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Divina Eterna Vieira Marques RESPONSABILIDADE E SUSTENTABILIDADE: UMA ÉTICA PARA O DESENVOLVIMENTO 2007 Goiânia

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Divina Eterna Vieira Marques

RESPONSABILIDADE E SUSTENTABILIDADE:

UMA ÉTICA PARA O DESENVOLVIMENTO

2007 Goiânia

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Divina Eterna Vieira Marques

RESPONSABILIDADE E SUSTENTABILIDADE:

UMA ÉTICA PARA O DESENVOLVIMENTO

Tese apresentada ao Programa de Doutorado em

Ciências Ambientais, da Universidade Federal de

Goiás, como requisito parcial para obtenção do

título de Doutora em Ciências Ambientais.

Orientador: Prof. Dr. Adriano Naves de Brito

2007 Goiânia

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DIVINA ETERNA VIEIRA MARQUES

RESPONSABILIDADE E SUSTENTABILIDADE: UMA ÉTICA PARA O

DESENVOLVIMENTO

Tese apresentada ao Programa de Doutorado em Ciências Ambientais da

Universidade Federal de Goiás, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora

em Ciências Ambientais.

Aprovada em _____de_____de_______.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Prof. Dr. Léo Pessini – Centro Universitário São Camilo (SP)

______________________________________________

Prof. Dr. José Eduardo de Siqueira – Univ. Est. de Londrina

______________________________________________

Prof. Dr. José Nicolau Heck – UFG

______________________________________________

Prof. Dr. Leandro Gonçalves Oliveira - UFG

______________________________________________

Prof. Dr. Adriano Naves de Brito – UNISINOS

Presidente da Banca

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Dedico este trabalho

Ao querido amigo Felice Fontana, pelo apoio incondicional.

Aos meus pais, meus irmãos e sobrinhos.

Aos meus filhos, Marcelo e Luciano, na amorosa expectativa de

que lhes seja útil o exemplo de esforço e obstinação.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Prof. Dr. Adriano Naves de Brito, pelo aprendizado, pela

paciência e, especialmente, pelo crédito de confiança nos momentos em que eu mesma

duvidei de que seria capaz. A Danielly, pelos livros que foram fundamentais. Aos

amigos de verdade, pelo apoio nas horas difíceis. À força criadora do universo, por

manter acesa em mim a chama da vida e da recriação.

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“Por repensar o conceito de responsabilidade e sua extensão,

nunca antes concebido, sobre o comportamento de nossa espécie

inteira em relação à natureza, a filosofia estará dando o primeiro

passo em direção a assumir essa responsabilidade. Como estou

de partida agora, é meu desejo para a filosofia que persevere

nesse empenho, sem medo de qualquer eventual dúvida referente

ao seu sucesso. O século que está chegando tem direito a essa

perseverança”.

HANS JONAS

[em 25 de maio de 1992, em Munique, sua

última palestra, um ano antes de morrer]

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Resumo

Este trabalho parte do princípio de que os parâmetros da ética tradicional não são suficientes para as ações do homem na era tecnológica, resultando desse “desamparo” ético incertezas quanto ao futuro, graves desastres, riscos reais para os seres vivos e o planeta. Um percurso de caráter interdisciplinar desenvolve-se a partir daí, com o propósito de demonstrar, em linguagem filosófica, que a intersecção entre a sustentabilidade e o desenvolvimento faz-se pela responsabilidade. Ou seja: a nova ética é a ética da responsabilidade. A pesquisa, de natureza bibliográfica, está centrada nas obras do filósofo alemão Hans Jonas, especialmente O Princípio responsabilidade: uma ética para a civilização tecnológica. Al Gore e Capra, bem como outros filósofos e diversos estudiosos de diferentes áreas, como a biologia, a economia e a sociologia, também se encontram na construção da base argumentativa do trabalho. Este compõe-se, além da introdução e da conclusão, de quatro capítulos. O primeiro discute, à luz da filosofia, o desenvolvimento tecnológico, enquanto apresenta o pensamento e a obra do filósofo que constituem o eixo do trabalho. Sob o título “Bioética”, os dois capítulos seguintes abordam temas e problemas controversos suscitados pela relação entre novas tecnologias, o homem e o meio ambiente: engenharia genética, acidentes climáticos, eugenia e outros. A análise desenvolvida no quarto capítulo detém-se no problema do aquecimento global, por sua atualidade e gravidade, comprovada nas sérias conseqüências econômicas, sociais e sanitárias, confirmadas pelos especialistas e os fatos. A proposição da responsabilidade e da sustentabilidade como uma ética para o desenvolvimento é formulada na parte final desse último capítulo. A argumentação que se desenvolve na conclusão baseia-se na constatação de que não há desenvolvimento sem recursos naturais, pois é sobre eles que a economia se sustenta. Logo, sem preservação não haverá desenvolvimento. A busca de uma razão para preservar é o fio condutor de todo o trabalho, que se mostra com clareza na conclusão. Racionalmente, os motivos apontam para o desenvolvimento, que está vinculado, de forma direta, à sustentabilidade, cuja premissa é a ética da responsabilidade, uma vez que suscita indagações: por que preservar? Para quê? Fecha-se o círculo entre a sustentabilidade, o desenvolvimento e a ética de Hans Jonas, considerando-se que a existência da Terra é um pressuposto básico para as indagações filosóficas e a conseqüente revelação do SER humano. Palavras-chave: ética; responsabilidade; tecnologia; sustentabialidade; meio ambiente.

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ABSTRACT

RESPONSIBILITY AND SUSTAINABILITY: AN ETHICS FOR DEVELOPMENT This work is based on the principle that the parameters of traditional ethics are not sufficient for human actions in this technological era, resulting from this ethical “abandonment” some uncertainties regarding the future, serious disasters, and real risks for the living beings and the planet. An interdisciplinary trajectory is developed under this perspective, aiming to demonstrate, in philosophical language, that the intersection between sustainability and development is carried out through responsibility. That is: the new ethics is the ethics of responsibility. This bibliographic research is centered on the books of the German philosopher Hans Jonas, mainly The imperative of responsibility: in search of ethics for the the technological age. Al Gore and Capra, as well as other philosophers, and several other authors from different areas, such as biology, economy, and sociology, are also part of the construction of the basis of this work. Besides the introduction and conclusion, this study includes four chapters. The first one discusses, under the philosophical perspective, the technological development, while it presents the thoughts and the book of the philosopher that constitute the axis of this work. Under the title of “Bioethics”, the two next chapters approach the controversial themes and problems generated by the relationship among new technologies, man, and the environment: genetic engineering, climatic accidents, eugenics, and others. The analysis developed in the fourth chapter includes global warming due to its current importance and severity, which can be seen in the serious economical, social, and sanitary consequences, confirmed by specialists and facts. The proposition of responsibility and sustainability as an ethics for development is established in the last part of this chapter. The argumentation developed in the conclusion is based on the evidence that there is no development without natural resources, because the economy is based on them. So, without preservation there will be no development. The search for a reason to preserve is the conducting line of all this research, which is shown clearly in the conclusion. Rationally, the reasons point to the development, indirectly linked to sustainability, which presents as its premise the ethics of responsibility, as it arouses inquiries: why should we preserve? What for? The circle encompassing sustainability, development, and Hans Jonas ethics is closed, considering that the existence of the Earth is a basic premise for philosophical questions and the consequent revelation of the human being. Key words: ethics; responsibility; technology; sustainability; environment.

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Sumário Introdução................................................................................................................................09

Capítulo 1 - A técnica e a existência humana

A ética de Hans Jonas................................................................................................................15

Sobre o agir humano..................................................................................................................20

Novas dimensões da técnica......................................................................................................23

A técnica e a transcendência......................................................................................................29

A ética em Kant – o ser e o dever..............................................................................................32

A ética, a técnica e o progresso..................................................................................................37

Capítulo 2 – Bioética: a responsabilidade pela vida

Breve histórico...........................................................................................................................45

O prolongamento da vida...........................................................................................................49

O direito de morrer.....................................................................................................................54

Transplante e doação de órgãos.................................................................................................74

Experiência com seres humanos................................................................................................79

Capítulo 3 – Bioética e o futuro da humanidade

Sobre a engenharia genética......................................................................................................89

O Projeto Genoma humano.......................................................................................................97

Questões de biossegurança......................................................................................................101

O determinismo genético.........................................................................................................104

Clonagem – a criatura se volta para a criação.........................................................................108

Eugenia positiva e negativa.....................................................................................................114

Capítulo 4 - Ética, responsabilidade e sustentabilidade

A ética, o homem e a natureza................................................................................................125

Aquecimento global: os efeitos mais visíveis.........................................................................131

Questões de economia, saúde e segurança..............................................................................139

Ética e sustentabilidade...........................................................................................................146

Conclusão ..............................................................................................................................156

Referências ............................................................................................................................164

Anexos

Anexo A - Efeito de Estufa....................................................................................................169

Anexo B - A elevação do nível do mar..................................................................................170

Anexo C - A elevação da temperatura global ......................................................................171

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Introdução

Na intersecção entre a responsabilidade e o desenvolvimento, encontra-se o homem

contemporâneo e suas relações com o meio ambiente. O mundo mudou e mudou

abruptamente. As novas tecnologias trouxeram radicais transformações, ao mundo e ao agir

humano. No entanto, o desenvolvimento tecnológico – que reuniu as ciências exatas e

biológicas – não se fez acompanhar, passo a passo, das ciências humanas, especialmente a

ética. Eis o ponto de partida deste trabalho: mostrar que a ética tradicional já não oferece

parâmetros suficientes para a atuação do homem. Como se trata de uma abordagem

interdisciplinar cujo eixo é a filosofia, mais especificamente, a ética, a linguagem também é

filosófica, ainda que os espaços sejam aqueles ocupados pela biologia, no segundo e no

terceiro capítulo, ou pela economia e sociologia, no quarto capítulo. Sob o prisma da ética, são

analisados os principais temas relativos ao meio ambiente, sempre em busca das conexões que

possam corroborar a tese de que é a ética o primeiro passo para a sustentabilidade, sendo

geradas daí possibilidades e propostas para o desenvolvimento.

No primeiro capítulo, o foco da filosofia, chamada a sustentar este estudo, fecha-se

sobre a técnica – essa dileta filha das ciências, que, através do conhecimento, libertou o

homem e modificou seu modo de agir e o mundo à sua volta. Foi nesse novo cenário, em que

não param de surgir possibilidades de intervenções jamais cogitadas na natureza – humana,

inclusive – que o pensador alemão Hans Jonas produziu, entre outras, uma obra de suma

relevância: Princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.

Essa obra constitui o eixo em que se apóia, não só esse capítulo, “A técnica e a existência

humana”, mas todo o trabalho.

Inicialmente, a argumentação caminha junto com o pensamento desse filósofo

contemporâneo, enquanto ele se dedica a analisar a relação do homem com a técnica, a fim de

mostrar que, antes da técnica moderna, o significado ético estava mais presente na relação

(direta) do homem com seus iguais e consigo mesmo. Como suas ações eram de alcance

efetivamente pequeno, os imperativos e as máximas da ética tradicionais bastavam ao agir

humano, da forma como ele se realizava.

Com as novas tecnologias, as ações e os seus objetos passaram a produzir

conseqüências de proporções tão inusitadas que já não podem ser abarcadas pela ética

tradicional. O poder do homem sobre a natureza adquire novas dimensões, advindo daí a

percepção de que a natureza é vulnerável – prova disso são os primeiros danos irrevogáveis.

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Agora, as ações do homem têm uma dimensão coletiva e cumulativa. Ou seja: é planetária.

Nasce, então, uma nova ciência: a ecologia. E com ela a constatação de que nada menos do

que a inteira biosfera do planeta Terra está sob a responsabilidade do homem, que sobre ela

detém o poder.

Muitos dos temas de que trata Hans Jonas habitam o ainda nebuloso campo

nomeado bioética – ética da vida – um termo criado, em 1970, pelo oncologista norte-

americano Van Rensselaer Potter. É nesse espaço que têm sido tratadas as preocupações

geradas pelas novas tecnologias – pauta de discussão especialmente entre os filósofos,

cientistas, antropólogos e políticos. Hans Jonas não chegou a trabalhar com a palavra bioética,

que ainda não era popularizada. Mas aborda questões atinentes ao que ela significa, no

Princípio responsabilidade, as quais aparecem discutidas de modo mais profundo e em Ética,

medicina e técnica., de modo mais prático. São principalmente essas duas obras que sustentam

a argumentação na abordagem da bioética, permeada por outras obras de Jonas e pelas últimas

obras publicações sobre o assunto.

A bioética é tratada, no segundo capítulo, a partir de um breve histórico, com

ênfase em seu alcance, como anuncia o título do capítulo: “Bioética – responsabilidade pela

vida”. Ao criar o termo, Potter pretendia estabelecer uma “ponte” da biologia com as demais

ciências – mais exatamente, a interdisciplinaridade. Tanto que o livro que escreveu sobre o

assunto intitula-se Bioética: ponte para o futuro. A palavra, como foi cunhada, buscava

abarcar não só as questões da área médica, mas tudo o que se relaciona à vida – e aí se deve

incluir também a natureza extra-humana. Da “ponte” inicial, o termo cunhado por Potter passa

à “bioética global”, envolvendo a saúde e assuntos da ecologia. Dez anos depois, torna-se

“bioética profunda”, pela aproximação com o conceito de “ecologia profunda”, do filósofo

norueguês Arne Naess. Neste trabalho, “bioética” tem o conceito de “ética da vida”,

englobando as coisas que dizem respeito ao homem, à natureza e à relação entre eles, ou seja,

o meio ambiente.

As questões da vida introduzem-se na discussão em tópicos correspondentes a

dilemas que a medicina começou a enfrentar a partir de situações geradas pela biotecnologia.

O primeiro deles é um questionamento que pende mais para a filosofia: “o prolongamento da

vida”, tendo em vista a possibilidade de se acrescentar mais tempo à média de vida do homem

– com a ciência de que isso nem sempre representará uma bênção, mesmo para aqueles que

têm vida “boa”. “O direito de morrer”, o tópico seguinte, analisa os casos em que a

parafernália da técnica prorroga indefinidamente não propriamente o tempo de vida, mas uma

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tal situação de penúria e sofrimento que o próprio paciente ou sua família preferem rejeitar (É

o caso de se pensar numa “boa morte”.)

Às vezes, o exercício do direito de morrer por parte de uns pode significar a

possibilidade para outros sobreviverem: o tópico é “Transplante e doação de órgãos”. O último

tema tratado nesse capítulo é “Experiência com seres humanos”. Algumas dessas experiências

têm dimensões históricas e foi por causa delas que a bioética tomou forma: a mais citada foi

protagonizada pelo nazismo. Autores há que defendem, em certos casos, a experiência com

pacientes, afirmando que esta foi e ainda é indispensável para o aperfeiçoamento de terapias

eficazes – desde que as regras sejam respeitadas, especialmente a do esclarecimento e

consentimento. Essas questões são tratadas à luz do Conselho Federal de Medicina e da

filosofia. Mas, a própria resolução do CFM é um convite à discussão filosófica.

O terceiro capítulo, “Bioética e o futuro da humanidade”, está ainda dentro dos

limites da biomedicina, embora os temas possam ser tratados pelas ciências exatas, humanas e,

especialmente, pela filosofia. O primeiro é “Sobre a engenharia genética”, cujo

desenvolvimento é considerado uma “revolução biotecnológica”, que tomou forma nos anos

70, tendo alcançado seu clímax nos anos 90, quando o Instituto Roslin, de Edimburgo,

anunciou ao mundo a clonagem de uma ovelha, batizada Dolly. Também vários camundongos

foram clonados na Universidade do Havaí. Nessa mesma década inicia-se o mapeamento

genético do homem pelo “Projeto Genoma Humano”, cuja primeira seqüência foi completada

no ano 2000. O seqüenciamento foi concluído em 14 de abril de 2006, com 99,99% das peças

do “quebra-cabeças” montadas. Foi aí que os cientistas descobriram que, para intervir no

funcionamento do organismo – a fim de prevenir ou curar doenças, por exemplo – não basta

saber onde os genes específicos se localizam: é preciso saber também como eles funcionam.

Aqui o horizonte de atuação que se descortina para os cientistas é imenso, eivado de dilemas e

incertezas – uma razão a mais para se estabelecerem parâmetros, principalmente éticos. Como

diz Jonas, “a ética é o lenitivo da técnica”.

A engenharia genética, que torna possível a manipulação ou o rearranjo dos genes,

começou a ser desenvolvida dentro da biotecnologia, tendo em vista os avanços tecnológicos.

Esta, por sua vez, refere-se às tecnologias biológicas da engenharia genética: tecnologia do

DNA recombinante, clonagem, fertilização in vitro, entre outros. A biotecnologia trata ainda

das tecnologias biológicas mais antigas ou tradicionais, tais como a seleção, a criação e o

cruzamento de animais e plantas, a utilização de microrganismos para produzir pão, vinho,

cerveja, iogurte ou queijo. É esse ramo da ciência que permite aos cientistas a transferência de

genes entre espécies que jamais se cruzariam na natureza, como por exemplo o gene de um

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peixe transferido para um tomate ou um morango; ou genes humanos transferidos para vacas

ou ovelhas, criando os chamados OGMs – organismos geneticamente modificados. O cientista

descobre, então, a tentação de brincar de criador e criatura.

Perguntas reverberam desde que as primeiras experiências de manipulação genética

humana foram cogitadas. Muitas, mesmo as de cunho emergencial, ainda estão sem respostas:

é ético fazer o diagnóstico pré-sintomático de doenças que não têm cura? Como os indivíduos

sadios poderão se proteger de discriminações por seguradoras e empregadores, em casos de

estado potencial de doença? Além da bioética, que se preocupa com as questões morais

advindas da biotecnociência, é preciso pensar na biossegurança, que visa estabelecer padrões

aceitáveis de segurança no manejo de técnicas e produtos biológicos. Foram abordadas neste

tópico questões atinentes à nova linha de riscos trazidos pela biotecnologia.

Quanto à clonagem humana, tratada no tópico “Clonagem – a criatura se volta para

a criação”, a primeira pergunta é sobre o seu produto final: o que será obtido dessa

experiência? Deve-se realmente obtê-lo? Esse objetivo é aceitável ou reprovável? Uma coisa é

certa: na engenharia genética, as coisas não funcionam como nas demais engenharias,

especialmente porque aqui o caráter de construção e intervenção deve considerar que já existe

um modelo original, uma matriz e sobre esta ainda não temos todas as informações. Ainda no

terceiro capítulo, discute-se “Eugenia positiva e negativa”.

No último capítulo, “Ética, responsabilidade e sustentabilidade”, são tratados os

problemas do meio ambiente propriamente ditos. Mas não sem antes passar pelas

considerações filosóficas, conduzidas por Hans Jonas, de que técnicas desenvolvidas para fins

pacíficos podem resultar tão perigosas quanto aquelas declaradamente agressivas, como as

destinadas a fins bélicos, por exemplo. Ele está falando das contravenções involuntárias, ações

que maltratam o planeta quotidianamente, de forma furtiva, em períodos mais longos ou mais

curtos e que são mais difíceis de se evitar porque estão mascaradas nos modos mil de se

relacionar com o meio ambiente.

Lutar contra isso é diferente de lutar contra uma guerra em que o crime é mais

evidente. Ao contrário da guerra, em que um NÃO se caracteriza pela ausência de todas as

ações beligerantes – começando no âmbito da política – uma decisão de não maltratar o meio

ambiente não pode simplesmente caracterizar-se pela abstenção de ações, nem é suficiente

uma decisão política. O desfrute da natureza é inevitável; a modalidade e a medida de o fazer é

que estão em discussão. Além do mais, se a técnica é fruto da liberdade do homem, cabe a ele

encontrar uma solução para as suas conseqüências.

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O principal enfoque do quarto e último capítulo é o aquecimento global. Já há

alguns anos, os cientistas vêm tentando mostrar que a liberação na atmosfera de dióxido de

carbono e de outros gases causadores de “efeito estufa” contribuiu significativamente para o

progressivo aquecimento registrado nos últimos 50 anos. No dia 2 de fevereiro do ano em

curso, representantes do Painel Intergovernamental de Mudança Climática—PIMC

apresentaram um novo relatório que confirma as influências antrópicas sobre o sistema do

clima. Essa informação vem ao encontro do que afirmam Jonas, Al Gore, Capra e outros

pesquisadores que tratam do meio ambiente. Também quanto aos objetivos há uma

aproximação: uns e outros buscam caracterizar o fenômeno, analisar suas conseqüências e

estudar possíveis alternativas para dirimir a emissão de gases que causam o efeito estufa.

O Princípio responsabilidade não trata da preservação do meio ambiente como um

fim em si mesmo. A preocupação de Jonas é com o espaço de permanência do homem como

humano, começando pelo planeta Terra e se estendendo às intervenções como a clonagem, a

eugenia e outros experimentos que possam intervir no “SER” humano. Sua busca é a verdade

do homem. Mas, diante da iminência dos problemas ambientais, essa busca é adiada, passando

ao primeiro plano a preservação do espaço sem o qual a revelação do “SER” fica

comprometida, porque corre-se o risco de não haver mais nem homem, nem humanidade.

