Resenha de Sociedade de Risco

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  • 7/31/2019 Resenha de Sociedade de Risco

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    Resenha de 'Sociedade de risco', de Ulrich Beck

    Por Alexandre Werneck

    Sociedade de risco, de Ulrich Beck. Traduo de Sebastio Nascimento. Editora

    34, 368 pginas. R$ 49

    Enviado por O Globo -21.02.2011

    |13h24m

    Em um texto escrito em 1986 sobre o livro (e a ideia de) "Sociedade de risco", queestava sendo lanado na Alemanha, o socilogo germnico Ulrich Beck evocava oacidente nuclear de Chernobyl, ento recentemente ocorrido (em 26 de abrildaquele ano) na usina na ainda Unio Sovitica, hoje Ucrnia. Se estivesse

    escrevendo em 1999, talvez falasse do bug do milnio. Hoje, usaria, digamos, oaquecimento global (como faria, alis, em World at Risk, lanado em 2007). Emtodos os casos, trata-se de um emblema: o risco se tornou, quase 25 anos atrsele constatava, uma ameaa ubqua. Viver em risco o que fazemos. Todos.

    Agora, em que est finalmente sendo publicado no Brasil (pela 34)"Risikogesellschaft", com o mesmo subttulo rumo a uma outra modernidade dooriginal (e com o texto sobre Chernobyl), difcil imaginar a vida no nosso temposem o risco. Ouvimos falar de risco-pas, de taxa de risco de emprstimos, de

    grupo ou comportamento de risco em relao a doenas. Mas a imagem do

    acidente atmico no deve conduzir a interpretaes apocalpticas: risco no simplesmente medo. No um puro sinnimo de ameaa. O risco ao qual Beck serefere o perigo associado a um componente decisrio: risco algo que se corre. o perigo inerente a alguma coisa que se decide enfrentar. uma probabilidade. E oreconhecimento de sua onipresena a constatao de uma normalidade: o riscose tornou no o momento de estranhamento (como o medo do desemprego nosculo XIX), mas o elemento central, a rotina, da vida na, para ele, sociedadeindustrial de risco.

    A tese, embora seja apresentada com um elegante arcabouo terico (que

    aproxima o livro mais dos estudos de sociologia econmica do que dos dedimenses propriamente humanas ou dos da vida social em sentido amplo), relativamente simples: consenso nas cincias sociais que o mundo ocidentalsofreu uma guinada consistente ao passar da sociedade feudal e agrria para acapitalista e industrial. Era o advento da modernidade, que estabeleceu um novaforma de produo e distribuio de bens e uma nova forma de relaes entre oshomens, na qual a produo estava associada desigualdade. Essa modernidadeindustrial se desenvolveu profundamente, at sofrer uma nova guinada e alcanaruma condio que Beck, o britnico Anthony Giddens e o americano Scott Lashchamaram de modernidade reflexiva, um estado em que o mundo dotado

    conscincia de seu prprio estatuto. Nele, as instituies passaram a ter um papelmenos determinante e a descentralizao (e, portanto, uma certa individualizao)

    http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/02/21/resenha-de-sociedade-de-risco-de-ulrich-beck-364623.asphttp://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/02/21/resenha-de-sociedade-de-risco-de-ulrich-beck-364623.asp
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    tornou-se um trao definidor.

    A aposta de Beck na reflexividade como dado estrutural, como um componenteda sociedade e no como elemento cognitivo das pessoas, como prope, porexemplo, Giddens. Nessa segunda modernidade, que ele e os colegas chamam de

    tardia, vivenciamos uma transformao dos fundamentos da transformao:enquanto na sociedade industrial, a lgica da produo de riquezas domina algica da produo de riscos, na sociedade de risco, essa relao se inverte, dizele. Ou seja, esse novo contexto criou um mundo cujo elemento constituinte aincerteza, a distribuio da deciso sobre os riscos entre todos os homens, o quefaz com que vivamos em um mundo em que o futuro coloniza o presente, ouseja, em que qualquer desgraa que possa vir a ocorrer, ocorre ainda antes, porque antecipada em uma srie de manifestaes, que obrigam os homens a viverconstantemente preocupados e agindo em relao a elas. Como se s houvesseamanh.

