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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS
CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
NCLEO DE ESTUDOS TRABALHO, SOCIEDADE E COMUNIDADE
REPRESENTAES SOCIAIS DE ESTUDANTES NEGROS:
UNIVERSIDADE E TRABALHO
Elisabete Figueroa dos Santos
Rosemeire Aparecida Scopinho (Orientadora)
So Carlos
2011
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS
CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
NCLEO DE ESTUDOS TRABALHO, SOCIEDADE E COMUNIDADE
REPRESENTAES SOCIAIS DE ESTUDANTES NEGROS:
UNIVERSIDADE E TRABALHO
Elisabete Figueroa dos Santos
Rosemeire Aparecida Scopinho (Orientadora)
So Carlos
2011
Texto apresentado ao Programa de Ps-
Graduao em Psicologia da
Universidade Federal de So Carlos
como parte dos requisitos para
obteno do ttulo de mestre.
-
Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar
S237rs
Santos, Elisabete Figueroa dos. Representaes sociais de estudantes negros: Universidade e trabalho / Elisabete Figueroa dos Santos. -- So Carlos : UFSCar, 2011. 180 f. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2011. 1. Negros. 2. Representaes sociais. 3. Universidade. 4. Aes afirmativas. 5. Trabalho. I. Ttulo. CDD: 305.8 (20a)
-
i
REPRESENTAES SOCIAIS DE ESTUDANTES NEGROS: UNIVERSIDADE E
TRABALHO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia como parte dos
requisitos para obteno do ttulo de mestre em Psicologia.
Exame de Defesa
15/03/2011
Banca Examinadora
_______________________________________
Profa. Dra. Rosemeire Aparecida Scopinho
Orientadora
_______________________________________
Prof. Dr. Alessandro Oliveira dos Santos
USP
_______________________________________
Prof. Dr. Almir Del Prette
UFSCar
-
ii
Aos guerreiros e militantes, passados e contemporneos.
queles que ousaram ser o ponto fora da curva.
Aos que apontaram a regra tendenciosa.
Aos que propuseram a apreciao de outros horizontes.
Aos que firmaram o terreno de possibilidades e direitos.
Aos estudantes negros desta e de todas as outras universidades.
Ao meu filho. Semente frtil. Ddiva minha.
-
iii
AGRADECIMENTOS
Agradeo, primeiramente, ao meu santo guerreiro, fiel nas demandas, por alguns
chamado So Jorge, por outros chamado Ogum. Grata pela fora nas batalhas, cuja
vitria toma forma nas pginas que se seguem.
Agradecimentos infindveis minha famlia. Meu pai, minha me e minhas
irms. Pelo auxlio e acolhimento certo. Pelos momentos em que precisei de socorro e
este me foi certeiro.
Agradeo aos ancestrais que abriram caminhos e amaciaram a passagem.
Ao meu filho. Pela fonte de inspirao. Pelo carinho. Por me arrancar risos
desavisados. Suavizar o percurso e faz-lo mais feliz. Por dar sentido ao meu universo.
minha orientadora, pelo trabalho conjunto. Pela orientao, de fato. Pela
labuta e parceria.
Aos professores Maria Chalfin e Alessandro Santos, pelas orientaes e
indagaes. Por apontarem terrenos movedios e indicarem possveis sadas.
Ao professor Almir Del Prette, por acompanhar meu caminho de mestranda.
Pelas frteis provocaes.
professora Petronilha e ao Grupo Gestor de Aes Afirmativas da
Universidade Federal de So Carlos, por possibilitarem a realizao dessa pesquisa.
Ao Coletivo de Vivncias e Estudos Africanos MALICK, pelo fortalecimento.
Pelas trocas e parcerias. Pela militncia.
Aos meus amigos, cujos nomes no ouso citar pra no correr o risco de ser pega
pelas possveis falhas de memria. A todos que partilharam o caminho, dividiram
angstias e solues. Pelos abraos, aconchegos e palavras. Pelas manifestaes e pelos
silenciamentos. Por compartilharem sentidos para alm da amizade. Irmandade.
Famlia.
-
iv
FAPESP, pelo incentivo. Desde o financeiro, concedendo-me a bolsa de
mestrado, at as avaliaes e pareceres.
-
SANTOS, Elisabete Figueroa dos. (2011) Representaes sociais de estudantes negros: Universidade e
trabalho. Dissertao de Mestrado, Programa de Ps-Graduao em Psicologia. Universidade Federal de
So Carlos SP. 180p.
RESUMO
Os indicadores sociais acerca da educao e das relaes de trabalho no Brasil apontam
que as desigualdades so ainda mais crticas quando a anlise feita sob a tica
etnicorracial, evidenciando uma situao de visvel desvantagem para a populao
negra. Contudo, a literatura tem revelado ser a educao tradicionalmente um dos
principais instrumentos capazes de promover a ascenso social e econmica do negro.
Dessa forma, vrias instituies educacionais de nvel superior tm implantado o
sistema de reserva de vagas, fruto das reivindicaes do movimento negro brasileiro.
Logo, essa pesquisa buscou compreender as relaes entre negritude, educao e
trabalho, a partir da perspectiva de estudantes universitrios negros. O objetivo deste
estudo foi estudar as representaes sociais que possuem os estudantes negros da
UFSCar sobre a entrada na universidade pblica por meio do sistema de reserva de
vagas, o curso e a profisso escolhida e a insero e/ou permanncia no mercado de
trabalho. Especificamente, pretendeu-se analisar o Programa de Aes Afirmativas
(PAA) da UFSCar, suas propostas, polticas, estratgias; conhecer as caractersticas
scio-econmicas dos estudantes, especialmente aquelas que dizem respeito trajetria
escolar e de trabalho; conhecer as representaes sociais dos estudantes em relao
formao e o ingresso no mercado de trabalho; e, por fim, discutir o impacto das
relaes estabelecidas no contexto universitrio sobre a identidade etnicorracial dos
estudantes. Foram realizadas entrevistas individuais com 13 estudantes pretos e pardos,
ingressantes na UFSCar a partir de 2008, via sistema de reserva de vagas ou no. Alm
disso, foram feitas entrevistas coletivas com parte dos estudantes entrevistados
individualmente. Pde-se verificar as relaes existentes entre o senso de
pertencimento, a identidade etnicorracial e as representaes que so engendradas sobre
as relaes raciais e aes afirmativas. Percebemos, portanto, alunos negros que
identificam-se e afirmam-se como negros, so participantes de grupos afirmativos,
engajados nas discusses raciais e, identificam-se tambm como reservistas ingressantes
pelas vagas destinadas a alunos negros. E, h aqueles para os quais raa e etnicidade no
so elementos salientes em sua identidade, no partilham de grupos afirmativos e
demonstram dificuldades de assumirem-se como ingressantes pela reserva de vagas para
negros. As representaes acerca da implantao de reserva de vagas para negros so
tomadas como algo positivo, devido crena de que elas possibilitam a entrada do
negro na universidade; possibilitam a entrada dos desfavorecidos; e diminuem a
desigualdade. A apreenso dessa poltica como algo negativo deve-se representao de
que instituir tais medidas: assumir a incapacidade do negro; traz complicaes
constitucionais; desvia o foco do real problema que a educao base, gera preconceito;
cria a desigualdade; e por fim, conta com a dificuldade de se definir quem negro no
Brasil. As mesmas relaes e formas de representaes foram verificadas acerca da
reserva de vagas para negros no mercado de trabalho. Percebemos que, aqueles
estudantes que apresentam uma identidade etnicorracial afirmada representavam as
relaes entre ser negro, ensino superior e mercado de trabalho de forma mais crtica e
propositiva. Assim, estudantes cuja identidade etnicorracial no se apresenta de maneira
to saliente, representavam essas relaes de forma a negar a existncia de racismo,
buscando minimizar a prpria afetao num quadro de discriminao racial, o que est
atrelado contrariedade acerca das aes afirmativas no ensino superior e no mercado
de trabalho. Palavras-chave: Negros; Representaes Sociais; Universidade; Trabalho; Aes Afirmativas.
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vi
ABSTRACT Social indicators regarding education and employment relations in Brazil indicate that
the inequalities are even more critical when the analysis is done from the ethnic-racial
perspective, showing a situation of obvious disadvantage for the black population.
However, the literature has shown that education is traditionally one of the main tools
to promote social and economic rise of blacks. Thus, various higher education
institutions have implemented the system of quotas, what results of the demands of the
Brazilian black movement. Therefore, this research sought to understand the
relationship between blackness, education and work, from the perspective of Black
college students. The objective was to study the social representations that have
UFSCar`s Black students on entering the public university system through reserve
places, the course and chosen profession, and the inclusion and / or stay in the labor
market. Specifically, we sought to analyze the Affirmative Action Program (AAP) of
UFSCar, its proposals, policies and strategies; knowing the the socio-economic students
features, especially those related to school life and work; the social representations
of students about their training and entering the labor market; and finally, discuss the
impact of the relations established in the university context on the ethnic-racial
students. Individual interviews were conducted with 13 black students, who entered at
UFSCar from 2008, through the system of quotas or not. In addition, group interviews
were done with the students individually interviewed. It was possible to examine the
relationships between the sense of belonging, ethnic-racial identity and representations
that are engendered on race relations and affirmative action. We realize, therefore,
Black students who identify themselves and claim themselves as Black, participants of
assertive groups, engaged in racial discussions, and also identify themselves as
reservists entering the vacancies for Black students. And there are those for whom race
and ethnicity are not salient elements in their identity, do not share affirmative groups,
and experience difficulties to assume themselves as freshmen at the reservation of seats
for blacks. The representations about the implementation of quotas for Blacks are taken
as something positive, because of the belief that they allow the entry of Blacks in the
university; allow the entrance of the disadvantaged people; and reduce inequality. The
seizure of this policy as a negative due to the representation of that institute such
measures: assume the inability of Blacks; brings constitutional complications; shifts the
focus from the real problem is education based, breeds prejudice, creates inequality,
and finally, regard to the difficulty of defining who is Black in Brazil. The same
relationships and forms of representations were found regarding the quotas for blacks in
the labor market. We realized that those students who have an affirmed ethnic-racial
identity represented the relations between being Black, higher education and the labor
market in a more critical and proactive way. Thus, students whose ethnic-racial identity
is not presented in a manner so prominent, represented these relationships in order to
deny the existence of racism and in order to minimize the very affectation in a context
of racial discrimination, which is pegged to the contrariety of affirmative action in
about higher education and in the labor market.
