, tais manuais são

formulados a partir de quais ideias e ideais?

Ao abordar o problema do timing do morrer como a questão central, vinculada às causas

da morte indigna, em que o sujeito não deve morrer “fora do seu tempo” (nem jovem demais

nem velho demais), Kellehear (2016, p. 436) assume uma perspectiva social sobre o tempo.

Tal perspectiva significa afirmar que na cultura ocidental, mais importante do que os tempos

dos movimentos da Terra que “formam” os dias e os anos, o tempo é manipulado de acordo

com as convenções culturais e sociais. Neste sentido, o tempo não é uma ideia de duração

abstrata e neutra, mas uma medida das relações sociais, intrinsecamente ligada a profundos

juízos de valor, associados ao valor econômico e político dos indivíduos, grupos e culturas.

Para Kellehear (2016, p. 437), em acordo com Giddens, o tempo é definido como ingrediente

essencial da identidade e da organização social – é indispensável inclusive para a “ciência do

trabalho”, em que a quantificação da duração de tempo exigida para a realização de

determinada tarefa possibilita um cálculo do custo do produto e do trabalho. Deste modo, o

tempo é elemento fundamental do status que se atribui a determinado indivíduo, de acordo

com seu valor social. Kellehear (2016, p. 438) também se baseia na obra de Elias (1992) sobre

a natureza social do tempo. Para Elias (1992), nos contextos urbanos da sociedade ocidental

moderna, o tempo se relaciona intrinsecamente com os ciclos econômicos e com as

necessidades políticas da sociedade. Assim, o tempo social é organizado em função do

trabalho (em sentido mais amplo que o atual “emprego”), da produtividade.

É neste sentido que Han (2015, p.23) afirma que a sociedade ocidental do século XXI

não é mais definida como uma “sociedade disciplinar” foucaultiana, mas como uma

“sociedade do desempenho”. As técnicas de si não têm como principal objetivo o autocontrole

dos “sujeitos da obediência”. Neste contexto, os indivíduos são mais bem definidos como

‘sujeitos do desempenho e da produção’, são “empresários de si mesmo” (HAN, 2015, p. 23).

Na ‘sociedade do desempenho’, o inconsciente social deseja maximizar a produção e, para esta

finalidade, o paradigma da disciplina – de caráter negativo, pautado na coerção – é substituído

pelo paradigma do desempenho, pelo esquema positivo do poder. “A positividade do poder é

bem mais eficiente que a negatividade do dever” (HAN, 2015, p. 25). Contudo, não significa

que o poder cancele o dever, mas que o poder, por meio da técnica disciplinar, eleva o nível de

produtividade.

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Esta mudança de perspectiva impõe sobre o indivíduo maior responsabilidade – “os

mandatos e as proibições da sociedade disciplinar dão lugar à responsabilidade própria e à

iniciativa” (HAN, 2015, p. 27). A ênfase sobre o imperativo do dever é substituída pela ênfase

no imperativo do desempenho. O ‘sujeito do desempenho’ está livre da instância externa de

domínio, contudo, há maior peso sobre a instância interna – o indivíduo é senhor e soberano de

si mesmo. A supressão da disciplina não implica em maior liberdade, uma vez que esta se

encontra vinculada à coação. É uma liberdade paradoxal, em que o indivíduo se entrega “à

livre coerção de maximizar o desempenho” (HAN, 2015, p. 29). Neste contexto social, a

depressão é a expressão patológica do fracasso do ‘sujeito do desempenho’, frente ao excesso

de responsabilidade e iniciativa – a depressão é um cansaço de fazer e poder. Portanto, o

depressivo é agressor e vítima ao mesmo tempo.

Nesta atual configuração da sociedade ocidental, a noção de doença está associada à

impossibilidade de desempenho, ou ao menos ao seu comprometimento. É nesta perspectiva

que Kellehear (2016, p. 401) entende o estigma social vinculado ao envelhecimento e ao

indivíduo morredor. A ideia de ‘normal’ está associada à noção de produtividade, aplicada na

ampla vida social econômica – o constante desempenho de si abordado por Han (2015). Deste

modo, o indivíduo aposentado e o doente debilitado são rotulados negativamente, devido à sua

improdutividade.

