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    Rogrio S. Pereira, Maurcio Roberto da Silva eGiovani de Lorenzi Pires

    Licere, Belo Horizonte, v.12, n.2, jun./2009

    Representaes de Corpo e Movimento no Ciberespao

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    REPRESENTAES DE CORPO E MOVIMENTO NO CIBERESPAO:NOTAS DE UM ESTUDO ETNOGRFICO NO JOGO SECOND LIFE

    Recebido em: 22/01/2009Aceito em: 26/05/2009

    Rogrio Santos Pereira1

    FAF Manhuau MG Brasil

    Maurcio Roberto da Silva2

    Giovani de Lorenzi Pires3

    CDS UFSC SC Brasil

    RESUMO: Este artigo, recorte da dissertao defendida sob o ttulo Avatares noSecond Life: corpo e movimento na constituio da noo de pessoa on-line, pretenderevelar de que forma corpo e movimento so problematizados no ciberespao,especialmente no jogo Second Life. Partindo de um percurso etnogrfico, percebeu-seque os conceitos de imaginao e imaginrio so essenciais para compreender como osparticipantes tecem em suas brincadeiras narrativas, caminhos para construir nociberespao uma corporalidade central na constituio da noo de pessoa on-line. Otrabalho tambm discorre sobre as possveis aproximaes das tecnologias digitais, emespecial, dos jogos eletrnicos, com a Educao Fsica.

    PALAVRAS-CHAVE: Corpo. Movimento. Avatar. Tecnologia. Educao fsica.

    BODY AND MOVEMENT REPRESENTATIONS IN CYBERSPACE: NOTESOF AN ETHNOGRAPHIC STUDY IN THE GAME SECOND LIFE

    ABSTRACT: This paper, a cut of the dissertation defended under the title Second LifeAvatars: body and movement in the constitution of the idea of person in on-lineenvironments, seeks to reveal in what ways form and body movement areproblematised in cyberspace, especially in the game Second Life. Based on the

    1 Mestre em Educao Fsica pela Universidade Federal de Santa Catarina, integrante do Grupo deEstudos Observatrio da Mdia Esportiva/LaboMdia - CDS/UFSC, professor da Faculdade do Futuro -Manhuau/MG.2 Ps-doutor em Estudos da Infncia pela Universidade do Minho, Braga-Portugal, professor doDEF/CDS/UFSC. Orientador da dissertao3 Doutor em Educao Fsica pela Universidade Estadual de Campinas, professor do DEF/CDS/UFSC ePPGEF/UFSC, coordenador do LaboMdia/CDS/UFSC e do Grupo de Estudos Observatrio da MdiaEsportiva/UFSC. Co-orientador da dissertao.

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    ethnographic perspective, there has been realized that the concepts of imagination andimaginary are essential to understand how participants make in their play narratives,ways to build in cyberspace a central corporality in the constitution of the concept ofon-line person. The work also discusses the possible approaches of digital technologies,in particular, the electronic games, with Physical Education.

    KEYWORDS: Body. Movement. Avatar. Technology. Physical education.

    Educao Fsica, tecnologias digitais e jogos eletrnicos

    Que relao o virtual pode ter com a Educao Fsica (EF) e o os Estudos do

    Lazer? Este artigo, recorte da dissertao de mestrado intitulada Avatares no Second

    Life: corpo e movimento na constituio da noo de pessoa on-line (PEREIRA,

    2009), defendida no Programa de Ps-Graduao em Educao Fsica da Universidade

    Federal de Santa Catarina, no busca delimitar tal relao, mas sim desestabiliz-la,

    fazer dela um problema que atrai uma busca. Afinal, ao desconsiderar as experincias

    agrupadas sob a efgie do virtual como pertinentes EF, e, em especial, aos Estudos

    do Lazer, para o mundo vivido das pessoas que se est a dar as costas.

    A dissertao dividida em trs partes: a primeira, intitulada Aproximaes

    entre a Educao Fsica e as tecnologias digitais, tece consideraes para delimitar e

    justificar um campo de estudo e interveno da EF que est relacionado ao uso das

    tecnologias digitais, em especial dos jogos eletrnicos, apresentando, como objeto e

    campo da pesquisa, o jogo em rede para computador Second Life (SL); a segunda parte,

    intitulada Problematizaes acerca da presena do virtual na vida social

    contempornea, discorre, permeada por inmeros exemplos retirados do cotidiano,

    sobre a escorregadia oposio entre o real e o virtual, construindo perspectivas de

    entendimento e anlise desses conceitos; j a terceira parte, intitulada Corpo e

    movimento na constituio da pessoa on-line, descreve um estudo etnogrfico

    realizado no Second Life que buscou revelar de que forma corpo e movimento,

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    consolidados objetos de interveno pedaggica da Educao Fsica, so representados

    e problematizados no ciberespao a partir do avatar.

    Respeitando os limites destinados a este texto, esboarei aqui consideraes que

    apresentam brevemente parte das reflexes e resultados alcanados com este estudo,

    instigando um dilogo que visa pensar a presena das tecnologias digitais nos

    momentos de lazer a partir de uma anlise focada no corpo e no movimento

    representados digitalmente no Second Life.

