Resenha 3 Rodrigo de Freitas Costa Fenix Set Out Nov Dez 2012

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“IDEIAS DE UMA HISTÓRIA”: O TEATRO E A PESQUISA ACADÊMICA EM DEBATE Rodrigo de Freitas Costa* Universidade Federal do Triângulo Mineiro UFTM [email protected] Havia um sentimento de que as pessoas vão e vêm, nascem e morrem, mas os livros são eternos. Quando eu era pequeno, queria ser livro quando crescesse. Não escritor de livros, livros mesmo. Gente se pode matar como formigas. Escritores também não são tão difíceis de matar. Mas livros, mesmo se os destruirmos metodicamente, sempre há chances de sobrar algum, nem que seja apenas um exemplar, a continuar sua vida de prateleira, eterna, discreta e silenciosa em uma estante esquecida de alguma biblioteca remota em Reykjavik, em Valladolid ou em Vancouver. Amós Oz Apesar do contato dos historiadores com as linguagens artísticas não ser um movimento recente, grande parte dos textos e análises que foram produzidos sobre a história de uma específica arte não é obra de historiadores de ofício. Existem várias publicações sobre Teatro, Cinema, Artes Plásticas, Dança, Literatura, etc., que compõe um amplo caleidoscópio de ideias e análises que, além de discorrem sobre aspectos formais e temáticos, estabelecem “espaços” para as diversas produções ao longo do tempo, tudo isso sem serem, contudo, produzidas por historiadores. Neste contexto, podemos nos questionar sobre o espaço que esses profissionais ocupam frente às interpretações históricas que tratam das artes. Diante da amplidão do tema, trataremos especificamente sobre as convergências entre História e Teatro. Afinal, é este propósito * Professor Adjunto do Curso de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Uberaba- MG), doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia e pesquisador do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC).

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  • IDEIAS DE UMA HISTRIA: O TEATRO E A PESQUISA ACADMICA EM DEBATE

    Rodrigo de Freitas Costa*

    Universidade Federal do Tringulo Mineiro UFTM [email protected]

    Havia um sentimento de que as pessoas vo e

    vm, nascem e morrem, mas os livros so

    eternos. Quando eu era pequeno, queria ser

    livro quando crescesse. No escritor de livros,

    livros mesmo. Gente se pode matar como

    formigas. Escritores tambm no so to

    difceis de matar. Mas livros, mesmo se os

    destruirmos metodicamente, sempre h chances

    de sobrar algum, nem que seja apenas um

    exemplar, a continuar sua vida de prateleira,

    eterna, discreta e silenciosa em uma estante

    esquecida de alguma biblioteca remota em

    Reykjavik, em Valladolid ou em Vancouver.

    Ams Oz

    Apesar do contato dos historiadores com as linguagens artsticas no ser um

    movimento recente, grande parte dos textos e anlises que foram produzidos sobre a

    histria de uma especfica arte no obra de historiadores de ofcio. Existem vrias

    publicaes sobre Teatro, Cinema, Artes Plsticas, Dana, Literatura, etc., que compe

    um amplo caleidoscpio de ideias e anlises que, alm de discorrem sobre aspectos

    formais e temticos, estabelecem espaos para as diversas produes ao longo do

    tempo, tudo isso sem serem, contudo, produzidas por historiadores. Neste contexto,

    podemos nos questionar sobre o espao que esses profissionais ocupam frente s

    interpretaes histricas que tratam das artes. Diante da amplido do tema, trataremos

    especificamente sobre as convergncias entre Histria e Teatro. Afinal, este propsito

    * Professor Adjunto do Curso de Histria da Universidade Federal do Tringulo Mineiro (Uberaba-

    MG), doutor em Histria pela Universidade Federal de Uberlndia e pesquisador do Ncleo de

    Estudos em Histria Social da Arte e da Cultura (NEHAC).

