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Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanits scientifiques. Paris : La dcouverte. Diogo Corra1 [email protected] / [email protected] J em outros livros como Cincia em Ao, Petites leons de sociologie des sciences e Reassembling the Social, onde expunha as principais questes da sua ANT actornetwork theory , uma das fundamentais preocupaes de Bruno Latour sempre foi a exposio e a explicitao sistemtica das questes e temas tratados em seus livros e artigos mais tcnicos anteriores. O livro Cogitamus deve ser enquadrado como uma radicalizao desse projeto, s que agora mais do que nunca tornado acessvel no apenas aos especialistas (filsofos, antroplogos, socilogos e afins), mas tambm ao leitor leigo. Isso dito, deve-se prontamente acrescentar que embora se trate de um texto introdutrio, Cogitamus no uma vulgarizao de trabalhos precedentes. Ao contrrio, nessa releitura que Latour faz das temticas tratadas ao longo de sua obra, ele no apenas integra e enquadra temas heterogneos em uma perspectiva comum, como tambm aproveita para, como veremos adiante, introduzir novas discusses e nfases at ento evitadas ou deixadas de lado. O modo de apresentao do livro bem simples. Latour escreve seis cartas, todas elas endereadas a uma estudante alem, muito provavelmente Dorothea Heinz, cujo nome est presente nos agradecimentos e cujas iniciais aparecem na dedicatria do livro. Cada carta, que se inicia com ilustraes extradas de jornais dirios, explora alguns dos pontos fundamentais da disciplina dada pelo prprio Latour no Instituto de Estudos Polticos de Paris (IEP), intitulada Humanidades Cientficas.

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Doutorando em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Polticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e da cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS) (co-tutela).

Na primeira carta, o conceito de traduo o carro chefe. Com ele, Latour visa refletir sobre um primeiro paradoxo: como se virar entre, de um lado, o senso comum que nos diz (...) que as cincias so corpos estrangeiros e, de outro lado, esse mesmo senso comum que multiplica os exemplos de sua ligao? (p. 16). A estratgia de Latour parece, portanto, ser dupla: de um lado, apontar a natureza relacional das cincias e das tcnicas com os demais saberes e, de outro, reinserir os saberes no mundo. Para isso, o autor volta Grcia antiga e traz baila a narrativa mtica de Plutarco, presente em Vidas paralelas, a propsito do papel de Arquimedes no cerco feito cidade Siracusa. Simples assim: Hiron, Rei de Siracusa, desejava executar o seguinte curso de ao: proteger a sua cidade do cerco das tropas do general romano Marcellus. Para que isso se tornasse possvel, contudo, necessitava passar por um desvio: as ideias de Arquimedes sobre a alavanca. Pediu ento o Rei ao sbio que este ltimo aplicasse a sua inveno na prtica, em uma situao concreta. Aps a sua bem sucedida demonstrao, diz-nos Latour que Arquimedes promoveu uma verdadeira inverso das relaes de fora: um velho homem, Arquimedes, graas ao jogo de roldanas, torna-se mais forte que uma nau cheia de soldados e cargas (p. 20). A mensagem clara: tanto a ideia de Arquimedes quanto a defesa da cidade de Siracusa s se tornaram realizveis e puderam perseverar graas composio dos interesses do Rei e do sbio. Muito embora, no final, Plutarco narre Arquimedes como um esprito to elevado e profundo que s consagrava seu esforo aos objetos cuja beleza e excelncia no esto misturados com nenhuma necessidade material (p. 23), a prpria histria contada o contradiz. Latour aproveita essa contradio para explorar a tese de que toda ideia s avana ao preo de mltiplos desvios e composies: no fim, a ao tecida por esses encadeamentos e parece com uma multiplicidade de

camadas de preocupaes, de prticas, de lnguas diferentes s da guerra, da geometria, da filosofia, da poltica (p. 30). Se assim , eis uma das primeira tarefas das humanidades cientficas: dar conta, na medida do possvel, de todo o processo, e no apenas de seu resultado, retraando toda a cadeia de desvios e composies. Ora, se cada ideia s se expande e persevera mediante essas mltiplas transformaes, a consequncia natural dessa perspectiva uma reviso da noo de autoria: quem teria feito ou inventado, por exemplo, a plula anticoncepcional? Trata-se de uma questo secundria, j que o principal seria retra-la como a resultante das tradues embrenhadas nos interesses de, ao menos, quatro protagonistas: a militante feminista Margaret Sanger, a viva herdeira da fortuna de uma fabricantes de tratores Catherine Dexter McCormick, o qumico notrio Gregory Pincus e, enfim, a famlia das molculas chamadas de esteroides (p. 31) Da em diante, Latour ratifica esse duplo movimento. De um lado, o diretor cientfico da SciencePo Paris mostra como as cincias e as tcnicas no esto separadas, mas encontram-se permanentemente em relao com outros saberes. De outro lado, Latour ancora os saberes na vida e no universo da experincia. Da porque a cincia apenas interessa medida que possui relao com outros cursos de ao que no apenas aqueles dos cientistas em seus respectivos espaos laboratoriais. Em outros termos, a cincia ganha seu valor e sentido apenas enquanto capaz de se referir aos interesses de outras formas de vida. E interesse, na acepo latouriana, fazse preciso dizer, no significa uma representao mental que existe de modo prvio ao, mas o que emerge e se forma ao longo do prprio processo de composio e desvio dos cursos de ao.

