Requalificando o medo

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REQUALIFICANDO O MEDO PAULO GAUDÊNCIO O medo é considerado um instinto de segunda classe, que nós reprimimos o tempo todo, fingindo que ele não existe. A desqualificação deste impulso é mais cruel com o homem do que com a mulher: ela ainda pode gritar porque tem um rato embaixo do sofá. O homem tem que reprimir o medo e, quase sempre, matar o ratinho para acalmá-la. Como em todos os “impulsos maus”, usamos nomes mais elegantes- como insegurança, para designar o medo que não podemos evitar sentir. Primeira função do medo: a sobrevivência O medo salva a nossa vida porque nos prepara para a luta ou a fuga. Ele é o equivalente à dor, na vida física, que avisa quando uma situação é crítica. Por exemplo, sou acordado de madrugada por um barulho na sala. Sento-me na cama num salto e, sem que isto passe pela minha consciência, todo o meu corpo ser prepara para lutar ou fugir. Ora, se eu vou lutar ou fugir, os músculos são a parte mais importante do meu organismo. Vou precisar de muito sangue nos músculos. O meu corpo, então, joga adrenalina

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transcrição da palestra proferida pelo prof. Paulo Gaudêncio sobre requalificação do medo. É possível encontrar essa palestra no youtube pesquisando Medo+Paulo Gaudencio.

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REQUALIFICANDO O MEDO

PAULO GAUDÊNCIO

O medo é considerado um instinto de segunda classe, que

nós reprimimos o tempo todo, fingindo que ele não existe.

A desqualificação deste impulso é mais cruel com o homem

do que com a mulher: ela ainda pode gritar porque tem um

rato embaixo do sofá. O homem tem que reprimir o medo

e, quase sempre, matar o ratinho para acalmá-la. Como em

todos os “impulsos maus”, usamos nomes mais elegantes-

como insegurança, para designar o medo que não podemos

evitar sentir.

Primeira função do medo: a sobrevivência

O medo salva a nossa vida porque nos prepara para a luta

ou a fuga. Ele é o equivalente à dor, na vida física, que

avisa quando uma situação é crítica. Por exemplo, sou

acordado de madrugada por um barulho na sala. Sento-me

na cama num salto e, sem que isto passe pela minha

consciência, todo o meu corpo ser prepara para lutar ou

fugir. Ora, se eu vou lutar ou fugir, os músculos são a parte

mais importante do meu organismo. Vou precisar de muito

sangue nos músculos. O meu corpo, então, joga adrenalina

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no sangue e ela o redistribui nos vasos sangüíneos,

enviando-os para os músculos, para que eu possa enfrentar

o perigo ou fugir. A adrenalina dilata as artérias e contrai

os vasos periféricos. Sai o sangue do rosto– fico “branco de

medo”. Sai o sangue do estômago – sinto “um frio na

barriga”. A rapidez é conseguida pela taquicardia. Porque

preciso de oxigenação, tenho uma taquipnéia que desliga o

diafragma e eu passo a respirar pelas vias intercostais. O

baço joga glóbulos vermelhos na corrente sangüínea e

plaquetas porque, caso eu me fira, o sangue vai coagular

mais rapidamente. O fígado descarrega açúcar (para que

eu tenha energia) e o pâncreas libera insulina. Temos

reações atávicas para assustar o adversário: dilatação da

pupila (fico “cego de raiva”), eriçamento de pelos,

glândulas sudoríparas trabalham para exalar mau cheiro

(produção de odores para assustar o adversário); aumenta

a produção de urina e o esfíncter relaxa (na criança, o xixi

“se faz” naturalmente nas situações de medo). Os

condenados à morte usam, por esse motivo, um fraldão na

hora da execução. É daí que vem a expressão popular

“cagão”, para designar aquele que tem muito medo. Isto

mostra que C.Jung tinha razão quando disse, em sua

sabedoria: “tudo o que eu conto, vocês já sabiam, estou

apenas organizando”.

