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Resenha de A conquista da América

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    Epgrafe, So Paulo, Edio Zero, p. 120-136, 2013 120

    TODOROV, Tzevetan (1983). A Conquista da Amrica. A Questo do Outro.

    So Paulo, Ed. Martins Fontes.

    RESTALL, Matthew (2006). Sete Mitos da Conquista Espanhola.

    Rio de Janeiro, Ed. Civilizao Brasileira.

    Por Ariane Larocca e Pedro Henrique Fernandes

    A Conquista da Amrica. A Questo do Outro, de Tzvetan Todorov tem, como

    mote, a questo da alteridade, analisada do ponto de vista moral, atravs da

    narrativa e anlise do que considera uma histria exemplar (TODOROV, 1983, p.

    4). A perspectiva no , pois, a de um historiador, mas de um moralista,

    preocupado, antes de tudo com o presente. Este presente, no caso, o ano de 1982,

    quando a obra foi publicada, poca em que o tema da percepo do outro era de

    extrema relevncia dentro da conjuntura geopoltica e socioeconmica: a cortina de

    ferro j apresentava rachaduras aparentes, a Comunidade Europeia estava em

    construo, e havia um abismo que separava o Primeiro do Terceiro Mundo. A

    Europa prspera construa sua unidade apartada das graves crises que assolavam os

    pases latino-americanos, quase todos emergindo de ditaduras militares que os

    haviam sufocado por dcadas, e mais distante, ainda, das naes africanas, muitas

    delas emancipadas em tempo recente, outras em processo de descolonizao, e

    praticamente todas enfrentando guerras civis, cujos contornos eram de genocdio,

    dentro de um contexto de escassez total de alimentos, que havia criado um

    continente onde, literalmente, morria-se de fome.

    com o objetivo precpuo de fomentar o dilogo sobre a questo da

    alteridade na poca coeva que Todorov ergue sua tese sobre o desconhecimento do

    outro pelos espanhis, ao narrar a descoberta da Amrica e sua conquista; mas no

    s: v no ano de 1492, com a chegada de Colombo ao solo americano, um mundo

    que era constitudo de partes que no formavam o todo, fechar-se em sua

    totalidade. , tambm, o encontro que contm a quintessncia de seu tema de

    Graduao em Histria pela Universidade de So Paulo USP.

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    anlise: desde priscas eras, os europeus sabiam da existncia da frica, da China e

    da ndia, por exemplo, de forma que o encontro entre eles no se deu num

    contexto de surpresa absoluta, ao contrrio do que ocorre em relao s

    populaes indgenas mesoamericanas, onde a estranheza completa. Os

    espanhis nada conhecem sobre os ndios: este , pois, um encontro exemplar e,

    assim, axiologicamente paradigmtico.

    A este valor, soma-se outro, de causalidade direta, posto que a identidade

    presente ocidental1foi anunciada e mesmo fundada com a conquista da Amrica.

    Somos todos descendentes diretos de Colombo, e nele que comea nossa

    genealogia (TODOROV, 1983, p. 6), proclama o autor.

    Todorov utiliza, como corpus documental, um conjunto de documentos

    produzidos pelos conquistadores e/ou pelos missionrios espanhis, como cartas e

    dirios, dentre outros. Entretanto sua leitura no a de um historiador, mas a de um

    linguista, um semitico: analisa as formas discursivas, as omisses, a linguagem e a

    apreenso do mundo indgena a partir do olhar europeu. Realiza, portanto, um

    estudo sobre o discurso, no fazendo qualquer crtica interna s fontes.

    Alis, sua metodologia estrutural lingustica, muito prxima de um etnlogo,

    busca entender, em sua completude, os conjuntos mentais organizados e orgnicos

    tanto dos indgenas, como dos espanhis; entretanto, desconsidera qualquer

    mtodo historiogrfico ao sustentar seus argumentos. Antes, de antemo, j revela

    que no busca a verdade, mas um exemplo: levanta questes que no levam ao

    conhecimento do verdadeiro, mas do verossmil, sustentando que, para a histria

    das ideologias, o que realmente importa a possibilidade da recepo do texto por

    seus contemporneos e que o autor acredite em suas prprias palavras. Adota esta

    perspectiva, descartando a noo de falsidade da informao ou fato relatado no

    documento: sua mera existncia comprova sua verossimilhana: e, sua anlise

    discursiva meramente moralista o que basta.

    O livro dividido em quatro captulos, que correspondem s fases sucessivas

    1 O termo ocidental usado pelo autor para designar o Primeiro Mundo, que, embora englobe os EUA, refere-se, no texto, basicamente Europa, e neste sentido que deve ser compreendido.

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    da relao entre o eu e o outro, isto , faz uma histria desconstrutivista desse

    outro. O problema desta abordagem que resulta numa histria linear: o captulo

    Descobrir abarca, basicamente o encontro de Colombo com os indgenas e suas

    implicaes; entretanto, no captulo seguinte, ao analisar a conquista, srie de

    eventos cronologicamente posterior descoberta, o autor no contextualiza

    temporalmente os sujeitos discursivos, de modo que no so traadas as conexes

    entre os discursos produzidos em cada tempo e as relaes de poder daquela poca

    especfica, que, efetivamente, restringia e vinculava tais discursos2.