    * * *

    Atualmente, parte da Educao Fsica tem voltado seu olhar para os jogos

    eletrnicos inspirada pelo fato destes comearem a incorporar o movimento em si, ou

    o movimento propriamente dito, para interagir com as imagens digitais da tela4. Digo

    movimento propriamente dito para enfatizar que, nesses jogos, para interagir com as

    imagens da tela, predomina a realizao do movimento em sua totalidade, a partir do

    corpo. At ento, o apertar de um boto no joystick (controle do videogame) parecia

    algo distante da reao que esta ao motora, limitada a um dedo, desencadeava na tela,

    que poderia ser, por exemplo, o rebater na bola com uma raquete de tnis. Hoje, em

    alguns jogos eletrnicos, dentre os quais o Nintendo Wii o mais conhecido, para se

    rebater uma bola em um jogo de tnis, ao invs de apertar um boto, o jogador deve,

    com o controle em punho, realizar o movimento corporal de rebater com o brao,

    desempenhar o movimento em si, mesmo que este seja uma caricatura simplificada domovimento tcnico do esporte que representado na tela. Assim, a interface do Wii

    4 Essa afirmao parte da observao dos temas abordados por profissionais e pesquisadores da EF emlistas de discusso via e-mail.

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    estabelece relaes direta, bvia, entre o movimento e a imagem digital. A ao do

    corpo transferida para a tela.

    A EF, principalmente seu vis pautado nas cincias biomdicas, deixou de estar

    de costas para os jogos eletrnicos quando estes construram uma relao de obviedade

    com o movimento. O fato de o Nintendo Wii ter como diferencial (de sucesso) um

    sensor no seujoystickque capta os movimentos do corpo causou alarde nos veculos de

    comunicao e, enfim, despertou a Educao Fsica com notcias que, se em alguns

    momentos exaltavam o fim da passividade dos videogames (no ser passivo no

    contexto da atividade fsica e sade ser ativo fisicamente), em outros demonstravam

    preocupao com o nmero de leses decorrente da diverso ativa nesse tipo de jogo.

    Foi preciso que os sujeitos jogassem em movimento nos ditames da

    conceituao biomecnica de movimento para que parte da EF voltasse o olhar,

    mesmo que timidamente, de revs, para os jogos eletrnicos5. E ainda assim, reforo,

    sem superar o ponto de vista que considera apenas a relao bvia do corpo que se

    movimenta aqui, de fora da tela, reproduzido interativamente ali, dentro dos

    cenrios dinmicos dos jogos.

    As diferentes maneiras por meio das quais os aparelhos eletrnicos oferecem

    estmulos ao ser humano reforam a perspectiva fenomenolgica de que o corpo permite

    que haja conexes entre os campos da sensitividade. Merleau-Ponty6 (apudCARMO,

    2000, p. 43) ressalta que por intermdio dos olhos, v-se a rigidez e fragilidade do

    vidro e tambm se v o peso de um bloco de ferro fundido, sente-se a fluidez da

    5 Alguns trabalhos no mbito da Educao Fsica merecem meno por buscar construir um referencialcrtico para anlise e uso pedaggico dos jogos eletrnicos. Destaco os trabalhos de Alan Queiroz daCosta e Mauro Betti (2006), Alfredo Feres Neto (2001, 2007) e Dirceu Ribeiro Nogueira da Gama (2005).Em comum, esses autores, ao estudar objetos de estudo pouco usuais Educao Fsica, trazemcontribuies para pensar epistemologicamente a rea.6 MERLEAU-PONTY, M. Penomenologie de la perception. Paris: Gallimard, 1953.

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    gua e a viscosidade do xarope. Na interconexo dos sentidos, ver pode ser tocar

    distncia. O advento digital refora a relao entre a ordem da viso e da ao, novas

    experincias sensitivas se estabelecem no corpo. O espao que olhamos (a tela) o

    mesmo em que acontece a ao.

    Ora, o que quero evidenciar que a relao entre corpo, movimento e jogos

    eletrnicos complexa e pouco explorada. Ela envolve a percepo, a imaginao, a

    convergncia de linguagens, a construo de narrativas, o compartilhamento de

    universos de significados. Mas este um caminho sinuoso. Ao cruzar corpo e

    movimento com a dimenso usualmente denominada de virtual, parece que um

    agrupamento de coisas que pertencem a mundos distintos tecido. A comear pela

    conceituao do que o virtual, termo to repetido em tempos de proliferao das

    tecnologias digitais, cujo significado, polissmico, transita, sem acordo, por diferentes

    perspectivas oriundas do senso-comum, da filosofia, das cincias sociais e humanas.7

    Meu interesse, porm, em compreender a relao entre corpo, movimento e

    jogos eletrnicos precede e se diferencia da possibilidade de jogar utilizando o

    movimento propriamente dito do corpo ao que uma gerao recente de

    equipamentos digitais permite. Minha suposio de que, no contexto dos jogos

    eletrnicos, o movimento central na relao com o mundo, mesmo quando no est

    corporalmente manifesto. A relao dos participantes de diversos jogos eletrnicos com

    os personagens se d pelo controle de corpos representados na tela. Uma representao

    distinta da pintura ou da escultura, visto que a imagem digital do corpo posta,interativamente, em movimento. Mas, no desenrolar do jogo, se comparado ao

    corporal movimento necessria para chutar uma bola, percorrer a p extensas ruas

    7 Em funo da densidade da discusso que envolve o virtual, no aprofundarei, neste texto, a respeitodo uso deste conceito. Tal discusso pode ser encontrada na segunda parte da minha dissertao.

