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  • ARIS, Philippe, L'Enfant et la vie familiale sous l'ancien Regime, Editions du Seuil, colection "Points-Histoire", 1973,320 pp.

    Maria do Rosrio Rolfsen Salles

    INTRODUO

    Parece legtimo afirmar com Aris que o desenvolvimento do sentimento de famlia do sculo X V ao sculo XVIII a manifestao do processo de pas-sagem de um tipo de sociabilidade a outro. Nesse processo em que se esboa a criao de um espao privado, "tudo se passa como se a famlia viesse subs-tituir a fraqueza das velhas relaes sociais para permitir ao homem, escapar de uma insustentvel solido moral", o novo sentimento de famlia e a velha socia-bilidade medieval sendo incompatveis na nova ordem social emergente.

    possvel tambm afirmar que existe uma relao direta entre o senti-mento de famlia e o sentimento de classe. A partir do sculo XVIII as famlias burguesas no aceitam mais a promiscuidade ditada pela proximidade e indiferenciao da velha sociabilidade "Tudo se passa como se um corpo social po-limorfo se desfizesse e fosse substitudo por uma gama de pequenas sociedades as famlias e por alguns agrupamentos macios as classes", e que, "chegou um momento em que a burguesia no suportou mais a presso da multido nem o contacto do povo... ela se retirou da vasta sociedade polimorfa para se organi-zar parte, num meio homogneo, em famlias fechadas, nas moradias previs-tas para a intimidade, nos bairros novos, resguardados de toda contaminao popular".

    Aris procede a uma evoluo histrica atravs de uma iconografia da fa-mlia, opondo basicamente as representaes que a sociedade medieval fazia de si mesma atravs da arte e dos documentos escritos e as novas atitudes, relaes e sentimentos que se desenvolvem com relao famlia e organizao da insti-tuio familiar a partir do sculo X V .

    Assim, para que se chegue a compreender a figura da famlia centrada na in-fncia a partir do sculo XVIII, preciso que se acompanhe primeiro o apareci-mento e evoluo do sentimento de infncia e depois a evoluo do que ele cha-ma sentimento de famlia.

    Mas, Aris se questiona inicialmente sobre a validade de se falar sobre uma histria da famlia. Evidentemente, a revoluo demogrfica do sculo XVIII ao sculo X X provocou transformaes palpveis quantitativa e qualitativamen-

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    te na organizao da famlia. Entretanto no essa realidade da famlia que ele vai colocar em causa mas a histria dos sentimentos que essas novas relaes engendram.

    idia corrente de que a famlia sempre constituiu o antigo fundamente de nossa sociedade, deslocado e enfraquecido pelo progresso do individualismo liberal aps o sculo XVIII, Aris ope a idia contrria de que o sentimento de famlia teve um nascimento e fortalecimento relativamente recentes.

    decadncia da famlia pela freqncia dos divrcios, pelo enfraqueci-mento da autoridade marital e paterna, etc, ele ope a idia do seu fortaleci-mento a partir do sculo XVIII pelo desenvolvimento de uma densa rede de re-laes morais que confere famlia o seu peso enquanto instituio social.

    Na verdade, ele procede a uma histria da famlia enquanto instituio social e a uma histria das mentalidades, na medida em que capta o sentido das re-presentaes que a sociedade faz sobre si mesma, a cada momento da sua evo-luo.

    A meu ver as principais contribuies de Aris para a compreenso atual da rede de relaes engendradas pela famlia so: a construo da histria da fam-lia burguesa; a referncia, ainda que no sistemtica, ao fato de que ao processo de formao da famlia burguesa no correspondeu, ao mesmo tempo, a forma-o da famlia nas classes populares (embora esse processo tenha se desenvolvi-do posteriormente). Evidentemente, esse descompasso nos sugere inmeras re-flexes sobre o processo de formao do sentimento de famlia nas classes po-pulares e o seu significado para essas camadas na nova configurao social 1 .

    A "evoluo da famlia moderna, ficou durante muito tempo limitada aos nobres, aos burgueses, aos artesos ricos, aos agricultores. Ainda no comeo do s-culo X I X , uma grande parte da populao, a mais pobre e a mais numerosa, vivia como as famlias medievais; as crianas no ficavam com seus pais, o sentimento da casa, do estar em casa, do lar, no existia para eles. O sentimento da casa uma outra face do sentimento de famlia". Mas, "o retardamento da idade ao casar, a precariedade do trabalho, as dificuldades de alojamento, a mobilidade das associaes de companheiros, a persistncia das tradies de aprendizagem, tantos obstculos ao modo ideal da vida familiar burguesa, foram algumas das razes pelas quais a vida familiar se estendeu lentamente toda a sociedade, a ponto de mais tarde, nos esquecermos da sua origem aristocrtica e burguesa".

    Finalmente, da riqueza que caracteriza a pesquisa iconogrfica emprendida por Aris, h que se destacar a importncia que ele confere s implicaes propriamente sociais na organizao da vida familiar. A meu ver, isso constitui importante contribuio s anlises psicologizantes da vida familiar em que se retira praticamente o indivduo da rede de relaes sociais para coloc-lo vivenciando um modelo rgido de tramas familiares 2 .