Na segunda carta, o conceito de prova assume o protagonismo da cena. Tratase de um problema de mtodo: como analisar os desvios e as composies se, em geral, eles so invisveis ou, para retomar uma velha expresso da fenomenologia, tidas por bvias (taken for granted)? Ora, explica Latour, no momento de prova que se revela o embotamento de desvios e de composies (p. 45). Ainda que exista outras modalidades de expresso da prova, a mais pedaggica, segundo Latour, mesmo a pane. A situao nos conhecida: tudo funciona muito bem at que, de repente, paf, bug, gap, crise, furor (p. 45). O computador, um mero objeto tcnico, se apresenta agora enquanto um projeto scio-tcnico: de simples, meu computador se tornou mltiplo; de unificado, ele se tornou desarmnico; de imediato, ele se tornou mediado; de rpido, ele se tornou lento (...) (p. 47). E parte da rede e dos elementos heterogneos constitutivos que o mantinham funcionando em perfeito estado, e agora falham, vem ao primeiro plano e tornam-se visveis: quando as coisas se complicam que procuramos analisar os seus elos (...) (p. 16). Um processo de inquirio no sentido de Dewey se inicia. Levado equipe de tcnicos, a indeterminao inicial comea a ser decifrada; a fonte da perturbao encontrada e um problema se revela progressivamente. Solues e hipteses so testadas, verificadas. S ento que, passado algum tempo, o problema , enfim, reparado, e o dono do computador pode usufruir de sua mquina, e retomar o seu curso de ao... Uma vez concludo o processo, e hop, o que h de verdadeiramente original nas tcnicas logo desaparece (p. 55). Por essa perspectiva, o objeto redescoberto, portanto, no uma coisa inerte, parada, l fora, mas como um fluxo ininterrupto de relaes: ele bem existe, mas ao modo de um corte no instante t. O objeto uma parada sobre uma imagem do filme do projeto (p. 55).

Desde suas reflexes de metafsica especulativa presente em Irreductions (1984), Latour no retomava o conceito de prova. Esse resgate, portanto, reverbera uma srie de discusses do que pode hoje ser chamado de sociologia pragmtica francesa ou, como Cyril Lemieux a intitula, sociologia das provas. Tanto se nos ativermos pragmtica dos julgamentos ordinrios de Luc Boltanski e Laurent Thvenot (1991), quanto pragmtica do senso de realidade trabalhada por Francis Chateauraynaud e Christian Bessy, a noo de prova central, pois permite dar conta da incerteza inerente ao agir e ao mundo. Essa noo abre espao para uma via mdia entre o universo etnometodlogico no qual a realidade permanentemente renegociada local e situacionalmente e um universo neo-objetivista, no qual os elementos envoltos na ao esto determinados de forma prvia mediante a atualizao de um passado incorporado nos corpos (habitus) e objetivado nas coisas (campos). O momento de prova o momento em que as coisas so postas prova. Ele o momento de indefinio que exige uma nova definio das entidades e de seus respectivos valores. Como veremos na parte final da resenha, Latour impe discusso seu prprio estilo. Seguindo suas reflexes sobre a relevncia dos dispositivos tcnicos, Latour volta discusso a respeito da diferena entre os homens e os macacos. Ao invs de enfocar as propriedades da alma ou dos esquemas cognitivos altamente especializados dos humanos, Latour foca sobretudo nos dispositivos scio-tcnicos. Atravs deles, o antroplogo das cincias inverte a perspectiva tradicional do Ocidente (seja em sua verso filosfica aristotlica ou Crist): os homens no constroem ambientes mais sofisticados e aparelhados porque so mais capacitados do que os outros animais; ao contrrio, porque os ambientes dos humanos so mais aparelhados e bem equipados que as suas competncias e capacidades so mais complexas, quer dizer, mais

mediadas, mais mltiplas e mais plurais. Para exemplificar o argumento, Latour prope o seguinte exerccio: desfaam-se todos de seus objetos scio-tcnicos (computador, caneta, lpis, cadernos, celular, etc). Pense qual deles voc mesmo capaz de fazer por sua prpria conta? Nenhum? Eis que nos encontramos no universo da etnometodologia, mais precisamente aquele do qual jamais saem os macacos. Em contraposio s teorias que vislumbram os dispositivos tcnicos como redutores da ao humana racionalidade instrumental, o ex-professor da cole de Mines prope uma tecnofenomenologia. Quer dizer, quanto mais somos dotados de dispositivos tcnicos, quanto maior a cadeia de mediaes porque passamos, mais nos aproximamos do mundo e dele nos tornamos ntimos. Quanto mais os aparelhos e os instrumentos nos permitem fazer do invisvel, visvel, e do visvel, legvel, maior a nossa capacidade de no apenas sermos solicitados pelo mundo quanto de o solicitarmos, bem como de com ele interagirmos. Em seguida, Latour prope um pequeno grfico cujo escopo apresentar uma pequena histria evolutiva das capacidades humanas e das coisas: indo das puras interaes s ferramentas, dos signos s tcnicas, das sociedades artificializao, dos imprios s maquinas e das organizaes s tecno-esferas, o autor apresenta uma nova linha que se inicia na complexificao social e vai at, digamos, a era da ecologia. Duas so as narrativas que descrevem esse processo. De um lado, aquela que aponta para uma progressiva emancipao e que nunca deixou de ser exaustivamente propalada desde ao menos o Iluminismo. Grosso modo, a narrativa dos modernos. De outro, a narrativa em nome da qual Latour advoga, que aponta para uma crescente multiplicao de vnculos e de implicaes. Para essa ltima, no existe um processo de emancipao, mas apenas uma multiplicao dos vnculos e das associaes,

