Resenhas sobre filme Pequena Miss Sunshine (EUA/2006)

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Pequena Miss Sunshine: não temos como viajar, então vamos! Prof. Rodrigo Belinaso Guimarães Pequena Miss Sunshine é muito mais do que um hilário filme on the road. Nele, todo destino é provisório: uma etapa num processo de descobertas pessoais e coletivas. Mas não espere chegar a um lugar tranquilo e ideal em que todos os problemas estejam definitivamente resolvidos, tal como um final feliz clássico. A chegada é tão somente a consciência da contradição, ou melhor, da sua inevitabilidade. O bom é que esta descoberta, embora dolorosa, não remete a uma angústia, mas restitui uma esperança: uma aposta no processo, no movimento da vida. O elogio da diferença é explícito. A diferença é uma condição quase natural, como se não houvesse meios para dela escapar. Um alívio! Isso se pensarmos na nossa sociedade midiática e consumista que normaliza tudo: padrões de beleza, de sucesso, de felicidade, etc. Os personagens são subjetivados por estes padrões, porém não há como fugirem de suas diferenças e, ao contrário do que se pensa acontecer, são estas que se impõem e não a norma, o padrão, o ideal.

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Pequena Miss Sunshine: não temos como viajar, então vamos!

Prof. Rodrigo Belinaso Guimarães

Pequena Miss Sunshine é muito mais do que um hilário filme on the road. Nele, todo

destino é provisório: uma etapa num processo de descobertas pessoais e coletivas. Mas não

espere chegar a um lugar tranquilo e ideal em que todos os problemas estejam definitivamente

resolvidos, tal como um final feliz clássico. A chegada é tão somente a consciência da

contradição, ou melhor, da sua inevitabilidade. O bom é que esta descoberta, embora dolorosa,

não remete a uma angústia, mas restitui uma esperança: uma aposta no processo, no movimento

da vida.

O elogio da diferença é explícito. A diferença é uma condição quase natural, como se

não houvesse meios para dela escapar. Um alívio! Isso se pensarmos na nossa sociedade

midiática e consumista que normaliza tudo: padrões de beleza, de sucesso, de felicidade, etc. Os

personagens são subjetivados por estes padrões, porém não há como fugirem de suas diferenças

e, ao contrário do que se pensa acontecer, são estas que se impõem e não a norma, o padrão, o

ideal.

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Há uma série de obstáculos que aquela família desconexa, obrigada à convivência numa

Kombi caindo aos pedaços, encontra em seu caminho. A forma como estes problemas vão

sendo resolvidos garante toda a comédia do filme. Porém, se havia um objetivo final, este vai

perdendo qualquer importância. O que vale mesmo é manter-se em movimento. Os obstáculos

devem ser transpostos unicamente pela manutenção do processo e não por um suposto fim ideal,

ou seja, inalcançável.

A sobreposição de temporalidades é outra marca característica do filme. Trata-se de

objetos, ideias, roupas, músicas que ao invés de se apagarem com os novos tempos, insistem em

permanecerem e em serem contemporâneos. Tudo isso obriga a uma convivência necessária

entre o moderno e o pós-moderno, entre o passado e o presente, entre a brincadeira de criança e

a sensualidade do adulto. Temporalidades que não estão polarizadas, mas encaixadas e

obrigadas a se contemplarem.

Por fim, o filme permite um questionamento sobre a sobreposição de culturas. Como

uma mesma nacionalidade, sem apelar para a imigração ou à miscigenação, pode apresentar

códigos culturais tão variados? É possível que na interiorana cidade de onde sairam, a

pequena miss seria a vencedora do concurso pequena miss pimenta. Porém, na Califórnia,

naquele concurso, sua apresentação só poderia ter aquele desfecho. Nada foi perdido. A estrada

fez com que aquela família de perdedores passasse por uma experiência comum que ofereceu

um substrato, um ponto de convergência.