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    ou pilotar um carro, o apertar de botes para interagir com o mundo digital torna-se por

    demasiado sutil do ponto de vista biomecnico. O mesmo no pode ser dito quando se

    leva em considerao a percepo, a intuio, a emoo e a imaginao associadas ao

    movimento representado nos jogos eletrnicos.

    No podemos ignorar as experincias que os indivduos vivenciam a partir dos

    jogos eletrnicos. Nossa ateno para esse tipo de jogo no deve se limitar apenas s

    relaes mecnicas que, sendo evidentes, no ultrapassam um bvio visvel, facilmente

    mapevel, mas que no aprofundado. O mistrio no est no movimento

    propriamente dito utilizado para interagir com as telas digitais. Se pensarmos apenas

    na simulao do movimento biomecnico, as esteiras, bicicletas ergomtricas e outros

    aparelhos que simulam aes motoras do corpo esto h dcadas assentados nos

    laboratrios, centros de treinamento esportivo e academias de ginstica. No universo

    dos jogos eletrnicos, nos interessa compreender os sentidos que os participantes

    atribuem s aes que entrecruzam o corpo movimento e percepo e suas

    representaes grficas digitais.

    Avatares no Second Life: representaes de corpo em movimento

    As representaes de corpo e de movimento, envoltas em promessas de vida

    plena e feliz ou alardes desrealizantes, so centrais no jogo para computador Second

    Life. A insero no jogo depende da construo do avatar, um corpo digital que pode

    ser moldado para representar o participante nos ambientes do jogo e, como ser visto

    posteriormente, tambm em outros meandros do ciberespao. No contexto do SL, os

    avatares so o primeiro trao identitrio dos participantes e tambm condio para o

    estar-no-mundo do jogo. Os indivduos se apresentam e interagem em cenrios

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    digitais a partir de representaes digitais, sociotcnicas, de corpo e movimento, postas

    como condio para dialogar com o ciberespao e com os demais participantes.

    Para interpretar o avatar, representao corporal assumida no ciberespao, sigo

    os apontamentos de Guimares Jr (2004). O autor resgata a ideia de embodiment, ou

    corporificao, numa perspectiva fenomenolgica que considera o corpo como condio

    necessria para o estar-no-mundo e, em consequncia, para a cultura. No SL, o corpo

    e movimento so representados, e a partir dessas representaes so construdas

    narrativas. Estabelecem-se dilogos, trocas, conflitos. E nessa dinmica que se vale de

    interaes textuais, orais e visuais, a imaginao/imaginrio exerce um papel de

    destaque. Caminho com Mauro Betti (2003), quando este diz que precisamos de uma

    Educao Fsica que considere a cultura corporal de maneira ampla, que leve em conta a

    multidimensionalidade do ser humano, bem como as suas representaes veiculadas

    pelas diferentes mdias. Assim, tenho como objetivo compreender como constituda a

    noo de pessoa on-line (GUIMARES Jr., 2000; MXIMO, 2006; SEGATA, 2007)

    no contexto da produtividade social do Second Life, um jogo onde imagens digitais de

    corpos avatares no so apenas veiculadas, mas, interativamente, se movimentam

    (so movimentadas) e parecem ser condio para uma relao dialgica com o mundo

    em rede, com o ciberespao.

    Busco, assim, revelar de que forma corpo e movimento, consolidados objetos de

    interveno pedaggica da Educao Fsica, so problematizados no ciberespao, em

    especial no jogo SL, um ambiente onde a sociabilidade parece acontecerin-lusio

    . Nointerior das estratgias comunicativas traadas pelos participantes do SL, evidenciam-se

    concepes de corpo, de movimento, de sociedade. No est se falando de uma

    anulao do corpo, de um adeus ao biolgico, material, corpreo. Assume-se aqui o

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    corpo como uma construo simblica, e o ciberespao como um esfera da vida social

    contempornea onde corpo e movimento so problematizados pelos participantes que se

    apresentam como avatares.