    1 - A respeito da organizao da famlia nas camadas populares, ver, por exemplo, Luc Boltansky, Prim ducation et moralede classe, PLON, 1969.

    2 - A esse respeito ver, por exemplo crtica empreendida por J. Deleuze e F . Guatari, em O Anti dipo, Capitalismo e Esquizofrenia, Imago Editora Ltda., R.J. , 1976, especial-mente o captulo 2 - "Psicanlise e Familialismo: a Santa Famlia".

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    O trabalho de Aris pode ser dividido em alguns grandes temas, quais se-jam: As etapas da vida e a descoberta da infncia, As imagens da famlia e Fam-lia e Sociabilidade, embora esses no sejam os nomes com os quais aparecem na diviso e subdiviso dos captulos. So entretanto, as grandes linhas a partir das quais se pode tentar apreender a contribuio de Aris para o tema da famlia

    I. AS ETAPAS DA VIDA E A DESCOBERTA DA INFNCIA A descrio feita por Aris, do aparecimento e da confluncia de uma es-

    pcie de obsesso de precisar cronologicamente as etapas da vida e os aconteci-mentos marcantes e emocionantes da vida familiar e o desenvolvimento do sen-timento familiar, pode ser encarada como a descrio mesma do processo de descoberta da infncia e de especializao de funes sociais correspondentes s funes biolgicas. Nesse processo se determinam a segregao da criana, a "necessidade" da escola como mediao entre a famlia e a sociedade, a va-lorizao da educao e o desenvolvimento de um novo tipo de sociabilidade que nasce da separao entre o espao privado e o espao pblico.

    O ponto de partida a idia de que na Idade Mdia, as sociedades tradi-cionais representavam mal a criana e o adolescente o que se evidencia pela indiferenciao das etapas biolgicas da vida e das suas correspondentes funes sociais.

    As crianas se confundiam com os adultos desde o momento em que eram consideradas aptas a viver sem o auxlio das mes ou das amas, a partir, mais ou menos dos sete anos. Desse momento em diante elas comeavam a partilhar da grande comunidade dos homens, do seu trabalho, dos seus jogos, do seu cotidia-no e a educao era a prpria aprendizagem.

    De incio, a iconografia das idades revela que se desenvolveu a necessida-de de dar uma histria vida familiar, datando-a. Esse objetivo aparece nas pin-turas e tambm nos objetos e no mobilirio e se acentua nos sculos X V e X V I para se generalizar no sculo XVII , no hbito de gravar ou pintar datas sobre lei-tos, cofres, talheres, armrios, etc...

    A inscrio das datas significa um sentimento correspondente de dar maior consistncia histrica vida familiar.

    A impreciso do vocabulrio referente s idades da vida, conforme demons-tram os documentos escritos do sculo XIII, a sua referncia aos astros, traduzia noes ento cientficas e que correspondiam tambm ao sentimento popular e comum da vida que evocavam uma espcie de ligao entre o destino do homem e dos planetas 3 . Essa correspondncia aparece tambm em cenas do calendrio dos sculos X V e X V I , com as etapas da vida.

    3 - Por ex. Le Grand Proprietaire de toutes choses, trs utile et profltable pour tenir le corps en sant, B. Graville, Compilao latina do sculo XIII traduzida para o francs por Jean Corlichon em 1556, encoclopdia de todos os conhecimentos profanos e sagrados que inclui uma fsica, uma anatomia humanas, um tratado de medicina e de higiene, uma as-tronomia e uma teologia e de onde sobressai a idia de que no havia oposio entre os fenmenos naturais e os sobrenaturais. Uma mesma lei rigorosa regulamenta ao mesmo tempo o movimento dos planetas, o ciclo vegetativo das estaes, as relaes entre os ele-mentos, o corpo do homem e suas disposies e o seu destino assim, a astrologia permi-te o conhecimento dos incidentes pessoais desse determinismos universal.

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    As idades, as etapas da vida, do homem, correspondiam a noes politivas, comuns, repetidas e usuais que passaram do domnio da cincia ao domnio da experincia comum. As idades correspondiam aos planetas e eram em nmero de 7 a infncia, a pueritia; uma fase pr-adolescncia; a adolescncia, fase inde-finida que variava dos 21 aos 35,40 anos; a juventude dos 40 aos 50 anos; a senelidade, media entre a juventude; e a velhice; a velhice dos 70 anos mais ou menos, at a morte.

    Mas, sobretudo a partir do sculo XIV que a iconografia fixa traos essen-ciais que vo permanecer imutveis at mais ou menos o sculo XVIII esboa--se a separao entre a idade dos brinquedos, a idade da escola, a idade do amor e dos esportes cavalheirescos, a idade da guerra e da cavalaria e, enfim, as ida-des sedentrias, as do homem de lei, de cincia ou de estudos. Nesse processo as idades da vida no correspondem somente a etapas biolgicas mas a funes sociais.

    A juventude passa a significar a "fora da idade", no cabendo ento, lugar para a adolescncia que at o sculo XVIII se confunde com a infncia.