O sofrimento do luto também tem um tempo determinado (inclusive com implicações

legais, como na licença trabalhista para o luto), em que é socialmente aceito que o sujeito

enlutado esteja provisoriamente improdutivo ou com produtividade parcialmente

comprometida. A extrapolação deste tempo de improdutividade dá margem à conceituação do

luto complicado que, portanto, deve ser tratado por profissionais de saúde e, até,

medicamentado com antidepressivos, em última instância, para viabilizar sua superação e o

restabelecimento do ‘sujeito do desempenho’. Por sua vez, a noção de superação do luto está

vinculada à ideia de retomada do autocontrole do indivíduo sobre seu desempenho. A ideia de

superação engloba os aspectos comportamentais, emocionais e cognitivos, de modo que

indivíduos que continuam falando e relembrando o falecido, para além de um tempo

considerado ‘normal’ podem ser considerados “inconvenientes”, quando não patológicos.

Neste sentido, considera-se que o luto foi superado quando o indivíduo alcança um reequilíbrio

de seu cotidiano, adaptando-se à nova situação – retomando a realização das tarefas diárias e

assumindo o posicionamento de “seguir em frente”.

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As recentes contribuições científicas da área questionam se o luto ‘adiado’ ou ‘inibido’

deve ser considerado um luto complicado, ou uma capacidade de resiliência do indivíduo.

Enquanto o luto ‘adiado’ começa a ser rotulado positivamente, o rótulo negativo do luto

crônico é cada vez mais legitimado pelos saberes ‘psi’ ao ser incluído no DSM-V como um

transtorno referente ao “luto persistente”. Assim como na depressão, o sofrimento é

patologizado, na medida em que o excesso de duração e/ou intensidade compromete a

produtividade ‘normal’ esperada do sujeito. Deste modo, diante da perda de uma pessoa

querida, o sofrimento inexorável devido ao luto é caracterizado como situação de risco para o

indivíduo enlutado. A partir desta análise crítica não se pretende questionar a legitimidade de

um sofrimento patologicamente significativo. Interessa aqui evidenciar que a patologização do

luto e a atenção preventiva despendida ao enlutado consistem em práticas culturais deste

contexto social, em que o indivíduo é responsável pela maximização de seu desempenho

produtivo.

A construção de saberes sobre o luto, a partir da delimitação de uma vivência esperada e

de outra passível de intervenção por ser considerada como ameaça à saúde e à vida, propicia a

criação de regras a serem interiorizadas. A construção desses saberes produz um novo grupo

de sintomas e, consequentemente, novas necessidades cultivadas. É neste sentido que

propostas são elaboradas para cuidar do luto preventivamente, para que ele não “evolua” para

uma experiência patológica, sendo necessário um controle, externo e/ou interno, sobre a

duração e intensidade das emoções e comportamentos – a ideia de um controle interno sobre o

próprio sofrimento implica uma responsabilização sobre o indivíduo exigindo um autocontrole

em função do seu desempenho. Na medida em que saberes, práticas institucionais e

profissionais são reconfigurados, com uma oferta de modelos para elaboração de perdas, com a

possibilidade de intervenção de “experts da conduta humana”, novas

sensibilidades/insensibilidades são produzidas socialmente.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cultura de uma sociedade se transforma com o tempo, seus valores e noções de pessoa-

indivíduo-coletivo se modificam, e se refletem nas práticas sociais de cada contexto. Na

sociedade ocidental contemporânea, marcada por valores individualistas, que prezam a

autonomia, o livre-arbítrio, a singularidade e a busca do prazer, a mera longevidade não é

suficiente, se ela for acompanhada pela perda de características identitárias – a busca é pela

otimização do tempo de vida, de acordo com estes valores. É este contexto que possibilita a

elaboração e a divulgação do ideário dos Cuidados Paliativos, que, mais do que uma

especialização, se apresenta como uma proposta de uma nova medicina.

Diante dos limites de uma medicina curativa, o foco das práticas médicas se desloca, do

combate da doença para o cuidado do doente. No modelo de morte “moderna”, o processo do

morrer é longo e vivido em etapas. As sucessivas perdas das funções vitais são compensadas

por um complexo maquinário, que possibilita uma manutenção artificial da vida. A partir do

momento em que as máquinas podem garantir a manutenção da alimentação, dos batimentos

cardíacos e da respiração, é a perda definitiva e irreversível das funções cerebrais que

determina a morte. Uma vez que a morte se torna alvo da ação e eficácia técnica da medicina,

o processo do morrer geralmente termina após longo período de hospitalização em que, antes

de perder suas funções vitais, o indivíduo já havia perdido seu poder de escolha.

