Resenha: o debate sobre a felicidade na sociedade líquido ... · PDF...

download Resenha: o debate sobre a felicidade na sociedade líquido ... · PDF filenegociáveis”, como o amor e a amizade (p. 12). Bauman cita a pesquisa de Richard Layard7 segundo a qual

If you can't read please download the document

Transcript of Resenha: o debate sobre a felicidade na sociedade líquido ... · PDF...

  • D O S S I

    157

    R E S E N H A

    Um dos mais fecundos socilogos contemporneos, o polons radicado na Inglaterra, Zigmunt Bauman, tem se dedicado em sua vasta obra1 refl exo sobre a cultura do consumo e suas implicaes para a vida humana na sociedade que chama de lquido-moderna2. Em seu recente livro, A Arte da Vida, coloca o foco em um aspecto central para a compreenso de nossa cultura: quais referncias e valores fundamentam a busca da felicidade no mundo contemporneo e que conseqncias estes acarretam para a identidade dos indivduos e seus relacionamentos sociais.

    Em livro tambm recente, outro socilogo contemporneo tratou do mesmo tema, o francs Gilles Lipovetsky (A Felicidade Paradoxal, 2007). Os dois se interessam por explorar a relao entre consumo e felicidade, equao que central para a compreenso que ambos trazem da sociedade atual. Porm, uma diferena fundamental entre ambos que Lipovetsky no v de modo necessariamente negativo o que chama de hiperconsumo: Evidentemente, o balano humano e social da sociedade hipermercantil no muito lisonjeiro, mas negativo em todos os pontos? (...) Contra a postura hipcrita de grande parte da crtica do consumo, preciso reconhecer os elementos de positividade implicados na superfi cialidade consumista (LIPOVETSKY, 2007, p. 17).

    Esta diferena marca a sociologia humanista de Bauman, pois, para este, os ideais de consumo e vida feliz no mundo capitalista trazem a insolvel contradio interna de uma sociedade que estabelece para todos os membros um padro de felicidade que a maioria destes todos incapaz de alcanar (p. 38). Para Bauman, a sociologia deve dar sua prpria contribuio na batalha por uma sociedade melhor, mais hospitaleira aos seres humanos e sua humanidade3. A contribuio da sociologia, na concepo do autor, est na possibilidade de fazer as pessoas refl etirem sobre os valores que adotam e reconhecerem seu potencial de escolha.

    Bauman no v confl ito entre o exerccio simultneo dos papis de socilogo e de fi lsofo; por isso, em A Arte da Vida combina resultados de pesquisas sociolgicas recentes, suas prprias anlises de depoimentos de consumidores e das estratgias da publicidade, com um instigante passeio pelas idias de felicidade presentes nas diversas correntes da fi losofi a, na sociologia clssica e contempornea. E ainda escreve com clareza, de forma a ser entendido por um pblico bem mais amplo do que os leitores da academia. Bauman mostra que possvel fazer tudo isso mostrando erudio e riqueza de interpretao.

    Coerente com sua crtica de que os estudos sociais acadmicos perderam a ligao com a

    De: Zygmunt BAUMANA Arte da Vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

    Por: GESA MATTOS Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal do Cear (UFC).

    O DEBATE SOBRE A FELICIDADE NA SOCIEDADE LQUIDO-MODERNA

  • 158 REVISTA DE CINCIAS SOCIAIS v. 41 n. 1 2010

    agenda pblica4, logo no incio do livro ele aborda um problema que tem ganhado espao nessa agenda recentemente: a crtica ao Produto Interno Bruto (PIB) como parmetro hegemnico para avaliar o desenvolvimento dos pases. O PIB mede somente a quantidade de bens e servios produzidos em uma nao, em um determinado perodo de tempo, mas no leva em considerao a qualidade, por exemplo, do aproveitamento do tempo pelos seres humanos envolvidos nessa produo5.

    Como mostra a pesquisa de Michel Rustin6, citada por Bauman, o aumento do PIB em pases como Gr-Bretanha e Estados Unidos no est associado a um aumento do bem estar subjetivo e sim ao crescimento de casos de depresso e das estatsticas de violncia. Um dos motivos apontados pelo autor: ganhar bastante dinheiro para adquirir bens que s podem ser obtidos em lojas um nus pesado sobre o tempo e a energia disponveis para obter e usufruir bens no-comerciais e no-negociveis, como o amor e a amizade (p. 12).

    Bauman cita a pesquisa de Richard Layard7 segundo a qual h um limite para que o ganho em termos de conforto e consumo seja capaz de gerar mais bem estar subjetivo. Conforme as estatsticas comparadas por Layard em vrios pases, os ndices de satisfao com a vida s crescem de modo signifi cativo at o ponto em que carncia e pobreza so substitudas pela satisfao de necessidades essenciais; e param de subir ou tendem a decrescer quando se ultrapassa certo limite de conforto em termos materiais.

    A relao entre consumo e expectativa de felicidade no mundo contemporneo amplamente abordada pelo autor na Introduo. Em seu estilo ensastico, chega a uma metfora exemplar do conceito de felicidade do capitalismo atual: Um

    dos efeitos mais seminais de se igualar a felicidade compra de mercadorias que se espera que gerem felicidade afastar a probabilidade de a busca da felicidade um dia chegar ao fi m. (...) Na pista da felicidade no existe linha de chegada (p. 17).