    Para a burguesia, a longa durao da infncia assim como ela aparecia na linguagem comum, advm da indiferenciao entre os fenmenos propriamente biolgicos no se teria a idia de limitar a infncia pela puberdade. A idia de infncia estava ligada idia de dependncia (as palavras filhos, valetes, ra-pazes, so tambm palavras do vocabulrio das relaes feudais ou senhoriais de dependncia). Um rapaz no necessariamente um adolescente mas pode ser um jovem servidor.

    sobretudo com toda a literatura moralista e pedaggica que exprime uma necessidade de ordem moral de separar a infncia das outras idades, que se multipli-cam os termos que designam a infncia, a ambigidade permanecendo para desig-nar a criana nos seus primeiros meses e no se resolvendo seno no sculo X I X na Frana, com a palavra beb que um emprstimo do ingls baby.

    Mas a ambigidade permanecer tambm entre a infncia e a adolescncia de um lado, e a juventude de outro. A idia de adolescncia apenas se advinha no sculo XVIII com alguns personagens literrios. Ao mesmo tempo, a velhi-ce parece se misturar com a idia moderna de maturidade, comeando muito cedo. Mais tarde esse "velho" foi substitudo pela noo burguesa ainda, mas que se torna popular, do "homem de certa idade".

    Assim, parece que a "juventude" foi a idade privilegiada do sculo XVIII, a descoberta da infncia e da adolescncia se processando apenas nos sculos XIX-e X X . Essas variaes correspondem, a transformaes na estrutura demogrfica e exprimem a reao da sociedade frente mudana na durao da vida.

    Ento trata-se de precisar a descoberta da infncia. Partimos de um mundo de representaes onde a infncia desconhecida. A arte medieval at o sculo XII desconhecia ou no tentava representar

    a infncia, talvez porque no houvesse realmente lugar para ela nesse mundo. Parece que como se a representao realista da criana ou a sua idealizao, sua graa, fossem reservadas a arte grega onde proliferavam os pequenos Eros, para desaparecer da iconografia com os outros temas helensticos. Assim, diz Aris, isso nos autoriza a dizer que no domnio dos valores vividos e no apenas

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    no da transposio esttica, a infncia era de tal forma uma etapa fugaz de tran-sio, que a lembrana no a fixava.

    Assim, altamente significativo que tenhamos percorrido um caminho de absoluta ausncia da infncia para a sua fixao individualizada com o apa-recimento dos retratos no sculo XVII .

    Durante os sculos XIII, XIV e X V os tipos medievais evoluiro para a repre-sentao da criana nas pinturas religiosas, a santa-infncia sendo o smbolo da fecundidade, da riqueza e do progresso. Esse tema passar para a arte profana nas imagens da vida cotidiana, passando a ser representada nas lendas e contos, na tapearia, na escultura, mantendo-se at o sculo XVII .

    No ainda a representao da criana sozinha, mas ela se torna um dos personagens freqentes de pequenas histrias de famlia, de companheiros de jogos, em geral adultos ou uma multido de crianas (a criana aprendiz do ar-teso de jias, do pintor, a criana na escola, etc, a criana, enfim, entre seus pro-tagonistas principais ou secundrios).

    Assim, parece que, em primeiro lugar, as crianas se encontravam mistura-das aos adultos em todos os encontros de trabalho, de lazer etc. e que em segun-do lugar, se fixava a criana pela sua graa ou pelo seu pitoresco.

    o sculo X V que vai fixar a infncia na sua individualidade, mas sobre-tudo para representar a sua fugacidade a indiferena que, entretanto perma-nece, conseqncia inevitvel da alta mortalidade infantil. Essa "insensibilidade" com relao infncia ento, no seno uma conseqncia das condies de-mogrficas da poca.

    O aparecimento precoce com relao revoluo demogrfica, do retra-to da criana morta no sculo X V I , um momento muito importante na hist-ria dos sentimentos. Esse "motivo" precede a representao individualizada da criana a partir do sculo XVII , com o aparecimento de um grande nmero de retratos isolados. a grande novidade do sculo XVII , a criana um dos seus modelos preferidos 4 . Esse costume representa um sentimento que no desapara-cer mais, a fotografia vindo substituir a pintura, no sculo XIX.

    O fim do sculo X V I comea tambm a representar a criana nua na arte profana e religiosa, fazendo renascer o Eros helenstico em Ticiano, Botticelli, na pintura francesa, etc. Mas, o gosto pela nudez da criana (com os "put-ti") corresponde agora a algo mais profundo que a nudez antiga. Relacio-na-se com o longo movimento de interesse pela infncia. Essa nudez passar pa-ra os retratos no sculo XVII . No sculo XVII se esboa definitivamente a con-centrao da famlia em torno da criana, embora a sua descoberta se localize no sculo XVII .

    O longo perodo de indiferenciao manifesta-se tambm no domnio dos costumes.

    o que indica a indiferenciao nos hbitos de vestir por exemplo. apenas no sculo XVIII. que a criana nobre ou burguesa deixa de se vestir como os adul-

    4 - Aris mostra numerosos exemplos entre pintores famosos como Rubens, Van Dick, Frans Hals, Le Nin, Ph. de Champaigne que representam pequenos prncipes, filhos de grandes senhores ou de burgueses ricos.