Os Cuidados Paliativos surgem de movimentos que indicam uma insatisfação social,

com adesão de membros da classe médica, frente a esta forma de assistência rotinizada,

mecânica e asséptica, que promove um processo de desumanização e assujeitamento do doente

na instituição hospitalar. A ideologia paliativista propõe uma nova prática, ativa e integral, em

relação ao doente considerado como “fora de possibilidades terapêuticas de cura”. A fim de

propiciar uma “boa morte” com “qualidade de vida”, a assistência profissional é direcionada à

totalidade “bio-psico-social-espiritual” do enfermo, que assume papel ativo em seu processo

terapêutico. As intervenções profissionais são direcionadas aos desejos e vontades do paciente,

oferecendo conforto, mediante controle da dor e dos sintomas, possibilitando uma expressão

de seus sentimentos e desejos. Assim, neste modelo de morte “contemporânea”, é necessária

uma “comunicação franca” entre os sujeitos envolvidos no processo de morrer, para que o

enfermo possa efetuar suas escolhas terapêuticas com consciência. A assistência deve ser

oferecida por uma equipe multiprofissional, capaz de abranger o cuidado da totalidade do

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indivíduo e de seus familiares. No contexto contemporâneo, em que a vida do sujeito é

considerada única e singular, ela é sagrada, e o processo de morrer se torna “humanizado”,

para garantir “autonomia” e “dignidade”.

Este processo só é possível mediante uma aceitação social da morte pelos atores sociais

envolvidos na assistência. Deste modo, diante da notícia de uma morte iminente, os

profissionais de saúde consideram normal que o enfermo e seus familiares vivenciem algumas

fases de padrões de respostas emocionais, até alcançarem uma resposta adaptativa de

aceitação. O modelo pioneiro desta perspectiva, elaborado por Elizabeth Kübler-Ross,

descreve cinco etapas: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Na medida em que

os Cuidados Paliativos almejam produzir uma “boa morte”, mediante aceitação do processo do

morrer, a análise crítica considera que este cuidado representa uma expansão do território de

intervenção médica – para além do âmbito físico e biológico, aspectos psicológicos, sociais e

espirituais também são alvos de habilidades e saberes técnicos específicos. A intimidade passa

a pertencer à esfera de controle médico. A experiência do morrer é medicalizada em sentido

mais amplo, estabelecendo novas normas e controles externos e internos, em prol da garantia

de adequação das reações frente à morte.

O modelo de morte “contemporânea” é legitimado socialmente, como uma nova gestão

do processo de morrer, embora não se deixe de perceber uma coexistência de características do

modelo de morte “moderna”. Nesta nova relação com a morte, que busca reinseri-la na ordem

natural da vida, o luto se configura como objeto de saber científico. Este processo da

apropriação do luto pela ciência culmina na recente elaboração de um transtorno metal

relacionado ao luto no DSM-V, publicado em 2013, indicando que há uma possibilidade de

vivência patológica do evento. Diante da noção de que haveria uma vivência normal e outra

patológica, evidencia-se o luto como um fenômeno passível de controle mediante intervenções

científicas – função “assumida” pelos saberes ‘psi’.

É neste sentido que esta pesquisa objetivou uma apreensão da constituição do corpus

teórico dos saberes ‘psi’ acerca do luto na contemporaneidade, no qual se baseiam as

prescrições terapêuticas a ele referidas. A análise desta construção teórica e prática objetivou

evidenciar a formulação das prescrições presentes neste corpus teórico, identificando os

saberes necessários atribuídos aos profissionais, no manejo do luto e identificar as

características do luto que indicariam a demanda e indicação de acompanhamento ou

intervenção profissional.

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Uma vez que as construções científicas surgem em resposta às demandas sociais, as

teorias e práticas elaboradas refletem ideias e valores presentes em determinado contexto

sociocultural. Por sua vez, ao adentrar as práticas sociais, essas construções científicas acabam

por produzir sensibilidades e subjetividades na sociedade. A partir desta perspectiva, a

metodologia considerada mais adequada para a realização desta pesquisa foi a análise

documental. Por meio da análise do discurso contido nos manuais e livros-texto, elaborados a

partir do final do século XX e destinados aos profissionais de saúde, foi possível destacar

conceitos e prescrições orientadas a uma nova gestão do processo de luto característica da

cultura ocidental contemporânea.