    Somos, assim, apresentados a Colombo, um sujeito de mentalidade medieval,

    que em nada antecipa o homem moderno. De raciocnio finalista, suas

    interpretaes guiam-no, sempre, rumo a um resultado concebido a priori, sendo,

    portanto, desprovidas de cientificidade. Seu interesse a natureza, e os nativos

    americanos lhe interessam apenas na medida em integram a paisagem recm-

    descoberta: a eles dedica a mesma apreciao pragmtica com que admira os

    elementos naturais, no desenvolvendo qualquer interesse em verdadeiramente

    conhec-los.

    Seu desconhecimento em relao aos ncolas o leva a um comportamento

    ambguo em relao a eles: ora declara que os ndios so pessoas extremamente

    bondosas e dceis, no que antecipa, de certo modo, a ideia do bom selvagem que

    surgir no Dezenove, e ora os taxa de ces imundos, porque no entende suas

    prticas culturais distintas, sobretudo o canibalismo ritual, e no admite que

    prefiram seus cultos religiosos ao cristianismo, constituindo-se, assim, em potenciais

    escravos.

    Esta ambiguidade expressa nos escritos e no comportamento de Colombo, a

    marca particular da histria da descoberta da Amrica, entendida como o primeiro

    episdio da conquista: a alteridade humana afirmada e rejeitada simultaneamente.

    Este duplo movimento simbolizado, na histria hispnica, pelo peculiar ano de

    2 Cf. o entendimento de Donald M. Lowe de que a linguagem no uma estrutura autnoma, dentro da qual os indivduos pensam livremente, mas est intrinsecamente vinculada s estruturas de poder de cada poca.

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    1492: ao mesmo tempo em que recusa seu Outro interior, ao expulsar de seu pas os

    infiis mouros e forando os judeus a imigrarem, descobre o Outro interior, no vasto

    territrio americano; e o prprio Colombo liga ambos os eventos em carta aos reis

    catlicos de Espanha3.

    um movimento homogneo, j que o objetivo de expandir a f catlica

    confere unicidade a ambos os acontecimentos, ao passo em que sua simultnea

    heterogeneidade transparece dos sentidos opostos e complementares de cada

    ao: a primeira expulsa o elemento no pertinente tessitura do Estado espanhol,

    enquanto a segunda o introduz de forma permanente.

    Estabelecidos os parmetros e o desenvolvimento dos contatos entre os

    descobridores e os nativos, Todorov busca entender as razes que tornaram

    possvel um nmero to reduzido de espanhis massacrar o super-estruturado e

    riqussimo Imprio Asteca. Aqui, valendo-se dos conceitos estabelecidos pelo

    socilogo Louis Dumont4, o autor apresenta seu construto terico chave, que

    permeia toda a obra: a contraposio entre a sociedade holista indgena e a

    sociedade individualista espanhola.

    A questo no , pois, a existncia ou no da escrita, ou a superioridade

    material dos espanhis: o fundamento da conquista encontra-se na prpria

    mentalidade que determina a concepo de cada sociedade, e o papel do indivduo

    e da linguagem dentro de tais estruturas. A partir do minucioso estudo destes

    aspectos, Todorov apresenta sua tese: a vitria espanhola deveu-se ao colapso na

    comunicao asteca, em consequncia direta de sua interrupo, no momento em

    que, comunicao ritual holista, imposto um padro novo, mais gil e adaptvel,

    da comunicao inter-humana pelos conquistadores5.

    3 Escrita no prprio ano de 1492 por Colombo, aps chegar mrica; seu contedo parcialmente reproduzido em TODOROV, Tzvetan. A Conquista da Amrica. A questo do outro. So Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 47. 4 Em suas referncias bibliogrficas, cita trs obras desse autor: Homo Hierarquicus (1966), Homo aequalis (1977) e La conceptionmoderne de lindividu, LEspirit(1978), pp. 3-39. TODOROV, Tzvetan. op. cit., p. 253. 5 No admite qualquer inferioridade natural dos ndios no plano lingustico ou simblico, posto que os desenhos e pictogramas utilizados pelos ndios no so um grau inferior da escrita, mas uma forma diferente de registro: registram a experincia e no a linguagem.

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    Os astecas possuem uma cosmogonia prpria, na qual essencialmente

    importante a concepo cclica do tempo: o futuro est inscrito no passado, tudo o

    que est por vir j ocorreu, sendo, assim, pr-determinado, e se revelando no

    presente atravs de pressgios ou de profecias. A comunicao estabelecida aqui

    entre o mundo humano e o sobrenatural ou religioso. A comunicao inter-humana

    sequer estimulada: dentro da mentalidade holista asteca, a coletividade no

    resulta da soma de indivduos, antes, tem preeminncia sobre o individual: o todo

    coletivo um elemento maior, do qual a totalidade de indivduos apenas uma das

    partes constitutivas, sempre submetida ao todo.