    A partir da interpretao de Bauman sobre o depoimento de uma consumidora adolescente8, somos levados a compreender que est em jogo no consumo adquirir e manter uma posio social necessariamente reconhecida pela sociedade. O certifi cado de validade do status adquirido, no entanto, tem prazo curto quanto sensao que proporciona de ser visto como algum que est na trilha certa. Assim, o consumidor precisa voltar s lojas e adquirir os produtos certos para o reforo da sensao de estar no preo social. ( interessante que seja de uma adolescente o depoimento examinado pelo autor, j que na sociedade atual o ideal de felicidade associado idia de juventude eterna).

    Segundo Bauman, a ausncia de felicidade parece ser inadequada, em um mundo onde esta facilmente alcanvel pelas promessas do consumo e de transformao da identidade; ento se segue em busca do verdadeiro eu que se encontraria se utilizasse os meios e habilidades certos. O que de fato novo o sonho gmeo de fugir do prprio eu e adquirir um novo feito sob encomenda e a convico de que transformar esse sonho em realidade algo que est ao nosso alcance. No apenas uma opo, mas a mais fcil (p. 24, grifos no original).

    A mesma facilidade com que se busca descartar identidades consideradas inadequadas vivida nos relacionamentos amorosos, como j havia sido descrito pelo autor em Amor Lquido (2004). Compromissos so vlidos at que a satisfao desaparea ou caia abaixo de um padro aceitvel e nem um instante a mais (p. 26). O ideal dos tempos

  • 159

    lquido-modernos o Super Homem ou Homem Superior de Niezstche, na interpretao de Bauman: o grande mestre da arte da auto-afi rmao, capaz de se evadir ou escapar de todos os grilhes que restringem a maioria dos mortais comuns.

    A questo de fundo com a qual o autor se depara, no primeiro captulo do livro (As Misrias da Felicidade), concordando com Kant, que no possvel chegar a uma concluso ao mesmo tempo defi nitiva e consistente do que seja felicidade. Pois, como tambm constata Bauman, a felicidade de uma pessoa pode ser bem difcil de distinguir do horror de outra (p. 39).

    Neste ponto poderamos colocar em xeque a crtica da sociedade de consumo feita pelo prprio autor nas 32 pginas que constituem a sua Introduo. Se a felicidade subjetiva e cultural, com quais parmetros podemos fazer a crtica dos valores da sociedade atual? Bauman nos d elementos para admitir que a sociedade ocidental universaliza um dado conceito de felicidade como busca ansiosa, permanente, insacivel, baseada na competio e no desejo de parecer melhor do que os outros, no simulacro de um ideal sempre almejado e nunca conquistado, seno por fugazes instantes do consumo de um bem ou de uma relao amorosa, esta destinada a ser substituda logo que apaream os primeiros sinais de insatisfao.

    Porm, para fundamentar sua crtica, ele faz um exame dos ideais de felicidade presentes nos fi lsofos clssicos e esticos, demonstrando que, longe de ser intrnseco espcie humana, o ideal de felicidade atual foi sendo elaborado historicamente a partir da ascenso da burguesia. Com ela, veio aparecer uma caracterstica quase universal da vida moderna: a tenso entre dois valores, segurana e liberdade, igualmente cobiados e indispensveis a

    uma vida feliz mas, que pena, assustadoramente difceis de conciliar e usufruir conjuntamente (p. 65).

    Nesta ltima passagem, Bauman parece ver como universal uma tenso que, conforme ele mesmo demonstra ao longo do livro, especfi ca do ideal de felicidade no mundo capitalista. Segurana e liberdade podem no ser contraditrias em outras culturas, onde estas mesmas palavras tm outros signifi cados. Segurana para os hindus, por exemplo, no signifi ca apego a valores materiais; ao contrrio, o contato com a Divindade presente em cada um que fortalece a noo de sentir-se seguro e, ao mesmo tempo, livre de toda dependncia das circunstncias externas para sentir bem estar.

    Embora no faa referncia cultura hindu, uma viso parecida encontrada por Bauman nos fi lsofos representantes do estoicismo, os quais advogam que a verdadeira felicidade s pode ser sentida voltando-se para dentro de si mesmo. Como resumiu Pascal, citado pelo autor: A causa nica da infelicidade do homem que ele no sabe como fi car quieto em seu quarto (p. 51).

    No mundo capitalista atual, ao contrrio, como mostra Bauman, o indivduo prisioneiro do olhar do Outro, e s se sente seguro e bem se estiver melhor, se for invejado, apreciado. O autor mostra que o consumo associado ao sentimento de pertena a uma categoria exclusiva, distintivo de bom gosto, discernimento e savoir-faire (p. 34). A felicidade, construda dessa maneira, exige que se parea estar sempre frente dos competidores (p. 36). Tendo sempre o outro como referncia, a felicidade obtida por provocar em algum sentimentos de superioridade.

    Como nos convence o autor, guiar-se pelo olhar do Outro frequentemente gera frustrao e ressentimento: rancor causado pelo impulso

  • 160 REVISTA DE CINCIAS SOCIAIS v. 41 n. 1 2010

    deses