Responsabilidade de Proteger e Sua Nova Forma de Intervenção Militar

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS ESTRATÉGICOS DA DEFESA E SEGURANÇA RESPONSABILIDADE DE PROTEGER E SUA “RESPONSABILIDADE DE REAGIR”: NOVA MODALIDADE DE INTERVENÇÃO MILITAR? GRAZIENE CARNEIRO DE SOUZA NITERÓI , RIO DE JANEIRO 2012

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As relações entre a doutrina da R2P e as Intervenções Humanitárias

Transcript of Responsabilidade de Proteger e Sua Nova Forma de Intervenção Militar

  • UNI V E RSID A D E F E D E R A L F L U M IN E NSE INST I T U T O D E EST UD OS EST R A T G I C OS

    PR O G R A M A D E PS-G R A DU A O E M EST UD OS EST R A T G I C OS D A D E F ESA E SE G UR A N A

    R ESPO NSA BI L ID A D E D E PR O T E G E R E SU A RESPONSABILIDADEDE REAGIR:N O V A M O D A L ID A D E

    D E IN T E R V E N O M I L I T A R?

    G R A Z I E N E C A RN E IR O D E SO U Z A

    N I T E R I , R I O D E JA N E IR O 2012

  • G R A Z I E N E C A RN E IR O D E SO U Z A

    R ESPO NSA BI L ID A D E D E PR O T E G E R E SU A RESPONSABILIDADEDE REAGIR:N O V A M O D A L ID A D E

    D E IN T E R V E N O M I L I T A R?

    Dissertao apresentada Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obteno de grau de Mestre em Estudos Estratgicos. Orientador: Prof. Dr. Thiago Moreira de Souza Rodrigues.

    N I T E R I 2012

  • F O L H A D E APR O V A O

    GRAZIENE CARNEIRO DE SOUZA

    R ESPO NSA BI L ID A D E D E PR O T E G E R E SU A RESPONSABILIDADEDE REAGIR:N O V A M O D A L ID A D E

    D E IN T E R V E N O M I L I T A R?

    Dissertao apresentada Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obteno de grau de Mestre em Estudos Estratgicos.

    Banca Examinadora

    Data: 5 de Junho de 2012

    ____________________________________ Prof. Dr. Thiago Moreira de Souza Rodrigues

    Orientador - UFF

    ______________________________________ Prof. Dr. Vgner Camilo Alves

    Programa de Ps-Graduao em Estudos Estratgicos UFF

    _______________________________________ Prof. Dr. Gilberto M. A. Rodrigues

    Universidade Catlica de Santos

  • Dedico esta dissertao,

    A Deus que agraciou e me agracia para seguir nos momentos difceis, preenchendo e iluminando meu ser com entusiasmo, fora e luz.

    minha famlia que me apoiou e incentivou em todo o percurso do mestrado.

    minha me que meu exemplo e orgulho, agradeo pela incansvel disposio em me guiar onde quer que eu fosse.

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    A G R A D E C I M E N T OS

    Agradeo primeiramente a CAPES que possibilitou a realizao do meu mestrado por meio do

    programa de bolsas REUNI.

    Ao meu professor e orientador Dr. Thiago Rodrigues que dedicou seu tempo e ateno para me

    guiar no ltimo ano de mestrado.

    Ao Departamento de Operaes de Paz das Naes Unidas que me propiciou conhecimento real

    do papel da ONU nas operaes de paz.

    Tambm agradeo aos meus professores da Universidade Federal Fluminense, os quais me

    instigaram a conhecer e debater diversificados temas.

    Aos meus amigos que me incentivaram a seguir em frente nas horas que mais precisei.

    Finalmente, agradeo em especial a turma do PPGEST 2010, que mais do que colegas se

    tornaram amigos. A cada um, agradeo com carinho e gratido por todos os momentos

    partilhados e divididos.

    Muito Obrigada!

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    R ESU M O

    DE SOUZA, Graziene Carneiro. ResponsabilidadedeProtegere suaResponsabilidade de

    Reagir:novamodalidadedeintervenomilitar?; Orientador: Prof. Dr. Thiago Rodrigues;

    Niteri; Universidade Federal Fluminense UFF, 2012, 159 fl.

    O moderno sistema de Estados marcado por intervenes militares. Ao longo de sua histria a compreenso de onde, como, quem e por quais valores intervir variou de acordo com a concepo do Estado e de suas responsabilidades. O uso da fora contra um membro da Sociedade Internacional, subordinado s regras e normas formuladas principalmente pelas unidades mais poderosas, esteve vinculado ao contexto normativo de cada ordem internacional. A interveno militar humanitria, aplicada principalmente desde o fim da Guerra Fria, um exemplo dessas variaes. Atualmente, o prprio entendimento sobre interveno militar humanitria encontra-se em transformao. Novos valores relacionados a princpios fundamentais do sistema internacional, como o de soberania, deparam-se com novos deveres do Estado, como a garantia da segurana humana. A Responsabilidade de Proteger o resultado desta inovada compreenso. Formulada a partir da polmica interveno do Kosovo em 1999, a Responsabilidade de Proteger deixa brecha para intervenes de novo tipo que no excluem aes militares. A presente dissertao busca analisar se, no caso de ser incorporada pelo direito internacional, a RtoP significaria uma nova modalidade de interveno diplomtico-militar baseada nas recentes transformaes de conceitos como soberania e segurana humana, tendo um dos seus aspectos a interveno militar como uma atualizao da guerra legtima, compreendida como ato coletivo em nome de uma ordem e valores supostamente universais. Palavras chaves: Responsabilidade de Proteger, interveno militar humanitria, soberania, direito internacional, segurana humana. Abstract: The modern states system is shaped by military interventions. Over its history the debate among states about whether, when, who and how to intervene, and what social values to secure, have changed according to the concept of states duty. The use of force against aninternationalsocietysmember,subordinated to rulesandnormsformulatedbypowerfulunits, was linked to the normative context of each international order. Humanitarian military intervention, applied mainly since the end of the Cold War, is an example of this type of conjuncture. Today, the comprehension regarding international military intervention has been modified. New values related to fundamental principles of the international system, such as sovereignty,facenewstatesduties,suchashumansecurity.TheResponsibilitytoProtect isaresult of this innovated understanding. Formulate from the controversial intervention in Kosovo in 1999, the Responsibility to Protect opens a gap for a new type of intervention that do not exclude military action. This dissertation aims to analyze if the RtoP would become a norm in International Law, it would be possible to take it as a new justification and modality of military intervention based on a revised definition of sovereignty and human security. Key words: Responsibility to Protect, humanitarian military intervention, sovereignty, international law, human security.

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    L IST A D E A BR E V I A T UR AS E SI G L AS

    A-10 A/OA-10 Thunderbolt II AC 130 Lockheed AC-130 gunship ALI/ILA Associao da Lei Internacional AMIS Operaes de paz da Unio Africana no Sudo AMISOM African Union Mission in Somalia ANSA/ASEAN Associao de Naes do Sudeste Asitico ARI Antiga Repblica da Iugoslvia ASEAN Association of Southeast Asian Nations BICC Bonn International Center for Convertio BRICS Brasil, Rssia, China e frica do Sul CDS Conselho de Defesa Sul-Americano CEEOA/ ECOWAS Comisso Econmica dos Estados do Ocidente da frica CIA Central Intelligence Agency CSCAP Conselho para Segurana e Cooperao na sia Pacfica DDR Desarmamento, Desmobilizao e Reintegrao EUA Estados Unidos da Amrica EU Unio Europia FYROM Yugoslav Republic of Macedonia ICISS International Commission on Intervention and State Sovereignty IHL International Humanitarian Law INEF Instituto de Desenvolvimento e Paz JNA Exrcito Popular Iugoslavo KFOR Fora no Kosovo LEA / LAS Liga dos Estados rabes LDK Liga Democrtica do Kosovo PNUD/UNDP Programa de Desenvolvimento das Naes Unidas RDC Repblica Democrtica do Congo TCC Troop Contributing Countries TIAR Acordo Inter-Americano de Assistncia Recproca OEA Organizao dos Estados Americanos ONG Organizao No-Governamental ONU/UN Organizao das Naes Unidas OTAN/NATO Organizao do Tratado do Atlntico Norte OSCE Organizao de Segurana e Cooperao da Europa UNC United Nations Cluster UNOMIL Misso de Observao das Naes Unidas na Libria PoC Protection of Civilians RtoP Responsibility to Protect RwP Responsibility while Protecting R2P Responsibility to Protect BICC Bonn International Center for Convertion UA/AU Unio Africana UAV Predator Unmanned Aerial Vehicle UNAMIR United Nations Assistance Mission for Rwanda

    http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=3&ved=0CFAQFjAC&url=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FCentral_Intelligence_Agency&ei=1MyaT4rgGIiFtgeGwsmnBA&usg=AFQjCNGjwegTyv3P2HRUYkNTWk9qLEOIJQ&sig2=2NlsF-tJtFqJJE2Oo_T_KQhttp://en.wikipedia.org/wiki/Gunshiphttp://pt.wikipedia.org/wiki/Associa%C3%A7%C3%A3o_de_Na%C3%A7%C3%B5es_do_Sudeste_Asi%C3%A1ticohttp://en.wikipedia.org/wiki/Association_of_Southeast_Asian_Nations

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    UNASUL Unio de Naes Sul-Americanas URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

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    SU M RI O IN T R O DU C O ------------------------------------------------------------------------------------------- 10 C AP T U L O 1 Intervenes militares: da Guer ra F ria criao do Princpio da Responsabilidade de Proteger . ------------------------------------------------------------------------- 16 1.1 Interveno militar: definio e contexto normativo. ------------------------------------------- 161.2 Interveno humanitria: conceito e principais debates. --------------------------------------- 23 1.3 Intervenes militares humanitrias durante e no ps - Guerra Fria. ------------------------- 29 1.4 A interveno do Kosovo: o incio de um novo modelo de interveno militar humanitria. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 40

