REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE HOMENS E MULHERES … · 2016. 7. 19. · REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE...
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REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE HOMENS E MULHERES TRANSEXUAIS PARA
ESTUDANTES DE PSICOLOGIA
Gustavo Tassis Baptista1
Odacyr Roberth Moura da Silva2
Maria Cristina Smith Menandro3
Mariana Bonomo4
O objetivo deste estudo é conhecer representações sociais de pessoas trans para estudantes de
psicologia. O questionário foi aplicado em 62 alunos de um curso psicologia. Os termos
indutores utilizados na primeira parte do questionário de evocação por associação livre foram:
“mulher trans” e “homem trans”. Na segunda parte, os participantes responderam o que eles
pensavam que as pessoas em geral imaginam ou sentem em relação aos mesmos termos. Os
dados foram tratados com o auxílio do software OpenEVOC e analisados à luz da abordagem
estrutural da Teoria das Representações Sociais. As evocações realizadas sobre homem trans e
mulher trans se entrelaçam, não sendo possível afirmar que haja uma representação social
sobre homem trans pelo grupo estudado. Os resultados da tentativa de acesso à zona muda das
representações apontaram expressões de cunho negativo, em todos os quadrantes. Preconceito
foi o único termo presente no quadrante do núcleo central de todas as evocações, o que indica
a possibilidade de que ele componha o núcleo central da representação de pessoas trans, sendo
o elemento mais rígido e mais difícil de ser modificado. Os resultados levam à constatação da
necessidade de que a discussão de gênero seja abordada na formação do profissional de
psicologia, nos cursos de graduação e pós-graduação.
Palavras-chave: Mulher trans. Homem trans. Psicologia. Preconceito. Representações
Sociais.
1 Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista do Capes.
[email protected] 2 Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista do CNPq.
[email protected] 3 Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da
Universidade Federal do Espírito Santo. [email protected] 4 Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade
Federal do Espírito Santo. [email protected]
1 INTRODUÇÃO
A discussão sobre identidades trans é um fenômeno relativamente novo no campo da
psicologia. Temas relativos a gênero e sexualidade estão cada vez mais em voga dentro da
atual conjuntura, permeada por polêmicas acerca da patologização das identidades trans.
Neste cenário, a psicologia é chamada a ocupar uma posição privilegiada dentro deste debate,
contribuindo para a despatologização das transexualidades e travestilidades, tendo como
objetivo a luta pela garantia de acesso aos direitos e a promoção da cidadania e autonomia
destes indivíduos.
De acordo com Jesus (2012), no Brasil ainda não existe consenso sobre definição de
apenas um conceito para pessoas trans. A autora, então, baseando-se na diversidade das
formas de viver o gênero, propõe analisar esta vivência através de dois enfoques: (1) pela
ótica da identidade – se encaixariam aqui os travestis e os transexuais; e (2) pela ótica da
funcionalidade – crossdressers, drag queens, drag kings e transformistas.
As pessoas transsexuais são aquelas que ao nascimento foram designados a assumir
uma determinada identidade de gênero, feminino ou masculino, baseado em marcadores
biológicos, ou seja, o sexo (JESUS, 2012). Essa relação entre identidade de gênero e sexo
advém de uma lógica binária do gênero (SILVA, 2015). Neste caso, estas pessoas se
identificam com a identidade de gênero que seria oposta àquela designada ao seu sexo
biológico, podendo se submeter ou não a processos cirúrgicos ou hormonais. Estas pessoas
demandam seu reconhecimento pleno como homens e mulheres judicialmente e socialmente.
Neste trabalho o termo “trans” significará apenas o conceito de transexual.
Debater assuntos relacionados a pessoas trans na psicologia faz-se imprescindível para
o avanço da compreensão holística destes sujeitos e situá-los dentro de um processo histórico
de reflexão sobre o que é sexualidade. Concepções universalistas jamais darão conta de
explicar a complexidade do fenômeno. Desta forma, urge a construção de um conhecimento
crítico que possibilite um tipo de intervenção psicológica diferenciada.
Diante deste panorama, identificar que tipo de conhecimento estudantes de psicologia
– futuros profissionais da área – constroem e compartilham sobre pessoas trans é de
fundamental importância para levantar questões acerca da formação, além de servir para
analisar que rumos o conhecimento sobre do tema está tomando na academia.
