representações sociais

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA NÚCLEO DE ESTUDOS TRABALHO, SOCIEDADE E COMUNIDADE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE ESTUDANTES NEGROS: UNIVERSIDADE E TRABALHO Elisabete Figueroa dos Santos Rosemeire Aparecida Scopinho (Orientadora) São Carlos 2011

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definição dos paradigmas sociais

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

    CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    NCLEO DE ESTUDOS TRABALHO, SOCIEDADE E COMUNIDADE

    REPRESENTAES SOCIAIS DE ESTUDANTES NEGROS:

    UNIVERSIDADE E TRABALHO

    Elisabete Figueroa dos Santos

    Rosemeire Aparecida Scopinho (Orientadora)

    So Carlos

    2011

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

    CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    NCLEO DE ESTUDOS TRABALHO, SOCIEDADE E COMUNIDADE

    REPRESENTAES SOCIAIS DE ESTUDANTES NEGROS:

    UNIVERSIDADE E TRABALHO

    Elisabete Figueroa dos Santos

    Rosemeire Aparecida Scopinho (Orientadora)

    So Carlos

    2011

    Texto apresentado ao Programa de Ps-

    Graduao em Psicologia da

    Universidade Federal de So Carlos

    como parte dos requisitos para

    obteno do ttulo de mestre.

  • Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar

    S237rs

    Santos, Elisabete Figueroa dos. Representaes sociais de estudantes negros: Universidade e trabalho / Elisabete Figueroa dos Santos. -- So Carlos : UFSCar, 2011. 180 f. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2011. 1. Negros. 2. Representaes sociais. 3. Universidade. 4. Aes afirmativas. 5. Trabalho. I. Ttulo. CDD: 305.8 (20a)

  • i

    REPRESENTAES SOCIAIS DE ESTUDANTES NEGROS: UNIVERSIDADE E

    TRABALHO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia como parte dos

    requisitos para obteno do ttulo de mestre em Psicologia.

    Exame de Defesa

    15/03/2011

    Banca Examinadora

    _______________________________________

    Profa. Dra. Rosemeire Aparecida Scopinho

    Orientadora

    _______________________________________

    Prof. Dr. Alessandro Oliveira dos Santos

    USP

    _______________________________________

    Prof. Dr. Almir Del Prette

    UFSCar

  • ii

    Aos guerreiros e militantes, passados e contemporneos.

    queles que ousaram ser o ponto fora da curva.

    Aos que apontaram a regra tendenciosa.

    Aos que propuseram a apreciao de outros horizontes.

    Aos que firmaram o terreno de possibilidades e direitos.

    Aos estudantes negros desta e de todas as outras universidades.

    Ao meu filho. Semente frtil. Ddiva minha.

  • iii

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo, primeiramente, ao meu santo guerreiro, fiel nas demandas, por alguns

    chamado So Jorge, por outros chamado Ogum. Grata pela fora nas batalhas, cuja

    vitria toma forma nas pginas que se seguem.

    Agradecimentos infindveis minha famlia. Meu pai, minha me e minhas

    irms. Pelo auxlio e acolhimento certo. Pelos momentos em que precisei de socorro e

    este me foi certeiro.

    Agradeo aos ancestrais que abriram caminhos e amaciaram a passagem.

    Ao meu filho. Pela fonte de inspirao. Pelo carinho. Por me arrancar risos

    desavisados. Suavizar o percurso e faz-lo mais feliz. Por dar sentido ao meu universo.

    minha orientadora, pelo trabalho conjunto. Pela orientao, de fato. Pela

    labuta e parceria.

    Aos professores Maria Chalfin e Alessandro Santos, pelas orientaes e

    indagaes. Por apontarem terrenos movedios e indicarem possveis sadas.

    Ao professor Almir Del Prette, por acompanhar meu caminho de mestranda.

    Pelas frteis provocaes.

    professora Petronilha e ao Grupo Gestor de Aes Afirmativas da

    Universidade Federal de So Carlos, por possibilitarem a realizao dessa pesquisa.

    Ao Coletivo de Vivncias e Estudos Africanos MALICK, pelo fortalecimento.

    Pelas trocas e parcerias. Pela militncia.

    Aos meus amigos, cujos nomes no ouso citar pra no correr o risco de ser pega

    pelas possveis falhas de memria. A todos que partilharam o caminho, dividiram

    angstias e solues. Pelos abraos, aconchegos e palavras. Pelas manifestaes e pelos

    silenciamentos. Por compartilharem sentidos para alm da amizade. Irmandade.

    Famlia.

  • iv

    FAPESP, pelo incentivo. Desde o financeiro, concedendo-me a bolsa de

    mestrado, at as avaliaes e pareceres.

  • SANTOS, Elisabete Figueroa dos. (2011) Representaes sociais de estudantes negros: Universidade e

    trabalho. Dissertao de Mestrado, Programa de Ps-Graduao em Psicologia. Universidade Federal de

    So Carlos SP. 180p.

    RESUMO

    Os indicadores sociais acerca da educao e das relaes de trabalho no Brasil apontam

    que as desigualdades so ainda mais crticas quando a anlise feita sob a tica

    etnicorracial, evidenciando uma situao de visvel desvantagem para a populao

    negra. Contudo, a literatura tem revelado ser a educao tradicionalmente um dos

    principais instrumentos capazes de promover a ascenso social e econmica do negro.

    Dessa forma, vrias instituies educacionais de nvel superior tm implantado o

    sistema de reserva de vagas, fruto das reivindicaes do movimento negro brasileiro.

    Logo, essa pesquisa buscou compreender as relaes entre negritude, educao e

    trabalho, a partir da perspectiva de estudantes universitrios negros. O objetivo deste

    estudo foi estudar as representaes sociais que possuem os estudantes negros da

    UFSCar sobre a entrada na universidade pblica por meio do sistema de reserva de

    vagas, o curso e a profisso escolhida e a insero e/ou permanncia no mercado de

    trabalho. Especificamente, pretendeu-se analisar o Programa de Aes Afirmativas

    (PAA) da UFSCar, suas propostas, polticas, estratgias; conhecer as caractersticas

    scio-econmicas dos estudantes, especialmente aquelas que dizem respeito trajetria

    escolar e de trabalho; conhecer as representaes sociais dos estudantes em relao

    formao e o ingresso no mercado de trabalho; e, por fim, discutir o impacto das

    relaes estabelecidas no contexto universitrio sobre a identidade etnicorracial dos

    estudantes. Foram realizadas entrevistas individuais com 13 estudantes pretos e pardos,

    ingressantes na UFSCar a partir de 2008, via sistema de reserva de vagas ou no. Alm

    disso, foram feitas entrevistas coletivas com parte dos estudantes entrevistados

    individualmente. Pde-se verificar as relaes existentes entre o senso de

    pertencimento, a identidade etnicorracial e as representaes que so engendradas sobre

    as relaes raciais e aes afirmativas. Percebemos, portanto, alunos negros que

    identificam-se e afirmam-se como negros, so participantes de grupos afirmativos,

    engajados nas discusses raciais e, identificam-se tambm como reservistas ingressantes

    pelas vagas destinadas a alunos negros. E, h aqueles para os quais raa e etnicidade no

    so elementos salientes em sua identidade, no partilham de grupos afirmativos e

    demonstram dificuldades de assumirem-se como ingressantes pela reserva de vagas para

    negros. As representaes acerca da implantao de reserva de vagas para negros so

    tomadas como algo positivo, devido crena de que elas possibilitam a entrada do

    negro na universidade; possibilitam a entrada dos desfavorecidos; e diminuem a

    desigualdade. A apreenso dessa poltica como algo negativo deve-se representao de

    que instituir tais medidas: assumir a incapacidade do negro; traz complicaes

    constitucionais; desvia o foco do real problema que a educao base, gera preconceito;

    cria a desigualdade; e por fim, conta com a dificuldade de se definir quem negro no

    Brasil. As mesmas relaes e formas de representaes foram verificadas acerca da

    reserva de vagas para negros no mercado de trabalho. Percebemos que, aqueles

    estudantes que apresentam uma identidade etnicorracial afirmada representavam as

    relaes entre ser negro, ensino superior e mercado de trabalho de forma mais crtica e

    propositiva. Assim, estudantes cuja identidade etnicorracial no se apresenta de maneira

    to saliente, representavam essas relaes de forma a negar a existncia de racismo,

    buscando minimizar a prpria afetao num quadro de discriminao racial, o que est

    atrelado contrariedade acerca das aes afirmativas no ensino superior e no mercado

    de trabalho. Palavras-chave: Negros; Representaes Sociais; Universidade; Trabalho; Aes Afirmativas.

  • vi

    ABSTRACT Social indicators regarding education and employment relations in Brazil indicate that

    the inequalities are even more critical when the analysis is done from the ethnic-racial

    perspective, showing a situation of obvious disadvantage for the black population.

    However, the literature has shown that education is traditionally one of the main tools

    to promote social and economic rise of blacks. Thus, various higher education

    institutions have implemented the system of quotas, what results of the demands of the

    Brazilian black movement. Therefore, this research sought to understand the

    relationship between blackness, education and work, from the perspective of Black

    college students. The objective was to study the social representations that have

    UFSCar`s Black students on entering the public university system through reserve

    places, the course and chosen profession, and the inclusion and / or stay in the labor

    market. Specifically, we sought to analyze the Affirmative Action Program (AAP) of

    UFSCar, its proposals, policies and strategies; knowing the the socio-economic students

    features, especially those related to school life and work; the social representations

    of students about their training and entering the labor market; and finally, discuss the

    impact of the relations established in the university context on the ethnic-racial

    students. Individual interviews were conducted with 13 black students, who entered at

    UFSCar from 2008, through the system of quotas or not. In addition, group interviews

    were done with the students individually interviewed. It was possible to examine the

    relationships between the sense of belonging, ethnic-racial identity and representations

    that are engendered on race relations and affirmative action. We realize, therefore,

    Black students who identify themselves and claim themselves as Black, participants of

    assertive groups, engaged in racial discussions, and also identify themselves as

    reservists entering the vacancies for Black students. And there are those for whom race

    and ethnicity are not salient elements in their identity, do not share affirmative groups,

    and experience difficulties to assume themselves as freshmen at the reservation of seats

    for blacks. The representations about the implementation of quotas for Blacks are taken

    as something positive, because of the belief that they allow the entry of Blacks in the

    university; allow the entrance of the disadvantaged people; and reduce inequality. The

    seizure of this policy as a negative due to the representation of that institute such

    measures: assume the inability of Blacks; brings constitutional complications; shifts the

    focus from the real problem is education based, breeds prejudice, creates inequality,

    and finally, regard to the difficulty of defining who is Black in Brazil. The same

    relationships and forms of representations were found regarding the quotas for blacks in

    the labor market. We realized that those students who have an affirmed ethnic-racial

    identity represented the relations between being Black, higher education and the labor

    market in a more critical and proactive way. Thus, students whose ethnic-racial identity

    is not presented in a manner so prominent, represented these relationships in order to

    deny the existence of racism and in order to minimize the very affectation in a context

    of racial discrimination, which is pegged to the contrariety of affirmative action in

    about higher education and in the labor market.