Keywords: Blacks; Social Representations; University; Work;
Affirmative Actions.
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vii
LISTA DE FIGURAS
QUADRO 1: MATERIAIS UTILIZADOS PARA AS ANLISES DOS PROGRAMAS .............................. 100
QUADRO 2: CARACTERSTICAS DOS PROGRAMAS DE AO AFIRMATIVA DA UERJ, UNEB, UNB E UFSCAR ................................................................................................................................ 128
TABELA 1: DISTRIBUIO DO NMERO DE ESTUDANTES NEGROS ENTREVISTADOS DE ACORDO COM A CIDADE DE ORIGEM DOS PARTICIPANTES .................................................................... 132
TABELA 2: DISTRIBUIO DO NMERO DE ESTUDANTES NEGROS ENTREVISTADOS DE ACORDO COM OS CURSOS E REAS DE INGRESSO ................................................................................. 133
TABELA 3: FREQUENCIA DAS ATIVIDADES PROFISSIONAIS RELATADAS PELOS ESTUDANTES ENTREVISTADOS ................................................................................................................... 134
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viii
LISTA DE SIGLAS
AA Ao Afirmativa
Adac Assessoria de Diversidade e Apoio aos Cotistas
Alerj Assemblia Legislativa do Rio de Janeiro
Baie Bolsa de Apoio a Estudantes e Incentivo Extenso
Baip Bolsa de Apoio a Estudantes e Incentivo Pesquisa
Cadara Comisso Assessora de Diversidade para Assuntos Relacionados aos
Afrodescentes
Caep Centro de Atendimento e Estudos Psicolgicos
CCN Centro de Convivncia Negra
Ceam Centro de Estudos Avanados Multidisciplinares
Cepaia Centro de Estudos dos Povos Afro-ndio-Americanos
Cepe Conselho de Ensino, Pesquisa e Extenso
Cespe Conselho de Seleo e Promoo de Evento
CNEEI Comisso Nacional de Educao Escolar Indgena
Consu Conselho Universitrio
Covest Coordenadoria para o Vestibular
Deapi Departamento de Desenvolvimento Acadmico e Projetos de Inovao
Dieese Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos
Disoc Diretoria de Estudos Sociais
Fies Programa para o Financiamento Estudantil
Geraju Grupo de Estudos de Gnero, Raa e Juventude
HUB Hospital Universitrio de Braslia
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
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ix
Ife Instituio Federal de Ensino
Ipea Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada
Laeser Laboratrio de Anlises Econmicas, Histricas, Sociais e Estatsticas das
Relaes Raciais
Mec Ministrio da Educao
Neab Ncleo de Estudos Afro-brasileiros
PAA Programa de Ao Afirmativa
PDI Plano de Desenvolvimento Institucional
Pea Populao Economicamente Ativa
Pibic Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica
PNAD Pesquisa Nacional de Anlise de Domiclio
PPNE Programa de Apoio a Portadores de Necessidades Especiais
Proiniciar Programa de Iniciao Acadmica
Promisaes Projeto Milton Santos de Acesso ao Ensino Superior
Prouni Programa Universidade para Todos
RU Restaurante Universitrio
Sade Sistema de Acompanhamento de Escolas Mantidas pelo Poder Pblico
Seb Secretaria de Educao Bsica
Secad Secretaria de Educao, Alfabetizao e Diversidade
Seppir Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial
Sesu Secretaria de Educao Superior
Setec Secretaria de Estado de Trabalho, Emprego e Cidadania
Sou Servio de Orientao ao Universitrio
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Uerj Universidade Estadual do Rio de Janeiro
-
x
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
UFSCar Universidade Federal de So Carlos
UnB Universidade de Braslia
Uneb Universidade Estadual da Bahia
Unesp Universidade Estadual Paulista
-
xi
Sumrio DEDICATRIA ......................................................................................................................................
AGRADECIMENTOS ...........................................................................................................................
RESUMO . ............................................................................................................................................ V
ABSTRACT . ........................................................................................................................................ V
LISTA DE FIGURAS . ......................................................................................................................... V
LISTA DE SIGLAS . ........................................................................................................................... V
SUMRIO .......................................................................................................................................... X
INTRODUO . ................................................................................................................................. 13
REFERENCIAL TERICO-METODOLGICO: A TEORIA DAS REPRESENTAES SOCIAIS E O ESTUDO DAS RELAES ETNICORRACIAIS ................................................................................................................. 21
CAPTULO 1: DESIGUALDADES RACIAIS: EDUCAO E TRABALHO ............................................ 33
1.1 TRABALHO E DESIGUALDADES ........................................................................................................ 37
1.2 TRABALHO ESCRAVO, ABOLIO E PS-ABOLIO .............................................................................. 40
1.3 INDICADORES SOCIAIS PARA A POPULAO NEGRA: ESTADO DE MAL ESTAR SOCIAL .................................. 46
1.4 INDICADORES SOCIAIS E EDUCAO SUPERIOR .................................................................................. 48
1.5 INDICADORES SOCIAIS E MERCADO DE TRABALHO .............................................................................. 50
1.6 TRABALHO DE JOVENS E CRIANAS .................................................................................................. 56
1.7 DADOS ATUAIS ............................................................................................................................ 59
CAPTULO 2: IDENTIDADE, REPRESENTAES SOCIAIS E RAA ................................................. 62
2.1 A TEORIA DAS REPRESENTAES SOCIAIS .......................................................................................... 62
2.2 AS REPRESENTAES SOCIAIS ......................................................................................................... 64
2.3 CONCEITO E DINMICA DAS REPRESENTAES SOCIAIS ....................................................................... 68
2.4 REPRESENTAES SOCIAIS, IDENTIDADE E RACISMO ......................................................................... 71
2.5 REPRESENTAES SOCIAIS E AES AFIRMATIVAS .............................................................................. 80
CAPTULO 3: AES AFIRMATIVAS: RESDICUTINDO A PARTICIPAO DA POPULAO NEGRA NA EDUCAO E NO MERCADO DE TRABALHO ........................................................................ 87
3.1 AO AFIRMATIVA E POLTICA EDUCACIONAL ................................................................................... 92
3.2 OS PROGRAMAS DE AES AFIRMATIVAS ......................................................................................... 97
3.3 PROJETOS REVISITADOS............................................................................................................... 100
3.3.1 UERJ ................................................................................................................................ 100
3.3.2 UNEB ............................................................................................................................... 104
3.3.3 UNB ................................................................................................................................. 109
3.3.4 UFSCAR ............................................................................................................................ 113
-
xii
CAPTULO 4: AS REPRESENTAES SOCIAIS DE ESTUDANTES NEGROS:DAS DISPARIDADES SOCIOECONMICAS IDENTIDADE ETNICORRACIAL ............................................................. 131
4.1 PERFIL SOCIOECONMICO E EDUCACIONAL DOS ESTUDANTES ENTREVISTADOS .................................... 131
4.2 RAA E PRIVILGIOS SOCIAIS EM PAUTA: A PERSPECTIVA DE ESTUDANTES NEGROS ................................. 136
4.3 RACISMO: ADMISSO E NEGAO ................................................................................................. 140
4.4 NEGRO E ENSINO SUPERIOR ......................................................................................................... 146
4.5 AES AFIRMATIVAS NO ENSINO SUPERIOR: A RESERVA DE VAGAS PARA NEGROS ................................. 151
4.6 O NEGRO E O MUNDO DO TRABALHO ............................................................................................ 156
CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................................... 159
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................................. 169
APNDICE ............................................................................................................................. 176
-
13
INTRODUO
Educao e trabalho so processos que se apresentam mutuamente implicados
quando se trata de discutir a questo da juventude. A educao, aqui colocada como um
sinnimo de escolarizao, ganha espao no cotidiano dos indivduos cada vez mais cedo.
A preocupao em garantir uma educao de qualidade partilhada tanto pelos setores
pblicos responsveis, quanto pelo restante da sociedade. Esta questo ganha maior
visibilidade quando o debate tange o acesso ao ensino superior. O contingente de jovens
que durante boa parte de seus dias estudam para obter sucesso nos exames de avaliao
para acesso ao ensino superior tambm crescente, o que pode ser verificado pelas
relaes candidato/vaga ano a ano, nos vestibulares das universidades pblicas. No
entanto, a porcentagem de pessoas que consegue assegurar suas vagas no ensino superior
pblico nfima, em comparao ao contingente daqueles que pleiteiam vagas nos
exames vestibulares.
A questo do acesso ao mercado de trabalho tambm crtica, especialmente para
os jovens. Atualmente, cursar o ensino superior j no garantia de acesso ao trabalho.
Este quesito que antes era tratado como diferencial, hoje entendido como pr-requisito.
Alm disso, os fatores que influenciam diretamente na probabilidade de um indivduo
preencher uma vaga, sobretudo devido s triagens que so realizadas para selecionar
aquelas pessoas que melhor preenchem o perfil de profissionais desejado, so em
grande parte subjetivos. Os critrios utilizados para traar esse perfil so de domnio dos
responsveis dos setores de recursos humanos por recrutar e selecionar profissionais.
Uma vez que esses perfis so delineados por pessoas, de acordo com as tendncias ditadas
pelos grupos sociais dominantes, eles so passveis de sofrerem inmeras interferncias
de crenas, conceitos e preconceitos. Portanto, possvel notar a existncia de uma
problemtica quanto ao acesso educao e ao trabalho em nossa sociedade.