    O risco, ento, ubquo. No apenas em nossas mentes, mas em todas asdimenses da vida e assume propores globais: a sociedade de risco umasociedade que nos equaliza a todos (embora no necessariamente nos iguale)porque todos corremos os mesmos riscos, estamos todos ameaados. Amundializao Beck autor do celebradssimo livro "O que globalizao?" representa um fenmeno inerente para esse novo quadro. Mas, claro, trata-se deum diagnstico, e no necessariamente pessimista: no um mundo pior emseus escritos mais recentes, Beck deixa isso mais claro nem melhor. um mundo

    que instaura uma outra forma de se relacionar com as coisas, que, por exemplo,oferece outras alternativas de criatividade.

    Professor da Ludwig-Maximilians Universitt, de Munique, e da London School ofEconomics, Beck um dos mais influentes socilogos de nosso tempo. Entretanto,discreto, aparece menos que colegas de LSE como Giddens, unido a ele pela ideiade falar de um estatuto de continuidade onde muitos preferem ver uma rupturaprofunda e falar em ps-modernidade. E certamente menos popular que opolons Zygmunt Bauman (de enorme sucesso no Brasil), que bebe em vrias desuas ideias. Sem dvida, seu risco pea-chave para a forma como Giddens

    descreve o mundo contemporneo (ele acaba, alis, de ver lanado no Brasil umlivro sobre a relao entre clima e poltica fortemente influenciado pelo colega) epara a ideia de modernidade lquida de Bauman. E em discusses de vriosautores que problematizam, por exemplo, a medicalizao da vida cotidiana naqual a antecipao do futuro associada ao envelhecimento criou um mercadogigantesco de controle do risco corrido pelo corpo e pela mente. No bojo de todosesses trabalhos, uma pergunta de fundo sociolgico: seria o risco um elemento

    estrutural (a se manifestar em todas as coisas como uma disposio que nos fazagir de tal maneira) ou ele seria um elemento conjuntural, mobilizado pelas aes(como um dispositivo que se usa conforme a necessidade)? Agimos para domar o

    risco ou o risco age sabendo que nos domou? Beck tem l sua resposta, mas o livrono deixa de figurar como um belo captulo nessa polmica clssica.

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    O horizonte de "Sociedade de risco" o da sociedade industrial, ou seja, ele partede uma tese sobre a prpria modernidade (e, portanto, sobre a prpria sociologia),afirmando o papel de protagonista que classicamente apontado por vriosautores, como Durkheim da industrializao na diferenciao entre os mundospr-moderno e moderno. E a extenso mais poderosa disso seria o poder datecnologia e do desenvolvimento industrial nas prprias relaes sociais. Beckafirma que elas foram profundamente transformadas por seu prpriodesenvolvimento, que produziu o risco global. E se na dcada de 1980 em que osocilogo escreveu seu livro o cerne desse desenvolvimento era a produocentrada na transformao de formas de energia (as grandes industrias do sculoXX so a do automvel, a da produo de recursos energticos e a militar), nessequarto de sculo desde o lanamento original, essa transformao se mudou para oplano informacional, para uma, digamos, sociedade (digital) de risco. So astecnologias comunicacionais, a internet, a telefonia mvel, etc. Tudo configurandoum conjunto de incertezas fabricadas (aquelas criadas pelo prprio movimento davida social) ainda mais intensas, que se no aparecem concretamente descritas nolivro, diante dele adquirem uma nova luz.

    ALEXANDRE WERNECK socilogo e pesquisador (de ps-doutorado) do Ncleo de Estudosda Cidadania, Conflito e Violncia Urbana da UFRJ