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    tos da sua condio; a indiferenciao se mantm contudo por mais tempo para as meninas.

    De qualquer maneira, parece que se desenvolvem juntos os hbitos de ves-tir diferentemente as crianas segundo as idades e os sexos e a preocupao de diferenciar rigorosamente o lugar que cada um ocupava segundo sua condio social, numa hierarquia complexa e indiscutida, "cada um devendo se vestir se-gundo sua idade ou seu nascimento".

    Duas tendncias vo acompanhar a evoluo dos trajes a partir do sculo XVII a primeira a acentuao no aspecto efeminado para meninos at 4, 5 anos, hbito que permanecer at fins do sculo X I X . (Os meninos foram as pri-meiras crianas a se separarem e os primeiros a freqentar em massa os colgios desde fins do sculo XVI) . Outra tendncia a adoo pela criana de famlia burguesa, de caractersticas dos trajes populares ou de trabalho. criana pre-ceder a moda masculina e usar calas compridas j no sculo XVII . apenas no sculo XVIII que se especializam os costumes regionais e em que se produz uma separao entre o aspecto fsico dos ricos e dos pobres provocada por um distanciamento moral mais acentuado entre eles, separao essa que sucedeu a milenar "promiscuidade". Os costumes regionais nascem ao mesmo tempo e, nos bairros populares, em fins do sculo XVIII aparece um traje particular que a cala comprida, correspondente ao nosso atual avental ou uniforme de tra-balho: o signo de uma condio ou de um funo.

    "Esse 'uniforme' foi logo adotado pelas crianas burguesas e nobres, as-sim como o macaco ou a cala comprida do trabalhador tornaram-se 'os blue--Jeans' que os nossos jovens vestem como um signo visvel de sua adolescncia".

    No que se refere aos jogos, Aris coloca tambm que no havia separao rigorosa como atualmente, entre os jogos reservados s crianas e os reservados aos adultos. No comeo do sculo XVII se reservam primeira infncia alguns jogos especficos. Aparecem na pintura, cenas de brinquedo com alguns obje-tos tais como: cavalos de pau, moinho de vento, pssaros e, mais raramente bo-necas. Constituiam na verdade, imitao do mundo dos adultos. A discrimina-o moderna entre meninas e meninos nas primeiras idades no era to clara e os brinquedos como as bonecas eram partilhados pelos dois sexos. Tanto nos trajes, como nos jogos, a infncia se tornou como que o conservatrio dos usos abandonados pelos adultos, sendo como que sobrevivencias de objetos em desuso.

    Mas, a partir dos 3,4 anos no h diferenciaes, at o sculo XVIII, entre os jogos infantis e dos adultos; as festas populares obedeciam sempre a um "pro-tocolo costumeiro e correspondiam s regras de um jogo coletivo que mobiliza-va o grupo social e todas as classes de idade conjuntamente". A msica ocupa-va lugar central nas reunies familiares e a dana era coletiva opondo-se s nossas danas modernas de casais. A msica e a dana, os jogos enfim, reuniam a cole-tividade e misturavam as idades, os atores e os espectadores.

    Mas no curso dos sculos XVII e XVIII desenvolve-se uma atitude moral contraditria em relao a essa "promiscuidade" ao mesmo tempo que era a prpria vivencia do quotidiano, desenvolveu-se uma atitude de condenao absoluta que se traduzia por uma obcesso de preservar sobretudo a moral in-fantil, de educar a criana, de classificar os jogos reconhecendo sua convenin-

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    cia ou no. A intolerncia que caracteriza as "elites reformadores" se exprime at na condenao das danas de carter familiar, danas profissionais, de of-cios etc.

    Nas sociedades do Antigo Regime todas as manifestaes dos jogos tinham um significado enorme que perderam nas nossas sociedades tecnificadas. Os es-tatutos dos colgios e das Universidades cedo comeam a restringir a prtica dos jogos. Reprovava-se a imoralidade dos jogos de azar, a indecncia dos jogos de sociedade, da comdia ou da dana, a brutalidade dos jogos fsicos que degene-ravam em disputas.

    Mas com a influncia dos jesuitas, dos pedagogos humanistas, desenvolve--se uma tendncia contrria de valorizao dos jogos, da ginstica e da prepara-o militar, passando-se das aglomeraes populares, s sociedades de ginstica.

    Essa evoluo parece ter sido ditada pela preocupao com a moral, a sa-de e o bem estar comum. Uma evoluo paralela a essa, especializou segundo a idade e a condio, os jogos antes comuns a toda a sociedade.

    Existe uma coincidncia muito grande entre o momento em que se rom-pe a antiga comunidade dos jogos entre crianas e adultos e entre o povo e a bur-guesia (porque eles sobreviveram ao mesmo tempo, entre o povo e as crianas das classes superiores). Essa coincidncia nos anuncia a relao entre o sentimen-to de infncia e o sentimento de classe.

