Resenha Árido Movie

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A paper made for a presentation about "Árido Movie". // Trabalho feito para uma apresentação sobre "Árido Movie".

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO REALIDADE REGIONAL – PROFª GLÓRIA RABAY

Saber o que é pelo que não é

Resenha crítica do filme “Árido Movie”.

Fernanda V. Eggers - 10623429

Eloísa França Cândido - 10623431

João Pessoa, 18 de dezembro de 2009

A resenha de “Árido Movie” a seguir procura analisar o filme sob os aspectos da água e seu uso político e da construção de personalidade por parte do protagonista, perdido num mundo que não é seu.

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O sertão nordestino retratado no cinema nacional tem em muitas das vezes

um padrão imagético. Um lugar seco, retrógrado, onde a única maneira de crescer

na vida é saindo de lá. (MANSUR & FECHINE, 2008) O filme “Árido Movie”, de Lírio

Ferreira, explora a presença constante da luz e do seco, como ele também fez em

“Baile Perfumado”, filme que trata da saga real do mascate libanês Benjamin

Abrahão, que fez as únicas imagens reais de Virgulino Ferreira, conhecido como

Lampião.

“Árido Movie” se passa num sertão contemporâneo, ainda que atrasado em

relação à capital e às metrópoles, e coloca em conflito as visões de mundo entre

quem saiu de tal lugar há muito tempo e voltou e quem ficou no sertão, enraizando

em si os conceitos e preconceitos de uma terra seca. É um drama lançado em 2006,

com 115 minutos de duração e, além da direção de Lírio Ferreira, que também

participou da roteirização e produção, conta com roteiro de Hilton Lacerda, Sérgio

Oliveira e Eduardo Nunes e produção e fotografia de Murilo Salles.

O elenco do filme apresenta uma mistura de nomes conhecidos do público,

principalmente pra quem acompanha as novelas da Rede Globo, como Matheus

Nachtergaele, Guilherme Weber e Giulia Gam, e de atores conhecidos do público

nordestino e de quem assiste filmes nacionais com frequência, como José Dumont,

Luiz Carlos Vasconcelos e Aramis Trindade.

Nas críticas cinematográficas, o filme é enquadrado como road movie, uma

categoria definida por Nestingen e Elkington como:

“Imagens do carro, planos de diálogos no interior

do automóvel, contrastes entre espaços urbanos

e rurais, panoramas com rápidos planos pan em

movimento, filmagem locais. Sintaticamente, o

gênero também poderia ser definido como uma

série de conflitos entre fixidez e mobilidade,

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pertencer e marginalidade, fixação e

emancipação.” (NESTINGEN & ELKINTON, 2005)1

E essa falta de “fixabilidade”, esse constante contraste de paisagens é

bastante presente durante todo o filme. Dando a sensação de que nada é estável ou

imutável, gerando insegurança no espectador. O que se julga real pode ser uma

mentira, como se vê mais a frente, perto do final do filme, na desconstrução do

discurso do personagem Meu Velho.

O filme narra a volta de Jonas (Guilherme Weber) à sua cidade natal no Vale

do Rocha, sertão nordestino, por causa da morte de seu pai, Lázaro (Paulo César

Pereio), assassinado pelo índio Jurandir (Luiz Carlos Vasconcelos). Jonas vive em São

Paulo, saiu do interior muito pequeno, levado pela mãe, interpretada por Renata

Sorrah, para Recife. A primeira imagem que se tem de Jonas é dele desfocado, um

recurso utilizado para deixar claro ao espectador que se trata de uma figura sem

identidade definida, sem certezas.

“Jonas aparece desfocado (literalmente fora de

foco pelo efeito de profundidade de campo), e

assim permanece durante a sua peregrinação de

volta às origens (agora o sentido de “desfoque” é

metafórico, o personagem de Jonas não toma o

caráter principal).” (MANSUR & FECHINE, 2008)

Essa estranheza vai se agravando ao longo do filme e começa assim que

Jonas chega à Recife: chama a mãe pelo nome, não se sente a vontade perto dos

amigos de adolescência e parte para o interior de Pernambuco com a intenção de

ficar lá o menor tempo possível. Quando chega à cidade fictícia de Vale do Rocha,

ele descobre que talvez seus planos não se desenvolvam como desejado.