Quando Jonas aborda as questões do meio ambiente, no último capítulo do

Princípio responsabilidade, o eixo condutor não é a natureza em si, mas a política. O objetivo

é refutar o “princípio esperança”, de Ernst Bloch, questionando os limites da “Utopia”

proposta pelo marxismo, uma vez que sua primeira condição é a abundância material, de modo

a satisfazer as necessidades de todos; e a segunda condição é a facilidade para adquirir essa

abundância. Diante dos problemas ambientais, antes de se pensar na abundância, é preciso

pensar na manutenção dos recursos naturais, sem os quais não haverá espaço, ou condições,

para uma boa vida, nem no capitalismo, nem no marxismo. Donde se conclui que nem os

princípios políticos, nem as proposituras econômicas podem subsistir sem os recursos naturais.

Esta é uma questão que antecede a preocupação com o vir-a-ser , com a revelação das futuras

gerações, especialmente porque preserva o espaço para essa geração e a próxima descobrirem

razões para pensarem sobre tais indagações.

Assim faz-se a ponte entre a ética , a sustentabilidade e o desenvolvimento. Não há

desenvolvimento sem recursos naturais, e a preservação destes está implícita na

sustentabilidade. Portanto, preservar, antes de ser uma questão ética, é uma questão de

sobrevivência - é o caminho da racionalidade.

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Primeiro Capítulo

A TÉCNICA E A EXISTÊNCIA HUMANA

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A ética de Hans Jonas

Na era tecnológica as ações do homem adquiriram dimensões globais. Os efeitos

dessas ações são cumulativos, alguns irreversíveis, e estão a ameaçar a natureza e o homem.

Esta não é uma ameaça que deva preocupar apenas as ciências naturais. As ciências humanas.

Ou as ciências exatas. De forma sábia e providencial os problemas do meio ambiente vêm

sendo tratados através da interdisciplinaridade desde o final do século XX, a partir da

conscientização de que a situação estava, cada vez mais, se agravando. Falar de “meio-

ambiente” significa falar de tudo o que rodeia o homem, inclusive o próprio homem – daí a

necessidade de uma abordagem interdisciplinar 1. E, na medida em que a ameaça à natureza

pode significar um risco à sobrevivência da humanidade, a discussão termina por levantar um

problema metafísico do ponto de vista teórico: por que o gênero humano deve continuar

existindo? Para que? Por que existe algo e não o nada? Esta é uma seara da filosofia.

A abordagem do meio ambiente neste primeiro capítulo é eminentemente

filosófica. Nos demais a intenção é entrelaçar outras áreas do conhecimento humano, num

exercício de interdisciplinaridade a ser conduzido pela linguagem filosófica. O ponto de

chegada é o desenvolvimento sustentável. Mas, quando se parte das ações do homem, é

preciso, então, adentrar o espaço da conduta humana. Daí decorre, de forma natural, uma

abordagem sobre a ética – a ciência da práxis: é a ética quem emerge no mundo atual como

um caminho embrionário e pragmático para tratar dos problemas do meio ambiente.

Não se trata da ética conceituada como parâmetro da conduta do homem, uma vez

que isto significa a valoração sob o ponto de vista do bem e do mal, mas não implica em

apontar caminhos para eventuais mudanças. O foco deste trabalho está centrado numa ética

1 Sobre a interdisciplinaridade, seria útil destacar as considerações do Prof. Ricardo Abramovay, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, feitas em 1995, durante um workshop direcionado ao Instituto Ambiental do Paraná. O enfoque se dá em torno da relação entre as ciências naturais e as ciências sociais, quando o cenário é o meio ambiente: “Quando se fala em meio ambiente não se trata apenas de compreender a dinâmica de certos processos naturais, mas sim de relacionar esta dinâmica com aquilo que, em última análise, a está cada vez mais determinando: a ação humana modifica um conjunto de processos naturais que devem ser compreendidos de maneira minuciosa e esta modificação, por sua vez, incide de maneira frequentemente nefasta sobre as próprias condições de vida humana. Os programas de pesquisa em meio ambiente não se limitam, entretanto, a constatar e compreender a dinâmica de destruições e recomposições a que levam as ações humanas sobre os ecossistemas: eles também procuram formular alternativas às situações existentes e nisso também diferem da abordagem convencional dos biólogos em estudos de ecologia” (Abramovay, 1995, p. 9). Na conclusão ele observa que “ há um preocupante contraste entre a supervalorização das ciências naturais e a subestimação da importância das ciências sociais nos estudos de problemas do meio ambiente”. Segundo ele, “projeta-se uma imagem de fraqueza das ciências do homem que parecem incapazes de oferecer conhecimentos empíricos sólidos e escapar a generalidades” (Abramovay, 1995, p.22).

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que venha se tornar um instrumento de mudanças: mudança quanto às atitudes, quanto à

forma de ver o mundo, quanto à forma de agir. Naturalmente que esta deve ser uma nova ética,

formatada para a contemporaneidade, tendo como moldura a globalização – que foi

alavancada a partir do desenvolvimento tecnológico.

A ética de Hans Jonas não é a única “nova ética” que vem inovar os preceitos

defendidos pela ética tradicional. Alguns autores inauguraram uma outra maneira de ver o

mundo, como é o caso da percepção Holística – também chamada de ecologia profunda ou

Ética da Terra. Ela foi proposta pelo filósofo norueguês Arne Naess, em 1973, como uma

forma de se contrapor ao uso dos recursos naturais, como ele vinha sendo feito. Um de seus

principais representantes é o físico Fritjof Capra, para quem existe hoje no mundo uma crise

de percepção. Com isso ele quer dizer que os problemas políticos, econômicos e sociais são

tratados separadamente, apesar de estarem interligados. Apesar de não se sustentar na

filosofia, a abordagem de Capra pode ter um embasamento filosófico na medida em que ele

também sugere uma nova ética, sem, no entanto, dar-lhe um contorno. Dentro desta linha estão

ainda Michel Serres, Hector Leis, Leonardo Boff. Pode-se falar ainda da Ética da compaixão,

cujos princípios estão centrados no budismo. Na ética solidária, como proposta de Karl Otto

appel, ou na ética do respeito universal e igualitário, defendida por Ernst Tugendhat.

A diferença entre as novas éticas e a ética de Hans Jonas é que em Jonas a

responsabilidade é não só o “Princípio”, o ponto de partida, como também o próprio caminho

a ser percorrido. Temos aqui um “Imperativo”. Sem contar que suas propostas alcançam as

questões práticas a serem adotadas no espaço político e econômico. Daí o entendimento de

que é em Jonas que pode ser buscada a fundamentação adequada para a compreensão dos

problemas suscitados pelo avanço da tecnologia e, compreendendo esses problemas, alinhavar

uma saída que possa evitar as piores conseqüências. Essa saída pressupõe a prática do

desenvolvimento sustentável. O presente trabalho tem como eixo a principal obra deste

filósofo: “O princípio responsabilidade – ensaio de uma ética para a civilização tecnológica” -

uma das razões pelas quais ele recebeu o título de honoris causa pela Freie Universitä Berlim2.

2 A obra foi escrita originalmente em alemão – Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer ethic für die Technologische Zivilisation (1979). Para o presente trabalho, foi feita, inicialmente, uma leitura da tradução italiana – Il principio responsabilità - Un’etica per la civiltà tecnologica (1990 e 1993), que lhe valeu homenagem e prêmio em Udine, pouco antes de seu falecimento em fevereiro de 1993, em New Rochele, New York. Foi vista também a versão norte americana revisada pelo próprio Jonas, com a colaboração de David Herr, apresentada com o título “The Imperative of Responsability. In Search of an Ethics for the Tecnological Age (Chicago, 1984). E recorreu-se para as citações à tradução que Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez fizeram diretamente do original em alemão e que chegou às livrarias em setembro de 2006, através da Editora PUC/Rio e Contraponto Editora. O autor explica na introdução do livro, versão italiana, que a decisão de escrever referida obra em alemão, depois de dezenas de publicações quase que exclusivamente em inglês, não deve ser entendida como uma razão sentimental. Foi uma consideração objetiva em relação à sua idade avançada (ele estava então

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Nascido na Alemanha, Hans Jonas é considerado um dos maiores filósofos

contemporâneos, apreciado teórico do ambientalismo, elemento-chave do Partido Verde

alemão. Biólogo, além de filósofo, está entre os que deram início ao debate sobre a bioética,

tendo escrito especificamente a respeito do assunto o livro Técnica, medicina ed ética(Torino,

1997). Em Marburgo, sob a orientação de Bultmann, Husserl e Heidegger, iniciou uma

pesquisa que faria dele um dos maiores especialistas em gnosticismo – uma síntese desses

estudos está no volume La religione gnostica (1958). O princípio vida – fundamentos para

uma biologia filosófica (Petrópolis, 2004); Dalla Fede antica all’uomo tecnológico (Bologna,

1991); Dio dopo Auschwitz (Gênova, 1989) e Scienza come esperienza personale (Brescia,

1992) são as suas principais obras. Em meio aos estudiosos que buscavam orientação junto a

Heidegger, Jonas teve como companheiros grandes filósofos: Hannah Arendt (1906-75),

Herbert Marcuse (1898-1979) e Karl Lowith (1897-1973) 3.

Teria o pensamento de Heidegger influenciado Hans Jonas? Ele diz que sim, bem

mais que Bultmann no que concerne ao pensamento. Mas este último teria nutrido por Jonas

um sentimento de amizade paterna e a imagem que ficou dele foi a de um homem caloroso,

amigável. Além disso, a ele Jonas deve o tema da sua sucessiva atividade de pesquisa sobre a

com 74 anos): “Poiché un’equivalente formulazione nella língua acquisita mi costa ancor sempre il doppio o addirittura il triplo del tempo riquiesto da quella nella mia língua madre, ho creduto, in considerazione sia dei limiti della mia vita sai dell’oggetto, di dover scegliere per la stesura,dopo i lunghi anni del lavore concettuale preparatório, la via piu breve, che comunque si è rivelata ancor sempre sufficientemente lenta” (Prefacio do autor escrito nos EUA em julho de 1977 para a edição italiana de 1990 e 1993 ). É bom lembrar que Jonas emigrou em 1933 para a Inglaterra, morou na Palestina, Canadá e, finalmente, nos Estados Unidos, onde faleceu em 1993. Voltou à Alemanha apenas por questões de trabalho. 3 Em Heidegger’s Children: Sins of the father (Princeton University Press, 2001), Richard Wolin discorre sobre a influência que Heidegger teria exercido sobre Arendt, Marcuse, Lowith e Jonas. Leônidas Hegenberg, do Instituto Brasileiro de Filosofia, comenta o livro numa sinopse feita para a Crítica – revista de filosofia e ensino. “Estudiosos que analisaram o livro de Wolin ressaltam que ele errou ao considerar Arendt, Jonas, Lowith e Marcuse como discípulos de Heidegger, pois na verdade, eles foram frutos de sua época. Errou, ainda, ao deixar de lado Leo Strauss (1899-1973), um dos mais importantes judeus que estudaram com Heidegger. O erro mais grave, porém, seria o de supor que Heidegger adotava certos princípios morais que, aparentemente, na opinião desses críticos, ele de fato não teria abraçado”. (http//www.criticanarede.com/lds_heidegger.html – consulta feita em 24/04/2006). Em Jonas Sull’orlo dell’abisso – conversazioni sull rapporto tra uomo e natura (2.000), Jonas é questionado durante entrevista a respeito da adesão de Heidegger ao nazismo. A resposta vem carregada de mágoa: “Foi para mim uma terrível, amarga desilusão que não dizia respeito somente à pessoa, mas também à força da filosofia de preservar os homens de uma coisa similar. Então me pareceu um fiasco da filosofia o fato de que essa não houvesse tido a força de proteger Heidegger daquela estrada errada (...) Que falência da filosofia! Não devia acontecer (...) Mas que o mais importante, o mais original pensador do meu tempo houvesse aderido ao nazismo foi para mim um golpe tremendo” (p.51). Na mesma entrevista, Jonas disse sobre Hanna Arendt que foi a melhor amiga que teve. Acrescentou que não tiveram uma relação amorosa, mas uma autêntica amizade. E que, no entanto, tomaram caminhos diversos, não trocando, por isso, mais idéias a respeito de seus trabalhos, com exceção de quando ele lhe mostrou um importante capítulo do Princípio Responsabilidade. Depois de haver lido, Arendt respondeu: “Uma coisa é certa, Hans. Este é o livro que o bom Deus tinha em mente para você” (p.53).

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gnose. Quanto a Heidegger era enigmático, fechado. O próprio Jonas fala sobre isso numa

obra que traz suas últimas entrevistas e a participação em mesas-redondas na Alemanha:

No que concerne ao pensamento Heidegger teve sem dúvida influência maior. Ele foi também uma figura muito mais imponente na história do pensamento em respeito a Bultmann. Bultmann era um estimável estudioso do Novo Testamento, mas no tocante à originalidade do pensamento, Heidegger foi um precursor: Heidegger descobriu uma nova terra, o mesmo não se pode dizer de Bultmann. E o mesmo Bultmann foi tocado pelo fascínio de Heidegger e em um certo sentido sujeitou-se a ele filosoficamente. (...) Mas Bultmann era um homem muito mais nobre que Heidegger, muito mais reto. Bultmann assumiu totalmente a minha defesa, a defesa de seu estudante judeu, o que era uma coisa paradoxal (Jonas, 2000, p.51/52).

Nas palavras de Jonas, era muito difícil dizer o que se passava com Heidegger.

Sim, era humanamente curioso, escutava às vezes com boa vontade as pessoas e delas pedia

alguma notícia. Mas o que vinha verdadeiramente do seu íntimo nunca era claro. “Enfim – diz

Jonas – não se sabia o que ele pensava de alguém. (...) Como era Heidegger? Não se sabia de

preciso. De qualquer modo tinha-se a impressão de que vivesse no seu mundo mental e não

deixava que o lado pessoal e humano de seus estudantes o tocasse verdadeiramente. Mas não

estou seguro. Ele era muito fechado” (Jonas, op. Cit.52). Jonas arremata que nunca deixou de

dar um grande valor ao que aprendeu com Heidegger

Nas suas primeiras obras Heidegger ocupa um espaço considerável. No entanto no

Princípio Responsabilidade, Heidegger é praticamente ignorado – o que não deixa de ser

sintomático. De qualquer forma, não se pode negar a presença da angústia existencialista de

Heidegger na busca que Jonas desenvolve por um sentido para a vida. Tanto que os estudos de

Jonas foram direcionados para uma ética que vai se preocupar com a técnica no sentido de

que esta possa tornar-se um empecilho para a revelação do vir a ser do homem. Uma ética que

tem sua fundamentação na metafísica, mas que, no entanto, alinhava caminhos práticos. Esta é

a diferença entre os dois: os estudos de Heidegger a respeito da técnica são eminentemente

metafísicos/filosóficos – o que não quer dizer que ele tenha parado onde Jonas começou. Ou

que Jonas tenha iniciado onde ele terminou. Simplesmente fizeram abordagens diferenciadas.

A de Jonas é uma ética contemporânea e de contornos que conduzem à prática. A

metafísica está nas entrelinhas e às vezes de forma explícita, quando ele percorre as

abordagens dos filósofos que buscaram uma fundamentação para a existência do homem.

Feito isso, a ética jonasiana vai culminar em um novo modelo de metafísica – uma metafísica

que tem por preocupação o vir-a-ser do homem. Esse é um dos principais diferenciais da

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responsabilidade como ela é tratada por Hans Jonas – aqui a palavra não carrega o sentido

trivial da imputabilidade e sim o sentido de “cuidar de”.

Evidentemente que Jonas não foi o primeiro a falar de ética da responsabilidade.

Segundo Gilberto Dupas (2001, p. 78), o princípio “da” responsabilidade (e não o princípio

responsabilidade) teria sido enunciado por Platão como aquele princípio que governa a ética e

a moral, tornando cada um responsável pelo seu destino. Para Dupas, o novo princípio

responsabilidade, de Jonas, corresponde à idade do pós-dever, à sociedade pós-moralista, ao

minimalismo ético. “Trata-se – prossegue Dupas – de uma ética ‘razoável’, um esforço de

conciliação entre os valores e interesses”. Mais adiante, na mesma página:

A ética de Jonas – sua proposta para nossa civilização tecnológica – é metafísica, ontológica e rediscute os ideais de progresso. Explora as facetas da responsabilidade em relação ao futuro longíquo pelo qual somos responsáveis. Mas o princípio da realidade comanda igualmente a doutrina de Jonas, na sua pretensão de distanciar-se das diversas utopias. O objeto da técnica contemporânea é declaradamente o sujeito enquanto tal, a essência do homem é seu objeto. Questões como o prolongamento da vida, o controle do comportamento e a manipulação genética são um salto qualitativo pleno de dúvidas e perigos. Seu problema é: como refundar a ética se Prometeu está liberto, se o mal-estar da civilização toma conta da terra, se estamos voltados à impotência ou aos excessos do poder? (Dupas, 2001, p.79).

Leonardo Prota, in Ética, Ciência e Responsabilidade, vai buscar no pensamento

de Max Weber as raízes da ética da responsabilidade - uma doutrina apenas sugerida por

Weber e que não foi por ele apresentada de forma autônoma, nem desenvolvida plenamente.

Prota explica que em Weber a ética da responsabilidade refere-se à moral individual, cujos

princípios estão ancorados no imperativo categórico Kantiano, que seria, segundo Weber,

“absolutamente genial para caracterizar uma infinidade de situações éticas” (Prota, 2005,

p.91/92). Em um outro artigo, o organizador do livro, José Eduardo de Siqueira, presidente da

Sociedade Brasileira de Bioética (2005/2006) fala sobre o mesmo assunto, explicando antes

que a diferença entre Weber e Hans Jonas é que Weber reconhece a validade e a eficácia do

imperativo categórico kantiano e o incorpora à sua reflexão. Vejamos:

Kant pretende fundar racionalmente uma moralidade para o homem universal, enquanto a questão para a ética de responsabilidade, na elaboração de Max Weber, é a do individuo situado em seu tempo. Contudo, Weber refuta a crença de que o imperativo kantiano consista em algo puramente formal; ao contrário, ele considera que esse imperativo corresponda a uma formulação absolutamente original para caracterizar uma infinidade de situações éticas, tanto que o núcleo da moral kantiana

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– o imperativo categórico, o ideal de pessoa humana e a diferença entre máxima e lei – incorpora-se à ética de responsabilidade (Siqueira, 2005, p.185).

A diferença em Jonas está no fato de que aqui o que se discute não é somente uma

situação ética e sim a ação do homem tendo como foco suas conseqüências para o futuro. Mais

que isso, ele está se referindo às ações coletivas frente às novas tecnologias e seus efeitos

cumulativos. Esta é uma ética planetária e o que se busca é um sentido para preservar o meio-

ambiente, os recursos naturais, na medida em que é preservado o próprio espaço de

conservação do humanismo do homem. A seguir, uma análise dos principais pontos do

primeiro capítulo do Princípio Responsabilidade.

Sobre o agir humano

Explicada através de Deus ou de Darwin, a existência humana foi precedida pela

existência da natureza. Disto ninguém duvida. O que se discute é a relação entre homem e

natureza, mais especificamente a relação de poder entre os dois. Jonas inicia sua abordagem a

partir do coro de Antígona , de Sófocles, onde se conta a saga do homem para domar a

natureza. Esse homem apossa-se do fogo e liberta-se da ignorância ou da falta de

conhecimento. A natureza já não é um desafio tão grande e, de certa forma, é passível de ser

domada: seja o mar, o vento, a terra, os pássaros, o cavalo, o touro, a linguagem, o pensamento

que voa como o vento, a palavra, os rigores das tempestades e do gelo inóspito. Nomeado

como Prometeu Desacorrentado, que roubou dos deuses o fogo, dando início à sua autonomia,

esse homem foi na verdade libertado pelas ciências, através do conhecimento, especialmente a

técnica.

O Coro de Antígona, comentado por Jonas, mostra que essa liberdade tem um

sentido angustiante na medida em que adquire contornos de uma irrupção violenta e

violentadora na ordem do cósmico, da temerária invasão do homem nas várias esferas da

natureza, graças à sua infatigável inteligência. De certa forma profético, esse canto já trazia

em si o tom da tecnologia. Ele louva o milagre da evolução humana, este milagre como

sinônimo de controlar a natureza extra-humana. Mas, as liberdades do homem não lhe

permitiam, então, alterar a natureza dos habitantes do mar, da terra e do ar, nem prejudicar

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suas forças geradoras. O homem ainda se sentia pequeno diante da natureza e seus

empreendimentos não causavam danos ao meio ambiente.