    Keywords: Blacks; Social Representations; University; Work;

    Affirmative Actions.

  • vii

    LISTA DE FIGURAS

    QUADRO 1: MATERIAIS UTILIZADOS PARA AS ANLISES DOS PROGRAMAS .............................. 100

    QUADRO 2: CARACTERSTICAS DOS PROGRAMAS DE AO AFIRMATIVA DA UERJ, UNEB, UNB E UFSCAR ................................................................................................................................ 128

    TABELA 1: DISTRIBUIO DO NMERO DE ESTUDANTES NEGROS ENTREVISTADOS DE ACORDO COM A CIDADE DE ORIGEM DOS PARTICIPANTES .................................................................... 132

    TABELA 2: DISTRIBUIO DO NMERO DE ESTUDANTES NEGROS ENTREVISTADOS DE ACORDO COM OS CURSOS E REAS DE INGRESSO ................................................................................. 133

    TABELA 3: FREQUENCIA DAS ATIVIDADES PROFISSIONAIS RELATADAS PELOS ESTUDANTES ENTREVISTADOS ................................................................................................................... 134

  • viii

    LISTA DE SIGLAS

    AA Ao Afirmativa

    Adac Assessoria de Diversidade e Apoio aos Cotistas

    Alerj Assemblia Legislativa do Rio de Janeiro

    Baie Bolsa de Apoio a Estudantes e Incentivo Extenso

    Baip Bolsa de Apoio a Estudantes e Incentivo Pesquisa

    Cadara Comisso Assessora de Diversidade para Assuntos Relacionados aos

    Afrodescentes

    Caep Centro de Atendimento e Estudos Psicolgicos

    CCN Centro de Convivncia Negra

    Ceam Centro de Estudos Avanados Multidisciplinares

    Cepaia Centro de Estudos dos Povos Afro-ndio-Americanos

    Cepe Conselho de Ensino, Pesquisa e Extenso

    Cespe Conselho de Seleo e Promoo de Evento

    CNEEI Comisso Nacional de Educao Escolar Indgena

    Consu Conselho Universitrio

    Covest Coordenadoria para o Vestibular

    Deapi Departamento de Desenvolvimento Acadmico e Projetos de Inovao

    Dieese Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos

    Disoc Diretoria de Estudos Sociais

    Fies Programa para o Financiamento Estudantil

    Geraju Grupo de Estudos de Gnero, Raa e Juventude

    HUB Hospital Universitrio de Braslia

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

  • ix

    Ife Instituio Federal de Ensino

    Ipea Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    Laeser Laboratrio de Anlises Econmicas, Histricas, Sociais e Estatsticas das

    Relaes Raciais

    Mec Ministrio da Educao

    Neab Ncleo de Estudos Afro-brasileiros

    PAA Programa de Ao Afirmativa

    PDI Plano de Desenvolvimento Institucional

    Pea Populao Economicamente Ativa

    Pibic Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica

    PNAD Pesquisa Nacional de Anlise de Domiclio

    PPNE Programa de Apoio a Portadores de Necessidades Especiais

    Proiniciar Programa de Iniciao Acadmica

    Promisaes Projeto Milton Santos de Acesso ao Ensino Superior

    Prouni Programa Universidade para Todos

    RU Restaurante Universitrio

    Sade Sistema de Acompanhamento de Escolas Mantidas pelo Poder Pblico

    Seb Secretaria de Educao Bsica

    Secad Secretaria de Educao, Alfabetizao e Diversidade

    Seppir Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial

    Sesu Secretaria de Educao Superior

    Setec Secretaria de Estado de Trabalho, Emprego e Cidadania

    Sou Servio de Orientao ao Universitrio

    TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    Uerj Universidade Estadual do Rio de Janeiro

  • x

    UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

    UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

    UFSCar Universidade Federal de So Carlos

    UnB Universidade de Braslia

    Uneb Universidade Estadual da Bahia

    Unesp Universidade Estadual Paulista

  • xi

    Sumrio DEDICATRIA ......................................................................................................................................

    AGRADECIMENTOS ...........................................................................................................................

    RESUMO . ............................................................................................................................................ V

    ABSTRACT . ........................................................................................................................................ V

    LISTA DE FIGURAS . ......................................................................................................................... V

    LISTA DE SIGLAS . ........................................................................................................................... V

    SUMRIO .......................................................................................................................................... X

    INTRODUO . ................................................................................................................................. 13

    REFERENCIAL TERICO-METODOLGICO: A TEORIA DAS REPRESENTAES SOCIAIS E O ESTUDO DAS RELAES ETNICORRACIAIS ................................................................................................................. 21

    CAPTULO 1: DESIGUALDADES RACIAIS: EDUCAO E TRABALHO ............................................ 33

    1.1 TRABALHO E DESIGUALDADES ........................................................................................................ 37

    1.2 TRABALHO ESCRAVO, ABOLIO E PS-ABOLIO .............................................................................. 40

    1.3 INDICADORES SOCIAIS PARA A POPULAO NEGRA: ESTADO DE MAL ESTAR SOCIAL .................................. 46

    1.4 INDICADORES SOCIAIS E EDUCAO SUPERIOR .................................................................................. 48

    1.5 INDICADORES SOCIAIS E MERCADO DE TRABALHO .............................................................................. 50

    1.6 TRABALHO DE JOVENS E CRIANAS .................................................................................................. 56

    1.7 DADOS ATUAIS ............................................................................................................................ 59

    CAPTULO 2: IDENTIDADE, REPRESENTAES SOCIAIS E RAA ................................................. 62

    2.1 A TEORIA DAS REPRESENTAES SOCIAIS .......................................................................................... 62

    2.2 AS REPRESENTAES SOCIAIS ......................................................................................................... 64

    2.3 CONCEITO E DINMICA DAS REPRESENTAES SOCIAIS ....................................................................... 68

    2.4 REPRESENTAES SOCIAIS, IDENTIDADE E RACISMO ......................................................................... 71

    2.5 REPRESENTAES SOCIAIS E AES AFIRMATIVAS .............................................................................. 80

    CAPTULO 3: AES AFIRMATIVAS: RESDICUTINDO A PARTICIPAO DA POPULAO NEGRA NA EDUCAO E NO MERCADO DE TRABALHO ........................................................................ 87

    3.1 AO AFIRMATIVA E POLTICA EDUCACIONAL ................................................................................... 92

    3.2 OS PROGRAMAS DE AES AFIRMATIVAS ......................................................................................... 97

    3.3 PROJETOS REVISITADOS............................................................................................................... 100

    3.3.1 UERJ ................................................................................................................................ 100

    3.3.2 UNEB ............................................................................................................................... 104

    3.3.3 UNB ................................................................................................................................. 109

    3.3.4 UFSCAR ............................................................................................................................ 113

  • xii

    CAPTULO 4: AS REPRESENTAES SOCIAIS DE ESTUDANTES NEGROS:DAS DISPARIDADES SOCIOECONMICAS IDENTIDADE ETNICORRACIAL ............................................................. 131

    4.1 PERFIL SOCIOECONMICO E EDUCACIONAL DOS ESTUDANTES ENTREVISTADOS .................................... 131

    4.2 RAA E PRIVILGIOS SOCIAIS EM PAUTA: A PERSPECTIVA DE ESTUDANTES NEGROS ................................. 136

    4.3 RACISMO: ADMISSO E NEGAO ................................................................................................. 140

    4.4 NEGRO E ENSINO SUPERIOR ......................................................................................................... 146

    4.5 AES AFIRMATIVAS NO ENSINO SUPERIOR: A RESERVA DE VAGAS PARA NEGROS ................................. 151

    4.6 O NEGRO E O MUNDO DO TRABALHO ............................................................................................ 156

    CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................................... 159

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................................. 169

    APNDICE ............................................................................................................................. 176

  • 13

    INTRODUO

    Educao e trabalho so processos que se apresentam mutuamente implicados

    quando se trata de discutir a questo da juventude. A educao, aqui colocada como um

    sinnimo de escolarizao, ganha espao no cotidiano dos indivduos cada vez mais cedo.

    A preocupao em garantir uma educao de qualidade partilhada tanto pelos setores

    pblicos responsveis, quanto pelo restante da sociedade. Esta questo ganha maior

    visibilidade quando o debate tange o acesso ao ensino superior. O contingente de jovens

    que durante boa parte de seus dias estudam para obter sucesso nos exames de avaliao

    para acesso ao ensino superior tambm crescente, o que pode ser verificado pelas

    relaes candidato/vaga ano a ano, nos vestibulares das universidades pblicas. No

    entanto, a porcentagem de pessoas que consegue assegurar suas vagas no ensino superior

    pblico nfima, em comparao ao contingente daqueles que pleiteiam vagas nos

    exames vestibulares.

    A questo do acesso ao mercado de trabalho tambm crtica, especialmente para

    os jovens. Atualmente, cursar o ensino superior j no garantia de acesso ao trabalho.

    Este quesito que antes era tratado como diferencial, hoje entendido como pr-requisito.

    Alm disso, os fatores que influenciam diretamente na probabilidade de um indivduo

    preencher uma vaga, sobretudo devido s triagens que so realizadas para selecionar

    aquelas pessoas que melhor preenchem o perfil de profissionais desejado, so em

    grande parte subjetivos. Os critrios utilizados para traar esse perfil so de domnio dos

    responsveis dos setores de recursos humanos por recrutar e selecionar profissionais.

