Resenha Sobre Consumo

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RESENHAS 508 relação de subordinação. Ao relativizar o ceticismo e ao abdicar do pessimismo, Bazin não buscou apenas denunciar o fazer antropológico. Ao contrário, a partir de dados empíricos de grande qualidade, sua ideia foi justamente a de reformular um projeto antropológico por meio de novas bases. BEVILAQUA, Ciméa Barbato. 2008. Consu- midores e seus direitos: um estudo sobre conflitos no mercado de consumo. São Paulo: Humanitas/NAU. 336pp. Salvador Schavelzon Doutorando PPGAS / UFRJ “Nessa época, o atendimento funcionava das nove horas às 16h30. A espera era interrompida, de quando em quando, por uma voz advinda da sala anexa: ‘O próximo!’”. A partir da observação da cotidianidade em órgãos de defesa do consumidor em Curitiba; do acompa- nhamento, nesta cidade, dos trajetos de consumidores prejudicados na busca de justiça; do estudo do campo internacional, nacional e estadual do “consumerismo” e suas instituições; e de uma discussão com a teoria antropológica, Ciméa Bar- bato Bevilaqua analisa minuciosamente o desenvolvimento, o significado e as variações do conflito tal como aparece entre consumidores e fornecedores na economia mercantil contemporânea. O livro constrói um modelo para pensar os conflitos entre consumidores e fornecedores, levando em consideração o modo como são vividos pelos protago- nistas. Quando o conflito deste tipo apa- rece, a circulação das trocas comerciais pacíficas se interrompe e os bens são imobilizados. Na análise que apresenta Ciméa, é nesse momento que a parte que

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    relao de subordinao. Ao relativizar o ceticismo e ao abdicar do pessimismo, Bazin no buscou apenas denunciar o fazer antropolgico. Ao contrrio, a partir de dados empricos de grande qualidade, sua ideia foi justamente a de reformular um projeto antropolgico por meio de novas bases.

    BeVIlaqua, cima Barbato. 2008. Consu-midores e seus direitos: um estudo sobre conflitos no mercado de consumo. so Paulo: Humanitas/Nau. 336pp.

    salvador schavelzonDoutorando PPGAS / UFRJ

    Nessa poca, o atendimento funcionava das nove horas s 16h30. A espera era interrompida, de quando em quando, por uma voz advinda da sala anexa: O prximo!. A partir da observao da cotidianidade em rgos de defesa do consumidor em Curitiba; do acompa-nhamento, nesta cidade, dos trajetos de consumidores prejudicados na busca de justia; do estudo do campo internacional, nacional e estadual do consumerismo e suas instituies; e de uma discusso com a teoria antropolgica, Cima Bar-bato Bevilaqua analisa minuciosamente o desenvolvimento, o significado e as variaes do conflito tal como aparece entre consumidores e fornecedores na economia mercantil contempornea.

    O livro constri um modelo para pensar os conflitos entre consumidores e fornecedores, levando em considerao o modo como so vividos pelos protago-nistas. Quando o conflito deste tipo apa-rece, a circulao das trocas comerciais pacficas se interrompe e os bens so imobilizados. Na anlise que apresenta Cima, nesse momento que a parte que

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    se considera lesada (ou as instituies que a representam) comea a se movi-mentar. E junto a esses movimentos que a etnografia transita pelas trajetrias de pessoas que percorrem uma vasta rede que inclui instituies estatais e no-esta-tais; que se prolonga habitualmente at a imprensa, mas que tambm alcana uma benzedeira e uma igreja; pode derivar na formao de tumultos; recorre a rela-es pessoais influentes ou a dicas dos conhecidos; e chega, diante da falta de alternativas, ameaa de violncia con-tra o outro e, no limite, contra si mesmo. Se a morte fsica aparece no extremo do campo de significados do mapa traado, no entanto, mais eminente a presena da morte simblica que deriva da anu-lao comercial da pessoa no Servio de Proteo ao Crdito, o que explica boa parte dos movimentos e das emoes dos consumidores que reclamam nos casos considerados neste livro.