    O conceito de pessoa, como observado por Geertz8 (apudSEEGER et al., 1979),

    uma via real para a compreenso antropolgica. Segundo o autor, num certo sentido,

    fazer antropologia analisar as formas simblicas palavras, imagens, instituies,

    comportamentos em termos dos quais os homens se representam, para si mesmos e

    para os outros (SEEGER, 1979, p.4). No tocante do ciberespao, Guimares Jr. (2004)

    analisa as formas pelas quais as noes de corpo e pessoa simultaneamente contribuem

    para a elaborao do uso, pesquisa e desenvolvimento de avatares. Seus apontamentos

    so relevantes para pensar as contribuies das performances e representaes culturais

    dentro do SL para a constituio da noo de pessoa on-line, evidenciando que os

    avatares no so delimitados apenas por uma representao grfica:

    Avatares assim como qualquer outro artefato so elaborados a

    partir de determinadas concepes sobre seu possvel uso. Essasconcepes so intimamente relacionadas com representaesculturais sobre o que um corpo, que tipo de aes ele deve ser capazde exercer, espao corporal, noes de identidade, entre outras. Noscontextos de desenvolvimento e design estas concepes sobrecorporalidade e sobre os usos que a tecnologia vir a ter exercem umimportante papel na forma pela qual avatares e tecnologias correlatasso concebidos e realizados. As culturas locais no ciberespao, porsua vez, elaboram em sua dinmica social uma srie de idias sobre opapel e funes de um corpo virtual. (GUIMARES Jr., 2004, p.135-136).

    A representao grfica, por si s, no delimita a noo de pessoa on-line. No

    entanto, o avatar se configura, semelhana do corpo para os indgenas, como uma

    matriz simblica que ocupa uma posio organizadora central da produtividade social

    8 GEERTZ, C. A interpretao das culturas. So Paulo: Zahar, 1978.

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    do SL. Mas o exerccio, ou melhor, a brincadeira de construir-se corporalmente no

    ciberespao, pode ser um momento privilegiado para refletir e questionar a viso

    dualstica cartesiana que entende o corpo como entidade que contm somente aquilo que

    abrangido pelo invlucro externo, a pele humana.

    Ao construir o avatar, os participantes do SL elaboram uma representao

    visual de suas personas no sentido mesmo da noo de pessoa apontado por Goffman

    (MXIMO, 2006, p. 32). A premissa de Goffman (1995) parte de uma anlise

    interacionista e dramatrgica para compreender como que os indivduos representam

    papis no seu processo de interao social. Ser um avatar constituir-se diante do

    espelho dos outros avatares que nos olham (no qual tentamos nos encontrar). Nessa

    interao tambm somos espelhos, tanto para os outros quanto para ns mesmos.

    Quando olhamos para a tela, enxergamos as cenas como uma terceira pessoa. Essa

    perspectiva da viso permite que, alm dos outros avatares, tambm nos vejamos na

    tela.

    Os avatares possuem a especificidade de delegar nfase tambm s

    manifestaes no-verbais da comunicao: trata-se de uma representao grfica do

    corpo que se movimenta e que se expressa gestualmente no ciberespao. As escolhas

    no so apenas por cores, formas, falas. A cor da blusa, o corte de cabelo, a frase

    carinhosa fazem parte da construo do avatar e, consequentemente, da apresentao da

    pessoa on-line, tanto quanto o fazem as maneiras de circular pelos espaos do jogo, a

    proximidade entre avatares no momento do dilogo, a gestualidade representada na tela.Goffman se atm atenciosamente forma como o corpo em movimento rico em

    aspectos no governveis do comportamento expressivo do indivduo participa da

    comunicao e instaura nesta uma ambiguidade: no possvel pessoa, em situaes

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    interativas, ter controle sobre as expresses do seu corpo com a mesma eficincia que

    domina sua fala ou escrita.

    Seria um devaneio no considerar que o corpo biolgico e o corpo do avatar

    so materialmente distintos e possuem cada um suas especificidades. Essa distino, no

    entanto, no elimina a suposio de que eles compartilham, em determinados contextos,

    de um mesmo universo de significados. O corpo simblico. Construdo socialmente,

    suporta valores e um elemento do imaginrio social (LE BRETON, 2006). No

    estamos falando do corpo da anatomia ou da esttua, mas sim do corpo em movimento,

    da vida. Deste modo, quando Goffman (1995) traz o corpo para a esfera da

    comunicao, ele no se refere a um corpo inerte, mas sim a um corpo em movimento.

    Visando compreender e superar a dualidade entre corpo e mente, Trebels (1998)

    e Kunz (2004) propem os conceitos de imagem substancial de corpo, ou corpo objeto e

    de imagem relacional de corpo, ou o corpo sujeito de Merleau-Ponty e Tamboer. A

    construo da imagem substancial de corpo remete ao corpo fsico, matria, fazendo

    do corpo um objeto que contm aquilo que delimitado pelo invlucro da pele. Crcere,

    engrenagem, mquina a vapor e, atualmente, sistema informtico dividido em hardware

    e software so metforas para a esta configurao de imagem do corpo. J a imagem

    relacional de corpo, refutando um viso dualstica para tecer uma viso unitria do

    homem, compreende as relaes do corpo material com o mundo a partir da percepo e

    do reconhecimento de relaes intrnsecas de sentido. Em um macronvel, a rede, e em

    um micronvel, o dilogo, so metforas para compreender uma estrutura relacionalonde o sujeito, dotado de intencionalidade, est no centro de uma concepo dialgica

    do movimento. Esta concepo no nega a materialidade do corpo, ao contrrio, a

    revisita e a ressignifica. A ideia de corpo objeto, substancial e corpo sujeito, relacional,

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    se completam: o homem material dialoga com o mundo, sendo o corpo condio para o

    estar-no-mundo.