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    que nos leva a olhar com ateno para Teatro brasileiro: ideias de uma histria, livro

    recm-lanado por Jac Guinsburg e Rosangela Patriota pela Editora Perspectiva.

    O encontro da historiadora de formao com o arguto editor e professor de

    esttica permite aos seus leitores colocar em tenso as fronteiras entre Histria e Teatro

    e, principalmente, perceber que as interpretaes acadmicas possuem sua prpria

    historicidade. Distantes do frgil e reduzido argumento de que a histria do teatro

    brasileiro s pode ser conhecida pelas anlises produzidas por aqueles que possuem

    ttulos outorgados pelos cursos de Histria, os autores recuperam a riqueza de muitas

    interpretaes construdas por crticos literrios e teatrais ao longo do tempo e

    demonstram como tais anlises foram capazes de construir um dado olhar sobre nosso

    teatro e, principalmente, como elas direcionaram muitas pesquisas.

    No novidade o fato de que a elaborao de anlises se efetiva a partir de

    escolhas e fundamentaes tericas diversas, o que significa dizer que vrios

    profissionais, ao tomar o teatro como fonte de pesquisa, partem de interesses

    relacionadas sua prpria formao. Tambm no demais dizer que, nesse caso, existe

    um processo onde se elege temas e espetculos como significativos, ao passo que outros

    so minimizados. Sendo assim, muito do que se convencionou chamar de Histria do

    Teatro Brasileiro surgiu como prtica de pesquisa acadmica, seja ela produzida por

    crticos ou historiadores. Partilhando dos ensinamentos de Michel de Certeau, podemos

    dizer que

    toda pesquisa historiogrfica se articula com um lugar de produo

    socioeconmico, poltico e cultural. [...] em funo deste lugar que

    se instauram os mtodos, que se delineia uma topografia de interesses,

    que os documentos e as questes que lhes sero propostas, se

    organizam.1

    Seguindo esse raciocnio, Guinsburg e Patriota mergulham em vrios

    momentos de nossa produo teatral, vasculham uma variedade significativa de textos e

    autores e, com isso, trazem tona os singulares elos de uma longa tradio

    interpretativa. Qual a principal qualidade de uma obra que tem essas caractersticas?

    difcil pensar exclusivamente no valor de uma obra, evidentemente que todo

    texto est sujeito a diversos processos de recepo, dessa forma os significados e as

    qualidades podem se multiplicar. No entanto, partindo do princpio de que o olhar do

    1 CERTEAU, Michel. A escrita da Histria. 2. ed. Traduo de Maria de Lourdes Menezes. Rio de

    Janeiro: Forense Universitria, 2002, p. 66-67.

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    historiador possui suas singularidades, podemos dizer que o livro recm-publicado

    apresenta-se como uma rica possibilidade para pesquisas futuras, uma vez que, por meio

    dele, possvel refletir sobre o prprio ofcio do historiador, assim como notar que as

    interpretaes construdas por esses profissionais no esto isentas de intempries. Em

    outras palavras, as reflexes de Guinsburg e Patriota no dizem respeito somente ao

    campo teatral, elas so mais contundentes e atingem o mago da produo de sentidos,

    rea bastante instvel e lcus de atuao dos historiadores. Sendo assim, pelo ponto de

    vista de um historiador de formao, podemos afirmar que a principal qualidade da obra

    est na sutileza com que os autores mostram aquilo que era to caro a Marc Bloch em

    Apologia da Histria2: o objeto da histria so os homens, em sua pluralidade e

    relatividade. Se o historiador francs nomeia sua rea do conhecimento como cincia

    da relatividade, Guinsburg e Patriota ao refletirem sobre as ideias de uma histria

    mostram que a relatividade pode ser capaz de construir valores e instituir prticas.

