Reparação cirúrgica de laceração corneana em gato – Relato ... · terceira pálpebra. Desta...

10
JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85. 76 Reparação cirúrgica de laceração corneana em gato – Relato de caso Surgical correction of corneal laceration in a cat – A case report Leandro Arévalo Prieto 1 ; Marcello Rodrigues da Roza 2 ; Leonardo Alves Coutinho Souza 3 ; Geraldo Magela Vieira 4 ; Alessandra Castello da Costa 5 Resumo Este estudo objetivou relatar um caso de laceração corneana em gato sem raça definida. Ao exame clínico constatou-se ferida corneana perfurante, com uma lesão que se direcionava de 11 às 6 horas. A ferida apresentava material coagulado (humor aquoso) e a íris mostrava-se integra e não estava deslocada. Optou-se pelo fechamento da córnea com suturas perfurantes parciais e pontos simples separados. Depois da retirada dos pontos a córnea foi recoberta com flap de terceira pálpebra. Os procedimentos utilizados mostraram-se satisfatórios para tratamento de laceração corneana. Palavras-chave: gatos, córnea, emergência, olho Abstract This paper had the objective of describing a case of corneal laceration on a cat. During clinical examination a perforating corneal injury was noticed, with a pattern of clockwise trajectory from 11 to 6. Coagulated material was present in the injury (aquous humour) and the iris presented no lesions and was not dislocated. The elected treatment was corneal closure with partial perforating suture. When the sutures were removed, the cornea was covered with a third eyelid flap. The procedures that were used showed to be satisfactory for the treatment of corneal lacerations, with good recovery within a month. Key-words: cat, emergency, eye 1 Médico veterinário. Mestre em Clínica e Cirurgia Veterinária (UFU). Serviço de Oftalmologia Veterinária do Centro Veterinário do Gama (CVG). 2 Médico Veterinário. Doutorando em Ciência Animal (UFG). Email: [email protected] 3 Médico Veterinário. Pós-Graduado em Clínica Cirúrgica de Pequenos Animais. 4 Médico Oftalmologista. Doutorando em Ciências da Saúde (UNB). Professor Chefe de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da UNIPLAC. Diretor Clínico-Cirúrgico da Brasília Glaucoma Center. 5 Médica veterinária. Mestranda em Ciência Animal da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Bolsista do CNPq.

Transcript of Reparação cirúrgica de laceração corneana em gato – Relato ... · terceira pálpebra. Desta...

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

76

Reparação cirúrgica de laceração corneana em gato – Relato de caso

Surgical correction of corneal laceration in a cat – A case report

Leandro Arévalo Prieto1; Marcello Rodrigues da Roza2; Leonardo

Alves Coutinho Souza3; Geraldo Magela Vieira4; Alessandra Castello

da Costa5

Resumo

Este estudo objetivou relatar um caso de laceração corneana em gato sem

raça definida. Ao exame clínico constatou-se ferida corneana perfurante,

com uma lesão que se direcionava de 11 às 6 horas. A ferida apresentava

material coagulado (humor aquoso) e a íris mostrava-se integra e não

estava deslocada. Optou-se pelo fechamento da córnea com suturas

perfurantes parciais e pontos simples separados. Depois da retirada dos

pontos a córnea foi recoberta com flap de terceira pálpebra. Os

procedimentos utilizados mostraram-se satisfatórios para tratamento de

laceração corneana.

Palavras-chave: gatos, córnea, emergência, olho

Abstract

This paper had the objective of describing a case of corneal laceration on a

cat. During clinical examination a perforating corneal injury was noticed,

with a pattern of clockwise trajectory from 11 to 6. Coagulated material was

present in the injury (aquous humour) and the iris presented no lesions and

was not dislocated. The elected treatment was corneal closure with partial

perforating suture. When the sutures were removed, the cornea was

covered with a third eyelid flap. The procedures that were used showed to

be satisfactory for the treatment of corneal lacerations, with good recovery

within a month.