O Coro não previa que as ações do homem iriam percorrer uma trajetória de

conquistas infinitas. Sim, Prometeu foi castigado pelos Deuses. Estaria também o homem na

iminência de ser castigado pela técnica? A natureza já não é a casa do homem e muitas vezes

precisa ser sacrificada para que ele construa o seu próprio espaço: a cidade. É nesse espaço

que a existência do homem vai encontrar abrigo, agora que ele adquiriu a faculdade do

discurso, da reflexão e da sensibilidade social. Ora, se não foi capaz de controlar inteiramente

a natureza, o homem não o fez também no espaço por ele criado, malgrado toda a liberdade

que lhe concede a autodeterminação e o arbítrio. As coisas do homem são vulneráveis e estas

são condições básicas da existência humana. Jonas continua:

Sim, a inconstância do fado humano assegura a constância da condição humana. O acaso, a sorte e a estupidez, os grandes niveladores nos assuntos dos homens, atuam como uma espécie de entropia e permitem que todos os projetos desemboquem por fim na norma eterna. Estados erguem-se e caem, dominações vêm e vão, famílias prosperam e degeneram – nenhuma mudança é para durar. No final, na compensação recíproca de todos os desvios passageiros, a condição do homem permanece como sempre foi. Assim, mesmo aqui, em seu próprio artefato, no mundo social, o controle do homem é pequeno, e sua natureza permanente acaba por se impor (Jonas, 2006, p.33)

Se a cidade permanecia sob a inteira responsabilidade do homem, por ser obra de

sua criação, com a natureza era diferente. A natureza não era objeto de tal responsabilidade;

esta provém-se a si mesma e, se adequadamente solicitada, proporciona a provisão, entre

outras, da espécie humana. Historicamente falando, é recente a preocupação do homem com a

natureza. Não se falava em ética para esta relação, mas sim inteligência e inventividade. Já na

cidade, onde homens lidam com homens, a inteligência deve casar-se com a moralidade –

alma da existência. A ética tradicional habita esse espaço intra-humano, adaptada às

dimensões do seu agir.

Jonas enumera as características do agir humano com a intenção de mostrar que,

por serem essas ações àquela época limitadas, elas podiam ser norteadas pela ética tradicional.

E salienta que essa exposição é relevante para uma comparação com o estado de coisas da

forma como existem hoje. O primeiro aspecto das suas considerações diz respeito à relação do

homem com a tecné que até então era neutra tanto em relação ao sujeito quanto em relação ao

objeto, com exceção da medicina. Em relação ao objeto porque a arte envolvia de forma

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irrelevante a natureza das coisas , sem riscos de um dano duradouro à sua integridade. Em

relação ao sujeito porque a tecné, enquanto atividade, limitava-se à necessidade, sem a aura

do progresso. Em suma: a incidência sobre objetos não humanos não tinha relevância ética.

O segundo aspecto do agir humano antes do “progresso”, é que o significado ético

fazia parte da relação direta do homem com seus iguais, incluindo ai a relação consigo mesmo.

De onde se conclui que toda ética tradicional é antropocêntrica. Ora, , agindo nessa esfera em

que predomina a proximidade tanto temporal como espacial, a entidade homem e sua condição

básica era considerada em sua essência – não havia necessidade de se considerar o seu agir,

como objeto da tecné. Esse é o terceiro aspecto. No quarto aspecto, Jonas conclui que o bem

ou o mal do qual se devia ocupar o agir, se manifestava nas ações, na práxis mesma ou no que

ela contém de imediato. E não era objeto de planificação à distância. Esse distanciamento se

refere tanto ao tempo quanto ao espaço, significando com isto que o alcance das ações era

efetivamente pequeno. Ou seja: era mais fácil prever, definir objetivos e imputabilidade e

controlar as circunstâncias. Nas suas próprias palavras:

O comportamento correto possuía seus critérios imediatos e sua consecução quase imediata. O longo trajeto das conseqüências ficava ao critério do acaso, do destino ou da providência. Por conseguinte, a ética tinha a ver com o aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, com as situações recorrentes e típicas da vida privada e pública. O homem bom era o que se defrontava virtuosa e sabiamente com essas ocasiões, que cultivava em si a capacidade para tal, e que no mais conformava-se com o desconhecido (Jonas, 2006, p. 35/36).

Por último, Jonas observa que a ética tradicional bastava ao agir humano da forma

como ele se realizava. Todos os imperativos e as máximas da ética tradicional, por mais

diversos que possam ser do ponto de vista do conteúdo, mostram-se limitados à ação,

confinados a um círculo imediato. Jonas cita algumas das máximas principais: “Ama seu

próximo como a si mesmo”; faze aos outros aquilo que querias fosse feito a você mesmo”;

“Direciona seu filho sobre o caminho da verdade”; “Aspira a excelência desenvolvendo e

realizando as melhores possibilidades do teu ser enquanto homem”; subordina seu poder

pessoal ao bem comum”; “Não trate o seu próximo como simples meio, mas sempre como um

fim em si mesmo”.

Em todas essas máximas o que se considera em relação ao agir é que o agente e o

outro participem de um presente em comum. Ou seja: o universo moral consiste de

contemporâneos e seu horizonte futuro é limitado à duração de suas vidas. O espaço está

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restrito ao lugar no qual o agente e o outro se encontram como vizinhos, amigos ou inimigos,

superior e subordinado, mais forte, mais frágil e tantas outras situações nas quais existe o que

fazer em termos de reciprocidade. Era dentro desse círculo restrito do agir que se orientava a

moralidade.

Também o saber exigido para afiançar a moralidade da ação, correspondia àquelas

limitações: não estamos falando do conhecimento do cientista ou do especialista, mas de um

tipo de saber acessível a todos os homens de boa vontade. Jonas está se referindo a uma

qualidade moral imanente e até de boas intenções – uma fundamentação eminentemente

Kantiana, de quem ele cita um exemplo tirado do prefácio da Fundamentação da Metafísica

dos costumes: “Em matéria de moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de

exatidão e perfeição mesmo entre as mentes mais simples”.

Seguindo ainda o raciocínio de Kant, Jonas assinala que em um curto prazo, num

espaço limitado, não se exige perspicácia ou experiência no percurso do mundo para fazer que

minha vontade seja moral. Nesse contexto de curto espaço pode ser decidido se uma ação é

boa ou má. Sua autoria nunca é posta em questão, e sua qualidade moral é imediatamente

inerente a ela. Jonas explica:

Ninguém é julgado responsável pelos efeitos involuntários posteriores de um ato bem-intencionado, bem refletido e bem executado. O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber, passível de predição; a pequenez de um foi tão pouco culpada quanto a do outro. Precisamente porque o bem humano, concebido em sua generalidade, é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é sempre o presente (Jonas, 2006, p. 37).

Novas dimensões da técnica

Tudo mudou. E vem mudando cada vez mais rapidamente. A técnica moderna

chegou trazendo com ela ações, objetos e conseqüências de proporções tão inusitadas que

não podem ser abarcadas pela ética tradicional.O poder do homem sobre a natureza adquiriu

novas dimensões. Apenas a admoestação voltada ao indivíduo em relação ao cumprimento da

Lei não seria mais suficiente. Até os deuses, que poderiam ser invocados para conter o curso

danoso da ação humana, estão há tempos desaparecidos. Sim, as antigas normas de justiça,

misericórdia, honestidade, etc. continuam sendo válidas para o imediato, para as esferas mais

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próximas, quotidianas no processo de interação humana. Mas, sobre essas esferas está a

sombra do crescente domínio do fazer coletivo – e neste domínio ator, ação e efeito não são

mais os mesmos. Isso impõe à ética uma dimensão de responsabilidade nunca antes

imaginada.

A intervenção técnica do homem impôs grandes alterações ao quadro herdado.

Uma delas é a crítica vulnerabilidade da natureza. Isso era insuspeitável até que começassem

a se manifestar os primeiros danos irrevogáveis. Tal constatação – que despertou a idéia e o

nascimento da ecologia – modifica por inteiro a concepção que tínhamos de nós mesmos

enquanto fatores causais no mais vasto sistema das coisas. É evidente que a natureza do agir

humano tem sido de fato modificada e que um objeto de ordem completamente nova, nada

menos do que a inteira biosfera do planeta, passa a fazer parte das coisas pelas quais os

homens devem se responsabilizar enquanto sobre isso têm poder. Jonas continua:

Um objeto de uma magnitude tão impressionante, diante da qual todos os antigos objetos da ação humana parecem minúsculos! A natureza como responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada. Que tipo de deveres ela exigirá? Haverá algo mais do que o interesse utilitário? É simplesmente a prudência que recomenda que não se mate a galinha dos ovos de ouro, ou que não se serre o galho sobre o qual se está sentado? Mas ‘este’ que aqui se senta e que talvez caia no precipício – quem é? E qual é o meu interesse no seu sentar ou cair? (Jonas, 2006, p. 39/40).

Jonas observa então, e é preciso concordar com ele, que há de permanecer uma

certa impostação antropocêntrica – tal qual existia na ética clássica - sempre que o destino

humano, em seu condicionamento natural, for o pólo de referência quanto ao interesse da

conservação da natureza. Nessas condições, esse “conservar a natureza” carrega em si um

interesse moral. A novidade entre a abordagem anterior e a atual está na equação moral

introduzida pelas conseqüências advindas da práxis técnica e sua nova ordem de grandeza. À

dimensão da técnica como ela se apresenta hoje se deve somar seus efeitos cumulativos – estes

se apresentam de tal forma que a condição das ações e suas escolhas sucessivas não se igualam

àquelas do agente inicial, resultando crescente e sempre mais em relação ao resultado daquilo

que já estava sendo feito.

Agora a grandeza das ações do homem adquire uma tal dimensão que os antigos

parâmetros não podem abarcar porque o que está em foco é uma ação coletiva e cumulativa. E

isto supera continuamente as condições dos atos individuais, desdobrando-se em situações sem

precedentes nas quais pouca influência tem os ensinamentos da experiência anterior. Ora,

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considerando-se o poder que o saber técnico confere ao agir humano, então o saber deve ter a

mesma magnitude da dimensão causal desse agir. No entanto, constata-se um distanciamento

entre as ações do homem e a sua capacidade de prever as conseqüências e adequações – esse

fato assume um significado ético.

E quando se fala de previsões, faz-se uma referência ao desconhecido. Isto quer

dizer que é preciso falar também, paralelamente, do reconhecimento da ignorância atual. Ter

consciência de que não se sabe é ter consciência também de que ainda existe muito para se

conhecer. A douto-ignorância de Sócrates assume aqui os contornos de um dever-saber – no

caso da técnica, um componente da ética vinculado à tarefa de se instruir sempre mais a fim

de se obter o auto-controle do nosso incomensurável poder. Essas considerações não eram

feitas até então.

Nenhuma ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da vida humana e o futuro distante, inclusive a existência da espécie. O fato de que hoje eles estejam em jogo exige, numa palavra, uma nova concepção de direitos e deveres, para a qual nenhuma ética e metafísica antiga pode sequer oferecer os princípios, quanto mais uma doutrina acabada (Jonas, 2006, p. 41).

Dentro dessa nova concepção, cabe perguntar se a natureza tem seus próprios

direitos. Se assim for, é preciso pensar não só na dimensão de uma nova ética, como também

repensar os fundamentos desta e da ética anterior: isso comportaria não só o bem humano, mas

também o bem das coisas extra-humanas, estendendo o reconhecimento de um fim em si

mesmo ao mundo natural. Mesmo que não se fale em direitos, é preciso, no mínimo, admitir

que a natureza tem a sua dignidade e não deve ser considerada como algo utilitário.

Sim, a natureza é dada em custódia ao homem. Ora, nenhuma ética tradicional,

exceto a religião, preparou-se para este papel de administração fiduciária e ainda menos o fez

a visão científica dominante a respeito da natureza. Ao contrário, segundo Jonas, esta última

priva-a de toda a dignidade teleológica. No entanto, esta totalidade do mundo vivente que se

encontra ameaçada parece emitir um apelo mudo no sentido de que seja preservada a sua

integridade. A respeito deste apelo, Jonas pergunta:

Devemos ouvi-lo, reconhecer sua exigência como obrigatória – porque sancionada pela natureza das coisas -, ou então devemos ver nele, pura e simplesmente, um sentimento nosso, com o qual devemos transigir quando quisermos ou na medida em que pudermos nos dar ao luxo de fazê-lo? A primeira alternativa, se tomada a sério em suas implicações teóricas, nos impeliria a estender a reflexão sobre as

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alterações mencionadas e avançar além da doutrina do agir, ou seja, da ética, até a doutrina do existir, ou seja, da metafísica, na qual afinal toda ética deve estar fundada. Mais não pretendo tratar aqui desse objeto especulativo, a não ser dizendo que deveríamos nos manter abertos para a idéia de que as ciências naturais não pronunciam toda a verdade sobre a natureza (Jonas, 2006, p.42).

A relação da natureza com o homem já havia sido questionada por Hannah Arendt,

em A condição humana, uma obra em que ela analisa a condição humana através do estudo

do labor, do trabalho e da ação e que seguramente influenciou Hans Jonas, principalmente

porque eram muito amigos. Para ela, foi em Kant que o utilitarismo antropocêntrico do homo

faber encontrou sua mais alta expressão – e isto estaria demonstrado na máxima Kantiana de

que nenhum homem deve jamais tornar-se um meio para um fim; todo homem é um fim em si

mesmo.

O que Arendt questiona é esse raciocínio em termos de meios e fins, especialmente

quando é o homo faber quem dita os critérios da sociedade. Ela não está dizendo que Kant

teria sido utilitarista ou que quisesse reformular ou conceitualizar os princípios do utilitarismo

do seu tempo. Ao contrário, afirma que ele desejava antes de mais nada pôr em seu devido

lugar a categoria de meios e fins e evitar que fosse empregada no campo da ação política. E a

natureza? Ora, se o homem é um fim em si mesmo, a natureza pode ser reduzida aos meios.

Eis o raciocínio de Arendt:

Não obstante, é inegável que sua fórmula [de Kant] tem origem no pensamento utilitário – como é o caso , também, de sua outra famosa e igualmente paradoxal interpretação da atitude do homem em relação aos únicos objetos que não se destinam ao ‘uso’, ou seja, as obras de arte, das quais ele disse que nos proporcionam ‘prazer destituído de interesse’. Pois a mesma operação que faz do homem o ‘fim supremo’ permite-lhe ‘submeter, se puder, toda a natureza a esse fim’. Isto é, reduzir a natureza e o mundo a simples meios, privando-os de sua dignidade e independência (Arendt, 2001, p.169).

Agir como homo faber leva o homem a instrumentalizar tudo o que o cerca,

rebaixando todas as coisas à categoria de meios e acarretando a perda do seu valor intrínseco

e independente. “E chega um ponto – continua Arendt – em que não somente os objetos da

fabricação, mas também a terra em geral e todas as forças da natureza – que evidentemente

foram criadas sem o auxílio do homem e possuem uma existência independente do mundo

humano – perdem seu valor por não serem dotadas de reificação resultante do trabalho”

(Arendt, 2001, p.170).

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A abordagem de Jonas não segue o mesmo rumo que seguiu Arendt, embora, em

certos momentos, no que toca à natureza do homem, eles se detenham em aspectos filosóficos

similares. O eixo de Arendt é o homem centrado na política. O eixo de Jonas é a vida e isso

significa incluir todos os seres viventes. Essa era já uma preocupação de Jonas nas décadas de

50/60, quando ele escreveu os ensaios que iriam culminar no Princípio Vida – fundamentos

para uma biologia filosófica. Neste livro Jonas faz uma análise singular do paradigma

evolucionista de Darwin: ao invés de fazer coro àqueles que diminuíram o status ontológico do

homem por ele se encontrar agora no pico da evolução dos animais - e isto significa integrar o

mesmo elenco ou fazer parte dele – ele eleva, justamente por causa disto, o status dos

animais. Já nos escritos daquela época , o filósofo falava na dignidade da natureza extra-

humana. Segundo ele,

Na grande indignação pelo ultraje que a doutrina da descendência animal teria feito à dignidade metafísica do ser humano, deixou-se de ver que, segundo o mesmo princípio, devolvia-se ao reino universal da vida um pouco de sua dignidade. Se o ser humano é aparentado com os animais, então os animais também são aparentados com o ser humano, e em diferentes graus portadores daquela interioridade de que, como o mais avançado de seu gênero, o ser humano tem consciência. Após a contração, forçada pela fé cristã na transcendência e pelo dualismo cartesiano, o reino da ‘alma’, com seus atributos do sentir, tender, sofrer e gozar, voltava graças ao princípio da gradação constante, a estender-se, a partir do ser humano, a todo o reino da vida” (Jonas, 2004, p. 67/68).

Ter ou não ter a natureza direitos em si mesma não é o ponto central da discussão

de Jonas, embora possa permear alguns pontos das questões levantadas. O eixo da sua

abordagem está no distanciamento que se criou entre a evolução da tecnologia e a evolução

das coisas ditas “humanas”, gerando daí uma lacuna que nos impede de encontrar respostas

para questões que a evolução tecnológica suscita, especialmente na área da engenharia

genética. Perguntas essas que já eram feitas à época dos filósofos da Grécia antiga, mas que o

homem moderno não conseguiu responder ainda. Quem é esse homem fruto das novas

tecnologias, que se supõe artífice do seu próprio destino? Quem somos nós? De onde viemos?

Para onde vamos? Estas são perguntas que podem ser proteladas. Mas, eliminar as condições

de permanência do homem, exaurindo a possibilidade de um confronto com a sua verdade,

isso é inadmissível.

Manter essas condições significa assumir a responsabilidade pela natureza exterior

ao homem: água limpa, ar puro, conservação das espécies, enfim, a terra como um todo, a

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terra como a “Casa do homem”. Mais que isso, se estende essa responsabilidade a tudo que diz

respeito ao SER DO HOMEM, o que significa pensar na relação consigo mesmo, na sua

relação com os outros homens e na própria essência da sua existência. Para que as questões

relacionadas ao ser do homem possam ser tratadas, é preciso garantir as condições

relacionadas à sua natureza exterior. A discussão empreendida por Jonas a respeito da

tecnologia tem esse propósito.

A tecnologia como vocação da humanidade é tratada por Jonas numa referência à

superação do homo-sapiens pelo homo-faber. Se numa época precedente a técnica constituía

um atributo das necessidades, agora ela se constitui em um impulso sem limites da espécie

humana: a técnica é o triunfo do homem sobre o objeto externo, assumindo, por isso, uma

relevância ética em virtude da centralidade ocupada por ela no rol das finalidades humanas.

Jonas não está falando do homem como indivíduo, mas da humanidade, dos homens

responsáveis por ações coletivas, em um tempo indefinido, sem limites. Ou seja: ações com

um efeito cumulativo e imprevisível – um espaço em que, sem dúvida nenhuma, a

responsabilidade se descortina como um horizonte relevante. Um espaço e um tempo que

estão a exigir um imperativo de um novo tipo:

Se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial, então a moralidade deve

invadir a esfera do produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve

fazê-lo na forma de política pública. Nunca antes a política pública teve de lidar

com questões de tal abrangência e que demandassem projeções temporais tão

longas. De fato, a natureza modificada do agir humano altera a natureza

fundamental da política (Jonas, 2006, p. 44).

A fronteira entre a cidade e a natureza foi suprimida. A cidade dos homens invade

a natureza terrestre, usurpa o seu lugar: desapareceu a diferença entre o natural e o artificial –

o natural foi tragado pela esfera do artificial. Agora existe um novo tipo de natureza e com ela

a liberdade humana se defronta em um sentido inteiramente novo. Jonas relembra um ditado

inocente que assumiria hoje um sentido preocupante: “Que se faça justiça mesmo que o

mundo pereça”. Esta é uma possibilidade que se tornou real diante dos feitos do homem.

Ora, se estão sendo vivenciadas questões que no passado não eram objetos da

legislação – e outras novas surgem diariamente – então a ética ideal deve ser pensada em

termos de um “DEVER SER”. Isto significa formatar um modelo de ética que faça brotar do

homem o que ele tem de melhor. Nessas condições cria-se o espaço e a intencionalidade para a

proposição de Jonas que é resguardar um mundo para as gerações futuras.

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O “Eu quero” preservar o mundo para o futuro da humanidade requer razões mais

fortes, requer razões para dizer SIM à vida. É preciso a existência de valores referenciais para

consentir que a vida vale a pena. É nesse sentido que a ética deve caminhar junto com a

técnica. E tudo indica que a técnica está levando vantagens. Sim, porque, de certa forma, agora

existe um saber preditivo que permite vislumbrar as ameaças, embora nem sempre seja

possível lidar com elas eficientemente. Se existem programas de computador que através de

simulação antecipam os efeitos das ações do homem na natureza, não existem, por outro lado,

instrumentos 100% eficientes para desestimular essas mesmas ações, uma vez que elas passam

pela intencionalidade do agente.