A seleção dos documentos inicialmente centrou-se em manuais nacionais e

internacionais de Cuidados Paliativos, por entender que este ideário de uma nova prática

médica indica uma nova gestão do processo de morte e, portanto, do luto. Esta percepção foi

confirmada, com a constatação de que a origem de manuais específicos sobre luto é posterior à

existência dos manuais paliativos. Ademais, a análise dos manuais de luto confirmou que seu

conteúdo reforçava e ampliava as construções do ideário paliativista sobre o tema. Portanto,

constatou-se que o material selecionado, publicado a partir da década de 1990, evidencia um

novo saber e, consequentemente, uma nova demanda de atendimento especializado, mediante

um processo de interiorização de novos valores sociais. A apropriação deste fenômeno pelos

saberes ‘psi’ fornece um modelo de elaboração dos eventos traumáticos ou de perda ocorridas

na vida, e uma possibilidade de ação, pela nova classe de especialistas em luto, tanto com

propostas curativas de uma vivência patológica, como intervenções preventivas.

Para fins didáticos, o conteúdo foi dividido em duas partes: construções teóricas

(conceitos e modelos teóricos) e construções orientadoras das práticas profissionais (fatores de

risco, prescrições e tratamentos). Observou-se que, quando consta, o conceito de luto ‘normal’

é apresentado de forma ampla, como fenômeno biológico universal na espécie humana (e

também em outros animais), que é vivenciado de formas diferentes, conforme a cultura em que

se insere. Por outro lado, as noções de lutos considerados complicados, apesar das

divergências apresentadas pelos autores, são bem delimitadas e conceituadas. Esta constatação

confirma a ideia de que a construção dos saberes ‘psi’ emerge da reflexão do que é

considerado problemático, perigoso ou patológico para determinada sociedade. Neste sentido,

o luto complicado não deve ser considerado como desviante, uma vez que é a norma que surge

a partir do que é considerado complicado.

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Uma vez que a gestão do processo de morte preconiza uma aceitação deste evento, os

modelos teóricos sobre o luto são elaborados em torno da ideia de superação. Assim, o luto é

entendido como um período de desordem no funcionamento comportamental, cognitivo e

emocional do sujeito. Na medida em que a desordem prejudica o desempenho do indivíduo, a

superação do luto é definida pela ideia da restituição do equilíbrio, conforme sua condição

prévia ao evento da morte.

Deste modo, em geral, o luto é definido como complicado, na medida em que sua

duração e intensidade são consideradas atípicas. A falta ou breve demonstração de sofrimento

ou sua exacerbação são indicadores de que a elaboração daquele processo de luto será

comprometida. A mensuração da intensidade é uma tarefa subjetiva – com exceção de

comportamentos suicidas relacionados ao luto, é a percepção do indivíduo de um prejuízo

sobre seu funcionamento padrão que indica o “peso” de determinado sintoma. Quanto à

delimitação da duração, geralmente considera-se complicado o luto intenso por mais de um

ano, apesar da formulação do diagnóstico muitas vezes em período anterior. Constatou-se que

os manuais mais recentes tendem a não considerar o luto “ausente” ou “inibido” como uma

situação de risco ou patológica. Casos em que o indivíduo logo retoma seu funcionamento

‘normal’ são reinterpretados positivamente, como demonstração de resiliência – característica

valorizada na cultura de desempenho, da sociedade ocidental contemporânea.

O luto é um fenômeno comum à vida que, por causar sofrimento, interferindo no ideal

hedonista da cultura ocidental, deve-se garantir sua superação. As pesquisas sobre o tema são

destinadas à determinação de fatores que podem colocar em risco este objetivo final. Diversas

características são destacadas nos manuais como potenciais fatores de risco. Contudo, o

prognóstico permanece subjetivo, uma vez que a caracterização do risco é uma condição

multifacetada. As variáveis, em sua maioria, se referem à intimidade do indivíduo: fatores

relacionados à sua vida afetiva na infância, à sua personalidade, à sua relação com o falecido, e

ao contexto e processo da morte. A fim de prevenir uma complicação ou agravamento de um

luto considerado complicado, o enlutado deve compartilhar suas emoções com profissionais de

saúde, que devem oferecer uma escuta empática. Diferentes propostas de prevenção ou

tratamento são delineadas, conforme as linhas teóricas que as embasam e ao tipo de luto a que

se referem. De todo modo, a intimidade se configura como alvo de intervenções normativas

dos saberes ‘psi’.