-
14
Os indicadores sociais acerca da educao no Brasil apontam para a questo de
que a problemtica acima explicitada torna-se ainda mais crtica quando a anlise feita
sob a tica etnicorracial. Ricardo Henriques (2001), em seu estudo sobre os indicadores
sociais da populao negra, demonstra a situao de reiterada desigualdade a que esta
populao est submetida na sociedade brasileira. Analisando a escolaridade, o autor
verificou que, em 1999, 8% dos jovens negros entre 15 e 25 anos eram analfabetos,
enquanto apenas 3% dos jovens brancos nesta faixa etria encontravam-se nesta condio.
Dos jovens com idade entre sete e 13 anos que no frequentavam a escola, 5% eram
negros, enquanto apenas 2% eram brancos. Entre os jovens brancos de 18 a 23 anos, 63%
no completaram o ensino mdio, enquanto o valor correspondente para os jovens negros
igual a 84%. Em 1999, 89% dos jovens brancos com idade entre 18 e 25 anos no
haviam ingressado na universidade. No entanto, 98% dos jovens negros, nesta mesma
faixa etria, no haviam entrado na universidade, evidenciando a quase inexistncia de
negros nos campi universitrios brasileiros neste perodo.
No que tange ao trabalho, Henriques verificou que, de 1992 a 1999, a proporo
de crianas brancas entre cinco e nove anos de idade que trabalhavam caiu 45%, enquanto
para os negros a queda correspondeu a apenas 24%. Em 1999, 20% das crianas negras e
13% das crianas brancas entre 10 e 14 anos participavam no mercado de trabalho.
A condio de discriminao a que os negros esto expostos na nossa sociedade
melhor percebida quando analisamos a dificuldade que eles enfrentam para ter acesso aos
direitos sociais bsicos, como educao e trabalho. Visando esclarecer os dados referentes
situao do negro no mercado de trabalho, um relatrio apresentado em 1999 intitulado
O mapa do negro no mercado de trabalho brasileiro (DIEESE, 1999), que contemplou
seis regies metropolitanas So Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Distrito Federal,
Recife e Salvador traz importantes informaes que demonstraram uma situao de
-
15
reiterada desigualdade para os trabalhadores negros, de ambos os sexos. Segundo o Mapa,
a coerncia dos resultados em nvel nacional demonstra, sem qualquer sombra de dvida,
que a discriminao racial um fato presente cotidianamente, interferindo em todos os
espaos do mercado de trabalho brasileiro. As informaes permitem ainda, concluir que
a discriminao racial sobrepe-se discriminao por sexo e juntas constituem o cenrio
de aguda dificuldade em que vivem as mulheres negras, atingidas por ambas. A pesquisa
concluiu que as crianas e jovens negros comeam a trabalhar mais cedo
comparativamente aos brancos e, alm de ingressarem mais cedo, permanecem por mais
tempo no trabalho. Na regio metropolitana de Salvador, cerca de 53% dos jovens negros
dedicavam-se apenas aos estudos, enquanto entre os brancos este nmero correspondia a
72,3%.
As mulheres, as pessoas com mais de 40 anos e os chefes de famlia (homens e
mulheres negros (as)) tambm participavam mais intensamente do mercado de trabalho
que os brancos, mas em condio mais precria. Por exemplo, a jornada de trabalho dos
negros era duas horas superior dos brancos. No que tange remunerao, a
desvantagem dos negros tambm era evidente: na maioria das capitais pesquisadas, o
rendimento mdio do trabalhador branco era mais que o dobro do rendimento mdio do
negro. Os dados relativos ao desemprego revelavam-se maiores para os negros em todas
as regies pesquisadas. Alm disso, a durao do perodo de desemprego tambm maior
para os negros em comparao aos brancos.
Bento (2000) aponta que poder-se-ia pensar que tais dados refletem as diferenas
de escolaridade entre brancos e negros. Todavia, a autora argumenta que, mesmo quando
se leva esses fatores em considerao, a situao continua desfavorvel aos negros: em
todas as capitais pesquisadas, as diferenas de rendimento entre negros e brancos
-
16
aumentam medida que aumenta a escolaridade. Ou seja, o retorno do investimento feito
em educao menor para os negros.
O histrico de excluso social dos negros brasileiros remonta o perodo de
colonizao do Brasil. Com a escravizao dos negros trazidos da frica, estabeleceu-se
um sistema de relaes sociais baseadas no quesito racial (LIMA, 2006).
A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro
como raa, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padres de
interao com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posio inferior. Nas
sociedades de classes multirraciais e racistas como o Brasil, a raa exerce funes
simblicas valorativas e estratificadoras. A categoria racial possibilita a distribuio dos
indivduos em diferentes posies na estrutura de classes, conforme pertenam ou
estejam mais prximos dos padres raciais de classe/raa dominante (FERNANDES,
1978).
O Brasil o pas da segregao racial no declarada. Todos os indicadores
sociais ilustram nmeros carregados com a cor do racismo. A partir desta afirmao,
Domingues (2005, p. 165) prope a seguinte questo: Como reverter esse quadro de
injustia e desigualdades raciais? concluindo que, do ponto de vista conjuntural, a sada
que se vislumbra a defesa de um amplo programa de aes afirmativas. E segue
explanando:
Entre as polticas de aes afirmativas que vm sendo experimentadas no
Brasil, a mais polmica o programa de cotas para negros. Na verdade, as
cotas constituem mecanismos extremos de ao afirmativa: a reserva de
um percentual determinado de vagas para um grupo especfico da
populao (negros, mulheres, gays, entre outros), principalmente no
-
17
acesso universidade, ao mercado de trabalho e representao poltica
(p.166).
Diante da atual adeso aos programas de aes afirmativas que se tem verificado
no Brasil, Domingues (op. cit.) salienta que este um momento singular na histria do
pas, no qual amplos setores da sociedade civil no s se conscientizam, cada vez mais,
do problema do racismo, como se debruam nas possveis solues. Pela primeira vez, na
histria do Brasil, acena-se romper com a barreira do silncio que paira sobre o racismo.
Tendo que se livrar da concepo tradicionalista que o definia econmica, poltica
e socialmente como inferior e submisso, possuidor de uma outra concepo negativa de si
mesmo e sendo orientado pela ideologia do branqueamento, o negro acaba por tomar o
branco como modelo de identidade ao estruturar e levar a cabo a sua estratgia de
ascenso social.
Estudos e pesquisas sobre a situao do negro brasileiro tm revelado ser a
educao, tradicionalmente, um dos principais instrumentos capazes de promover a
ascenso social e econmica na busca de uma maior igualdade com o grupo dominante
(TEIXEIRA, 2003).
O fato de os jovens que ingressam na universidade confrontarem-se com uma srie
de desafios pessoais, interpessoais, familiares e institucionais tem merecido uma anlise
mais atenta por parte das autoridades e servios acadmicos com maiores
responsabilidades e apoio, conforme ressaltam Almeida, Soares e Ferreira (2002). No
entanto, os estudantes negros, alm de todos os desafios explicitados anteriormente, tm
que enfrentar prticas racistas, deparando-se com diversas experincias discriminatrias
(NASCIMENTO e SILVA, 2008). Enquanto os brancos encontram-se numa posio de
no ter que refletir acerca de sua branquitude, os negros so chamados a responder por ela
constantemente (BENTO e CARONE, 2002).
-
18
Visando investigar a ocorrncia de situaes de racismo e discriminao
experienciadas por estudantes negros, Nascimento e Silva (2008) realizaram um estudo
com os estudantes negros brasileiros e africanos da Universidade Federal de So Carlos
(UFSCar). As autoras verificaram que os estudantes entrevistados no apenas relatavam a
percepo de racismo e discriminao como tambm o sofrimento de tal vivncia. A
maioria dos entrevistados citou as dificuldades encontradas para manter a autoestima
positiva e uma identidade etnicorracial positivamente afirmada em mbito universitrio.
Teixeira (2003), em seu estudo com alunos e professores universitrios verificou
que, mesmo quando o negro est numa posio de incontestvel superioridade
socioeconmica, ainda assim ele se percebe alvo de preconceitos e discriminao. Muitas
vezes, os universitrios negros j passaram pelo mercado de trabalho ao entrar na
universidade, ou mesmo exercem atividades laborais concomitantes graduao.
Geralmente, esta experincia anterior no mercado de trabalho, realizada de forma mais
precoce que a mdia da populao, que abre a possibilidade de prosseguir nos estudos e
gerar novas expectativas com relao ao ingresso num curso universitrio, o que a
trajetria de vida com base no histrico familiar no propiciaria.
A anlise da literatura que aborda a relao entre trabalho, educao e relaes
etnicorraciais demonstra que o negro brasileiro encontra dificuldades para construir uma
identidade que o integre ao seu grupo de origem e sociedade mais ampla, salientando a
a situao de desigualdade que se faz presente em nossa sociedade.
Em estudo anterior abordei a questo das problemticas implicadas no
desenvolvimento da identidade etnicorracial dos negros e verifiquei que a afirmao e o
esclarecimento acerca da prpria identidade etnicorracial fornecem ao negro as
ferramentas necessrias para o adequado enfrentamento das situaes que lhe possam
surgir, sobretudo num contexto constitudo, majoritariamente, por pessoas brancas, como
-
19
se verifica para o crculo da classe mdia bem como para os campi brasileiros (SANTOS,
2007).
Assim, como afirmou Teixeira (2003) se, por um lado, o acesso dos negros ao
ensino superior constitui a mais importante ferramenta para sua ascenso social; por
outro, o contexto acadmico, majoritariamente branco, ainda no se encontra munido das
ferramentas necessrias para possibilitar e contribuir para a integrao e adaptao do
negro, de modo que lhe seja possvel atuar neste ambiente e, nos seus futuros locais de
atuao profissional, de maneira assertiva e positiva em relao sua identidade
etnicorracial.