    Na busca dos elementos que nos forneam a idia do desenvolvimento do sentimento de infncia, Aris acrescenta anlise sobre o comportamento mo-ral frente organizao da vida quotidiana, uma anlise sobre a evoluo de um certo tipo de atitude com relao sexualidade, que vai desde a ausncia abso-luta de reservas e preconceitos com relao infncia, aos preconceitos e res-tries dos nossos dias.

    Como preservar a infncia dos perigos da promiscuidade? Evitando pri-meiro a mistura de pequenos e grandes no leito, prtica intensamente desenvol-vida at fins do sculo X V I . a partir dos fins do sculo XVI que aparecem edu-cadores protestantes ou catlicos que vo se preocupar em impor definitivamente suas concepes e escrpulos quanto liberdade permitida s crianas. Produz--se uma grande mudana, paupvel em toda literatura moral e pedaggica, nas prticas religiosas e numa nova iconografia religiosa impe-se uma noo essen-cial: a inocncia infantil.

    Forma-se uma concepo moral da infncia que insiste sobre a sua fraque-za, que a associa sua inocncia, reflexo da pureza divina e que coloca a educa-o na primeira fila de obrigaes. a idia do futuro homem "au-del de l'en-fant", do bom magistrado, homem da igreja ou grande senhor que inspira esse cuidado ditado pela inocncia. " preciso acompanhar sempre a criana em todos os seus passos sem jamais abandon-la" 5

    Desenvolve-se uma verdadeira doutrina (que acaba por determinar a fuso de instituies educacionais como colgios, pequenas escolas, casas particula-res de ensino) com a evoluo dos princpios escolares para uma disciplina mais estrita.

    5 - COUSTEL, Rgles de l'ducation des enfants, 1687, citado por Aris.

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    " preciso que a guarda contnua (das crianas) seja feita com doura e uma certa confiana que lhes faa acreditar que as amamos e que estamos com elas apenas para acompanh-las. Isto far com que elas amem essa guarda em lugar de teme-la" 6 . um princpio sobretudo desenvolvido pelos colgios. Ao lado dele temos o da disciplina (contra o hbito de se mimar as crianas), e a preocupao com a decncia, (a comear pela eliminao do hbido enraizado das crianas, de dormir juntas num mesmo leito).

    Essa preocupao pela decncia se encontra tambm na escolha das lei-turas e na crtica aos espetculos, comdias, bailes e danas. Apenas so per-mitidos os jogos educativos ou seja, aqueles integrados no processo educativo.

    Uma outra restrio ainda: no deixar as crianas na companhia pernicio-sa e permissiva de servidores.

    Enfim, tratava-se de apagar a velha familiaridade e substitu-la por uma re-serva de maneiras e de linguagem, mesmo na vida quotidiana.

    Aris localiza nesse processo, dois momentos no desenvolvimento do sen-timento da infncia: o primeiro - "l mignotage" que aparece no meio familiar, em companhia das crianas. O segundo, ao contrrio provm de uma fora ex-terior famlia e que constituda pelos moralistas dos sculos X V I e sobretu-do do XVII , interessados na prescrio de comportamentos racionais e policia-dos. Eles se recusavam a ver a criana como um brinquedo divertido porque os encaravam como frgeis criaturas de Deus, que era preciso proteger e educar. Esses sentimentos contaminam a vida familiar e, no sculo XVIII se associam a um novo sentimento que a preocupao com a higiene e a sade fsicas. O interesse pelo corpo tinha um intuito moral: afastar a moleza, a preguia, a con-cupiscencia, enfim todos os vcios.

    Esse processo que vai do sculo X V ao sculo XVIII apontado, por Aris, como o processo segundo o qual a escola, o colgio, se tornam no comeo dos tem-pos modernos, um meio eficaz de segregar a criana durante um perodo consi-derado de formao moral e intelectual graas a uma disciplina mais autoritria que as separou da sociedade dos adultos. Parece ento que o que se passou foi que, no processo de diferenciao ntida das idades e das funes a elas corresponden-tes, a criana "voltou para casa", destacando-se da multido em que se envolvia e que caracterizava a velha sociabilidade medieval. Nesse processo de "moralizao", a escola aparece como a grande segregadora da infncia do mundo dos adultos.

    N sculo XIII os colgios eram asilos para estudantes pobres fundados por donatrios. A partir do sculo X V , tornam-se institutos de ensino onde uma numerosa populao submetida a uma rigorosa hierarquia autoritria. Essa populao constituda de um nmero crescente de laicos, nobres e burgueses e tambm de famlias mais populares. O colgio se torna aos poucos uma ins-tituio essencial da Sociedade.

    Embora se tivesse efetuado a separao da primeira infncia, a confuso continuar contudo, para as idades posteriores, at os sculos XVII e XVIII.

    A separao entre a segunda infncia e adolescncia se deve graas ao es-tabelecimento progressivo e tardio de uma relao entre idade e classe escolar.

    6 - Jacqueline Pascal, Rglement pour les enfants, Appendice aux Constituitions de Port Royal, 1721, citado por Aris.