2 TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
A Teoria das Representações Sociais nasceu na Europa em 1961 com a publicação de
um trabalho sobre a apropriação da teoria psicanalítica por diferentes grupos sociais. Seu
criador, Serge Moscovici, buscava compreender como o homem constrói a realidade, ou seja,
de que mecanismos as pessoas se utilizam para produzir conhecimento para dar sentido à sua
vida cotidiana (VALA, 2013). Representação social é definida por Jodelet (1989) como “uma
modalidade de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático e
contribuindo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (p. 36).
Dois conceitos-chave da teoria, a ancoragem e a objetivação, explicitam como se dá a
gênese de uma representação ao transformar um saber científico em um saber do senso-
comum. A ancoragem torna familiar um objeto estranho. Trata-se da incorporação de algo
novo a um sistema de categorias previamente existente que são familiares aos sujeitos,
permitindo a assimilação de novos conceitos, a denominação e a classificação em função da
inserção social dos mesmos. A objetivação, por sua vez, retira um conceito de seu marco
conceitual científico, privilegiando certas informações em detrimento de outras,
descontextualizando-as e simplificando-as, e, enfim, tornando concreta e significativa uma
imagem que outrora fora complexa, abstrata ou nova (ALMEIDA; SANTOS, 2011). Neste
processo, segundo Bonardi e Roussiau, (1999), o que se perde em riqueza informativa
proveniente da simplificação, se ganha em compreensão.
Abric (1998) evidenciou quatro funções essenciais das representações: (1) função de
saber; (2) função identitária; (3) função de orientação de práticas e os comportamentos; (4)
função justificadora.
Este estudo optou pela abordagem estrutural das representações, corporificada na
Teoria do Núcleo Central proposta por Abric em 1976, em sua tese de doutorado. Abric
(2001) acredita que a representação social é constituída por um sistema central, composto
pelo núcleo central da representação e pelo sistema periférico, composto pelos demais
elementos da representação. De acordo com Machado e Aniceto (2010), enquanto o sistema
periférico é encarregado de atualizar, contextualizar e proteger o núcleo da representação, o
núcleo central relaciona-se
à memória coletiva dando significação, consistência e permanência à representação
sendo, portanto, estável e resistente a mudanças. Esse núcleo é composto pelos
elementos estáveis ou mais permanentes da representação social, sendo estes de
natureza normativa e funcional. Os aspectos funcionais estão ligados à natureza do
objeto representado e os normativos dizem respeito aos valores e normas sociais
pertencentes ao meio social do grupo (p. 352).
Neste sentido, o objetivo deste trabalho é conhecer as representações sociais de
pessoas trans construída por estudantes do curso de psicologia. Propõe-se discutir os modos
como a psicologia tem se colocado enquanto ciência e profissão diante destas demandas e
como os cursos de graduação estão realizando estes debates nos espaços que ocupam. A partir
dessa avaliação é possível questionar e propor novas formas para que as discussões de gênero
e de orientação sexual se façam presentes, uma vez que será demandado do profissional um
conhecimento e uma prática nestes assuntos.
3 MÉTODO
Foi adotada nesta investigação uma abordagem qualitativa. Trata-se de um estudo
exploratório, descritivo, de corte transversal. Os dados foram coletados em turmas de
disciplina e extensão oferecidas ao curso de psicologia na Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES) durante o segundo semestre de 2015.
A amostra deste estudo foi composta por 62 sujeitos. Foi critério de inclusão estar
matriculado em curso de psicologia, possuir mais de 18 anos, estar cursando disciplina ou
extensão nas dependências da UFES e aceitar a participar voluntariamente do estudo. Foi
aplicado um questionário contendo exercícios de evocação coletadas através da técnica de
associação livre. Os termos indutores utilizados no questionário de evocação por associação
livre foram “mulher trans” e “homem trans”.
Para Abric (2003), em certos contextos, certos objetos possuem elementos de
representação que não são verbalizados pelos indivíduos ao se utilizar métodos tradicionais de
coleta. Esse conteúdo não é verbalizado porque são considerados inadequados dentro de uma
normatividade social vigente. Isso significa que, mesmo conteúdos centrais podem
permanecer “adormecidos” durante a coleta de dados por se chocar com as normas ou os
valores morais de determinado grupo.