atravs de mais redes, mais objetos scio-tcnicos, mais dispositivos, mais composies, mais desvios e mais tradues. Agora chegamos terceira carta, e nela, passamos das provas s controvrsias cientficas. Nessas ltimas, segundo Latour, os enunciados transitam entre dois extremos: a dvida radical e a certeza inconteste. O ex-professor da cole de Mines explora a ideia de que um enunciado que no precisa mais de aspas, de nenhuma condicional, possui a particularidade de tornar-se impossvel de se distinguir do mundo (p. 81-2). O enunciado inconteste (dictum), portanto, no um pleonasmo do mundo, mas pode se tornar dele indiscernvel como resultado provisrio de uma longa controvrsia: no incio do exerccio, o enunciado flutua; no fim, deve-se descobri-lo solidamente ancorado em uma paisagem precisa (...) (p. 81). Cabe responder onde ento seria possvel perceber, seguir e acompanhar esse processo no qual o enunciado ontologiza-se progressivamente, ou seja, deixa de ser uma mera frase flutuante e torna-se ele mesmo uma simples redundncia do prprio mundo? Eis a importncia das controvrsias. Sua exemplaridade consiste justamente em sermos capazes de ver como um micrbio, at ento mera especulao do pensamento, torna-se uma coisa concreta, quer dizer, parte integrante da experincia cotidiana dos atores. Da a necessidade de seguir, traar ou cartografar uma controvrsia localizando todos os seus movimentos (p. 85), todas as suas passagens, suas transformaes e mudanas intensivas. Isso inclui, portanto, acompanhar os enunciados ainda permeados de dvidas e hesitaes, passando pelos estados intermdios como o rumor, opinio, parecer, proposio at a sua possvel fase final, em que se tornam descoberta e fato, quer dizer, inscries ntidas e bem definidas posteriormente encontradas em artigos acadmicos sem a necessidade das aspas.

Em seguida, Latour critica a distino entre a epideixis (a retrica), em geral ligada ao mundo da poltica, e a apodeixis (a geometria), vinculada s cincias. No lugar da separao, o autor prope reuni-los em uma mesma palavra, a eloqncia, definida como a arte e a cincia do bem falar, mas lembrando sempre o quanto difcil bem falar das pessoas e sobretudo das coisas. (p. 99). O ponto consiste justamente em explorar o fato de que, em uma controvrsia, a separao entre cincia e poltica indiscernvel; ela , no limite, uma resultante dos desdobramentos temporais da dinmica interna da prpria controvrsia, e no aquilo que j estava constitudo de modo a ela prvio. Aproveitando essa reflexo, Latour prope uma nova definio de sua disciplina: Humanidades cientficas [...] consistem em seguir todas as provas capazes de produzir ou no convico, todas as engenhosidades, as montagens as astcias, os achados, as coisas graas s quais termina-se por tornar evidente uma prova de modo a fechar uma discusso permitindo aos interlocutores mudar e opinio sobre o caso em torno do qual eles se encontram reunidos (p. 100) Pois se nada, se nem mesmo a prpria evidncia evidente a priori, ento resta todo o trabalho de repertoriar as modalidades de constituio de sua emergncia. E isso sem fazer uso de uma metafsica anterior aos processos controversos. Bem ao contrrio, acompanhar a controvrsia bem descrever as formas pelas quais os prprios atores edificam e por vezes modificam a evidncia. Se h evidncia, duas condies se impem anlise. Primeiro, que ela parta diretamente dos atores e, segundo, que ela seja uma resultante de sua atividade conjunta. Quer dizer, que ela advenha no mais de um cogito, mas de um Cogitamus. Temos a o esboo das modalidades por meio das quais a realidade adquire espessura ontolgica e, para ser redundante, se realiza como real. Tudo aquilo que o senso comum trata como bvio e indubitvel possui, portanto, uma histria: as coisas

nunca so dadas de antemo, mas so efeitos de uma multiplicidade de controvrsias coletivas, hoje em dia scio-tecnicamente bem mediadas e equipadas. Toda verdade e todo enunciado verdadeiro no advm jamais de um eu encerrado em si mesmo, mas sempre de um ns permanentemente afetado pela alteridade lembrando que esse ns inclui no apenas outros humanos, como tambm os dispositivos e objetos sciotcnicos, alm de todas as modalidades de apario das entidades em geral, como os deuses, os espritos, as plantas, os animais, etc. Mais uma vez, portanto, no lugar do cogito, ergo sum, o cogitamos, ergo sumus. Na quarta carta, Bruno Latour retoma o famoso livro de Koyr, que descreve a passagem do mundo fechado (antigo e aristotlico) para o mundo infinito (moderno e ps-revoluo cientfica). O seu alvo descrever uma nova passagem: a do mundo infinito ao multiverso complicado. Para bem descrever e exemplificar essa transio, Latour apresenta um desenho feito por Galileu em seu dirio, no qual o prprio autor italiano conjuga, em uma mesma pgina, um desenho retratando as crateras da Lua, na parte de cima, e o esboo de um horscopo, em baixo. Diante disso, o antroplogo das cincias descreve trs posturas possveis. A primeira, que seria suprimir o que est em baixo (o horscopo), apontando Galileu como um gnio e inventor da astronomia. A segunda, que seria situ-lo na interface de dois mundos, a saber, o moderno, representado pela astronomia e o antigo, expresso pela astrologia, tratada como um resqucio do passado arcaico e mstico. Por fim, uma terceira: seguir, durante um dado perodo, a lista de seres aos quais os sbios se sentem vinculados e que eles se esforam para recombinar com o intuito de levar em conta a multiplicidade de injunes contraditrias que sua poca parece lhe impor. (p. 117). Com essa terceira via, Latour visa impedir ao anacronismo que tanto enxerga as pessoas do passado como

