Resenha do livro do Emir Sader - Rodrigo Santaella

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Rodrigo Santaella Gonçalves: Concludente da gra- duação em Ciências Sociais na Universidade Fede- ral do Ceará. Discutindo a perspectiva da esquerda latino-americana Depois do período de hegemonia do neoliberalismo, a América Latina passou por profundas mudanças polí- ticas. Na transição do século XX para o século XXI, em um curto período de tempo, lideranças de esquerda e cen- tro-esquerda assumiram o governo na Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Nicarágua e Paraguai. Enten- der o significado e as perspectivas ge- radas nesse processo foi o objetivo de Emir Sader em seu novo livro. A obra, dividida em cinco capítulos, traz refle- xões sobre a história do Subcontinen- te, a “crise de hegemonia” vivenciada atualmente, o governo Lula, as “defi- ciências” e “perspectivas” teóricas da esquerda e o futuro desses projetos supostamente “pós-neoliberais”. A toupeira é “um animalzinho com problemas de visão, que circula em- baixo da terra sem nos darmos conta de sua existência e que de repente ir- rompe onde menos se espera” (p.34). Utilizando-se desta metáfora para tra- tar da esquerda latino-americana, o autor inicia com o resgate dos “ciclos da esquerda” latino-americana, passa pela hegemonia neoliberal e chega à atualidade sempre buscando alterna- tivas. Três grandes irrupções da “tou- peira” no século XX são destacadas na primeira parte da obra: os movimen- tos guerrilheiros entre 1959 e 1970, as vitórias institucionais no início dos anos 1970 e a vitória sandinista na Ni- RODRIGO SANTAELLA GONÇALVES REFERÊNCIA: SADER, E. A nova toupeira: os ca- minhos da esquerda latino-americana. São Paulo: Boitempo, 2009. 309 World Tensions tensoesX.pmd 30/8/2010, 08:33 309

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Rodrigo Santaella Gonçalves: Concludente da gra-duação em Ciências Sociais na Universidade Fede-ral do Ceará.

Discutindo a perspectiva daesquerda latino-americana

Depois do período de hegemoniado neoliberalismo, a América Latinapassou por profundas mudanças polí-ticas. Na transição do século XX parao século XXI, em um curto período detempo, lideranças de esquerda e cen-tro-esquerda assumiram o governo naVenezuela, Brasil, Argentina, Uruguai,Bolívia, Nicarágua e Paraguai. Enten-der o significado e as perspectivas ge-radas nesse processo foi o objetivo deEmir Sader em seu novo livro. A obra,dividida em cinco capítulos, traz refle-xões sobre a história do Subcontinen-te, a “crise de hegemonia” vivenciadaatualmente, o governo Lula, as “defi-ciências” e “perspectivas” teóricas daesquerda e o futuro desses projetos

supostamente “pós-neoliberais”.A toupeira é “um animalzinho com

problemas de visão, que circula em-baixo da terra sem nos darmos contade sua existência e que de repente ir-rompe onde menos se espera” (p.34).Utilizando-se desta metáfora para tra-tar da esquerda latino-americana, oautor inicia com o resgate dos “ciclosda esquerda” latino-americana, passapela hegemonia neoliberal e chega àatualidade sempre buscando alterna-tivas. Três grandes irrupções da “tou-peira” no século XX são destacadas naprimeira parte da obra: os movimen-tos guerrilheiros entre 1959 e 1970, asvitórias institucionais no início dosanos 1970 e a vitória sandinista na Ni-

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REFERÊNCIA: SADER, E. A nova toupeira: os ca-minhos da esquerda latino-americana. São Paulo:Boitempo, 2009.

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carágua em 1979. Todas elas, segundoSader, foram seguidas por retrocessos:primeiro, o refluxo e a descrença nosmovimentos guerrilheiros, depois, asditaduras militares e, finalmente, opróprio neoliberalismo.

Uma das conexões interessantesfeitas pelo autor para explicar o perío-do de hegemonia neoliberal foi a as-sociação da “capitulação” da social-democracia às teorias liberais. Nummundo cada vez mais bipolar, os soci-al-democratas sentiram a crescentenecessidade de optar por um dos la-dos – o do liberalismo norte-america-no ou o comunismo soviético. Essaassociação teria desfeito diversas ali-anças no continente latino-americanoe, somada à repressão sofrida pela es-querda durante as ditaduras, teria aber-to caminho para o neoliberalismo.