Objetivando acessar a chamada “zona muda das representações”, na segunda parte do
questionário utilizou-se a técnica de substituição, que visa diminuir o grau de
comprometimento pessoal do sujeito com relação à representação do objeto. Desta forma, foi
solicitado que o participante informasse 5 palavras ou expressões que as pessoas em geral
pensam ou sentem em relação aos termos “mulher trans” e “homem trans”. Os dados
referentes às evocações coletadas através da técnica de associação livre foram tratados com o
auxílio do software OpenEVOC, na sua versão 0.81.
4 RESULTADOS
4.1 CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA
A amostra total deste estudo foi composta por 62 sujeitos, distribuídos entre o 1º e o
10º período do curso de psicologia. Mais da metade dos respondentes se concentraram nos
períodos iniciais (alunos do 1º, 2º e 3º períodos), totalizando de 37 participantes. Os
estudantes dos períodos intermediários (4º, 5º, 6º e 7º períodos) somaram 17 respondentes da
pesquisa. Apenas 7 participantes estavam nos períodos finais entre o 8º e o 10º período e um
participante não indicou a qual período pertencia.
Em relação à distribuição de respondentes por gênero, a amostra foi
predominantemente feminina, sendo 42 participantes pertencem ao gênero feminino, 19 ao
masculino e 1 não-binário. Um participante deixou a resposta em branco.
A maior parte dos entrevistados (80,64%) foram jovens, o equivalente a um total de 50
participantes na faixa de 18 a 24 anos de idade. Na faixa etária de 25 a 31 anos foram
contabilizados 6 participantes. O grupo com 32 anos ou mais somou apenas 4 participantes do
número total, e dois respondentes não informaram a idade. Esta discrepância já era esperada,
visto que a faixa etária onde houve maior concentração é a mais comum entre estudantes
universitários.
4.2 RESULTADOS DAS EVOCAÇÕES
A seguir serão apresentadas e descritas quatro tabelas com a apresentação das
evocações para os termos indutores “Mulher Trans” e “Homem Trans” para os próprios
estudantes de psicologia e para a população em geral segundo os mesmos estudantes.
A Tabela 1 traz o resultado da análise das evocações dos estudantes de psicologia para
o termo indutor “mulher trans”. A Ordem Média de Evocações (OME) foi igual a 3,0 (em
uma escala de 1 a 5). Não foram incluídas as evocações com frequência inferior ou igual a 1.
Tabela 1 – Evocações de “MULHER TRANS” de estudantes de psicologia
f >= 3 OME < 3 f >= 3 OME < 3
4.89% mulher 1.8 3.26% coragem 3
4.89% preconceito 2.87 3.26% dificuldade 3.6
f >= 3 OME < 3 f >= 3 OME < 3
2.93% transformação 2.78 2.28% dúvida 3
2.61% identidade 2 1.95% homem 4.17
2.61% liberdade 2.63 1.63% cirurgia 3.2
1.95% sofrimento 2.67 1.63% aceitação 3.2
1.63% força 1.8 1.63% mudança 3.4
1.63% respeito 2.6 1.63% diferente 3.6
1.3% pessoa 1.5 1.3% prostituição 3.75
1.3% travesti 2.25
1.3% incompreensão 2.5
O número total de evocações para este termo indutor foi 307, sendo 151 termos
diferentes, 49,18% deste total. Os termos com maior repetição foram mulher (15), preconceito
(15), coragem (10) e dificuldade (10).
A tabela 2 apresenta o resultado da análise das evocações dos estudantes de psicologia
para o termo indutor “homem trans”. A Ordem Média das Evocações (OME) foi igual a 3,0
(em uma escala de 1 a 5). Foram menosprezadas as evocações cuja frequência foi igual ou
menor que 2.