    Uma vez que esses perfis so delineados por pessoas, de acordo com as tendncias ditadas

    pelos grupos sociais dominantes, eles so passveis de sofrerem inmeras interferncias

    de crenas, conceitos e preconceitos. Portanto, possvel notar a existncia de uma

    problemtica quanto ao acesso educao e ao trabalho em nossa sociedade.

  • 14

    Os indicadores sociais acerca da educao no Brasil apontam para a questo de

    que a problemtica acima explicitada torna-se ainda mais crtica quando a anlise feita

    sob a tica etnicorracial. Ricardo Henriques (2001), em seu estudo sobre os indicadores

    sociais da populao negra, demonstra a situao de reiterada desigualdade a que esta

    populao est submetida na sociedade brasileira. Analisando a escolaridade, o autor

    verificou que, em 1999, 8% dos jovens negros entre 15 e 25 anos eram analfabetos,

    enquanto apenas 3% dos jovens brancos nesta faixa etria encontravam-se nesta condio.

    Dos jovens com idade entre sete e 13 anos que no frequentavam a escola, 5% eram

    negros, enquanto apenas 2% eram brancos. Entre os jovens brancos de 18 a 23 anos, 63%

    no completaram o ensino mdio, enquanto o valor correspondente para os jovens negros

    igual a 84%. Em 1999, 89% dos jovens brancos com idade entre 18 e 25 anos no

    haviam ingressado na universidade. No entanto, 98% dos jovens negros, nesta mesma

    faixa etria, no haviam entrado na universidade, evidenciando a quase inexistncia de

    negros nos campi universitrios brasileiros neste perodo.

    No que tange ao trabalho, Henriques verificou que, de 1992 a 1999, a proporo

    de crianas brancas entre cinco e nove anos de idade que trabalhavam caiu 45%, enquanto

    para os negros a queda correspondeu a apenas 24%. Em 1999, 20% das crianas negras e

    13% das crianas brancas entre 10 e 14 anos participavam no mercado de trabalho.

    A condio de discriminao a que os negros esto expostos na nossa sociedade

    melhor percebida quando analisamos a dificuldade que eles enfrentam para ter acesso aos

    direitos sociais bsicos, como educao e trabalho. Visando esclarecer os dados referentes

    situao do negro no mercado de trabalho, um relatrio apresentado em 1999 intitulado

    O mapa do negro no mercado de trabalho brasileiro (DIEESE, 1999), que contemplou

    seis regies metropolitanas So Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Distrito Federal,

    Recife e Salvador traz importantes informaes que demonstraram uma situao de

  • 15

    reiterada desigualdade para os trabalhadores negros, de ambos os sexos. Segundo o Mapa,

    a coerncia dos resultados em nvel nacional demonstra, sem qualquer sombra de dvida,

    que a discriminao racial um fato presente cotidianamente, interferindo em todos os

    espaos do mercado de trabalho brasileiro. As informaes permitem ainda, concluir que

    a discriminao racial sobrepe-se discriminao por sexo e juntas constituem o cenrio

    de aguda dificuldade em que vivem as mulheres negras, atingidas por ambas. A pesquisa

    concluiu que as crianas e jovens negros comeam a trabalhar mais cedo

    comparativamente aos brancos e, alm de ingressarem mais cedo, permanecem por mais

    tempo no trabalho. Na regio metropolitana de Salvador, cerca de 53% dos jovens negros

    dedicavam-se apenas aos estudos, enquanto entre os brancos este nmero correspondia a

    72,3%.

    As mulheres, as pessoas com mais de 40 anos e os chefes de famlia (homens e

    mulheres negros (as)) tambm participavam mais intensamente do mercado de trabalho

    que os brancos, mas em condio mais precria. Por exemplo, a jornada de trabalho dos

    negros era duas horas superior dos brancos. No que tange remunerao, a

    desvantagem dos negros tambm era evidente: na maioria das capitais pesquisadas, o

    rendimento mdio do trabalhador branco era mais que o dobro do rendimento mdio do

    negro. Os dados relativos ao desemprego revelavam-se maiores para os negros em todas

    as regies pesquisadas. Alm disso, a durao do perodo de desemprego tambm maior

    para os negros em comparao aos brancos.

    Bento (2000) aponta que poder-se-ia pensar que tais dados refletem as diferenas

    de escolaridade entre brancos e negros. Todavia, a autora argumenta que, mesmo quando

    se leva esses fatores em considerao, a situao continua desfavorvel aos negros: em

    todas as capitais pesquisadas, as diferenas de rendimento entre negros e brancos

  • 16

    aumentam medida que aumenta a escolaridade. Ou seja, o retorno do investimento feito

    em educao menor para os negros.

    O histrico de excluso social dos negros brasileiros remonta o perodo de

    colonizao do Brasil. Com a escravizao dos negros trazidos da frica, estabeleceu-se

    um sistema de relaes sociais baseadas no quesito racial (LIMA, 2006).

    A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro

    como raa, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padres de

    interao com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posio inferior. Nas

    sociedades de classes multirraciais e racistas como o Brasil, a raa exerce funes

    simblicas valorativas e estratificadoras. A categoria racial possibilita a distribuio dos

    indivduos em diferentes posies na estrutura de classes, conforme pertenam ou

    estejam mais prximos dos padres raciais de classe/raa dominante (FERNANDES,

    1978).

    O Brasil o pas da segregao racial no declarada. Todos os indicadores

    sociais ilustram nmeros carregados com a cor do racismo. A partir desta afirmao,

    Domingues (2005, p. 165) prope a seguinte questo: Como reverter esse quadro de

    injustia e desigualdades raciais? concluindo que, do ponto de vista conjuntural, a sada

    que se vislumbra a defesa de um amplo programa de aes afirmativas. E segue

    explanando:

    Entre as polticas de aes afirmativas que vm sendo experimentadas no

    Brasil, a mais polmica o programa de cotas para negros. Na verdade, as

    cotas constituem mecanismos extremos de ao afirmativa: a reserva de

    um percentual determinado de vagas para um grupo especfico da

    populao (negros, mulheres, gays, entre outros), principalmente no

  • 17

    acesso universidade, ao mercado de trabalho e representao poltica

    (p.166).

    Diante da atual adeso aos programas de aes afirmativas que se tem verificado

    no Brasil, Domingues (op. cit.) salienta que este um momento singular na histria do

    pas, no qual amplos setores da sociedade civil no s se conscientizam, cada vez mais,

    do problema do racismo, como se debruam nas possveis solues. Pela primeira vez, na

    histria do Brasil, acena-se romper com a barreira do silncio que paira sobre o racismo.

    Tendo que se livrar da concepo tradicionalista que o definia econmica, poltica

    e socialmente como inferior e submisso, possuidor de uma outra concepo negativa de si

    mesmo e sendo orientado pela ideologia do branqueamento, o negro acaba por tomar o

    branco como modelo de identidade ao estruturar e levar a cabo a sua estratgia de

    ascenso social.

    Estudos e pesquisas sobre a situao do negro brasileiro tm revelado ser a

    educao, tradicionalmente, um dos principais instrumentos capazes de promover a

    ascenso social e econmica na busca de uma maior igualdade com o grupo dominante

    (TEIXEIRA, 2003).

    O fato de os jovens que ingressam na universidade confrontarem-se com uma srie

    de desafios pessoais, interpessoais, familiares e institucionais tem merecido uma anlise

    mais atenta por parte das autoridades e servios acadmicos com maiores

    responsabilidades e apoio, conforme ressaltam Almeida, Soares e Ferreira (2002). No

    entanto, os estudantes negros, alm de todos os desafios explicitados anteriormente, tm

    que enfrentar prticas racistas, deparando-se com diversas experincias discriminatrias

    (NASCIMENTO e SILVA, 2008). Enquanto os brancos encontram-se numa posio de

    no ter que refletir acerca de sua branquitude, os negros so chamados a responder por ela

    constantemente (BENTO e CARONE, 2002).

  • 18

    Visando investigar a ocorrncia de situaes de racismo e discriminao

    experienciadas por estudantes negros, Nascimento e Silva (2008) realizaram um estudo

    com os estudantes negros brasileiros e africanos da Universidade Federal de So Carlos

    (UFSCar). As autoras verificaram que os estudantes entrevistados no apenas relatavam a

    percepo de racismo e discriminao como tambm o sofrimento de tal vivncia. A

    maioria dos entrevistados citou as dificuldades encontradas para manter a autoestima

    positiva e uma identidade etnicorracial positivamente afirmada em mbito universitrio.

    Teixeira (2003), em seu estudo com alunos e professores universitrios verificou

    que, mesmo quando o negro est numa posio de incontestvel superioridade

    socioeconmica, ainda assim ele se percebe alvo de preconceitos e discriminao. Muitas

    vezes, os universitrios negros j passaram pelo mercado de trabalho ao entrar na

    universidade, ou mesmo exercem atividades laborais concomitantes graduao.

    Geralmente, esta experincia anterior no mercado de trabalho, realizada de forma mais

    precoce que a mdia da populao, que abre a possibilidade de prosseguir nos estudos e

    gerar novas expectativas com relao ao ingresso num curso universitrio, o que a

    trajetria de vida com base no histrico familiar no propiciaria.

    A anlise da literatura que aborda a relao entre trabalho, educao e relaes

    etnicorraciais demonstra que o negro brasileiro encontra dificuldades para construir uma

    identidade que o integre ao seu grupo de origem e sociedade mais ampla, salientando a

    a situao de desigualdade que se faz presente em nossa sociedade.

    Em estudo anterior abordei a questo das problemticas implicadas no

    desenvolvimento da identidade etnicorracial dos negros e verifiquei que a afirmao e o

    esclarecimento acerca da prpria identidade etnicorracial fornecem ao negro as

    ferramentas necessrias para o adequado enfrentamento das situaes que lhe possam

    surgir, sobretudo num contexto constitudo, majoritariamente, por pessoas brancas, como

  • 19

    se verifica para o crculo da classe mdia bem como para os campi brasileiros (SANTOS,

    2007).

    Assim, como afirmou Teixeira (2003) se, por um lado, o acesso dos negros ao

    ensino superior constitui a mais importante ferramenta para sua ascenso social; por

    outro, o contexto acadmico, majoritariamente branco, ainda no se encontra munido das

    ferramentas necessrias para possibilitar e contribuir para a integrao e adaptao do

    negro, de modo que lhe seja possvel atuar neste ambiente e, nos seus futuros locais de

    atuao profissional, de maneira assertiva e positiva em relao sua identidade

    etnicorracial.