    O principio fundamentador do mundo asteca sua super-determinao, que

    resulta numa minuciosa regulamentao de toda a vida social, cuja essncia a

    ordem, e no h espao para aes individuais, nem, portanto, qualquer brecha

    para o improviso. [A sabedoria deriva do saber-interpretar; o poder, por sua vez,

    deriva da sabedoria, isto , h uma ntima relao entre o poder e o domnio da

    lngua]6.

    Considera a escrita como ndice da evoluo das estruturas mentais, no

    sentido em que, conforme evolui a escrita (sociedade sem escrita, pictogramas,

    escrita rudimentar, domnio da escrita), diminui o comportamento simblico social,

    evoluindo, proporcionalmente a capacidade de percepo das diferenas.

    A estrutura holista do mundo asteca determina, outrossim, o tipo de guerra

    por ela praticada, qual seja, a guerra ritual, pontuada por protocolos especficos. Os

    conquistadores, em contrapartida, adotam a guerra total, completamente

    desconhecida pelos ndios. Qualquer novidade, seja de que espcie for, desestrutura

    a comunicao asteca, pois esta no aberta a improvisos, a fatos no conhecidos

    previamente, atravs da interpretao dos sinais divinos. Ora, ao no conseguir

    responder prontamente aos primeiros ataques, j haviam perdido, posto que neste

    6 H uma ideia que se reputa difundida na poca, de que os incas acreditariam que os espanhis fossem deuses; o autor compartilha dessa ideia, de forma que as aes espetaculares performatizadas por Cortez tem o intuito de manter tal aparncia divina dos hispnicos. TODOROV, Tzvetan. op. cit., p. 78 e pp. 114-115.

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    tipo de luta de extermnio, as primeiras aes so decisivas no resultado final. Disso

    resulta que a conquista s foi possvel, embora no apenas ou talvez nem

    prioritariamente por isso, devido interrupo da comunicao asteca.

    J os espanhis, simbolizados na obra por Cortez, a quem o autor imputa

    papel de inovao em relao ao comportamento dos conquistadores que

    antecederam, vendo em seus atos uma conscincia histrica e at poltica, dominam

    a fala inter-humana e provm de uma civilizao onde o indivduo tem importncia

    de acordo com as prprias aes; logo, saber se adaptar ao desconhecido e agir de

    improviso so elementos de perspiccia individual.

    A primeira atitude de Cortez encontrar intrpretes, com vistas a amalgamar

    o maior nmero possvel de informaes sobre os indgenas. Malinche lhe

    fundamental, pois conhece as lnguas maia e inca e aprende rpido o espanhol.

    Escolhe permanecer ao lado dos hispnicos, e traduz no apenas a fala dos nativos,

    bem como ensina sua cultura, o significado de seus ritos, o funcionamento de sua

    sociedade, o que garante a Cortez inestimvel vantagem em relao aos nativos:

    preocupa-se muito com a recepo de seus discursos pelos indgenas, adota aes

    espetaculares por seu efeito simblico7 e age de modo dissimulado para confundir

    os ndios. tambm por meio de seus intrpretes que descobre as rivalidades

    internas entre as vrias comunidades nativas que pertencem ao Imprio Inca, de

    forma que se valer delas para fazer alianas e garantir o apoio de um considervel

    nmero de guerreiros ndios, que, em ltima anlise o que, de fato, lhe garante a

    vitria8.

    A linguagem , pois, um instrumento equvoco, podendo ser utilizada tanto

    para se integrar comunidade, como para manipular outrem. Montezuma privilegia

    a primeira funo, Cortez a segunda. Embora os incas venerassem o domnio

    simblico da linguagem, apenas os espanhis perceberam a utilidade prtica da

    lngua, utilizando-a como instrumento poltico de manipulao e controle sobre o

    7 Cujo significado , tambm, a passagem dos incas de uma sociedade holista a uma individual, encerrando a sociedade holista medieval. 8 Por que esta vitria fulgurante, se os habitantes da Amrica so superiores em nmero a seus adversrios, e lutam no prprio solo?. TODOROV, Tzvetan. op. cit., p. 51.

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    outro. E, neste ponto especfico, Todorov aproxima Cortez do prncipe descrito por

    Maquiavel: de posse das informaes, age segundo seu objetivo, e no mais de

    acordo com o objeto.

    A questo que cabe aqui, e que Todorov se coloca, : por que esta

    compreenso que Cortez desenvolve em relao aos ndios o leva a saquear e a

    destruir? Ora, primeiramente h que se considerar que, de seu ponto de vista

    egocntrico, no v os nativos como iguais; so sujeitos, mas reduzidos funo de

    produtores de objetos; se sente admirao pelos ncolas, tal sentimento apenas

    marca a distncia entre eles.