Como afirmou Souza (1990) o negro, na nsia de ascender socialmente, ao aderir
ao processo de embranquecimento, na realidade, engaja-se, num processo de
autoextino. Para o negro, pensar sobre a identidade negra redunda sempre em
sofrimento psicolgico, devido s representaes pejorativas difundidas socialmente e
internalizadas pelo prprio negro. Nesta medida, as funes simblicas do negro
encontram-se, sob dadas circunstncias, foradas a no representar sua identidade real.
Os sujeitos representam o mundo que os cerca e representam-se neste mesmo
mundo. So tecidas formas de apreenso e interpretao das informaes que circundam e
edificam o contexto no qual os grupos sociais inserem-se, transitam e constituem-se
sujeitos. Portanto, a realidade social constitutiva de identidades por meio das
representaes sociais. As disparidades sociais verificadas entre brancos e negros
influenciam o modo como o negro posiciona-se diante do mundo que o cerca e
influenciam na maneira como ele se relaciona como seu grupo etnicorracial e com os
demais grupos sociais e a forma como enfrentam o preconceito racial.
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20
Assim, importante investigar as relaes que se estabelecem entre negritude,
trabalho e educao e a Teoria das Representaes Sociais pode fornecer as ferramentas
adequadas para o entendimento deste objeto.
A partir da dcada de noventa, em meio ao processo de discusso e implantao
da poltica de reserva de vagas nas universidades pblicas, proliferaram os estudos sobre
as relaes etnicorraciais que analisam a situao socioeconmica dos negros na
sociedade brasileira. No entanto, so escassos os estudos que se dedicam a compreender o
que pensam os estudantes negros os sujeitos das aes afirmativas sobre as condies
de sua insero na universidade como forma de preparao para a entrada e/ou
permanncia no mundo do trabalho, questo esta que consideramos ser objeto de estudo
privilegiado para a Psicologia Social do Trabalho.
Diante da problemtica explicitada, esta pesquisa teve por objetivo estudar as
representaes e expectativas que possuem os estudantes negros da UFSCar sobre a
entrada na universidade pblica por meio do sistema de reserva de vagas1, o curso e a
profisso escolhida e a insero e/ou permanncia no mercado de trabalho. Uma vez que
se pretende estudar a relao negritude, educao e trabalho, preciso considerar a
centralidade do Programa de Aes Afirmativas implantado na UFSCar em 2008, dado
que as reservas de vagas so polticas implantadas visando a reverso dos indicadores
sociais que apontam para o quadro de dificuldades vivenciadas pelos negros no Brasil,
sobretudo, na educao e no mercado de trabalho.
Especificamente, pretendeu-se:
- analisar o Programa de Aes Afirmativas (PAA) da UFSCar, seus objetivos e
estratgias de implantao;
1 Na UFSCar foi implantado o sistema de reserva de vagas para estudantes oriundos da rede pblica e
negros. Este sistema prev a reserva de vaga em carter preferencial para este perfil de estudantes, porm,
no em carter de exclusividade, como se verifica no sistema de cotas.
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21
- conhecer as caractersticas socioeconmicas dos estudantes, especialmente aquelas que
dizem respeito trajetria escolar e de trabalho;
- conhecer as representaes e expectativas dos estudantes em relao formao e ao
ingresso no mercado de trabalho;
- discutir o impacto das relaes estabelecidas no contexto universitrio sobre a
identidade etnicorracial dos estudantes.
Referencial terico-metodolgico: A teoria das representaes sociais e o estudo das
relaes etnicorraciais
As representaes sociais so pensadas, discutidas e pesquisadas por algumas
reas do conhecimento. A Psicologia Social, ao valer-se da Teoria das Representaes
Sociais, busca entender as marcas sociais do cognitivo e as condies cognitivas do
funcionamento ideolgico. Pensando as representaes como uma forma de
conhecimento prtico, busca entender seu papel na instituio de uma realidade
consensual e sua funo sociocognitiva de integrao da novidade e de orientao das
comunidades da conduta.
As representaes sociais, de acordo com Jodelet (1984, p.88-89)
(...) so fenmenos complexos cujos contedos devem ser
cuidadosamente destrinchados e referidos aos diferentes aspectos do
objeto representado de modo a poder depreender os mltiplos processos
que concorrem para a sua elaborao e consolidao como sistemas de
pensamento que sustentam as prticas sociais.
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22
Jodelet (2001, p.26) aponta que
as representaes sociais devem ser estudadas articulando-se elementos
afetivos, mentais, sociais, integrando a cognio, a linguagem e a
comunicao s relaes sociais que afetam as representaes sociais e
realidade material, social e ideativa sobre a qual elas intervm.
Essa demanda reflete a complexidade deste conceito e implica e est implicada na
articulao dos objetivos especficos de pesquisa, s tcnicas de coleta e anlise de dados
e ao referencial terico-metodolgico de cada pesquisa.
Segundo Doise (1984) as pesquisas em representaes sociais constituem uma
forma de articulao de quatro nveis de pesquisa: I) Processos intraindividuais (focam a
maneira como os indivduos organizam suas experincias do social); II) Processos
interindividuais ou intersituacionais (grande enfoque s pesquisas com dinmica de
grupo); III) O nvel situacional (pesquisas sobre as diferenas em determinado campo
social); e IV) O nvel ideolgico (anlises sobre as vises de mundo de determinados
grupos). a partir das articulaes especficas de nveis e de opes de tcnicas e
mtodos que se elaboram os objetivos e caminhos metodolgicos especficos a cada
estudo.
Este estudo, uma vez que buscou construir um entendimento da forma como os
estudantes pretos e pardos de uma universidade federal representam a influncia do
quesito racial no ingresso e permanncia de negros na educao e no mercado de
trabalho, enfocando-se, portanto, as diferenas etnicorraciais e socioeconmicas, as
construes intra e interindividuais acerca das questes citadas, bem como as construes
grupais, procurou articular os quatro nveis mencionados acima.
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23
Os estudos realizados a partir do referencial terico-metodolgico das
representaes sociais contam com uma vasta diversidade de procedimentos utilizados
para a coleta e anlise dos dados. Essa diversidade revela-se de acordo com a dupla face
das representaes sociais como produto e como processo, o que implica na utilizao de
mltiplos mtodos e de comparao intermtodo, bem como de anlises em diferentes
nveis (SPINK, 1994).
As representaes sociais, enfocadas como produto, emergem como pensamento
constitudo ou campo estruturado. Nessa perspectiva a pesquisa tem o intuito de
depreender os elementos constitutivos das representaes: as informaes, imagens
opinies, crenas, etc. Entretanto, sendo estas sempre referidas s condies de sua
produo, a anlise dimensional do contedo tende a ser complementada pela
investigao dos fatores determinantes da estruturao do campo de representao em
questo. consenso entre os pesquisadores da rea que as representaes sociais,
enquanto produto social, tm que ser sempre referidas s condies de sua produo.
Uma vez produto social, as representaes sociais s podem ser analisadas tendo como
contraponto o contexto social em que emergem, circulam e se transformam-se (SPINK,
1993). Dessa forma, buscamos coletar dados acerca das condies socioeconmicas dos
participantes, bem como informaes sobre os programas de aes afirmativas, tendo-se
em vista elucidar o contexto de elaborao das representaes que objetivamos apreender.
Para atingir os objetivos propostos, elegemos como campo emprico a UFSCar,
onde desde 2008 est sendo implantando um Programa de Aes Afirmativas (PAA).
Os participantes foram estudantes pretos e pardos, ingressantes a partir de 2008,
na UFSCar, via reserva de vagas ou no, de cursos de todas as reas (Cincias Humanas,
Cincias Exatas e Cincias Biolgicas e da Sade), localizados no campus da cidade de
So Carlos.
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Consideraes ticas
Em nosso estudo buscamos abordar questes essenciais ao entendimento da
situao do negro na sociedade brasileira, buscando contribuir para o fornecimento de
polticas coerentes realidade da populao negra. Uma vez que os indicadores sociais
apontam para a difcil realidade dos indivduos negros em relao educao e mercado
de trabalho, consideramos necessrio saber diretamente junto aos estudantes negros suas
representaes acerca da relao estabelecida entre negritude e trabalho e, negritude e
educao.
A literatura relata as dificuldades encontradas pelo sujeito negro para o manejo de
questes de cunho etnicorracial, culminando em prejuzos no estabelecimento de uma
identidade etnicorracial positivamente afirmada. Para o negro, pensar sobre ser negro
causa sofrimento, devido ao contexto negativo estabelecido para a populao negra em
nossa sociedade e descrito pelos indicadores sociais. Nessa medida, as representaes
sociais do negro encontram-se, sob dadas circunstncias, foradas a no expressar a sua
identidade real. BELGRAVE et al., (2002) relatam quo difcil para o negro se assumir
como vtima de preconceito. Assumir-se como vtima de racismo e discriminao pode
significar deparar-se com a realidade de ser identificado com um sujeito cujo imaginrio
construdo socialmente bastante pejorativo. No entanto, existem sujeitos que so
capazes de manejar assuntos de cunho etnicorracial de forma positiva, estabelecendo
relaes adaptativas tanto com pessoas de seu mesmo grupo de origem, quanto com
pessoas pertencentes ao grupo dominante, apresentando posicionamento crtico acerca das
questes raciais, bem como acompanhamento e reflexes consistentes sobre a realidade
da populao negra (NASCIMENTO e SILVA, 2008).
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25
Esse contexto de experincias e angstias dos negros acompanhado de
repercusses sobre a sua identidade etnicorracial e representaes. Portanto, diante da
possibilidade de uma diversidade de identidades e representaes sobre ser negro e suas
implicaes, relatar determinados posicionamentos e/ou crenas, poderia gerar conflitos
subjetivos.