    Como afirmou Souza (1990) o negro, na nsia de ascender socialmente, ao aderir

    ao processo de embranquecimento, na realidade, engaja-se, num processo de

    autoextino. Para o negro, pensar sobre a identidade negra redunda sempre em

    sofrimento psicolgico, devido s representaes pejorativas difundidas socialmente e

    internalizadas pelo prprio negro. Nesta medida, as funes simblicas do negro

    encontram-se, sob dadas circunstncias, foradas a no representar sua identidade real.

    Os sujeitos representam o mundo que os cerca e representam-se neste mesmo

    mundo. So tecidas formas de apreenso e interpretao das informaes que circundam e

    edificam o contexto no qual os grupos sociais inserem-se, transitam e constituem-se

    sujeitos. Portanto, a realidade social constitutiva de identidades por meio das

    representaes sociais. As disparidades sociais verificadas entre brancos e negros

    influenciam o modo como o negro posiciona-se diante do mundo que o cerca e

    influenciam na maneira como ele se relaciona como seu grupo etnicorracial e com os

    demais grupos sociais e a forma como enfrentam o preconceito racial.

  • 20

    Assim, importante investigar as relaes que se estabelecem entre negritude,

    trabalho e educao e a Teoria das Representaes Sociais pode fornecer as ferramentas

    adequadas para o entendimento deste objeto.

    A partir da dcada de noventa, em meio ao processo de discusso e implantao

    da poltica de reserva de vagas nas universidades pblicas, proliferaram os estudos sobre

    as relaes etnicorraciais que analisam a situao socioeconmica dos negros na

    sociedade brasileira. No entanto, so escassos os estudos que se dedicam a compreender o

    que pensam os estudantes negros os sujeitos das aes afirmativas sobre as condies

    de sua insero na universidade como forma de preparao para a entrada e/ou

    permanncia no mundo do trabalho, questo esta que consideramos ser objeto de estudo

    privilegiado para a Psicologia Social do Trabalho.

    Diante da problemtica explicitada, esta pesquisa teve por objetivo estudar as

    representaes e expectativas que possuem os estudantes negros da UFSCar sobre a

    entrada na universidade pblica por meio do sistema de reserva de vagas1, o curso e a

    profisso escolhida e a insero e/ou permanncia no mercado de trabalho. Uma vez que

    se pretende estudar a relao negritude, educao e trabalho, preciso considerar a

    centralidade do Programa de Aes Afirmativas implantado na UFSCar em 2008, dado

    que as reservas de vagas so polticas implantadas visando a reverso dos indicadores

    sociais que apontam para o quadro de dificuldades vivenciadas pelos negros no Brasil,

    sobretudo, na educao e no mercado de trabalho.

    Especificamente, pretendeu-se:

    - analisar o Programa de Aes Afirmativas (PAA) da UFSCar, seus objetivos e

    estratgias de implantao;

    1 Na UFSCar foi implantado o sistema de reserva de vagas para estudantes oriundos da rede pblica e

    negros. Este sistema prev a reserva de vaga em carter preferencial para este perfil de estudantes, porm,

    no em carter de exclusividade, como se verifica no sistema de cotas.

  • 21

    - conhecer as caractersticas socioeconmicas dos estudantes, especialmente aquelas que

    dizem respeito trajetria escolar e de trabalho;

    - conhecer as representaes e expectativas dos estudantes em relao formao e ao

    ingresso no mercado de trabalho;

    - discutir o impacto das relaes estabelecidas no contexto universitrio sobre a

    identidade etnicorracial dos estudantes.

    Referencial terico-metodolgico: A teoria das representaes sociais e o estudo das

    relaes etnicorraciais

    As representaes sociais so pensadas, discutidas e pesquisadas por algumas

    reas do conhecimento. A Psicologia Social, ao valer-se da Teoria das Representaes

    Sociais, busca entender as marcas sociais do cognitivo e as condies cognitivas do

    funcionamento ideolgico. Pensando as representaes como uma forma de

    conhecimento prtico, busca entender seu papel na instituio de uma realidade

    consensual e sua funo sociocognitiva de integrao da novidade e de orientao das

    comunidades da conduta.

    As representaes sociais, de acordo com Jodelet (1984, p.88-89)

    (...) so fenmenos complexos cujos contedos devem ser

    cuidadosamente destrinchados e referidos aos diferentes aspectos do

    objeto representado de modo a poder depreender os mltiplos processos

    que concorrem para a sua elaborao e consolidao como sistemas de

    pensamento que sustentam as prticas sociais.

  • 22

    Jodelet (2001, p.26) aponta que

    as representaes sociais devem ser estudadas articulando-se elementos

    afetivos, mentais, sociais, integrando a cognio, a linguagem e a

    comunicao s relaes sociais que afetam as representaes sociais e

    realidade material, social e ideativa sobre a qual elas intervm.

    Essa demanda reflete a complexidade deste conceito e implica e est implicada na

    articulao dos objetivos especficos de pesquisa, s tcnicas de coleta e anlise de dados

    e ao referencial terico-metodolgico de cada pesquisa.

    Segundo Doise (1984) as pesquisas em representaes sociais constituem uma

    forma de articulao de quatro nveis de pesquisa: I) Processos intraindividuais (focam a

    maneira como os indivduos organizam suas experincias do social); II) Processos

    interindividuais ou intersituacionais (grande enfoque s pesquisas com dinmica de

    grupo); III) O nvel situacional (pesquisas sobre as diferenas em determinado campo

    social); e IV) O nvel ideolgico (anlises sobre as vises de mundo de determinados

    grupos). a partir das articulaes especficas de nveis e de opes de tcnicas e

    mtodos que se elaboram os objetivos e caminhos metodolgicos especficos a cada

    estudo.

    Este estudo, uma vez que buscou construir um entendimento da forma como os

    estudantes pretos e pardos de uma universidade federal representam a influncia do

    quesito racial no ingresso e permanncia de negros na educao e no mercado de

    trabalho, enfocando-se, portanto, as diferenas etnicorraciais e socioeconmicas, as

    construes intra e interindividuais acerca das questes citadas, bem como as construes

    grupais, procurou articular os quatro nveis mencionados acima.

  • 23

    Os estudos realizados a partir do referencial terico-metodolgico das

    representaes sociais contam com uma vasta diversidade de procedimentos utilizados

    para a coleta e anlise dos dados. Essa diversidade revela-se de acordo com a dupla face

    das representaes sociais como produto e como processo, o que implica na utilizao de

    mltiplos mtodos e de comparao intermtodo, bem como de anlises em diferentes

    nveis (SPINK, 1994).

    As representaes sociais, enfocadas como produto, emergem como pensamento

    constitudo ou campo estruturado. Nessa perspectiva a pesquisa tem o intuito de

    depreender os elementos constitutivos das representaes: as informaes, imagens

    opinies, crenas, etc. Entretanto, sendo estas sempre referidas s condies de sua

    produo, a anlise dimensional do contedo tende a ser complementada pela

    investigao dos fatores determinantes da estruturao do campo de representao em

    questo. consenso entre os pesquisadores da rea que as representaes sociais,

    enquanto produto social, tm que ser sempre referidas s condies de sua produo.

    Uma vez produto social, as representaes sociais s podem ser analisadas tendo como

    contraponto o contexto social em que emergem, circulam e se transformam-se (SPINK,

    1993). Dessa forma, buscamos coletar dados acerca das condies socioeconmicas dos

    participantes, bem como informaes sobre os programas de aes afirmativas, tendo-se

    em vista elucidar o contexto de elaborao das representaes que objetivamos apreender.

    Para atingir os objetivos propostos, elegemos como campo emprico a UFSCar,

    onde desde 2008 est sendo implantando um Programa de Aes Afirmativas (PAA).

    Os participantes foram estudantes pretos e pardos, ingressantes a partir de 2008,

    na UFSCar, via reserva de vagas ou no, de cursos de todas as reas (Cincias Humanas,

    Cincias Exatas e Cincias Biolgicas e da Sade), localizados no campus da cidade de

    So Carlos.

  • 24

    Consideraes ticas

    Em nosso estudo buscamos abordar questes essenciais ao entendimento da

    situao do negro na sociedade brasileira, buscando contribuir para o fornecimento de

    polticas coerentes realidade da populao negra. Uma vez que os indicadores sociais

    apontam para a difcil realidade dos indivduos negros em relao educao e mercado

    de trabalho, consideramos necessrio saber diretamente junto aos estudantes negros suas

    representaes acerca da relao estabelecida entre negritude e trabalho e, negritude e

    educao.

    A literatura relata as dificuldades encontradas pelo sujeito negro para o manejo de

    questes de cunho etnicorracial, culminando em prejuzos no estabelecimento de uma

    identidade etnicorracial positivamente afirmada. Para o negro, pensar sobre ser negro

    causa sofrimento, devido ao contexto negativo estabelecido para a populao negra em

    nossa sociedade e descrito pelos indicadores sociais. Nessa medida, as representaes

    sociais do negro encontram-se, sob dadas circunstncias, foradas a no expressar a sua

    identidade real. BELGRAVE et al., (2002) relatam quo difcil para o negro se assumir

    como vtima de preconceito. Assumir-se como vtima de racismo e discriminao pode

    significar deparar-se com a realidade de ser identificado com um sujeito cujo imaginrio

    construdo socialmente bastante pejorativo. No entanto, existem sujeitos que so

    capazes de manejar assuntos de cunho etnicorracial de forma positiva, estabelecendo

    relaes adaptativas tanto com pessoas de seu mesmo grupo de origem, quanto com

    pessoas pertencentes ao grupo dominante, apresentando posicionamento crtico acerca das

    questes raciais, bem como acompanhamento e reflexes consistentes sobre a realidade

    da populao negra (NASCIMENTO e SILVA, 2008).

  • 25

    Esse contexto de experincias e angstias dos negros acompanhado de

    repercusses sobre a sua identidade etnicorracial e representaes. Portanto, diante da

    possibilidade de uma diversidade de identidades e representaes sobre ser negro e suas

    implicaes, relatar determinados posicionamentos e/ou crenas, poderia gerar conflitos

    subjetivos.