precursoras de um futuro totalmente a elas alheio e estranho quanto reduz a parte de baixo da pgina do dirio de Galileu a um resqucio pr-moderno. Em lugar de propor uma repetio mtica que condena a histria a sempre ecoar uma descontinuidade radical (ou uma ruptura epistemolgica) entre um mundo antigo (ilusrio) e um mundo moderno (esclarecido), Bruno Latour advoga pela passagem do universo ao multiverso (retomando, aqui, a expresso cunhada por William James). Se no h mais essa descontinuidade radical, o prprio sentido da palavra revoluo muda. No sentido promulgado de ruptura com todos os elos do passado, o autor diz que se trata de um termo de guerra na boca dos combatentes que procuram tornar irreversveis transformaes que correriam o risco, sem isso, de voltar rpido demais (p. 119). Na esteira de Sloterdijk, Latour diz que se trata sempre no de Revoluo ou de Emancipao, mas de Explicitao. Jamais rompendo com o passado, a histria torna explcito sempre mais elementos com os quais preciso aprender a viver, elementos que tornam-se compatveis ou incompatveis com os que j estavam l (p. 120). Oferecendo uma alternativa de escape perspectiva dos modernizadores, Latour nos convida a uma nova poltica epistemolgica. Nela, a tarefa do pesquisador deixa de ser, nos termos modernos, conhecer a realidade por dessubjetivao, e passa a ser a de descrever o agenciamento de todos os seres que uma cultura particular liga em conjunto com formas de vida prtica (p. 121). Mas tanto para fugir ao anacronismo quanto ao encerramento das entidades em uma cosmologia coerente, o antroplogo das cincias fala de cosmogramas. Para retraa-los prope a descrio das associaes de convenincia, de coexistncia, de oposio e de excluso entre os seres humanos ou no humanos cujas condies de existncia so pouco a pouco tornadas explcitas nas provas das disputas. (p. 117). Traar os cosmogramas, [continua Latour], se tornar sensvel s listas de

associaes e de duelos lgicos sem recorrer distino do racional e do irracional, do moderno e do arcaico, do sistemtico e do bricol (p. 123). Com isso o autor prope que os pesquisadores se tornem capazes de descrever as possveis associaes e dissociaes e o surgimento de novos seres que pululam e surgem da imensa circulao dos mercados e do comrcio, das inovaes do atelier, dos achados que saem dos estdios dos artistas, das guerras e dos infortnios dos tempos, sem esquecer dos ratos, dos micrbios e das pestes, mas tambm, em parte, que no desprezvel, dos lugares que chamamos laboratrios, cuja importncia e ubiquidade no fazem seno crescer desde o sculo XVII. (p. 123). Na parte seguinte da mesma carta, Latour desenvolve uma breve histria dos laboratrios, cuja descendncia ele vincula ao atelier, lugar por excelncia no qual as entidades so testadas, verificadas, postas prova, mudando assim, por vezes, de qualidade. Os escritrios, tratados como o locus em que se forjam tecnologias intelectuais (p. 125-6), tambm so investigados pelo autor em sua origem . Da porque os laboratrios seriam, na verdade, um emaranhado de entidades materiais (a maioria das quais em estado quente!) e de tcnicas intelectuais. Seriam, portanto, o lugar por excelncia em que, atravs da mediao de instrumentos, se forjam no apenas novas capacidades mentais, mas tambm as coisas falam por si prprias ou, em outros termos, falariam caso elas falassem. Ainda na histria dos laboratrios, Latour apresenta duas de suas origens. De um lado, em Galileu, cuja inveno de dois elementos basilares ainda permanece atual: 1) a reduo do fenmeno a condies ideais (o exemplo usado a excluso do atrito para a explicao queda dos corpos); 2) a capacidade de compatibilizar o universo da experincia com a linguagem de descrio da geometria e da lgebra. A outra origem poderia ser encontra em Robert Boyle. O fundamental aqui seria a reproduo experimental e artificial de um

fenmeno dentro do espao laboratorial, apenas com o auxlio de instrumentos e dispositivos. De modo a complementar essa rpida genealogia do laboratrio, Bruno Latour introduz a prpria Academia, enquanto comunidade constituda de pares que discutem e debatem ideias e experincias, e que mantm relativa autonomia frente s demandas de outras comunidades. Depois de mencionar o livro de Dava Sobel, em que a autora relata como a mensurao da longitude tornou-se possvel, Latour sublinha a importncia de que no fiquem os instrumentos e invenes restritos ao espao controlvel do laboratrio e sejam confrontados pelas coisas do mundo. Para ser bem sucedida, a inveno deve, ela prpria, sair dos espaos fechados e protegidos e ir campo, suportando assim as transformaes e variaes que bem articulem as suas hipteses de sada com a reao efetiva das coisas mesmas em sua chegada. Da decorre uma crtica noo de aplicao, a qual deixa de lado ou ao menos oblitera o fator experiencial de uma ideia, quer dizer, a srie de testes, de provas mais ou menos pblicas, cujo fracasso pode colocar fim experincia (p. 140). No seno aps contnuas verificaes e testes que uma elaborao cientfica pode ter efeitos prticos e assim ter um efetivo xito. Mas por qual razo a noo de aplicao teria sido to influente e feito, por tanto tempo e para tantas pessoas, sentido? Latour retorna seu arsenal para um de seus principais oponentes: a noo de res extensa de Descartes, esse espao abstrato que prescinde das mltiplas dobras e curvas do espao concreto. Historicamente, ela tratada por Latour como uma astcia epistmica forjada pela cincia moderna no intuito de produzir uma relao de continuidade entre o espao abstrato, inteligvel e calculvel e o espao concreto, inapreensvel e imprevisvel. No seria isso um grande problema no fosse o fato de a res extensa ter sido confundida com a ontologia das