Key-words: cat, emergency, eye

1 Médico veterinário. Mestre em Clínica e Cirurgia Veterinária (UFU). Serviço de Oftalmologia Veterinária do Centro Veterinário do Gama (CVG). 2 Médico Veterinário. Doutorando em Ciência Animal (UFG). Email: [email protected] 3 Médico Veterinário. Pós-Graduado em Clínica Cirúrgica de Pequenos Animais. 4 Médico Oftalmologista. Doutorando em Ciências da Saúde (UNB). Professor Chefe de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da UNIPLAC. Diretor Clínico-Cirúrgico da Brasília Glaucoma Center. 5 Médica veterinária. Mestranda em Ciência Animal da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Bolsista do CNPq.

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

77

Resumen

El objetivo de este estudio fue describir un caso de laceración corneana en

un gato sin raça definida. En el examen clinico se constató una herida

corneana perforada, con una lesión que se dirigía desde las 11 a las 6

horas. La herida presentaba material coagulado (humor acuoso) y el iris se

mostraba íntegro y no estaba dislocado. La córnea se cerró con suturas

perforantes parciales y puntos simples separados. Después de la retirada

de los puntos, la córnea fue recubierta con un flap del tercer párpado. Los

procedimientos utilizados mostraron ser satisfactorios para el tratamiento

de las laceraciones corneanas.

Palabras-clave: gatos, córnea, emergencia, ojo

Introdução

A córnea tem cerca de 0,6 a

0,8 mm de espessura. É recoberta

pelo filme lacrimal e forma uma

janela através da qual a luz

penetra o globo ocular1. Consiste

de quatro camadas: epitélio,

estroma, membrana de Descemet

(membrana limitante posterior da

córnea) e endotélio2. O filme

lacrimal pode ser considerado

como parte integrante da córnea –

que passaria então a ser composta

por cinco camadas3 – e

caracteriza-se por ser constituído

de uma camada lipídica, uma

aquosa e uma de mucina4. Sua

transparência baseia-se na

ausência de vasos, células

sangüíneas e pigmentos, controle

do conteúdo aquoso, superfície

óptica lisa e disposição regular e

altamente organizada das fibras

colágenas5.

A córnea pode sofrer

traumatismos de intensidades

variadas ocasionando lacerações

e/ou perfurações6. Nas lacerações

corneanas o paciente tem

blefaroespasmo grave, produção

de lágrimas aumentada, edema de

córnea e, possivelmente, prolapso

de material coagulado, mesmo íris,

no ferimento1.

Em algumas situações de

lesões corneais o tratamento

clinico não é suficiente, havendo a

necessidade de condutas

cirúrgicas reconstrutivas, como

tarsorrafias7, recobrimento com a

terceira pálpebra8 ou com a

conjuntiva autógena9, enxertos

pediculados de conjuntiva11,

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

78

transplante de córnea12,

transposições corneoconjuntivais8

e corneoesclerais10. A literatura

também descreve o uso de enxerto

autógeno livre de córnea e da

conjuntiva fixado com

cianoacrilato13, adesivo biológico

de fibrina14, adesivo sintético como

cianoacrilato15 e biofill16.

Membranas biológicas preservadas

também têm sido empregadas em

oftalmologia veterinária, tais como

o pericárdio xenólogo, peritônio

homólogo, membrana amniótica

xenóloga, cápsula renal xenóloga,

cápsulas esplênicas xenólogas17 e

escama de sardinha18.

Material e métodos

O presente relato visa

descrever o atendimento clínico a

um felino, cor branca, dois anos,

sem raça definida, no Centro

Veterinário do Gama, em Brasília-

DF. Apresentava histórico de ter

retornado para casa com o olho

esquerdo fechado, lacrimejando

excessivamente e com muita dor.

Ao exame clínico, foi usado

colírio anestésico de cloridrato de

proximetacaína 0,5% para maior

conforto do animal e constatou-se

ferida corneana perfurante, que se

direcionava de 11 às 6 horas. A

lesão apresentava material

coagulado (humor aquoso), a íris

mostrava-se integra e não estava

deslocada.

O animal foi removido

imediatamente para o centro

cirúrgico (Figura 1) e submetido à

medicação pré-anestésica com

morf ina (0,5 mg.kg-1) e midazolam (0,3

mg.kg-1). Após 15 minutos foi feita a

indução anestésica com propofol (5

mg.kg-1) e, em seguida, a anestesia

inalatória com isofluorano.

Em seguida, as pálpebras

foram fixadas com blefaroestato e

o globo ocular imobilizado com

pontos de sutura auxiliar

escleroconjuntivais, utilizando-se

fio nailon monofilamentar 3-0.