    C AP T U L O 2: Responsabilidade de Proteger : entre a teoria e a prtica da interveno militar no novo milnio. --------------------------------------------------------------------------------- 54 2.1 A criao do princpio da Responsabilidade de Proteger. -------------------------------------- 54 2.1.1 A responsabilidade de prevenir. ----------------------------------------------------------- 61 2.1.2 A responsabilidade de reagir. -------------------------------------------------------------- 62 2.1.3 A responsabilidade de reconstruir. -------------------------------------------------------- 67 2.2 Responsabilidade de Proteger: conceito, princpio ou norma? -------------------------------- 69 2.3 O Documento Resultante da Cpula Mundial de 2005: adaptao e implementao. ----- 72 2.4 Segurana Humana, Soberania, No-interveno e Estados Falidos: as principais crticas Responsabilidade de Proteger. ---------------------------------------------------------------------------- 79 C AP T U L O 3: Responsabilidade de Proteger e suaResponsabilidadeemReagir:novamodalidade de interveno militar? ------------------------------------------------------------------ 93 3.1 As Naes Unidas e as Organizaes Regionais: dificuldades de implementao das operaes de paz. ------------------------------------------------------------------------------------------- 93 3.2 A doutrina legitimando a prtica: a efetivao da interveno militar justificada na Proteo de Civis e na Responsabilidade de Proteger. ---------------------------------------------------------- 105 3.2.1 O caso da Lbia. -------------------------------------------------------------------------- 115 3.3 Rompimentos e Continuidades da Responsabilidade de Proteger a Responsabilidade ao Proteger. ---------------------------------------------------------------------------------------------------- 126 C O NSID E R A ES F IN A IS ------------------------------------------------------------------------- 137 BIB L I O G R A F I A ---------------------------------------------------------------------------------------- 143 A N E X OS -------------------------------------------------------------------------------------------------- 152

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    IN T R O DU O

    A justificativa sobre a interveno humanitria est presente desde o fim da Guerra Fria,

    apesar de sua reflexo incluir direitos fundamentais do Estado, discutidos desde o sculo XV. Da

    mesma forma, o debate sobre o que justo e moral nas relaes internacionais e no Direito

    Internacional, se iniciou sculos atrs com o debate em torno do direito da guerra.1

    A primeira Conveno de Genebra, de 1863, tida como marco inicial do Direito

    Humanitrio moderno, quando foram assinados 291 acordos internacionais para proteger a vida

    dos combatentes feridos. A expanso da proteo dos direitos humanos durante as guerras

    alcanou, adicionalmente, os conflitos armados sem carter internacional (art. 3 das

    Convenes de Genebra de 1949 e art. 1 do Protocolo II de 1977) e as guerras de libertao

    nacional (art. 1, 4 doProtocolo I de 1977). 2 Assim, a partir dos anos 1970, o direito da

    guerra, antes restritos ao enfrentamento interestatal, passou a tratar no apenas dos conflitos

    armados internacionais, mas tambm da guerra civil, na qual os combatentes no so

    propriamente dotados de personalidade jurdica internacional enquanto unidades polticas, mas

    sim enquanto sujeitos passveis de proteo na condio de seres humanos, conforme estipulou a

    Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

    O direito de guerra historicamente constitudo distingue o jus ad bellum do jus in bello. O

    primeiro significa o direito guerra, ou seja, o direito de fazer guerra. Depois que os Estados

    nacionais se consolidaram juridicamente em tempos da Paz de Westflia em 1648, este direito

    passou a ser exclusivo do Estado. J o jus in bel lo a regulamentao da guerra: asnormas

    aplicveis aos beligerantes eaquelasobrigaesdecorrentesdoestadodeguerra, 3 na qual est

    inserido o Direito Humanitrio. Embora o direito guerra e sua regulamentao existam

    1Legnano De bello (1360), Gorco De bello justo (1420), Martn de Lodi De bello (sculo XV), Wilhelmus Mathiae Libellus de bello iustitia iniustitiave (1533), A. Guerrero Tratactus de bello justo et injusto (1543), Francisco de Vitria De jure belli (1557), F. Martini De bello et duello (1589), Balthasar de Ayala De jure et officiis bellicis et disciplina militari (1582), P. Belli De re militari et bello (1558), Alberico Gentili De jure belli (1598) e Hugo Grcio De jure belli ac pacis (1625). In MELLO, Celso D. de Albuquerque. Guerra Interna e Direito Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1985. p. 41. 2 Maiores informaes ver BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. New York: Oxford, 2008. MACEDO, Paulo Emlio Vauthier Borges de. A ingerncia Humanitria e a Guerra Justa. Revista de Direito da UNIGRANRIO. Disponvel em http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr. Acesso em 07 de Outubro de 2011.3 Idem.

    http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr

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    historicamente, a guerra de agresso tornou-se ilegal aps o Pacto de Paris, ou Pacto Briand-

    Kellogg, de 1928.

    Depois da assinatura da Carta de So Francisco, que originou a Organizao das Naes

    Unidas em 1945, esta proibio foi reafirmada e ampliada com a consolidao do sistema da

    segurana coletiva, j esboado no Pacto da Liga das Naes, de 1919, e que proscreve o uso da

    fora deixando espao para apenas trs excees: a legtima defesa, as lutas pela

    autodeterminao dos povos e os casos em que o Conselho de Segurana, para situaes

    especficas, empreende o recurso fora por julg-lo compatvelcomospropsitosdaONU.4

    Posteriormente criao da Organizao das Naes Unidas, os casos de disputas

    territoriais ou qualquer situao especfica de discrdia entre Estados passaram majoritariamente

    a serem designados como litgios jurdicos sujeitos Corte Internacional de Justia, a fim de

    efetivar o princpio da soluo pacfica de conflitos internacionais. A "Declarao relativa aos

    princpios de direito internacional no que respeita s relaes amigveis e cooperao entre

    Estados," votada pela Assemblia das Naes Unidas a 24 de Outubro de 1970, estabeleceu que

    "todos os Estados devem solucionar os seus conflitos internacionais com os outros Estados por

    meios pacficos de tal modo que a paz e a segurana internacionais, assim como a justia no

    sejam postas em perigo".5

    Entretanto, de acordo com Paulo Emlio Macedo, impossvel racionalmente tentar

    substituiraguerraporlitgiosjurdicos,osquaissopautadospornormasdedireitoobjetivo.6

    Segundoesteautor,aguerraumconflito de poderes, no um conflito de interesses e, portanto,

    transcende o Direito, para o qual s h controvrsias estticas e atuais, rigorosamente

    circunscritas e previstas. J para Scheler, a guerra realizada para o futuro, em nome do

    advento de um novo rearranjo de poderes, ou seja, uma nova ordem. Desse modo, ela cria novas

    realidades histricas e se torna fonte de todo o Direito e de toda a moral.7

    4 Ver Carta da ONU. Captulo VII, Artigo 38-51. 5 Protocolo I Adicional s Convenes de Genebra de 12 de Agosto de 1949, relativo Proteo das Vtimas dos Conflitos Armados Internacionais. NEEP-DH. Ncleo de Estudos de Polticas Pblicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida. Disponvel em http://www.nepp-dh.ufrj.br/onu2-11-5.html. Acesso em 25 de Abril de 2012. 6 MACEDO, Paulo Emlio Vauthier Borges de. A ingerncia Humanitria e a Guerra Justa. Revista de Direito da UNIGRANRIO. Disponvel em http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr. Acesso em 07 de Outubro de 2011. 7 SCHELER, Max. O Gnio da Guerra e a Guerra Alem. In ORTEGA Y GASSET, Jos. El Espectador. Madrid: Biblioteca Edaf, 1998. p.163.

    http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugrhttp://www.nepp-dh.ufrj.br/onu2-11-5.html

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    A proibio da guerra de agresso como recurso legtimo na poltica exterior dos Estados

    foi um novo captulo numa antiga histria de reflexo e produo doutrinria sobre o que a

    guerra e como ela pode ser justificada. Essa tradio remonta a Santo Ambrsio (333-397) e

    Santo Agostinho (354-430), passando por Francisco de Vitoria (1483-1546), Francisco Suarez

    (1548-1617) e Hugo Grotius (1583-1645) e chegando a autores contemporneos da guerra

    justa,comoMichaelWalzer (1935- ). Uma das procedncias mais significativas do conceito de

    guerra justa encontrado em Santo Toms de Aquino (1225-1274) que estabeleceu trs critrios

    de avaliao: a guerra seria justa se declarada pelo prncipe, uma vez que ele a autoridade

    pblica competente; se tivesseumacausajusta,ouseja,umdireitovioladoe se a inteno dos

    beligerantesfossereta,devendovisarapromoodeumbemouevitarummal.8

    MichaelWalzerafirmaqueateoriadaguerrajusta rechaa o absolutismo moral (...) que

    condena todas as guerras, como o relativismo tico do realismo poltico, o qual, em nome da

    defesa do Estado, aceita a matana de civis e de inocentes como natural, e qualquer guerra para

    expandiropodercomonecessria.Paraosadeptosdas teses da guerra justa, existem razes que

    so suficientes para se fazer guerra. Da mesma forma, h coisas que so moralmente

    inaceitveisdesefazeraoinimigoParaesteautor,aguerrajustatrata-sedeumateoriade

    justiacomparativaquepossibilitaaanlisedasaeshumanasemtemposdecriseeconflito

    haja vista que no considera toda a guerra como o malogro do Direito e da Moral, ela

    permanece como um parmetro de julgamento vlido. 9

    SegundoEdwardCarr,amoralinternacionalolugarmaisobscuroedifcildetodoo

    campo dos estudos internacionais. Para este autor, no se pode identificar a obrigao do

    Estado com a obrigao de qualquer indivduo, ou indivduos; e as obrigaes dos Estados que

    soosujeitodamoralinternacional.10 A personificao da unidade poltica o que estabelece

    que os Estados estabeleam e conduzam o ordenamento das relaes internacionais. A crena de

    que os Estados possuem deveres morais entre si e uma reputao a ser mantida cumprindo esses

    deveres o que manteria, para Carr, a ordem da sociedade internacional. O comportamento dos

    governantes na forma como conduzem os assuntos internacionais o que torna real as obrigaes

    estatais.

    8 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direitos Humanos e Conflitos Armados. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 99. 9 WALZER, Michael. Arguing about War. New Haven & London: Yale University Press, 2004. p. 14. 10CARR, Eduard. Vinte anos de Crise 1919-1939. Uma introduo aos estudos de Relaes Internacionais. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1981. p. 206.

  • 13

    Ainda segundo Carr, as teorias da moral internacional tendem a formar duas categorias.11

    As realistas, para as quais as relaes entre Estados so governadas apenas pelo poder, no

    influenciadas pela moral; as utpicas, que renegam a guerra como um todo, reiterando que o

    mesmo cdigo de moral aplicvel tanto aos indivduos quanto aos Estados. Entretanto, para

    John Bright, "a lei moral no foi escrita apenas para os homens em seu carter individual, mas

    tambmfoiescritaparaasnaes.12 Todavia, para Carr, nem a viso realista de que nenhuma

    obrigao moral prende os Estados, to pouco, a viso utpica de que os Estados esto sujeitos s

    mesmas obrigaes morais dos indivduos, correspondem aos pressupostos do homem comum

    acerca da moral internacional.