A combinação da repressão ditato-rial com o neoliberalismo teria leva-do, aos poucos, o nacionalismo e asocial-democracia a se apropriar dire-tamente da agenda e do projetoneoliberal.Na argumentação de Sader,tal associação permitiu fosse a Améri-ca Latina o primeiro laboratório doneoliberalismo, experimentando atransferência de renda direta do setorpúblico para o privado, a desregula-mentação do mercado, a abertura to-tal da economia e a exclusão de direi-tos formais dos trabalhadores. Com aestabilização monetária, os governos

neoliberais não conseguiram se legi-timar em virtude das suas grandes efacilmente perceptíveis consequênciassociais negativas. Entretanto, mesmocom poucos resultados efetivos, agrande vitória do neoliberalismo –uma constatação do autor – se deu noplano político. Sader argumenta quea mentalidade individualista foi gene-ralizada e a organização coletiva de-sestimulada, passando a prevalecer arejeição a busca de interpretações to-talizantes para as questões sociais.Registra ainda a prevalência das idei-as de proteção ao consumidor em de-trimento da proteção ao cidadão bemcomo de garantias ao interesse pri-vado em detrimento do espaço públi-co simbolizado através da expansãodos shoppings centers.

Essa vitória ideológica do neolibe-ralismo foi acompanhada pela impo-sição do chamado “pensamento úni-co”, baseado no Consenso de Wa-shington, que delimitou as bases so-bre as quais as reformas neoliberaisseriam implementadas nos países emdesenvolvimento, seguidas tanto pelosenso comum quanto por grande par-te dos intelectuais, muitos dos quaishaviam se manifestado nacionalistasou social-democratas ferrenhos algunsanos antes.

Com base nessas reflexões, Saderexplica como a passagem de um mun-do bipolar para um mundo de hege-

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monia norte-americana ajudou a con-solidar os modelos neoliberais. Con-tudo, em um contexto já não expansi-vo do capital, o neoliberalismo logomostraria seus limites e o único setorda esquerda que de fato demonstrariaresistência às reformas seriam os mo-vimentos sociais. Tudo isso gerou umacrise de hegemonia: enquanto o neo-liberalismo revelava seus limites, nãosurgiam proposições alternativas con-cretas. Os movimentos sociais – MSTno Brasil, cocaleiros na Bolívia, zapa-tistas no México, etc. – resistiam, massem proposições programáticas claras.

No segundo capítulo, Sader deba-te a crise hegemônica propriamentedita, ressaltando a ideia de que asduas grandes tendências políticas noSubcontinente, no século XX, foramo desenvolvimentismo, a partir dosanos 1950, e o neoliberalismo, a par-tir dos anos 1980. A transição entreestas tendências teria sido aceleradapelas ditaduras militares e pela adap-tação de algumas correntes ideológi-cas ao liberalismo. Atualmente, po-rém, a América Latina passaria por umhiato hegemônico, no qual se podeapontar projetos supostamente pós-neoliberais em disputa com o mode-lo vigente até hoje.

Para efeito analítico, o autor dividea América Latina contemporânea emtrês blocos de países segundo suas ten-dências políticas: o primeiro e menor

deles seria o dos assumidamente ne-oliberais, como a Colômbia, o Peru eo México; o segundo, o das experiên-cias mais ambíguas do continente, degovernos ditos de esquerda, mas quenão romperiam de forma completacom a lógica imposta pelo neolibera-lismo (Brasil, Argentina, Uruguai, Pa-raguai, entre outros). O terceiro e maisradical bloco seria composto pelospaíses que tentam reformas mais efe-tivas, como a Venezuela, a Bolívia e oEquador. Os dois últimos blocos teri-am em comum o fato de seus gover-nantes terem sido eleitos a partir dainsatisfação popular com o modeloneoliberal. O discurso e as origensdesses governantes seriam antineoli-berais e os projetos de alguns deles sãoclaramente pós-neoliberais, pregandomaior intervenção do Estado na eco-nomia e maior participação popularnas decisões.