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    Os colgios passam a ser organizados em funo das idades. "Sem o Colgio a burguesia no dispensaria tanta ateno s diferenas

    de idade e partilharia da relativa indiferena das classes populares". A histria da disciplina dos sculos XIV ao XVII conduz a duas observa-

    es importantes: desenvolve-se a espionagem mtua, a vigia constante e a delao que se erigiram em princpio de governo e instituio. Essa evoluo no par-ticular infncia e nos sculos X V e X V I , a punio corporal se generaliza ao mesmo tempo que uma concepo autoritria, hierarquizada absolutista -da sociedade, se desenvolvia. Entretanto, subsiste uma diferena essencial entre a disciplina das crianas e a dos adultos entre os adultos a aplicao da dis-ciplina contribuia a distinguir as condies. Ao contrrio, todas as crianas e os jovens qualquer que fosse sua condio estavam submetidos mesma disci-plina. A segunda observao quanto extenso do castigo fsico do chicote a toda a populao escolar e no apenas primeira infncia, depois do sculo X V I .

    Essa extenso de um tratamento comum a toda infncia e adolescncia im-portante porque, como que reduz a adolescncia infncia sujeitando-a a uma dis-ciplina idntica, no interior do mundo escolar, movida por um sentimento ge-ral de humilhao da infncia que a rebaixa ao nvel das classes sociais inferio-res.

    Esse procedimento sofrer uma modificao no curso do sculo XVIII. como se houvesse o afrouxamento da disciplina escolar correspondendo a uma nova orientao do sentimento de infncia que no se associa mais idia de inferio-ridade e no reconhece mais a necessidade de sua humilhao. Trata-se sobretudo agora, de desenvolver na criana a responsabilidade do adulto, o sentido de sua dignidiade.

    Ao mesmo tempo, desenvolve-se no curso do sculo XVIII a especializa-o social de dois tipos de ensino um para o povo, outro para as condies burguesas e aristocrticas, fenmenos resultantes de uma tendncia mais geral a diferenciao do que estava misturado, "tendncia que acompanha a revolu-o cartesiana das idias claras e que conduz s sociedades igualitrias modernas onde as posies fixadas substituem a promiscuidade das velhas hierarquias".

    Entretanto, para as classes populares, a demanda por mo de obra infan-til na indstria textil na primeira metade do sculo X I X manteve por mais tem-po o carter da sociedade medieval a precocidade da passagem para a vida a-dulta.

    II. AS IMAGENS DA FAMLIA

    Essa evoluo que fundamentou o sentimento de infncia e desenvolveu uma nova concepo de famlia representou tambm toda uma nova organiza-o da vida quotidiana. A anlise iconogrfica empreendida por Aris d conta tambm, das expresses da vida quotidiana que representam vises do mundo que se desenvolveram paralelamente ao processo de descoberta da infncia.

    interessante nesse processo, observar a freqncia com que os ofcios, o trabalho, aparecem como atividade privilegiada da vida quotidiana, atravessan-

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    do mesmo toda a Idade Mdia. como se no houvesse separao entre a vida privada e o trabalho e eles fossem uma e mesma coisa. Na iconografia das ida-des da vida, o trabalho aparece ao lado das estaes do ano e expressam tanto as idades como as condies sociais nos 12 meses do ano. A partir do sculo X V I a mulher e a famlia aparecem e participam com o homem, no seu traba-lho, mas no se tratam ainda propriamente de cenas de famlia onde apaream as crianas.

    A partir do sculo XIII aparece a rua como a sede dos negcios, da vida profissional, das conversas, dos espetculos e dos jogos. Essa rua viva, no se ope intimidade da vida privada, mas um prolongamento do quadro familiar dos trabalhos e das relaes sociais.

    A criana e a mulher comeam sucessivamente a aparecer, a partir do s-culo X V I nos calendrios, juntamente com a sociedade de vizinhos. A icono-grafia dos meses vai aparecer ento ao lado das idades da vida, representados por 3 ou 4 idades, em geral, uma criana, um adolescente e um homem adulto, ou um velho. Podemos dizer, com Aris que no decorrer do sculo X V I a simbologia da durao da vida era dada pela hierarquia da famlia. Nesse momento a histria de um casamento comea como a histria de uma famlia e termina com o tema da morte prematura, a famlia aparecendo sempre entre os servidores, que fazem parte dela. A morte quase sempre a morte do pai, depois de uma vida bem cumprida.

    A vida privada comea a aparecer, assim, a partir do sculo X V I e se re-presenta de duas maneiras: pela vida das tavernas, dos bomios e vagabundos ou pela vida familiar.

    Na base desse processo est o sentimento de linhagem e de conservao do patrimnio, que fundamenta a organizao medieval e que se desenvolve por uma necessidade de proteo, como um refgio pela dissoluo do Estado e o estreitamento dos laos de sangue. Essa a descrio sobretudo da famlia ca-valheiresca porque os camponeses resolveram de outra maneira o vazio deixado pela dissoluo do Estado: a tutela dos senhores substituiu a proteo dos poderes pblicos e a comunidade camponesa fornece-lhes um quadro de organiza-o e de defesa.

    no decorrer do sculo XIII que a situao se inverte outra vez, com o desenvolvimento de novas formas de eocnomia monetria, a freqncia das tran-saes e ao mesmo tempo, o progresso de uma autoridade, a do prncipe e da segurana pblica; as solidariedades de linhagem se afrouxam e h o abandono da indiviso patrimonial. A famlia conjugai se fortalece. Cresce a autoridade do pai e se firma o direito de primogenitura nas famlias nobres. A indiviso do patrimnio foi substituda pela salvaguarda do patrimnio e de sua integri-dade.

