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Resenhas FALO OU FEMINILIDADE: UMA DISCUSSÃO INSTIGANTE Gramáticas do erotismo. Joel Birman. Rio de Janeiro: Record, 2001. Regina Neri Psicanalista, doutora em teoria psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da UFRJ; bolsista recém-doutora do CNPq junto ao Núcleo de Estudos da Subjetividade da Pós-graduação em Psicologia Clínica, PUC-SP. Falo ou feminilidade?, eis a ques- tão debatida por J. Birman em Gramáti- cas do erotismo . O trabalho de resgate e aprofundamento do conceito de femi- nilidade, que vem sendo realizado pelo autor desde 1993, apresenta-se como um empreendimento de fôlego que resulta em uma interpretação original da metapsicologia freudiana — a vira- da dos anos 1920 — a qual vai privile- giar o registro pusional econômico em detrimento do representacional tópi- co, contexto em que emerge o concei- to de feminilidade. A continuidade dessa pesquisa con- duz o autor, atualmente, a se debruçar sobre a questão da diferença sexual, ob- jeto de discussão nesse livro, no qual vem destacar a presença de diferentes gramáticas do erotismo no texto freu- diano. A singularidade e a riqueza da obra freudiana é a de se constituir, ela mes- ma, em uma tensão discursiva entre o determinismo universal da lógica fálica e a feminilidade como enunciação do singular. Discurso de subversão do sujeito do cogito ou nova metafisica sobre o sujei- to e o sexo? A interrogação endereçada à psicanálise pela obra de Foucault e por teóricas do movimento feminista é de peso. Produção discursiva histórica ou teoria universal do sujeito? Como su- blinha G. Fraisse, a psicanálise se consti- tui como primeiro discurso a colocar no cerne de sua interrogação a questão da diferença sexual, tratada ao longo da his- tória do pensamento filosófico de modo periférico. No entanto, no que concerne à sua teoria sobre o feminino, Freud não faz mais do que reeditar “uma metafisica dos sexos”, que desde a Antiguidade permeia o pensamento ocidental, ins- taurando uma dicotomia hierárquica na qual o masculino é equivalente de “mais”, e o feminino de “menos”. Ao inscrever a psicanálise entre os dispositivos das ciências sexuais emer- gentes no século XVIII e XIX, Foucault vem mostrar de que modo ela se confi- gura como um discurso de adestramen- tos dos corpos e da sexualidade, visan- do à consolidação da família burguesa: a operação de patologização do corpo fe- minino atrela a mulher à maternidade, aprisionando-a no espaço doméstico, ga- rantindo ao homem o domínio do es- paço público. Entretanto, Freud vai igualmente criticar de forma radical o dispositivo de hereditariedade-degene- Ágora v. VII n. 1 jan/jun 2004 155-159

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Resenhas

FALO OU FEMINILIDADE: UMA

DISCUSSÃO INSTIGANTE

Gramáticas do erotismo. Joel Birman.Rio de Janeiro: Record, 2001.

Regina Neri

Psicanalista, doutora em teoria psicanalíticapelo Instituto de Psicologia da UFRJ; bolsistarecém-doutora do CNPq junto ao Núcleo deEstudos da Subjetividade da Pós-graduação emPsicologia Clínica, PUC-SP.

Falo ou feminilidade?, eis a ques-tão debatida por J. Birman em Gramáti-cas do erotismo. O trabalho de resgate eaprofundamento do conceito de femi-nilidade, que vem sendo realizado peloautor desde 1993, apresenta-se comoum empreendimento de fôlego queresulta em uma interpretação originalda metapsicologia freudiana — a vira-da dos anos 1920 — a qual vai privile-giar o registro pusional econômico emdetrimento do representacional tópi-co, contexto em que emerge o concei-to de feminilidade.

A continuidade dessa pesquisa con-duz o autor, atualmente, a se debruçarsobre a questão da diferença sexual, ob-jeto de discussão nesse livro, no qualvem destacar a presença de diferentesgramáticas do erotismo no texto freu-diano. A singularidade e a riqueza da obrafreudiana é a de se constituir, ela mes-ma, em uma tensão discursiva entre odeterminismo universal da lógica fálica

e a feminilidade como enunciação dosingular.

Discurso de subversão do sujeito docogito ou nova metafisica sobre o sujei-to e o sexo? A interrogação endereçadaà psicanálise pela obra de Foucault e porteóricas do movimento feminista é depeso. Produção discursiva histórica outeoria universal do sujeito? Como su-blinha G. Fraisse, a psicanálise se consti-tui como primeiro discurso a colocar nocerne de sua interrogação a questão dadiferença sexual, tratada ao longo da his-tória do pensamento filosófico de modoperiférico. No entanto, no que concerneà sua teoria sobre o feminino, Freud nãofaz mais do que reeditar “uma metafisicados sexos”, que desde a Antiguidadepermeia o pensamento ocidental, ins-taurando uma dicotomia hierárquica naqual o masculino é equivalente de“mais”, e o feminino de “menos”.