É bom relembrar que a intenção de Jonas não abarca a conservação do mundo pelo

mundo em si. E sim conservar o mundo para que os homens tenham uma casa que resguarde o

seu VIR-A-SER, até mesmo pensando na perpetuação dessa obrigação, como uma corrente

que perpetua as possibilidades de desvendar o sentido da existência humana. Nas palavras de

Jonas:

A presença do homem no mundo era um dado primário e indiscutível de onde partia toda idéia de dever referente à conduta humana: agora, ela própria tornou-se um objeto de dever – isto é, o dever de proteger a premissa básica de todo o dever, ou seja, precisamente a presença de meros candidatos a um universo moral no mundo físico do futuro; isso significa, entre outras coisas, conservar este mundo físico de modo que as condições para uma tal presença permaneçam intactas; e isso significa proteger a sua vulnerabilidade diante de uma ameaça dessas condições. Um exemplo poderá ilustrar a diferença que isso traz para a ética(Jonas, 2006, p. 45).

A técnica e a transcendência

Jonas se bate pela preservação do mundo, do espaço físico do homem visando a

sua revelação. Mas, resguarda, desde já, a crença de que a vulnerabilidade é intrínseca à

condição humana e, como tal, deve ser “salva”, preservada. Neste ponto ele vai “de encontro”

ao mestre Heidegger, para quem a técnica – não a técnica em si, mas o eterno questionamento

da sua essência - seria capaz de elevar o homem à sua condição suprema, ao seu desabrigar, à

busca da verdade. Ou seja: em Heidegger a abordagem adquire um caráter transcendental,

justo porque o que ele questiona é a essência da técnica e não propriamente as suas

conseqüências no vir a ser do homem ou no estar-aí do meio ambiente. Ele diz, textualmente:

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A essência da técnica moderna repousa na armação. Esta pertence ao destino do desabrigar. Os enunciados dizem outra coisa do que diz o discurso muitas vezes constante, de que a técnica é o destino de nossa época, onde destino designa algo que não pode ser desviado de um transcurso inalterável. Mas se pensarmos a essência da técnica, então experimentaremos a armação como um destino do desabrigar. Assim, já nos mantemos na liberdade do destino que de modo algum nos aprisiona numa coação apática, fazendo com que perpetuemos cegamente a técnica ou, o que permanece a mesma coisa, nos insurjamos desamparadamente contra ela e a amaldiçoemos como obra do diabo. Ao contrário: se nos abrirmos propriamente à essência da técnica, encontrar-nos-emos inesperadamente estabelecidos numa exigência libertadora (Heidegger, 1997, p. 75).

Evidente que ambos – Jonas e Heidegger – estão questionando a técnica. Mas, cada

um por razões diferentes. Enquanto Jonas reconhece a vulnerabilidade do homem, como um

elemento desse SER humano, e pensa na conservação do mundo para preservar também esta

condição, Heidegger sugere a superação de si mesmo, um ir além do estado atual. Quem sabe

o übermansch de Nietzsche. E suas colocações mostram que a técnica faz parte desse

processo, na medida em que possibilita o “desabrigar” do homem – esse desabrigar

significando na verdade, um desvestir-se de alguma coisa. Ora, Jonas também não fala em

manter as condições que permitam ao homem revelar-se? E isto também não significa

encontrar uma verdade suprema? Sim mas para Jonas a técnica, em certos aspectos, assume os

contornos de uma ameaça que deve ser evitada, enquanto que para Heidegger ela, embora seja

também uma ameaça, sob a denominação de perigo, pode ser a salvação, um meio de

superação da existência humana.

Ele cita um verso de Hölderlin – “Mas, onde há perigo, cresce também a

salvação” 4 - e reflete sobre o seu significado: o que significa salvar? Em que medida, onde

há o perigo, também cresce o que salva? Esse é o questionamento de Heidegger para quem as

duas coisas acontecem ocultas e em silêncio. Para refletir sobre isso ele sugere olhar ainda

mais claramente para dentro do perigo. “Por conseguinte – prossegue – devemos mais uma

vez questionar a técnica. Pois, como foi dito, é na sua essência que deita raízes e medra

aquilo que salva” (Heidegger, 1997, p.83).

Heidegger recorre à linguagem da filosofia para discorrer sobre o sentido da

palavra essência: aquilo que é. E exemplifica: “O que convém, por exemplo, a todos os tipos

de árvores, carvalhos, faias, bétulas e pinheiros é o mesmo caráter de árvore < Baumhafte >.

A isso, enquanto gênero universal, o ‘universal’, estão submetidas as árvores reais e 4 Segundo nota do tradutor, op. Cit. P. 81, do Hino Patmos, segunda versão.

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possíveis” (Heidegger, 1997, p. 83). Ele se pergunta, então, se a essência da técnica,

denominada por ele como “Armação” seria o gênero comum para tudo que é técnico. E

responde:

Se isso for exato, então, por exemplo, a turbina a vapor, o emissor de rádio e o ciclotron seriam uma armação. Mas, a palavra ‘armação’ não designa agora nenhum objeto ou qualquer tipo de aparelho. Muito menos designa o conceito universal de tais subsistências. As máquinas e os aparelhos são tampouco casos e tipos de armação como é o homem no comando dos comutadores e o engenheiro no escritório da construção. Tudo isso, na verdade, vale a seu modo como um elo subsistente, como uma subsistência, como algo que requer na armação, mas esta nunca é a essência da técnica no sentido de um gênero (Heidegger, 1997, p. 83).

Assim, o que Heidegger vê como essência da técnica é a armação, significando

aqui um destino do desabrigar-se de alguma coisa, do revelar-se. Faz, no entanto, uma

ressalva: nunca a essência no sentido do gênero e da essentia. Qual o sentido de essência deve

ser buscado? Não é o sentido que se dá à essência da casa ou essência do Estado, quando não

se tem em vista o universal de um gênero, mas o modo como imperam casa e Estado, como se

deixam administrar. Neste caso, estaria em jogo, segundo Heidegger, o ser-aí da aldeia, na

medida em que se faz referência a uma vida comunitária. Durar, consentir e consentir

continuadamente são os sentidos que o filósofo busca para a palavra “essência” no que tange à

técnica. Segundo ele,

A armação, enquanto aquilo que da técnica essencializa, é o que dura. Impera este durar no sentido do que consente? Já a questão parece constituir um erro manifesto. Pois a armação, segundo tudo o que foi dito, é um destino que reúne no desabrigar que desafia. Desafiar é tudo, mas não um consentir. Assim parece, enquanto não atentarmos para o fato de que também o desafiar sempre permanece um enviar no requerer do real enquanto subsistência, o que traz os homens para um caminho de desabrigar. Enquanto este destino, a essência da técnica admite o homem para algo que ele propriamente não consegue a partir de si nem achar e muito menos fazer; pois algo como um homem, que unicamente é homem a partir de si, não existe (Heidegger, 1997, p. 87).

De que forma a essencialização da técnica abriga em si o possível emergir da

salvação? Isso reside, segundo Heidegger, em pensarmos e protegermos, na memória, o

emergir. Em avistarmos a essencialização da técnica e não apenas fitarmos a técnica.

“Enquanto representarmos a técnica como um instrumento, permaneceremos presos à

vontade de dominá-la. Passamos pela essência da técnica” (Heidegger, 1997, p. 89). O

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nascimento da salvação surge quando a armação acontece naquilo que consente, o que deixa o

homem ser aquilo que é utilizado para a percepção-resguardadora da essência da verdade.

Por que relacionar o perigo extremo com a salvação? Porque se tivermos sempre

em vista o perigo extremo, estaremos sempre nos preparando para a salvação. E aqui, embora

usem expressões diferentes, os dois filósofos falam a respeito de um mesmo objeto – o medo.

Heidegger fala de “um perigo extremo”, enquanto que Jonas usa a expressão “heurística do

temor”. Jonas quer com a heurística do temor inibir ações nefastas advindas da tecnologia e

com isso resguardar a humanidade do SER. Heidegger parece querer ir além dessa

humanidade, como se os questionamentos fossem infinitos porque a verdade é também

ilimitada. Mas, os dois são movidos pela angústia de se ver frente à existência humana sem

respostas definitivas. Esse é o principal elo de ligação entre o discípulo e o mestre.

Siqueira também identifica na heurística do temor de Jonas a influência que sobre

ele teria exercido Heidegger. A propósito da afirmação de Jonas de que os prognósticos maus

devem predominar sobre os bons, Siqueira observa que aí está presente o aparente

pessimismo de Heidegger. O autor reitera ainda que tanto um quanto o outro consideram que o

salto para uma nova sociedade está em superar a equivocada concepção tecnológica

prevalecente do ser. Além disso, pode-se considerar que ambos eram dominados por uma

sofrida premência em solucionar os problemas da humanidade. Eis sua conclusão a esse

respeito:

Em ambos, encontramos o mal-estar da consciência moderna diante da situação crítica, que consiste em tentar encontrar em seu próprio projeto histórico recursos para solucionar os perigos decorrentes dos avanços da tecnociência. Consegue-se, portanto, identificar sem grandes dificuldades a fonte onde Jonas foi matar sua sede intelectual (Siqueira, 2005, p.183/184).

A ética em Kant – o ser e o dever

Após situar o homem no mundo atual em que não há mais fronteiras entre a cidade

e a natureza, em que a natureza tornou-se de certa forma um produto artificial do homem,

Jonas dedica-se a analisar os velhos e os novos imperativos, começando pelo Imperativo

Categórico de Kant: “Age de modo tal que sua máxima possa tornar-se universal”. Ora, a

razão de Kant não deixa de ser um diálogo do homem consigo mesmo, um espaço em que a

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boa intenção é levada em conta na análise de uma ação sob o ponto de vista ético. Uma ética

que pode ser eficiente para o indivíduo, porém ineficaz para a coletividade, menos ainda para

um mundo globalizado. A este imperativo, Jonas contrapõe um outro, este adequado ao novo

tipo de agir humano:

Um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: ‘Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra’; ou, expresso negativamente: ‘Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida’; ou, simplesmente: ‘não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a terra’; ou, em um uso novamente positivo: ‘Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos de teu querer (Jonas, 2006, p. 47/48).

Contra o imperativo kantiano, Jonas argumenta que ele é passível de ser violado,

sem que com isto ocorra uma contradição racional. Pois eu posso querer o bem atual,

sacrificando o bem do futuro; como posso querer o meu fim, posso querer também o fim da

humanidade. E isto não implica em contradição comigo mesmo: posso preferir a brevidade dos

fogos de artifício representando uma extrema realização, ao tédio de uma continuação infinita

vivida na mediocridade. Já o novo imperativo é taxativo: podemos colocar em perigo a nossa

vida, mas não a vida da humanidade.

Mas, esse respeito à humanidade se estende também aos que não nasceram ainda,

às futuras gerações. Nesse sentido, Jonas reconhece a dificuldade de dar a essa nova ética uma

fundação teórica, sem apelar para a religião. Afirma, por outro lado, que o novo imperativo se

destina, evidentemente, às políticas públicas, muito mais que ao comportamento privado – ao

contrário do Imperativo Kantiano, dirigido ao indivíduo e destinado ao momento presente.

Na análise que faz do Princípio Responsabilidade, Siqueira (2005) argumenta que a

distância que separa Jonas de Kant não é tão inalcançável quanto se possa imaginar à primeira

vista. E sugere um redimensionamento do alcance da proposta de Jonas que, ao invés de negar

a ética Kantiana, deveria considerá-la apenas incompleta ou incapaz de responder às questões

emergentes da nova tecnociência. Ele observa, com propriedade, que Jonas faz uso do mesmo

molde sintático enunciado por kant – “age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam

compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na terra” – e assim fazendo

está validando o enunciado original, embora apele para um novo tipo de concordância. Diz

ele:

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Pretende, isso sim, que a ação humana se transforme numa lei universal que considere tanto o homem como a natureza extra-humana e saia do domínio hermético do individual para o território mais amplo do coletivo, minimizando a importância da ação do indivíduo consigo mesmo e transferindo-a para as ações humanas e seus efeitos sobre a continuidade da existência humana no futuro. Acentuamos aqui mais uma vez, a pertinência da avaliação de Kuhn de que os novos paradigmas sempre nascem dos antigos (Siqueira, 2005, p.184).

Na abordagem que faz da ética, percorrendo um percurso que vai da modernidade à

pós-modernidade, Luciano Zajdsznajder, assim como Jonas, parte à procura de uma ética para

os tempos atuais5. Inspirado em McIntyre, para quem o projeto moderno de restaurar a

moralidade teria fracassado, ele recorre a algumas de suas vias, especialmente à visão

aristotélica centrada na Ética a Nicômacos, que, segundo ele, propõe uma agenda de questões

que podemos continuar considerando como atuais. Dois outros grandes pilares da filosofia

lhe serviram de inspiração: Hanna Arendt e Jungen Habermas, além de Wittgenstein e Hegel.

Na mesma linha de raciocínio de Jonas, Zajdsznajder percorre a ética tradicional e

se pergunta se não bastaria ir aos textos de ética produzidos ao longo da modernidade. Mas, a

esta pergunta emenda uma outra: estariam mortos, como línguas mortas? O autor considera

que a ética, assim como no caso de uma língua, precisa ser praticada para não cair em desuso.

E não é o que está acontecendo: “No que diz respeito aos textos sobre ética, seus elos com a

vida foram sendo destruídos, sua imersão na prática tornou-se cada vez mais

tênue”(Zajdsznajder, 1999, p.58).

O problema é que a ética não evoluiu. Apenas sofreu uma cisão em relação aos elos

com as formas de vida anteriores à modernidade, especialmente com a religião. E isto era

necessário a fim de que se firmasse a política do poder, a ciência e o individualismo. Ou seja:

a destruição do objeto tinha que ocorrer. Mas, segundo essa análise, a ética estaria sofrendo

um processo de desaparecimento crescente. Para ilustrar essa afirmação o autor analisa o

pensamento de Hegel, Nietzsche e Kant, tentando mostrar que, em linhas gerais, há na teoria

5 Nesta obra , Ética, Estratégia e Comunicação – da passagem da modernidade à pós-modernidade, Zajdsznajder aborda a ética dentro de quatro focos: a vida humana dentro das orientações “cuidar”e “jogar”, seguindo uma visão não-metafísica, porém global; as práticas humanas, especialmente as interações; as esferas ou âmbitos da existência humana; e as questões de comunicação. Na concepção do autor “encontramos as questões éticas quando examinamos os afazeres humanos à luz do cuidado ou da falta deste, das formas pelas quais se dão as interações, do âmbito da vida em que ocorrem, e de como decorrem de interferências no processo de comunicação” (Zajdsznajder, 1999, p.16). Na mesma página ele explica o cuidado como o sentido comum de “tomar conta”, favorecer a ocorrência de coisas boas ou impedir que se dêem fatos desastrosos. Embora ele estenda o cuidar a um sentido lúdico da existência, entendemos que “cuidar” é sinônimo de responsabilidade. É por esse viés que a obra do referido autor nos interessa como complemento ao pensamento de Jonas.

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deles uma insuficiência ética que, embora diversa, é comum a todos . Sobre Hegel ele diz o

seguinte:

Embora Hegel tenha dado uma contribuição marcante para o funcionamento da sociedade capitalista sua idealização como o espaço final da realização humana – com base no princípio estabelecido na filosofia do direito de que o real é racional e o racional é real – é outra forma de perda do objeto, porque ignora as tensões essenciais da realidade ética. Mas o próprio Hegel reconhece as contradições insuperáveis da sociedade civil diante da pobreza crescente que não pode ser resolvida (Zajdsznajder, 1999, p.60).

Em relação a Nietzsche, Zajdsznajder considera que a sua obra dá margem a várias

leituras, inclusive uma interpretação que permite mostrar que ele também procurava

restabelecer um lugar para a ética da modernidade. Mas, parece que o seu objetivo não foi

atingido. O autor considera que certos aspectos da ética de Nietzsche denotam uma

racionalização, uma forma de os fracos se auto-justificarem que acabou também submetendo

os senhores. Diz ele:

Nas mãos de Nietzsche, o objeto é completamente destruído, embora se encontrem também outras formulações positivas, como um movimento para além do bem e do mal, a transposição de todos os valores e a crítica ao niilismo. Mas essas formas ‘positivas’ não foram capazes de estabelecer a ética como um novo objeto (Zajdsznajder, 1999, p.61).

No que diz respeito a Kant, o autor questiona sua contribuição, começando por

observar que o kantismo procurou fundamentar e justificar as crenças básicas do cristianismo

e as orientações éticas dentro de um mundo e de uma compreensão da mente identificados

com a dominância da ciência física na época. Dentro desse cenário, a busca de kant era pela

liberdade e o principal eixo a boa vontade. Diz o autor textualmente:

Seu primeiro e maior problema é encontrar um lugar para a liberdade em meio ao

completo determinismo. Evidentemente, o esforço é monumental, mas têm de ser

abandonados aspectos fundamentais da ética: o bem reduz-se à boa vontade, a lei

moral toma principalmente um aspecto formal e o questionamento da felicidade

passa a ocupar um lugar inteiramente secundário. Tem-se uma ética sem conteúdo

(Zajdsznajder, 1999, p. 59).

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O autor considera a ética de Kant sem conteúdo mas faz questão de ressalvar que

essa idéia não é unânime. Ele mesmo considera paradoxal tomar o maior pensador da ética de

todos os tempos como aquele que “elaborou exatamente a sua perda”. Mesmo assim pergunta

se não terá a ética diminuído de escala nas reflexões kantianas. E acrescenta:

A redução de toda a ética ao dever, sendo este tomado como ‘um fato da razão’, e a desconfiança absoluta quanto às inclinações não bastam para mostrá-lo? O fascínio que pode exercer a construção argumentativa de kant não nos deve impedir de julgá-lo, o que não significa uma condenação, e sim concebê-lo como parte de uma vasta experiência da história (Zajdsznajder, 1999, p. Cit. p. 60).

O direcionamento da vida ética para Zajdsznajder vai culminar, a exemplo de

Aristóteles, no bem viver, tendo como resultado a felicidade. Nesse aspecto, suas

preocupações diferem um pouco das preocupações de Hans Jonas em que o meio ambiente

entra como condição fundamental para uma pretensão metafísica, que não é necessariamente a

felicidade, mas pressupõe uma possível realização na medida em que ele busca um vir-a-ser

do homem, um além de. Mas, em Zajdsznajder, o meio ambiente é abordado através de

palavras que são bem peculiares a Jonas: a responsabilidade e o consumo. É aqui, inclusive,

que o autor denota um certo otimismo em relação à recuperação da ética:

É visível, no mundo contemporâneo, que alguns elementos do objeto perdido voltam a se esboçar. Vem ocorrendo um redesenho, que é fragmentário e se realiza sem a presença obrigatória da região discursiva da ética. O primeiro aspecto fragmentário diz respeito ao meio ambiente. Pode-se perceber que o pensamento ecológico retoma modos do discurso ético, ao mesmo tempo que faz a primeira grande ‘auditoria’ da Modernidade, mostrando o balanço crítico de seus custos e benefícios. O pensamento ecológico retoma a noção de responsabilidades – na forma dos limites à expansão do consumo em geral e ao uso de recursos não-renováveis, por todas as suas conseqüências – e ainda reencontra as idéias de bem (identificado com a natureza) e de harmonia (Zajdsznajder, 1999, p. 63).

Tugendhat também questiona o sentido de obrigação em Kant, numa análise que

faz, entre outros aspectos, da razão pura e da razão prática. Considera que somente um ser

racional tem a faculdade de agir de acordo com a representação das leis – para isto ele tem

uma vontade. Observa-se que para praticar ações a partir da Lei é preciso Razão. “Nesse caso

diz ele - a vontade não é nada mais que a razão prática”(Tugendhat, 1996, p. 141). Em sua

abordagem, o autor trabalha também a questão da afetividade, abrindo um espaço para

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ressalvar a possibilidade de que se fazemos algo pelo dever, nós o fazemos porque o outro é

um ser humano. É esta universalidade, segundo Tugendhat, que Kant quer assegurar com sua

insistência sobre o dever como motivo. Mesmo assim, nas páginas anteriores leva em

consideração as ponderações dos críticos.

O que os críticos contemporâneos censuraram na concepção kantiana, sobretudo Schiller e então também o jovem Hegel, é que Kant teria dividido a natureza humana em duas partes, e isto não é apenas um problema filosófico, mas significa, visto moralmente, que não é mais o homem como um todo que age moralmente. Se eu ajo apenas assim, porque me é ordenado, então ainda sou eu de todo, este ser afetivo, quem age? (Tugendhat, 1996, p. 125).

A Ética, a técnica e o progresso

Em “Ética é justiça”, Olinto Pegoraro encontra pontos de intersecção entre os

vários tratados éticos, especialmente entre a ética das virtudes de Aristóteles e a ética das

normas de Kant. O princípio do bem humano da Ética a Nicômacos seria, segundo ele,

idêntico à regra de ouro do novo Testamento: “ambos falam de novo no imperativo categórico

de Kant que manda tratar o ser humano como fim em si mesmo; e os três resplandecem no

primeiro princípio da justiça de J. Raws” (Pegoraro, 1995, p. 96/97). É a justiça quem vai

intermediar esses tratados como princípio e virtude - uma espécie de esteio a sustentar o

arcabouço ético de cada teoria. Pegoraro define esse processo como um movimento circular

através do qual se recupera em cada época a experiência ética da humanidade. O autor

continua:

A justiça é simultaneamente fundamento da ética das normas na vida pública e eixo central de todas as virtudes morais na vida pessoal. Mas não há aqui duas éticas em conflito. A justiça não poderia instaurar uma ética das normas sem moralidade e, vice-versa, uma ética das virtudes sem a regulamentação das normas. Pelo contrário, a ética pública, que se exprime fundamentalmente nos artigos da constituição de uma sociedade política, visa precisamente ordenar (normalizar) uma tradição já-existente nos costumes e práticas das pessoas e da comunidade. Portanto, a justiça como princípio normaliza os costumes de uma cultura em determinado tempo e lugar; a justiça como virtus ad alium abre a cada pessoa o caminho do convívio

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ético na sociedade política onde se realiza, no grau mais elevado, o destino histórico do homem (Pegoraro, 1995, p. 97).