    O Direito Internacional contemporneo estabelece obrigaes do Estado para com e entre

    os indivduos, assim como obrigaes dos Estados para com outros Estados. Neste sentido, o

    princpio da igualdade soberana entre os Estados um dos pilares jurdicos do Sistema

    Internacional. De acordo com este princpio, todos os Estados so iguais e soberanos, dispondo

    do mesmo reconhecimento enquanto unidade poltica. Edward Carr, entretanto, argumenta a

    dificuldadedesedefiniromesmoprincpiodentrodeumacomunidade.Segundoesteautor,a

    igualdade no jamais absoluta e pode s vezes ser definida como uma ausncia de

    discriminao por motivos entendidos como irrelevantes. 13 Para ele, a discriminao no sistema

    internacional endmica, uma vez que a desigualdade entre Estados em relao ao poder

    flagrante.14 Apesar de iguais juridicamente, ou seja, possurem igualdade de status com

    igualdade de direitos, oportunidades ou de posses, na prtica a relao entre osEstados

    proporcional,enoabsoluta.Carrjustificaestaafirmaodestacandoaconstanteintromisso,

    ouintromissoempotencialdaspotncias,quetornaquasesemsentidoqualquerconcepode

    igualdade entre os membros da comunidade internacional.15

    A origem da Responsabilidade de Proteger insere-se nessa longa tradio e continuado

    debate sobre o que justo e moral nas relaes internacionais na medida em que impe uma

    11MACEDO, Paulo Emlio Vauthier Borges de. A ingerncia Humanitria e a Guerra Justa. Revista de Direito da UNIGRANRIO. Disponvel em http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr. Acesso em 07 de Outubro de 2011.12John Bright, Speccbes on Quution of Public Policy1858, pg. 479. In CARR, Eduard. Vinte anos de Crise 1919-1939. Uma introduo aos estudos de Relaes Internacionais. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1981. p.198. 13CARR, Eduard. Vinte anos de Crise 1919-1939. Uma introduo aos estudos de Relaes Internacionais. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1981. p. 209.14 Idem. p. 209. 15 Ibidem. p. 213.

    http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr

  • 14

    nova forma de enquadrar os indivduos que sofrem violaes extremas de seus direitos. Portanto,

    esta pesquisa tem o objetivo de esclarecer o debate acerca do contexto normativo da interveno

    militar humanitria a partir dos anos 1990, tendo como foco o surgimento, o desenvolvimento e

    as controvrsias do princpio da Responsabilidade de Proteger, com ateno especial a um dos

    seus elementos a previso do uso da fora militar no cenrio internacional justificada por

    argumentos humanitrios.

    No primeiro captulo, explanarei a conceituao da interveno e a relao do uso da

    fora entre Estados para ilustrar a origem do conceito de interveno humanitria e suas

    influncias nas relaes internacionais. Desta forma, mostrarei que a evoluo normativa dos

    conflitos e da violncia no ps-Guerra Fria estabeleceu um novo conceito de guerra e fez

    prevalecer as atenes voltadas aos conflitos intraestatais. Este captulo tem o propsito de

    explicar conceitos e definies que se relacionam com a doutrina da interveno humanitria no

    Direito Internacional, principalmente na Carta das Naes Unidas, explanando as discusses

    sobre sua moralidade e justificativa.

    O segundo captulo busca mostrar que o alcance do debate sobre no-interveno,

    soberania e segurana humana resultou na criao do novo conceito da Responsabilidade de

    Proteger. A preocupao da comunidade internacional em proteger os direitos humanos e a nova

    interpretao da soberania enquanto responsabilidade fez com que o amadurecimento da

    discusso sobre a interveno humanitria resultasse na implementao da Responsabilidade de

    Proteger. Primeiramente, definirei a Responsabilidade de Proteger, seus embasamentos e

    principais influncias na doutrina da interveno humanitria. Posteriormente, mostrarei suas

    fundamentais dificuldades e obstrues para implementao bem sucedida, focando nas crticas

    relacionadas aos conceitos da segurana humana, soberania, no-interveno e Estados Falidos.

    O terceiro captulo aborda os problemas das Naes Unidas para efetivar operaes de

    paz, principalmente as operaes conjuntas com as organizaes regionais. Destacarei os

    variados tipos das operaes multidimensionais, focando nas misses de imposio da paz sob o

    captulo VII da Carta da ONU. Portanto, abordarei as diferenas entre operaes justificadas na

    Responsabilidade de Proteger e na Proteo de Civis e da forma como ambas doutrinas se

    envolvem no processo de reconstruo dos Estados Falidos. As crticas centrais implementao

    destes conceitos na Lbia sero levantadas a fim de explicitar suas influncias no

    desenvolvimento e evoluo do contexto normativo das relaes internacionais.

  • 15

    Procurarei apresentar posicionamento de autores diversos, e, por isso, nos limitaremos a

    exp-los sem expressar ou tomar partido de uma nica viso. Esse esforo de apresentao dos

    argumentos fez com que a pesquisa se baseasse no levantamento, leitura e sistematizao de

    literatura sobre a Responsabilidade de Proteger, intervenes humanitrias, teorias de Relaes

    Internacionais e debates sobre a guerra justa e o direito de guerra; e na leitura e anlise de fontes

    primrias, especialmente, dos documentos da ONU produzidos por seus secretrios gerais e pelo

    Conselho de Segurana.

    Nas Consideraes Finais, a retomada de cada movimento da dissertao procurar no

    chegar a concluses definitivas, mas, ao contrrio, buscar defender a pertinncia do estudo da

    Responsabilidade de Proteger como elemento importante para a anlise das relaes

    internacionais contemporneas no que diz respeitos s centrais questes da guerra e da paz.

  • 16

    C AP T U L O 1

    Intervenes militares: da Guer ra F ria cr iao do Princpio da Responsabilidade de Proteger .

    Oprincpiofundamentaldo Direito Internacional, como direito universal que deve valer em si e por si entre os Estados, diferena do contedo particular dos tratados positivos, que os tratados, enquanto sobre eles repousam as obrigaes dos Estados uns para com os outros, devem ser respeitados. Mas porque as relaes entre eles tm por princpio a sua soberania, eles esto uns para com os outros, nessa medida, no Estado de natureza, e os seus direitos tm a sua realidade efetiva no numa vontade universal constituda em poder acima deles, mas na sua vontade particular. Aquela determinao universal permanece, por isso, no dever-ser, e a situao torna-se uma alternncia entre as relaes conforme aos tratados e a supresso dessas relaes.

    G.W.F. Hegel

    1.1 Interveno Militar : definio e contexto normativo

    A interveno militar uma problemtica do sistema moderno de Estados. Seus analistas

    procuram explic-la, na tentativa de compreender o poder e a relao de dominao e fora deste

    Sistema. O mesmo, tambm chamado pela escola inglesa de sociedade internacional1, est

    configurado pelo uso da fora, monopolizada pelo Estado,2 domstica e exteriormente. A

    estrutura do sistema, particularmente o nmero de atores (os Estados) e as suas respectivas

    capacidades, determinam os padres de interao que buscam desenvolver uns com os outros,

    constituindo alianas e formando balana de poder, sendo passvel de modificaes atravs de

    alteraes na distribuio de poder entre as unidades.3 Este sistema, marcado pela falta de

    1 Andrew Hurrell, autor da escola inglesa, analisa a Sociedade Internacional em uma de suas obras a partir de algumasidias:first, the view that and lasting influence: international society has to be understood in terms of both power and the operation of legal and moral normswhat Butterfi eld andWight spoke of as the principles ofprudence and moral obligation which have held together the international society of states throughout its history, and stillholdittogether.Second,theviewthatthatinternationalsocietycanbeproperlydescribedonlyinhistorical andsociologicaldepth.Andthird,theargumentthatastates-system will not come into being without a degree of cultural unity amongst its members, or, more strongly, that a states-system presupposes a common culture.HURRELL, Andrew. One world? Many worlds? The place of regions in the study of international society. International Affairs: Moscou, 2007. pp. 127, 143. http://www.mwmt.co.uk/documents/MWML2006_Hurrell.pdf. Acesso em 17 de setembro de 2011. 2O uso da fora por atores no estatais ilegtima no Sistema de Estado, e aqueles que a utilizam so caados pelos Estados, freqentemente agindo em nome da comunidade internacional.Traduo minha. Ver FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 1. 3WALTZ, Kenneth N. O homem o Estado e a guerra. Uma anlise terica. So Paulo: Ed. Martins Fontes. 2004.

    http://www.mwmt.co.uk/documents/MWML2006_Hurrell.pdf

  • 17

    autoridade poltica supranacional, constitui-se de Estados movidos por interesses e pela

    capacidade em garantir sua soberania. 4

    Em conseqncia da assimetria de poder entre as unidades, o uso da violncia entre os

    membros da sociedade internacional talvez a forma mais visvel e pragmtica de endossar

    condutas, apesar de mais custosa. Neste sentido, a deciso de intervir remete ao exaustivo debate

    de onde, como, quando, quem vai intervir e quais valores sociais garantir. Ao longo da histria, a

    razo para intervir remete a reivindicaes comuns de que o Estado alvo representa uma

    ameaa para outro Estado; condio sobre a qual se acrescentou a partir do sculo XX, a de que

    um Estado, por sua conduta agressiva, seria uma ameaa paz e a ordem internacional. 5

    Adeptos da Realpolitik defendem que os Estados fortes majoritariamente intervm nos

    Estados fracos quando ela serve aos seus interesses geopolticos e ou econmicos. Autores

    adeptos da escola liberal afirmam a possibilidade da interveno em defesa dos direitos

    humanos, como no caso da interveno militar humanitria.6

    O uso da fora entendido por Thierry Thardy como, ousodemedidascoercitivaspara

    coagir um ator a fazer alguma coisa que em outras circunstncias no faria ou para previnir um

    ator de fazer alguma coisa. Esta definio inclui, mas no est limitada noo de guerra.7

    Melo argumenta que a interveno pode ser traduzida em intromisso, o que significa a

    interferncia, por um ou mais Estados, nos assuntos internos ou externos de outro Estado

    soberano sem o seu consentimento, tendo como fim alterar determinado estado de coisas. 8

    Finnemore, por sua vez, define interveno militar como adisposiodaformaodecombate

    de pessoal militar dentro de limites reconhecidos com o propsito de determinar a estrutura da

    4De acordo com a Teoria do Realismo Sistmico ou Estrutural proposta por Kenneth Waltz, a distribuio de poder nesse sistema anrquico determinada pela capacidade de cada Estado influenciar, militar, poltica ou economicamente a ordem internacional. Ver WALTZ, Kenneth N. O homem o Estado e a guerra. Uma anlise terica. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 2004. 5FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 2.6WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press, 2000. p. 27. 7 The use of coercive measures to constrain an actor to do something it would not otherwise do or to prevent an actor fromdoingsomething.Thisdefinition includes,but isnot limited to, thenotionofwar Tradues minhas.THARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Switzerland: Security Dialogue, 2007. Geneva Centre for Security Policy (GCSP). pp. 38, 49. 8MELLO, Celso C. de A.. Curso de Direito Internacional Pblico. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 238.