    No delineamento de nossa pesquisa e considerando a ocasio das entrevistas,

    pudemos perceber momentos de confronto de opinies e at mesmo manifestaes de

    desagrado e sofrimento por pensar e relatar situaes de discriminao e preconceito.

    Minha postura foi sempre de acolhimento e de respeito. Buscamos sempre respeitar os

    limites de cada participante, o que era garantido pelo fluxo de informaes e de trocas que

    era amplamente determinado pelos relatos dos entrevistados.

    Ademais, buscamos sempre enfatizar formas propositivas para o manejo das

    situaes que eram verbalizadas.

    O projeto desta pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comit de tica em

    Pesquisa com Seres Humanos da universidade (UFSCar), sob o protocolo CAAE

    0054.135.000-09.

    Foram utilizados os seguintes meios para obter as informaes:

    1. Pesquisa bibliogrfica e documental

    Realizada com o objetivo de conhecer a poltica governamental de aes

    afirmativas, especialmente o PAA da UFSCar. Foram levantados estudos e documentos

    sobre os programas de aes afirmativas de quatro universidades: a Uneb (Universidade

    Estadual da Bahia), a UnB (Universidade de Braslia), a Uerj (Universidade Estadual do

    Rio de Janeiro) e a UFSCar (Universidade Federal de So Carlos). As anlises foram

    pautadas pelo intuito de caracterizar os programas, tendo como questes norteadoras: tipo

  • 26

    de ao afirmativa; pblico contemplado; critrio para identificao do candidato negro; e

    porcentagens de reserva de vagas e/ou cotas aplicadas na ao afirmativa.

    2. Entrevistas individuais semi-estruturadas

    Foram realizadas entrevistas individuais com 13 estudantes, de diferentes cursos

    de todas as reas. Esse instrumento foi utilizado com o intuito de apreender as

    representaes sociais em relao formao escolar e ingresso e/ou permanncia no

    mercado de trabalho.

    Tratando-se de entrevistas semi-estruturadas, havia um roteiro prvio (Apndice

    I), que elencava questes a serem feitas aos participantes, contudo, no limitava as

    entrevistas a essas questes. De acordo com as informaes fornecidas, bem como com o

    ritmo de resposta de cada participante, outras questes foram introduzidas, antecipadas ou

    suprimidas, visando a obteno das informaes.

    3. Entrevistas coletivas

    Tanto as entrevistas individuais quanto as coletivas foram orientadas pela

    discusso dos seguintes tpicos (conforme Apndices I e II):

    - Negro e Ensino Superior;

    - Ao Afirmativa no Ensino Superior;

    - Negro no Mercado de Trabalho;

    - Ao Afirmativa no Mercado de Trabalho; e

    - Discriminao/Preconceito na Educao e no Mercado de Trabalho.

    As entrevistas coletivas foram utilizadas como ferramenta para testar a validade

    do discurso produzido durante as entrevistas individuais, diante das diferentes opinies e

    representaes no coletivo. Dessas entrevistas participaram sete estudantes, em dois

    grupos (trs e quatro participantes). Nem todos os participantes das entrevistas individuais

  • 27

    estiverem presentes nas entrevistas coletivas, devido dificuldade de compatibilizar os

    horrios disponveis entre os prprios participantes.

    A pesquisadora apresentava cada um dos tpicos acima descritos aos participantes

    e solicitava que eles falassem aquilo que lhes viesse cabea.

    4. Entrevistas com o programa de aes afirmativas

    As entrevistas com integrantes do Programa de Aes Afirmativas (PAA) foram

    pautadas em compreender o contexto das aes afirmativas na UFSCar, buscando

    entender o processo de implantao do Programa, as representaes sobre negritude,

    educao e trabalho que estavam presentes e foram pensadas durante a elaborao do

    Programa e, a trajetria traada nos anos iniciais de vigncia. Foram entrevistados trs

    integrantes da comisso de elaborao do programa, sendo que dois destes, no momento

    das entrevistas, eram parte do Grupo Gestor de Aes Afirmativas; e tambm uma

    assessora do PAA.

    Alm disso, visando construir um panorama sobre os programas sintetizados no

    captulo 3 (Uneb, Uerj e UnB) fizemos consultas s respectivas universidades, bem como

    s pessoas representantes ou que pudessem melhor fornecer dados acerca de seus

    programas de aes afirmativas. No caso da Uerj, consultamos a atual coordenadora do

    Deapi (Departamento de Desenvolvimento Acadmico e Projetos de Inovao), que

    responsvel pelos assuntos relativos s aes afirmativas naquela universidade. Na Uneb,

    consultamos um membro do Cepaia (Centro de Estudos dos Povos Afro-ndio-

    Americanos). No caso da UnB, consultamos um representante da CCN (Centro de

    Convivncia Negra) que integra a Adac (Assessoria de Diversidade e Apoio aos Cotistas),

    responsvel pelas questes relativas s cotas dentro da UnB. Essas consultas foram

    realizadas via telefone, bem como via e-mail. Atravs delas, buscamos confirmar e/ou

  • 28

    complementar as informaes que obtivemos nos documentos e referncias bibliogrficas

    analisados.

    Todas as entrevistas foram gravadas com o auxlio de um gravador digital,

    visando posterior transcrio das informaes.

    Construindo os dados: Formas de anlise

    O primeiro contato com os documentos se constituiu no que Bardin (1977)

    chama de "leitura flutuante". a leitura em que surgem hipteses ou questes guia, em

    funo de teorias conhecidas. Aps esta leitura, comeamos a formular as categorias, a

    partir dos eixos temticos deste estudo. Os temas que se repetiam com muita freqncia

    eram recortados do texto em unidades comparveis de categorizao para posterior

    anlise temtica.

    A explorao do material foi a etapa que demandou mais trabalho. Este foi o

    momento em que os dados brutos foram agregados em unidades, que permitiram uma

    descrio das caractersticas pertinentes do contedo.

    De acordo com Bardin (1977), a relao entre os dados obtidos e a

    fundamentao terica o que confere sentido interpretao. No caso dessa pesquisa,

    tomou-se a orientao da Teoria das Representaes Sociais, para a coleta e anlise dos

    dados. Alm disso, a problemtica racial e das aes afirmativas, bem como o contexto

    de realizao da pesquisa (caractersticas dos estudantes, bem como a identificao

    tnico-racial da pesquisadora) foram levados em considerao no momento de extrair e

    interpretar os resultados, pois todas essas questes poderiam, de alguma forma,

    interferir nos enunciados e discursos dos participantes.

    Todas as entrevistas individuais e coletivas foram transcritas integralmente,

    organizadas e analisadas luz de todo o contexto, bem como buscando confrontar as

  • 29

    diferentes fontes de dados. A anlise foi pautada nos eixos temticos deste estudo,

    buscando explicitar as formas de representar as relaes implicadas. Tais eixos foram:

    Raa e racismo; Negro e Ensino Superior; Reserva de vagas no Ensino Superior; Negro e

    Mercado de Trabalho; Reserva de vagas no Mercado de Trabalho. Dentro destes eixos

    temticos, encontramos as formas de representaes que configuraram as categorias,

    conforme apresentado no Captulo 4.

    As informaes resultantes das diferentes fontes de pesquisa foram trianguladas,

    com vistas a explicitar os consensos e dissensos no contedo reportado pelo discurso dos

    entrevistados.

    Caminhos e descaminhos da pesquisa

    O trabalho de campo teve incio pela elaborao dos roteiros de pesquisa para

    entrevista individual com os estudantes, para entrevistas coletivas e para as entrevistas

    com a comisso de elaborao do programa de aes afirmativas da UFSCar.

    Encontramos uma srie de dificuldades para o contato com os estudantes, o que

    bastante emblemtico da dinmica das relaes raciais dentro do campus, sobretudo a

    partir da implantao da reserva de vagas para negros.

    Partimos da ideia de que para melhor entender a representao dos estudantes

    importante conhecer as suas caractersticas sociais e econmicas. Na tentativa de obter

    informaes que nos levassem a traar essas caractersticas, primeiramente, entramos

    em contato com a Coordenaria do Vestibular da UFSCar (Covest), rgo que obtm e

    processa todas as informaes sobre os alunos ingressantes. Solicitamos as seguintes

    informaes: nome, curso de ingresso, cor ou raa, e-mail e telefone. Contudo, tais

    informaes no foram fornecidas, alegando a Covest o carter sigiloso delas. A

    alternativa, ento, encontrada foi o dilogo direto com o Grupo Gestor de Aes

  • 30

    Afirmativas da UFSCar, que nos forneceu uma listagem contendo o nome, curso e a

    cor/raa dos estudantes negros ingressantes via PAA no ano de 2008. Os estudantes

    negros no ingressantes pelo Programa no puderam ser contabilizados por falta de

    informaes. Com estas informaes foi possvel percorrer todos os departamentos de

    cursos do campus de So Carlos, em busca de formas de contato com os estudantes.

    Com este procedimento conseguimos os e-mails de parte dos alunos, que passou a ser

    nossa via de comunicao com os participantes.

    Para a conduo do trabalho proposto era necessrio obter dados

    socioeconmicos referentes aos estudantes, de modo que submetemos o projeto de

    pesquisa Covest-UFSCar, com o intuito de acessar ao dados dos estudantes negros,

    coletados pela Coordenadoria no vestibular de 2008. Nossa solicitao, contudo, foi

    rejeitada alegando-se que esta pesquisa poderia divulgar dados sigilosos e, portanto, a

    universidade no poderia com ela colaborar. Assim, elaboramos um questionrio

    socioeconmico para captao dos dados necessrios. Contudo, a baixa quantidade de

    questionrios respondidos nos impedem de analisar os dados oriundos dessa fonte, de

    modo que estes questionrios encontram-se disponveis para possivelmente serem

    complementados e analisados em estudos futuros.

    Foi enviado, por meio eletrnico, um termo de consentimento livre e esclarecido

    (TCLE Apndice III), e um questionrio contendo informaes sobre a identificao

    dos participantes; experincias e trajetrias educacionais e de trabalho; caracterizao,

    composio e renda familiar; indicadores de condies de vida. Este procedimento foi

    repetido respeitando-se o intervalo de uma semana. Alm disso, deixamos nas

    secretarias das coordenaes de curso cpias do TCLE e do questionrio

    socioeconmico, anexados a uma listagem que designava os alunos que deveriam

    preencher esses documentos.