Ao inscrever a psicanálise entre osdispositivos das ciências sexuais emer-gentes no século XVIII e XIX, Foucaultvem mostrar de que modo ela se confi-gura como um discurso de adestramen-tos dos corpos e da sexualidade, visan-do à consolidação da família burguesa: aoperação de patologização do corpo fe-minino atrela a mulher à maternidade,aprisionando-a no espaço doméstico, ga-rantindo ao homem o domínio do es-paço público. Entretanto, Freud vaiigualmente criticar de forma radical odispositivo de hereditariedade-degene-

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ração dominante na época, ao formularo conceito de pulsão sexual perverso-polimorfa que aponta para a plasticidadeda sexualidade humana

A teoria freudiana da sexualidadefundou-se, como assinala J. Birman, sobo postulado de uma masculinidade ori-ginária — a sexualidade feminina e mas-culina sendo constituída pelo operadorfálico —, inserindo-se desse modo nahierarquia naturalizada dos sexos. No fimde sua obra, Freud teria rompido comessa tradição ao formular, a partir da clí-nica, o conceito de feminilidade: a ex-periência de desamparo dos homens emulheres diante da perda dos referen-ciais fálico-narcíssicos abre para homense mulheres novas possibilidades desujetivação ao sinalizar um sujeito damobilidade pulsional em permanentetentativa de inscrição da estesia pulsio-nal em singularidade ética e estética.

A construção fálico-edípica já foi ob-jeto de numerosos questionamentos napsicanálise, a começar por Freud, quemuito cedo percebe os impasses dessemodelo para pensar o processo de subje-tivação da mulher. No entanto, o quenão foi problematizado é que a teoriada diferença na psicanálise tem inega-velmente o masculino como paradigma.A lei constitutiva do desejo em Freud eLacan é a lei do pai, a teoria fálico-edípi-ca configurando-se como uma versãomasculina da diferença, na qual o outro,o feminino, só pode ser pensado em si-metria ou dessimetria ao referencialfálico e formulado como “um a menos”(castrado e invejoso em Freud) ou “uma mais” (bi-gozo em Lacan). A dialéticada castração, girando em torno da pre-sença-ausência do falo, instala umadicotomia fálico/castrado, na qual o fe-minino fica indelevelmente marcadopela inveja do pênis e pela falta.

Assim, apesar da constatação magis-tral de Lacan de que a lógica fálica fora-clui o feminino, no nosso entender oque fica foracluído na psicanálise pelaoperação de deslocamento do pênis aofalo como referência simbólica é o tra-vestimento do masculino em universalneutro fundador. A promoção do falo àinstância neutra fundadora pode serconsiderada justamente como o próprioatestado da superioridade do masculi-no, o qual não pode ser reduzido a umórgão sexual, o pênis, como no caso damulher, que se define, antes de tudo porseu sexo, sob pena de caricaturar a pró-pria universalidade fálica.

Confrontada à crise atual que afetaos recortes tradicionais masculino/fe-minino, a psicanálise, como comenta M.Schneider, mantém uma posição aparen-temente inabalável, impondo um siste-ma de referências enunciado sob ummodo a-histórico, considerando a criseda ordem simbólica vigente como umaameaça que conduziria à indiferenciaçãoe ao caos. O que se coloca como pano defundo do questionamento da centra-lidade do Édipo como eixo de subjeti-vação, tal como o aqui realizado por J.Birman é a capacidade de a psicanálisecontemporânea colocar a clínica e a teo-ria na escuta de seu tempo.

Nunca é demais lembrar a ousadiade Freud e de Lacan ao desafiarem osdiscursos dominantes fora e dentro dapsicanálise, fazendo da escuta de suasépocas uma exigência de produção teó-rica. No entanto, para realizar tal tarefa,é preciso se colocar em guarda em rela-ção a operações apressadas de acomoda-ção da psicanálise aos ares do nosso tem-po, pois ao fazerem a economia de umquestionamento rigoroso no interior docorpo teórico psicanalítico, não fazemjuz à riqueza do arcabouço conceitual

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que a psicanálise acumulou ao longo desua história e que nos convida à suaproblematização e potencialização.

Recebida em 31/3/04.Aprovada em 23/4/04.

Regina [email protected]

DA SUBVERSÃO DO GÊNERO À

REINVENÇÃO DA POLÍTICA

Problemas de gênero: feminismo esubversão da identidade. JudithButler. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2003.

Simone Perelson

Psicanalista, doutora em psicopatologiafundamental e psicanálise pela UniversitéParis 7

Em seu livro Problemas de gênero: feminismo esubversão da identidade, Judith Butler em-preende, em primeiro lugar, uma genea-logia crítica, fortemente fundamentadano pensamento de Foucault, das cate-gorias de gênero estabelecidas comouma relação binária homem-mulher. Irá de-monstrar que o binarismo é um produ-to reificado de práticas discursivas múl-tiplas e difusas que funcionam como re-gimes de poder, sendo o falocentrismoe a heterossexualidade compulsória apon-tados como os elementos definidoresdesta produção/construção.

A genealogia crítica do binarismo dosgêneros conduzirá a autora à crítica dadistinção sexo-gênero, à idéia de um sexo na-tural ou pré-discursivo, por um lado, eum gênero culturalmente construído,por outro. A construção do caráter naturaldo sexo, a produção da natureza sexuadacomo anterior à cultura é, de fato, umamaneira de assegurar a manutenção daestrutura binária dos gêneros. Vale obser-var, como nota Butler, que o discurso queopõe o sexo natural ao gênero culturalconcebe de modo habitual que a nature-za é feminina e precisa ser subordinadapela cultura, invariavelmente concebidacomo masculina. A crítica de Butler à idéiade um sexo natural fundamenta-se na crí-tica de Foucault à concepção da culturacomo efeito de uma lei repressiva, na qual