Tabela 2 – Evocações de “HOMEM TRANS” de estudantes de psicologia
f >= 2 OME < 3 f >= 2 OME < 3
5.88% preconceito 2.5 2.94% hormônio 3.44
3.59% homem 2.18 2.61% coragem 3.25
2.29% mudança 2.57 2.61% dúvida 3.5
2.29% liberdade 3.14
2.29% dificuldade 3.57
f >= 2 OME < 3 f >= 2 OME < 3
1.96% identidade 2 1.96% mulher 3.83
1.63% incompreensão 2.2 1.63% transformação 3
1.31% pessoa 1.5 1.63% aceitação 3.2
1.31% curiosidade 2.25 1.63% respeito 3.6
1.31% cirurgia 3.5
1.31% autenticidade 4.5
De 306 evocações realizadas por todos os participantes, chegou-se a 155 termos
diferentes (50,65%) no total. Os termos mais repetidos foram preconceito (18), homem (11),
hormônio (9) e dúvida (8).
A tabela 3 mostra o resultado da análise das evocações dos estudantes de psicologia
sobre o que a população em geral pensa, imagina ou sente em relação ao termo “mulher
trans”. A Ordem Média das Evocações (OME) foi igual a 3,0 (em uma escala de 1 a 5). Foram
menosprezadas as evocações cuja frequência foi igual ou menor que 1.
Tabela 3 – Evocações de “MULHER TRANS” de estudantes de psicologia para população em geral
f >= 2 OME < 2.7 f >= 2 OME < 2.7
6.89% preconceito 2 3.95% prostituição 2.75
2.96% travesti 2.22 2.63% nojo 3.5
2.3% gay 2.57 2.3% homem 2.71
2.3% estranhamento 3
2.3% patologia 3.29
f >= 2 OME < 2.7 f >= 2 OME < 2.7
1.64% confusão 2.4 1.64% traveco 2.8
1.64% ódio 3.4
1.32% erro 2.75
1.32% desrespeito 2.75
1.32% promiscuidade 3.25
1.32% aversão 3.25
1.32% desconhecido 3.25
1.32% pecado 4
O número total de evocações resultantes do termo indutor foi 304. Deste número,
52,3% (159) foram de palavras diferentes. Os termos preconceito, prostituição e travesti
foram os termos mais evocados com 21, 12 e 9 repetições respectivamente.
A tabela 4 apresenta o resultado da análise das evocações dos estudantes de psicologia
sobre o que a população em geral pensa, imagina ou sente em relação ao termo “homem
trans”. A Ordem Média das Evocações (OME) foi igual a 3,0 (em uma escala de 1 a 5). Foram
menosprezadas as evocações cuja frequência foi igual ou menor que 2.
Tabela 4 – Evocações de “HOMEM TRANS” de estudantes de psicologia para população em geral
f >= 2 OME< 3 f >= 2 OME >= 3
8.08% preconceito 2.38 2.69% nojo 3.63
3.03% sapatão 2.11 2.36% estranhamento 3
2.36% mulher 2 2.02% ódio 3
2.02% lésbica 2.33 2.02% patologia 3
f < 2 OME < 3 f < 2 OME >= 3
1.68% aversão 1.8 1.35% gay 3
1.35% falta de homem 2 1.35% desrespeito 3
1.35% confusão 2.25 1.35% promiscuidade 3.5
1.35% raiva 2.75 1.35% pena 4
1.35% mulher macho 2.75 1.35% desconhecimento 4.25
1.35% diferente 2.75
O resultado da associação livre foi uma lista com 297 evocações, sendo que destas
156 (52,5%) eram diferentes. Observou-se que os termos preconceito, sapatão e nojo
apareceram com o maior número de evocações (24, 9 e 8 respectivamente).
5 DISCUSSÃO
A primeira evocação da tabela 1 apresentou como palavras possíveis de compor o
núcleo central da representação social de mulher trans para estudantes de psicologia os termos
mulher e preconceito, sendo estes os termos os mais frequentes e que ao mesmo tempo
apareceram com menor ordem de evocação. Destes, o termo preconceito é o que apresenta
maior correlação com termos da primeira periferia (coragem e dificuldade) e alguns da
segunda periferia (dúvida, diferente e prostituição).
As palavras encontradas na zona de contraste dão suporte àquelas que foram
encontradas nos outros três quadrantes sendo relacionadas tanto com o núcleo central quanto
as duas periferias. A diversidade das palavras vai desde conotações positivas como
identidade e liberdade bem como aquelas que avaliam a experiência da mulher trans como
uma dura jornada, como observado nas expressões sofrimento e transformação.
