Requalificando o medo
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REQUALIFICANDO O MEDO
PAULO GAUDÊNCIO
O medo é considerado um instinto de segunda classe, que
nós reprimimos o tempo todo, fingindo que ele não existe.
A desqualificação deste impulso é mais cruel com o homem
do que com a mulher: ela ainda pode gritar porque tem um
rato embaixo do sofá. O homem tem que reprimir o medo
e, quase sempre, matar o ratinho para acalmá-la. Como em
todos os “impulsos maus”, usamos nomes mais elegantes-
como insegurança, para designar o medo que não podemos
evitar sentir.
Primeira função do medo: a sobrevivência
O medo salva a nossa vida porque nos prepara para a luta
ou a fuga. Ele é o equivalente à dor, na vida física, que
avisa quando uma situação é crítica. Por exemplo, sou
acordado de madrugada por um barulho na sala. Sento-me
na cama num salto e, sem que isto passe pela minha
consciência, todo o meu corpo ser prepara para lutar ou
fugir. Ora, se eu vou lutar ou fugir, os músculos são a parte
mais importante do meu organismo. Vou precisar de muito
sangue nos músculos. O meu corpo, então, joga adrenalina
no sangue e ela o redistribui nos vasos sangüíneos,
enviando-os para os músculos, para que eu possa enfrentar
o perigo ou fugir. A adrenalina dilata as artérias e contrai
os vasos periféricos. Sai o sangue do rosto– fico “branco de
medo”. Sai o sangue do estômago – sinto “um frio na
barriga”. A rapidez é conseguida pela taquicardia. Porque
preciso de oxigenação, tenho uma taquipnéia que desliga o
diafragma e eu passo a respirar pelas vias intercostais. O
baço joga glóbulos vermelhos na corrente sangüínea e
plaquetas porque, caso eu me fira, o sangue vai coagular
mais rapidamente. O fígado descarrega açúcar (para que
eu tenha energia) e o pâncreas libera insulina. Temos
reações atávicas para assustar o adversário: dilatação da
pupila (fico “cego de raiva”), eriçamento de pelos,
glândulas sudoríparas trabalham para exalar mau cheiro
(produção de odores para assustar o adversário); aumenta
a produção de urina e o esfíncter relaxa (na criança, o xixi
“se faz” naturalmente nas situações de medo). Os
condenados à morte usam, por esse motivo, um fraldão na
hora da execução. É daí que vem a expressão popular
“cagão”, para designar aquele que tem muito medo. Isto
mostra que C.Jung tinha razão quando disse, em sua
sabedoria: “tudo o que eu conto, vocês já sabiam, estou
apenas organizando”.
Interação do medo com a agressividade
O medo me dá oportunidade: eu fico paralisado e posso
medir o tamanho da encrenca. O que vai me mobilizar é a
minha agressividade e, por isso, ela também não pode ser
reprimida - é o combustível para ação. As pessoas lidam
com o medo de forma diferenciada:
• O corajoso sente muito medo. Avalia o tamanho da
encrenca, vê que dá para enfrentar e enfrenta.
• O covarde sente muito medo. Vê o tamanho da
encrenca, sabe que dá para enfrentar, mas foge.
• O prudente sente muito medo Avalia o tamanho da
encrenca, vê que não dá para enfrentar e foge.
• O irresponsável sente muito medo. Vê o tamanho da
encrenca sabe que não dá para enfrentar, mas
enfrenta.
• O herói, muitas vezes, é o covarde que vai fugir, erra a
direção e acaba tendo que enfrentar o perigo.
Segunda função do medo: ele é pedagógico
O medo nos leva a respeitar os limites do outro, tornando
possível a vida em comunidade. Dizem que ser pai é a arte
de se tornar desnecessário. Num determinado ponto da
vida todo filho deverá poder caminhar sozinho e a norma
“se eu invadir os limites do outro vou sofrer uma sanção”,
precisa estar introjetada nele. Ao contrário do que muita
gente acredita, filho precisa ter medo, sim, das
conseqüências de infringir determinadas normas. Ausência
de medo gera impunidade.
A nossa introjeção do medo se dá pelo limite - Para
respeitar os limites necessários à vida em comunidade é
preciso disciplina. O que é disciplina? Um bom exemplo: os
ônibus na Alemanha passam pontualmente em seu horário:
o das 9:17 h passa exatamente às 9:17 h, nem um minuto
a mais nem a menos. Por quê? Com a temperatura em 40º
graus negativos, nenhum passageiro agüenta ficar parado
na rua esperando o ônibus. Não passar um farol fechado
para evitar a multa, mostra o que é disciplina: é o medo da
dor num órgão muito sensível - o bolso. Há alguns anos
atrás, foi feita uma campanha de propaganda muito bonita,
para implantar o uso do cinto de segurança e não
convenceu ninguém. Já o medo da multa foi eficaz. Sem
ele, muita gente não teria aprendido a usar cinto de
segurança.
Processo Decisório - Diante de um perigo qualquer, o Ser
humano é paralisado pelo medo. Este o leva a medir o
tamanho do problema e o de suas forças e decidir se ataca
ou foge. O processo decisório será maduro quando levar a
uma atuação corajosa ou prudente. Será imaturo quando
levar a uma atuação covarde ou irresponsável.
Terceira função do medo: estimular
Examinemos o gráfico
1. Grande dificuldade e pouca habilidade: distresse (dis
= ruim).
Isto ocorre quando:
� Minha função está acima do meu nível de
competência
� Não tenho infra-estrutura
� Não tenho equipe
� O prazo é rígido
2. Grande habilidade e baixa dificuldade: tédio =
desinteresse. Isto ocorre quando:
� A empresa está “inchada”
� Estou sendo sub-aproveitado (a)
Quando habilidade e dificuldade se equivalem, fico
na chamada faixa do fluir. A dificuldade mudará de
nome e passará a se chamar desafio. Neste sentido é que
o medo é “o sal da vida”. Como num jogo de pôquer, se eu
puder ver as cartas do adversário ganho todas as partidas -
mas o jogo fica chato. A possibilidade e o medo de perder é
que tornam o jogo interessante.
Outra coisa que muda é o estresse. Vai se chamar
eustresse (do grego eu = bom). A faixa do fluir é a
situação do medo saudável. O desafio permanece, a
habilidade e a dificuldade se equivalem. Na faixa do fluir,
dificuldade vira desafio e estresse vira eustresse. O
estresse é a saudável preparação do organismo para uma
reação de luta ou de fuga. Torna-se patológico quando se
cronifica uma dificuldade maior do que a habilidade.
Precisamos também diferenciar estafa de estresse. Estafa é
aquilo que o meu corpo fala pra mim, na hora em que toca
o despertador: “eu não sei o que você vai fazer hoje, mas
eu vou ficar na cama”.