No delineamento de nossa pesquisa e considerando a ocasio das entrevistas,
pudemos perceber momentos de confronto de opinies e at mesmo manifestaes de
desagrado e sofrimento por pensar e relatar situaes de discriminao e preconceito.
Minha postura foi sempre de acolhimento e de respeito. Buscamos sempre respeitar os
limites de cada participante, o que era garantido pelo fluxo de informaes e de trocas que
era amplamente determinado pelos relatos dos entrevistados.
Ademais, buscamos sempre enfatizar formas propositivas para o manejo das
situaes que eram verbalizadas.
O projeto desta pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comit de tica em
Pesquisa com Seres Humanos da universidade (UFSCar), sob o protocolo CAAE
0054.135.000-09.
Foram utilizados os seguintes meios para obter as informaes:
1. Pesquisa bibliogrfica e documental
Realizada com o objetivo de conhecer a poltica governamental de aes
afirmativas, especialmente o PAA da UFSCar. Foram levantados estudos e documentos
sobre os programas de aes afirmativas de quatro universidades: a Uneb (Universidade
Estadual da Bahia), a UnB (Universidade de Braslia), a Uerj (Universidade Estadual do
Rio de Janeiro) e a UFSCar (Universidade Federal de So Carlos). As anlises foram
pautadas pelo intuito de caracterizar os programas, tendo como questes norteadoras: tipo
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de ao afirmativa; pblico contemplado; critrio para identificao do candidato negro; e
porcentagens de reserva de vagas e/ou cotas aplicadas na ao afirmativa.
2. Entrevistas individuais semi-estruturadas
Foram realizadas entrevistas individuais com 13 estudantes, de diferentes cursos
de todas as reas. Esse instrumento foi utilizado com o intuito de apreender as
representaes sociais em relao formao escolar e ingresso e/ou permanncia no
mercado de trabalho.
Tratando-se de entrevistas semi-estruturadas, havia um roteiro prvio (Apndice
I), que elencava questes a serem feitas aos participantes, contudo, no limitava as
entrevistas a essas questes. De acordo com as informaes fornecidas, bem como com o
ritmo de resposta de cada participante, outras questes foram introduzidas, antecipadas ou
suprimidas, visando a obteno das informaes.
3. Entrevistas coletivas
Tanto as entrevistas individuais quanto as coletivas foram orientadas pela
discusso dos seguintes tpicos (conforme Apndices I e II):
- Negro e Ensino Superior;
- Ao Afirmativa no Ensino Superior;
- Negro no Mercado de Trabalho;
- Ao Afirmativa no Mercado de Trabalho; e
- Discriminao/Preconceito na Educao e no Mercado de Trabalho.
As entrevistas coletivas foram utilizadas como ferramenta para testar a validade
do discurso produzido durante as entrevistas individuais, diante das diferentes opinies e
representaes no coletivo. Dessas entrevistas participaram sete estudantes, em dois
grupos (trs e quatro participantes). Nem todos os participantes das entrevistas individuais
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estiverem presentes nas entrevistas coletivas, devido dificuldade de compatibilizar os
horrios disponveis entre os prprios participantes.
A pesquisadora apresentava cada um dos tpicos acima descritos aos participantes
e solicitava que eles falassem aquilo que lhes viesse cabea.
4. Entrevistas com o programa de aes afirmativas
As entrevistas com integrantes do Programa de Aes Afirmativas (PAA) foram
pautadas em compreender o contexto das aes afirmativas na UFSCar, buscando
entender o processo de implantao do Programa, as representaes sobre negritude,
educao e trabalho que estavam presentes e foram pensadas durante a elaborao do
Programa e, a trajetria traada nos anos iniciais de vigncia. Foram entrevistados trs
integrantes da comisso de elaborao do programa, sendo que dois destes, no momento
das entrevistas, eram parte do Grupo Gestor de Aes Afirmativas; e tambm uma
assessora do PAA.
Alm disso, visando construir um panorama sobre os programas sintetizados no
captulo 3 (Uneb, Uerj e UnB) fizemos consultas s respectivas universidades, bem como
s pessoas representantes ou que pudessem melhor fornecer dados acerca de seus
programas de aes afirmativas. No caso da Uerj, consultamos a atual coordenadora do
Deapi (Departamento de Desenvolvimento Acadmico e Projetos de Inovao), que
responsvel pelos assuntos relativos s aes afirmativas naquela universidade. Na Uneb,
consultamos um membro do Cepaia (Centro de Estudos dos Povos Afro-ndio-
Americanos). No caso da UnB, consultamos um representante da CCN (Centro de
Convivncia Negra) que integra a Adac (Assessoria de Diversidade e Apoio aos Cotistas),
responsvel pelas questes relativas s cotas dentro da UnB. Essas consultas foram
realizadas via telefone, bem como via e-mail. Atravs delas, buscamos confirmar e/ou
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complementar as informaes que obtivemos nos documentos e referncias bibliogrficas
analisados.
Todas as entrevistas foram gravadas com o auxlio de um gravador digital,
visando posterior transcrio das informaes.
Construindo os dados: Formas de anlise
O primeiro contato com os documentos se constituiu no que Bardin (1977)
chama de "leitura flutuante". a leitura em que surgem hipteses ou questes guia, em
funo de teorias conhecidas. Aps esta leitura, comeamos a formular as categorias, a
partir dos eixos temticos deste estudo. Os temas que se repetiam com muita freqncia
eram recortados do texto em unidades comparveis de categorizao para posterior
anlise temtica.
A explorao do material foi a etapa que demandou mais trabalho. Este foi o
momento em que os dados brutos foram agregados em unidades, que permitiram uma
descrio das caractersticas pertinentes do contedo.
De acordo com Bardin (1977), a relao entre os dados obtidos e a
fundamentao terica o que confere sentido interpretao. No caso dessa pesquisa,
tomou-se a orientao da Teoria das Representaes Sociais, para a coleta e anlise dos
dados. Alm disso, a problemtica racial e das aes afirmativas, bem como o contexto
de realizao da pesquisa (caractersticas dos estudantes, bem como a identificao
tnico-racial da pesquisadora) foram levados em considerao no momento de extrair e
interpretar os resultados, pois todas essas questes poderiam, de alguma forma,
interferir nos enunciados e discursos dos participantes.
Todas as entrevistas individuais e coletivas foram transcritas integralmente,
organizadas e analisadas luz de todo o contexto, bem como buscando confrontar as
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diferentes fontes de dados. A anlise foi pautada nos eixos temticos deste estudo,
buscando explicitar as formas de representar as relaes implicadas. Tais eixos foram:
Raa e racismo; Negro e Ensino Superior; Reserva de vagas no Ensino Superior; Negro e
Mercado de Trabalho; Reserva de vagas no Mercado de Trabalho. Dentro destes eixos
temticos, encontramos as formas de representaes que configuraram as categorias,
conforme apresentado no Captulo 4.
As informaes resultantes das diferentes fontes de pesquisa foram trianguladas,
com vistas a explicitar os consensos e dissensos no contedo reportado pelo discurso dos
entrevistados.
Caminhos e descaminhos da pesquisa
O trabalho de campo teve incio pela elaborao dos roteiros de pesquisa para
entrevista individual com os estudantes, para entrevistas coletivas e para as entrevistas
com a comisso de elaborao do programa de aes afirmativas da UFSCar.
Encontramos uma srie de dificuldades para o contato com os estudantes, o que
bastante emblemtico da dinmica das relaes raciais dentro do campus, sobretudo a
partir da implantao da reserva de vagas para negros.
Partimos da ideia de que para melhor entender a representao dos estudantes
importante conhecer as suas caractersticas sociais e econmicas. Na tentativa de obter
informaes que nos levassem a traar essas caractersticas, primeiramente, entramos
em contato com a Coordenaria do Vestibular da UFSCar (Covest), rgo que obtm e
processa todas as informaes sobre os alunos ingressantes. Solicitamos as seguintes
informaes: nome, curso de ingresso, cor ou raa, e-mail e telefone. Contudo, tais
informaes no foram fornecidas, alegando a Covest o carter sigiloso delas. A
alternativa, ento, encontrada foi o dilogo direto com o Grupo Gestor de Aes
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30
Afirmativas da UFSCar, que nos forneceu uma listagem contendo o nome, curso e a
cor/raa dos estudantes negros ingressantes via PAA no ano de 2008. Os estudantes
negros no ingressantes pelo Programa no puderam ser contabilizados por falta de
informaes. Com estas informaes foi possvel percorrer todos os departamentos de
cursos do campus de So Carlos, em busca de formas de contato com os estudantes.
Com este procedimento conseguimos os e-mails de parte dos alunos, que passou a ser
nossa via de comunicao com os participantes.
Para a conduo do trabalho proposto era necessrio obter dados
socioeconmicos referentes aos estudantes, de modo que submetemos o projeto de
pesquisa Covest-UFSCar, com o intuito de acessar ao dados dos estudantes negros,
coletados pela Coordenadoria no vestibular de 2008. Nossa solicitao, contudo, foi
rejeitada alegando-se que esta pesquisa poderia divulgar dados sigilosos e, portanto, a
universidade no poderia com ela colaborar. Assim, elaboramos um questionrio
socioeconmico para captao dos dados necessrios. Contudo, a baixa quantidade de
questionrios respondidos nos impedem de analisar os dados oriundos dessa fonte, de
modo que estes questionrios encontram-se disponveis para possivelmente serem
complementados e analisados em estudos futuros.
Foi enviado, por meio eletrnico, um termo de consentimento livre e esclarecido
(TCLE Apndice III), e um questionrio contendo informaes sobre a identificao
dos participantes; experincias e trajetrias educacionais e de trabalho; caracterizao,
composio e renda familiar; indicadores de condies de vida. Este procedimento foi
repetido respeitando-se o intervalo de uma semana. Alm disso, deixamos nas
secretarias das coordenaes de curso cpias do TCLE e do questionrio
socioeconmico, anexados a uma listagem que designava os alunos que deveriam
preencher esses documentos.