    Assim, a recente publicao se aproxima das prticas acadmicas e traz em

    suas pginas os homens e suas pluralidades, mas no exclusivamente aqueles que

    subiram nos palcos, escreveram textos dramticos e dirigiram peas. No texto entramos

    em contato com os homens que por meio da palavra escrita foram definindo ao longo do

    tempo o que o teatro brasileiro. Quando fechamos o livro temos a certeza de que

    muito est por se fazer e que aquela uma obra para ser lida, interpretada e, acima de

    tudo, questionada. Afinal, tirar consequncias de um livro que trata sobre a escrita da

    histria do teatro brasileiro significa tom-lo como uma possibilidade e no como uma

    resposta definitiva, e contra as certezas definitivas que os autores escrevem e, com

    isso, tm plena conscincia de que tambm fazem parte das interpretaes sobre o nosso

    teatro.

    O livro composto por seis captulos que tratam de pocas diferentes da

    produo teatral brasileira. Do sculo XIX, momento em que a Histria do nosso teatro

    pensada como um compndio da Histria da Literatura, at os dias atuais, os autores

    abarcam muitas interpretaes. No captulo 1 A experincia teatral um captulo da

    Histria da Literatura Brasileira do sculo XIX os autores retomam as primeiras

    obras que trataram da histria do teatro produzido em nossas terras, com especial

    destaque para Slvio Romero e Joo Ribeiro, historiadores da literatura, assim como

    2 BLOCH, Marc. Apologia da Histria, ou, O ofcio de historiador. Traduo de Andr Telles. Rio

    de Janeiro: Zahar, 2001.

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    Dcio de Almeida Prado que, em vrios textos, ratificou as linhas interpretativas de

    Romero e Ribeiro.

    O que chama a ateno o fato de que todo ordenamento interpretativo de

    muitas obras que tratam da produo teatral de meados do sculo XIX so provenientes

    dos estudos literrios e se fundamentam na crena de que a arte e a cultura, em especial

    o teatro, so essenciais para a formao da sociedade e do pas. O teatro carregaria em si

    mesmo um alto valor social e pedaggico, inspirado em modelos europeus de civilidade,

    em especial a partir da Frana. Esse seria o tom que embalaria diversas interpretaes

    sobre as artes cnicas produzidas em solo brasileiro e que definiria o que deveria ser

    lembrado e, por outro lado, minimizado. O exerccio comparativo entre o teatro europeu

    e o brasileiro permitiu que se tomassem as produes aqui realizadas como obras aqum

    do ideal almejado. De acordo com Guinsburg e Patriota:

    Tais consideraes repetidas reiteradamente evidenciaram uma

    avaliao corrente, no mbito crtico: os artistas brasileiros

    apresentaram, tanto no nvel artstico quanto moral, trabalhos de

    qualidade inferior quando comparados s companhias estrangeiras em

    temporada no pas e ao teatro desenvolvido no exterior, especialmente

    na Frana. Os motivos apontados foram vrios: desde a organizao

    social do trabalho (manuteno de companhias, criao de categorias

    para os atores que deveriam ter salrio fixo, imitao em relao ao

    que acontecia no estrangeiro, ausncia do Estado para regular e

    estimular a atividade, repertrio sem mrito artstico etc.) at a

    inexistncia de uma escola de arte dramtica.3

    importante perceber que esse tipo de interpretao, que possui um tempo e

    lugar, encontrou ecos nas palavras de Dcio de Almeida Prado que, ao escrever

    Histria Concisa do Teatro Brasileiro reforou as hierarquias e ideias elaboradas por

    crticos e pesquisadores da rea da literatura. Alm disso, os autores mostram duas

    situaes em que obras que fugiam aos parmetros europeus foram criticadas. A

    primeira diz respeito s crticas de Machado de Assis obra Guerras de Alecrim e

    Manjerona, de Antnio Jos. As palavras de Assis so todas no sentido de avaliar a

    comdia de Antnio Jos por meio da obra de Molire, parmetro de boa comdia. O

    segundo exemplo advm da anlise das obras de Arthur Azevedo feita pelo crtico

    Cardoso da Mota, no incio do sculo XX, que responsabilizava o dramaturgo pela

    desmoralizao do teatro no Brasil. De maneira geral, a experincia teatral brasileira do

    3 GUINSBURG, Jac; PATRIOTA, Rosangela. Teatro Brasileiro: ideias de uma histria. So Paulo:

    Perspectiva, 2012, p. 42.