  • 18

    autoridade poltica no Estado alvo. 9 Entretanto, a autora concorda que esta definio s se

    encaixa no perodo da Guerra Fria, quando se entendia a interveno como mudana de

    autoridade poltica.

    Segundo Finnemore, h trs requisitos para que uma ao seja qualificada como

    interveno: primeiramente, Estados tm de usar o termo descrevendo a atividade. Aqueles

    envolvidos tm de entender que estavam engajados em uma interveno e usar o mesmo termo

    quando escrever ou dialogar com outras autoridades estrangeiras; segundo, ao militar tem de

    estar presente. O uso de outra forma de sanes, como econmica ou diplomtica, no

    qualificam a ao como interveno; terceiro, a fora militar tem de encontrar oposio durante a

    ao.10

    A interveno militar o termo usado para explicar o uso da fora, na atualidade, para

    esclarecer a violao do compromisso da soberania e autodeterminao. Estes dois conceitos

    foram desenvolvidos para regular as relaes entre Estados. De acordo com Bellamy, soberania

    refere-se ao direito que estatos possuem em relao a integridade territorial, independncia

    polticaenointerveno.Autodeterminao refere-se ao direito dos povos de se autogovernar,

    ou seja, o direito de livremente determinar seu status poltico. 11 Nessa linha, Brownlie afirma

    que a soberania e a igualdade de Estados representam as leis bsicas entre as naes com

    personalidade jurdica. 12

    A compreenso de interveno, entretanto, esteve vinculada a ordem internacional de

    cada perodo da histria do sistema de Estados. Cada ordem est respaldada por um diferente

    contexto normativo, na relao entre o direito de intervir e a interpretao do princpio da

    soberania.

    Nos limites da poca do absolutismo, a soberania da sociedade de Estados estava

    relacionada ao fato dos Estados agiremcomoquiserdentrodesuasjurisdies. 13 No sculo

    9 Thedeploymentofmilitarypersonnelacrossrecognizedboundariesforthepurposeofdeterminingthepoliticalauthority structure in the target state. Tradues minhas. FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p.9. 10 Ibidem. p. 11.11BELLAMY, Alex J. Responsibility to Protect: the global effort to end mass atrocities. Malden: Ed. Polity, 2009. p. 8. 12 Refers to the rights that states enjoy to territorial integrity, political independence and non-intervention. Tradues minhas. BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. New York: Oxford, 2008. p. 289. 13Acthowevertheypleasewithintheirownjurisditions.Tradues minhas. BELLAMY, Alex J. Responsibility to Protect: the global effort to end mass atrocities. Malden: Ed. Polity, 2009. p. 8.

  • 19

    XIX, a construo e definio de interveno em si mesmo, como categoria de ao militar

    separada da guerra, estava relacionada s mudanas polticas e ao comportamento militar. Interveno, como uma prtica do sculo XIX na Europa, tinha efeito relacionado ao governo e no ao territrio, e por isso, promovia condies para causar mudanas polticas sem modificar os limites de Viena e acordos territoriais que determinaram a ordem europia do perodo. 14

    No momento anterior ao Pacto da Liga das Naes, de 1919, celebrao do tratado

    Briand-Kellogg de proscrio da guerra de agresso, em 1928, e da prpria carta das Naes

    Unidas, de 1945, a soberania era a prtica na qual os Estados possuiamodireitode iniciar a

    guerrabaseada na realpolitik.15 J no perodo ps-colonial ps-1945 a soberania passou a ter

    uma relao direta com a declarao de que todos os povos tinham o direito autodeterminao,

    direito de decidir seu status poltico e seu desenvolvimento econmico, social e cultural, o que

    significava que nenhuma potncia podia deliberadamente intervir em um Estado considerado

    mais fraco. Esta compreenso de soberania era uma tentativa de se evitar a re-ermegncia do

    colonialismo.

    Assim, desde a criao das Naes Unidas em 1945, a compreenso sobre a interveno

    militar est resguardada em sua carta. Para Tardy, a carta das Naes Unidas o documento mais

    detalhado para a regulao do uso da fora no sistema moderno de Estados. O autor afirma que

    depois de algumas tentativas no concludas, como o Tratado de Versales instituindo a Liga das

    Naes em 1919 e o Pacto Briand-Kellogg em 1928, a Carta das Naes Unidas deu luz a mais

    detalhadaconjunturarelacionadaaousodafora16

    A carta das Naes Unidas define em seu captulo primeiro as regras sobre intervenes

    de um Estado membro em outro igual: Cap.1.Art.2.4. Todososmembrosdeveroevitarem suas relaes internacionaisaameaa ou o uso da fora contra a integridade territorial ou a independncia poltica de qualquer Estado, ou qualquer outra nao incompatvel com os Propsitos das Naes Unidas.

    14 Intervention,asanineteenth-century practice within Europe, was understood to be aimed at governments rather than territory and so provided a way of bringing about political change without disturbing the Vienna boundaries and territorial settlement that underpinned the entire European order of the period. Tradues minhas. FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 11.15 Enjoyedarighttogotowar. Ibidem. p. 12. 16 Afterafewinconclusiveattempts,suchastheTreatyofVersaillesinstitutingtheLeagueofNations(1919)andthe KelloggBriand Pact(1928),theUNCharterputforththemostdetailedframeworkregardingtheuseofforce.Tradues minhas. TARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Security Dialogue: Vol. 38, N. 49, 2007.

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    Cap. 1 Art.2.7.NenhumdispositivodapresenteCartaautorizarasNaesUnidasaintervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdio de qualquer Estado ou obrigar os Membros a submeterem tais assuntos a uma soluo, nos termos da presente Carta; este princpio, porm, no prejudicar a aplicao das medidas coercitivas constantes do Captulo VII. 17

    Brownlie destaca os contextos legais nos quais, contemporaneamente (e abrindo

    controvrsia com os princpios expressos nos artigos acima da Carta da ONU), o uso da fora

    pode ocorrer. Eles so:18

    Crescente nmero de casos em que aes ilegais substituem responsabilidades

    estatais ou omisso da obrigao do Estado de prover reparao;

    Responsabilidade criminal de indivduos por atos de agresso;

    Aplicaes de rgos das Naes Unidas, principalmente o Conselho Segurana

    sob competncia do captulo VII, no que se trata da ameaa paz, quebra da paz

    ou ato de agresso;

    Emprego de decises tomadas por convenes multilaterais em relao ao uso da

    defesa coletiva ou operaes regionais de manuteno da paz;

    Proviso de tratados bilaterais ou assistncia mtua, comrcio ou navegao,

    provisionados por clusulas jurisdicionais da Corte Internacional de Justia.

    O Artigo 2(4) da Carta das Naes Unidas possibilita um dos principais debates sobre a

    proibio da ameaa ou do uso da fora. Inclusive a Corte Internacional de Justia em

    AtividadesArmadasnoTerritriodoCongode 2000, proclamou que o Artigo 2(4) consiste

    emumproblemana carta da ONU. 19

    A Corte Internacional de Justia classificou o uso da fora no caso da Nicargua,

    discutindo se a sua proibio representa o direito internacional consuetudinrio: 20 No de se esperar que na prtica dos Estados a aplicao das regras em questo deveria ter sido perfeita, no sentido de que os Estados devem se abster, com total coerncia, a partir do uso da fora ou de interveno em cada um dos assuntos internos de

    17 Carta das Naes Unidas. Disponvel em http://www.un.org/en/documents/charter/. Acesso em 18 de setembro de 2011. 18BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. New York: Oxford, 2008. p. 747.19 Armed Activities on the Territory of Congo. GRAY, Christine. International Law and the Use of Force. Foundations of Public International Law. Nova York: Oxford, 2008. p. 30. 20O direito consuetudinrio diferente dos tratados assinados porque ele no criado em acordos escritos entre os Estados que planejam e regulam suas aes em reas especficas. Ver AREND, A. C. BECK, R. J. International Law and the Use of Force: Beyond the UN Charter Paradigm. London: Routledge, 1993. p. 6.

    http://www.un.org/en/documents/charter/

  • 21

    outros. O Tribunal no considera que, para que uma regra possa ser estabelecida como costume, a prtica deve ser feita em conformidade absolutamente rigorosa com essa regra. Para deduzir a existncia de normas consuetudinrias, o Tribunal considera suficiente que a conduta dos Estados devem, em geral, ser coerente com tais regras, que os casos em que os Estados possuem conduta inconsistente com uma determinada regra deveria ser, em geral, tratada como violao dessa regra, no como indicaes do reconhecimento de uma nova regra. Se um Estado age de forma incompatvel com uma regra reconhecida, mas defende a sua conduta, apelando para excees ou justificativas contidas dentro da prpria regra, ento, o no comportamento do Estado de fato justificvel, o significado que a atitude confirmaaoinvsdeenfraqueceraregra. 21

    A insistncia do uso da fora, entretanto, no fortalece normas, ao contrrio, retira sua

    plausibilidade. Apesar disso, Estados constantemente tentam justificar aes que desafiam as

    normas existentes, defendendo que sua atuao est em conformidade com o discurso legtimo e

    dominante. As regras impostas pelo Direito Internacional no determinam exclusivamente o

    comportamento do Estado, elas influenciam o processo de tomada de deciso interno, mas

    tambm so influenciadas pela conjuntura do Sistema.