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Folha de São Paulo 19/10/2006 - 21h56

Humor vence drama em "Pequena Miss Sunshine"

Sérgio Ripardo - Editor de Ilustrada da Folha Online

Um filme modesto pode se tornar grande. A prova é "Pequena Miss Sunshine", que

estreia nesta sexta-feira. Cotado para disputar o Oscar de melhor roteiro original em 2007, a

produção de orçamento minúsculo cativa ao abordar temas pesados (adolescência problemática,

fracasso profissional, homofobia, suicídio, desilusão amorosa e drogas) sem perder o senso de

humor. Tudo graças a um elenco talentoso e bem dirigido, além de diálogos enxutos e precisos.

O longa é um "road movie". Uma família disfuncional atravessa o deserto, em uma

kombi amarela com defeito, para levar a caçula até a Califórnia onde será disputado um

concurso de beleza para crianças. No caminho, os dramas dos seis personagens se agravam,

criando um clima de tensão e ânimos exaltados. Apesar da "lavagem de roupa suja" sobre quatro

rodas, o filme alimenta a esperança de que a família Hoover, bem como a da plateia no cinema,

tem chance de se entender e ficar unida.

Um dos motivos do sucesso de público e crítica de "Pequena Miss Sunshine" é a atriz-

mirim Abigail Breslin, 10, que despontou no suspense "Sinais" (2002). A garota é um prodígio.

Tomara que supere a maldição "Shirley Temple" e vire, quando adulta, atriz com a força visual

de uma Drew Barrymore e Natalie Portman. O ponto alto de Abigail coincide com o momento

mais emocionante do filme, quando a garota Olive, sua personagem, tenta consolar o irmão

revoltado Dwayne (o promissor Paul Dano, 23), fã de Nietzsche, após uma explosão de raiva

dele contra a família.

Outro motor do filme é o ator Steve Carell, que enverniza sua carreira após

protagonizar o sucesso comercial de "O Virgem de 40 Anos" (2005), outra boa comédia com

pretensão de defender o fim de padrões impostos de comportamento. Em "Pequena Miss

Sunshine", Carell é o professor gay e suicida Frank, especialista na obra de Proust -- uma piada

para os mais eruditos. Não há caricatura na composição do personagem, que na trama exerce a

função de pacificar a família.

Para completar a kombi, a mãe Sheryl (Toni Collette) tenta equilibrar a família, diante

do marido Richard (Greg Kinnear), que dá palestras de auto-ajuda e parece encarnar a obsessão

da América pelo sucesso material e o desprezo por quem não se encaixa nesse perfil. Para ele, o

mundo se divide em vencedores e perdedores, e só crianças magras conseguem o sucesso. O

problema é que o seu pai Edwin (ator veterano Alan Arkin), viciado em heroína, não é bem um

exemplo de êxito.

Desde "Beleza Americana", vitorioso no Oscar de 1999, passando por "Traffic" (2000)

e mais recentemente "Crash" (melhor filme de 2006) e "Transamérica", explorar as farsas e

fragilidades do modelo de família perfeita - em drama ou comédia - deixou de ser um filão

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restrito ao chamado "cinema independente", conceito cada vez mais débil diante da esperteza

dos grandes estúdios de focar também seus negócios para "filmes de arte", fora do circuito. Na

TV, o fenômeno de mostrar a outra América se repetiu com séries como "A Sete Palmos" e

"Desperate Housewives".

Mesmo com essa maior busca por roteiros alternativos, fora da fórmula, "Pequena Miss

Sunshine" sofreu tanto quanto seus personagens para chegar às telas. O roteirista Michael Arndt,

estreante em longas, ouviu muito "não". Após o burburinho causado no festival de Sundance

neste ano, o filme despertou interesse dos executivos da 20th Century Fox. O estúdio gastou

uma ninharia estimada em US$ 10 milhões pelos direitos do filme.

Ou seja, a imagem da família empurrando a kombi não é à toa no filme dirigido pelo

casal Jonathan Dayton e Valerie Faris, mais conhecidos por assinar clipes de bandas

melancólicas nos anos 90 como Smashing Pumpkins. Se não se agarrasse a um fio de otimismo

no final da história, "Pequena Miss Sunshine" seria mais contundente ao mostrar a perversidade

dos adultos em castrar a infância de seus filhos para realizar seus ideais de sucesso, fabricando

uma geração de crianças plastificadas e pasteurizadas, tanto na beleza como nas atitudes para

enfrentar seus conflitos.