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O luto se configura como um importante e complexo objeto a ser estudado na sociedade

ocidental contemporânea. O inevitável sofrimento causado pela morte de alguém próximo é

entendido como uma ameaça ao equilíbrio físico, psicológico, emocional e social do indivíduo.

Por um lado, as propostas terapêuticas profissionais e leigas, com os grupos de apoio,

promovem um compartilhamento do luto, propondo uma aceitação social do sofrimento. Por

outro lado, estas práticas, ao normatizarem o sofrimento, afirmando o imperativo da superação

(ou, ao menos, de otimização) não estaria reafirmando o estigma social da morte e do luto? Em

outras palavras, a proposta de aceitação social da morte, afinal, não poderia ser entendida

como uma espécie de renovação e refinamento da ideia de tabu da morte, na medida em que a

gestão da morte se torna visível, mas o sofrimento continua limitado e controlado?

A construção científica sobre o luto reflete em suas características, os principais valores

fundantes da sociedade ocidental contemporânea: a autonomia, a singularidade e a busca do

prazer. Assim, em uma cultura que tem o indivíduo como seu valor máximo e central, o luto é

vivenciado como uma experiência única e singular. Uma vez que o indivíduo se constitui a

partir de suas experiências, aproveitando-as em busca do constante aperfeiçoamento de si, o

luto é mais uma oportunidade de alcançar sua interioridade, sua verdade e perfectibilidade.

Desta forma, a ideia de superação do luto não concerne apenas à noção de prevenção ou

tratamento do luto complicado, o indivíduo deve fazer uso do sofrimento causado pela perda,

em função de seu crescimento pessoal.

A fim de garantir uma otimização da experiência do luto, é preciso conhecer a

intimidade do sujeito. São os saberes ‘psi’ que fornecem a linguagem dos aspectos modernos

característicos do sujeito, ao mesmo tempo em que os constroem. Assim, a experiência de luto

se configura como objeto destes saberes, que promovem a ideia de superação. Deste modo, a

delimitação e a preocupação em minar possíveis fatores de risco não objetivam somente evitar

prejuízos para o indivíduo e seu entorno, mas promover um processo de aprendizagem de si,

no processo de adaptação à nova realidade.

A psicologização e a psiquiatrização do luto configuram a normatização desta

experiência, em tese, singular. Na medida em que a intimidade deve ser objeto de escrutínio,

para garantir a otimização do sofrimento do luto, as noções promovidas por estes saberes

promovem um controle externo (por meio de intervenções ‘psi’) e interno (pelas técnicas de

si). O processo de subjetivação referente ao luto implica em uma adequação das normas

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direcionadas não só à manutenção do equilíbrio (do sujeito e do coletivo) pré-mórbido, como à

potencialização do constante desempenho do indivíduo, rumo à perfectibilidade.

O luto é um fenômeno multidimensional, presente nas relações intersubjetivas que, por

meio de seus poderes, conecta pesquisadores, profissionais de saúde, o doente, seus familiares

e círculo de sociabilidade. Assim, as raízes do luto contemporâneo não residem apenas no

“mundo interno” do indivíduo, as (in)sensibilidades relativas ao processo são negociadas em

sua rede social, composta por atores sociais e tecnologias. Deste modo, esta análise crítica

quanto à formulação da noção de um luto complicado, não tem como finalidade questionar a

existência de um exacerbado, e até patológico, sofrimento devido à morte. Questiona-se aqui a

apropriação do luto, pelos saberes científicos contemporâneos, na intenção de reduzir a

inconveniência do sofrimento, substituindo a desordem associada a este sentimento pela

ordem, previsibilidade e, até, felicidade.

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ANEXOS

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Anexo A. Curso sobre luto – Instituto Entrelaços

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Anexo B. Grupos de apoio sobre luto – Mães sem nome

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Anexo C. Depoimento sobre luto I – Site UOL

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Anexo D. Depoimento sobre luto II – Site ‘Vamos falar sobre luto?’