Ou seja: de cada tratado, de cada teoria, há uma essência que permanece. Em seu

trabalho Pegoraro recorda que a história do pensamento humano registra quatro grandes

tratados de ética: a ética aristotélica, que propõe a superação do conflito alma e corpo,

sensibilidade e razão, paixão e inteligência, através da prática das virtudes morais que irão,

aos poucos, subordinar a paixão à razão – quando isto acontece, o homem torna-se senhor de

si mesmo; em segundo lugar vem a moral cristã, onde o conflito foi introduzido pelo pecado

original, debilitando intrinsecamente a natureza humana desde a origem – aqui o sentido

transcendente deve ser buscado pelo homem através da prática das virtudes morais e pelas

luzes da fé; nos tempos modernos, a ética de Kant veio fazer face à finitude do homem, este

sujeito à variedade e à mutabilidade das inclinações e paixões de sua própria natureza – o ser

humano não é naturalmente e espontaneamente ético e por isso ele tem necessidade de

imperativos morais para cercar as resistências da sensibilidade; na atualidade, Pegoraro elege

a ética de J. Rawls como um esforço de superação de conflitos sociais produzidos pela disputa

dos bens materiais e culturais, tendo a justiça como princípio mediador (Pegoraro, 1995,

Introdução).

Pensar na ética como fruto da circularidade do pensamento de grandes pensadores,

pode nos ajudar na compreensão da ética de Hans Jonas. Não há duvidas que o filósofo sofreu

a influência de Heidegger, ao menos no que tange ao primeiro motor do pensamento deles: a

existência humana e a tecnociência. Pegoraro assinala que o movimento fenomenológico

husserliano e heideggeriano sempre chamou a atenção para o perigo predatório da

tecnociência, sobretudo quando se refere às estratégias armamentistas. No entanto, a

fenomenologia considera como sentido positivo da tecnociência a sua capacidade de liberar

energias arcanas da natureza para liberar o homem de antigas submissões aos determinismos

naturais.

Questionar a técnica não significa, portanto, demonizar o progresso. O próprio

Heidegger disse: “A técnica não é o que há de perigoso. Não existe uma técnica demoníaca,

pelo contrário, existe o mistério de sua essência” ( Heidegger, 1997, p.80/81). Nem Jonas

pode ser acusado de querer barrar a evolução da tecnologia. O que ele deixa bem claro é que

deveríamos frear o progresso “galopante” após vinte séculos de euforia pós-baconiana e

prometéica. Klaus Leisinger/ Karin Schmitt interpretam a afirmação de Jonas como uma

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pretensão mais ampla em que o progresso se estende também aos indivíduos e à sociedade

como um todo:

Pelo menos eu interpreto isto no sentido de que, em seu conceito de progresso, o essencial é a perfeição ética dos indivíduos e da sociedade como um todo. Dentro deste conceito, o progresso material também tem lugar; o que ele rejeita é cegueira material para com todos os valores materiais do homem e da dignidade humana. Hans Jonas pertence, assim, à mesma cepa de Albert Schweitzer, que disse que, para poder ser considerada como progresso, a vontade universal do progresso deve estar consciente do valor supremo da ética 6.(Leisinger, 2001, p. 115).

Em Dupas o progresso é questionado através do questionamento da globalização e

do capitalismo, na medida em que este teria se apossado por completo dos destinos da

tecnologia. Desaparece o sentido original da teckné: agora a única orientação passa a ser o

valor econômico. O autor faz coro à Jonas quanto às suas observações de que houve um

distanciamento entre a evolução tecnológica e a evolução das coisas ditas humanas,

especialmente a ética. Diz ele:

As revoluções tecnológicas nas áreas do átomo, da informação e da genética desenvolvem-se num estado de vazio ético no qual as referências tradicionais desaparecem; os fundamentos ontológicos, metafísicos, religiosos se perderam. O homem tornou-se perigoso para si mesmo, constituindo-se, agora, em seu próprio risco absoluto. Na verdade, um claro paradoxo se instala nas sociedades pós-modernas. Ao mesmo tempo que elas se libertam das amarras dos valores de referência, a demanda por ética e preceitos morais parece crescer indefinidamente. O homem é livre apenas quando faz o que na sua razão escolhe. Mas ela precisa ser orientada por valores que não estão mais disponíveis (Dupas, 2001, Introdução).

Antes de analisar algumas das conseqüências do progresso da técnica relativamente

ao destino do homem, Jonas arremata a sua abordagem a respeito das éticas anteriores, desta

feita referindo-se àquelas que pensavam no futuro. O objetivo é demonstrar que também essas

não são eficientes à concepção de ética que se pretende para contornar os problemas do mundo

atual. Três são as situações: a condução da vida terrena – até mesmo sacrificando a própria

felicidade – tendo em vista a salvação eterna da alma; a preocupação do legislador e do

estadista pelo bem comum futuro; e a política da utopia, esta propensa a utilizar os

contemporâneos como simples instrumentos a um fim ulterior ou eliminá-los enquanto

6 Eis a citação de Schweitzer: “Por mais importantes que sejam as conquistas do saber e do poder, é claro que só uma humanidade que busque objetivos éticos é capaz de compartilhar em plena medida das bênçãos do progresso material e ser senhora dos perigos que ele encerra” (Schweitzer, apud Leisinger, 2001, p. 115).

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obstáculo ao fim estabelecido. O marxismo revolucionário é o exemplo de Jonas à última

situação.

Tanto o exemplo centrado na religiosidade, quanto o do marxismo têm em comum

o fato de supervalorizar o futuro em detrimento do presente, sendo que no primeiro caso o agir

não produz o futuro – apenas propicia uma qualificação visando um tempo que ainda vai

chegar. É claro que esta qualificação, que pressupõe uma vida bem aceita por Deus, é por si só

uma vida boa, na medida em que se observa aqueles imperativos da justiça, do amor ao

próximo, pureza, etc. Trata-se de apostar na vida eterna como prêmio para uma vida ética.

Significa também viver de forma ascética, mortificando os sentidos e rejeitando a vida. Mas,

se não houver vida eterna a intenção terá sido em vão? Ora, uma situação de tal natureza

estaria fora da esfera da ética. O autor explica:

Entre o finito e o infinito, o temporal e o eterno não há comensurabilidade, e por isso também nenhuma correlação significativa (ou seja, não há sentido qualitativo nem quantitativo que torne um dos termos preferível ao outro); quanto ao valor da finalidade, cujo julgamento consciente deveria constituir uma parte essencial da decisão ética, não existe mais do que a afirmação vazia de que ele é justamente o valor absoluto. Falta também o elo causal, necessário ao pensamento ético, entre a ação e o resultado (esperado), já que este não é entendido como resultado da renúncia do mundo do aqui-e-agora, mas apenas prometido como compensação em outro lugar (Jonas, 2006, p. 52).

Quanto à responsabilidade dos estadistas, quando se pensa a respeito do futuro

pode-se aprender com os grandes legisladores, como Sólon e Licurgo ou ainda com a censura

a Péricles, feita por Sócrates aos seus projetos grandiosos, que seduziam os atenienses e

arruinavam as virtudes civis. Jonas observa que o mérito de um legislador está na capacidade

de fazer durar a sua criação e não no planejamento antecipado de qualquer coisa que se

transformará em realidade apenas para os pôsteres e que é inatingível aos presentes. Ora, a

perspicácia de um homem de Estado consiste na sua sabedoria e na moderação que ele dedica

ao presente – o que pode não subsistir a um futuro diverso. Aqui, a abordagem diz respeito à

estabilidade. Mas, um governo será bom se tiver como conseqüência aquilo que é bom hoje e

em qualquer tempo. O estadista precisa de sabedoria e moderação, de forma a construir no

presente uma possibilidade igual para o futuro. “A duração – prossegue o autor - é um efeito

secundário do bem atual, válido para sempre. A ação política possui um intervalo de tempo

de ação e de responsabilidade maior do que aquele da ação privada , mas, na concepção pré-

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moderna, a sua ética não é nada mais do que uma ética do presente, embora aplicada a uma

forma de vida de duração mais longa”(Jonas, 2006, p.54).

A terceira situação, a política da utopia, é tratada por Jonas no sentido religioso e

político/revolucionário. Relativamente à escatologia religiosa tem-se o exemplo do

messianismo, que não prescreve alguma política messiânica, mas vincula a vinda do mestre,

por decreto divino, ao comportamento do homem na medida em que ele pode tornar-se digno

de tal evento, por meio das normas que lhe foram impostas. O aqui e agora é permeado de

expectativas condicionadas à fé, à própria Lei de Deus, cuja observação significa um prêmio

ulterior. Ou seja: o futuro está condicionado ao presente por uma questão de fé. Jonas

observa que ainda aqui se trata de uma ética do presente, não do futuro.

Quanto à filosofia marxista, com a sua ética da ação, não resulta mais verdadeira

do que o que se disse a propósito da presencialidade da ética tradicional. Jonas acentua,

porém, que aqui o agir se dá em vista de um futuro que nem os atores, nem as vítimas, nem

os contemporâneos irão usufruir.

A obrigação para com o presente provém de lá, e não do bem-estar ou do mal-estar de seu mundo contemporâneo; e as normas do agir são tão provisórias e mesmo tão ‘inautênticas’ quanto à situação que ele pretende superar. A ética da escatologia revolucionária vê a si mesma como uma ética de transição, enquanto a ética autêntica, ainda essencialmente desconhecida, só poderá vigorar depois que aquela tiver criado as condições para tanto e, com isso, abolido a si própria ( Jonas, 2006, p. 56).

Dá-se então, que esta pode ser considerada uma ética do futuro - com a

ressalva de que o seu caráter de religião secular, utópica, tornou a cura algo pior que a

doença. Jonas retorna à Marx no último capítulo do livro, onde faz uma análise detalhada do

marxismo e do princípio esperança de Ernst Bloch . Este assunto será retomado no quarto

capítulo do presente trabalho, numa abordagem sobre a sustentabilidade. Até agora, pode-se

concluir com Hans Jonas que a tradição do pensamento ocidental não está devidamente

capacitada para enfrentar os problemas suscitados pela civilização tecnológica. Poderia ser o

marxismo, que tem especificidades de uma ética delineada para o futuro. Mas, quando se

observa que em relação à natureza, o raciocínio de Marx tem uma certa identificação com o

raciocínio de Francis Bacon, então, é preciso concluir que o marxismo não atende aos

requisitos delineados por uma ética ecológica. A esse respeito, é oportuno resgatar a

afirmação de Manfredo Araújo:

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No entanto, para H. Jonas, também no marxismo não há respostas para a questão

ecológica e para as questões do homem, uma vez que o marxismo não só não critica

o projeto civilizatório da modernidade, mas o leva às últimas conseqüências por

vincular os velhos sonhos emancipatórios da humanidade com o ideal tecnocrático,

que é, na realidade, o pano de fundo da crise ecológica que hoje vem à tona. Isso

implica que a solução dos grandes conflitos sociais que marcam a humanidade

contemporânea, é inseparável do enfrentamento da crise ecológica, que exprime o

conflito da relação do homem com a natureza como um todo. O que os movimentos

ecológicos trouxeram à consciência da humanidade é que a ‘natureza’ enquanto

pressuposto básico das forças humanas de produtividade e enquanto espaço humano

de habitação não é infinitamente explorável; ela é, antes, fundamentalmente limitada

e, enquanto ecoesfera do homem, ‘um sistema funcional de equilíbrio’, cuja

destruição afeta em profundidade as condições de vida do homem no planeta. Isto

nos conduz a uma reviravolta nas questões fundamentais da ética, pois para H.

Jonas, a raiz filosófica da crise consiste numa fundamental contraposição entre dois

princípios básicos da ação humana: o ‘princípio responsabilidade’, que contém uma

resposta para a nossa crise, e o ‘princípio esperança’, enquanto expressão do ideal

de progresso e emancipação da modernidade (Oliveira, 1995, p.25/ 26).

Mas, Jonas reconhece que quando comparadas à ética pré-moderna, a ética da

escatologia revolucionária e o Princípio Responsabilidade têm respostas comuns. O mesmo

não acontece quando as duas são confrontadas com as peculiaridades da situação moderna –

sem precedentes em épocas anteriores, especialmente em relação à tecnologia. Nesse patamar

as duas éticas são distintas, pois, segundo ele, os poderes da técnica sobre o destino humano

ultrapassaram o poder do próprio comunismo. Essa reflexão ele adia para o final das

discussões a respeito dos temas suscitados pelo colossal progresso da técnica, apenas

salientando que, embora as duas éticas tenham a ver com a tecnologia, a que aqui se busca – a

responsabilidade – não é escatológica e é antiutópica, em um sentido que suas demonstrações

ainda vão determinar.

Este é o fio condutor do livro de Jonas: a problemática do progresso técnico,

especialmente no que tange ao estreito relacionamento entre a técnica e a ciência, o que vem

suscitando uma cadeia de eventos bem sucedidos do ponto de vista científico e preocupantes

do ponto de vista ético. Alguns deles se tornaram emblemáticos, como Hiroshima, Nagasaki e

Schernobyl. Mais recentemente, algumas descobertas na seara da genética e da neurociências

têm empolgado uns e assustado outros setores sociedade. A literatura sobre o tema já é

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profícua, embora a legislação seja insipiente. Tanto que vez por outra se vê às voltas com

problemas inimaginados. Até mesmo a denominação para essa nova área das ciências ainda é

praticamente um neologismo: bioética – uma palavra usada pela primeira vez na língua inglesa

em 1970. Tendo em vista o Princípio responsabilidade serão abordadas nos próximos

capítulos algumas das práticas mais polêmicas suscitadas pelas novas tecnologias.

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Segundo capítulo

BIOÉTICA – A RESPONSABILIDADE PELA VIDA

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Breve histórico

Na medida em que cresce o poder de desenvolvimento e criação por parte das

ciências, aumenta também a sua responsabilidade, especialmente em relação ao futuro da

humanidade. As escolhas possibilitadas pela tecnologia a partir do desenvolvimento

científico – criar ou não criar, fazer ou não fazer – devem ocorrer a partir de um

procedimento ético. Algumas áreas enfrentam situações mais delicadas porque

cotidianamente lidam com pesquisas e experimentações diretamente relacionadas à

existência do homem. A bioética é a principal delas, até mesmo porque sua definição é

bastante abrangente: ética da vida .

No Princípio Responsabilidade Jonas discorre sobre alguns dos principais pontos

do que hoje é denominado por bioética: o prolongamento da vida, controle de

comportamento e manipulação genética. Mas, no prefácio do livro, ele ressalva que esta é

apenas uma introdução e promete discorrer sobre a parte aplicada em uma nova publicação –

obra que foi editada inicialmente em alemão, em 1985, intitulada Techinik, Medizin und

Ethik. Zur Práxis das Prinzips Verantwortung1. No entanto, as primeiras reflexões dessa

natureza, feitas pelo autor, estão registradas nos ensaios que ele escreveu entre 1950 e 1965 e

que foram reunidos no livro Das Prinzip Leben. Ansätze zu philosophischen Biologie (Insel

Verlag, Frankfurt am Main – Leipzig)2.

Embora falasse desde essa época sobre temas inerentes à bioética, Jonas não

trabalhou com este termo – simplesmente porque ele ainda não estava popularizado. A

palavra foi criada em 1970 pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter, que no

ano seguinte publicou o primeiro livro falando sobre o tema então denominado bioética -

Bioethics: bridge to the future (Bioética: ponte para o futuro). Assim como Jonas, Potter

enfocava em seus estudos o problema ambiental e o modelo de progresso da forma como ele

vem sendo concebido pelas novas tecnologias.

Léo Pessini, um dos estudiosos da bioética no Brasil, diz em seu último livro que

o oncologista pensava a bioética como uma ponte entre a ciência biológica e a ética. “Sua

1 No presente trabalho foi utilizada a tradução italiana: Hans Jonas – Técnica, medicina ed ética: Prassi del principio responsabilità. 2 O livro foi publicado na Itália em 1999, sob o título Hans Jonas - Organismo e libertà: verso uma biologia filosófica (Giulio Einaldi editore s.p.s.,Torino). A Editora Vozes publicou uma tradução da obra em 2004, sob o título O princípio vida – fundamentos para uma biologia filosófica. É desta tradução que nos servimos para as citações.

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intuição – prossegue – consistiu em pensar que a sobrevivência de grande parte da espécie

humana, numa civilização decente e sustentável, dependia do desenvolvimento e manutenção

de um sistema ético” (Pessini, 2006, p. 20). Além de uma civilização sustentável, para o que

ele também prega a responsabilidade, Potter se preocupava ainda com a necessidade da

interdisciplinaridade. Isto está registrado ao final de um de seus artigos, escrito em 1998.

Ele conclui o artigo dizendo: “O que lhes peço é que pensem a bioética como uma nova ética

científica, que combina humildade, responsabilidade e competência, numa perspectiva

interdisciplinar e intercultural que potencializa o sentido da humanidade” (Potter, 2001,

p.347).

Através de José Roberto Goldim, um dos estudiosos da bioética no Brasil3,

podemos estabelecer uma cronologia do surgimento desta nova ética. Considerando-se que os

precursores do assunto viveram em países diferentes e que um acabou sendo influenciado

pelas idéias do outro, não é pertinente estabelecer um único pioneiro, a não ser no caso de

Potter, cujo livro traz no próprio título o novo termo por ele batizado de bioética. Pela ordem

de nascimento, o mais antigo seria Fritz Jahr, nascido em Königgrätz/Böhmen, no ano de

1849-1923. Goldim (2004/2005) assinala que a bioética era vista por ele como a emergência

de obrigações éticas não apenas com o homem, mas com todos os seres vivos.

O segundo pesquisador mais antigo na área de bioética seria Albert Schweitzer

(1875-1965), nascido na Alsácia, que era naquele tempo parte do Império Alemão e hoje

pertence à França. Ele foi o ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1952, músico, filósofo,

teólogo, médico e missionário. Segundo Goldim (2005) o seu texto Ethics of Reverence for

Life, de 1923, dá os fundamentos para o pensamento bioético. Schweitzer foi citado por Potter

várias vezes no livro Bioethics: Bridge to the future, bem como na formulação da Bioética

Profunda, proposta por Potter em 1988.

Aldo Leopold (1887-1948) é o terceiro bioeticista mais antigo, tendo nascido em

Burlington, Iowa/USA. De acordo com Goldim (1997), Leopold é considerado como a figura

mais importante da conservação da vida selvagem dos Estados unidos, tanto que foi consultor

da ONU nesta área. Sua obra mais conhecida é Sand County Almanac, onde lançou as bases

para a ética ecológica. O pensamento de Leopold teria inspirado Potter, em 1970, na criação

do termo bioética.

3 José Roberto Goldim é biólogo do Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, Professor de bioética, membro do Kennedy Institute of Ethics/Georgetown University/Washigton, membro da Sociedade Brasileira de Bioética e consultor de bioética em instituições públicas e privadas.

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Na cronologia dos nascimentos, Potter é o quarto bioeticista: nasceu em 1911,

também nos Estados Unidos/South Dakota, e faleceu em 2001. Segundo Goldim (1997/2004)

um texto de Potter teria sido o primeiro a usar a palavra bioética em língua inglesa - 1970 -

num artigo intitulado Bioethics, the science of survival. Foi esse texto que se tornou o

primeiro capítulo do livro Bioethics: Bridge to the future, publicado em 1971. De início, a

bioética de Potter estava centrada na interação do problema ambiental com as questões de

saúde. Sua base estava assentada nas propostas de Leopold, especialmente a Ética da Terra4.

Esta primeira proposta de Potter foi batizada por ele como Bioética Ponte, especialmente pela

sua característica interdisciplinar – uma característica básica de suas idéias. Goldim esclarece:

Esta primeira reflexão incluía um grande questionamento sobre a repercussão da visão de progresso existente na década de 1960. O termo bioética, ainda durante a década de 1970, devido à crescente repercussão dos avanços na área da saúde, foi sendo utilizado em um sentido mais estrito. Estas propostas foram feitas, especialmente, pelo Prof. Warren Reich e pelo Prof. LeRoy Walters, ambos vinculados ao Instituto Kennedy de Ética, da universidade Georgetown/Washington DC, e prof. David Roy, do Canadá. Estes autores restringiram esta reflexão apenas às questões de assistência e pesquisa em saúde. Outros autores, como o Prof. Guy Durant, do Canadá, também assumiram esta posição ao longo da década de 1980, mantendo a base interdisciplinar da proposta original. Esta visão restritiva foi incorporada pela base de dados Bioethcsline, que consolida a produção de conhecimento na área de bioética. O Prof. Warren Reich reiterou, em 1995, sua perspectiva para o termo, incorporando à sua proposta de bioética as perspectivas interdisciplinar, pluralista e sistemática (Goldim, 1999/2003).