coisas: notem bem, (...) malgrado essa pequena palavra res, no se trata de uma coisa, um domnio da realidade, mas de uma ideia, e mesmo uma ideia produzida por essa louca da casa que a imaginao (p. 142). Da porque, uma vez mais, Latour prope uma inverso: na narrativa Cogitamus, so os laboratrios que aparecem em primeiro plano com todos os seus desvios e composies, seus cosmogramas coloridos, e a res extensa que aparece como uma continuidade artificial, idealista, quase suprflua (p. 144). Ora, no mundo dos multiversos a res extensa torna-se apenas mais um dos universos possveis muito til, verdade, para tornar certos espaos calculveis e para facilitar e tornar possvel a comunicao em certos casos, mas no para, digamos, refletir (sobre) a ontologia das coisas. A quinta carta comea por colocar em questo a antiga separao entre especialistas, de um lado, e leigos, de outro. Pois, no momento mesmo em que os prprios especialistas do frequentes e pblicas demonstraes de desacordo e divergncias, naturalmente a distino, to simples e dicotmica de outrora, se complexifica. Como agora defender a separao entre fatos indiscutveis e valores indefinidamente disputados se os prprios porta-vozes dos fatos no possuem consenso a respeito do que e de como eles realmente so? Ora, sem um princpio de transcendncia (Deus, na Idade Mdia, e a Razo, para os modernos) capaz de validar a existncia de uma realidade cujo modo de existncia encontra-se fora de toda e qualquer discusso, como sustentar a antiga demarcao que separava os porta-vozes dos fatos e da realidade objetiva dos porta-vozes dos valores e de suas prprias impresses subjetivas? Se isso se torna impossvel, como explicar a autoridade exercida por essa transcendncia, a Razo? A autoridade conferida Razo transcendente no era, de fato, agora disso nos apercebemos, seno o resultado imprevisto e frgil da

prtica (p. 163). Depois do Climagate em Compenhage, onde mesmo os mais elementares matters of fact se mostram em sua condio de matterns of concern, diz Latour que o papel dado aos especialistas torna-se um papel insustentvel e que preciso para ele encontrar outros apoios e faz-lo entrar em outras combinaes (p. 166). Que papel seria esse? Qual seria a nova tarefa dos especialistas? Ora, se no podemos mais nos garantir na distino entre cincia e poltica, entre o universo (da res extensa) em contraponto s diferentes vises das pessoas, o que fazer? Cabe ao pesquisador fazer cosmogramas capazes de explicitar a emergncia contnua de novas entidades e associaes dos cosmos, quer dizer, novas formas de composio do mundo. A proposio latouriana enfatiza as ontologias variveis, as quais devem no apenas ser liberadas, com o fim dos antigos Grandes Divisores, bem como retraadas na forma de cosmogramas. Retomando Isabelle Stengers, Latour prope levar a srio e s ltimas consequncias uma poltica que faa jus palavra cosmos ou simplesmente uma cosmopoltica. Sem um princpio de transcendncia norteador (Deus ou Razo), Latour parece, enfim, aderir ao pensamento pragmatista. Aos atores e tambm aos especialistas preciso confiar na dmarche hesitante das provas e dos momentos de prova, do tateamento e da hesitao, da precauo e da explorao coletiva. (p. 171). Se a metafsica existe, que ela seja agora no plural e venha diretamente (e seja) dos atores. A questo da representao, seja dos homens (pelos polticos), seja das coisas (pelos cientistas), agora deixada ao encargo desse caldeiro onde pululam as entidades relacionais humanas e no humanas. A boa ou m representao apenas uma resultante desse imenso e complexo processo. Ao pesquisador, resta acompanhar, descrever e seguir.

Na carona dessa indefinio, Latour volta questo das controvrsias e do stio de internet criado por ele e por seus alunos em que apresentam cartografias de controvrsias (p. 174). O escopo partir de um assunto controvertido e tentar, em torno dele, reunir o maior nmero de opinies e de pontos de vistas possveis e de suas variaes ao longo do tempo. Com isso, a verdade sobre um determinado tema deixa de ser dada por um princpio transcendente e anterior controvrsia, mas reconfigurada permanentemente ao longo da confrontao do pblico (no sentido de Dewey) envolvido no processo de definio do objeto ou questo em jogo. Os enunciados flutuantes e as entidades mobilizadas podem ter sua cadeia de associaes retraadas. Mas preciso que uma ressalva seja feita: acompanhar uma controvrsia no apenas congregar distintas opinies em torno de uma questo, mas, mais do que isso, apontar como um mundo, todo um cosmos se revela, emerge e se reconfigura na confrontao de ontologias. Ou seja: as diferenas existentes em uma controvrsia no so da ordem da opinio e no se restringem a vises de mundo diferentes. Mais do que isso, as diferenas de opinies que abundam nas controvrsias so antes sintomas de diferenas ontolgicas. Os atores discordam no somente porque suas vises de mundo so divergentes; antes, eles discordam porque os seus mundos so outros. A aposta de Latour que com essa nova metodologia proposta para retraar controvrsias seja possvel calcular a multiplicidade de pontos de vista e seguir a dinmica de suas transformaes. (p. 181). Com essas ferramentas de numerao de palavras e argumentos, Latour pretende tornar possvel e comensurvel uma dinmica que seja integralmente imanente controvrsia e capte as suas variaes intensivas. E que, assim, se torne factvel o projeto de analisar a composio progressiva do mundo pelos atores eles mesmos, sem a interveno de nenhum princpio a eles externos. O princpio de irreduo tornado enfim possvel? S o tempo dir...