  • 31

    Outra estratgia utilizada foi o planto no restaurante universitrio (RU), o que

    possibilitou abordar tambm os estudantes negros no ingressantes pelo Programa.

    Com esses procedimentos obtivemos 22 questionrios preenchidos, sendo 20 de

    estudantes negros ingressantes pelo PAA, e dois de estudantes no ingressantes por

    reserva de vagas. Os alunos no-reservistas foram identificados por meio de indicao

    dos participantes reservistas2. Contudo, diante da pequena quantidade de questionrios

    respondidos, optamos por apresentar a anlise de algumas caractersticas da trajetria

    educacional e de trabalho, pautando-nos unicamente nas informaes obtidas durante as

    entrevistas.

    Inicialmente, pretendia-se trabalhar com os alunos ingressantes no primeiro ano de

    implantao do PAA (2008), sendo os sujeitos da pesquisa os estudantes universitrios

    negros ingressantes pelo sistema de reserva de vagas ou no. Contudo, as dificuldades

    para estabelecer contato com os participantes nos levaram a expandir a amostra para

    estudantes negros tambm ingressantes em 2009 e 2010.

    Os caminhos e descaminhos da pesquisa ilustram de maneira bastante

    emblemtica a dinmica racial vigente e praticada em nossa sociedade e que ressoa de

    forma clssica dentro da universidade. Os entraves para obteno de informaes; os

    silenciamentos nos e-mails e nas entrevistas; as negativas, as dificuldades de verbalizar,

    as esquivas (questes observadas no trnsito dos participantes pelos procedimentos da

    pesquisa) etc., informam a maneira como o racismo est ainda vvido em nosso meio,

    sobretudo em um espao onde h disputas bvias de lugares e privilgios, como bem o

    ambiente acadmico, e engendra os posicionamentos e representaes. O trajeto

    2 Utiliza-se neste trabalho o termo reservista para designar aqueles que ingressaram pelo sistema de

    reserva de vagas, de modo que os no reservistas so, portanto, aqueles que no optaram pelo ingresso

    por reserva de vagas.

  • 32

    percorrido por esta pesquisa explicita, em si, as barreiras do racismo... Sempre postas

    brasileira, nas sutilezas do cotidiano.

    O texto aqui apresentado est organizado em quatro captulos. O primeiro trata da

    Condio social vivenciada pela populao negra, sobretudo, quanto ao acesso e

    permanncia no ensino superior e no mercado de trabalho, por meio da anlise dos

    indicadores sociais. Neste captulo, fizemos o resgate de dois estudos centrais para a

    discusso da qualidade de vida da populao negra a partir da perspectiva da anlise de

    indicadores sociais, o estudo de Henriques (2001) que percorre o perodo de 1995 a 1999

    e o relatrio de Paixo e Carvano (2008), cuja anlise cobre o perodo de 1999 a 2006.

    Portanto, ambos os estudos fornecem um panorama da situao vivenciada pelos negros

    durante 15 anos, englobando o importante perodo em que se inicia a implantao dos

    programas de aes afirmativas nas universidades (meados de 2000). O captulo dois

    apresenta a teoria das representaes sociais, os mecanismos de formao e atuao das

    representaes, bem como sua relao com a elaborao das questes raciais e da

    identidade etnicorracial. O terceiro captulo apresenta as polticas de aes afirmativas,

    cujo campo de atuao a proposta de alterao das condies de vida da populao

    negra, bem como na ressignificao da negritude e de suas relaes. Por fim, o quarto

    captulo visa dissertar sobre as representaes sociais dos estudantes universitrios negros

    da UFSCar, acerca das relaes entre negritude, educao e trabalho e, nesse nterim,

    sobre o programa de aes afirmativas. Este captulo traz tambm o perfil

    socioeconmico dos alunos negros da UFSCar entrevistados.

    Os caminhos traados pela pesquisa so aqui discutidos para fornecer um breve

    panorama das estratgias de pesquisa utilizados visando-se o alcance dos dados que so

    trazidos e problematizados ao longo dos captulos.

  • 33

    CAPTULO 1

    DESIGUALDADES RACIAIS: EDUCAO E TRABALHO

    Neste captulo nos debruamos sobre a discusso que tem sido realizada sobre as

    posies assumidas pela populao negra na educao e no mercado de trabalho,

    pontuando o papel exercido pela discriminao racial nas restries verificadas aos

    negros. O enfoque dado no se limita abordagem estatstica ou quantitativa, j

    amplamente desenvolvida por vrios estudos (SOARES, 2000; HENRIQUES, 2001;

    CAMPANTE, CRESPO e LEITE, 2004; e PAIXO e CARVANO, 2008; entre outros),

    que buscaram demonstrar e explicitar as desigualdades sociais existentes entre negros e

    brancos. Nosso intuito compreender como as construes racistas estabeleceram um

    acordo simblico em que os negros so marginalizados, condicionando sua existncia

    ao silenciamento e no-existncia enquanto sujeito, em um no-lugar social. Desta

    forma, fazemos o resgate de dados estatsticos como recursos para ilustrar as

    construes sobre as quais discorremos, bem como as consequncias dessas para a vida

    de negros e negras. O resgate feito a partir de dois estudos centrais acerca dos

    indicadores sociais para as condies de vida da populao negra, o estudo de

    Henriques (2001) e o relatrio de Paixo e Carvano (2008).

    Este captulo estrutura-se, portanto, sobre trs eixos principais:

    primeiramente, procuramos pontuar educao e trabalho como instncias sociais de

    evidente importncia e centrais para a discusso das desigualdades raciais, enfatizando o

    percurso de negros e negras; em seguida, abordamos o histrico de apartao social dos

    negros, criado a partir do sistema escravocrata e amplamente cultivado no perodo ps-

    abolio; e, por ltimo, resgatamos os indicadores sociais em relao s atuais

    condies de vida da populao negra, com recorte especial aos nmeros da educao e

    do mercado de trabalho. Trabalho e educao so categorias que designam formas pelas

  • 34

    quais os sujeitos constroem e vivenciam relaes sociais. So, portanto, questes

    intimamente relacionadas constituio identitria e determinantes para a constituio

    dos sujeitos como cidados e como indivduos. Fala-se aqui em cidadania, pois

    educao e trabalho possibilitam a abertura a instncias importantes para o bem-estar

    social e de desfrute de direitos, tais como: o letramento e a escrita, o conhecimento de

    conceitos essenciais de distintos corpos de disciplinas, o suprimento dos gastos por

    meio do recebimento salarial, melhores condies de vida. Falamos tambm na

    constituio enquanto sujeito, pois so espaos nos quais se constroi relaes sociais e

    que atuam na dinmica da elaborao de representaes e identidades.

    As instituies sociais tendem a manter a organizao social vigente e praticada

    pelos grupos sociais que dominam seus meios de articulao e, portanto, sobre os

    fundamentos das diversas hierarquias. Esse entendimento deve ser tomado com

    particularidade para pensar as relaes que se estabelecem entre educao e mercado de

    trabalho, instncias cujos moldes empregados para estruturar e programar dinmicas e

    lgicas podem trazer consigo questes que deem margem ao estabelecimento de

    (des)privilgios de pessoas e/ou grupos sociais (HASENBALG, 1991).

    No obstante, educao e trabalho relacionam-se num ciclo de mtua implicao

    que pode ser determinante quanto capacidade de fazer um sujeito gozar de cidadania

    plena. Cabe, assim, tratar algumas caractersticas desses campos para compreender a sua

    atuao na manuteno das desigualdades raciais.

    Apesar das diversas possibilidades e modelos de educao, damos nfase ao

    papel da escola nas relaes educacionais e raciais no Brasil, por considerarmos a

    centralidade do processo de escolarizao na educao de indivduos e grupos sociais. A

    escola vista (...) como uma instituio em que aprendemos e compartilhamos no s

    contedos e saberes escolares, mas, tambm, valores, crenas e hbitos, assim como

  • 35

    preconceitos raciais, de gnero, de classe e de idade. por meio da educao que a

    cultura introjeta os sistemas de representaes e as lgicas construdas na vida

    cotidiana, acumulados (e tambm transformados) por geraes e geraes (GOMES,

    2003, p. 170).

    De acordo com Rosemberg (1991, p. 32),

    (...) a educao pode despertar entre certos segmentos negros reaes

    ambguas: de um lado, a percepo recorrente de sua importncia no

    processo de mobilidade social seja na perspectiva da ascenso, seja na

    perspectiva da manuteno do status atingido; de outro, a ameaa que a

    escola veicula enquanto instituio branca, por ser local onde ocorrem

    as primeiras e decisivas tenses interraciais sofridas pelas crianas

    negras.

    Alguns estudos tm relatado os mecanismos de discriminao de crianas negras

    nas escolas pblicas brasileiras (ROSEMBERG, 1991; 1998). A escola infantil pblica

    tida como uma alternativa para acolher as crianas cujos pais trabalham. No entanto,

    Rosemberg (1991) verificou que esta alternativa engloba questes sensveis quanto

    sua efetividade. Nelas, os recursos humanos e materiais so escassos, alm de se

    verificar menores jornadas dirias. Este quadro implica no fornecimento de uma

    educao de qualidade inferior para essas crianas.

    As escolas infantis pblicas so destinadas s crianas oriundas de famlias com

    poucos recursos financeiros. Nesse sentido, Rosemberg (1998) relatou a prevalncia de

    crianas negras nessas instituies, havendo, portanto, um paralelo entre ser negro e ter

    condies financeiras limitadas para investir numa escola particular para seus filhos.

  • 36

    preciso salientar a relao existente em nossa sociedade entre a qualidade da

    educao recebida e as oportunidades de se vislumbrar melhores inseres no mundo do

    trabalho e de mobilidade social. Rosemberg (1991) apia-se em dados sobre a

    distribuio de crianas brancas e negras nas escolas pblicas e particulares, bem como

    na frequncia de escolas pblicas e particulares em bairros pobres e em bairros mais

    nobres para enfatizar uma das graves sequelas da adoo, no Brasil e em vrios pases

    do Terceiro Mundo, de modelos baratos de educao infantil (creches e pr-escola)

    destinados s crianas pobres: a segregao racial.