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    sculo XIX vista pela Histria da Literatura brasileira se fez tendo como parmetro

    correntes artsticas e recursos cnicos estrangeiros, o que impossibilitou que a variedade

    do processo histrico pulsasse no interior das anlises crticas.

    No segundo captulo Construo historiogrfica da Histria do Teatro

    brasileiro , os autores inicialmente priorizam a anlise das obras de trs intelectuais

    que construram panoramas sobre o teatro brasileiro no somente a partir da literatura

    dramtica: Histria do Teatro Brasileiro (1938), de Lafayette Silva; O Teatro no

    Brasil (1960) de J. Galante de Souza e Panorama do Teatro Brasileiro (1962) de

    Sbato Magaldi.

    No que diz respeito ao trabalho de Lafayette Silva, resultado de um concurso

    promovido pelo Ministrio da Educao, em 1936, Guinsburg e Patriota ressaltam que o

    autor conseguiu elaborar uma narrativa plural. Nessa obra vrios prismas do teatro

    brasileiro foram contemplados, diferenciando-se, assim, de anlises anteriores que

    tratavam o teatro somente pela tica da literatura dramtica. Apesar desse avano, Silva

    ficou preso s informaes contidas nos documentos consultados sem ousar interpret-

    las, o que fez com que as motivaes de diferentes autores fossem incorporadas

    acriticamente ao trabalho e que os marcos periodizadores construdos pelas escolas

    literrias permanecessem ao longo da anlise.

    Apesar das crticas que realizou sobre o trabalho de Lafayette Silva, J. Galante

    seguiu muito de perto as trilhas abertas pelo pesquisador da dcada de 1930. De acordo

    com os autores, a estrutura da obra, assim como as referncias utilizadas por Galante

    foram muito parecidas com as de Silva, porm, esse trabalho [...] guarda diferenas

    significativas em relao ao estudo de Lafayette Silva pelo fato de que pode ser

    compreendido como um desdobramento crtico das ideias e da abordagem daquele que o

    antecedeu4. Em O Teatro no Brasil o tema do nacional tornou-se recorrente para

    justificar a cena teatral no pas, numa espcie de avaliao a posteriori sobre o teatro

    produzido desde o sculo XVI.

    J Sbato Magaldi, no intuito de construir um panorama sobre o teatro

    brasileiro, se diferencia de Silva e Galante que, a partir de suas perspectivas, procuraram

    elaborar narrativas que abrangessem a diversidade de acontecimentos cnicos no pas.

    Guinsburg e Patriota percebem importantes mritos na obra de Magaldi como, por

    4 GUINSBURG, Jac; PATRIOTA, Rosangela. Teatro Brasileiro: ideias de uma histria. So Paulo:

    Perspectiva, 2012, p. 67.

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    exemplo, o olhar lanado sobre a dramaturgia de Jos de Alencar e o fato dela apontar

    as bases de nossa historiografia cnica. No entanto, consideram que Silva, Galante e

    Magaldi partilham de ideias comuns, como a noo de periodizao, e suas

    interpretaes suplantaram o prprio processo histrico e se tornaram a histria,

    fundamentando hierarquias e valores sobre o teatro brasileiro.