    Mas, para muito alm disso, Todorov cria dois conceitos muito interessantes

    para explicar tamanho massacre: ope a sociedade de sacrifcio, a nativa,

    sociedade de massacre, criada pelos espanhis na Amrica. Na primeira, o

    assassinato religioso, logo, um sacrifcio, determinado pela ideologia oficial,

    perpetrado em praa pblica, e que evidencia a fora dos laos sociais e seu

    predomnio sobre o indivduo. J na segunda, ao contrrio, longe do poder central

    hispnico, a nica lei que tudo permitido, revelando no a natureza humana

    primitiva, mas o ser moderno, amoral, que mata por puro prazer: a barbrie do

    comportamento espanhol extremamente humana e decorre da descoberta, pelos

    conquistadores, da diferenciao moral entre os espaos fsicos da metrpole e da

    colnia.

    Mesmo Las Casas, ferrenho defensor dos ndios, apesar de am-los, no os

    conhece. Do grande debate que trava com Seplveda, pormenorizadamente

    analisado na obra, a nica diferena entre ambos que enquanto o ltimo defende

    a tutela indgena pelos colonizadores, Las Casas acredita que esta deva ficar a cargo

    da Coroa espanhola. Na realidade a discusso toda foi, portanto, sobre quem

    deveria exercer a tutela dos nativos, o que implica que essa proteo era

    implicitamente considerada necessria, logo, era ponto pacfico que os ndios eram

    vistos como inferiores pelos espanhis, mesmo por seus defensores: na melhor das

    hipteses, seriam comparados a crianas, ingnuos e incapazes de autogerir suas

    comunidades.

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    Dessa forma, nem entre os que buscam preservar os ndios exista quem de

    fato os compreenda, pois a compreenso ocorre apenas quando se reconhece o

    Outro enquanto completamente distinto do Eu que o concebe, o que implica, no

    apenas no reconhecimento da alteridade, mas do respeito a ela, isto , no pode

    haver hierarquizao entre os sujeitos, que so distintos, porm coexistem no

    mesmo plano; aqui h o contato que leva compreenso. Qualquer tentativa de

    assimilao por uma das partes, entretanto, pressupe a presuno de

    superioridade cultural por esta, que procura encaixar o Outro em seu sistema de

    valores, resultando numa hierarquizao dos sujeitos; aqui, h o contato que leva

    destruio.

    O texto, entretanto, apresenta uma srie de inconsistncias e contradies.

    Seno vejamos: apresenta a teoria da escrita como ndice de evoluo mental,

    segundo a qual os espanhis seriam os mais evoludos e, portanto, mais aptos a

    perceber o Outro. Porm, so os ndios que aprendem a lngua aliengena e atuam

    como intrpretes. E, neste ponto, o caso de Malinche exemplar, pois ela no

    apenas aprende a lngua e a cultura dos espanhis, bem como opta

    ideologicamente em permanecer e lutar do lado hispnico; alis, durante a obra, ela

    a nica pessoa que efetivamente faz uma escolha individual, livre das amarras

    estruturais impostas pela formao sociopoltica. Quem tambm age atravs de

    escolha, embora de carter coletivo, so as comunidades indgenas que decidem se

    aliar a Cortez na luta contra os astecas.

    Essa aliana, alis, contradiz a tese do autor de que as sociedades ndias no

    so capazes de se comunicar com os hispnicos: tanto o so que, aps negociaes

    entre as partes, os nativos resolvem se colocar ao lado dos invasores europeus,

    visando se libertar do jugo asteca, o que implica que dominavam, tambm, a

    comunicao inter-humana. A prpria construo do imprio asteca, por meio da

    conquista de outros povos, se contrape ideia de que no eram capazes de

    relaes inter-humanas.

    Alm dessas incongruncias argumentativas, o livro no se sustenta enquanto

    obra historiogrfica por diversos motivos: no se preocupa em comparar fontes, na

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    tentativa de se aproximar da verdade, tomando o contedo dos discursos como

    vlidos apenas por terem sido aceitos por seus contemporneos; no relaciona os

    sujeitos discursivos s relaes de poder s quais esto vinculados, isto , considera-

    os como se agissem fora das amarras poltico-sociais das estruturas mais amplas

    que ditavam os limites de seus comportamentos, como se todos estivessem no

    mesmo tempo histrico.

    Entretanto, Todorov se props a comprovar, por meio de uma anlise

    meramente moral, que os espanhis no conheciam os indgenas: apesar de sua

    prpria argumentao ambgua e de todas as inconsistncias internas do texto,

    preciso considerar que tal objetivo alcanado: ao fim e ao cabo, somos levados a

    concluir que, de fato, o contato entre estes povos to distintos entre si no resultou

    na compreenso, mas na destruio, no massacre dos ndios pelos conquistadores

    europeus.

    A obra recebeu diversas crticas positivas na poca de sua publicao; e,

    embora algumas falhas tenham sido apontadas por seus comentadores, a

    comunidade acadmica foi praticamente unnime ao considerar o texto audacioso e

    forte, cuja principal virtude foi a de abrir um campo completamente novo nos

    estudos sobre a conquista da Amrica, agora do ponto de vista cultural. E, embora a

    alteridade seja uma questo perene na histria das civilizaes, Todorov inovou ao

    introduzir este tema na anlise dos acontecimentos do Dezesseis, contribuindo de

    forma decisiva neste debate, seja ao comprovar sua tese da falha de comunicao

    asteca, seja ao provocar a produo de vrias obras de mesmo mote conceitual,

    fomentando o debate intelectual sobre a conquista; e s a partir de amplas

    discusses que podem surgir anlises mais profundas e satisfatrias que contribuam

    para uma explicao mais completa sobre este tema.