    Aps uma apresentao do territrio de instituies que intervm na defesa dos consumidores em Curitiba, a etno-grafia acompanha os mecanismos que re-sultam no nascimento dos conflitos e das respostas dos oponentes. O livro mostra um repertrio de trajetos de pessoas em conflitos at certo ponto padronizveis, mas ao mesmo tempo bem diversos, e que incluem o homem pobre que comprou um terreno sem saber que alagava e sofre a violncia verbal de um juiz; o comprador de um carro zero-quilmetro que utiliza a imprensa para protestar por um tc, tc, tc no resolvido; ou dvidas que conti-nuam abertas depois de serem pagas. Os padres comuns mostram a utilizao das mesmas armas, das mesmas alianas e as mesmas formas de neutraliz-las. Dizem respeito tambm s particularidades que se apresentam quando as situaes anali-sadas envolvem pessoas de classe mdia ou baixa e quando se trata de conflitos individuais ou coletivos.

    Um dos principais aspectos demons-trados por esta etnografia o fato de que nenhuma reclamao se reduz sua dimenso material. A anlise de Cima assinala que uma cara de deboche ou a ironia de um gerente pode desencadear um processo muitas vezes tortuoso e custoso para o prprio consumidor, do qual ele teria provavelmente desistido caso o fornecedor tivesse reagido de ou-tra maneira. Os conflitos mostram como ultrapassam o econmico, o valor dos bens e muitas vezes no acabam quando o dano reposto. o sentimento de uma atitude pretensiosa dos que receberam sem terem dado na forma prevista que leva o consumidor ao conflito e Cima, teoria antropolgica.

    Em dilogo com os trabalhos de Marcel Mauss e desenvolvimentos pos-teriores da teoria da reciprocidade, a autora se pergunta sobre o que acontece no mercado de consumo quando a tro-ca interrompida e a expectativa do consumidor no satisfeita. A resposta nos leva para um princpio implcito de identificao entre as partes da transao econmica que aparece como necessrio para a circulao normal da economia. A equivalncia postulada entre os par-ceiros permite neutralizar a assimetria dos participantes no mercado e crucial para entender a apario do conflito. Quando um fornecedor utiliza sua fora para no reconhecer um direito, quebra a equivalncia do plano moral entre os parceiros e cria a situao que leva as partes ao enfrentamento. Neste sentido, a etnografia mostra como o defeito de um produto no conduz imediatamente ao conflito sem antes passar por uma questo de estado da relao moral entre os parceiros econmicos.

    No trabalho de Cima, so essas propriedades do mercado que permitem entender como a economia da mercadoria funciona com princpios comuns econo-

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    mia do dom: na anlise terica, a transa-o pacfica e o conflito de direitos a troca e a guerra mostram como a relao econmica subsumida pela dimenso relacional e, mais uma vez, como os ob-jetos da troca sempre levam consigo algu-ma coisa do sujeito. A partir da introduo dos elementos que disparam o conflito no mercado de consumo aqueles que para muitos no fariam parte da economia de mercado o trabalho de Cima se une s criticas das vises dualistas que pressu-pem uma descontinuidade radical entre economia do dom e economia mercantil. Nos casos etnogrficos apresentados, vemos como no se sustenta a ideia de um mercado impessoal com relaes efmeras, meramente instrumentais e a-sociais. Assim, continuando com a reflexo maussiana, Cima afirma que a economia da sociedade moderna seria apenas uma atualizao histrica de um princpio lgico mais geral presente na economia da reciprocidade e do dom.