    A partir do sculo X I V assiste-se asceno da famlia moderna: uma degra-dao lenta e pregressiva da mulher no lar, o reforo do poder do marido e uma crescente sujeio da mulher e das crianas a famlia se torna a base do poder monrquico.

    O sentimento moderno de famlia ao contrrio do sentimento medieval de linhagem, penetrou a devoo comum como um movimento laico de santi-

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    ficao ao lado da vocao religiosa as maneiras novas de encara o casamen-to, o batismo, as festas coletivas que se tornam familiares e tradicionais indepen-dentemente do seu carter religioso.

    A iconografia revela e associa em uma sntese, trs foras afetivas: a devo-o, o sentimento de infncia (a primeira infncia), o sentimento de famlia (a reunio mesa). A orao conjunta se torna o modelo da prece em famlia; (an-tes no existiam cultos privados). No sculo XVIII o culto pblico (de catli-cos ou protestantes) encontrou neste hbito familiar, certas resistncias na cria-o de sua clientela.

    Esse processo de formao de um novo sentimento da famlia o reflexo das suas novas relaes internas com a criana - da criao fora de casa, prati-camente, que caracterizou a infncia medieval dos aprendizes (at a idade de 14, 18 anos) e servidores, onde o servio domstico se confundia com a apren-dizagem, (forma geral de educao), - passa-se fase da freqncia escola. A escola passa a ser mais e mais um instrumento normal de iniciao social, pro-cesso que se confunde com a preocupao de rigor moral e com a preocupao da guarda prxima dos pais. O isolamento escolar agora no tem o sentido que a separao do aprendiz da sua famlia. como se a famlia moderna tivesse nascido ao mesmo tempo que a escola.

    Os problemas morais da famlia aparecem agora sob novo prisma cada membro individual adquiriu a sua prpria expresso e o direito de primogeritura vai desaparecer no decorrer do sculo XVIII.

    III. FAMLIA E SOCIABILIDADE

    O processo de "volta" das crianas ao lar deu-se graas escola e nesse pro-cesso a famlia se redefiniu, organizando-se afetivamente em torno da criao dos filhos. Entretanto, de incio, estamos ainda longe da famlia moderna e de sua forte vida interior. que ainda subsiste quase integralmente a velha socia-bilidade que lh incompatvel.

    Constitui-se, no sculo XVII , um equilbrio entre as foras centrfugas ou sociais e centrpetas ou familiares que no deviam entretanto, sobre-viver aos progressos da intimidade. preciso analisar ento, a sobrevivncia des-sa espessa sociabilidade e essa uma das contribuies fundamentais do livro de Aris, ou seja, a descoberta de que centralizao do poder no correspondeu imediatamente uma mudana nas formas de sociabilidade.

    Parece que " centralizao monrquica sob Luis XIV, no correspondeu uma centralizao social, permanecendo quase que intacta a sociedade de clien-telas hierarquizadas do sculo X V I I " . Presistia a indiferenciao numa rede de relaes sociais, da vida profissional, da vida privada, e da vida mundana ou so-cial. A sociedade dos "amigos", no sculo XVII uma relao social mais forte que as outras. Toda a literatura de vivilidade do sculo XVII insiste sobre a impor-tncia da conversao, do respeito s conveniencias (a"biensance"). Deve-se evitar os assuntos domsticos, ou muito pessoais.

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    estranho que esse estado de esprito subsistisse num mundo em que o desenvolvimento da escola indicava o progresso de uma mentalidade bem dife-rente , na verdade a velha concepo da sociedade onde as comunicaes eram asseguradas no pela escola, mas pela prtica, pela aprendizagem. uma ambi-gidade em que se colocam a sociabilidade tradicional e a escolarizao moder-na, de onde se desenvolve toda uma corrente de opinio hostil escola. Da a criao de casas e penses privadas de educao, dos fins do sculo XVII at o de-correr do sculo XVIII .

    As boas maneiras e as regras de convenincia e sociabilidade so fundamen-tais para os ideais de elevao social at o sculo XVII . Parece que contrapo-sio necessria existncia de posies sociais novas cuja justificao no se faz pelo nascimento. A partir da segunda metade do sculo XVII entretanto, o corteso substituido pelo "homem honesto" e a Corte, pelo mundo. No mais de bom tom procurar abertamente a fortuna, o prestgio. Um ideal no-vo aparece: a procura de uma justa posio, de uma "mediodidade distinta". A "biensance" ainda necessria mas esvazia-se o seu contedo moral, ela deixa de ser uma virtude. Reserva-se mais e mais um lugar aos conselhos educativos e s recomendaes que se endeream s crianas.