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Interação do medo com a agressividade

O medo me dá oportunidade: eu fico paralisado e posso

medir o tamanho da encrenca. O que vai me mobilizar é a

minha agressividade e, por isso, ela também não pode ser

reprimida - é o combustível para ação. As pessoas lidam

com o medo de forma diferenciada:

• O corajoso sente muito medo. Avalia o tamanho da

encrenca, vê que dá para enfrentar e enfrenta.

• O covarde sente muito medo. Vê o tamanho da

encrenca, sabe que dá para enfrentar, mas foge.

• O prudente sente muito medo Avalia o tamanho da

encrenca, vê que não dá para enfrentar e foge.

• O irresponsável sente muito medo. Vê o tamanho da

encrenca sabe que não dá para enfrentar, mas

enfrenta.

• O herói, muitas vezes, é o covarde que vai fugir, erra a

direção e acaba tendo que enfrentar o perigo.

Segunda função do medo: ele é pedagógico

O medo nos leva a respeitar os limites do outro, tornando

possível a vida em comunidade. Dizem que ser pai é a arte

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de se tornar desnecessário. Num determinado ponto da

vida todo filho deverá poder caminhar sozinho e a norma

“se eu invadir os limites do outro vou sofrer uma sanção”,

precisa estar introjetada nele. Ao contrário do que muita

gente acredita, filho precisa ter medo, sim, das

conseqüências de infringir determinadas normas. Ausência

de medo gera impunidade.

A nossa introjeção do medo se dá pelo limite - Para

respeitar os limites necessários à vida em comunidade é

preciso disciplina. O que é disciplina? Um bom exemplo: os

ônibus na Alemanha passam pontualmente em seu horário:

o das 9:17 h passa exatamente às 9:17 h, nem um minuto

a mais nem a menos. Por quê? Com a temperatura em 40º

graus negativos, nenhum passageiro agüenta ficar parado

na rua esperando o ônibus. Não passar um farol fechado

para evitar a multa, mostra o que é disciplina: é o medo da

dor num órgão muito sensível - o bolso. Há alguns anos

atrás, foi feita uma campanha de propaganda muito bonita,

para implantar o uso do cinto de segurança e não

convenceu ninguém. Já o medo da multa foi eficaz. Sem

ele, muita gente não teria aprendido a usar cinto de

segurança.

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Processo Decisório - Diante de um perigo qualquer, o Ser

humano é paralisado pelo medo. Este o leva a medir o

tamanho do problema e o de suas forças e decidir se ataca

ou foge. O processo decisório será maduro quando levar a

uma atuação corajosa ou prudente. Será imaturo quando

levar a uma atuação covarde ou irresponsável.

Terceira função do medo: estimular

Examinemos o gráfico

1. Grande dificuldade e pouca habilidade: distresse (dis

= ruim).

Isto ocorre quando:

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� Minha função está acima do meu nível de

competência

� Não tenho infra-estrutura

� Não tenho equipe

� O prazo é rígido

2. Grande habilidade e baixa dificuldade: tédio =

desinteresse. Isto ocorre quando:

� A empresa está “inchada”

� Estou sendo sub-aproveitado (a)

Quando habilidade e dificuldade se equivalem, fico

na chamada faixa do fluir. A dificuldade mudará de

nome e passará a se chamar desafio. Neste sentido é que

o medo é “o sal da vida”. Como num jogo de pôquer, se eu

puder ver as cartas do adversário ganho todas as partidas -

mas o jogo fica chato. A possibilidade e o medo de perder é

que tornam o jogo interessante.

Outra coisa que muda é o estresse. Vai se chamar

eustresse (do grego eu = bom). A faixa do fluir é a

situação do medo saudável. O desafio permanece, a

habilidade e a dificuldade se equivalem. Na faixa do fluir,

dificuldade vira desafio e estresse vira eustresse. O

estresse é a saudável preparação do organismo para uma

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reação de luta ou de fuga. Torna-se patológico quando se

cronifica uma dificuldade maior do que a habilidade.

Precisamos também diferenciar estafa de estresse. Estafa é

aquilo que o meu corpo fala pra mim, na hora em que toca

o despertador: “eu não sei o que você vai fazer hoje, mas

eu vou ficar na cama”.