    Uma permanente tenso est posta no SL. Busca-se ser um avatar, tornar-se

    pessoa on-line, assumir uma representao grfica do corpo como condio para estar-

    no-mundo do ciberespao, em um contexto onde, de forma extrema, a imagem de

    corpo reificada e este, subdividido em pequenas partes, torna-se fetiche. possvel ao

    participante do SL, nas experincias do ciberespao, romper com a imagem substancial

    de corpo implcita ao avatar e assumir, em suas aes, uma imagem relacional do corpo

    que dialogue com o mundo?

    Para ilustrar que as relaes de sentido so internas no dilogo entre corpo e

    mundo, ou seja, s podem se manifestar pela ao, Trebels (1998) se vale do exemplo

    da oficina de carpinteiro posto por Tamboer. Na oficina, as ferramentas formam uma

    rede de relaes onde a definio e a respectiva funo do martelo e do prego s so

    dadas reciprocamente numa referncia de um ao outro. Martelo e prego, mesmo tendo

    suas identidades constitudas pela referncia, no podem ser ditos como iguais, cada um

    mantm sua relativa autonomia e deve ser pensado no contexto das obras do carpinteiro.

    Tambm emprestada da relao entre prego e martelo a identidade do carpinteiro: ele

    no s parte, como tambm participa da rede de relaes. Alm disso, o carpinteiro

    ocupa uma posio especial, pois somente atravs dele a relacionalidade pode ser

    compreendida e se tornar atuante. A totalidade das relaes internas vem da ao do

    carpinteiro que atualiza e fabrica um produto, dando sentido para martelo e prego.Como as relaes de sentido so internas e manifestadas apenas pela ao, se o

    carpinteiro usar o martelo para fazer um jogo de equilibrista ao invs de pregar, uma

    outra relao de sentido ser percebida e reconhecida.

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    assim, percebendo e reconhecendo uma rede de relaes internas, que

    podemos compreender que o sentido do avatar e dos demais objetos do SL s podem ser

    dados a partir das aes dos participantes no jogo. Estes, sujeitos dotados de

    intencionalidade, fazem parte desta rede de relaes ao mesmo tempo em que suas

    aes so condio para a relao exista. Ou seja, das aes dos participantes do jogo,

    constitudas culturalmente no interior de um campo de possibilidades (VELHO, 1994),

    so produzidos os avatares inscries no ciberespao ao mesmo tempo em que, a

    partir dos avatares, tambm so criadas as aes e interaes dos participantes.

    A promessa do SL, e a busca dos seus participantes, a de fazer do avatar no

    apenas uma representao grfica do corpo, trao identitrio, mas, principalmente, uma

    imagem relacional do corpo. Assim, numa perspectiva fenomenolgica, o avatar seria

    no apenas imagem de sntese (sua condio material), mas tambm um corpo em

    dilogo no ciberespao, uma condio para o estar-no-mundo on-line que s possvel

    quando tambm se on-line.

    Entretanto, as competncias comunicativas do avatar esto relacionadas s suas

    competncias tcnicas, e estas ltimas dependem tanto do domnio do participante

    quanto das caractersticas inerentes plataforma. Quando abraamos algum, esse gesto

    um movimento dotado de sentido. Ele se configura como uma ao um

    comportamento intencional e seu sentido constitui uma rede de relao ao mesmo tempo

    em que constitudo por ela. Para Trebels (1998), o movimentar humano est

    estruturado funcionalmente a partir de um ator do movimento, de um contexto que situaesse movimento, e de um sentido que perseguido pelo se-movimentar. No caso do

    abrao, um segundo ator do movimento tambm faz parte da rede de relaes,

    compartilha tanto a ao, quanto o contexto e o sentido do gesto. Quem abraa no traz

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    para o plano consciente a ao motora que caracteriza tal movimento. Para abraar, a

    no ser que algum tipo de limitao fsica esteja envolvida, no preciso parar para

    pensar em como iremos realizar um movimento angular que permite afastar

    simultaneamente os braos da linha mdia do corpo e direcion-los, com a articulao

    dos cotovelos semi flexionada, ao encontro de outra pessoa que realiza, reciprocamente,

    a mesmo ao motora.