    O uso da fora contra um membro da Sociedade Internacional, subordinado s regras e

    normas formuladas principalmente pelas unidades mais poderosas, est vinculado ao contexto

    normativo de cada ordem internacional de acordo com a interpretao da concepo do Estado

    de dever estatal. No plano comportamental, aes de execuo estabelecem as regras bsicas do

    sistema sobre quais aes so permitidas e os limites da soberania, e no nvel cognitivo e

    normativo, este debate estabelece a autoridade e a legitimidade das regras.22 Entretanto, a histria

    tem demonstrado que o princpio da soberania freqentemente manipulado pelas grandes

    potncias. 23

    Os argumentos dominantes junto s transformaes normativas remetem a fatores como

    as alteraes no equilbrio de poder ou na balana ofensiva-defensiva (offense-defense 21 It is not to be expected that in the practice of States the application of the rules in question should have been perfect, in the sense that States should have refrained, with complete consistency, from the use of force or from intervention in each others internal affairs. The Court does not consider that, for a rule to be established as customary, the corresponding practice must be in absolutely rigorous conformity with such rule. In order to deduce the existence of customary rules, the Court deems it sufficient that the conduct of States should, in general, be consistent with such rules, and that instances of States conduct inconsistent with a given rule should be generally be treated as breaches of that rule, not as indications of the recognition of a new rule. If a State acts in a way prima facie incompatible with a recognized rule, but defends its conduct by appealing to exceptions or justifications contained within the rule itself, then whether or not the States conduct is in fact justifiable on that basis, thesignificance of that attitude is to confirm rather than to weaken the rule. Tradues minhas. Nicaragua Case. International Court of Justice Reports (1986). Pargrafo 186. 22FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 2. 23David B. Halmo. Humanitarian Intervention: Ideas in Action. Arab Studies Quarterly (ASQ). Book Reviews: Vol. 30, N. 1, 1 de Janeiro de 2008. p. 77.

  • 22

    balance). Mas, segundo Martha Finnemore, as mudanas no alteram o fato dos Estados fortes

    continuarem a intervir em Estados fracos quando isto os interessa.

    Para Finnemore, o processo normativo da poltica internacional est diretamente ligado s

    intervenes militares, uma vez que as normas internacionais no esto divorciadas do poder e

    do interesse estatal. Ao contrrio, () regras sobre interveno so fortemente se no

    inteiramente determinadas por aes de Estados potncias que realmente possuem capacidade de

    intervir (...). 24 De acordo com a autora, constantes alteraes no contexto normativo significam,

    portanto, modificaes nas intervenes militares.

    A criao de novas normas no Sistema Internacional o resultado da mutao do

    comportamento do Estado em relao soberania, ao indivduo, ou ao direito de fazer a guerra.

    Sikkink e Finnemore definem como normcascade, o processo em que um grupo de Estados

    adota uma nova norma como padro apropriado de comportamento, no qual se substitui a

    prtica anteriormente aceita. Os autores afirmam que esta ao sempre contestada pelos

    adeptos da antiga norma, os quais persistem em resistir legitimidade do regulamento recm-

    cunhado. 25

    A evoluo normativa uma racionalizao legal da estrutura do sistema. Desde o sculo

    XIX, cada vez mais, o reconhecimento destas regras tem sido codificado no direito internacional,

    nos regimes internacionais, e nos mandatos oficiais das organizaes internacionais. Todavia,

    normas que resguardam a igualdade soberana entre as unidades estatais tornaram-se mais

    poderosas a partir do sculo XVII, aps a Paz de Westflia (1648). Restringindo a noo legal de

    interveno, a igualdade de soberania tornou-se universal sob a jurisdio do direito

    internacional, como pode ser visto na carta das Naes Unidas.

    A evoluo das normas sobre o uso da fora tambm atingiu a interpretao do

    compromisso do Estado de garantir segurana aos indivduos. No final do sculo XX, a noo de

    autodeterminao foi relativizada idia humanitria. Ao longo dos ltimos dois sculos, normas

    queresguardamigualdadehumanaedireitoshumanostemsetornadocadavezmaisinfluentes

    24 (...)rulesaboutinterventionarestronglyifnotentirelyshapedbyactionsofpowerful states that actually have thecapacitytointervene.(...). Tradues minhas. FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 5. 25FINNEMORE, M. SIKKINK, K. International Norm Dynamics and Political Change. International Organization: 2/4, 1998. pp. 895, 905.

  • 23

    as reas da poltica internacional, causando profundos impactos, inclusive sobre a interveno

    militar. 26 Finnemore observa que: "Novas crenas sobre quem humano fornecem razes para intervir e fazer a interveno possvel de maneira que no era anteriormente. Com a criao de novas realidades sociais, novas normas sobre interveno, nova desirata de pblicos e tomadores de deciso, novas crenas criam novas opes de poltica, imperativos at mesmo sobre polticas para interveno". 27

    A compreenso de ser humano no final do sculo XX modificou a justificativa para

    interveno, da mesma forma como alterou o debate sobre onde e como intervir. A ordem

    internacional estabelecida nos anos 1990, aps a Guerra Fria, trouxe a questo da segurana dos

    indivduos e no s a do Estado como ente soberano colocando a obrigao do Estado de

    garantir a segurana de seus cidados.28 Esta nova interpretao sobre o dever estatal fez com

    que outras normas fossem adicionadas ao Direito Internacional Pblico, colocando em debate

    aquilo que passou a ser conhecido como interveno humanitria.29

    1.2 Interveno Humanitria: conceito e principais debates

    Apesar de utilizada como justificativa para a interveno somente aps a Guerra Fria, a

    idia de interveno humanitria remonta os direitos fundamentais do Estado, discutidos desde o

    sculo XV. Adriana Ramos ressalta que, Este instituto foi defendido por Francisco de Vitria (1480-1546), Francisco Suares (1548-1617), Luis Molina (1535-1601), Vattel (1714-1767), que defendem o direito natural falando de um direito comumda humanidade, onde a barbrie era proibida e havia a possibilidade de interveno em um territrio onde houvesse a violao desse direito.HugoGrocionasuaobraDeiureBelliacPacis, de 1625, presume um direito de interveno em relao ao Estado que maltrate os seus prprios cidados, sendo a sua

    26FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 20. 27 New beliefs about who is human provide reasons to intervene and make intervention possible in ways it was not previously. By creating new social realities, new norms about intervention, new desirata of publics and decision makers, new beliefs create new policy choices,evenpolicyimperativesforinterventions. Tradues minhas. Idem p. 15. 28HOFFMANN, Florian. Mudana de paradigm? Sobre direitos humanos e segurana humana no mundo ps-11 de setembro In: HERZ, Monica; AMARAL, Arthur B. (orgs.). Terrorismo e Relaes Internacionais: perspectivas e desafios para o sculo XXI. Rio de Janeiro/So Paulo: Editora PUC-Rio/Edies Loyola, 2010. pp. 247, 275. 29 RICOBOM, Gisele. Interveno humanitria: a guerra em nome dos direitos humanos. Belo Horizonte: Editora Frum, 2010.

  • 24

    raiz a teoria clssica da guerra justa, conceito desenvolvido por Santo Agostinho, So Ambrosio, So Tomas de Aquino dentre outros pensadores da Idade Mdia.30

    O conceito de interveno humanitria tem diversas interpretaes. Ele definido por

    Finnemore como a ao de dispor em formao de combate fora militar fora das fronteiras

    comopropsitodeprotegernacionaisestrangeirosdaviolnciafeitaporhomens.31 Holzgrefe

    vai alm, afirmando que a interveno humanitria a ameaa ou uso da fora fora das

    fronteiras do Estado por um Estado ou grupo de Estados, a fim de previnir ou por fim a

    difundidas e graves violaes de direitos humanos fundamentais de indivduos outros que seus

    prprios cidados, sem a permisso do Estado possedor do territrioemqueaforaaplicada. 32 Murphy, por sua vez, adiciona sua concluso as organizaes internacionais, definindo-a

    como aameaaouusodaforaporumEstado,grupo de Estados, ou organizao internacional,

    primeiramente com o propsito de proteger os nacionais do Estado alvo de depravaes

    difundidasdosdireitoshumanos internacionalmente reconhecidos. 33 Bhiklu Pareth ressalta o

    sentimento de humanidade: aes inteiramente ou primariamente guiadas pelo sentimento de

    humanidadecompaixoousentimentosaproximados.34

    Embora admita diferentes compreenses, a idia principal da interveno humanitria

    compreende o uso da fora com o propsito de proteger ou salvar indivduos de violaes dos

    direitos humanos, limpeza tnica, genocdio e crimes contra a humanidade. Entende-se como

    30 RAMOS, Adriana. Interveno Humanitria. Disponvel em http://www.viannajr.edu.br/revista/dir/doc/art_10010.pdf. Acesso em 08 de maio de 2010. 31Deploying military force across borders for the purpose of protecting foreign nationals from man made violence.Tradues minhas. FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 53. 32 The treat or use of force across state borders by a state or group of states aimed at preventing or ending widespread and grave violations of the fundamental human rights of individuals other than its own citizens, without the permission of the state within whose territory force is applied, Tradues minhas. Holzgrefe, J. L. TheHumanitarianInterventionDebate, in HOLZGREFE. J. L. KEOHANE, Robert. et an. Humanitarian Intervention: Ethical, Legal, and Political Dilemmas. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 18. 33 Thethreatoruseofforcebyastate,groupofstates,orinternationalorganizationprimarilyforthepurposeofprotecting the nationals of the target state from widespread deprivations of internationally recognized human rights.Tradues minhas. MURPHY, Sean D. Humanitarian Intervention: The United Nations in an Evolving World Order. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1996. p. 11, 12. 34 action wholly or primarily guided by the sentiment of humanity, compassion or fellow-felling. Tradues minhas. Pareth, B. Rethinking Humanitarian Intervention. In PARETH, B. The Dilemmas of Humanitarian Intervention. Edio especial da International Political Science Review. Vol. 18, N. 1, 1997. p. 54.

    http://www.viannajr.edu.br/revista/dir/doc/art_10010.pdf

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    direitos humanos todos os direitos inerentes e inalienveis do ser humano contidos na Declarao

    Universal dos Direitos do Homem, de 1948, como: igualdade, dignidade, liberdade e justia.35