Na sexta carta, Latour inicia com quatro definies do que, em geral, tido por cientfico. Uma primeira faz referncia s qualidades ou modos de ser de uma pessoa: controle das emoes, neutralidade, calculista, etc. Uma segunda diz respeito realidade mesma, quer dizer, ao mundo sem mediao da subjetividade (a res extensa desencantada e vazia de sentido). Uma terceira vincula-se ideia de que o cientfico o que comprovvel e embasado em dados concretos, que faz referncia a um conjunto de Instituies e dispositivos capazes de validar algo como real. Enfim, uma quarta: dizer que um resultado cientifico, nos levar na direo de um laboratrio (no sentido amplo) onde se recai sobre um conjunto de testemunhos reunidos em torno de um instrumento que permite abarcar os testemunhos de um outro conjunto de entidades submetidas s provas, graas s quais elas vo poder participar de um modo ou de outro do que se diz sobre elas (p. 189). Nesse ltimo, como se as coisas falassem por si, s que mediadas pelos homens ou, para retomar as palavras do autor, tudo se passa como se a linguagem articulada dos humanos assumisse a linguagem articulada do mundo (p. 189). Essa ltima definio interessa a Latour porque ela impe ao universal, ao extensvel, ao contnuo e ao indiscutvel uma dimenso temporal. Tudo depende da existncia de um trabalho contnuo e permanente, cujos resultados, embora por vezes universalizveis, nunca deixam de ser provisrios. Em seguida, Latour enfim chega ao problema da Natureza, com N maisculo. Para isso, invoca uma antiga anedota de Lvi-Strauss, retrabalhada por Eduardo Viveiros de Castro (2002), na qual o ex-professor do Collge de France descreve, de um lado, a controvrsia entre Las Casas e Seplveda em torno da presena ou no de alma nos ndios e, de outro, os mtodos empregados pelos ndios para saber se os espanhis eram ou no dotados de um corpo. Segundo os Ocidentais, existiria uma

continuidade dos corpos (a realidade material a mesma para todos) em contraposio a uma descontinuidade de vises (nem todos a enxergam da mesma maneira). Com o ndios, o inverso se daria: a princpio, todos os seres so dotados de alma (e de um nico ponto de vista), sendo o corpo o fator diferenciante. A perspectiva est no corpo, esse sendo entendido no como uma entidade biolgica ontologicamente destacada do ambiente, mas como um conjunto de afeces e capacidades em permanente movimento. Esse exemplo possui um valor pedaggico, pois, ao propor no mais um multiculturalismo, mas um multinaturalismo, Viveiros de Castro (2002) coloca em xeque a noo de uma natureza una, l fora, em direo a qual a cincia, pelo estabelecimento de leis, desvelaria os princpios de seu funcionamento. A antiga Natureza, a da res extensa, torna-se ento um dos casos possveis de ligao e associao de seres mltiplos e heterogneos, um modo particular de construo da continuidade de entidades a princpio radicalmente diferentes umas das outras. Trata-se to somente de um modo arbitrrio de se estabelecer continuidades extensivas ali onde vigem diferenas intensivas. Por isso, Latour novamente fala de multiverso, em oposio ao universo. O objetivo deixar aberta a questo dos meios pelos quais se unifica ou no se unifica a diversidade do cosmos (p. 195). Os cosmogramas aqui ganham o seu sentido maior: eles visam seguir, acompanhar e descrever o trabalho de unificao, antes pressuposto em conceitos gerais como o de sociedade ou de natureza, e agora abertos ao trabalho empreendido pelos seres para construir um mundo comum. Em poucas palavras, os cosmogramas visam explicitar o que antes era tido como o princpio da explicao. De modo a melhor apresentar o mundo do espao curvo e permeado por diferenas intensivas, o qual se ope desencantada viso cientfica do mundo,