Por contar com duas das três mai-ores economias do Subcontinente, osegundo bloco é o que o autor consi-dera decisivo quando se leva em con-ta as perspectivas pós-neoliberais, ape-sar do maior radicalismo do terceirobloco. Por isso, o terceiro capítulo daobra é destinado exclusivamente adecifrar “o enigma Lula”. Sader resga-ta a história do PT e da conjuntura bra-sileira nos últimos anos e aponta o queseriam três grandes falhas no gover-no brasileiro: o não enfrentamento da

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“questão agrária” (a prioridade teriasido dada ao agronegócio), a políticamacroeconômica de aliança eternacom o capital financeiro e a pouca von-tade política do Estado para a efetivademocratização da mídia. Estas seri-am as questões pendentes do projetopolítico do PT para o Brasil. Nesse sen-tido, o autor aponta uma crítica à es-querda que se coloca como oposiçãoa qualquer custo ao governo Lula, in-dicando que o melhor caminho parauma oposição à esquerda seria o deentender os avanços do projeto petistae apoiá-los sem omitir a crítica aos as-pectos mencionados.

Sader constrói uma discussão acer-ca do governo Lula e dos seus limi-tes. Contudo, quando passa da refle-xão para as conclusões, talvez por suaprópria história de militância no PT,não assume as consequências reais dasua análise. Os pontos falhos queaponta no governo Lula, e que o tor-nariam um enigma, não parecem tra-tar-se de pendências a serem resolvi-das por um governo, mas limitaçõesde um projeto que não tem perspecti-va de avançar nestes pontos. Ao afir-mar que “o modelo neoliberal e o blo-co de forças que o protagoniza [...] sóconseguem sobreviver se aplicados deforma mitigada – como nos casos doBrasil, da Argentina e do Uruguai”(p.64), demonstra que esses modelosambíguos são na verdade o último

refúgio do neoliberalismo no conti-nente. Assim, conforme se pode infe-rir, os pontos falhos do projeto petis-ta não se apresentam como simplespendências, e sim como partes coe-rentes de todo o projeto político.

Partindo desta reflexão, Sader afir-ma que considerar o governo Lulamais neoliberal do que os anteriores,ou negar a existência de avanços, podeinduzir ao erro de se fazer oposição aqualquer custo e contribuir com o cres-cimento da direita no país. “Em lugarde atuar como um crítico de esquerda,que apóia o que o governo tem de pro-gressista, [a oposição de esquerda aogoverno Lula] ataca tudo e rifa a pos-sibilidade de construir uma alternati-va à esquerda do PT, relegada a simesma, à intranscendência (sic) polí-tica” (p.71). Isso é plenamente plausí-vel, mas apostar todas as fichas em umprojeto que demonstra ter limites es-truturais e que, justamente por contadas suas ambiguidades, termina porfragmentar a esquerda partidária e osmovimentos sociais, sugere uma apos-ta em algo que tende a eternizar a es-trutura social rejeitada pelo próprioautor. O que Sader chama de “pendên-cias”, portanto, pode ser consideradocomo limites estruturais. Neste senti-do, o livro falha ao não levar em con-ta a importância da existência de es-paços de organização que vislumbreme que demonstrem à população hori-

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zontes políticos diferentes do que estáposto, algo que o PT tornou-se inca-paz de fazer nos últimos anos. O “enig-ma Lula” é decifrado pelo autor de for-ma clara, mas as consequências dessadescoberta são omitidas ou distorcidas.

O livro termina com uma discus-são sobre o desafio teórico da Améri-ca Latina, na qual o autor enumeraalgumas debilidades da esquerda du-rante o século XX, afirmando que amaioria das experiências se deu combase em tentativas e erros. Traz nova-mente a discussão entre reforma e re-volução, afirmando que as reformas,se feitas de maneira a mudar a estru-tura da sociedade, podem caminharpara um processo revolucionário. Oquarto capítulo traz, também, umaclassificação das três estratégias daesquerda na América Latina: a demo-crática, com governos desenvolvimen-tistas, depois a guerra de guerrilhas epor fim a atual, de refundação dos Es-tados a partir de vitórias eleitorais, masque tentam ter como base e como par-ticipantes ativos dos governos os mo-vimentos sociais.

Sader contribui para a sistematiza-ção do que existe de teoria na esquer-da latino-americana. Algumas falhase omissões no relacionado à maneiracomo se aborda o conceito de nação,além de contradições entre a análise eas proposições sobre o que fazer, nãotornam desnecessária a leitura do li-

vro. Trata-se de uma obra de um soci-ólogo competente, extremamente di-dático e que tem muito a contribuirpara o pensamento da esquerda naAmérica Latina. A principal conclusãoé a de que vivemos uma crise da he-gemonia liberal e que não existe umcontraprojeto definido. Se passamosalguns anos “em busca do dissensoperdido”, como afirmou José Luís Fio-ri, parece que agora o encontramos, e“A nova toupeira” contribui para en-tender esse processo bem como oscaminhos que temos pela frente.

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