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31
Outra estratgia utilizada foi o planto no restaurante universitrio (RU), o que
possibilitou abordar tambm os estudantes negros no ingressantes pelo Programa.
Com esses procedimentos obtivemos 22 questionrios preenchidos, sendo 20 de
estudantes negros ingressantes pelo PAA, e dois de estudantes no ingressantes por
reserva de vagas. Os alunos no-reservistas foram identificados por meio de indicao
dos participantes reservistas2. Contudo, diante da pequena quantidade de questionrios
respondidos, optamos por apresentar a anlise de algumas caractersticas da trajetria
educacional e de trabalho, pautando-nos unicamente nas informaes obtidas durante as
entrevistas.
Inicialmente, pretendia-se trabalhar com os alunos ingressantes no primeiro ano de
implantao do PAA (2008), sendo os sujeitos da pesquisa os estudantes universitrios
negros ingressantes pelo sistema de reserva de vagas ou no. Contudo, as dificuldades
para estabelecer contato com os participantes nos levaram a expandir a amostra para
estudantes negros tambm ingressantes em 2009 e 2010.
Os caminhos e descaminhos da pesquisa ilustram de maneira bastante
emblemtica a dinmica racial vigente e praticada em nossa sociedade e que ressoa de
forma clssica dentro da universidade. Os entraves para obteno de informaes; os
silenciamentos nos e-mails e nas entrevistas; as negativas, as dificuldades de verbalizar,
as esquivas (questes observadas no trnsito dos participantes pelos procedimentos da
pesquisa) etc., informam a maneira como o racismo est ainda vvido em nosso meio,
sobretudo em um espao onde h disputas bvias de lugares e privilgios, como bem o
ambiente acadmico, e engendra os posicionamentos e representaes. O trajeto
2 Utiliza-se neste trabalho o termo reservista para designar aqueles que ingressaram pelo sistema de
reserva de vagas, de modo que os no reservistas so, portanto, aqueles que no optaram pelo ingresso
por reserva de vagas.
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percorrido por esta pesquisa explicita, em si, as barreiras do racismo... Sempre postas
brasileira, nas sutilezas do cotidiano.
O texto aqui apresentado est organizado em quatro captulos. O primeiro trata da
Condio social vivenciada pela populao negra, sobretudo, quanto ao acesso e
permanncia no ensino superior e no mercado de trabalho, por meio da anlise dos
indicadores sociais. Neste captulo, fizemos o resgate de dois estudos centrais para a
discusso da qualidade de vida da populao negra a partir da perspectiva da anlise de
indicadores sociais, o estudo de Henriques (2001) que percorre o perodo de 1995 a 1999
e o relatrio de Paixo e Carvano (2008), cuja anlise cobre o perodo de 1999 a 2006.
Portanto, ambos os estudos fornecem um panorama da situao vivenciada pelos negros
durante 15 anos, englobando o importante perodo em que se inicia a implantao dos
programas de aes afirmativas nas universidades (meados de 2000). O captulo dois
apresenta a teoria das representaes sociais, os mecanismos de formao e atuao das
representaes, bem como sua relao com a elaborao das questes raciais e da
identidade etnicorracial. O terceiro captulo apresenta as polticas de aes afirmativas,
cujo campo de atuao a proposta de alterao das condies de vida da populao
negra, bem como na ressignificao da negritude e de suas relaes. Por fim, o quarto
captulo visa dissertar sobre as representaes sociais dos estudantes universitrios negros
da UFSCar, acerca das relaes entre negritude, educao e trabalho e, nesse nterim,
sobre o programa de aes afirmativas. Este captulo traz tambm o perfil
socioeconmico dos alunos negros da UFSCar entrevistados.
Os caminhos traados pela pesquisa so aqui discutidos para fornecer um breve
panorama das estratgias de pesquisa utilizados visando-se o alcance dos dados que so
trazidos e problematizados ao longo dos captulos.
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CAPTULO 1
DESIGUALDADES RACIAIS: EDUCAO E TRABALHO
Neste captulo nos debruamos sobre a discusso que tem sido realizada sobre as
posies assumidas pela populao negra na educao e no mercado de trabalho,
pontuando o papel exercido pela discriminao racial nas restries verificadas aos
negros. O enfoque dado no se limita abordagem estatstica ou quantitativa, j
amplamente desenvolvida por vrios estudos (SOARES, 2000; HENRIQUES, 2001;
CAMPANTE, CRESPO e LEITE, 2004; e PAIXO e CARVANO, 2008; entre outros),
que buscaram demonstrar e explicitar as desigualdades sociais existentes entre negros e
brancos. Nosso intuito compreender como as construes racistas estabeleceram um
acordo simblico em que os negros so marginalizados, condicionando sua existncia
ao silenciamento e no-existncia enquanto sujeito, em um no-lugar social. Desta
forma, fazemos o resgate de dados estatsticos como recursos para ilustrar as
construes sobre as quais discorremos, bem como as consequncias dessas para a vida
de negros e negras. O resgate feito a partir de dois estudos centrais acerca dos
indicadores sociais para as condies de vida da populao negra, o estudo de
Henriques (2001) e o relatrio de Paixo e Carvano (2008).
Este captulo estrutura-se, portanto, sobre trs eixos principais:
primeiramente, procuramos pontuar educao e trabalho como instncias sociais de
evidente importncia e centrais para a discusso das desigualdades raciais, enfatizando o
percurso de negros e negras; em seguida, abordamos o histrico de apartao social dos
negros, criado a partir do sistema escravocrata e amplamente cultivado no perodo ps-
abolio; e, por ltimo, resgatamos os indicadores sociais em relao s atuais
condies de vida da populao negra, com recorte especial aos nmeros da educao e
do mercado de trabalho. Trabalho e educao so categorias que designam formas pelas
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quais os sujeitos constroem e vivenciam relaes sociais. So, portanto, questes
intimamente relacionadas constituio identitria e determinantes para a constituio
dos sujeitos como cidados e como indivduos. Fala-se aqui em cidadania, pois
educao e trabalho possibilitam a abertura a instncias importantes para o bem-estar
social e de desfrute de direitos, tais como: o letramento e a escrita, o conhecimento de
conceitos essenciais de distintos corpos de disciplinas, o suprimento dos gastos por
meio do recebimento salarial, melhores condies de vida. Falamos tambm na
constituio enquanto sujeito, pois so espaos nos quais se constroi relaes sociais e
que atuam na dinmica da elaborao de representaes e identidades.
As instituies sociais tendem a manter a organizao social vigente e praticada
pelos grupos sociais que dominam seus meios de articulao e, portanto, sobre os
fundamentos das diversas hierarquias. Esse entendimento deve ser tomado com
particularidade para pensar as relaes que se estabelecem entre educao e mercado de
trabalho, instncias cujos moldes empregados para estruturar e programar dinmicas e
lgicas podem trazer consigo questes que deem margem ao estabelecimento de
(des)privilgios de pessoas e/ou grupos sociais (HASENBALG, 1991).
No obstante, educao e trabalho relacionam-se num ciclo de mtua implicao
que pode ser determinante quanto capacidade de fazer um sujeito gozar de cidadania
plena. Cabe, assim, tratar algumas caractersticas desses campos para compreender a sua
atuao na manuteno das desigualdades raciais.
Apesar das diversas possibilidades e modelos de educao, damos nfase ao
papel da escola nas relaes educacionais e raciais no Brasil, por considerarmos a
centralidade do processo de escolarizao na educao de indivduos e grupos sociais. A
escola vista (...) como uma instituio em que aprendemos e compartilhamos no s
contedos e saberes escolares, mas, tambm, valores, crenas e hbitos, assim como
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preconceitos raciais, de gnero, de classe e de idade. por meio da educao que a
cultura introjeta os sistemas de representaes e as lgicas construdas na vida
cotidiana, acumulados (e tambm transformados) por geraes e geraes (GOMES,
2003, p. 170).
De acordo com Rosemberg (1991, p. 32),
(...) a educao pode despertar entre certos segmentos negros reaes
ambguas: de um lado, a percepo recorrente de sua importncia no
processo de mobilidade social seja na perspectiva da ascenso, seja na
perspectiva da manuteno do status atingido; de outro, a ameaa que a
escola veicula enquanto instituio branca, por ser local onde ocorrem
as primeiras e decisivas tenses interraciais sofridas pelas crianas
negras.
Alguns estudos tm relatado os mecanismos de discriminao de crianas negras
nas escolas pblicas brasileiras (ROSEMBERG, 1991; 1998). A escola infantil pblica
tida como uma alternativa para acolher as crianas cujos pais trabalham. No entanto,
Rosemberg (1991) verificou que esta alternativa engloba questes sensveis quanto
sua efetividade. Nelas, os recursos humanos e materiais so escassos, alm de se
verificar menores jornadas dirias. Este quadro implica no fornecimento de uma
educao de qualidade inferior para essas crianas.
As escolas infantis pblicas so destinadas s crianas oriundas de famlias com
poucos recursos financeiros. Nesse sentido, Rosemberg (1998) relatou a prevalncia de
crianas negras nessas instituies, havendo, portanto, um paralelo entre ser negro e ter
condies financeiras limitadas para investir numa escola particular para seus filhos.
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36
preciso salientar a relao existente em nossa sociedade entre a qualidade da
educao recebida e as oportunidades de se vislumbrar melhores inseres no mundo do
trabalho e de mobilidade social. Rosemberg (1991) apia-se em dados sobre a
distribuio de crianas brancas e negras nas escolas pblicas e particulares, bem como
na frequncia de escolas pblicas e particulares em bairros pobres e em bairros mais
nobres para enfatizar uma das graves sequelas da adoo, no Brasil e em vrios pases
do Terceiro Mundo, de modelos baratos de educao infantil (creches e pr-escola)
destinados s crianas pobres: a segregao racial.