    Alm dos trs pesquisadores, o segundo captulo do livro finalizado com a

    recuperao dos trabalhos de Gustavo Dria, Moderno Teatro Brasileiro: crnica de

    suas razes (1975), Hermilo Borba Filho e B. de Paiva, Cartilhas de Teatro: Histria

    do Espetculo (1969) e Nlson de Arajo, Histria do Teatro (1978). Guardadas as

    caractersticas de cada obra, os autores ressaltam que todas elas, inclusive as de Silva,

    Galante e Magaldi, so organizadas cronologicamente e possuem uma ideia central: o

    teatro brasileiro construdo a partir de uma trajetria em direo modernidade e

    modernizao. Dessa forma,

    Os trabalhos apresentados tornaram-se matrizes de uma periodizao

    da Histria do Teatro Brasileiro cuja fora interpretativa concentra-se

    na busca da modernidade e na ideia de civilizao, isto , salvo o livro

    de Lafayette Silva, as narrativas dos demais se articularam em torno

    da ideia e no das nuanas do processo histrico5.

    A partir do captulo 3 Em busca do moderno e da modernizao: o primado

    da crtica , o mergulho interpretativo recai sobre as ideias-foras que sustentam

    uma dada temporalidade e organizam as interpretaes. O tema da modernizao dos

    palcos e seus dilogos com o debate esttico europeu vm para o centro das anlises que

    tratam das produes teatrais da primeira metade do sculo XX.

    Se no sculo XIX foi possvel apreender os embates em torno do

    nacional e da misso civilizatria que caberia ao teatro, o alvorecer do

    sculo seguinte no s herdou de seu antecessor tal empreitada como

    se viu frente do grande desafio que os novos tempos apresentavam:

    entrar em compasso com o circuito internacional pelos caminhos da

    modernidade e da modernizao6.

    Guinsburg e Patriota demonstram como a ideia de modernizao se tornou uma

    ideia-fora que selecionou, valorizou e minimizou algumas produes teatrais da

    poca. Evidentemente, esse processo organizou as interpretaes sobre a histria do

    teatro brasileiro daquele perodo. Levando isso em conta, destacamos trs momentos

    5 GUINSBURG, Jac; PATRIOTA, Rosangela. Teatro Brasileiro: ideias de uma histria. So Paulo:

    Perspectiva, 2012, p. 90.

    6 Ibid, p. 93.

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    marcantes do terceiro captulo de Teatro brasileiro: ideias de uma histria. O

    primeiro diz respeito ao fato de que os autores desnudam as anlises que tomam o tema

    da modernizao dos palcos por um nico vis. Para tanto, so recuperadas algumas

    experincias artsticas de Renato Vianna, Oduvaldo Vianna, Joracy Camargo e Oswald

    de Andrade, todas do incio do sculo XX, com o objetivo de demonstrar que existiram

    concepes cnicas que carregavam indcios de modernidade, apesar de no serem

    consideradas modernas por crticos ligados, sobretudo, Semana de Arte Moderna de

    1922. O retorno ao processo histrico permite, nesse caso, que o historiador perceba que

    no existe uma nica linha interpretativa para a modernizao do teatro brasileiro.

    O segundo momento significativo do captulo diz respeito ao estabelecimento

    da encenao de Vestido de Noiva, em 1943, como marco fundador da modernidade

    cnica no Brasil. Se existia indcios de modernidade em encenaes voltadas para o

    grande pblico e se grande parte dos crticos teatrais ansiavam a aproximao das

    produes teatrais brasileiras com o repertrio internacional, condenando a comdia de

    costumes, a revista-de-ano e o teatro de sesses, ao mesmo tempo valorizando as

    produes dos grupos amadores, a encenao de Vestido de Noiva (dirigida por

    Ziembinski, com cenrios de Santa Rosa e realizao de Os Comediantes), surgiu como

    uma grande possibilidade, ou seja, como marco fundador do moderno teatro brasileiro.