1 Tradução nossa.

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A presença de Jonas no filme é importante, principalmente porque ele

funciona como personagem de amarração: as histórias se juntam através dele, mas

não por causa dele. O início do filme deixa isso claro, já que a morte de seu pai se

deu a milhares de quilômetros de distância. Também se trata da descoberta de uma

personalidade, descobrir o que é pelo que não é. Não concordar com o estilo de

vida da família que está visitando o faz entrar em um processo de auto-descoberta

que culmina quando ele toma um chá alucinógeno com o índio Zé Elétrico (José

Dumont).

Jonas percebe que sua família detém poder na cidade e isso traz para ele

algumas responsabilidades, com a de matar o assassino de seu pai e tomar conta

dos que restaram de sua família, tornando-se o chefe dela. A urbanização de Jonas

entra em conflito com a cultura coronelista de sua família no sertão, fazendo-o se

sentir ainda mais um estrangeiro.

A família de Jonas no filme representa praticamente todos os estereótipos

associados a uma família sertaneja. Detentora de poder na região, ela controla a

política, a distribuição da água e patrocina o banditismo, assim contribuindo para a

estagnação do desenvolvimento do lugar. Para eles, não é interessante que a ordem

seja subvertida e essa é uma das preocupações do personagem Márcio Greyck

(Aramis Trindade), que desde o início duvida da capacidade de Jonas de cumprir a

ordem de sua avó: matar o índio Jurandir.

Márcio Greyck e Salustiano (Matheus Nachtergaele) estão envolvidos com a

política e com o controle da região através de “jagunços montados”, a Gangue da

CG. São homens montados em motos ao invés de cavalos, é o ponto do sertão que

mais se aproxima da modernidade. Os outros elementos do filme reforçam a

sensação de “lugar parado no tempo”, como a trilha sonora, com músicas

majoritariamente dos anos 1960, e os ambientes internos escuros. Apesar de a

cidade ter energia elétrica, como podemos ver n’O Posto, a casa de Dona Carmo

(Maria de Jesus Bacarelli), avó de Jonas, está sempre muito escura.

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Temos em D. Carmo a figura de uma mulher forte, que comanda a família,

comumente considerada matriarcal. No entanto, uma família matriarcal é aquela

em que:

“a mulher é a base da família e detém a

autoridade sobre a tribo ou grupo (...) tem maior

importância econômica e, em consequência,

predomina a linhagem matrilinear, segundo a

qual o nome dos filhos e a sua situação social

provém da mãe e não do pai.” (MARQUES, 2005)

Ao insistir que Jonas precisa matar o assassino do pai e assumir o comando

da família, personagem de Maria de Jesus Bacarelli reforça os costumes patriarcais.

Sendo assim, a família de Jonas é uma família patriarcal com uma mulher no

comando. Ao longo do filme vemos que esse controle por parte da avó é

temporário.

Outro personagem que vem enriquecer esse cenário de clichê cultural

sertanejo é o Meu Velho (José Celso Martinez Corrêa), figura que se julga enviada

por Deus, remete ao constante fluxo de movimentos messiânicos que existiram no

Nordeste brasileiro, sendo o mais conhecido deles Canudos, cidade do interior

baiano, onde ocorreu o movimento liderado por Antônio Conselheiro2. Os dois

movimentos, o ficcional e o real, têm como ponto convergente a água. Antônio

Conselheiro dizia “o sertão vai virar mar” e Meu Velho usa da idéia de que todos

vão para Io, uma das luas de Júpiter. O que também faz as pessoas recorrerem a

Meu Velho é o fato de sua fazenda ser, até onde o filme mostra, o único lugar a ter

2 “Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, foi um líder do movimento messiânico que reuniu milhares de sertanejos no arraial de Canudos, no Nordeste da Bahia, à margem do rio Vasa- Barris, onde resistiu às tropas do Governo Federal.(...) Abandonado pela mulher, entregou-se definitivamente à vida errante de pregador fanático, percorrendo os sertões do Ceará, Pernambuco, Sergipe e Bahia, onde já era conhecido como milagreiro. Quando em 1874, apareceu na Bahia, já o seguiam os primeiros fiéis.” (ANDRADE)

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água abundante na cidade, tornando-a, assim, um ponto de peregrinação e

aconselhamento.