A reduo do desempenho escolar inferior de crianas negras s dificuldades
socioeconmicas algo equivocado. Rosemberg (1998) informou que, em pesquisa
sobre o Estado de So Paulo, encontrou menor proporo de atraso escolar entre alunos
brancos que entre alunos negros, mesmo quando se comparam entre si
crianas/adolescentes provenientes de famlias com mesmo nvel de renda familiar e
com mesmo ndice de participao no mercado de trabalho. Ou seja, de acordo com a
autora, sempre os alunos negros evidenciam atraso escolar mais significativo do que
entre alunos brancos, mesmo quando se comparam entre si alunos que s estudam ou os
que trabalham e estudam ao mesmo tempo.
Tentando compreender o menor aproveitamento escolar de crianas negras,
Rosemberg (idem) levanta a hiptese de segregao racial no Brasil que, por nunca ter
adquirido os contornos legais e formais do sistema Jim Crow norte-americano ou do
apartheid sul-africano, isto , por se apresentar de forma mais fluida, de mais difcil
captao. No caso brasileiro, a segregao espacial articular-se-ia segregao
socioeconmica observada nas sociedades latino-americanas. A autora sugere assim,
que no seria a condio econmica que nivelaria a populao negra, mas o
pertencimento negro, na ptica do branco, nivelaria as oportunidades de acesso e
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permanncia no sistema educacional, tratando a populao negra, indistintamente, como
pobre.
De acordo com Hasenbalg (1995, p. 364),
(...) na complexa interrelao famlia, educao e mercado de trabalho
que se define o lugar que as pessoas iro ocupar na hierarquia social.
a que para a maioria dos negros e mestios se estruturam as suas
condies de excluso e subordinao. Para este autor, a insero e
participao dos grupos raciais no mercado de trabalho tm papel
determinante na alocao dos indivduos na hierarquia de classes e
estratos sociais.
1.1. Trabalho e desigualdades
O trabalho central no apenas para aqueles que esto formalmente inseridos no
mundo de trabalho, com vnculos estveis, boas ocupaes e salrios razoveis, mas
tambm para aqueles que se encontram em ocupaes informais, subempregos,
ocupaes instveis, baixas remuneraes, etc. A precariedade da insero no trabalho,
contudo, gera impactos negativos nas formas como o indivduo representa o mundo, se
representa no mundo e atua sobre ele. Em outras palavras, a precarizao das relaes
de trabalho atua negativamente sobre a identidade do trabalhador.
s distintas formas de insero no trabalho soma-se a instabilidade resultante
das reestruturaes ocorridas no mundo do trabalho. Essas reestruturaes inviabilizam
a realizao de um projeto de vida no trabalho, uma vez que trabalhar j no
necessariamente, sinnimo de segurana para planejar o futuro. Como diz Sennet (1999)
s existe o tempo presente. Os planos de carreira, as ascenses devido performance
como trabalhador, j no so projetveis. As novas formas de organizao do trabalho
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destituram os marcos referencias para os trabalhadores, levando-os ao sentimento de
estar deriva.
Este novo modo de organizao das relaes de trabalho altera os quesitos que
devem ser considerados no processo de seleo de trabalhadores. Tem-se a expectativa
de que o trabalhador incorpore as caractersticas da organizao em questo. Assim,
mltiplas capacidades e flexibilidade so questes que ocupam uma posio central na
discusso sobre quem est apto a ingressar no mercado de trabalho.
O acesso ao mercado de trabalho formal realizado por meio de uma srie de
requisitos que, em tese, determinariam a capacidade de um sujeito assumir determinado
cargo. Este discurso, que antes se concentrava na qualificao, hoje, gira em torno das
competncias. necessrio ter certas competncias para que seja possvel ocupar tal
cargo. No entanto, as competncias caracterizam um conceito fugaz e de difcil
definio. algo que surge para atender as demandas do prprio mercado de trabalho.
Fala-se em uma capacidade transitria e contingencial, adquirida por meio de
experincia, ou seja, da prtica no mundo do trabalho.
Contudo, o discurso das competncias, relativo a quem est apto para ocupar os
postos de trabalho, sobretudo os melhores cargos e remuneraes, por lanar mo de
certas medidas subjetivas e contingenciais, pode favorecer prticas discriminatrias no
acesso ao mercado de trabalho. Afinal,
Ao mesmo tempo, os processos de recrutamento para posies mais
valorizadas no mercado de trabalho e nos espaos sociais operam com
caractersticas dos candidatos que reforam e legitimam a diviso
hierrquica do trabalho, a imagem da empresa e do prprio posto de
trabalho (DISOC/IPEA, 2008, p.6).
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neste sentido que Bento (2002) trabalha a ideia do pacto narcsico, ou seja, um
acordo silenciado entre os empregadores do Brasil, caracterizado pela preferncia por
trabalhadores brancos, devido crena numa superioridade de capacidades e
caractersticas psicolgicas e comportamentais de brancos em relao a negros. Ao
chegar numa instncia final no processo de seleo de candidatos no mercado de
trabalho, diante do esgotamento de todas as questes objetivas, a escolha se d por
questes basicamente subjetivas e, neste critrio, entram quesitos de cor e raa.
Essa conjuntura social, intimamente atrelada adeso da ideologia eurocntrica,
responsvel por uma srie de barreiras colocadas ao negro no acesso ao mercado de
trabalho. Isso caracteriza a situao de excluso de negros e negras no mercado de
trabalho, pois alm das prprias barreiras postas para o acesso, conta-se ainda com o
no reconhecimento daqueles que praticam esta discriminao como agentes
discriminadores, caracterstica intrnseca ao racismo brasileira.
A anlise dos indicadores sociais refora essa afirmao: desde a abolio da
escravatura perpetuam-se as desigualdades raciais em relao aos negros e negras no
Brasil. As perspectivas, ento, possveis para os negros, apontam para as margens
sociais: moradias precrias; pouco acesso ao saneamento bsico; baixo acesso
educao; insero precoce no mercado de trabalho e condies instveis de
permanncia; etc.
Frantz Fanon, em seu livro Pele negra, mscaras brancas (1980), procura
elucidar os caminhos e descaminhos que perpassam as trilhas traadas pelo indivduo
negro, na saga de encontrar e ocupar seu lugar de sujeito negro, positivamente afirmado.
No livro, Fanon descreve os mecanismos que assolam a vivncia do negro numa
sociedade racista. Esta obra possui carter de pioneirismo na discusso das relaes
etnicorraciais, das problemticas vivenciadas pelos negros, sobretudo, sob a perspectiva
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psicolgica. Neste livro, Fanon afirma que a anlise que pretende empreender
psicolgica, contudo, evidente que a verdadeira desalienao do negro implica uma
tomada de conscincia das realidades econmicas e sociais. Assim, de acordo com o
autor, s h complexo de inferioridade depois de um duplo processo: inicialmente
econmico; em seguida, pela interiorizao ou pela epidermizao dessa inferioridade.
Para o negro, ascender socialmente no significa apenas ter maior poder aquisitivo.
Significa, sobretudo, ter acesso a algo que ele persegue a todo instante, mas que escapa
sua natureza: a branquitude aquilo que d ao ser o direito de existir em-si-e-para-si.
1.2. Trabalho escravo, abolio e ps-abolio
Os negros chegaram ao Brasil sob as condies de um sistema em que a fora de
trabalho era apropriada pelos senhores. A conjuntura poltica e social, no entanto,
desenvolveu-se, de tal forma, a culminar nas discusses acerca do fim da escravido.
O trabalho escravo, ncleo do sistema produtivo do Brasil Colnia, foi sendo
gradativamente substitudo pelo trabalho livre no decorrer dos anos de 1800. A
substituio, no entanto, deu-se de uma forma particularmente excludente. Mecanismos
legais, como a Lei de Terras, de 1850, a Lei da Abolio, de 1888, e mesmo o processo
de estmulo imigrao, forjaram um cenrio no qual os negros foram relegados
condio de fora de trabalho excedente, sobrevivendo, em sua maioria, dos pequenos
servios ou da agricultura de subsistncia (THEODORO, 2008).
A participao dos escravos nos empreendimentos industriais, assim como nos
servios urbanos, fora majoritria, pelo menos at 1850. J na segunda metade do
sculo, a mo de obra de origem estrangeira, sobretudo portuguesa, ganhou importncia.
Com efeito, o ano de 1850 marcou o fim do trfico de escravos, ao menos legalmente, o
que fez com que o preo do escravizado aumentasse substancialmente. Alm disso, os
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setores mais dinmicos ligados produo do caf sobretudo na regio do Vale do
Paraba passaram, com o fim do trfico a absorver os escravos de outras regies do
pas.
Portanto, as grandes reas urbanas brasileiras, no incio do sculo XIX,
apresentavam como base laboral o trabalho escravo e, em menor escala, o trabalho de
livres e libertos, assim como dos migrantes. Os cativos, ao menos at a primeira metade
do sculo, constituam a base da atividade econmica, produzindo bens e servios,
trabalhando na limpeza e conservao das vias pblicas, no transporte, entre outros.
Explorao do tipo compulsrio, de um lado, e massa marginalizada de
outro, constituem amplo processo decorrente do empreendimento
colonial-escravocrata, que iria se reproduzir at pocas tardias do sculo
XIX. Sistema duplamente excludente, pois ao mesmo tempo cria a
senzala e gera um crescente nmero de livres e libertos, que se
transformam nos desclassificados da sociedade (KOWARICK, 1994, p.
58).
De forma geral, a maior parte da populao livre e liberta concentrava-se na rea
rural, inserida no setor de subsistncia. Essa situao explica, de acordo com o referido
autor, porque a substituio da mo de obra no se realizou internamente com a fora de
trabalho nacional disponvel, ou seja, por que se utilizou o artifcio da imigrao para
ocupar os postos de trabalho que tinham sido liberados pelos escravos.
Contudo, preciso admitir-se a estranheza da ideia de que fosse mais fcil
incentivar a vinda de europeus para trabalharem nas lavouras brasileiras, que recrutar a
mo de obra negra j presente no meio rural brasileiro.