Em 1988 o termo Ponte foi substituído na ética de Potter por Global, englobando a

partir daí a saúde e a questão ecológica. Dez anos depois, a Bioética Global torna-se Bioética

Profunda. Goldim explica que esta denominação – como proposta abrangente e humanizadora

da bioética - foi utilizada pela primeira vez pelo Prof. Peter J. Whitehouse, aplicando à

bioética o conceito de Ecologia Profunda, do filósofo norueguês Arne Naess. “Em 2001 – 4 “A ética da terra simplesmente amplia as fronteiras da comunidade para incluir o solo, a água, as plantas e os animais, ou coletivamente: a terra. Isto parece simples: nós já não cantamos nosso amor e nossa obrigação para com a terra da liberdade e lar dos corajosos? Sim, mas quem e o que propriamente amamos? Certamente não o solo, o qual nós mandamos desordenadamente rio abaixo. Certamente não as águas, que assumimos que não têm função exceto para fazer funcionar turbinas, flutuar barcaças e limpar os esgotos. Certamente não as plantas, as quais exterminamos, comunidades inteiras, num piscar de olhos. Certamente não os animais, dos quais já extirpamos muitas das mais bonitas e maiores espécies. A ética da terra não pode, é claro, prevenir a alteração, o manejo e o uso destes ‘recursos’, mas afirma os seus direitos de continuarem existindo e, pelo menos em reservas, de permanecerem em seu estado natural” (Leopold A. A Sand County Almanac, and sketches here and there. New York: Oxford, 1989, p.204, apud Goldim, acessível in http//www.ufrgs.br/bioetica/landethi.htm - consulta feita em 05/11/2006).

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prossegue Goldim – o Programa Regional de Bioética, vinculado à Organização Pan-

Americana de Saúde (OPAS) definiu bioética igualmente de forma ampla, incluindo a vida, a

saúde e o ambiente como área de reflexão” (Goldim,1999/2003).

Um outro marco na história da bioética foi a publicação do livro The Principles of

Bioethics, em 1979, por Beauchamp e Childress. Daí se origina o principialismo, uma nova

linha da bioética, desenvolvida a partir de quatro princípios: não-maleficência e justiça

(deontológicos); beneficência e autonomia (teleológicos). Volney Garrafa, na apresentação

que faz do livro editado pelo Conselho Federal de Medicina em 1998 – Iniciação à bioética -,

diz que hoje já são mais de 10 linhas diferentes ou “dialetos” utilizados pela bioética no seu

desenvolvimento, a exemplo do contextualismo, o feminismo, o contratualismo, o

naturalismo. Entre esses, Volney Garrafa destaca o contextualismo que defende a idéia de que

cada caso deve ser analisado individualmente, dentro dos seus específicos contextos social,

econômico e cultural.

No mesmo livro, Kipper e Clotet justificam o desenvolvimento do principialismo

pelo pluralismo ético dos dias de hoje – daí a necessidade de uma teoria acessível e prática

para a solução de conflitos gerados por ocasião da doação de órgãos, do momento oportuno

para a morte, entre tantos outros. “Os problemas humanos não são nunca exclusivamente

biológicos, mas também morais”, assinalam os autores (Kipper e Clotet, 1998, p.41).

Em 1972, quando escreveu o prefácio do Princípio Vida, Hans Jonas referiu-se ao

seu texto como “uma interpretação ontológica dos fenômenos biológicos”. Ou seja: Jonas faz

uma ponte entre a filosofia e a biologia. Isto lembra Potter, no princípio da bioética. Os dois –

o oncologista norte-americano e o filósofo alemão – se dedicavam na mesma época ao mesmo

tema: uma ética para o enfrentamento dos problemas emergentes da pós-modernidade, tendo

em vista a vida, seja ela do homem, dos animais, da natureza ou da relação entre eles.

No filósofo fica evidenciada uma certa angústia existencial, provavelmente herdada

de Heidegger. Jonas diz que a filosofia, especialmente o existencialismo contemporâneo,

ofuscado pela visão exclusiva do ser humano, atribui a este – como homenagem, mas ao

mesmo tempo como uma carga – muita coisa baseada na existência orgânica como tal. Com

isto, a compreensão do mundo orgânico é privada das visões que a auto-percepção humana lhe

oferece, ao mesmo tempo que deixa de ver a verdadeira linha divisória entre o animal e o ser

humano.

Quanto à biologia, presa aos fatos físicos exteriores pelas regras, é forçada a

ignorar a dimensão da interioridade que é parte integrante da vida. Ora, assim fazendo, a

biologia faz desaparecer a distinção entre animado e inanimado. Ao mesmo tempo que torna

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mais enigmático do que era antes o sentido da vida, uma vez que tenta explicá-lo unicamente

através da matéria. Mas – e aí está a ponte – a filosofia completa a biologia e vice-versa. Eis o

raciocínio de Jonas:

Estes dois pontos de vista, que desde Descartes são mantidos artificialmente separados, na verdade se completam logicamente e se ajudam um ao outro. Ao buscarem consolidar-se isoladamente, cada um deles sofre prejuízo – tanto a compreensão do ser humano quanto a vida extra-humana. Uma releitura filosófica do texto biológico pode reconquistar para a compreensão das coisas orgânicas a dimensão interior – a que nos é melhor conhecida -, e assim reconquistar para a unidade psicofísica da vida o lugar que ela perdeu na teoria após a separação estabelecida por Descartes entre o mental e o material. Nesse caso o ganho para a compreensão do orgânico há de constituir um lucro também para a compreensão do ser humano (Jonas, 2004, p. 7).

Assim, o que Jonas pretende quando se debruça sobre o desenvolvimento das

capacidades e funções orgânicas no Princípio Vida é derrubar por um lado as barreiras

antropocêntricas da filosofia idealista e existencialista, e por outro as barreiras materialistas

das ciências naturais. Para ele, as duas estão efetivamente unidas no mistério do corpo vivo.

Considerando-se a bioética como ética da vida, tal e qual ela foi conceituada por Potter,

considerando-se ainda a evolução deste conceito e da sua abrangência, pode-se afirmar que

agora a nova ética está conclamando a biologia a questionar a interioridade do homem.

Não é isso o que os profissionais das ciências biológicas têm que fazer diante de

questões como o prolongamento da vida, o direito de morrer, transplante de órgãos,

experiência com seres humanos, engenharia genética, fecundação artificial, reprodução

assistida, barriga de aluguel, ou transgênicos? Em questões como essas é preciso pensar no

que o homem é, no que o homem quer, na sua integridade, enfim, na própria felicidade do ser

humano. Segue-se, então, a análise dos temas mais polêmicos abordados dentro da bioética,

tendo como eixo o pensamento de Hans Jonas.

O prolongamento da vida

A construção deste trabalho se dá em torno da constatação de que o agir humano na

era tecnológica impõe novos limites porque agora as ações do homem têm uma outra

dimensão – uma dimensão que pode, inclusive, ser planetária, uma vez que a inteira biosfera

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está sob a responsabilidade do homem. Essas ações se situam no domínio não-humano, como

a poluição e o mau uso dos recursos naturais, e no domínio humano, quando o próprio homem

passa a ser objeto da técnica.. Ou seja: o homo faber está prevalecendo sobre o homo sapiens

com um poder crescente e conseqüências ainda não calculáveis. Esta efetivação do seu poder,

que bem pode prenunciar a superação do homem, esta imposição última da arte sobre a

natureza, são fatores que lançam um desafio extremo ao pensamento ético, desafio este que

anteriormente não era levado em consideração: a escolha de alternativas para situações que

antes eram consideradas elementos definitivos na constituição humana.

Os exemplos podem ser buscados em questões que atualmente suscitam polêmica

dentro das ciências biológicas e que agora têm um espaço próprio para serem discutidos: a

bioética. Trata-se de situações novas geradas a partir da biotecnologia. O prolongamento da

vida é uma delas. Viver mais ou viver para sempre não é um sonho do presente – os

precursores da química, os alquimistas, também empreenderam esforços nesse sentido. A

ficção tem mostrado, no entanto, que a imortalidade ao invés de prêmio pode se tornar um

castigo. Simone de Beauvoir retrata com maestria a angústia do não-poder-morrer, em Todos

os homens são mortais, em que o protagonista conseguiu a fórmula da imortalidade. Geração

após geração, ele vê a história se repetindo: a luta pelo poder, as guerras, as traições. Agora, a

imortalidade tornou-se um castigo maior que a morte.

Na sua abordagem, Jonas lembra a fantasia de um Bernard Shaw e de um Jonathan

Swift, sobre a vantagem do não-dever-morrer ou sobre a maldição do não-poder-morrer. E

assinala que neste último tema Swift foi o mais perspicaz dos dois. Quando retoma o tema, em

Técnica, medicina ed ética, Jonas cita passagens da principal obra de Swift - Viagens de

Gulliver – para ilustrar como a imortalidade pode deixar de ser uma benção. Gulliver encontra

no reino de Luggnagg algumas pessoas com o dom da imortalidade. O personagem se encanta

com a sorte de tais pessoas e com a sociedade que tem tal fonte de experiência e sabedoria.

Mas, logo percebe que o destino deles é piedoso por viver uma vida que não se conclui e que

se torna um peso para eles e para os mortais em torno deles. Os casamentos serão eternos ( e

isso pode não ser uma bênção). E o que é pior: aos imortais é negada a morte, mas não a

debilidade da velhice, a senilidade prejudicando a experiência mental. Mas, o problema não

reside apenas na fragilidade do corpo. Jonas continua:

É o lado espiritual da nossa existência que mais cedo ou mais tarde determina o limite, ainda que os bruxos da biotecnologia pudessem um dia descobrir os truques para fazer funcionar ilimitadamente a máquina do corpo. A idade avançada no

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homem significa um longo passado, que o espírito presente deve compreender como substrato da sua identidade pessoal. O passado cresce em nós a cada instante e traz com ele o peso do saber, das opiniões, sentimentos, decisões, capacidade adquirida, hábitos adquiridos e, naturalmente, de coisas sobre coisas. Algumas coisas podemos esquecer, podemos nos lembrar de outras, mas tudo estará de qualquer modo registrado. (Jonas, 1997, p.219).

Jonas está se referindo ao peso da experiência que ao longo do tempo e do

muito exercitar-se acaba adquirindo uma capacidade preditiva. Nada mais é novo, nada é

surpreendente. Quem sabe – diz ele – os “bruxos da tecnologia” pudessem cancelar

periodicamente o conteúdo antigo da consciência e da memória, como se faz nos

computadores, deletando os arquivos antigos para dar espaço aos novos (Jonas, 1997, 219).

Ele não faz menção a isto, mas a teoria da reencarnação, própria do budismo e também da

doutrina espírita codificada e difundida por Allan Kardec, pseudônimo do francês Hippolyte

Leon Denizard Rivail (1804/1869), trabalha com esse raciocínio: quando um corpo chega ao

fim do seu ciclo (a morte), o espírito reinicia a vida num corpo que se prepara para nascer,

esquecido das experiências anteriores (que são deletadas) e assim sucessivamente – uma

espécie de eternidade na roda da vida até que a evolução atinja seu ponto máximo.

Retornando a Jonas, ele considera que os progressos atuais na biologia celular,

possibilitam vislumbrar a perspectiva concreta de adiar o envelhecimento e prolongar a

duração da vida humana, prolongando seu término. A morte não vai mais aparecer como uma

necessidade inserida naquilo que é vivo, mas como uma falha orgânica, possível de se evitar,

podendo a princípio adiar e um dia, quem sabe, ser evitada. Um sonho perene da humanidade

parece avizinhar-se do cumprimento. Pela primeira vez é preciso pôr a sério a questão: até

que ponto isto é auspicioso? Quanto é auspicioso para o indivíduo e quanto o é para a

espécie?

Essas interrogações tocam nada menos que o inteiro sentido da nossa finitude, a

atitude diante da morte e o significado biológico geral do equilíbrio entre a morte e a

procriação. Questões metafísicas que suscitam outras bem práticas: quem deve ter acesso a

esta presumível bênção? Pessoas de valor e mérito particular? De excelência e importância

social? Aqueles que podem pagar por isto? Todos? Jonas afirma que esta última deve

aparecer como a alternativa mais justa.

Além disso, Jonas chama a atenção para um outro aspecto: prolongar a vida pode

gerar conseqüências do ponto de vista demográfico, uma vez que o prolongamento é um

abrandamento da substituição. Ou seja: uma redução da chegada de novas vidas. Resultaria

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daí um percentual decrescente de jovens em uma população crescentemente anciã – uma

situação que já começa a se caracterizar, sem intervenção da ciência no organismo do homem5

Em que medida isto pode incidir positivamente ou negativamente sobre a condição humana

em geral? A espécie vai ter um ganho ou uma perda? E até que ponto é justo ocupar

preventivamente o lugar da juventude? Jonas busca uma expressão de Hannah Arendt

(Gebürtlichkeit) para observar que o dever morrer está ligado ao dever nascer: a mortalidade

é, portanto, a outra face da fonte perene da natalidade, a própria esperança. Enfim, é preciso

perguntar: se eliminarmos a morte, devemos também eliminar a procriação? Jonas responde

que sim, porque esta última é a resposta da vida à morte.

A constituição no mundo de um contingente elevado da população de anciãos, em

detrimento da população de jovens é apenas uma das possibilidades dentro da situação que

poderia surgir com o prolongamento da vida. Por que devemos esperar que a procriação será

reduzida? Aliás, não é porque a procriação foi reduzida que a população de idosos

proporcionalmente aumentou? No caso de intervenções tecnológicas serem bem sucedidas e a

expectativa de vida aumentar para, por exemplo, mais de 100 anos, quem garante que o

Estado, através das políticas públicas, poderá influenciar no controle da natalidade? Até que

ponto o Estado pode interferir no direito das pessoas de querer ou não querer ter filhos? São

questões que devem ser tratadas democraticamente – exemplos históricos têm mostrado que o

controle da natalidade é um assunto delicado, eivado de ilações políticas, antes de se

caracterizar como uma intromissão no espaço privado, na individualidade do cidadão.

5 O aumento da proporção de idosos na população já é reconhecida e comprovadamente um fenômeno mundial. Aliás, tão profundo que está sendo chamado de “revolução demográfica”. A principal razão para o aumento da expectativa de vida até 1950 foi a diminuição da mortalidade infantil. A partir dessa época, o principal responsável está na melhoria das condições de vida após os 65 anos, como o aumento da renda média em vários países, melhoria nas condições de educação, evolução da qualidade sanitária, inovações na medicina geriátrica, entre outros fatores. A expectativa de vida aumentou em cerca de 20 anos no último século – isto significa quase o dobro se forem considerados os dois últimos séculos e este processo pode estar longe do fim, conforme indicam algumas pesquisas. Segundo dados da ONU, a expectativa de vida ao nascer aumentou de 46,5 anos, em 1950-1955, para 65, em 1995-2000. O Brasil acompanhou essa evolução, estando sempre um pouco acima da média mundial: 50,9 anos em 1950-55 para 67,2 em 1995-2000. O resultado de tudo isto é um aumento sensível na quantidade de idosos na população mundial. A população com mais de 65 anos, aumentou em nível mundial de 5,2% em 1950-55 para 6,9% em 2000 – o que significa um aumento de 33% nesse índice. O fenômeno é mais agudo nos países mais desenvolvidos: com 7,9% de idosos em 1950-55, hoje 14,3% da população tem mais de 65 anos, atingindo um aumento de 81%. Já nos menos desenvolvidos o aumento foi de 31% (de 3,9% em 1950-55 para 5,1% em 2000). No Brasil a proporção de idosos aumentou em 70% de 1950-55 para 2000, passando o índice de 3% para 5,1%. Fonte: http://www.comciencia.br (site atualizado em 2002). Acessado em 11/11/2006.

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Além disso, prolongar a vida não basta, é preciso, paralelamente, melhorar os

padrões de vida da população e as condições estruturais do próprio homem: quem em sã

consciência consentiria em viver uma vida longa se esta vida não for uma vida agradável? As

intervenções da ciência seriam também eficientes para dirimir as debilidades inerentes à

velhice? Quem trocaria uma morte digna por mais alguns anos vividos sob os cuidados de

terceiros, sejam eles parentes ou enfermeiros? Essas considerações foram feitas por Hans

Jonas em Técnica, medicina e ética. Mas, no Princípio Responsabilidade ele se detém na

questão existencial , se preocupando mais com a imortalidade. Suas palavras deixam isso

bem claro:

Desse modo, seria possível que aquilo que pretendia ser um presente filantrópico da ciência ao homem, a realização de um sonho acalentado desde tempos imemoriais – escapar à maldição da mortalidade -, transforme-se em um malefício para ele. Aqui não pretendo especular sobre o futuro ou emitir juízos de valor, embora a minha opinião a respeito seja evidente. Minha tese é, simplesmente, de que a mera perspectiva desse presente já levanta questões que nunca foram postas antes no âmbito da escolha prática, e de que nenhum princípio ético passado, que tomava as constantes humanas como dadas, está à altura de respondê-las. Contudo, essas questões devem ser encaradas, eticamente e conforme princípios, e não sob pressão de interesses (Jonas, 2006, p.59).

Morrer naturalmente, viver eternamente ou prolongar indefinidamente a vida com

os artifícios da técnica. Essa é uma discussão que podia se prolongar indefinidamente no

espaço da metafísica. A discussão de Jonas, no Princípio Responsabilidade, permanece nesse

espaço e para sedimentar seus argumentos contrários ao prolongamento da vida o autor recorre

ao conceito de filosofia dado por Platão: O estupor de olhar o mundo como se o visse pela

primeira vez. A maturidade, o ceticismo advindo das experiências vividas permitiria ao

homem de mais idade olhar o mundo com novos olhos, imbuir-se da sensação de espanto

diante do que vê? A mortalidade se justifica, então, por nos oferecer a promessa

continuamente renovada da novidade, da imediaticidade e do ardor da juventude, e ao mesmo

tempo uma permanente oferta de alteridade como tal. Assim, Jonas diz que

Não há substituto para tanto numa acumulação maior de experiência prolongada: ela nunca poderá reconquistar a prerrogativa única de se ver o mundo pela primeira vez e com olhos novos, nem reviver o espanto (para Platão, o princípio da filosofia) ou a curiosidade da criança, que raramente transmuda em ânsia de saber no adulto, até que ela ali se paralise. Esse eterno recomeçar, que só se pode obter ao preço do

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eterno terminar, pode muito bem ser a esperança da humanidade, que a protege de mergulhar no tédio e na rotina, sendo a sua chance de preservar a espontaneidade da vida (Jonas, 2006, p.58/59).

Concluindo esse tópico, é pertinente observar que na segunda abordagem, em

Técnica, medicina ed ética, Jonas é mais pragmático. Depois de concluir que a mortalidade é

uma bênção, ele ressalva que é um dever da civilização combater a morte prematura entre os

homens no âmbito mundial, combatendo todas as suas causas, especialmente a fome, as

guerras e as doenças. E arremata: “No que concerne a cada um de nós, saber que

permanecemos aqui por pouco tempo e que esse tempo tem um limite não negociável, pode ser

realmente necessário como impulso para valorizar os nossos dias e vivê-los de modo que eles

contem por eles mesmos” (Jonas, 1997, p.221).

O direito de morrer

Toda a reflexão do ser humano primitivo luta contra o enigma da morte, seja

através do mito, do culto ou da religião. Esse e outros mistérios da vida são analisados por

Jonas no Princípio Vida. Ele se detém na observação de que antes de espantar-se com o

milagre da vida, o ser humano espantou-se com a morte e procurou descobrir seu significado.

Essa explicação tinha que se incorporar à vida ou não teríamos como entender, como

assimilar o seu sentido, fosse ele qual fosse.

Seu texto, no início do livro, está eivado de interrogações: quando e por que a

morte entrou no mundo e com que ela está em contradição, uma vez que a natureza do mundo

é a vida? Para onde ela leva no contexto da vida? A morte é a passagem para quê, já que tudo

quanto existe é vida e que a morte, em última análise, não pode ser diferente? “Dos túmulos –

diz Jonas – surgiu a metafísica, sob a forma do mito e da religião. A metafísica procura

resolver esta contradição básica, de que tudo é vida e que toda vida está sujeita à morte. Ela

se expõe ao desafio radical e para salvar a totalidade das coisas nega a morte” (Jonas, 2004,

p.18).

Com o pensamento moderno, a partir do Renascimento, nos encontramos em

situação oposta: o natural, aquilo que se pode compreender é a morte. Agora, a vida é que é

um problema. Ampliado, o universo da cosmologia moderna se transforma em um campo de

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massas, de forças, cuja leitura se faz através das leis da física e da matemática. As ciências

exatas é que vão dar a medida do que na natureza é possível ser conhecido. “No ser físico, não

só no que diz respeito às relações de quantidade, mas no tocante também à sua verdade

ontológica, a não vida é a regra e a vida uma exceção e um enigma” (Jonas, 2004, p.20).