    Mais uma vez voltando ao processo histrico, Guinsburg e Patriota assinalam: as

    evidncias acerca do movimento das ideias e dos artistas pelo territrio brasileiro

    demonstram que somente um espetculo no seria suficiente para o estabelecimento de

    um novo momento para os palcos brasileiros7. Novamente a historicidade torna-se

    parceira da anlise crtica com o objetivo de elucidar a fora dos processos

    interpretativos.

    A fundao em So Paulo do Teatro Brasileiro de Comdia (1948), da Escola

    de Arte Dramtica (1948), do Teatro Maria Della Costa (1954) e, no Rio de Janeiro, do

    Teatro Popular de Arte (1948), todas essas iniciativas tambm so importantes indcios

    do processo de modernizao do teatro brasileiro e que, figuram para os crticos da

    poca, como momentos de consolidao da importante iniciativa modernizadora

    iniciada em 1943 com a encenao de Vestido de Noiva. Percebe-se, portanto, a

    convergncia entre artistas e crticos com o objetivo de valorizar a internacionalizao e

    7 GUINSBURG, Jac; PATRIOTA, Rosangela. Teatro Brasileiro: ideias de uma histria. So Paulo:

    Perspectiva, 2012, p. 123.

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    a modernidade do teatro brasileiro. Nesse momento, os autores ressaltam um elemento,

    a nosso ver, extremamente significativo: o teatro da modernizao, almejado por

    crticos, durante muito tempo seguiu um caminho paralelo ao teatro efetivamente

    realizado no Brasil, em especial por meio das comdias de costumes. No entanto, a

    partir de 1940 o moderno materializou-se por meio da encenao dirigida por

    Ziembinski e a fundao dos grupos teatrais de So Paulo e Rio de Janeiro. Assim, os

    crticos deixaram de se preocupar somente com o texto dramtico, se distanciaram da

    histria da literatura e lanaram as bases para mltiplas interpretaes. Dessa forma, a

    multiplicidade do processo histrico cedeu espao para a interpretao que visava

    modernidade.

    Em Nacionalismo crtico liberdade - identidade nacional, quarto captulo

    do livro, os autores se voltam para o teatro do final dos anos de 1950 at o incio da

    dcada de 1970. As ideias-foras que embalam a construo interpretativa sobre esse

    perodo so aquelas que do ttulo ao captulo. O nacionalismo, presente na produo

    teatral brasileira desde o sculo XIX, continua efetivo na segunda metade do sculo XX,

    porm, devido s circunstncias histricas, ele perde o carter civilizador e de

    aproximao com o exterior e volta-se para os grupos desfavorecidos. O nacionalismo

    crtico se v capaz de refletir sobre as condies de vida e de luta da populao

    brasileira. Assim, os palcos assuem compromissos pblicos a fim de impulsionar a luta

    pela igualdade social. No por acaso surgem nesse momento as criaes de

    Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e a formao do Teatro de Arena de

    So Paulo. Alm desses nomes, Guinsburg e Patriota ressaltam o Teatro Oficina e as

    atividades do Movimento Popular de Cultura (MCP) em Pernambuco e o Centro

    Popular de Cultura (CPC), bem como o impacto das ideias de Jean-Paul Sartre, Antnio

    Gramsci, Karl Marx, Bertolt Brecht e do cinema de Eisenstein sobre a produo da

    poca. Enfim, a produo teatral se aproxima da militncia poltica.

    evidente que os acontecimentos de 1964 tiveram grande impacto sobre as

    produes teatrais. A complexidade do momento obviamente que se fez sentir entre os

    homens e mulheres do teatro, de maneira geral, a revoluo deixou de ser uma

    possibilidade eminente e alteraes foram sentidas:

    Uma nova realidade sociopoltica passou a vigorar no pas, mas a

    dinamicidade e o vigor do teatro mantiveram-se. O olhar crtico e

    histrico continuou voltado para a dramaturgia, em seu status de

    escritura e da palavra propriamente dita, na medida que o perodo

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    anterior a 1964 ela fora o lcus privilegiado das intenes polticas e

    sociais. No entanto, pouco a pouco, o quadro poltico e cultural foi

    adquirindo maior complexidade e, nesse processo, mesmo que

    timidamente, iniciou-se certo descentramento em relao atividade

    teatral8.