No primeiro quadrante da tabela 2, observa-se as palavras que poderiam compor o
núcleo central da representação. Preconceito, homem e mudança foram as palavras
mencionada mais vezes nos primeiros lugares e são as mais expressivas referentes à expressão
Homem trans. Mudança é o termo que mais se associa com os de outros quadrantes,
apresentando forte relação com hormônio (primeira periferia), transformação e cirurgia (2ª
periferia).
Expressões que aparentemente denotam contradição são encontradas nas periferias e
na zona de contraste, onde por um lado se encontra coragem, liberdade, aceitação e
autenticidade e, por outro, dificuldade e incompreensão. Percebe-se que ao mesmo tempo
em que teorias socialmente compartilhadas sobre a transexualidade imprimem uma imagem
de rejeição e opressão chegando a provocar sentimentos de piedade pelas pessoas trans, por
outro lado, elas apontam a luta destes indivíduos para superar este estado.
Esta aparente contradição no sistema periférico não é incomum, visto que ele, ao
contrário do sistema central, é flexível, suporta a heterogeneidade do grupo e contradições
(SÁ, 2002).
A tabela 3 apresenta o conteúdo das evocações de como os alunos de psicologia
acreditam que a população em geral percebe, compreende e constrói sentido em relação ao
termo “mulher trans”. A diferença esperada como resultado nessa mudança de perspectiva foi
a de reduzir a possibilidade de um discurso enviesado do participante enquanto um
profissional da saúde.
Isso significa que representando sua categoria profissional, espera-se que os discursos
apresentados pelos estudantes de psicologia sejam “politicamente corretos”, enquanto que,
respondendo a partir da perspectiva da população em geral, é afastada do sujeito a
responsabilidade daquela produção, permitindo que ele expresse livremente o discurso que,
enquanto ativado o sentimento de pertença ao grupo “psicologia”, não poderia ser expresso
sem algum tipo de punição social. Desta forma, torna-se possível observar discrepâncias entre
a percepção do profissional e daquilo que é compartilhado socialmente em outros espaços.
No quadrante onde possivelmente se encontra o núcleo central temos os termos
preconceito, travesti e gay. Enquanto a primeira evocação pode ser compreendida como uma
forma de reconhecimento do preconceito vivenciado cotidianamente pelas mulheres trans, as
outras duas, embora sejam respectivamente uma identidade de gênero e uma orientação
sexual, neste contexto podem significar a expressão de sentimentos com conotação pejorativa,
pois reduz e invisibiliza ainda mais a mulher trans.
Nos quadrantes seguintes as palavras são em quase sua totalidade (excetuando-se
apenas desconhecimento), de conteúdo ou conotação ofensiva como nojo e patologia (na
primeira periferia), erro e pecado (na segunda periferia) e confusão (na zona de contraste). A
ausência de palavras com conotação positiva ou que caracterizam empatia, podem ser
indicativos de que, retirada a responsabilidade do discurso do sujeito podem emergir
conteúdos que não seriam detectados quando contextualizados com aspectos que sejam
ligados à identificação daquele sujeito como sua profissão, ou seja, conteúdos só expressos
quando descontextualizado o processo de identificação com o grupo que ele sente estar
representando no momento da resposta.
Considerando que a produção verbal da evocação nem sempre é livre, e que pode ser
influenciada fortemente pela desejabilidade social, ou seja, ser conveniente com diversos
sistemas de referência normativa (GUIMELLI; DESCHAMP, 2000), o primeiro quadrante da
tabela 4 estaria mais próximo do que poderíamos chamar de núcleo central da representação
social de homem trans por estudantes de psicologia do que o apontado pela tabela 2. Nele
estão contidos os elementos preconceito, sapatão, mulher e lésbica.
A presença destas palavras como componentes do provável núcleo central da
representação reforça os termos que aparecem nos outros quadrantes. O preconceito anda
lado a lado com a aversão e a raiva (presentes na zona de contraste), com o nojo, ódio e o
desrespeito (presentes nas periferias). As evocações de sapatão, lésbica e mulher-macho
indicam um desconhecimento que existe (ou que os estudantes de psicologia imaginam que
existe) entre a questão orientação sexual e identidade de gênero por parte das pessoas em
geral. A ignorância a respeito do termo pelas pessoas em geral, segundo os entrevistados, leva
a pensar que falta de homem, termo encontrado na zona de contraste, seja uma das causas de
uma mulher querer “virar” um homem trans, evidenciando mais uma vez os valores de uma
sociedade falocêntrica e heterossexista,
De todas as palavras que aparecem nos 4 quadrantes nenhuma possui conotação
positiva. Em diversos estudos também ocorreu fenômeno semelhante, onde em situação de
“substituição”, termos com conotação negativa apareceram mais vezes que em situação
“normal” (GUIMELLI; DESCHAMPS, 2000; DESCHAMPS; GUIMELLI, 2004;
MOSCOVICI, 1998; OLIVEIRA; COSTA, 2007).