    A reduo do desempenho escolar inferior de crianas negras s dificuldades

    socioeconmicas algo equivocado. Rosemberg (1998) informou que, em pesquisa

    sobre o Estado de So Paulo, encontrou menor proporo de atraso escolar entre alunos

    brancos que entre alunos negros, mesmo quando se comparam entre si

    crianas/adolescentes provenientes de famlias com mesmo nvel de renda familiar e

    com mesmo ndice de participao no mercado de trabalho. Ou seja, de acordo com a

    autora, sempre os alunos negros evidenciam atraso escolar mais significativo do que

    entre alunos brancos, mesmo quando se comparam entre si alunos que s estudam ou os

    que trabalham e estudam ao mesmo tempo.

    Tentando compreender o menor aproveitamento escolar de crianas negras,

    Rosemberg (idem) levanta a hiptese de segregao racial no Brasil que, por nunca ter

    adquirido os contornos legais e formais do sistema Jim Crow norte-americano ou do

    apartheid sul-africano, isto , por se apresentar de forma mais fluida, de mais difcil

    captao. No caso brasileiro, a segregao espacial articular-se-ia segregao

    socioeconmica observada nas sociedades latino-americanas. A autora sugere assim,

    que no seria a condio econmica que nivelaria a populao negra, mas o

    pertencimento negro, na ptica do branco, nivelaria as oportunidades de acesso e

  • 37

    permanncia no sistema educacional, tratando a populao negra, indistintamente, como

    pobre.

    De acordo com Hasenbalg (1995, p. 364),

    (...) na complexa interrelao famlia, educao e mercado de trabalho

    que se define o lugar que as pessoas iro ocupar na hierarquia social.

    a que para a maioria dos negros e mestios se estruturam as suas

    condies de excluso e subordinao. Para este autor, a insero e

    participao dos grupos raciais no mercado de trabalho tm papel

    determinante na alocao dos indivduos na hierarquia de classes e

    estratos sociais.

    1.1. Trabalho e desigualdades

    O trabalho central no apenas para aqueles que esto formalmente inseridos no

    mundo de trabalho, com vnculos estveis, boas ocupaes e salrios razoveis, mas

    tambm para aqueles que se encontram em ocupaes informais, subempregos,

    ocupaes instveis, baixas remuneraes, etc. A precariedade da insero no trabalho,

    contudo, gera impactos negativos nas formas como o indivduo representa o mundo, se

    representa no mundo e atua sobre ele. Em outras palavras, a precarizao das relaes

    de trabalho atua negativamente sobre a identidade do trabalhador.

    s distintas formas de insero no trabalho soma-se a instabilidade resultante

    das reestruturaes ocorridas no mundo do trabalho. Essas reestruturaes inviabilizam

    a realizao de um projeto de vida no trabalho, uma vez que trabalhar j no

    necessariamente, sinnimo de segurana para planejar o futuro. Como diz Sennet (1999)

    s existe o tempo presente. Os planos de carreira, as ascenses devido performance

    como trabalhador, j no so projetveis. As novas formas de organizao do trabalho

  • 38

    destituram os marcos referencias para os trabalhadores, levando-os ao sentimento de

    estar deriva.

    Este novo modo de organizao das relaes de trabalho altera os quesitos que

    devem ser considerados no processo de seleo de trabalhadores. Tem-se a expectativa

    de que o trabalhador incorpore as caractersticas da organizao em questo. Assim,

    mltiplas capacidades e flexibilidade so questes que ocupam uma posio central na

    discusso sobre quem est apto a ingressar no mercado de trabalho.

    O acesso ao mercado de trabalho formal realizado por meio de uma srie de

    requisitos que, em tese, determinariam a capacidade de um sujeito assumir determinado

    cargo. Este discurso, que antes se concentrava na qualificao, hoje, gira em torno das

    competncias. necessrio ter certas competncias para que seja possvel ocupar tal

    cargo. No entanto, as competncias caracterizam um conceito fugaz e de difcil

    definio. algo que surge para atender as demandas do prprio mercado de trabalho.

    Fala-se em uma capacidade transitria e contingencial, adquirida por meio de

    experincia, ou seja, da prtica no mundo do trabalho.

    Contudo, o discurso das competncias, relativo a quem est apto para ocupar os

    postos de trabalho, sobretudo os melhores cargos e remuneraes, por lanar mo de

    certas medidas subjetivas e contingenciais, pode favorecer prticas discriminatrias no

    acesso ao mercado de trabalho. Afinal,

    Ao mesmo tempo, os processos de recrutamento para posies mais

    valorizadas no mercado de trabalho e nos espaos sociais operam com

    caractersticas dos candidatos que reforam e legitimam a diviso

    hierrquica do trabalho, a imagem da empresa e do prprio posto de

    trabalho (DISOC/IPEA, 2008, p.6).

  • 39

    neste sentido que Bento (2002) trabalha a ideia do pacto narcsico, ou seja, um

    acordo silenciado entre os empregadores do Brasil, caracterizado pela preferncia por

    trabalhadores brancos, devido crena numa superioridade de capacidades e

    caractersticas psicolgicas e comportamentais de brancos em relao a negros. Ao

    chegar numa instncia final no processo de seleo de candidatos no mercado de

    trabalho, diante do esgotamento de todas as questes objetivas, a escolha se d por

    questes basicamente subjetivas e, neste critrio, entram quesitos de cor e raa.

    Essa conjuntura social, intimamente atrelada adeso da ideologia eurocntrica,

    responsvel por uma srie de barreiras colocadas ao negro no acesso ao mercado de

    trabalho. Isso caracteriza a situao de excluso de negros e negras no mercado de

    trabalho, pois alm das prprias barreiras postas para o acesso, conta-se ainda com o

    no reconhecimento daqueles que praticam esta discriminao como agentes

    discriminadores, caracterstica intrnseca ao racismo brasileira.

    A anlise dos indicadores sociais refora essa afirmao: desde a abolio da

    escravatura perpetuam-se as desigualdades raciais em relao aos negros e negras no

    Brasil. As perspectivas, ento, possveis para os negros, apontam para as margens

    sociais: moradias precrias; pouco acesso ao saneamento bsico; baixo acesso

    educao; insero precoce no mercado de trabalho e condies instveis de

    permanncia; etc.

    Frantz Fanon, em seu livro Pele negra, mscaras brancas (1980), procura

    elucidar os caminhos e descaminhos que perpassam as trilhas traadas pelo indivduo

    negro, na saga de encontrar e ocupar seu lugar de sujeito negro, positivamente afirmado.

    No livro, Fanon descreve os mecanismos que assolam a vivncia do negro numa

    sociedade racista. Esta obra possui carter de pioneirismo na discusso das relaes

    etnicorraciais, das problemticas vivenciadas pelos negros, sobretudo, sob a perspectiva

  • 40

    psicolgica. Neste livro, Fanon afirma que a anlise que pretende empreender

    psicolgica, contudo, evidente que a verdadeira desalienao do negro implica uma

    tomada de conscincia das realidades econmicas e sociais. Assim, de acordo com o

    autor, s h complexo de inferioridade depois de um duplo processo: inicialmente

    econmico; em seguida, pela interiorizao ou pela epidermizao dessa inferioridade.

    Para o negro, ascender socialmente no significa apenas ter maior poder aquisitivo.

    Significa, sobretudo, ter acesso a algo que ele persegue a todo instante, mas que escapa

    sua natureza: a branquitude aquilo que d ao ser o direito de existir em-si-e-para-si.

    1.2. Trabalho escravo, abolio e ps-abolio

    Os negros chegaram ao Brasil sob as condies de um sistema em que a fora de

    trabalho era apropriada pelos senhores. A conjuntura poltica e social, no entanto,

    desenvolveu-se, de tal forma, a culminar nas discusses acerca do fim da escravido.

    O trabalho escravo, ncleo do sistema produtivo do Brasil Colnia, foi sendo

    gradativamente substitudo pelo trabalho livre no decorrer dos anos de 1800. A

    substituio, no entanto, deu-se de uma forma particularmente excludente. Mecanismos

    legais, como a Lei de Terras, de 1850, a Lei da Abolio, de 1888, e mesmo o processo

    de estmulo imigrao, forjaram um cenrio no qual os negros foram relegados

    condio de fora de trabalho excedente, sobrevivendo, em sua maioria, dos pequenos

    servios ou da agricultura de subsistncia (THEODORO, 2008).

    A participao dos escravos nos empreendimentos industriais, assim como nos

    servios urbanos, fora majoritria, pelo menos at 1850. J na segunda metade do

    sculo, a mo de obra de origem estrangeira, sobretudo portuguesa, ganhou importncia.

    Com efeito, o ano de 1850 marcou o fim do trfico de escravos, ao menos legalmente, o

    que fez com que o preo do escravizado aumentasse substancialmente. Alm disso, os

  • 41

    setores mais dinmicos ligados produo do caf sobretudo na regio do Vale do

    Paraba passaram, com o fim do trfico a absorver os escravos de outras regies do

    pas.

    Portanto, as grandes reas urbanas brasileiras, no incio do sculo XIX,

    apresentavam como base laboral o trabalho escravo e, em menor escala, o trabalho de

    livres e libertos, assim como dos migrantes. Os cativos, ao menos at a primeira metade

    do sculo, constituam a base da atividade econmica, produzindo bens e servios,

    trabalhando na limpeza e conservao das vias pblicas, no transporte, entre outros.

    Explorao do tipo compulsrio, de um lado, e massa marginalizada de

    outro, constituem amplo processo decorrente do empreendimento

    colonial-escravocrata, que iria se reproduzir at pocas tardias do sculo

    XIX. Sistema duplamente excludente, pois ao mesmo tempo cria a

    senzala e gera um crescente nmero de livres e libertos, que se

    transformam nos desclassificados da sociedade (KOWARICK, 1994, p.

    58).

    De forma geral, a maior parte da populao livre e liberta concentrava-se na rea

    rural, inserida no setor de subsistncia. Essa situao explica, de acordo com o referido

    autor, porque a substituio da mo de obra no se realizou internamente com a fora de

    trabalho nacional disponvel, ou seja, por que se utilizou o artifcio da imigrao para

    ocupar os postos de trabalho que tinham sido liberados pelos escravos.

    Contudo, preciso admitir-se a estranheza da ideia de que fosse mais fcil

    incentivar a vinda de europeus para trabalharem nas lavouras brasileiras, que recrutar a

    mo de obra negra j presente no meio rural brasileiro.