Agora, o que exige uma explicação no universo orgânico é a existência da vida – e esta

explicação tem que ser dada em termos de matéria inerte. A vida tem que prestar contas de si

própria, em obediência ao que esta imagem prescreve. Jonas acrescenta:

Quantitativamente um nada na incomensurabilidade da matéria cósmica. Qualitativamente uma exceção à regra das propriedades desta matéria, para o conhecimento o inexplicado na universal compreensibilidade da natureza física, a ‘vida’ passou a ser a pedra de tropeço da teoria. Que exista vida, e como assim seja possível em um mundo de pura matéria, este é o problema com que agora o pensamento terá que ocupar-se. O próprio fato de termos hoje que discutir o problema teórico da vida em lugar do da morte atesta o status da morte como o estado natural, como aquilo que se explica por si mesmo (Jonas, 2004, p.20).

O cadáver seria então, entre os estados do corpo, o mais fácil de ser compreendido.

É neste estado que o corpo deixa de ser um enigma, retornando ao estado claro e familiar de

um corpo dentro do conjunto do mundo corporal, cujas leis gerais constituem a regra de toda

compreensão. Sim, a morte é (a princípio) um estado definitivo, definível por si só. Quando

não há mais batimentos cardíacos não há dúvida nenhuma da caracterização da morte. Mas e

quando ocorre apenas a morte cerebral ? Dizemos que a pessoa está “tecnicamente” morta.

Ocorrendo a morte cerebral pode ocorrer que o coração continue batendo e as funções vitais

poderão ser mantidas – ligadas ou desligadas dos aparelhos – por horas, dias ou anos. A

americana Terri Schiavo viveu durante 15 anos respirando por si mesma, apenas conectada a

um tubo de alimentação que evitava a morte por inanição. Karen Quinlan viveu por mais 9

anos depois que a justiça americana autorizou o desligamento do respirador.

Em Técnica, medicina e ética, Jonas abre um capítulo para discorrer sobre o tema

“Técnicas de adiamento da morte e o direito de morrer”. Na introdução considera singular que

se deva falar sobre o direito de morrer quando desde sempre os discursos sobre os direitos se

referem àquele que é o mais fundamental de todos: o direito de viver. Geralmente se aspira a

um bem e a morte é considerada um mal ou – na melhor das hipóteses – algo a que precisamos

nos resignar. A tarefa torna-se ainda mais singular quando se considera que morrendo nós

renunciamos a qualquer outra pretensão, porque estamos reivindicando o próprio fim. Mas, a

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primeira referência diz respeito a uma situação em que a vida já não prevalece como tal. Uma

situação de tal penúria e sofrimento que o próprio paciente rejeita ou, estando este

inconsciente, a família vai rejeitar. É a hora, então, de se pensar numa “boa morte”. Dentro

desse espaço, o termo apropriado é eutanásia (eu=bom/boa; thánatos=morte).

O tema não é completamente novo: desde a antiguidade a eutanásia assoma como

uma possibilidade capaz de pôr fim ao sofrimento do paciente condenado à morte ou do

guerreiro mortalmente ferido. No entanto, situações como essas foram adquirindo novas

configurações, atualmente tão complexas quanto a sofisticação suscitada pelas novas

tecnologias. Com a evolução do aparato técnico, surgem novos termos como a distanásia e a

ortotanásia. Tudo isso merece uma reflexão ética. A primeira delas é a eutanásia.

Os primeiros países do mundo a oficializar juridicamente a eutanásia foram a

Holanda e a Bélgica, em 2002. Conforme Pessini, entre as exigências legais para a sua

execução estão o pedido livre e voluntário do paciente, uma avaliação criteriosa dessa

solicitação e a certeza de que o paciente esteja realmente experimentando um sofrimento

intolerável, sem perspectiva de cura e melhora. A lei determina que este deve ser o último

recurso a ser empregado, que a sua prática cabe ao médico e que este deve consultar um outro

médico independente. Pessini relata que mesmo antes da legalização, a eutanásia já era

“tolerada” na Holanda, país onde, somente em 1996, morreram 2.300 pessoas através desta

prática, que conta com o apoio de 80% da população (Pessini, 2006, p.114).

Os médicos brasileiros, através do conselho Federal de medicina, assumiram no

final de 2006 uma posição a respeito do assunto. A resolução é válida para médicos de todo o

país, mas não tem força de lei – trata-se de uma doutrina, um documento que conclama os

profissionais a uma reflexão. Isto significa que a eutanásia continua sendo uma prática ilegal,

especificada no artigo 121, parágrafo 3, do código penal. O artigo está sob o título de

“Homicídio” . Art. 121 – matar alguém. Pena – reclusão de seis a vinte e seis anos. Eutanásia

– parágrafo terceiro – se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima imputável e

maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave. Pena –

reclusão, de três a seis anos . Em seguida, sob o título “exclusão de ilicitude”, o parágrafo

quarto diz textualmente:

Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

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A resolução do conselho Federal de Medicina de número 1.805/2006, publicada no

Diário oficial da União em 28 de novembro do ano em curso, não contradiz o texto da lei, o

sentido é o mesmo, apenas as palavras são diferentes. Além disso, o texto elaborado pela

classe médica pensou na necessidade dos cuidados requeridos pelo enfermo na condição de

paciente terminal, coisa que a lei não faz, vez que deve se preocupar apenas com a tipificação

do crime e o estabelecimento da punição. A resolução do CFM diz que:

Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.

O artigo primeiro da resolução do CFM apenas reafirma o conteúdo da resolução.

O artigo segundo estipula o que é considerado como ortotanásia: “O doente continuará a

receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento,

assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive

assegurando-lhe o direito de alta hospitalar”. A ortotanásia é uma espécie de meio termo ou

ponto de equilíbrio entre a eutanásia – procedimento que abrevia a vida em caso de doença

incurável, que apresenta sofrimento para o paciente – e a distanásia, uma expressão

relativamente nova, definida pelo dicionário Aurélio como morte lenta, ansiosa e com muito

sofrimento. “Trata-se – define Pessini – de tratamento fútil e inútil, que simplesmente

prolonga a agonia, o sofrimento e adia a morte. Nessa conduta, não se prolonga a vida

propriamente dita, mas o processo de morrer. É a obstinação terapêutica que nega a finitude

humana” (Pessini, 2006, p.115).

O texto do CFM (2006) é intitulado “A ética e os pacientes terminais”. A parte

dedicada à exposição de motivos é introduzida com a constatação de que a medicina atual vive

um momento de busca de sensato equilíbrio na relação médico-enfermo. Considera que a ética

médica tradicional, concebida no modelo hipocrático tem um forte acento paternalista,

cabendo ao enfermo apenas obedecer as decisões médicas. Foi assim até a primeira metade do

século XX, quando eram desconsiderados os valores e as crenças dos enfermos – os atos

médicos eram julgados levando-se em conta a moralidade do agente.

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Ainda na exposição de motivos, está escrito que na mesma época a medicina

começou a incorporar com muita rapidez um impressionante avanço tecnológico. Com as

unidades de terapia intensiva e as metodologias criadas para aferir e controlar as variáveis

vitais, os profissionais adquirem a capacidade de adiar o momento da morte. O texto faz

menção ao livro de Bernard Lown – A arte perdida de curar – onde ele afirma que os futuros

médicos são preparados para serem oficiais maiores da ciência e gerentes de biotecnologias

complexas. Segundo Lown, os médicos aprendem pouquíssimo a lidar com a morte. E isto

dentro de uma realidade em que a revolução biotecnológica possibilita o prolongamento

interminável do morrer.

Considerando-se que a resolução do CFM é de caráter interno, pode-se deduzir

que o documento destina-se a consagrar um espaço para a reflexão ética – uma reflexão

fundamental e que não acompanhou devidamente o crescimento do poder de intervenção do

médico. O texto registra essa constatação e junto com ela o reconhecimento dos benefícios

trazidos pelas novas metodologias diagnósticas e terapêuticas. Como exemplo, cita os

enfermos recuperados após infarto agudo do miocárdio e/ou enfermidades com graves

distúrbios hemodinâmicos que foram resgatados plenamente saudáveis por meio de

engenhosos procedimentos terapêuticos.

No entanto, as mesmas UTIs que atendem os pacientes agudamente enfermos, com

possibilidades de plena recuperação, passaram a receber enfermos portadores de doenças

crônicas degenerativas incuráveis – e para eles não se pode oferecer mais do que um

sobreviver precário e, às vezes, não mais do que vegetativo. Em situações como essas,

geralmente é difícil definir quem tem e quem não tem possibilidade de recuperação. E em

meio a dilemas dessa natureza, os médicos são tomados por questões existenciais do tipo: qual

o real significado da vida e da morte? Até quando avançar nos procedimentos de suporte vital?

Em que momento parar? Guiados por quais modelos de moralidade?

O texto do CFM reconhece que existe um despreparo para questões dessa natureza,

que muito se ensina sobre tecnologia de ponta e pouco sobre o significado ético da vida e da

morte. Para reforçar essa argumentação, retira de um trabalho publicado no Archives of

Internal Medicine, em 1995, a informação de que apenas cinco de 126 escolas de medicina

norte-americanas ofereciam ensinamentos sobre a terminalidade humana. Apenas 26 dos

7.048 programas de residência médica tratavam do tema em reuniões científicas. Como diz

Pessini, “a cultura ocidental esconde e nega a morte. Essa atitude acaba marginalizando os

doentes terminais, que estão aí para nos lembrar de algo que não gostamos nem de pensar:

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do nosso fim, pois simplesmente somos mortais” (Pessini, 2006, p.117). Os médicos

reconhecem que não estão preparados para questões dessa natureza:

Despreparados para a questão, passamos a praticar uma medicina que subestima o conforto do enfermo com doença incurável em fase terminal, impondo-lhe longa e sofrida agonia. Adiamos a morte às custas de insensato e prolongado sofrimento para o doente e sua família. A terminalidade da vida é uma condição diagnosticada pelo médico diante de um enfermo com doença grave e incurável; portanto, entende-se que existe uma doença em fase terminal, e não um doente terminal. Nesse caso, a prioridade passa a ser a pessoa doente e não mais o tratamento da doença (CFM res. nº 1.805/2006, p. 4).

O documento do CFM diz que a velha máxima de que é função do médico “curar

às vezes, aliviar muito frequentemente e confortar sempre”, tem sido esquecida na medida em

que se empenha no tratamento da doença da pessoa, deixando de cuidar da pessoa doente. E

assim fazendo desconhecem que a missão primacial deve ser a busca do bem-estar físico e

emocional do enfermo, já que todo ser humano sempre será uma complexa realidade

biopsico- social e espiritual. Os médicos estão repensando o que o próprio texto chama de

obsessão de manter a vida biológica a qualquer custo, o que pode levar à obstinação

diagnóstica e terapêutica. Alguns, sob a alegação de que a vida é um bem sagrado, se

determinam a tudo fazer enquanto restar um débil sopro de vida. A questão é vista à luz de

um documento da igreja Católica, datado de maio de 1995:

Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado excesso terapêutico, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionais aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida (CFM, res. nº 1805/2006, p. 4).6

6 A citação usada pelo CFM consta na página do Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz como sendo da Encíclica Evangelium Vitae, nº 65. Em seguida ao que foi citado na resolução do Conselho, lê-se: “...sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. (...) A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionais não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte” (ss. João Paulo II, Encíclica Evangelium Vitae, n 65). A página está acessível em http//www.providaanapolis.org.br/eutvista.htm. Acessada em 01/12/2006.

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O texto prossegue reconhecendo que a vida humana chega, inevitavelmente, ao seu

final. Àqueles que assistem aos enfermos portadores de doenças em fase terminal cabe

assegurar que essa passagem ocorra de forma digna, com cuidados e buscando o menor

sofrimento possível. O dilema é: usar ou não usar toda a tecnologia disponível. O exagero é

denominado obstinação terapêutica, definida pela utilização de procedimentos terapêuticos

cujos efeitos são mais nocivos que o próprio mal a ser curado. Essa batalha, mesmo que

travada em nome do caráter sagrado da vida, parece negar o que ela tem de mais essencial: a

dignidade.

Não há dúvida. O documento do CFM é um convite à discussão filosófica. Depois

de reconhecer que no Brasil há muito o que fazer com relação à terminalidade da vida, os

médicos propõe que sejam incentivados os debates sobre a finitude do ser humano, junto à

sociedade e aos profissionais da área de saúde. E mais:

É importante que se ensine aos estudantes e aos médicos, tanto na graduação quanto na pós-graduação e nos cursos de aperfeiçoamento e de atualização, as limitações dos sistemas prognósticos; como utilizá-los; como encaminhar as decisões sobre a mudança da modalidade de tratamento curativo para a de cuidados paliativos; como reconhecer e tratar a dor; como reconhecer e tratar os outros sintomas que causam desconforto e sofrimento aos enfermos; o respeito às preferências individuais e às diferenças culturais e religiosas dos enfermos e seus familiares e o estímulo à participação dos familiares nas decisões sobre a terminalidade da vida. Ressalte-se que as escolas médicas moldam profissionais com esmerada preparação técnica e nenhuma ênfase humanística (CFM, res. nº 1805/2006, p. 5).

O texto revela o sentimento de fracasso do médico perante a morte do enfermo sob

os seus cuidados – justamente porque é ele quem detém a maior responsabilidade da cura. No

entanto, observa que o entusiasmo pelas possibilidades técnicas não deve interferir na

aceitação da morte. Que haja maturidade suficiente para pesar qual modalidade de tratamento

será a mais adequada e que seja considerada a eficácia do tratamento pretendido, seus riscos

em potencial e as preferências do enfermo e/ou de seu representante legal. “Diante dessas

afirmações – prossegue o documento – torna-se importante que a sociedade tome

conhecimento de que certas decisões terapêuticas poderão apenas prolongar o sofrimento do

ser humano até o momento de sua morte, sendo imprescindível que médicos, enfermos e

familiares, que possuem diferentes interpretações e percepções morais de uma mesma

situação, venham a debater sobre a terminalidade humana e o processo de morrer” (CFM,

res. nº 1805/2006, p. 5).

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Concluindo, o documento do CFM considera vital que o médico reconheça a

importância da necessidade da mudança do enfoque terapêutico diante de um enfermo

portador de doença em fase terminal. Nesse sentido, reporta-se à Organização Mundial de

Saúde, que preconiza a adoção de cuidados paliativos, ou seja, uma abordagem voltada para a

qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares frente a problemas associados

a doenças que põem em risco a vida. E arremata: “A atuação busca a prevenção e o alívio do

sofrimento, através do reconhecimento precoce, de uma avaliação precisa e criteriosa e do

tratamento da dor e de outros sintomas, sejam de natureza física, psicossocial ou espiritual”

(CFM, res. nº 1805/2006, p. 5).

O aperfeiçoamento da lei e a elaboração de documentos a respeito de temas

polêmicos como é a eutanásia são bem vindos, especialmente porque refletem o interesse dos

profissionais em buscar mais conhecimento sobre um determinado assunto. É importante

também como base de sustentação legal e moral para a categoria. Entretanto, uma

determinação legal não é o bastante para enfrentar os dilemas éticos suscitados numa situação

de terminalidade. Será que em países como a Holanda e a Bélgica – onde a Eutanásia é

permitida – o médico deixou de enfrentar as dúvidas referentes à morte, ao sentido da perda

para a família, aos sentimentos de quem está para morrer?

Se para o médico manter ligados os aparelhos que sustentam a vida pode se

caracterizar como “obstinação terapêutica”, para a família esse tempo pode representar o

adiamento da perda ou mesmo a possibilidade de conservar o espaço para a obtenção de um

milagre. Evidente que as situações não são iguais. E, diante das diferenças, a lei, os princípios,

as normas ou as resoluções serão de muita utilidade. Garrafa tem razão em defender o

contextualismo – cada caso tem as suas peculiaridades – é preciso contextualizar, como ocorre

no exemplo a seguir.

O caso de Terri Schiavo ocorreu no Estado da Flórida, onde ela foi internada em

1990, com um dano cerebral, provocado por uma parada cardíaca, aos 26 anos de idade. Ela

permaneceu em estado vegetativo (EV)7 durante 15 anos, vindo a falecer em 31 de março de

7 Baseado em um documento elaborado durante congresso da Federação Mundial de Associações Médicas Católicas e a Pontifícia Academia para a Vida, em 2004, Pessini observa que “estado vegetativo não tem nada a ver com morte encefálica ou coma. Em geral, o doente em estado vegetativo não precisa de apoios tecnológicos para a conservação de suas funções vitais e não deve ser, de forma alguma, considerado um doente terminal, podendo sua condição se prolongar, estavelmente por muitos anos. Nenhum dos métodos de investigação é capaz de prever, em cada um dos casos, se os doentes em estado vegetativo restabelecer-se-ão ou não”. Ele observa, no entanto, que o doente em estado vegetativo é pessoa humana e, como tal, merece que sejam respeitados os seus direitos fundamentais, sendo o primeiro deles o direito à vida e à tutela da saúde. Enumera, então, que nessas condições o paciente tem direito à: correta e aprofundada avaliação diagnóstica, a fim de evitar possíveis erros e orientar intervenções de reabilitação; assistência de base, que inclua hidratação, nutrição, aquecimento e higiene; prevenção das possíveis complicações e controle de qualquer eventual sinal de restabelecimento; processo

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2005. A paciente respirava por si mesma, mas precisava ser alimentada através de um tubo. O

marido, Michael Schiavo, que já havia formado uma nova família, por três vezes conseguiu na

justiça o consentimento para descontinuar o tratamento. A família de Terri conseguiu reverter

as duas primeiras autorizações. Queriam continuar alimentando a filha – e este é um instinto

primário, especialmente da mãe pelos filhos. Em 19 de março de 2005 o tubo foi retirado pela

última vez. Terri morreu 13 dias depois. Ora, se a paciente respirava normalmente e apenas

precisava de cuidados básicos, como hidratação e alimentação – e todo ser vivo precisa disto -

pode-se concluir que ela morreu de sede e de fome.

Oliveira de Azevedo, em Bioética Fundamental (2002), discorre sobre um outro

caso que também é emblemático na história da eutanásia. O fato se deu em 1976, quando a

Suprema Corte do Estado de New Jersey (USA) permitiu que um representante legal da

paciente Karen Ann Quinlan fosse desconectada do respirador. No ano anterior, então com 21

anos de idade, ela entrou na emergência do Newton Memorial Hospital, em estado de Coma,

sob suspeita de uso de álcool associado a calmantes. Dez dias depois foi transferida para outro

hospital. Após serem informados da irreversibilidade do caso, seus pais adotivos solicitaram a

retirada do respirador. Foi aí que os problemas começaram.

O médico assistente negou-se a retirar o aparelho, alegando problemas morais e

profissionais. Depois de ter o primeiro pedido negado pelo juiz, a família apelou para a

suprema corte de New Jersey , que designou o comitê de ética do hospital para decidir sobre a

irreversibilidade do caso de Karen. Mas, nem todos os hospitais possuíam um comitê de ética

e aquele era um deles. Foi então criada a comissão, que deu parecer de irreversibilidade para o

caso. Feito isto, o juiz acatou o pedido da família em solicitar o desligamento dos

equipamentos de suporte extraordinário. Oliveira Azevedo relata que:

Após a remoção do respirador, Karen ainda sobreviveu por nove anos, mantida com medicamentos e antibióticos, e sustentada por nutrição e hidratação fornecidas por meio de uma sonda nasogástrica. Incapaz de se comunicar, ela permaneceu comatosa em uma posição fetal, com persistentes problemas respiratórios, escaras

adequado de reabilitação que favoreça a recuperação e manutenção dos objetivos alcançados; ser tratado como qualquer outro doente em termos de cuidado. O documento conclui que a pessoa em estado vegetativo não pode ser considerada um peso para a sociedade. Pelo contrário, ela deve ser reconhecida como um apelo à realização de modelos novos e mais eficazes de assistência e solidariedade social (Pessini, 2006, p.121/122). Tanto em estado vegetativo, quanto no coma, o paciente não tem consciência do que acontece ao seu redor. Mas, em EV o paciente pode eventualmente abrir os olhos, agarrar algo que lhe é colocado na mão e até emitir sons. Funções vegetativas do cérebro são aquelas que não necessitam de consciência para serem executadas, como respirar, manter o coração batendo, mexer os olhos. A diferença está em que no coma o paciente pode acordar de uma hora para outra, pode morrer ou passar para o estado vegetativo. No EV é mais difícil prever: o paciente acaba morrendo.