    Mas os prprios educadores reconhecem que o "comrcio" do mundo con-tinuaria essencial. As ruas, as praas, eram ainda o local de encontros de comu-nicao e esse hbito se conserva at nossos dias nos encontros de cafs, nas ca-sas pblicas, nos "pubs".

    A sociedade do sculo X V I e XVII desconhecia o caf, a taverna no sen-do freqentada por pessoas de bem. Assim, os contactos se passavam nas ruas ou nas "grandes casas", casas que abrigavam as famlias ricas e toda uma gama de servidores, de empregados, de amigos, de clrigos, de aprendizes, etc, at o sculo XVII . Ao lado delas existiam as casas muito pequenas que abrigavam o casal e alguns de seus filhos menores.

    A "nossa" vida familiar ainda no era possvel. Por menos que se fosse sen-svel promiscuidade nessa fase, devia haver um "espao mnimo a partir do qual se tornasse possvel a vida familiar" 7 .

    A "casa grande" desempenhava importante funo pblica era o nico lugar onde amigos, clientes, parentes, protegidos, podiam se encontrar com um fluxo constante de visitantes. Essas visitas no eram apenas sociais, eram tambm profissionais, mas os dois tipos de distinguiam mal um do outro.

    As peas da casa no possuam especializao de funes, comunicando-se umas com as outras. A nica pea que desempenhava uma funo precisa era a cozinha. A sala de jantar ou a mesa de comer, no existiam. Assim, tambm o mobilirio pesado no existia como mvel permanente. A transformao por exemplo, do leito desmontvel em leito permanente marcou um grande progres-so da intimidade, o quarto de dormir no se especializando ao mesmo tempo, mas se conservando ainda como um lugar pblico.

    7 - Ver a respeito da formao de uma esfera privada, J. HABERMAS, La famiglia borghese e l'istituzionalizzazione di una sfera privata riferita al pubblico" - In Dialettica della fa-miglia, coletanea org. por: Massimo Canevacci, Savelli, Roma, 1976.

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    Podemos figurar as famlias que assim viviam e onde nascia j o sentimen-to moderno de famlia no como um refgio contra a invaso do mundo, mas como um centro de uma sociedade, de uma vida social muito densa.

    Em torno delas se estabeleciam crculos concntricos de relaes at a pe-riferia de parentes, de amigos, de clientes, de protegidos, de devedores, etc.

    As crianas de famlia ainda cumpriam tarefas domsticas, como servir a mesa, a noo de servio no havia adquirido um carter degradante.

    Mas, o equilbrio entre a famlia e a sociedade no resistiu evoluo mo-ral do progresso da intimidade, a organizao da vida quotidiana se encarregan-do da tarefa de segregar a famlia.

    Desde o sculo XVIII a famlia comea a tomar distncia aos olhos da so-ciedade, a remeter-se a uma zona de vida privada cada vez mais extensa. A or-ganizao da casa, da casa moderna que matm a independncia de cada cmo-do, inaugura o "conforto" moderno, ao mesmo tempo em que se desenvolve a intimidade, uma das maiores transformaes da vida quotidiana no seio da bur-guesia e aristocracia.

    As antigas regras de boas maneiras, a "biensance", so substitudas pelo nome moderno de polidez e que obriga discreo e ao respeito intimidade dos outros.

    O grupo de pais e filhos e a rede de relaes entre eles, estranhos ao res-to da sociedade a famlia moderna do sculo XVIII, no mais aquela do scu-lo XVII aberta ao mundo e invadida de amigos, clientes e servidores.

    Uma das marcas mais caractersticas dela a preocupao pela igualda-de entre as crianas, a desigualdade sendo uma injustia intolervel j nos fins do sculo XVIII.

    A famlia do sculo XVII celebra a volta das crianas casa mas a famlia moderna se segrega do mundo e ope sociedade o grupo solitrio de pais e fi-lhos.

    A famlia deixando de ser uma instituio do direito privado para a trans-misso dos bens e do nome, assume uma nova funo moral e espiritual, expres-sa na extrema importncia concedida educao. Isso explica a nossa obcesso moderna pelos problemas fsicos, psquicos, morais e sexuais da infncia.

    A famlia e a escola juntos retiraram a criana da sociedade dos adultos, fechando a infncia outrora livre, num regime disciplinrio cada vez mais estri-to que nos sculos XVIII e X I X atinge a claustrao total do internato.

    As classes populares por seu turno, permaneceram "ombro a ombro" at quase nossos dias, o sentimento de famlia se desenvolvendo paralelamente ao sentimento de classe. Os jogos e as escolas antes comuns a toda sociedade entram num sistema de classe e se especializam. Os signos rigorosos da autoridade e da hierarquia substituiam agora a familiaridade da vida comum.

    Assim, a justaposio das desigualdades, antes natural, se torna intoler-vel a busca da intimidade, as novas necessidades de conforto acentuaram a oposio de gneros de vida material do povo e da burguesia.

    "O sentimento de famlia, o sentimento de classe e pode ser tambm, o sentimento de raa aparecem como as manifestaes da mesma intolerncia diversidade, de uma mesma obcesso de uniformidade".