Com o intuito de registrar o uso da água numa terra tão seca, a personagem

Soledad (Giulia Gam) entra na trama. Percebe-se que é o único personagem que vai

até Vale do Rocha sem que Jonas seja o motivo para tal, apesar de suas histórias se

cruzarem. Ela também apresenta a característica de ser o único personagem que

compartilha semelhanças na visão de mundo com Jonas, funcionando válvula de

escape e porto seguro para ele, fazendo com que se sinta a vontade para questionar

tudo o que se mostra estranho naquela terra a qual não pertence.

Em seu documentário, Soledad registra diversas figuras presentes no sertão

nordestino, com um forte tom místico, como no messianismo relacionado ao já

citado Meu Velho. O Procurador de Água também evoca o misticismo, pois diz à

documentarista que nem todos podem pegar um pedaço de madeira bifurcado e

sair à procura de água, só quem tem um dom, como ele alega possuir. O homem faz

cena e mostra como trabalha para a câmera, mas ao ser perguntado se ali tem

água, admite: “Tem não, dona”. Por fim, a vidente, Madame Bernadete, aparece na

cena da feira de uma cidade no meio do caminho, na qual Jonas e Soledad e ela

oferece uma carona ao homem do tempo, assim poderiam conversar e chegariam

mais rápido ao destino. A vidente caracteriza a fé que o homem comum tem de que

alguém pode ver o futuro, ainda que ela possa ser um embuste. No entanto,

podemos identificar em sua fala, quando “lê” o futuro de Jonas, um flash forward

(prolepse)3: ao dizer que Jonas carrega consigo a dúvida, o inevitável e a falta de

futuro, Madame Bernadete adianta o que ele encontrará em Rocha e na sua família.

A água, que tanto faz falta no interior nordestino, é utilizada em jogos

políticos, encobertos pelo misticismo. A “água mimosa” de Meu Velho é levada até

a fazenda por caminhões-pipa, e negociada com Salustiano e Márcio Greyck. Eles

3 “Denominado de “prolepse” pela teoria da narrativa, este curioso fato estilístico nos informa sobre

o futuro do enredo do filme, num momento em que ainda não temos condição semiótica de conhecer o seu desenvolvimento ou desenlace.” (BRITO, 1995)

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também a utilizam para manter a plantação de maconha, único cenário verde desde

que Jonas chega ao interior, ao invés de ser distribuída para a população.

A plantação é descoberta pelos amigos de Jonas, Bob (Selton Mello), Verinha

(Mariana Lima) e Falcão (Gustavo Falcão), que vão para Vale do Rocha por causa de

Jonas, achando que o amigo precisa de apoio moral, mas se detém n’O Posto e lá

ficam, aonde comem, bebem, fumam e conversam sobre liberação da maconha

com Zé Elétrico, a quem adotam como “guia espiritual”. O nome do posto de

gasolina é mais um exemplo de jogo de palavras, pois a leitura da placa, nas cenas

em que aparece, pode ser tanto O Posto quanto Oposto e evidencia um

questionamento fundamental do filme sobre a oposição entre dois mundos

diferentes, o de Jonas e o de Lázaro.

Bob é o principal responsável pelo alívio cômico do filme, sempre

relacionado à maconha, como podemos ver desde a cena em que ele ensina o

amigo Falcão a fazer um baseado (cigarro de maconha). Jonas encontra os amigos

acidentalmente no posto-bar de Zé Elétrico, já que não sabia que eles também

viajariam, mas logo se afasta. A história deles corre paralelamente. Por indicação de

Wedja, índia que trabalha no bar e foi o motivo pelo qual Lázaro foi assassinado,

Bob insiste para que conheçam a plantação de maconha e lá o trio encontra o que

considera o paraíso e a libertação. A evidência está nas danças e nas falas de Bob:

“Tim Maia, me dê motivo” e, após soltar fumaça ao fumar maconha: “Habemus

papam”, sempre mantendo a linha humorística. “Mas nenhuma brincadeira supera

a seguinte “tirada”: “Bocas secas, de Graciliano Ramos”. É a negação de um tipo de

representação do sertão, é a proposta de um novo caminho, ainda que tortuoso.