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Efetivamente, o racismo, que nasce no Brasil associado escravido,
consolida-se aps a abolio, com base nas teses de inferioridade
biolgica dos negros, e difunde-se no pas como matriz para a
interpretao do desenvolvimento nacional. As interpretaes racistas,
largamente adotadas pela sociedade nacional, vigoraram at os anos 30
do sculo XX e estiveram presentes na base da formulao de polticas
pblicas que contriburam efetivamente para o aprofundamento das
desigualdades no pas (THEODORO, 2008, p.24)
A substituio da mo de obra escrava pela dos imigrantes comeou, assim, mais
de 30 anos antes da abolio. De acordo com os dados disponveis, entre 1864 e 1887, o
nmero de escravos no pas diminuiu de 1,7 milhes pra 720 mil, enquanto entre 1872 e
1881, 218 mil imigrantes entraram no Brasil (KOWARICK, 1994).
O perfil da ocupao da fora de trabalho assume, ento, nova
conformao. Enquanto a mo-de-obra imigrante chega e ocupa-se cada
vez mais da produo de caf, uma crescente populao de escravos,
ento liberados, vai se juntar ao contingente de homens livres e libertos,
a maioria dos quais se dedicava seja economia de subsistncia, seja a
alguns ramos ligados aos pequenos servios urbanos. No houve a
valorizao dos antigos escravos ou mesmo dos livres e libertos com
alguma qualificao. O nascimento do mercado de trabalho ou, dito de
outra forma, a ascenso do trabalho livre como base da economia foi
acompanhada pela entrada crescente de uma populao trabalhadora no
setor de subsistncia e em atividades mal remuneradas. Esse processo
vai dar origem ao que algumas dcadas mais tarde, viria a ser
denominado setor informal, no Brasil (THEODORO, 2008, p.25).
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Portanto, conforme aponta Kowarick (1994), nas vsperas da abolio, enquanto
os escravos dos cafezais fugiam das fazendas e amontoavam-se nas favelas, os
imigrantes faziam o percurso inverso, dirigindo-se para as plantaes. Dessa forma, a
abolio passou a ser sinnimo da excluso dos ex-escravos das regies e setores mais
dinmicos da economia.
No final do sculo XIX observa-se o incio de um processo de aglomerao da
pobreza e da excluso nas cidades, resultante da chegada em profuso de contingentes
de ex-escravos. Logo, nesta poca, j proliferaram nas maiores cidades as favelas.
Aps 1880, demandas tanto internas quanto internacionais fariam com que a
potencialidade do regime de trabalho escravo se mostrasse demasiadamente estreita para
realizar uma acumulao que, cada vez mais, necessitava de um mercado de trabalho
volumoso e fluido (KOWARICK, 1994).
Em 1900, a populao total do Brasil era de 16,5 milhes de habitantes, dos
quais 1,1 milho eram imigrantes, que se concentravam nos setores de atividade mais
dinmicos da economia. Nos anos seguintes, at 1920, assistiu-se intensificao da
industrializao e do crescimento urbano, sem maiores alteraes no perfil da mo de
obra absorvida.
Mais que uma demanda posta para o empresrio capitalista, que culminou numa
deciso, em nvel nacional, a substituio do trabalho escravo pelo trabalho livre foi
tomada como parte de um processo que visava promover uma reestruturao social e
econmica. a nascente do discurso, to arraigado no Brasil, sobre o desenvolvimento,
que passou a ser a palavra de ordem. E parte desse discurso estava centrada no projeto
de branqueamento da nao.
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Portanto, conforme j explanado, fatores importantes influram nesse processo:
o nascimento e consolidao de uma viso eurocntrica e modernizante, na qual, para o
negro, no havia ou havia pouco espao de existncia.
De fato, durante os ltimos anos de escravido, ganhavam fora no pas as ideias
que privilegiavam a mo de obra de origem europia em detrimento dos trabalhadores
nacionais. De um lado, os nativos livres e libertos eram considerados como inaptos ao
trabalho regular. De outro, no que tange aos antigos escravos, as fugas organizadas nas
fazendas eram cada vez mais frequentes, o que contribuiu tanto para promover a idia
de que a mo de obra negra era indolente e inapta para a relao assalariada, bem como
para reforar a ideologia do branqueamento.
A abolio da escravatura liberta o negro das amarras fsicas e oficiais, porm o
faz escravo de um sistema perverso, que elabora variadas formas para garantir a sua
excluso. Pois, como a literatura tem constantemente reafirmado, as possibilidades de
incluso socioeconmica dessa populao eram mnimas. O processo foi marcado tanto
por uma ausncia de polticas pblicas em favor dos ex-escravos e da populao negra
livre, como pela implantao de iniciativas que contriburam para que o horizonte de
integrao dos ex-escravos ficasse restrito s posies subalternas da sociedade.
preciso ressaltar que tal processo encontrava-se largamente amparado pela
leitura predominante da questo racial no Brasil, segundo a qual, a questo do negro
referia-se no apenas sua substituio como mo de obra nos setores dinmicos da
economia, mas sua prpria diluio como grupo racial no contexto nacional.
Como aponta Theodoro (2008), entre os fatores que impediram a emergncia de
um sistema econmico capaz de absorver a mo de obra livre est a promulgao da Lei
n 601/1850, a chamada Lei de Terras. Operando uma regulao conservadora da
estrutura fundiria no Brasil, a Lei de Terras foi promulgada no mesmo ano em que se
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determinou a proibio do trfico de escravos (Lei Euzbio de Queiroz), marco da
transio para o trabalho livre. nesse contexto que a nova medida legal comeou a
vigorar, restringindo, drasticamente, as possibilidades de acesso terra na transio do
regime escravista para o trabalho livre.
Logo, impedindo o acesso terra para os trabalhadores pobres, os ex-escravos e
seus descendentes, a lei de 1850 liquidou o sistema de posses fundirias que foi
estabelecido em 1822 e que poderia transformar o setor de subsistncia em regime de
propriedade familiar. Ademais acabou com a possibilidade futura de transformao de
mo de obra escrava liberta em novo contingente de posseiros fundirios, o que inclui
ainda a possibilidade de criao de quilombos legais ou estabelecimentos familiares
legalizados (DELGADO, 2005, p.29).
De acordo com Theodoro (2008, p. 35),
(...) em 1890, o governo republicano recm institudo publicou o
Decreto n 528, de 20 de Junho, onde se institui a livre entrada de
migrantes nos portos brasileiros, (...) excetuados os indgenas da sia e
da frica, que somente mediante autorizao do Congresso Nacional
podero ser admitidos, de acordo com as condies estipuladas. Este
mesmo decreto garantia incentivos a todos os fazendeiros que
quisessem instalar imigrantes europeus em terras.
Como resultado do fluxo oficialmente promovido de imigrantes europeus, at a
dcada de 1920, (...) fechou-se um espao socioeconmico que de outra maneira teria
estado disponvel para os no-brancos e o resto da fora de trabalho nacional
concentrada fora e dentro do Sudeste (HASENBALG, 1979, p.161).
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O perodo que se seguiu abolio foi caracterizado pela acelerao do
desenvolvimento econmico e pela abertura de novas oportunidades de ascenso social.
Essas oportunidades, contudo, no estavam disponveis para ex-escravos e, portanto,
no foram aproveitadas pela populao negra. A crescente imigrao europia, realizada
com o apoio de fundos pblicos, alterou significativamente o perfil da mo de obra
tanto rural como urbana.
Efetivamente, os preconceitos vigentes difundiam a crena da menor capacidade
do trabalhador negro face ao branco, ampliando a expectativa favorvel que cercava a
entrada de trabalhadores europeus. O branco era apontado como o trabalhador por
excelncia. Ao mesmo tempo, as dificuldades de insero do ex-escravo no mercado de
trabalho foram interpretadas como prova de sua incapacidade e sinnimo de sua
inferioridade racial.
Portanto, o ps-abolio foi marcado por oportunidades desiguais a brancos e
negros, o que, acrescido dos diferentes pontos de partida devidos ao perodo de
escravido, resultou no quadro de aguda desigualdade racial que verificado em nossa
sociedade hoje. Nessa medida, percebe-se que apesar de no ter sido decretado
oficialmente o exlio do ex-escravo ou um regime de separao racial, o negro passou a
vivenciar a experincia do no-lugar social como estigma em sua prpria pele.
1.3. Indicadores sociais para a populao negra: estado de mal-estar social
Percebe-se, atualmente, a despeito do histrico traado na seo anterior, a
constante tentativa de emudecimento sobre a questo racial no Brasil partindo-se, de um
lado, do mito da democracia racial e, de outro, das estratgias empreendidas pelo grupo
dominante para garantir a permanncia das regalias que lhe so garantidas pelo quadro
de desigualdades raciais vigente. Nesta medida, os indicadores sociais fornecem um
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panorama pertinente para explicitar a existncia do racismo institucional, dificultando o
acesso da maioria de negros e negras a importantes direitos sociais.
Assim, os nmeros expressos pelos indicadores sociais traduzem os perfis
daqueles que esto s margens do mercado de trabalho, em ocupaes instveis e de
baixa remunerao. perceptvel a existncia de um padro de trabalhador: o homem
branco. Aqueles que no se encaixam neste perfil, mulheres e negros, sofrem as
consequncias disso ganham menores salrios, tm ocupaes instveis e subalternas.
Esses so os resqucios das polticas adotadas durante o perodo em que vigia a
escravido no Brasil e, sobretudo no ps-abolio, conforme buscamos demonstrar
anteriormente.
Nessa seo, discorremos sobre dois importantes estudos para a discusso das
relaes raciais: um relatrio organizado no mbito do Ipea por Ricardo Henriques
(2001); e o relatrio organizado por Marcelo Paixo e Luiz Carvano (2008).
Concentramos nossa anlise, particularmente, nos dados que descrevem