    No SL, um abrao necessita de uma programao prvia. preciso criar linha de

    comando em uma linguagem de programao interpretada pela plataforma do jogo. Essa

    linha de comando recebe o nome de script e deve ser associada ao avatar (ou a um

    objeto) para que este se movimente de determinada maneira. A palavra script, que

    pode ser traduzida para o portugus como roteiro sugestiva ao fazer um uso

    metafrico da palavra que nomeia a forma como so escritos os espetculos teatrais e

    audiovisuais. O script, que determina as aes dos atores em cena, em seu uso

    computacional, determina as aes dos avatares na tela. Abraar, fazer sexo, andar de

    maneira sexy, chutar uma bola, andar de bicicleta, diferenciar um sorriso debochado de

    um sorriso encabulado: estes so desafios que o participante enfrenta ao constituir-se

    como pessoa on-line a partir do avatar, buscando se expressar dialogicamente no

    ciberespao fazendo uso de representaes do movimento. O exemplo do piscar de

    olhos que Geertz (1989) utiliza para ilustrar a dificuldade interpretativa em distinguir

    uma piscadela de um tique nervoso ganha novo contorno quando os gestos e

    movimentos so cdigos construdosa priori

    e que precisam ser acionados na tela.Existe um redimensionamento e uma ressignificao das dimenses do ver e do

    agir. Para piscar no SL com o avatar, no basta pensar em faz-lo. preciso pensar,

    acionar na tela com o mouse, ou em um atalho no teclado, o comando correto e ento

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    piscar. A resposta do avatar ainda pode ser descontextualizada pelo lag, atraso no envio

    de informaes que causa um descompasso na comunicao. Como o caminho para

    fazer o avatar piscar relativamente trabalhoso, e demanda um considervel

    processamento e transmisso de dados pelo computador, comum que os participantes

    faam uso de outras estratgias para se expressar corporalmente em detrimento da

    representao de movimento. Em algumas situaes, para se expressar corporalmente

    piscando, mais gil, fcil e evidente, visto que o gesto fica impresso na tela atravs

    do emprego de sinais ortogrficos. Assim, uma piscadela nasce com um ponto e vrgula

    seguido de um parntese: ; )

    Imaginao, mimicry e brincadeiras narrativas

    No podemos nos esquecer que o corpo, na concepo de Merleau-Ponty9

    (Apud, CARMO, 2000, p. 82) tambm animado por relaes imaginrias com o

    mundo. E que no SL, a corporalidade implcita no avatar possui uma posio de

    destaque nos processos da comunicao associada ao jogo. assim que, a partir das

    minhas observaes, percebi que os conceitos de imaginao e o imaginrio so

    essenciais para compreender como os participantes tecem seus caminhos pelo jogo,

    fazem suas escolhas, modelam seus avatares, criam maneiras para se expressar

    corporalmente, tecem suas narrativas. fazendo uso da imaginao/imaginrio que os

    participantes efetivamente, fazem de seus avatares um corpo relacional capaz de se

    expressar dialogicamente no ciberespao.

    Reconhecendo que os conceitos de imaginao e imaginrio so polissmicos,

    Gilka Girardello (2003) sugere que o entendimento de Paul Ricoer ( 1978) sobre a

    9 MERLEAU-PONTY, M. Penomenologie de la perception. Paris: Gallimard, 1953.

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    imaginao seja o que mais tenha hoje a contribuir com as anlises de como os produtos

    e processos da comunicao so lidos e ressignificados pelas pessoas. Para Ricoer,

    (1978) toda ao depende da imaginao, e no espao da imaginao que

    experimentamos diferentes cursos de ao, e que brincamos no sentido literal do

    termo com possibilidades prticas Ricouer10 (apud GIRARDELLO, 2003). Deste

    modo, a imaginao compreendida como espao intersubjetivo de ensaio e

    interpretao:

    a imaginao que proporciona o ambiente, a clareira luminosa na

    qual podemos comparar e contrastar motivos to diferentes quantodesejos e demandas ticas, que por sua vez podem ir desde regrasprofissionais at costumes sociais ou valores estritamente pessoais.(Ibid.).

    O conceito de imaginao como um espao intersubjetivo onde brincamos com

    possibilidades prticas, atrelado ao conceito de imaginrio, aqui entendido em sua

    dimenso sociocultural como a dimenso coletiva do imaginado (GIRARDELLO,

    2003), aproxima o universo simblico construdo e compartilhado pelos participantes do

    SL (e dos jogos eletrnicos em geral) com a perspectiva de entendimento do

    ciberespao como uma dimenso das sociedades complexas. A imaginao parece

    intensificar as trocas materiais e simblicas entre os diferentes planos da vida social

    contempornea, permitindo que os participantes do SL problematizem, reflitam e

    ressignifiquem suas experincias cotidianas estando circunscritos a limites de tempo e

    espao muito peculiares: no jogo, ao constituir-se como pessoa on-line, o participanteest in-lusio a iluso propicia sua entrada no jogo.