    Duas dcadas aps a publicao da obra de Todorov, Matthew Restall,

    historiador especializado em etno-histria e na experincia dos africanos nos

    primeiros tempos da Amrica espanhola, escreve, muito instigado pelo tom das

    obras sobre a conquista, publicadas aos borbotes por ocasio das comemoraes

    do quinto centenrio da descoberta da Amrica, Sete Mitos da Conquista Espanhola,

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    publicado em 2003.

    A obra faz uma reviso da interpretao historiogrfica sobre a conquista da

    Amrica a partir do binmio verdade-mito, buscando, atravs das ideias mais

    difundidas sobre este evento, corrigi-las aproximando-se de uma explicao mais

    prxima verdade e, portanto, mais satisfatria. Ora, os mitos no foram

    inventados pelos historiadores; antes, provm de uma leitura desatenta das fontes

    ou da inobservncia dos procedimentos metodolgicos necessrios ao fazer

    histrico, como o cruzamento de fontes. Partindo dessa perspectiva, seu corpus

    documental inclui as mesmas fontes j utilizadas por historiadores, isto , faz uma

    releitura dessas, fontes, bem como se vale outras fontes que poderiam ter sido

    usadas, mas no o foram.

    Metodologicamente, recua suas lentes, colocando os eventos e as

    personagens da conquista no contexto cultural e institucional dos espanhis e

    indgenas do Sculo XVI traando uma imagem forte do mundo colonial que ento

    emergia.

    uma breve introduo, na qual apresenta seu objetivo de desmitificar o

    entendimento da Conquista seguem-se sete captulos, cada qual referente a um

    mito identificado pelo autor, que corresponde a um aspecto especfico da

    Conquista; segue a explicao de como tal mito foi construdo ao longo do tempo e,

    a partir da investigao de seu corpus documental apresenta sua interpretao

    sobre a face analisada da Conquista.

    Em seu revisionismo histrico, ataca diversas obras que considera carregadas

    de explicaes mticas; o livro de Todorov sofre severas crticas, sobretudo quando

    Restall trata do quinto mito, o da (falha na) comunicao. Analisaremos, assim, seu

    texto numa perspectiva comparada com o do semitico franco-blgaro, buscando

    apontar os pontos de atrito entre ambos e, de uma maneira mais ampla, qual a

    leitura que Restall faz de AConquista da Amrica, bem como quais as implicaes

    desta na sua concepo mais verdadeira das explicaes sobre a Conquista.

    Os dois autores, para entender a Conquista, partem da mesma pergunta,

    expressa em seus textos: como to poucos derrotaram um inimigo to

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    numericamente superior9? Questo esta, alis, que se constitui no cerne de Sete

    Mitos (...), que, nesse sentido, pode ser entendido como uma monografia

    aprofundada e muito bem documentada sobre este tema. Cada qual procurar a

    resposta num campo distinto: Todorov conforme j expusemos acima, e Restall,

    revirando uma vasta quantidade de fontes, comparando-as e as interrogando de

    forma incisiva. Esta indagao posta pelo historiador no incio da exposio do

    primeiro mito que apresenta, qual seja o dos homens excepcionais10. Demonstra

    que a Conquista foi, na verdade, obra de um pequeno grupo de aventureiros, em

    empreitadas particulares, inseridos num processo histrico mais amplo, embora no

    discorra sobre ele. Demonstra que havia um procedimento padro de conquista,

    que, mais que determinar os limites de ao dos conquistadores, determinavam os

    prprios procedimentos utilizados por todos eles, o que contraria frontalmente a

    tese de Todorov, sobre o comportamento inovador de Cortez, que seria uma

    exceo e arqutipo de conquistador11, inserindo-o dentro de tal procedimento

    padro adotado por todos os exploradores e o retratando como um homem de seu

    tempo12.

    Os relatos pessoais de Colombo e dos conquistadores devem ser entendidos

    no contexto do sistema de patronagem em que foram produzidos, no sculo XVI,

    como probanzas (TODOROV, 1983, p. 97); esto impregnados da ideologia imperial

    9 Refere-se vertente historiogrfica que busca explicar o fato de que um punhado de aventureiros espanhis foi capaz de empreender um dos maiores feitos da humanidade a conquista da Amrica ao derrotar um inimigo numrica e estruturalmente muito superior por se constituir de homens excepcionais. RESTALL, Matthew. Sete Mitos da Conquista Espanhola. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006, pp. 25-29. 10 Como, p. ex. nos episdios em que queima seus prprios navios (p.54) ou encena uma srie aes espetaculares (p.p. 111-2). TODOROV, Tzvetan. op. cit., p. 54 e pp. 111-2, respectivamente. 11 Tal procedimento constitua-se de sete aspectos, ou passos, comuns, na poca a todos os conquistadores: uso de iniciativas legalistas para legitimar (formalmente) a expedio, com a fundao de uma cidade e a leitura, no caso da Mesoamrica, do Requerimiento ; abandonar o grupo e buscar sozinho riquezas e/ou terras; a busca de metais preciosos; buscar aliados nas populaes nativas; obteno e uso de intrprete; demonstrao de violncia; captura pblica de um governante indgena. 12 Nas expedies de Conquista, a Coroa Espanhola concedia licenas ou contratos de explorao ou ocupao a particulares, transferindo-lhes o nus da