    So crimes contra a humanidade os atos de violao dos direitos humanos ocorridos de

    forma trgica rotineiramente ou os atos extraordinrios de matana e brutalidade.36 Limpeza

    tnica a ao em larga escala de massacre ou extermnio contra um grupo especfico,

    identificado pela raa e/ou etnia.De acordo com o relatrio do Conselho e Comisso Econmica

    e Social das Naes Unidas sobre Direitos Humanos, genocdio omaisaltocrimeeamais

    grave violaodos direitos humanos que possvel cometer. (...) A comisso enfatiza que o

    genocdio uma prtica do Estado contra sua populao e afirma que ele no o resultado da

    guerra internacional,masumclculodapolticadoEstadosobreassassinatoem massa que tem

    sido nomeada como umadestruioestruturale sistemticadepessoas inocentespeloaparato

    burocrtico de um Estado.37

    Segundo Wheeler, so requisitos mnimos para que uma interveno seja considerada

    legitimamente humanitria: (1) emergncia humanitria suprema demandando o uso do ltimo

    recurso possvel para estanc-la, ou seja, a fora; (2) requisito de proporcionalidade, ou seja, o

    uso da fora deve ser proporcional ao dano humanitrio que se deseja prevenir ou cessar; e (3)

    resultado humanitrio positivo.38 Wheeler aponta as dificuldades de avaliar estes requerimentos

    uma vez que no so sempre evidentes.Paraoautornohdefinioobjetivaparaemergncia

    35 Whereasrecognition of the inherent dignity and of the equal and inalienable rights of all members of the human family is the foundation of freedom, justice and peace in the world, Whereas disregard and contempt for human rights have resulted in barbarous acts which have outraged the conscience of mankind, and the advent of a world in which human beings shall enjoy freedom of speech and belief and freedom from fear and want has been proclaimed as the highest aspiration of the common people, Whereas it is essential, if man is not to be compelled to have recourse, as a last resort, to rebellion against tyranny and oppression, that human rights should be protected by the rule of law, Whereas it is essential to promote the development of friendly relations between nations, Whereas the peoples of the United Nations have in the Charter reaffirmed their faith in fundamental human rights, in the dignity and worth of the human person and in the equal rights of men and women and have determined to promote social progress and better standards of life in larger freedom, Whereas Member States have pledged themselves to achieve, in co-operation with the United Nations, the promotion of universal respect for and observance of human rights and fundamental freedoms, Whereas a common understanding of these rights and freedoms is of the greatest importance for the full realization of this pledge (). Declarao Universal dos Direitos Humanos. Disponvel em http://www.un.org/en/documents/udhr/. Acesso em 21 de Setembro de 2011. 36WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press, 2000. p. 34. 37 Statepoliticalpolicyofmassmurderthathasbeentermedastructuralandsystematicdestructionofinnocent peoplebyaStatebureaucraticapparatus." Tradues minhas. Pargrafo 22 doRelatrio do Conselho e Comisso Econmica e Social das Naes Unidas sobre Direitos Humanos. Disponvel em http://www.preventgenocide.org/prevent/UNdocs/whitaker/.Acesso em 21 de setembro de 2011. 38 WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press, 2000. p. 34.

    http://www.preventgenocide.org/prevent/UNdocs/whitaker/http://www.un.org/en/documents/udhr/

  • 26

    humanitria suprema, alm disso, proporcionalidade, resultado positivo e ltimo recurso

    exigem uma avaliao profunda e difcil de ser estabelecida para cada caso em que se levanta a

    possibilidade de usar a fora. Alguns autores observam a impossibilidade de se prever o

    resultado da ao, o que torna este requisito abstruso de qualificao.

    Devido vaga doutrina da poca, ocorreram vrias interpretaes sobre este exemplo de

    interveno. Autores divergiam enquanto a causa das aes, alguns as explicando como ao de

    libertao da nao oprimida por outro pas, outros considerando como tentativa de acabar com

    crimes, alguns referiam-se, ainda, tirania, crueldade ou perseguio religiosa, outros aludiam a

    interveno legal em casos de governos fracos ou governos a caminho da anarquia.

    Brownlie aponta como exemplo o episdio da invaso de Cuba pelos Estados Unidos da Amrica

    em 1898, a ttulo de apoiar o movimento de independncia cubano com relao Espanha. Para

    o autor, esta doutrina de interveno humanitria chegou ao fim em 1919.

    O segundo modelo, colocado em prtica um sculo depois, est vinculado ao bombardeio

    da OTAN contra a Iugoslvia durante 78 dias, iniciado em 24 de maro de 1999. De acordo com

    Brownlie, h grande dificuldade em classificar a ao, devido s alegaes de estados membros

    da ONU e especialistas em direito internacional e humanitrio, como mostraremos

    posteriormente, de que as aes no tiveram motivos humanitrios. O autor lembra que no

    comeo de outubro de 1998, a ameaa da fora estava ligada diretamente a agenda poltica

    colateral, umadelas, a aceitao da Iugoslvia de vrias demandas polticas em relao ao

    status do Kosovo; justificativa que foi apresentada como prenncio a campanha de bombardeio

    macio.

    As divergncias a respeito do caso do Kosovo giram em torno da legalidade e

    legitimidade das aes da OTAN. O dilema de rotulao enfatizado devido ambigidade do

    conceito e de normas da interveno humanitria.

    A impreciso em torno deste conceito est principalmente no campo do direito

    internacional, que sustenta que nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir

    direta ou indiretamente, por razo alguma, em assuntos internos e externos de outro Estado,

    sendo, portanto, a interveno humanitria uma violao do direito internacional.39 Bellamy

    adere afirmao, lembrando queoCap.VIInacartadasNaesUnidasalegaaprevalnciada

    39 Declarao dos Princpios da Lei Internacional da Assemblia Geral em 1970 in BELLAMY, Alex J. Responsibility to Protect: the global effort to end mass atrocities. Malden: Ed. Polity, 2009. p. 16.

  • 27

    soberaniasobreosdireitosdohomem.Paraoautor,nenhumEstadoougrupodeEstadostemo

    direito de intervir, pois, a interveno armada e todas as formas de interveno ou ameaa contra

    a personalidade legal de um Estado podem ser consideradas violaes do Direito Internacional.

    Para Thardy, as operaes de paz das Naes Unidas so a principal ambigidade

    conceitual na relao do uso da fora e a sua carta.40 A confirmao da ambigidade do Direito

    Internacional pode ser identificada na dicotomia de alguns documentos da ONU, como por

    exemplo, a Declarao dos Princpios da Lei Internacional da Assemblia Geral em 1970 e o

    Relatrio do Conselho e Comisso Econmica e Social das Naes Unidas sobre Direitos

    Humanos. " Ao nos termos da Carta das Naes Unidas de fato especificamente autorizada pela Conveno sobre a Preveno e Proteco do Crime de Genocdio, e poderia ser apropriadamente dirigida por exemplo, para a introduo de tutela das Naes Unidas. Os Estados tm a obrigao de, alm de no cometer genocdio, e tambm de prevenir e punir as violaes do crime por outros, e em casos de falha tambm a este respeito, a Conveno de 1948 reconhece que a interveno pode ser justificada para prevenir ou reprimir tais atos e para punir os responsveis "sejam eles governantes, funcionrios pblicosouparticulares. 41

    O debate sobre a legalidade e legitimidade da interveno humanitria obscuro.

    Macklem enfatiza que ambas esto entrelaadas, lembrando que a legalidade est ligada

    necessidade de autorizao do Conselho de Segurana das Naes Unidas e a legitimidade

    questo poltica, da obrigao de natureza tica entre os Estados, sem implicar a aprovao do

    Conselho.42

    A discusso tambm est em torno da sua justificativa. Bull critica o lado moral da

    interveno enfatizando que a ordem internacional dependente das condies de proteo e

    promoo do bem-estar individual. Para o autor a no-interveno a regra bsica do que

    filsofos chamam rule consequentialism. Bull defende que o bem-estar dos indivduos

    40 TARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Security Dialogue: Vol. 38, N. 49, 2007. 41 Action under the Charter of the United Nations is indeed specifically authorized by the Convention on the Prevention and Protection of the Crime of Genocide, and might as appropriate be directed for example to the introduction of United Nations trusteeship. States have an obligation, besides not to commit genocide, in addition to prevent and punish violations of the crime by others; and in cases of failure in this respect too, the 1948 Convention recognizes that intervention may be justified to prevent or suppress such acts and to punish those responsible "whether they are constitutionally responsible rulers, public officials or private individuals " . Tradues minhas.Pargrafo 18 do Relatrio do Conselho e Comisso Econmica e Social das Naes Unidas sobre Direitos Humanos. Disponvel em http://www.preventgenocide.org/prevent/UNdocs/whitaker/. Acesso em 21 de setembro de 2011. 42 MACKLEM, Patrick. Humanitarian Intervention and the Distribution of Sovereignty in International Law. Ethics and International Affairs: Vol. 22, N. 4, Winter 2008. p. 369.

    http://www.preventgenocide.org/prevent/UNdocs/whitaker/

  • 28

    melhor garantido pelas normas legais do que pelas intervenes humanitrias que permitem a

    ausncia de princpios sobre este direito, e enfatiza que permitir as intervenes aceitar que

    elasestosemprebaseadasnasprediesculturaisdaquelesquepossuempoder.43

    Tericos da Guerra Justa como Michael Walzer argumentam que a interveno

    humanitria, se requerida em resposta a massacre, estupro, limpeza tnica e terrorismo de Estado

    moralmente justificada. Walzer reconhece que este tipo de interveno contrria ao conceito

    de anti-imperialismo e autodeterminao, porm, ressalta que ela "moralmente necessria

    quando a crueldade e o sofrimento so extremos e no h foras locais capazes de por fim a

    eles." A presuno contra a interveno forte, ns ( esquerda, especialmente) temos razes

    para isso, que derivam de nossa oposio poltica imperial e nosso compromisso com a auto-

    determinao, mesmo quando o processo de auto-determinao algo menos do que pacfica e

    democrtica.44

    Walzer afirma que a mesma no pode ser moralmente usada para promover "democracia,

    justia econmica ou outras prticas e arranjos " que existem em outros pases. Na viso do autor

    a interveno humanitria limitada a exterminar condutas que chocam a conscincia do ser

    humano.45

    Thomas M. Frank, especialista em Direito Internacional, contribui com uma acepo

    legal. O jurista demarca que a interveno militar humanitria justificada se a ao que o

    estado acusado perpetrou dentro do seu territrio contra parte de sua populao um tipo

    especificamente proibido por acordos internacionais 46 como a Conveno para Preveno e

    Punio do Crime contra o Genocdio de 1948, ameaa em relao discriminao racial,

    tortura, direitos da mulher e da criana representados na Conveno Internacional de Civis e

    Direitos Polticos de 1966, e acordos da lei humanitria internacional aplicados ao conflito civil.