    10 RICOEUR, P. Imagination in Discurse and in Action. Analecta Husserliana, Dordrecht, v.7, p. 3-32,1978.

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    Roger Caillois (1990), em seu clssico estudo Os jogos e os homens: a mscara

    e a vertigem, demonstra que o jogo, apesar de ocupar um domnio prprio cujo

    contedo varivel, por vezes se entrecruza com o domnio da vida corrente. Diante do

    enorme nmero e da diversidade de jogos, o autor prope que estes sejam classificados

    no pela natureza do jogo, mas pela atitude do jogador. Assim, Caillois prope uma

    classificao dos jogos em quatro categorias: Agon, que rene jogos de disputa, Alea,

    com jogos marcados pela aleatoriedade entre sorte e azar, Ilinx, que agrupa jogos de

    vertigem e mimicry, jogos cujo prazer de representar um personagem, de assumir um

    papel, d o tom. Esta ltima categoria de jogos, caracterizada pela unio da imaginao

    interpretao, que penso ser adequada s reflexes sobre a constituio da noo de

    pessoa on-line no contexto do SL.

    No jogo, a mimicry consiste na representao deliberada de um personagem, o

    que facilmente se torna uma obra de arte, de clculo e de astcia (CAILLOIS, 1990,

    p.97). Para Caillois, assim como em Goffman (1995), o papel desempenhado toma sua

    forma a partir da interao com o outro, com as expectativas recprocas que emanam

    das situaes interativas. Assim, o participante do SL, ator que em sua rede de relaes

    avatar-ciberespao-interlocutores compe seu papel, faz do seu avatar um corpo

    relacional no ciberespao, constituindo-se no prazer da iluso dramtica.

    Ao buscar compreender como corpo, movimento, imaginao, avatar, noo de

    pessoa, mimicry, dentre tantos outros conceitos utilizados na minha busca interpretativa

    da constituio do ser no ciberespao, encontrei o conceito debrincadeiras narrativas

    em um texto de Gilka Girardello e Ana Carolina Dionsio (on-line) que versa sobre

    aspectos da relao de crianas pequenas com a internet. Segunda as autoras:

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    [...] ver as crianas fantasiando em voz alta enquanto brincam nafrente do computador - atividade aqui designada de brincadeiranarrativa, e entendida como produo cultural relativamenteautnoma e autoral das crianas - nos leva a retomar um conceitofundamental para pensarmos as prticas culturais da infncia: aimaginao. (Ibid. Grifos meus).

    O conceito, cunhado na observao das brincadeiras infantis, apesar de ter como

    referncia a linguagem oral das crianas, aponta um possvel caminho para pensarmos a

    relao entre imaginao e constituio da noo depessoa on-line, tendo no centro da

    anlise os processos comunicativos verbais e no-verbais associados s aes dos

    participantes que fazem uso dos seus avatares no universo simblico do jogo. A voz alta

    surge na tela do SL enquanto se brinca. As cenas so narradas, ganham vida e sentido.

    A partir da ideia de brincadeiras narrativas, entendidas como produo cultural dos

    participantes do SL, podemos pensar em uma sntese das elucubraes tecidas at aqui

    para tentar compreender como a imaginao se articula com a forma como os

    participantes do SL se apresentam como pessoa on-line no jogo.

    A cena descrita a seguir ilustra como as brincadeiras narrativas se inserem no

    ciberespao e evidenciam a mimicry. Em um momento em que muitos participantes

    estavam reunidos em uma esquina da Ilha Brasil, a chegada de um avatar com a

    aparncia de um urso panda antropomrfico foi anunciada com alarde, em letras caixa

    alta, por Jorgensen, um avatar feminino. O panda vestia uma roupa oriental, trazia

    cabea um chapu de campons e, na mo direita, carregava um cajado que, pelos

    gomos, parecia ser de bambu. A ateno do grupo foi mobilizada:

    [14:10] Jorgensen: AWWWWWWWWWWWW[14:10] Jorgensen: O PANDA[14:10] Jorgensen: APERTEM O PANDA

    TODOOOOOOOOO[14:10] Jorgensen: AWWWWWWWWW[14:11] Jorgensen: panda panda panda

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    [14:11] Jorgensen: come here panda[14:11] Zabelin: legal, um panda[14:11] Zabelin: e ai panda[14:11] Panda: oi...[14:12] Jorgensen: panda bora casar?

    [14:12] Zabelin: vc luta panda?[14:12] Panda: luto[14:12] Jorgensen: affff[14:12] Jorgensen: nei nei[14:12] Panda: meto esse cajado na cabea e o cara cai[14:12] Jorgensen: panda vc tem que ser cute[14:12] Jorgensen: afffffffff[14:12] Jorgensen: panda violento[14:12] Panda: uahuah[14:12] Panda: uahuah[14:12] Zabelin: kkkkkkk[14:13] Zabelin: panda perigoso