    empreitada. Estes eram obrigados a comprovar que cumpriram sua parte no acordo, demonstrando que haviam conquistado um dado territrio vivel economicamente: tais comprovaes eram intentadas atravs das probanzas, relatos nos quais os conquistadores geralmente exageram seus

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    Epgrafe, So Paulo, Edio Zero, p. 120-136, 2013 131

    hispnica e no podem ser tomados como verdadeiros. Esta crtica, embora no

    nominal, acerta em cheio o trabalho de Todorov, posto que este se utilizou, como

    fontes exclusivas, dos relatos de Colombo, Cortez e alguns outros conquistadores

    e/ou religiosos, sem questionar seu contedo, com a explicao de que para ele

    bastava ser o documento verossmil, tomando-os como a expresso de uma

    verdade possvel. de se notar, tambm, que Restall desconsidera que este

    padro de conquista fosse desconhecido pelos nativos, e que isso possa contribuir

    para explicar a derrota ncola, ao contrrio de Todorov, que aponta toda novidade

    como um fator importante para o colapso da comunicao indgena.

    Ao mito do exrcito do rei ope o fato de que no havia qualquer exrcito

    organizado e financiado pela Coroa Espanhola e/ou que a representasse; tratava-se

    de empreendedores particulares armados, que, geralmente financiavam suas

    prprias expedies, ou obtinham recursos de seu patrono. Aqui, novamente,

    Restall desconsidera que este era um padro novo parta os nativos: os espanhis

    guerreavam pelo lucro, enquanto eles conheciam apenas a guerra ritual.

    Para derrubar o mito do conquistador branco, o autor apresenta no apenas

    as alianas com populaes locais como fundamental para a vitria espanhola, mas,

    tambm comprova a presena de africanos que lutaram ao lado dos hispnicos,

    alguns dos quais obtiveram grande sucesso. Entretanto, no pondera sobre as

    diferentes expectativas dos envolvidos: enquanto o projeto de Cortez era de longa

    durao, com vistas a construir novas estruturas de um poder tributador e imperial,

    os ndios aliados tinham um projeto de curto prazo, baseado nas estruturas de

    poder pr-existentes,qual seja, livrar-se do jugo esmagador dos astecas.

    No mito da concluso, refuta a ideia de conquista completa, argumentando

    que as populaes de reas perifricas nunca foram conquistadas e que os

    indgenas mantiveram muitas de suas crenas sob a capa da cristianizao. Neste

    ponto especfico, nos parece que o autor incorre num erro conceitual, j que a

    conquista um processo contnuo, que prossegue nas reas perifricas

    paralelamente explorao colonial das regies centrais. Quando h explorao do

    feitos para obter a contraparte devida pelo Estado.

  • RESENHAS| mmmm TODOROV (1983) e RESTALL (2006)

    Epgrafe, So Paulo, Edio Zero, p. 120-136, 2013 132

    trabalho local e pagamento de tributos pelas populaes dominadas, significa que a

    conquista nesta rea terminou, pois houve o reconhecimento pela prpria

    populao subjugada que deveria, atravs da prestao de trabalhos e pagamento

    de tributos, se sujeitar quele que venceu a guerra. A prtica da explorao colonial,

    que pressupes a prpria conquista, existe, pois, a partir do momento em que esto

    presentes estes dois elementos, trabalho e tributo. Restall analisa vrias revoltas e

    aes de reao indgena contra a explorao colonial como se fossem de

    resistncia conquista, posto que, ao focar estreitamente no protagonismo

    indgena, esquece-se do colonialismo, e desconsidera que autonomia cultural no

    significa ausncia de explorao pelo vencedor.

    No quinto mito, o da (falha na) comunicao, o atrito com Todorov direto e

    contundente. Apresenta o mito da falha na comunicao como um contramito,

    fruto da negao do mito da comunicao. Este ltimo foi construdo

    historicamente durante a Conquista e o perodo colonial, pelos prprios espanhis,

    com o objetivo de, atravs da afirmao da efetiva comunicao com os povos

    nativos, sustentar que estes haviam sido subjugados, assimilados e convertidos.