    A partir dessa reflexo, Guinsburg e Patriota recuperam o nome de Anatol

    Rosenfeld, crtico e pensador alemo que veio para o Brasil fugindo das perseguies de

    Hitler. Tal crtico foi responsvel por inserir no mbito da anlise crtica a percepo do

    fenmeno teatral. A nfase de sua anlise no estava exclusivamente nos textos

    dramticos, o teatro no poderia ser entendido somente pela tradio literria, era

    preciso levar em conta o espao cnico, local onde o texto ganha materialidade por meio

    de uma srie de elementos. A partir dessa reflexo, o leitor percebe que o nacionalismo

    crtico permitiu uma produo dramatrgica de acordo com o momento histrico, ao

    passo que as anlises produzidas pelos crticos, em especial Rosenfeld, trouxeram

    grande contribuio ao pensamento crtico e esttico da poca. Nesse contexto, as

    ideias-foras nacionalismo crtico, identidade nacional e liberdade foram capazes

    de organizar o processo interpretativo sobre o perodo, norteando, assim, estudos

    crticos e a confeco da Histria do Teatro Brasileiro, inclusive respaldada pelas

    contribuies de Rosenfeld.

    No quinto captulo Fim dos grandes temas e da ideia de abrangncia: a

    diversidade como temtica e como fazer teatral , os autores se voltam para a

    conhecida contraposio entre teatro comercial e no comercial (companhias x

    grupos), amplamente utilizada para interpretar as prticas teatrais da dcada de 1970.

    Evidentemente, este momento histrico trouxe novas demandas polticas para toda a

    sociedade. Sendo assim, o teatro se transformou, renovadas propostas dramatrgicas e

    cnicas surgiram e uma nova gerao de profissionais dos palcos comeou a atuar.

    Guinsburg e Patriota defendem que, nessa poca, houve a perda de uma ideia

    homognea capaz de recobrir grande parte da produo teatral como a necessidade da

    transformao poltica que marcou anos de 1960 e a ampliao do nmero de

    pesquisas em nvel de ps-graduao nas reas de letras, filosofia e artes cnicas,

    permitindo a realizao de pesquisas sobre companhias, atores, diretores e dramaturgos.

    8 GUINSBURG, Jac; PATRIOTA, Rosangela. Teatro Brasileiro: ideias de uma histria. So Paulo:

    Perspectiva, 2012, p. 154.

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    Concomitante ampliao das produes artsticas e do processo criativo,

    tornou-se invivel o reconhecimento de uma ideia-fora que organizasse a

    interpretao teatral do perodo. Muito do que se produziu na poca voltou-se para a

    discusso da prpria prtica artstica, ou melhor, o vetor interpretativo recaiu sobre o

    ofcio teatral. Como forma de demonstrar a efetividade de suas reflexes, os autores

    recuperam a iniciativa levada cabo pelo jornalista e professor Adauto Novaes que,

    quando esteve frente do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundao Nacional de Arte

    do Ministrio da Cultura (final dos anos 1970), criou dois grupos de estudos sobre os

    anos 1970. Tais discusses redundaram em srie de publicaes voltadas para a msica

    popular, teatro, literatura, cinema e televiso, alm da srie O nacional e o popular na

    cultura brasileira, editada pela Brasiliense. No caso do teatro, essas reflexes

    priorizaram a contraposio entre companhias e grupos, tendo como parmetro as

    produes do Arena e do Oficina na dcada anterior. O fim dos grandes temas permitiu

    a reflexo sobre o fazer teatral, nesse contexto Guinsburg e Patriota demonstram que

    voltar ao processo histrico torna-se imperioso para fugir de possveis anlises

    dicotmicas.