Em “Árido Movie”, o sertão é “massa”, como afirma Falcão.” (CRONEMBERGER) A

sensação de paraíso encontrado, no entanto, é falsa, já que a região é controlada e

os três logo são surpreendidos pelos jagunços motoqueiros de Salustiano.

A relação da água com a política e a terra é explicada a Jonas por Zé Elétrico,

que assume o papel de crítico sócio-cultural dentro do filme. O índio dá a Jonas um

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chá alucinógeno, que piora seu desnorteamento em relação a sua identidade, e

conta como a terra era boa para os índios, que a utilizavam de forma sustentável, e

como foi “estragada” pela ganância dos brancos. O discurso mostra a necessidade

de uso sustentável das terras, mas também a idealização de um povo perfeito, o

que lembra a Primeira Geração do Romantismo na Literatura brasileira.4

Para o cinema nacional, o Nordeste ainda se mostra como um lugar onde

predomina o passado, onde aquele que volta para sua terra se sente deslocado,

como se não fizesse mais parte daquela realidade. Temos Jonas como um exemplo

disso e como um contraponto entre o interior e a capital e, principalmente, entre o

Sudeste e o Nordeste, pois mesmo em Recife ele não se sente em casa.

Árido Movie trata não apenas da busca pelo controle da água, o jogo político

existente em seu entorno, mas também da busca por si. Jonas, saído do interior

muito novo, não se identifica com aquela cultura nem com a vida em Recife, aonde

cresceu. No entanto, ainda que tenha aceitado e adquirido os padrões e conceitos

do Sudeste, ainda não tinha certeza se ali era seu lugar, até que, por ver o que não

era (compactuante com o coronelismo e a cultura retrógrada da família de seu pai

ou bon vivant como seus amigos de Recife), descobriu o que era.

4 “O índio tornou-se o símbolo do homem brasileiro, de sua origem e originalidade, de seu caráter

independente, puro (de "bom selvagem"), bravo e honrado. Ressalve-se, porém, que esse índio é compreendido através da óptica idealizadora do romantismo e está longe de corresponder a uma aproximação da realidade do índio brasileiro. Simboliza, antes, os ideais de heroísmo e humanidade das camadas cultas de nossa sociedade imperial.” (OLIVIERI)

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Referências Bibliográficas

BRITO, João Batista de. Questões de teoria e recepção. Imagens Amadas. Ateliê

Editorial, São Paulo. 1995.

FECHINE, Yvana. MANSUR, Amanda. O road movie nas rotas de fuga do árido

cinema de Pernambuco. XI Congresso Internacional da ABRALIC - Tessituras,

Interações, Convergências. USP, São Paulo. 2008.

NESTINGEN, Andrew & ELKINGTON, Trevor G. (eds.). Transnational Cinema in a

Global North: Nordic Cinema in Transition. Contemporary Approaches to Film and

Television Series. Detroit: Wayne State UP, 2005.

SILVEIRA, Manoela Falcón. A imagem do sujeito distorcido em “Árido Movie”e “Essa

Terra”. XI Congresso Internacional da ABRALIC - Tessituras, Interações,

Convergências. USP, São Paulo. 2008.

Referências na Internet

ANDRADE, Maria do Carmo. Antônio Conselheiro. Pesquisa Escolar On-Line,

Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: http://www.fundaj.gov.br

Consultado em: 16 de dezembro de 2009.

CRONEMBERGER, Diogo. Maneirismos de Cinema. Trópico. Disponível em:

http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2913,1.shl Consultado em: 16 de

dezembro de 2009.

HILUEY, Amin Stepple. Um belo artigo sobre “Árido Movie”: o filme “cult”da

temporada “desbrava o sertão deste início do século com olhos livres”. Disponível

em: http://www.geneton.com.br Consultado em: 4 de dezembro de 2009.

OLIVIERI, Antonio Carlos. Romance indianista. UOL educação. Disponível em:

http://educacao.uol.com.br/literatura/ult1706u18.jhtm Consultado em: 15 de

dezembro de 2009.

MARQUES, Núbia. Matriarcado. E-Dicionário de termos literários. Disponível em:

http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/matriarcado.htm Consultado em: 15 de

dezembro de 2009.