  • 42

    Efetivamente, o racismo, que nasce no Brasil associado escravido,

    consolida-se aps a abolio, com base nas teses de inferioridade

    biolgica dos negros, e difunde-se no pas como matriz para a

    interpretao do desenvolvimento nacional. As interpretaes racistas,

    largamente adotadas pela sociedade nacional, vigoraram at os anos 30

    do sculo XX e estiveram presentes na base da formulao de polticas

    pblicas que contriburam efetivamente para o aprofundamento das

    desigualdades no pas (THEODORO, 2008, p.24)

    A substituio da mo de obra escrava pela dos imigrantes comeou, assim, mais

    de 30 anos antes da abolio. De acordo com os dados disponveis, entre 1864 e 1887, o

    nmero de escravos no pas diminuiu de 1,7 milhes pra 720 mil, enquanto entre 1872 e

    1881, 218 mil imigrantes entraram no Brasil (KOWARICK, 1994).

    O perfil da ocupao da fora de trabalho assume, ento, nova

    conformao. Enquanto a mo-de-obra imigrante chega e ocupa-se cada

    vez mais da produo de caf, uma crescente populao de escravos,

    ento liberados, vai se juntar ao contingente de homens livres e libertos,

    a maioria dos quais se dedicava seja economia de subsistncia, seja a

    alguns ramos ligados aos pequenos servios urbanos. No houve a

    valorizao dos antigos escravos ou mesmo dos livres e libertos com

    alguma qualificao. O nascimento do mercado de trabalho ou, dito de

    outra forma, a ascenso do trabalho livre como base da economia foi

    acompanhada pela entrada crescente de uma populao trabalhadora no

    setor de subsistncia e em atividades mal remuneradas. Esse processo

    vai dar origem ao que algumas dcadas mais tarde, viria a ser

    denominado setor informal, no Brasil (THEODORO, 2008, p.25).

  • 43

    Portanto, conforme aponta Kowarick (1994), nas vsperas da abolio, enquanto

    os escravos dos cafezais fugiam das fazendas e amontoavam-se nas favelas, os

    imigrantes faziam o percurso inverso, dirigindo-se para as plantaes. Dessa forma, a

    abolio passou a ser sinnimo da excluso dos ex-escravos das regies e setores mais

    dinmicos da economia.

    No final do sculo XIX observa-se o incio de um processo de aglomerao da

    pobreza e da excluso nas cidades, resultante da chegada em profuso de contingentes

    de ex-escravos. Logo, nesta poca, j proliferaram nas maiores cidades as favelas.

    Aps 1880, demandas tanto internas quanto internacionais fariam com que a

    potencialidade do regime de trabalho escravo se mostrasse demasiadamente estreita para

    realizar uma acumulao que, cada vez mais, necessitava de um mercado de trabalho

    volumoso e fluido (KOWARICK, 1994).

    Em 1900, a populao total do Brasil era de 16,5 milhes de habitantes, dos

    quais 1,1 milho eram imigrantes, que se concentravam nos setores de atividade mais

    dinmicos da economia. Nos anos seguintes, at 1920, assistiu-se intensificao da

    industrializao e do crescimento urbano, sem maiores alteraes no perfil da mo de

    obra absorvida.

    Mais que uma demanda posta para o empresrio capitalista, que culminou numa

    deciso, em nvel nacional, a substituio do trabalho escravo pelo trabalho livre foi

    tomada como parte de um processo que visava promover uma reestruturao social e

    econmica. a nascente do discurso, to arraigado no Brasil, sobre o desenvolvimento,

    que passou a ser a palavra de ordem. E parte desse discurso estava centrada no projeto

    de branqueamento da nao.

  • 44

    Portanto, conforme j explanado, fatores importantes influram nesse processo:

    o nascimento e consolidao de uma viso eurocntrica e modernizante, na qual, para o

    negro, no havia ou havia pouco espao de existncia.

    De fato, durante os ltimos anos de escravido, ganhavam fora no pas as ideias

    que privilegiavam a mo de obra de origem europia em detrimento dos trabalhadores

    nacionais. De um lado, os nativos livres e libertos eram considerados como inaptos ao

    trabalho regular. De outro, no que tange aos antigos escravos, as fugas organizadas nas

    fazendas eram cada vez mais frequentes, o que contribuiu tanto para promover a idia

    de que a mo de obra negra era indolente e inapta para a relao assalariada, bem como

    para reforar a ideologia do branqueamento.

    A abolio da escravatura liberta o negro das amarras fsicas e oficiais, porm o

    faz escravo de um sistema perverso, que elabora variadas formas para garantir a sua

    excluso. Pois, como a literatura tem constantemente reafirmado, as possibilidades de

    incluso socioeconmica dessa populao eram mnimas. O processo foi marcado tanto

    por uma ausncia de polticas pblicas em favor dos ex-escravos e da populao negra

    livre, como pela implantao de iniciativas que contriburam para que o horizonte de

    integrao dos ex-escravos ficasse restrito s posies subalternas da sociedade.

    preciso ressaltar que tal processo encontrava-se largamente amparado pela

    leitura predominante da questo racial no Brasil, segundo a qual, a questo do negro

    referia-se no apenas sua substituio como mo de obra nos setores dinmicos da

    economia, mas sua prpria diluio como grupo racial no contexto nacional.

    Como aponta Theodoro (2008), entre os fatores que impediram a emergncia de

    um sistema econmico capaz de absorver a mo de obra livre est a promulgao da Lei

    n 601/1850, a chamada Lei de Terras. Operando uma regulao conservadora da

    estrutura fundiria no Brasil, a Lei de Terras foi promulgada no mesmo ano em que se

  • 45

    determinou a proibio do trfico de escravos (Lei Euzbio de Queiroz), marco da

    transio para o trabalho livre. nesse contexto que a nova medida legal comeou a

    vigorar, restringindo, drasticamente, as possibilidades de acesso terra na transio do

    regime escravista para o trabalho livre.

    Logo, impedindo o acesso terra para os trabalhadores pobres, os ex-escravos e

    seus descendentes, a lei de 1850 liquidou o sistema de posses fundirias que foi

    estabelecido em 1822 e que poderia transformar o setor de subsistncia em regime de

    propriedade familiar. Ademais acabou com a possibilidade futura de transformao de

    mo de obra escrava liberta em novo contingente de posseiros fundirios, o que inclui

    ainda a possibilidade de criao de quilombos legais ou estabelecimentos familiares

    legalizados (DELGADO, 2005, p.29).

    De acordo com Theodoro (2008, p. 35),

    (...) em 1890, o governo republicano recm institudo publicou o

    Decreto n 528, de 20 de Junho, onde se institui a livre entrada de

    migrantes nos portos brasileiros, (...) excetuados os indgenas da sia e

    da frica, que somente mediante autorizao do Congresso Nacional

    podero ser admitidos, de acordo com as condies estipuladas. Este

    mesmo decreto garantia incentivos a todos os fazendeiros que

    quisessem instalar imigrantes europeus em terras.

    Como resultado do fluxo oficialmente promovido de imigrantes europeus, at a

    dcada de 1920, (...) fechou-se um espao socioeconmico que de outra maneira teria

    estado disponvel para os no-brancos e o resto da fora de trabalho nacional

    concentrada fora e dentro do Sudeste (HASENBALG, 1979, p.161).

  • 46

    O perodo que se seguiu abolio foi caracterizado pela acelerao do

    desenvolvimento econmico e pela abertura de novas oportunidades de ascenso social.

    Essas oportunidades, contudo, no estavam disponveis para ex-escravos e, portanto,

    no foram aproveitadas pela populao negra. A crescente imigrao europia, realizada

    com o apoio de fundos pblicos, alterou significativamente o perfil da mo de obra

    tanto rural como urbana.

    Efetivamente, os preconceitos vigentes difundiam a crena da menor capacidade

    do trabalhador negro face ao branco, ampliando a expectativa favorvel que cercava a

    entrada de trabalhadores europeus. O branco era apontado como o trabalhador por

    excelncia. Ao mesmo tempo, as dificuldades de insero do ex-escravo no mercado de

    trabalho foram interpretadas como prova de sua incapacidade e sinnimo de sua

    inferioridade racial.

    Portanto, o ps-abolio foi marcado por oportunidades desiguais a brancos e

    negros, o que, acrescido dos diferentes pontos de partida devidos ao perodo de

    escravido, resultou no quadro de aguda desigualdade racial que verificado em nossa

    sociedade hoje. Nessa medida, percebe-se que apesar de no ter sido decretado

    oficialmente o exlio do ex-escravo ou um regime de separao racial, o negro passou a

    vivenciar a experincia do no-lugar social como estigma em sua prpria pele.

    1.3. Indicadores sociais para a populao negra: estado de mal-estar social

    Percebe-se, atualmente, a despeito do histrico traado na seo anterior, a

    constante tentativa de emudecimento sobre a questo racial no Brasil partindo-se, de um

    lado, do mito da democracia racial e, de outro, das estratgias empreendidas pelo grupo

    dominante para garantir a permanncia das regalias que lhe so garantidas pelo quadro

    de desigualdades raciais vigente. Nesta medida, os indicadores sociais fornecem um

  • 47

    panorama pertinente para explicitar a existncia do racismo institucional, dificultando o

    acesso da maioria de negros e negras a importantes direitos sociais.

    Assim, os nmeros expressos pelos indicadores sociais traduzem os perfis

    daqueles que esto s margens do mercado de trabalho, em ocupaes instveis e de

    baixa remunerao. perceptvel a existncia de um padro de trabalhador: o homem

    branco. Aqueles que no se encaixam neste perfil, mulheres e negros, sofrem as

    consequncias disso ganham menores salrios, tm ocupaes instveis e subalternas.

    Esses so os resqucios das polticas adotadas durante o perodo em que vigia a

    escravido no Brasil e, sobretudo no ps-abolio, conforme buscamos demonstrar

    anteriormente.

    Nessa seo, discorremos sobre dois importantes estudos para a discusso das

    relaes raciais: um relatrio organizado no mbito do Ipea por Ricardo Henriques

    (2001); e o relatrio organizado por Marcelo Paixo e Luiz Carvano (2008).

    Concentramos nossa anlise, particularmente, nos dados que descrevem