Bruno Latour invoca dois autores. O primeiro deles, apresentado como o santo patrono do multiverso (p. 198), Charles Darwin. O segundo von Uexkll. Do primeiro, Latour extrai a riqueza de como, a cada gerao, necessrio uma multiplicidade de infinitesimais invenes e adaptaes para que a vida persevere. Do ltimo, a Unwelt, um conceito forjado para dar conta de um nvel da realidade que capte um ambiente-para-um-organismo, e faa portanto referncia a um sentido que advenha dessa relao constitutiva e transacional. Nas palavras do autor, em Darwin, a pequena inveno singular que permite a adaptao e a transformao dos viventes, sem nenhum sentido superior para gui-los. Em von Uexkll a ideia de Unwelt por oposio a entorno, noo abstrata, inventada por pura comodidade para designar esse envelope universal que seria destinado a envolver todos os viventes. Mesmo as mquinas, tidas como reduto e exemplo maior do mundo mecnico e desencantado ps-revoluo cientfica, so por Latour apresentadas sob uma nova perspectiva. Ao invs da viso imaginria de peas integradas em um funcionamento linear e retilneo, Latour prope reintegr-las na espessura ontolgica do mundo. E enquanto mquinas-no-mundo ser preciso s mquinas todo um meio ativo, vivo, complexo, toda uma ecologia frgil para que elas cheguem a funcionar duravelmente (p. 203) Latour volta questo da relatividade em Einstein. Aqui talvez seja necessrio abrir um parntese e explicar uma confuso comum entre relatividade, relativismo e relativizao. Em primeiro lugar, Latour no advoga pelo relativismo, este entendido a partir da velha tese do senso comum segundo a qual cada um tem um gosto diferente ou, ainda, em sua modalidade neo-kantiana, de que cada cultura ou sociedade disporiam de filtros categorias por meio dos quais teriam acesso aos fenmenos. Em segundo lugar, relativizao pode ser entendida, como no livro De la

Justification de Luc Boltanski e Laurent Thvenot (1991), como uma capacidade de que dispem as pessoas de se distanciarem de um ponto de vista, quer dizer, de coloc-lo como uma possibilidade dentre outras possveis. Feitas as consideraes e ressalvas, voltamos relatividade. E assim explica Latour: O que a relatividade seno o esforo para restituir entre cada ponto e o seguinte a pequena descontinuidade que vai permitir de, literalmente, colocar os pndulos na hora, e de assegurar assim, no final das contas, a continuidade das leis da natureza em todos os pontos? Ainda a, o continuo obtido, sim, mas com condio de levar em conta a descontinuidade bem real, neste caso do tempo, que coloca o sinal para passar de um ponto a outro, e o trabalho igualmente real pelo qual um observador mede o tempo superpondo os ponteiros grande e pequeno do relgio. (p. 208). A relatividade , portanto, no uma forma de reduzir a realidade das coisas a mera construo. Bem ao contrrio, no importa a relatividade da verdade, mas a verdade do relativo. Nesse sentido, sustentar a relatividade um modo de tentar, no limite do possvel, lidar com as mudanas intensivas e qualitativas, sem reduzi-las a deslocamentos extensivos e quantitativos. Em oposio epistemologia dos gemetras, a relatividade pretende restituir ao mundo sua ontologia, seus Unwelts, seu fluxo, seu devir, suas curvas e suas dobras. Em suma, ela pretende restituir matria a matria viva da qual ela composta. E com essa discusso que Latour encerra o livro. Pode-se dizer que, com relao aos livros anteriores, Cogitamus representa trs grandes avanos. Primeiro, ele verdadeiramente consegue reintegrar toda a trajetria intelectual de Bruno Latour em uma sensibilidade comum que, indo alm do prprio autor, podemos chamar de pragmatista. Ainda que isso possa ser efeito de uma narrativa retrospectiva que faz tudo concorrer para a sua preocupao mais

recente voltada para os modos de existncia (Latour, 2012), o esforo nos parece legtimo e consistente. Segundo, a nfase na noo de prova e de controvrsia reverbera questes centrais da sociologia francesa ps-bourdieusiana. Ainda que Latour possa ser legitimamente lido como integrante da sociologia pragmtica francesa, cuja caraterstica maior tem se pautado pela nfase nas situaes de prova, nos momentos coletivos de incerteza, nos grandes affaires pblicos e controvrsias, isso no o impede de apresentar e impor um estilo particular. Diferentemente da pragmtica dos julgamentos ordinrios de Luc Boltanski e Laurent Thvenot que, em uma verso neo-kantiana da noo de prova, sublinham as operaes categoriais engendradas pelos atores submetidos a um imperativo de justificao ao mobilizarem princpios morais , Latour enfoca sobretudo as operaes de ordem ontolgica aproximando-se, nesse sentido, da abordagem de Francis Chateauraynaud e Christian Bessy sobre os Experts et Faussaires (1995). Quer dizer, importa a Latour a descrio da forma como os prprios atores, em situao controversa, fazem emergir novos instrumentos, entidades, objetos cabeludos, etc, enfim, uma nova composio do mundo. O escopo analisar o poder de agncia exercidos pelas entidades e dispositivos tcnicos nas situaes, para ser repetitivo, em que a realidade se faz real, a diferena se faz diferente e o novo se faz novidade. A questo dos cosmogramas e das cartografias apenas uma ampliao dessa problemtica das provas, agora extensveis s discrdias durveis, quer dizer, aos momentos crticos irredutveis s situaes de curta durao. Mesmo que na sociologia pragmtica francesa mais recente abundem exemplos de propostas de acompanhamento de crises coletivas durveis, Bruno Latour, juntamente com Francis Chateauraynaud (2011) e Daniel Cefa (2002), o que parece ter melhor forjado instrumentos para seguir esses processos. Dentre esses