    Antes de encerrar o livro, os autores oferecem ao leitor uma corajosa anlise da

    cena teatral contempornea. O finito do infinito, ltimo captulo da obra, nos permite

    entrar em contato com a amplitude do movimento teatral brasileiro. Se no incio do

    sculo XX foi possvel a publicao de obras que abarcassem o fazer teatral no Brasil

    como um todo lembremos de Lafayette Silva , o fim deste mesmo sculo e o incio

    do seguinte nos mostra uma multiplicidade de projetos cnicos e anlises acadmicas.

    A respeito dos projetos cnicos, os autores remetem os leitores a iniciativas

    diversas, como por exemplo a importncia que a figura do encenador assumiu nos anos

    de 1980 e 1990; o dilogo com encenadores e dramaturgos internacionais, como

    Eugnio Barba, Bob Wilson, Heiner Mller, entre outros e, por fim, as expectativas

    criativas de diferentes grupos, como Companhia Cemitrio dos Automveis, Grupo

    Tapa, Companhia do Lato, Companhia Armazm de Teatro, Sutil Companhia de

    Teatro, Companhia dos Atores, entre outras.

    Outro debate fundamental desse captulo diz respeito aproximao das

    realizaes teatrais de grupos que se organizaram inicialmente nas universidades e

    depois se estruturaram em torno da figura de um diretor. Nesse caso, grande parte das

    anlises acadmicas diz respeito ao processo colaborativo que, apesar da multiplicidade

  • Fnix Revista de Histria e Estudos Culturais Setembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2012 Vol. 9 Ano IX n 3

    ISSN: 1807-6971 Disponvel em: www.revistafenix.pro.br

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    cnica, tornou-se uma ideia-fora no sentido de organizar as interpretaes e anlises

    que tratam da dcada de 1990. Muitos pesquisadores tm usado o processo colaborativo

    como forma de organizar as explicaes sobre o perodo. Sob esse aspecto, Guinsburg e

    Patriota consideram que mesmo com a pluralidade de interesses e de espaos de

    pesquisa, as referncias bibliogrficas e tericas mantm-se relativamente prximas de

    uma homogeneidade9. Com isso, os autores aguam seus leitores no sentido de

    perceber que o processo histrico bastante amplo e mltiplo e, devido a isso, ele no

    pode ser interpretado tendo um parmetro como vetor analtico, novamente a

    necessidade de voltar ao processo histrico torna-se fundamental.

    difcil mencionar a amplitude da contribuio do livro recm-lanado pela

    Editora Perspectiva, porm acreditamos bastante na ideia que d ttulo ao ltimo

    captulo da obra: O finito do infinito. O fato da pesquisa acadmica possuir um fim

    no significa que os caminhos interpretativos so passveis de serem todos conhecidos.

    Nesse sentido, acreditamos que a anlise de Jac Guinsburg e Rosangela Patriota

    fundamental para rever posicionamentos e repensar a Histria do Teatro Brasileiro, no

    entanto, ela s se tornar profcua quando os leitores perceberem que seus autores

    tambm esto localizados em um tempo e escrevem a partir de perspectivas acadmicas

    definidas. Teatro brasileiro: ideias de uma histria possui um fim, o pesquisador

    atento fechar sua ltima pgina e perceber de maneira contundente que a construo

    do conhecimento alm de ser contnua mltipla e carregada de interesses, portanto,

    vale pena continuar a reflexo, porm, isso depende do leitor, que tambm um

    agente social e histrico. Desse ponto de vista, o livro um convite reflexo sobre a

    prtica da pesquisa acadmica. Ele vale pelo fluxo de pensamento que capaz de

    promover e provocar.

    9 GUINSBURG, Jac; PATRIOTA, Rosangela. Teatro Brasileiro: ideias de uma histria. So Paulo:

    Perspectiva, 2012, p. 248.