Entretanto, isso não significa necessariamente que os resultados desta tabela (assim
como da tabela 3) dizem respeito aos aspectos mascarados, escondidos e/ou socialmente
reprováveis da representação, que os participantes “projetaram” por estar normativamente
menos pressionados. Para Menin (2006), além desta hipótese, o fenômeno conhecido como
“transparência das representações” também pode acontecer quando se utiliza a técnica de
substituição. Segundo a autora, este fenômeno baseia-se no conhecimento que determinado
grupo possui das representações de um mesmo objeto por um grupo diferente do seu. Ou seja,
partindo do pressuposto que os estudantes de psicologia conhecem as representações que as
pessoas em geral possuem dos objetos mulher trans e homem trans, deve-se levar em
consideração a possibilidade de ocorrência da transparência das representações.
Em pesquisa realizada por Matão, Miranda, Campos, Teles e Mesquita (2010) com
acadêmicos de medicina e enfermagem sobre a transexualidade apresentou alguns resultados
similares aos encontrados neste estudo. Termos como mudança-sexo, preconceito, anormal,
cirurgia, opção faziam parte das evocações realizadas pelos entrevistados em ambos estudos.
Apesar de algumas semelhanças com as associações realizadas pelos estudantes de psicologia,
os graduandos de medicina e enfermagem tenderam mais a associar a transexualidade a
estrutura patológica que a uma construção sócio-identitária de gênero.
Tendo por base a literatura existente sobre as pessoas trans, era um fato esperado o
termo preconceito estar presente no quadrante do possível núcleo central de todas as
evocações realizadas. De acordo com Menin (2006), os termos que aparecem tanto na
situação “normal” quanto na situação de “substituição” são os mais prováveis de fazerem
parte do núcleo central da representação, por causa da estabilidade apresentada.
A negatividade exacerbada encontrada tanto na tabela 2 quanto na tabela 4 (as tabelas
de “substituição”, que mostram o que as pessoas em geral pensam sobre os termos
disparadores) explicita as associações realizadas pelos entrevistados que seriam mal aceitas
socialmente ou que entrariam em choque com o sistema de valores morais dos “estudantes de
psicologia”, grupo de referência dos sujeitos respondentes no contexto da coleta.
Um exemplo bem ilustrativo que evidencia a externalização daquilo que seria bem
visto ou mal visto pelo grupo de referência aparece no termo respeito, inserido na 2ª periferia
da tabela 2 e desrespeito, na 2ª periferia da tabela 4, elementos estes que, embora periféricos,
estão bem relacionados com os termos presentes nos outros quadrantes.
Semelhantemente à presença do termo preconceito em todas os primeiros quadrantes,
encontrar expressões negativas nas tabelas supracitadas, só confirma o que traz a literatura
sobre pessoas trans. Ao analisar os processos de violência exercidas às não-
heterossexualidades em vários países do mundo, Costa et al (2010) afirmam que, qualquer
indivíduo que se saia das veredas traçadas e impostas pela hegemonia heterossexual é passível
de sofrer violência, seja ela simbólica ou declarada, implícita ou explícita, e, dentre estes
indivíduos, de modo geral, as pessoas trans são as mais desprotegidas e estigmatizadas.
Contudo, apesar de trazer as evocações coletadas e analisá-las à luz da Teoria das
Representações Sociais e da Teoria do Núcleo Central, os dados não nos permitem afirmar
que existe uma representação social sobre o homem trans no grupo estudado. As análises
realizadas indicam que o termo está intrinsecamente ancorado às representações construídas e
compartilhadas sobre a mulher trans, conforme mencionado anteriormente. A própria
produção acadêmica indica uma quantidade de publicações em relação a mulher trans e
travestis (AMARAL et al, 2011) e uma invisibilidade na produção acadêmica a respeito da
transmasculinidade (ÁVILA; GROSSI, 2010).