Optou-se pelo fechamento da

ferida corneana com suturas

perfurantes parciais, pontos

simples separados com fio nailon

monofilamentar 7-0 e uma

distância de aproximadamente 1

mm entre eles. Concluída a sutura,

a câmara anterior foi reconstituída

com aproximadamente 0,2 ml de

solução de NaCl 0,9% e uma

pequena bolha de ar, aplicados

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

79

com uma seringa de 1 ml acoplada

a uma agulha 0,30 x 13.

O pós-operatório foi

realizado com enrof loxacina

oral (5 mg.kg-1) a cada 12 horas,

dexametasona injetável (0,1 mg. Kg-1) a

cada 24 horas, colírio de

gatifloxacina a cada 6 horas, colírio

de atropina a cada 12 horas e

colírio de sulfato de condroitina a

cada 8 horas. Foram marcados

retornos diários e no 110 dia

percebeu-se deiscência de alguns

pontos (Figuras 2 e 3). Optou-se,

então, pela retirada dos pontos

restantes e o recobrimento com a

terceira pálpebra. Desta vez, o

pós-operatório limitou-se à

aplicação de colírio de gatifloxacina

a cada 6 horas e pomada de

aminoácidos e cloranfenicol a cada

8 horas e, por via oral,

enrofloxacina (5 mg.kg-1).

Após 10 dias, o flap de

terceira pálpebra foi retirado,

constatando-se o epitélio corneano

completamente integro (Figuras 4 e

5). Um colírio de tobramicina com

dexametasona foi aplicado pelo

proprietário a cada 8 horas durante

14 dias, sendo o acompanhamento

clínico realizado a cada dois dias.

Percebeu-se uma leve redução no

tecido cicatricial e, posteriormente,

a estabilidade da lesão,

possibilitando a alta do paciente

(Figuras 6 e 7).

Resultados e discussão

Diante de uma perfuração

corneana, o humor aquoso escapa

através da abertura, mas coagula

dentro de um curto prazo de tempo

para, em seguida, fechar a

abertura. Se o defeito for maior, um

pedaço de íris geralmente se aloja

na lesão e a fecha5.

O material de sutura

apropriado para lacerações

corneanas incluem poliglactina 910

7-0 a 9-01, sendo que alguns

autores também recomendam

náilon 8-0 a 10-04,5. O náilon é

mais fácil de manejar e menos

ativo na córnea inicialmente mas,

na maioria dos casos, ele

necessita ser removido após 4 a 6

semanas1. No caso descrito, o fio

foi retirado antes deste período

devido à deiscência dos pontos. Já

a escolha das suturas depende da

preferência do cirurgião. A

literatura descreve, com bons

resultados, a utilização de

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

80

utilizaram pontos simples

separados não perfurantes

totais17,18, a mesma técnica

empregada neste animal.

A regeneração corneana

será ótima somente se alimentação

com nutrientes completos for

providenciada. A sutura de córnea

e o recobrimento de terceira

pálpebra são altamente

recomendados por vários autores

para tratamentos de lacerações

corneanas.

Conclusão

As técnicas empregadas na

correção da laceração corneana

deste caso clínico mostrou-se

muito eficaz, obtendo ótimos

resultados.

Figura 1: Gato introduzido imediatamente no centro cirúrgico, para a primeira cirurgia, após a indução anestésica

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

81

Figura 2: Gato. Deiscência de pontos, após a primeira cirurgia, vista frontal

Figura 3: Gato. Deiscência de pontos, após a primeira cirurgia, vista lateral.

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

82

Figura 4: Gato. Epitélio corneano íntegro após retirada do flap de terceira pálpebra

Figura 5: Gato. Epitélio corneano íntegro (teste com fluoresceína).

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

83

Figura 6: Gato. Resultado final, comparação com o olho contralateral.

Figura 7: Gato. Resultado final, alta do paciente.

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

84

Referências bibliográficas

1. STADES, F.C.; BOEVÉ, M.H.; NEUMANN W; WYMAN, M. Emergências Oculares.

In: STADES, F.C. Fundamentos de Oftalmologia Veterinária. São Paulo: Manole,

1999. p. 31-43.

2. GELLATT, K.N. Doenças e Cirurgia da Córnea e Esclera do Cão. In: Manual de

Oftalmologia Veterinária. Barueri: Manole2003. p.125-164.