    O debate acerca da interveno militar humanitria uma resposta s diversas aes

    internacionais, multilaterais e unilaterais ocorridas ao longo da histria do sistema de Estados

    43Bull, H. Intervention in World Politics in WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press. 2000. p. 29. 44 Thepresumptionagainstinterventionisstrongwe(ontheleftespecially)havereasonsforit,whichderivefromour opposition to imperial politics and our commitment to self-determination, even when the process of self-determinationissomethinglessthanpeacefulanddemocratic.Tradues minhas. WALZER, Michael. Arguing About War. New Haven, CT: Yale University Press, 2004. pp. 68, 9. 45 Idem. p. 68. 46Thomas M. Frank in RICE, Daniel. DEHN, John. Armed Humanitarian Intervention and International Law: A Primer for Military Professionals. Military Review: 11 de janeiro de 2007.

  • 29

    moderno. No entanto, as mudanas nas intervenes, ocorridas durante a Guerra Fria e no ps-

    Guerra Fria, e as suas respectivas influncias nas aes internacionais fizeram com que a

    discusso a respeito do tema se ampliasse. Compreender estas mudanas uma necessidade para

    avaliar o atual contexto normativo em que se direcionam as intervenes militares humanitrias.

    1.3 Intervenes humanitrias durante a Guer ra F ria e no ps-Guer ra F ria.

    Umas das reivindicaes mais freqentes da interveno militar entre Estados a

    promoo ou proteo da ordem internacional. O argumento realista de que intervenes

    militares atendem a interesses geoestratgicos est relacionado ao fato de que superpotncias

    esto sempre dispostas a manter a ordem e o status quo que as interessam. Para os autores desta

    vertente das Relaes Internacionais, a lgica que orientaria a ao dos Estados nas ordens

    internacionais durante e depois da Guerra Fria no seria diferente.

    A ordem internacional47 durante a Guerra Fria estava configurada em esferas de

    influncias, dividas entre os Estados Unidos da Amrica (EUA) e a Unio das Repblicas

    SocialistasSoviticas(URSS).DeacordocomLeffler,estesistemafoioresultadodafusoda

    competio ideolgica com ameaa geoestratgica.48 Entretanto, para Finnemore, somente

    ideologia no era suficiente para criar o sistema de esfera de influncia da Guerra Fria. A autora

    afirma que a Guerra Fria comeou quando a URSS expandiu sua capacidade material e o

    exrcito sovitico estava em posio de influenciar a poltica no ps II Guerra Mundial, tanto na

    Europa como na sia.49

    A busca pela hegemonia fez com que a bipolaridade ideolgica dividisse o mundo em

    duas esferas de influncias, as quais cada potncia organizava poltica e economicamente de

    acordo com sua ideologia. No ocidente, os EUA coordenavam a economia capitalista de acordo

    com seus interesses e regras, enquanto nas regies influenciadas pela URSS a economia estava

    aparelhada de maneira conveniente ao centro sovitico. As reas de influncia significavam um 47 A compreenso de ordem internacional neste trabalho se limita aos padres de regularizao do comportamento dos Estados, ou mesmo a estrutura do Sistema ou regras do sistema. Ver VICENT, R. J. Nonintervention and International Order. Princeton: Princeton University Press, 1974. pp. 328, 33. 48Melvyn P. Leffler. The Specter of Communism. In FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 124.49 Ibidem.

  • 30

    contexto importante para a conduta das intervenes da poca. A tenso entre ameaa ideolgica

    e a norma de autodeterminao conformava o padro de interveno da Guerra Fria, tanto as

    aes das superpotncias quanto a de outros Estados interventores.

    Devido ao processo de descolonizao, a interpretao de soberania tinha forte vnculo

    territorial, considerando o Estado como territrio. 50 Outras normas relacionadas soberania

    moldavam o poder, mas elas eram muito mais contestadas e condicionais, como as regras sobre

    nacionalidade tnica, as quais mobilizavam povos para guerras de libertao e autodeterminao.

    A noo de autodeterminao restringia a interveno, devendo ocorrer somente aps

    consentimento do governo alvo. Esta idia desempenhou importante papel na agilizao do

    processo de descolonizao, criando mais unidades soberanas a partir dos anos 1950.

    A ameaa da dominao ideolgica dentro das esferas era a ameaa mais comum, e

    suficiente para as potncias justificarem intervenes. As aes baseadas nestas perspectivas no

    eram decises coletivas. Ambas as superpotncias interrompiam revolues ou configuraes

    polticas locais utilizando intervenes unilaterais com o intuito de preservar o controle poltico e

    econmico, como no caso da Zmbia, Zaire e Lbano nos anos 1970 e 1980 para os Estados

    Unidos, e da Hungria e a Tchecolosvquia, nos anos 1950 e 1960, para a URSS.51 A

    possibilidade de interferncia em rea de influncia alheia era ilegtima, significando motivo

    para uma guerra maior.

    A interveno tambm era vista como tentativa de agregar regies no-alinhadas no

    Oriente Mdio e na sia, conseqentemente, desestabilizando governos na tentativa de prevenir

    a autonomia ou a inclinao para a potncia adversria. A causa territorial no era exatamente a

    principal razo para interveno, afora os casos do Tibete e Kuait em 1973, e mesmo nestas

    ocasies as aes foram universalmente condenadas como ilegtimas. 52 Interesses comerciais

    tambm raramente levavam ao uso da fora, com ressalva no caso do Panam e do canal de

    Suez, os quais envolveram significantes interesses de segurana geoestratgica e

    autodeterminao.53 A defesa dos direitos humanos tambm no era justificativa para

    interveno. Aes contra governos violadores, como nos casos de Idi Amim (em Uganda, entre 50Entre 1648 e 1945, o percentual de conflitos no qual o territrio foi redistribudo de 77% e 82%. Entre 1945 e 1996, isto chega a 23%. Idem. p. 126.51 Ver Anexo 1, Quadro 1. 52 Segundo Finnemore, a interveno do Tibete e Kwait em 1973, tiveram ambas razes territoriais. Maiores informaes ver FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 129. 53 Ver Anexo 1, Quadro 1.

  • 31

    1971 e 1979) e Pol Pot (em Camboja, entre 1975 e 1979) eram condenadas sob a alegao de que

    a soberania era superior aos direitos humanos.

    Durante a Guerra Fria, as previses da Carta das Naes Unidas sobre o uso da fora

    mantiveram-se secundrias, apesar dos princpios de soberania e no-interveno serem aceitos

    pela comunidade de Estados.54 A oposio das duas superpotncias no Conselho de Segurana

    paralisou seu sistema e levantou questes sobre sua natureza e funcionalidade. Exceto nos dois

    casos da Rodsia em 1972 e da frica do Sul em 1977, o Conselho de Segurana nunca recorreu

    ao Captulo VII. 55

    At o fim da Guerra Fria a interveno humanitria no era aceita como doutrina legal

    pelos Estados. A ao indiana em Bangladesh em 1970,56 a atuao da Tanznia em Uganda em

    1979,57 e a interveno do Vietn no Camboja em 1978 58 no foram justificadas pela ndia,

    Tanznia e Vietn como humanitrias. Os Estados usaram a fora focando principalmente em

    sua defesa prpria. 59

    Porm, nos anos 1990, a percepo de interveno humanitria assumiu outros padres.

    A nova ordem internacional configurada pela hegemonia dos Estados Unidos da Amrica

    distinguiu-se pelo discurso neoliberal.60 A regulao da segurana coletiva foi restabelecida, com

    maior preocupao para os conflitos intraestatais, uma vez que a guerra interestatal tornou-se

    exceo.61

    Apesar da natureza da ordem internacional depois da Guerra Fria ainda estar em processo

    de conformao, de acordo com Finnemore, os padres de interveno naquele sistema possuam

    caractersticas diferentes da ordem precedente. O comunismo no era mais considerado uma

    ameaa ao sistema capitalista, da mesma forma que as esferas de influncia e os blocos

    ideolgicos haviam desaparecido. O fim da Guerra Fria provocou algumas modificaes no

    sistema internacional e confrontou o estabelecido na carta das Naes Unidas. As

    54 TARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Security Dialogue: Vol. 38, N. 49, 2007. 55 Ver Anexo 1, Quadro 1. 56 A atuao indiana ajudou o povo a garantir a independncia do Paquisto e colocar fim a represso, 57 A ao da Tanznia resultou na derrubada de Idi Amin do poder. 58 A interveno retirou Pol Pot do poder.59GRAY, Christine. International Law and the Use of Force. New York: Oxford University Press, 2008. p. 33.60 O discurso neoliberal est relacionado a preponderncia do capitalismo aps a Guerra Fria. 61MINEAR, Larry. The Humanitarian Enterprise. Dilemas e Discoveries. Connecticut: Ed. Kumarian. 2002. p. 3.

  • 32

    transformaes podem ser resumidas em: tipos de conflito, eroso do conceito de soberania

    relacionado a fatores tnicos, e a revitalizao da ONU.

    A evoluo dos conflitos e da violncia estabeleceu um novo conceito de guerra e fez

    prevalecer as atenes voltadas aos conflitos intraestatais (ou guerras civis). Finnemore afirma

    que importante notar a relutncia dos novos Estados interventores (os da OTAN, por exemplo,

    no caso do Kosovo, em 1999) em declarar guerra aos Estados alvos, preferindo definir suas

    aes como interveno, operao, ou qualquer outra denominao para a ao militar.62 O

    aumento dos conflitos intraestatais neste perodo levou o secretrio geral das Naes Unidas,

    Boutros-Ghali, a argumentar sobre a necessidade de implementao do Artigo 43 da carta da

    ONU, introduzindo a idia de imposio da paz na sua AgendaparaaPaz.63

    Os Estados passaram a encarar o comportamento interno de seus semelhantes como fator

    da poltica externa. Isto significa que Estados que sistematicamente violavam os direitos

    humanos de sua populao passaram a ser considerados ameaas a segurana internacional,

    devido possibilidade de gerarem fluxos de refugiados, desestabilizao poltica, tenses sociais

    nos pases vizinhos e capacidade de agressividade externa. Esse novo padro do comportamento

    estatal modificou a compreenso sobre soberania e autodeterminao.