    Este mito comea a ser questionado j no sculo XVI, principalmente por La Casas,

    e, em poca recente, foi to banalizado que gerou seu contramito, qual seja, o da

    falha na comunicao, muito difundido pelos intelectuais modernos. Dentre os

    difusores coetneos do mito, reputa maior responsabilidade a Todorov, que o

    articulou este mito por meio da comparao entre os comportamentos de

    Colombo, que no manifestava qualquer interesse em se comunicar com os nativos,

    e Cortez, habilidoso em reunir informaes e ler signos, seguida do contraponto

    entre o bem informado Cortez aos astecas, incapazes de apreender os sinais dos

    europeus, atribuindo falha na comunicao a causa da derrota ncola. Aqui se

    apresenta um equvoco de Restall: Todorov no afirma em momento algum que o

    prprio Cortez capaz de interpretar os signos astecas, e sim, que conseguiu tal

    vantagem ao se utilizar dos saberes de Malinche, de forma que caberia intrprete

    o papel preponderante na comunicao entre espanhis e astecas, no momento em

    que ela opta pela posio espanhola: [Malinche] no se contenta em traduzir (...).

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    PEDRO HENRIQUE FERNANDES

    Epgrafe, So Paulo, Edio Zero, p. 120-136, 2013 133

    Por um lado, efetua uma espcie de converso cultural, interpretando para Cortez

    no somente as palavras, mas tambm os comportamentos (...)13. Restall discorda

    tambm desta colocao, sustentando que o sistema de comunicao

    proporcionado por Malinche e Aguilar era imperfeito e se pergunta: Mesmo

    depois de Malinche ter aprendido espanhol, quanto no deve ter se perdido na

    traduo, nas leituras do significado de suas palavras e em tentativas improvisadas

    de transpor a barreira cultural?14.

    Entretanto, o erro crasso da anlise de Restall sobre A Conquista da Amrica

    imputar, como construto terico chave de Todorov, a questo da escrita15; pois

    justamente a este ponto especfico que se prende em suas severas crticas obra do

    linguista, argumentando que houve falhas na comunicao de ambos os lados, de

    modo que nenhuma das partes conseguiu, de fato, compreender a outra, sem que

    disso resultasse alguma vantagem significativa no resultado final do confronto;

    adota, sobre tal questo, uma posio de meio-termo, alinhando-se tese da

    Identidade Duplamente Equivocada de Lockhart, segundo a qual houve falhas na

    comunicao de ambos os lados, de modo que no se pode considerar esse aspecto

    como decisivo para a deciso do embate. De fato, Restall apresenta diversos

    exemplos de desentendimentos mtuos.

    Porm, conforme analisamos no incio, a pedra de toque da tese de Todorov

    contraposio que traa entre sociedade holista indgena e sociedade individualista

    espanhola, e as implicaes que decorrem da natureza de cada uma; a partir dessa

    oposio, demonstramos que qualquer novidade introduzida na sociedade

    autctone era suficiente para gerar uma paralisia, ao menos inicial, j que no havia

    a possibilidade de uma resposta improvisada, constituindo-se, pois, num

    desequilbrio da batalha em favor dos espanhis, capazes a lidar de forma rpida

    13 Restall, Op. Cit. P. 154 e 155, respectivamente. 14 A expresso mais especfica do argumento [de Todorov] diz respeito escrita. RESTALL, Matthew. op. cit., p.164. 15 RESTALL, Matthew. op. cit., pp. 150-2. Tanto os relatos escritos por espanhis quanto aqueles feitos por ndios tm um ponto em comum: apresentam o desentendimento entre ambos os chefes, simbolicamente retratado no abrao que Cortez tentou dar em Montezuma e este se escusou do cumprimento: o que variam so as interpretaes apresentadas por cada cronista sobre o significado deste mal-entendido.

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    Epgrafe, So Paulo, Edio Zero, p. 120-136, 2013 134

    com algo inesperado.

    Considerando o pressuposto acima, a crtica de Restall a Todorov, procede

    somente quanto a seu argumento de que no se pode explicar a Conquista

    apenas sob o prisma da falha da comunicao dos ndios16. E o prprio historiador

    incorre em contradio ao notar que Atahualpa e Montezuma compreenderam as

    intenes e mtodos dos invasores demasiado tarde para salvarem suas prpria

    vidas17, o que deixa transparecer que, no caso dos autctones, a incompreenso

    dos gestos dos europeus de fato os conduziram ao abismo.

    Ao combater o sexto mito, o da desolao nativa, Restall novamente ataca

    Todorov, principalmente porque o linguista no apenas aceita a ideia de que os

    astecas realmente acreditavam na natureza divina dos espanhis, razo pela qual,

    no teriam reagido prontamente aos ataques dos invasores, bem como lhe parece

    inquestionvel que o prprio Cortez, num ato de grande imaginao e conscincia

    poltico-militar, tenha fomentado tal ideia no seio da comunidade nativa18.

    Por fim, no ltimo captulo, no qual analisa o mito da superioridade, que

    constata estar muito presente ainda hoje, oferece duas anlises sobre a conquista:

    na primeira, apresenta um modelo de explicao da Conquista sustentado apenas

    pelos mitos que procurou desmentir ao longo da obra, constituindo-se, nesse

    sentido, num resumo geral do texto; e, como contraponto, cria um modelo prprio

    de explicao sobre a conquista, construdo com base em argumentos

    pretensamente desmistificados, apoiado em cinco pontos fundamentais, quais

    sejam: as epidemias dos nativos, que funcionaram como verdadeira arma biolgica;

    a desunio entre as populaes indgenas; a superioridade blica, representada,

    sobretudo, pela espada de ao exclusiva dos hispnicos; a cultura blica espanhola e

    a conquista espanhola como um mero episdio na globalizao do acesso a

    recurso de produo de alimentos 22.