    [14:13] Jorgensen: pandas so cute cute[14:13] Zabelin: os pandas costumam ser pacificos[14:13] Panda: eu sou cute cute!!![14:13] Jorgensen: [14:13] Jorgensen: esse um panda mafioso da yakuza[14:13] Panda: uhauha to sem mafia...[14:14] Jorgensen: mafia![14:14] Panda: antes tava na mafia da floresta...[14:14] Zabelin: panda da mafia?[14:14] Zabelin: kkkk[14:14] Jorgensen: yakuza's panda[14:14] Panda: uahuah[14:14] Zabelin: hahahaha[14:14] Jorgensen: eu sou uma neko as vezes, panda[14:14] Jorgensen: ^^[14:14] Panda: legal....[14:14] Jorgensen: sim[14:15] Zabelin: mas panda seu cajado uma arma ou o seu

    lanche?[14:15] Jorgensen: obaaaaaaaaaa[14:15] Jorgensen: XDDDDDDDDD[14:15] Jorgensen: hahahahahah[14:15] Panda: e meu lanche..eu sou um panda sabio[14:15] Jorgensen:

    muito boa[14:15] Zabelin: kkkkk[14:15] Jorgensen: XDDDDDDDDD[14:15] Panda: XD[14:15] Zabelin: sabia que era um panda do bem[14:15] Panda: eheh(Bate papo, Ilha Brasil, 14 fevereiro 2008)

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    no momento em que as brincadeiras narrativas acontecem no SL que cada

    participante tenta traar para a sua identidade on-line uma estabilidade que o faa tanto

    reconhecido quanto aceito nas situaes interativas do grupo. O Panda tem traado para

    si um papel inicial que antecede o dilogo com o grupo. A brincadeira narrativa se

    iniciou com as escolhas que foram feitas para construir o avatar (forma, sexo, cor de

    pele, vestimentas). O panda, que se apresenta inicialmente como violento, transforma-se

    em panda pacfico durante a brincadeira narrativa a partir das referncias e expectativas

    cultivados pelos outros participantes. O significado dos objetos tambm negociado em

    meio s narrativas. O cajado, arma que poderia ser usada para bater nos outros avatares,

    acabou por se tornar alimento de um panda sbio, do bem. As narrativas compem a

    prpria experincia do brincar no jogo e so fundamentais para que as representaes

    grficas de corpo e de movimento possam, impulsionadas pela imaginao, se constituir

    enquanto corpo relacional que dialoga no ciberespao.

    Durante as interaes no SL, os movimentos dos avatares e as narrativas dos

    participantes se imbricam. As dimenses do agir e do ver, ressignificados, permeadas

    pela imaginao, adentram pelas brincadeiras narrativas para fazer do avatar uma

    maneira de ser no ciberespao.

    Os avatares entre pedras, sonhos e corpos

    Uma vez que o comportamento humano visto como ao simblica

    [...] o problema se a cultura uma conduta padronizada ou um estadoda mente ou mesmo as duas coisas juntas, de certa forma perdesentido. O que se deve perguntar a respeito de uma piscadela burlescaou de uma incurso fracassada aos carneiros no qual o seu statusontolgico. Representa o mesmo que pedras de uma lado e sonhos dooutro so coisas desse mundo. (GEERTZ, 1989, p. 8).

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    Corpos de carne e corpos de bits. Movimentos biomecnicos e movimentos de

    scripts. A oposio entre a materialidade palpvel do corpo substancial invlucro da

    alma, suporte para a mente e a efemeridade digital do corpo representado no

    ciberespao iluso virtual, imaginao fantasiosa causa um estranhamento que

    alimenta a discusso do que um corpo, evidencia um corpo simblico cujo movimento

    dialoga com o mundo. Ao refletir sobre avatar pressupe-se que, assim como o corpo

    material, como as pedras e como os sonhos, ele faz parte desse mundo.

    Em momento algum, partindo da experincia dos jogadores do SL, possvel

    afirmar que o avatar um substituto para o corpo material, substancial. Ao aproximar o

    avatar das discusses da EF, no reivindico para este o status de objeto de interveno

    direta da EF. A especificidade da EF continuar enraizada na constatao de que as

    pessoas corpos-sujeito que dialogam com o mundo so susceptveis a intervenes

    pedaggicas. Cada um de ns pode ser levado a descobrir, em seu movimento autoral,

    intencional, o mundo enquanto corpo, sentindo prazer nessa relao dialgica com seu

    entorno. Refletir sobre o avatar, como tambm o para tantas outras representaes do

    corpo, dentre as quais destaco, na pauta da vida social contempornea, as miditicas,

    reconhecer a multidimensionalidade do ser humano.

    Nas situaes de estranhamento originadas das aes dos participantes do SL

    que se inserem no ciberespao desafiados a construir-se em uma corporalidade on-line,

    reside uma situao privilegiada para pensar o corpo e o movimento dissociados de

    concepes ontolgicas. O corpo apresentado assim, uma vez inscrito na rede, comoentidade simblica com significados negociveis, relativos e transitrios. Ao ser on-

    line, o participante do SL se v, estando nos meandros do ciberespao, em situaes de

    unidade e fragmentao, na perspectiva de Gilberto Velho (1994). Considerando que a

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    construo social da realidade tambm possui uma natureza simblica, o participante do

    SL se v em trnsito entre diferentes planos e dimenses da vida social contempornea

    sem abandonar, no entanto, um mundo para adentrar em outro.

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    Endereo dos autores:

    Rogrio Santos PereiraRua Alagoas, 100. Bairro Sagrada Famlia.Viosa - MG. CEP 36570-000Endereo eletrnico: [email protected]

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    Giovani de Lorenzi Pires

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