3. SCHOENAU, L.S.F.; PIPPI, N.L. Aspectos morfológicos e funcionais da córnea: uma

breve revisão. A Hora Veterinária. v. 12, p. 49-53, 1993. 4. KASWAN R.L.; BOUNOUS, D.; HIRSH, S.G. Diagnóstico e tratamento da

ceratoconjuntivite seca. A Hora Veterinária. v. 97, p. 76-85, 1997.

5. SLATTER D. Córnea e Esclera. In: Fundamentos de Oftalmologia Veterinária. São

Paulo: Roca, p.283–338, 2005.

6. STARTUP, F. G. Corneal ulceration in the dog. Journal of Small Animal Practice,

v. 25, p. 737-752, 1984.

7. NASISSE, M. P. Canine ulcerative keratites. Compendium on continuing

Education for the Practicing Veterinarian, v. 7, n. 9, p. 686-701, 1985.

8. KERN, T. J. Ulcerative keratitis. Veterinary Clinics of North American Small

Animal Practice, v. 20, n. 3, p. 645-666, 1990.

9. MORALES, A. et al. Comparação entre enxertos autólogos livres e pediculados da

conjuntiva no reparo de ceratectomia superficiais. Estudo experimental em cães

(Canis familiares, LINNAEUS, 1758). Brazilian Journal of veterinary Research and

Animal Science, v. 33, n. 1, p. 28-31,1996.

10. SLATTER, D. Cornea and sclera. In: Fundamentals of veterinary ophthalmology.

2.ed. Philadelphia: W.B. Saunders, 1990. p.257-303.

11. HAKANSON, N.E.; MERIDENTH, R.E. Conjuntival pedicle grafting in the treatment of

ulcers in dog and cat. Journal of American Animal Hospital Association, v. 23, n.

6, p. 641-648, 1989.

12. JASEN, E.C. Experimental corneal transplatation in the dog. Journal of the

American Veterinary Medical Association, v. 42, p. 11-12, 1963.

13. BRAGA, F.V.A. et al. Ceratoplastia com enxerto autógeno lamelar livre de córnea e

pediculado de conjuntiva fi xados com adesivo de cianoacrilato em cães. Ciência

Rural, v.34, n. 4, p. 1119-1126, 2004.

14. SAMPAIO, R.L.; RANZANI, J.J.T. Estudo comparativo entre o adesivo biológico de

fibrina e o adesivo sintético n-butil-cianoacrilto na ceratectomia lamelar experimental

em cães. In: Congresso Brasileiro de Cirurgia e Anestesiologia Veterinaria, 4.,

Goiânia, 2000. Goiânia: CBAV, 2000. p. 256.

15. MOTA, F.C.D. et al. Use of the n-butyl cyanoacrylate adhesive and the polyglactine

tread suture for corneal rhaplhy rabbit (Oryctolgus cunicullus). Journal Veterinary

Science, v. 5, n. 3, p. 267-270, 2004.

JBCA – Jornal Brasileiro de Ciência Animal 2008 v.1, n.2 , p. 76-85.

85

16. PIPPI, N.L.; SAMPAIO, A.J.S.A. Estudos preliminares sobre o comportamento do

Biofill na ceratoplastia lamelar em coelhos. Revista Centro Ciências Rurais, v. 20,

n. 3-4, p. 297-302, 1990.

17. EURIDES, D.; DALECK, C.R.; SILVA, M.; SILVA, L.A.F.; GONÇALVES, G.F.;

PRIETO, L.A.; BORREZZI, C. Utilização da cápsula esplênica de bovino na

ceratoplastia lamelar em coelhos. Arq. Ciênc. Vet. Zool. Unipar, v.9, n. 2, p. 117-

121, 2006.

18. LAUS, J.L.; FERREIRA, A.L.; ANDRADE, A.L. Emprego de escama de sardinha

(Sardinella brasiliensis - STEIDACHNER, 1859), conservada em glicerina, em

ceratoplastias lamelares experimentais em cães. Brazilian Journal Veterinary

Research and Animal Science, v. 37, n.1. 2000.

Recebido em: Novembro de 2008 Aceito em: Dezembro de 2008 Publicado em: Julho - Dezembro de 2008