    As novas perspectivas oferecidas pela nova ordem revigoraram as Naes Unidas. O

    papel da carta da ONU como documento regulador do recurso a fora foi restabelecido. O

    Conselho de Segurana redescobriu suas prerrogativas e se reafirmou como ator essencial nas

    decises sobre a segurana internacional, oscilando suas capacidades como regulador, agente e

    instrumento.64

    Roberts afirma que na dcada de 1990 os problemas humanitrios assumiram um papel

    historicamente indito na poltica internacional. 65 As Naes Unidas propagaram um novo

    contexto normativo, formulando justificativas para intervenes baseadas em razes

    humanitrias. O caso da interveno na Somlia, em 1992, representou uma nova era. Foi a

    primeira vez que o Conselho de Segurana das Naes Unidas autorizou uma interveno sob o

    62FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 134.63 BOUTROS, Boutros-Ghali. An Agenda for Peace: Preventive Diplomacy, Peacemaking and Peace-Keeping, Relatrio da Secretaria Geral das Naes Unidas. A/47/277, S/24111, 17 de Junho de 1992. 64 FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 134.65 ROBERTS, Adam. The Role of Humanitarian Issues in International Politics in the 1990s. International Review of the Red Cross: Vol.81(833). 1999. pp. 19, 44.

  • 33

    Cap. VII sem o consentimento do governo soberano, por razes explicitamente humanitrias.66

    Desde o fim da Guerra Fria, as Naes Unidas empreenderam 47 operaes de paz. Em 2006, os

    pases contribuintes para o corpo das misses chegaram a 15 e o nmero coletivo de tropas em

    diferentes operaes atingiu 80.000. No mesmo ano, o oramento das intervenes de

    manuteno de paz alcanou aproximadamente US$ 5 bilhes.67

    As mudanas aps a Guerra Fria afetaram no s as intervenes militares, as quais

    passaram a ser genuinamente mais multilaterais e com coalizes multinacionais intensivamente

    equipadas. Elas atingiram duas outras formas de coero: a sano econmica e os processos

    criminais internacionais. David Cortright e George Lopez rotularam a dcada de 1990 como a

    dcada de sanes, devido s 12 sanes impostas pelo Conselho de Segurana.68 As sanes

    econmicas foram criticadas por muitos observadores, devido sua suposta ineficincia poltica

    e pelas conseqncias humanitrias de sua imposio. Os processos criminais internacionais

    eram outro tipo de sano, implantados pela primeira vez desde o fim da II Guerra Mundial para

    levar justia a aqueles que cometeram crimes contra a humanidade.

    As razes para interveno assumiram outra direo nesta nova ordem. Conforme

    Finnemore, trs tipos de ameaa tornaram-se capazes de provocar interveno: a violao de

    fronteiras territoriais, conflitos civis envolvendo catstrofes humanitrias e ataques terroristas em

    grande escala. De fato, as causas citadas justificaram, na primeira, as aes no Iraque e do Kuait

    em 1990, na segunda, as intervenes da Somlia e da Bsnia em 1992 e do Haiti em 1994, e na

    terceira, a operao no Afeganisto em 2001.69 A autora ainda acrescenta a possibilidade de uma

    quarta, relacionada proliferao das armas de destruio em massa.70

    Na dcada de 1990, o entendimento de que a violao dos direitos humanos poderia

    causar ameaa a paz e a segurana regional foi institucionalizado nas instituies internacionais,

    principalmente nas Naes Unidas, e vrias potncias incluram em sua poltica externa a mesma

    percepo. Esta variao ocorreu devido nova compreenso sobre a violao dos direitos

    66WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press, 2000. p. 172. 67 Press Release. GA/ 10356. Fifty-Ninth General Assembly Plenary. Disponvel em http://www.un.org/News/Press/docs/2005/ga10356.doc.htm. Acesso em 18 de maio de 2012. 68 David Cortright e George Lopez in WEISS, Thomas G. Humanitarian Intervention: War and Conflict in the Modern World. Cambridge: Polity, 2009. p. 39. 69 Ver Anexo 2, Quadro 2. 70FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 129.

    http://www.un.org/News/Press/docs/2005/ga10356.doc.htm

  • 34

    humanos como agresso paz e ordem internacional, considerada anteriormente na

    configurao da Guerra Fria, como simples atrocidade. Para Tardy, isso significa a formulao

    de uma nova concepo de segurana internacional. O autor afirma que a prpria noo de

    segurana internacional est sendo redefinida com a mudana em direo segurana humana,

    na qual torna o indivduo um objeto referente de segurana.71

    Devido a estas mutaes, a interveno deixou de ser vista como simples ao para

    interromper massacres, como na dcada de 1960 no Lbano, passando a ser considerada misso

    de reconstruo do Estado ou da sociedade (state-bulding). As novas formas de interveno no

    so simples intervenes militares com o intuito de desarmar os assassinos e alterar o governo.

    Finnemore alega que na tentativa de alinhar a sociedade alvo preferencialmente ao modelo

    normativo liberal democrtico, as intervenes do ps Guerra Fria envolveram uma complexa

    estrutura de componentes humanitrios, abrangendo reconstruo e servio social providos por

    organizaes internacionais em articulao com organizaes no-governamentais.

    O comportamento dos Estados em relao a este modelo de interveno o resultado da

    configurao da ordem internacional contempornea, que abrange conceitos de segurana

    pautados na concepo de que o ser humano o alvo a ser protegido. Contudo, o debate sobre a

    proteo dos direitos humanos controverso, uma vez que nenhuma das quatro organizaes

    alm da ONU que so capazes de oferecer interveno militar OTAN, Unio Europia,

    Unio Africana e a Comisso Econmica dos Estados do Oeste Africano ou ECOWAS na sigla

    em ingls tem um conceito identificado de operao para proteo civil.72

    Os conflitos intraestatais passaram a emergir devido a problemas internos dos Estados.

    Apesar de j existentes no perodo da Guerra Fria, estas crises passaram a apresentar no ps-

    Guerra Fria no apenas elementos tidos como tnicos,mas tambm, tenses polticas entre

    governos e atores privados operando em ambientes permissivos, falncia do aparato estatal,

    ditaduras que violam constantemente os direitos humanos, guerras civis, entre outras

    caractersticas. A partir dos anos 1990, guerras civis ocorreram no oeste da frica, concentradas

    primeiramente na Repblica Democrtica do Congo, Ruanda, Burundi e Sudo e posteriormente

    em pases como a Nigria, Libria, Serra Leoa e Costa do Marfim. Conflitos ocasionados pela 71 Theverynotionofinternationalsecurityisbeingredefined,withtheshift towardshumansecuritymakingtheindividualareferentobjectofsecurity. Tradues minhas. TARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Security Dialogue: Vol. 38, N. 49, 2007. 72WEISS, Thomas G. Humanitarian Intervention: War and Conflict in the Modern World. Cambridge: Polity, 2009. p. 51.

  • 35

    fragmentao da sociedade ou do governo eclodiram, tambm, na sia central, particularmente

    no Afeganisto, Cucaso e Caxemira, alm de continuarem, redimensionadas, na Amrica do Sul

    em pases como Colmbia, Peru e Bolvia.73

    Na dcada de 1990, guerras caracterizadas como civis representavam 94% dos conflitos

    com mais de 1000 mortes relacionadas ao campo de batalha.74 Estas crises foram assinaladas por

    grande derramamento de sangue e de refugiados, doenas, desnutrio e fome. Os dados a seguir

    so oferecidos por Weiss. 75 No caso da Repblica Democrtica do Congo, o nmero estimado de

    mortos chegou a 4 milhes; em Darfur, houve 400.000 mortes; e em Ruanda, este nmero

    alcanou 800.000. Na Bsnia-Hezergovina houve 250.000 mortes, entre 20.000 e 50.000

    estupros e 2,7 milhes de refugiados. Na Somlia, 4.5 milhes de pessoas necessitaram de

    assistncia, e entre 200.000 e 350.000 morreram de fome. Hoje, na Repblica Democrtica do

    Congo, entre 30.000 e 40.000 pessoas morrem mensalmente devido a doenas e desnutrio

    relacionadas ao conflito, e em Uganda, 2 milhes de deslocados vivem em 200 campos de

    refugiados De acordo com Marshall, na era ps Guerra Fria (1989-1999), em geral, guerras

    principalmente as civis, mas algumas interestatais, mataram mais de 1.5 milhes de pessoas.76

    As crises tnicas, assim como guerras civis, e a instabilidade poltica ocorrida nos pases

    doterceiromundosoresultadodoprocessodedescolonizaoedainflunciadaspotncias

    nas ditaduras militares durante a Guerra Fria. Entretanto, com o fim da era bipolar, as influncias

    mudaram. Atualmente, estes pases so influenciados por atores no estatais com importante

    papel e poder nas economias financiadas pelas crescentes atividades ilcitas, alm da presena

    cada vez maior da China, tanto na sia quanto na frica.

    As novas formas de conflito armado apresentam-se em pases que possuem reas

    territoriais fragmentadas e sem nenhuma autoridade. Estes conflitos, ocasionados pela crise ou

    falncia estatal, so lutados por beligerantes com poderes mnimos, freqentemente pelos

    mltiplos movimentos de oposies armadas a nvel interno que ignoram as delimitaes das

    73 Idem. p.61. 74 O campo de batalha das guerras intraestatais no so convencionais como das guerras inter-estatais, caracterizados por linhas de frentes. Eles apresentam violncia que gravita em relao aos recursos e ao trfico, para os quais fronteiras no tem nenhum significado. WEISS, Thomas G. Humanitarian Intervention: War and Conflict in the Modern World. Cambridge: Polity, 2009. pp. 61, 62. 75Idem. pp. 51, 53. 76 Dados retirados de Monty G. Marshall, Center for Systemic Peace. MajorEpisodesofPoliticalViolence,1946-2008. Disponvel em http://www.systemicpeace.org/inscr/MEPVcodebook2008.pdf. Acesso 02 de outubro de 2011.

    http://www.systemicpeace.org/inscr/MEPVcodebook2008.pdf

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    fronteiras reconhecidas internacionalmente. Em vrios pases os governos centrais possuem

    autoridade somente enquanto membro das Naes Unidas, na capital nacional e sobre as

    principais indstrias de exportao. Segundo Weiss, eles se diferem de Estados soberanos

    convencionais em termos de controle autoritrio sobre as populaes e recursos. A nvel

    territorial, eles sofrem de uma 'separao', uma negao de sua autoridade exclusiva como

    Estado ".77

    DefinidoscomoEstadosFracassadosouEstadosFalidosestespasesrepresentamos

    lugares aonde as intervenes militares ocorreram ou possuem caractersticas para sua

    implementao. Estado Fracassado descreve Estados fora dos modelos ocidentais enquanto

    unidade nacional, prestgio poltico, riqueza e poder militar. Tambm no possuem capacidade

    de buscar por interesse nacional devido falta de recursos financeiros, tecnologia e recursos

    humanos. O termo Estado Falido foi cunhado por Gerald Helman e Steven Rather aps a

    imploso da Somlia em 1992