Tanto durante a análise dos questionários, quanto durante a aplicação foi possível
perceber que os termos, muitas vezes foram confundidos e/ou mesclados. Algumas respostas
muito interessantes, que não apareceram nos quadrantes por terem sido pouco ou
dispersamente evocadas refletem esta hipótese. Houve, por exemplo, quem achasse que o
homem trans era uma mulher trans que optou pela realização da cirurgia de
transgenitalização, ou que homem trans fosse o indivíduo a quem foi atribuído o gênero
masculino, mas que identificava-se com o feminino.
Estes elementos que denotam a ausência de clareza entre as expressões homem trans e
mulher trans aparecem na segunda periferia da tabela 1 na palavra dúvida, na primeira
periferia e na zona de contraste da tabela 2 nos termos dúvida e incompreensão e na zona de
contraste e segunda periferia da tabela 4 nos termos confusão e desconhecimento.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados encontrados foram compatíveis com o que a literatura nos apresentava
sobre a população trans e o desafio enfrentado por grande parte das pessoas que se identificam
a partir de uma identidade de gênero não estabelecida dentro dos limites do binarismo do
gênero que conecta o sexo biológico ao gênero logo ao nascimento. A confusão dos termos
indutores expressos seja oralmente durante a aplicação dos questionários ou explicitados nas
evocações foi um ponto de grande importância deste trabalho. Em um momento que os
homens trans buscam visibilidade, foi possível perceber que as teorias sociais criadas e
compartilhadas a respeito desta população estão atreladas àquelas acerca da mulher trans.
Outro resultado que chamou atenção foi o grande número de palavras de teor
pejorativo quando foram respondidas as evocações de acordo como a população em geral
pensaria aqueles termos indutores apresentados. Bem como o destaque da palavra
preconceito como termo com maior frequência em todos os quadrantes de núcleo central
exceto na tabela 1 que ficou atrás apenas d o termo mulher.
Sendo preconceito o elemento central do nosso estudo, seria ele, desta forma, o
elemento mais resistente à mudança. E, sendo preconceito pouco sensível ao contexto
imediato e historicamente determinado, pode-se inferir que muito trabalho em um bom espaço
de tempo precisa ser realizado, principalmente pela psicologia, ao se buscar alterar as
representações sociais (ou participar mais ativamente na gênese das representações sociais,
caso ela ainda não exista) sobre homem trans e mulher trans visando a promoção da garantia
do exercício da cidadania desta população.
Os resultados demonstram uma necessidade crescente que a discussão de gênero seja
abordada na formação do profissional de psicologia, nos cursos de graduação e pós
graduação. A crescente demanda por estes profissionais em serviços que prestam atendimento
a esta população deve ser encarada como um desafio que a psicologia deve assumir com
responsabilidade.
Seguindo aquilo que é construído em discussão com a classe, o Conselho Federal de
Psicologia apoia a despatologização das identidades trans e travestis, porém, na prática é
possível observar que o desconhecimento sobre a temática da diversidade sexual e de gênero
tem sido o maior obstáculo no fortalecimento desta luta pela psicologia. Como profissionais –
ou, no caso deste estudo, futuros profissionais – é preciso pensar nestas questões para além da
atuação do psicólogo no âmbito do processo de transição transgenital.
Apesar de algumas limitações metodológicas, este estudo permite que sejam discutidas
muitas questões, como por exemplo, de que modo o não-familiar homem trans está passando
por um processo de ancoragem e objetivação, onde os entrevistados buscam nomear este novo
objeto com classificações preestabelecidas em outras representações consolidadas, que antes
se referiam a homens ou mulheres ou mulheres trans. Buscar referências para o estranho
naquilo que lhe é familiar é um processo natural na gênese das representações sociais. Resta,
desta forma, possibilitar discussões e propor ações que viabilizem maiores esclarecimentos
sobre pessoas trans aos futuros profissionais da psicologia e instigar a realização de futuras
investigações sobre o tema, que se apresentam, ainda, em fase embrionária.
REFERÊNCIAS
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In : ABRIC, J. C (Org.). Méthodes d’étude des représentations sociales. Saint-Agnes:
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