autores mencionados, Latour aquele cuja reflexo parece mais amadurecida quanto s implicaes ontolgicas de um processo controverso, o que o leva postura bastante corajosa de, inspirado nos trabalhos de Isabelle Stengers, propor uma cosmopoltica. o ex-professor da cole de Mines, portanto, que melhor explora a ideia de que, em uma controvrsia, os atores no renegociam diferentes vises ou verses acerca do mundo, mas, antes, experimentam a prpria diferena existente em seus respectivos mundos. Como vimos, eles discordam no tanto porque as suas respectivas vises de mundo divergem, mas suas perspectivas divergem porque seus respectivos mundos so diferentes. A epistemologia agora se encontra a reboque da ontologia. Dito isso, preciso imediatamente acrescentar que a ontologia no mais um princpio metafsico da filosofia, mas o que importa o processo de composio que emerge da confrontao das ontologias dos atores-eles-mesmos. Para retomar a velha frase de Churchill a respeito da democracia, trata-se da pior metafsica do mundo, exceto todas as outras: se antes, na filosofia, a metafsica era uma metafsica do eu, sempre idntica a si mesma, agora ela uma metafsica experimental do ns, em constante processo de mudana. Ainda nesse ponto, interessante notar como Bruno Latour se aproxima das reflexes de antroplogos contemporneos como Philippe Descola (2005), Eduardo Viveiros de Castro (2002) e Tim Ingold (2000; 2011). Esses trs antroplogos produzem uma detalhada crtica da ontologia naturalista das sociedades Ocidentais, cuja formatao seria dada por um multiculturalismo mantido ao preo de um uninaturalismo. Mas se Viveiros de Castro e Tim Ingold colocam em questo esse divisor Natureza/Cultura(s), antes sequer questionvel, pelo vis da ontologia animista, Latour mantm certa originalidade, pois parte de dentro da prpria ontologia naturalista para coloc-la em xeque. No se pode olvidar que o fato de sua

antropologia das cincias ter sempre se voltado para os centros de produo de verdade e de realidade das sociedades Ocidentais, como, primeiramente, a cincia, mas tambm o direito, a arte, a religio, etc, dota a sua antropologia de um estilo sui generis. O terceiro ponto que merece destaque, por fim, refere-se ao aprofundamento apresentado por Latour de uma dimenso at ento negligenciada por sua ANT. Em sua excessiva nfase nas redes de associaes heterogneas, as quais eram redutveis a um universo plano, carecia teoria latouriana uma dimenso que, por falta de melhor termo, chamo de fenomenolgica. Refiro-me a um plano a partir do qual os pontos interligados no mundo pudessem ser relacionados ou mesmo ancorados no prprio mundo. Esse , inclusive, o principal ponto da muito bem trabalhada crtica ANT feita por Tim Ingold em sua recente obra Being Alive (2011). O antroplogo ingls prope no uma rede (network) de pontos conectados, mas uma malha (meshwork) de linhas entrelaadas, sendo as linhas vistas no como linhas abstratas e geomtricas, mas linhas reais da vida de movimento e surgimento. De modo a dar conta desse problema, Latour, na discusso em que traz tona a Unwelt de Uexkll, parece se referir a um nvel da realidade em que h tanto um ambiente-paraum-organismo quanto um organismo-para-um-ambiente. Assim, acha-se uma modalidade do existente que reenvia tanto a uma dimenso de sensibilidade fenomenolgica quanto pragmatista, desde que nos atenhamos s consideraes de John Dewey sobre a relao transacional do organismo e o ambiente. O universo plano das ANTs parecem, enfim, ter readquirido alguma densidade e uma ou vrias! espessura ontolgica. Depois de ter afastado o domnio da natureza una, l fora e desencantada, Latour parece se reconciliar com a dimenso do mundo que reencontra

o prprio mundo. Claro, no se trata mais do mundo infinito do universo, mas do mundo complicado do pluriverso. Ao terminarmos a leitura, fica a sensao de que Cogitamus um livro de maturidade. Talvez essa seja a nica semelhana com as Meditaes Metafsicas de Descartes: desde o incio o autor parece saber de onde vai partir e onde quer chegar... Seria enganoso, portanto, pensar que por se tratar de um texto introdutrio e escrito em linguagem simples e clara, Cogitamus nada seria alm de uma mera vulgarizao de trabalhos e textos anteriores. Ao contrrio, justamente por ser um livro de sntese de temas j amadurecidos, pode-se dizer que ele no apenas se permite avanar em temticas at pouco tempo evitadas, como realiza um belo exerccio de filosofia especulativa bem temperada com uma concreta antropologia das cincias e das tcnicas.

Referncias bibliogrficas BESSY, Christian e CHATEAURAYNAUD, Francis. (1995), Experts et Faussaires. Pour une sociologie de la perception, Paris, Mtaill. BOLTANSKI, Luc e THVENOT, Laurent. (1991), De la justification: les conomies de la grandeur. Paris: Gallimard. CEFA, Daniel. (2002), Quest-ce quune arne publique? Quelques pistes pour une approche pragmatiste. In: LHritage du pragmatisme, D. Cefa, I. Joseph (dir.), ditions de lAube, 2002, p. 5-14 et p. 51-82. DESCOLA, Phillipe. (2005), Par-del nature et culture, Paris, Gallimard. INGOLD, Tim. (2000), The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge. __________. (2011), Being Alive: essays on movement, knowledge and description. London: Routledge. LATOUR, Bruno. (1984), Les microbes. Guerre et paix suivi de irrductions. Paris, Mtaili __________. (2012) Introduction. Enqute sur les modes dexistence. Une anthropologie des modernes. In: http://www.brunolatour.fr/sites/default/files/downloads/TABLE%20DES%20MATIERES+INTRO.pdf

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. (2002), Perspectivismo e multinaturalismo na Amrica indgena, in: A inconstncia da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. So Paulo: Cosac & Naify.