    Um dos maiores mritos do livro de Cima a descrio de um espao do Direito de desenvolvimento recente, no habitualmente explorado pela literatura antropolgica, que chama a ateno pelo modo frgil, disputado e subjetivo com que est estabelecido. A partir da descrio de conflitos de direitos do consumidor, este territrio do Direito aparece longe do poder coercitivo que se v em outras reas. Os processos vinculados a esses direitos se mostram apoiados em estratgias que aparecem como externas lei e aos procedimentos normativos oficiais. Vemos, assim, como esses processos dependem em grande parte da insistncia dos consumidores, dos estagirios ou dos responsveis por instituies que s vezes resolvem os con-flitos s por meio de escndalos, berros ou ameaas de propaganda negativa na imprensa e de processos judiciais que nunca se iniciam.

    Todo tipo de direito est certamente aberto negociao e disputa, mas os direitos do consumidor parecem aqui depender muito mais do que outros da diligncia dos envolvidos. Do lado dos fornecedores, essa fragilidade s d lugar ao aproveitamento da sua posio de vantagem no mercado, como vemos na facilidade com que as empresas se ausentam das instncias de mediao, firmam acordos que no cumprem, e at contestam na Justia a propriedade do Cdigo de Defesa do Consumidor para regulamentar suas atividades. Talvez tambm por isso, na etnografia dos con-sumidores em busca de seus direitos se destaca o conflito, porque este o plano ao qual os consumidores so obrigados a chegar para restabelecer seus direi-tos. Nas trajetrias acompanhadas na etnografia, os direitos dos consumidores aparecem alcanados somente por meio da interveno de personagens dedica-dos, como um delegado que utiliza sua autoridade para mediar apesar disto ser considerado ampliao indevida das suas atribuies pelo judicirio ou do diretor de uma organizao de defesa do consumidor que redige cartas com extremo formalismo ameaando com a Justia ordinria, mas sabendo que se a empresa acusada se recusar reparao do direito, pouco poder ser feito. Essas aes fora da lei, no entanto, so tambm mais legtimas do que outras, em um cam-po onde se sabe que a equivalncia das partes no respeitada pelas empresas fornecedoras.

    Se bem que o tema principal desta verso-livro de uma tese de doutorado, defendida na Universidade de So Paulo, possa ser localizado, no mbito mercantil, como um problema de relaes econ-micas, na pesquisa aqui apresentada vemos aparecer com fora e de diferentes maneiras o Estado, com um papel que a autora qualifica como decisivo. Alm

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    da sua importncia na regulamentao do mercado financeiro e dos direitos do consumidor, aps a deflagrao dos conflitos analisados, o Estado que at ento tinha participado das transaes pacficas de modo marginal e difuso impe-se como terceiro termo entre o consumidor e o fornecedor, posicionando-se em lugar-chave para definir o curso do conflito. No por acaso, justamente no terreno estatal de juizados, delegacias e rgos de defesa do consumidor que grande parte da pesquisa de campo que originou este livro transcorre. E, embora em alguns casos o Estado aparea do lado demandado, o seu lugar no trabalho de Cima se faz presente essencialmente no equilbrio da relao rompida, quan-do a troca comercial no se desenvolve normalmente segundo a perspectiva do consumidor.

    Nas situaes analisadas, ao Estado que o consumidor recorre para buscar seus direitos. Nessa busca, o consumidor perde autonomia, mas encontra uma fer-ramenta para restabelecer seu lugar como sujeito moral diante do fornecedor. Com a apario em cena do Estado, agora o fornecedor quem perde sua posio de vantagem, e quem voltar a estar no nvel do consumidor, ou at abaixo, dele caso a empresa, claro, assista s audincias conciliatrias do juizado especial ou do Procon. O Estado, no entanto, falha mui-tas vezes no desempenho do seu papel de equilibrador da relao, apesar de o Cdi-go de Defesa do Consumidor ultrapassar o direito individual e fornecer ferramen-tas para corrigir algumas assimetrias do mercado. Isto visvel nas situaes de conflito apresentadas na etnografia de Cima, e seria ainda mais significativo se olhssemos mais alm, para o univer-so de consumidores lesados, vtimas da assimetria das relaes mercantis, mas que no saem da resignao silenciosa dos que no reclamam.