    Este modelo, porm, apresenta fortes inconsistncias. Primeiramente, com

    16 RESTALL, Matthew. op. cit., p. 177. 17 TODOROV, Tzvetan. op. cit., pp. 92-3 e 114-5. 18 RESTALL, Matthew. op. cit., p. 242.

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    PEDRO HENRIQUE FERNANDES

    Epgrafe, So Paulo, Edio Zero, p. 120-136, 2013 135

    referncia desunio dos ncolas como um dos fatores decisivos na vitria

    europeia, tal argumento apresentado de forma muito rasa pelo autor: apesar de

    que, de fato, a aliana entre espanhis e nativos tenha sido de suma importncia

    para a vitria hispnica, dada a inferioridade numrica brutal que tinham em relao

    s populaes nativas, no se pode creditar uma relao de causalidade entre tal

    aliana e os problemas internos entre os indgenas, j que, na Europa, havia enorme

    animosidade entre as populaes de cada Nao, bem como entre seus governos;

    considerando vlido o argumento apresentado por Restall, seria de se indagar por

    que, ento, os turcos, por exemplo, no se valeram dessa desunio e conquistaram

    a Europa. A argumentao apresentada insuficiente e, pois, no se sustenta.

    O argumento da cultura blica espanhola de um empiricismo por demais

    estreito: baseado apenas nos fatos ocorridos no desenrolar das batalhas, nota que

    os europeus praticavam um tipo de guerra diverso, por possurem uma cultura

    blica, e, que, portanto, os astecas teriam perdido pois, desprovidos desta

    concepo militar, praticavam um tipo de guerra inadequado situao. Alm de

    focar em demasia no protagonismo das personagens, em detrimento de uma

    moldura histrica precisa, novamente ignora que os espanhis estavam

    acostumados a guerrear pelo butim, padro completamente novo aos ndios e, que

    a novidade desarticula sua comunicao. Num contexto de guerra total, a inrcia

    autctone foi um elemento crucial para sua derrota: o historiador d, aqui, razo ao

    argumento de Todorov, construdo sobre um quadro estrutural mais amplo do

    conjunto de mentalidades orgnicas de ambas as partes envolvidas no conflito, que

    considera, em sua anlise, as prticas comuns a cada formao social (ou distinta)

    especfica.

    O quinto ponto de seu modelo tambm carece de uma contextualizao mais

    especfica, pois a expanso ultramarina no constitui, em si mesma, uma conjuntura

    estrutural; antes, parte, juntamente com a formao de redes mercantis

    ultramarinas e a acumulao de capitais, do movimento expansionista ibrico do

    sculo XVI, dentro do contexto da consolidao da hegemonia do centro peninsular

    sobre as reas perifricas do mundo colonial emergente.

  • RESENHAS| mmmm TODOROV (1983) e RESTALL (2006)

    Epgrafe, So Paulo, Edio Zero, p. 120-136, 2013 136

    Restall merece crdito por seu intuito de desconstruir uma imagem deturpada

    sobre a conquista, que, ao mesmo tempo em que se baseia numa viso distorcida

    do europeu sobre o outro, serve, simultaneamente, para alimentar esta essa prpria

    distoro. Entretanto sua boa inteno esbarra nas claras incongruncias de seu

    texto, no qual a opo pelo foco no protagonismo das personagens da Conquista

    exclui uma anlise estrutural do evento, inserida no quadro da economia-mundo

    emergente da poca. Ao montar um modelo explicativo desmistificado do

    evento, utiliza argumentos pouco slidos bem como, sem perceber, aps fazer

    profunda e estafante anlise de fontes variadas e cruzar cuidadosamente os dados

    coletados, acaba por reconhecer a falha na comunicao indgena como um dos

    fatores preponderantes para a vitria espanhola. Ora, pode-se criticar o texto de

    Todorov por ele se valer das fontes sem interrog-las, de forma que sua concluso

    s tem validade enquanto a de uma histria moral e exemplar; porm, Restall, aps

    proceder a todos os passos metodolgicos adequados ao fazer histrico, atesta a

    veracidade da tese do semitico, o que por si s j seria suficiente para consider-la

    vlida.

    Conclui-se, pois, que no h uma explicao nica ou bsica da qual derivariam

    outras, conforme pretende Todorov; tampouco Restall, apesar da excelente

    acolhida de sua obra no seio acadmico, foi capaz de prover conquista uma

    explicao suficiente. O evento continua a ser um grande enigma, aberto

    investigao, que, entretanto, s trar resultados contundentes se realizada dentro

    do quadro estrutural amplo tanto da economia-mundo, bem como do conjunto das

    mentalidades de espanhis e indgenas envolvidos nos conflitos.