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de decúbito e perda progressiva de peso. O caso mobilizou a opinião pública americana e inúmeras questões de ordem moral foram suscitadas na ocasião. Qual a justificativa moral para o emprego de medidas extraordinárias de sustentação vital nessas situações em que não há perspectiva de recuperação de uma condição razoável de vida e de relacionamento? Se foi moral e legalmente permitida a retirada do respirador, por que razão não seria também permissível a retirada da sonda de alimentação? Na ocasião, houve quem sustentasse que não havia exigência moral de continuar a administrar nutrição, hidratação e antibióticos. Entretanto, os Quinlan continuaram a exigir a administração de água, nutrientes e medicamentos, pois eles acreditavam que a sonda de alimentação não causava dor a karen, ao contrário do respirador. Haveria nisso alguma diferença essencial entre continuar a tratar e prosseguir cuidando da vida e da saúde de alguém, dentro ou fora de um hospital? (Azevedo, 2002, p.32).

A história de Karen Ann Quinlan é um exemplo clássico de como a lei e as

normas médicas podem se tornar insuficientes na busca de uma solução para determinados

dilemas éticos. Os pais queriam desligar o respirador. O médico se recusou, em respeito às

normas da profissão. O juiz precisou buscar mais informações. Tomada a decisão pelo

desligamento, o destino impôs sua sentença: mesmo com o respirador desligado, a paciente

viveu (?) em estado comatoso por mais 9 anos.

De acordo com a análise de Azevedo, o caso Karen possibilita visualizar alguns

dos dilemas e conflitos que se encontram atualmente nas discussões dentro da bioética. A

posição sustentada pelo médico de karen e a posição mantida é um exemplo do conflito entre

a ética médica tradicional e a bioética atual. Como profissional, o médico julga-se competente

para decidir sobre o que é melhor para a paciente. Mas, os pais se consideram moral e

legalmente autorizados a decidir sobre o que é melhor para sua filha. Pela ética médica

tradicional, o médico tem autonomia para decidir sobre a conduta mais correta em cada caso

particular. A bioética contemporânea exige que se respeite a autonomia que tem o paciente ou

seus familiares de decidir. “Ou seja – continua Azevedo – enquanto de um lado, a decisão

clínica é considerada um assunto eminentemente de ordem médica, de outro, afirma-se que

essa decisão é objeto de um consentimento. Aliás, um dos conceitos mais importantes na

bioética atual é o consentimento informado ou esclarecido” (Azevedo, 2002, p.33).

Uma análise sobre o assunto é feita em Iniciação à bioética (1998), onde Romero

Muñoz e Carvalho Fontes assinalam que o juramento de Hipócrates ainda é o documento

através do qual se expressam os ideais da medicina e os alicerces da postura ética do médico.

Observam, no entanto, que existe nele uma lacuna no que se refere ao livre arbítrio do

paciente para decidir – a vontade do paciente sequer é mencionada. Os autores entendem que

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isto se deve ao fato do juramento ter sido feito pelos médicos e para os médicos numa época

em que esses profissionais formavam uma espécie de irmandade, havendo, inclusive, a

obrigação de se guardar o segredo da doutrina.

Na mesma época surge na Grécia um novo tipo de médico, aquele que vai exercer a

medicina-ciência, em contraposição aos que se dedicavam à medicina de cunho religioso. Os

autores relatam que o profissional dedicado à recém criada ciência médica, no período clássico

da cultura grega, já buscava uma relação mais harmoniosa com o paciente, prestando-lhe

esclarecimentos – mas a ética hipocrática não havia ainda se libertado do autoritarismo da

medicina sacerdotal. Nem se libertaria tão cedo. Os autores explicam que:

Esses ideais da ciência médica grega, mergulhados no absolutismo que se seguiu à democracia grega e no obscurantismo da idade Média, feneceram no seu nascedouro e a conduta autoritária e paternalista do médico para com o paciente continuou a preponderar na relação. Pior, durante o período medieval a filosofia grega da ordem natural foi cristianizada pelos teólogos e a ética médica passou a ser formulada pelos moralistas e aplicada pelos confessores; ao médico era dado tudo pronto, pedindo-se – ou exigindo-se - que a cumprisse (Muñoz/Fontes, 1998, p.55).

No século XVIII, quando a democracia ressurge, ela não é apenas o poder do povo:

ela representa o direito ao voto, à livre expressão, à propriedade, entre outros. Esses direitos

vão sendo configurados nas declarações fundamentais de direitos da humanidade, até

culminarem com a Declaração Universal dos direitos Humanos, aprovada pela ONU em 10 de

dezembro de 1948. Muñoz e Fontes observam que todas as revoluções democráticas ocorridas

no mundo ocidental a partir do século XVIII tiveram por base defender esses princípios. “O

mais curioso – escrevem eles – é que este movimento pluralista e democrático, que se instalou

na vida civil das sociedades ocidentais, só chegou à medicina recentemente” (Muñoz/Fontes,

1998, p.56). Ou seja: o paciente continuou a ser considerado como um incompetente físico e

moral, devendo ser conduzido em ambos os campos por seu médico. Por tradição, a relação

médico-paciente tem sido paternalista e absolutista.

Um fenômeno histórico recente, a conquista da autonomia é que vem deslocando

pouco a pouco os princípios da beneficência e da não-maleficência como prevalentes nas

ações de assistência à saúde. Foi a partir dos anos 60 que movimentos reivindicativos do

direito à saúde e humanização dos serviços de saúde começaram a ampliar a consciência dos

indivíduos acerca de sua condição de agentes autônomos. No Brasil, os códigos de ética

profissional vêm tentando, desde a década de 80, estabelecer uma relação dos profissionais

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com seus pacientes que possibilite a ampliação do princípio da autonomia. Assim, vem

crescendo a discussão e, consequentemente, a elaboração de normas deontológicas sobre as

questões envolvendo as relações de assistência à saúde, contendo os direitos fundamentais que

devem reger a vida do ser humano.

O artigo 46 do código de ética médica veda ao médico efetuar qualquer

procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu

representante legal, salvo em iminente perigo de vida. Pelo artigo 48, os profissionais são

interditados de limitar o direito dos pacientes decidirem livremente sobre sua pessoa ou sobre

seu bem-estar. Os artigos 56 e 59 reforçam o direito do paciente de decidir livremente sobre a

execução de práticas diagnósticas e terapêuticas; e o direito à informação sobre o diagnóstico,

o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento.

Agora é possível chegar uma conclusão sobre o “Consentimento livre e

esclarecido” e entender porque ele está associado à autonomia. Ora, Se o paciente tem

reconhecida a sua autonomia, então ele conquistou também o direito de consentir ou recusar

propostas de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico que afetem ou venham a afetar sua

integridade físico-psíquica ou social. Mas, para consentir ou recusar ele precisa ter

conhecimento de causa, saber os prós e os contras das intervenções cogitadas para a sua

situação. Daí o termo “Consentimento Livre e Esclarecido” – livre para decidir, após ser

municiado dos devidos esclarecimentos.

Quanto ao tipo de informação é outro aspecto que também deve ser observado:

nem todo paciente é capaz de entender o vocabulário utilizado na medicina. Segundo Muñoz e

Fontes, os profissionais de saúde trabalham na prática com três padrões de informação: o

modelo do primeiro padrão consiste em fazer um balanço entre as vantagens e os

inconvenientes da informação, assim como os tópicos a serem discutidos e a magnitude de

informação a ser revelada em cada um deles. Os próprios autores reconhecem que este padrão

negligencia o princípio ético da autonomia do paciente. O segundo padrão consiste em

pressupor o que uma pessoa razoável, mediana, necessitaria saber sobre condições de saúde e

propostas terapêuticas. Também este peca contra o princípio da autonomia, pois ainda é o

profissional quem está decidindo pelo paciente e, inclusive, pressupondo sobre a sua

capacidade intelectual.. O terceiro padrão é denominado “orientado ao paciente” ou “padrão

subjetivo”. Este é, segundo os autores, o mais apropriado.

Utilizando-o, o profissional procura uma abordagem informativa apropriada a cada pessoa, personalizada, passando as informações a contemplarem as expectativas, os

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interesses e valores de cada paciente, observados em sua individualidade. Advogamos a utilização deste padrão de informações, pois requer do profissional descobrir, baseado nos conhecimentos e na arte de sua prática, e observando as condições emocionais do paciente e fatores sociais e culturais a ele relacionados, o que realmente cada individuo gostaria de conhecer e o quanto gostaria de participar das decisões (Muñoz/Fontes, 1998, p.66)

Interessante observar que o paciente goza também do direito de não ser informado,

caso não queira tomar conhecimento, por exemplo, de um diagnóstico grave. Nestes casos, é

preciso indicar um parente ou representante legal para servir como canal de informação. Isto

leva a uma reinterpretação do princípio da autonomia, assim entendido como respeito à

vontade pessoal do paciente. É preciso, no entanto atentar para os exageros. Nos Estados

Unidos, havendo um prognóstico grave, os profissionais de saúde informam ao paciente quase

sempre imediatamente após terem se certificado do diagnóstico. Isso ocorre em atendimento a

requisitos legais, cujo descumprimento pode implicar em vultosas ações indenizatórias.

A fim de formalizar o consentimento esclarecido e informado, foi estabelecida no

Brasil a utilização de formulários padronizados em que o paciente deve assinar quando

concordar com os procedimentos a serem realizados em determinadas patologias, cirurgias e

agravos à saúde. Munõz e Fontes consideram essa providência insuficiente. Eles defendem

que a informação seja personalizada e temem que medidas desta natureza se transformem em

meros ritos legais e administrativos, sem de fato trazerem informações e esclarecimentos à

pessoa assistida. E complementam: “Do ponto de vista ético, a informação a ser transmitida

ao paciente é mais ampla do que exigem as normas legais e as decisões dos

tribunais”(Muñoz/Fontes, 1998, p. 66).

Um ponto nevrálgico a ser discutido quando o assunto é a eutanásia é a questão dos

recursos. É sabido que as Unidades de Terapia Intensiva – UTIs – por serem tecnologicamente

avançadas são caras e raras. Assim um dilema comum em meio aos profissionais de saúde é

escolher quem vai ficar e quem vai sair para ceder o lugar a outro paciente. Inclusive, foi

numa situação dessa natureza que o debate ético floresceu, impulsionando o nascimento da

bioética. Ou seja: o cenário das novas tecnologias vai coincidir com o surgimento da bioética

justamente por criar situações novas e a exigência de uma solução para os respectivos dilemas

– a hemodiálise se constitui num exemplo dessa natureza.

Segundo relata Oliveira de Azevedo (2002), a diálise já era feita desde 1940, mas

não era possível realizá-la de forma repetida. Foi do médico Belding Scriber, de Seattle, a

idéia de manter um acesso arteriovenoso permanente no braço de seu paciente, empregando

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para isso um pequeno dispositivo feito de teflon. A primeira experiência foi em 9 de março

de 1960, com o paciente Clyde Shields. O fato atraiu a atenção da mídia e o Seattle Artificial

Kidney passou a ter muito mais pacientes do que poderia tratar - foi preciso pensar numa

triagem e para isso criou-se um comitê de pessoas leigas com a responsabilidade de escolher

quais os pacientes teriam prioridade no uso dos aparelhos de diálise. Esse comitê foi

denominado pela Revista Life de “comitê da vida e da morte”. “Surge o problema da

alocação de recursos em medicina e com ele dá-se início à bioética”, acrescenta Oliveira de

Azevedo (2002, p. 85).

Prolongar artificialmente a vida também tem um custo alto para o sistema público

carente de vagas na UTI. A declaração foi feita por José Maria orlando, então presidente da

Associação de medicina Intensiva Brasileira, um dos 16 médicos ouvidos para uma

reportagem da Folha de São Paulo, a isto acrescentando que há pelo menos um paciente

terminal em cada uma das 1.440 UTIs do país (Collucci/Leite/Góis, 2005, p. 3). Todos os 16

médicos ouvidos defendem a eutanásia como abreviação do sofrimento do doente e da sua

família. Alguns vêem nesse procedimento razões mais práticas, como a necessidade de vaga

na UTI para alguém com chances de sobrevivência ou a pressão, na medicina privada, para

diminuir custos. O patologista Marcos de Almeida revelou que frequentemente se usa um

coquetel batizado de M1: “É feito de monte. O doente está em fase terminal, não se beneficia

mais com a analgesia, o médico vai e aumenta a dose de sedação. Isso tem um efeito tóxico e

vai levar o paciente à morte” (Collucci/Leite/Góis, 2005, p. 2).

Alguns autores, ao entrarem no espaço da finitude humana, abordam a questão do

suicídio e do suicídio assistido. Em Técnica, medicina e ética, Jonas não discute o tema. Não

pretendemos nos aprofundar no assunto, mas apenas para que ele não passe despercebido, nos

reportaremos a Oliveira de Azevedo, que analisa o suicidio através de Kant e Hume. Ele conta

que na metafísica dos costumes (1797) Kant argumenta que o ser humano tem o dever de

conservar a própria vida, pois eliminar o próprio agente da moralidade é como eliminar do

mundo a moralidade mesma em sua existência. E ninguém tem o direito de eliminar a própria

fonte de seu direito. Oliveira de Azevedo faz a leitura do ponto de vista do filósofo alemão:

Isso implicaria dispor-se de si mesmo como mero meio para satisfação de um fim (o alivio do sofrimento, por exemplo), o que desqualificaria o conceito de autonomia. Assim, dispor-se de si mesmo como um simples meio para qualquer fim supõe

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desvirtuar a humanidade em sua própria pessoa8 . Ou seja, não é possível submeter a norma que autoriza o suicídio ao princípio de universalização. Não se poderia admitir que todos pudessem, ao mesmo tempo, querer que essa norma pudesse ser aplicada de modo universal. Isso implicaria a própria extinção da humanidade, a extinção do homem como ser autônomo, o noumenon de kant (Azevedo. 2002, p.106).

David Hume vê o suicídio por uma outra ótica. Em um artigo que foi publicado um

ano depois da sua morte, o filósofo pergunta se o ato de tirar a própria vida, tendo em vista

intensos sofrimentos, poderia ser moralmente questionado e recriminado. As objeções feitas

ao suicídio ele chama de superstições perniciosas. Somente a covardia nos impeliria a cometer

o suicídio se ele fosse um crime moralmente recriminável. Assim, Azevedo observa que na

suposição de que ocorre o contrário do que pensam os supersticiosos, ou seja, o suicida não

estaria cometendo nenhum crime contra a moral, o ato de se matar seria louvável. “Então –

prossegue – na ocasião em que sua vida se tornar um fardo, somente a prudência e a

coragem, e não a covardia, poderiam encorajá-lo a dar um fim à sua própria existência.

Nesses casos, o suicídio seria a revelação de um caráter admirável” (Azevedo, 2002, p.107).

Médico9, Azevedo observa que o raciocínio de Hume é o de um filósofo e, como

tal, ele vai questionar as razões morais ou existenciais do suicídio. Já os médicos vão

considerar o suicida como um paciente, embora também não partam do pressuposto de que o

suicídio é um crime moral contra Deus, contra os demais ou contra si mesmo. Hume diz que

alguém que já tentou o suicídio e foi demovido ou impedido por amigos, dificilmente tentará

novamente, devido ao horror que passamos a ter da morte. Azevedo discorda: “Os médicos

sabem que essa é uma realidade epidemiológica. E se importam com essa minoria de suicidas

que tentarão uma segunda vez. Esses são os que mais necessitam de ajuda” (Azevedo, 2002,

p. 108).

Sim, os médicos pensam no suicídio como uma situação em que a pessoa que está

pretendendo se matar precisa de ajuda – para viver e não para concretizar o seu intento. Uma

exceção a essa regra é o Dr. Jack Kevorkian, nascido em Michigan (USA) em 1929, também

conhecido como Doutor morte. Kevorkian parece levar ao extremo o princípio da autonomia:

ele não só concorda que o paciente tem direito a se matar quando assim o pretender, como

8 Citação do autor: Kant, Immanuel. La metafísica de las costumbres. Buenos aires: Altaya, p.282 (A423ss). (p.106 9 Marco Antônio Oliveira de Azevedo é graduado em medicina, com mestrado e doutorado em filosofia pela UFRGS.

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também participa ativamente do processo. A prática pode ser chamada de eutanásia ativa, mas

se popularizou como “suicídio assistido” e é permitida na Suíça, até mesmo sem a participação

de um médico. Inclusive a pessoa que deseja morrer não precisa ser um doente terminal – a

base legal é o Código Penal de 1918, afirmando que o suicídio não é crime.

Nada consta a respeito do suicídio no Código Penal Brasileiro – isto para a pessoa

que tentar ou consumar o ato de se matar. Já o auxílio, instigação ou induzimento ao suicídio,

está elencado no artigo 122. Pena: dois a seis anos de reclusão, se o suicídio se consumar;

reclusão de um a três anos se da tentativa resultar em lesão corporal de natureza grave. A pena

será duplicada se o crime for praticado por motivo egoístico ou se a vítima for menor ou tiver

diminuído, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

Suicídio assistido ou eutanásia ativa? Quem é contra, caracteriza a prática como

homicídio. Kervokian chegou a ser processado por homicídio, em 1999: ele mesmo

administrou as drogas que mataram Thomas Youk, uma vez que seu estado de saúde não lhe

permitia tomar a iniciativa. Segundo a Wikipédia (2006), Kevorkian ajudou mais de 130

doentes terminais a morrerem. Ele ganhou o apelido de Doutor Morte ainda como médico

residente, ao fotografar os olhos de pacientes estudados em experiências, depois de mortos. Já

naquela época, década de 50, defendia que os órgãos de pacientes mortos fossem retirados e

utilizados em transplantes – por conta disso foi convidado a deixar a residência médica. Nos

anos 80 Kevorkian passou a se dedicar ao suicídios assistidos para ajudar doentes terminais a

pôr fim às suas vidas. Argumentava que as pessoas tinham o direito de evitar uma morte

sofrida e demorada, bem como terminar suas vidas com a ajuda de um médico que lhe

assegurasse uma morte tranqüila. Mas, segundo um cronista, o entusiasmo que ele tinha pela

eutanásia era o mesmo que algumas pessoas têm pelo futebol (Wikipédia, 2006).

O problema em Kevorkian é a intencionalidade. Sua preocupação não é tanto pelo

bem estar do indivíduo – até mesmo porque alguns deles depois de necropsiados mostraram

que não portavam doenças irreversíveis. Foi o caso de Rebecca Lou Badger, 39 anos. Ela

morreu assistida por ele, sob a alegação de padecer com esclerose múltipla. Mas, a necropsia

não mostrou nenhuma evidência da doença.

A eutanásia tem o sentido de “Boa morte”, mas não se aplica àqueles que

simplesmente querem exercer o direito de morrer. Ela é um caminho para quem se encontra

em estado de terminalidade, passando por sofrimentos para os quais já não há remédios, já

não há saída. É muito pertinente a análise de Azevedo a respeito do assunto: “Kevorkian

busca mostrar que todos e qualquer um têm o direito de tirar sua própria vida” (Azevedo,

2002, p.108). Ou seja: Ele defende o suicídio, não a eutanásia. E este não é o papel de um

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médico. Quem tem como tarefa ajudar a minimizar o sofrimento das pessoas não pode se

dedicar a defender a morte, a não ser em caráter de excepcionalidade, como ocorre na

eutanásia.

Pode acontecer – e tem acontecido – que a decisão do médico não coincida com os

pontos de vista do paciente ou de seus familiares, especialmente quando forem extremados.

Recusar o tratamento é um desses exemplos. Azevedo considera que se o argumento final é

que qualquer indivíduo tem direito absoluto a recusar o tratamento, então a posição do médico

é a posição de um profissional que deve, por força de uma sanção jurídica, seguir as leis de seu

país. Ele conclui:

Isso implica dizer que a aceitação de um princípio absoluto de respeito à autonomia do paciente, ainda que possível como um princípio jurídico, deve-se à mera sujeição da ética hipocrática tradicional à esfera do Direito. Mas, ao contrário de uma mera sujeição, o ideal é que possamos contar com o Direito Médico como um espaço de diálogo entre a moralidade pública e a moralidade profissional. Isso significa que a sociedade também pode nutrir expectativas em beneficiar-se desse diálogo com a ética médica. Princípios e crenças morais internas ao hipocratismo também podem contar como válidas no direito, o que avaliza as esperanças de que uma nova racionalidade hipocrática possa também contribuir para o fortalecimento dos preceitos democráticos orientadores do direito moderno, sem necessariamente corromper a natureza da medicina (Azevedo, 2002, p. 114).

A argumentação de Azevedo de que o médico deve, por força da sanção jurídica,

seguir as leis de seu país, pode ser comprovada através de um exemplo ocorrido em Goiás, no

final do mês de setembro de 2006, onde paciente e médicos se submeteram à determinação da

lei. Sim, determinadas decisões são tomadas no âmbito da Justiça, cabendo ao médico apenas

acatar. A história teve início no dia 27 de setembro10, quando a coordenadora da Casa do idoso

Dona Nenen Lucindo - Dilcinéia P. de Oliveira Guimarães - encaminhou um expediente à

promotora de Justiça da comarca de Bela vista de Goiânia, Sandra Mara Garbelini, relatando

que se encontrava na instituição um senhor aparentando 70 anos de idade, sem documentos,

com desnutrição profunda, semi-inconsciente.

Ele já havia sido conduzido por uma viatura militar ao centro clínico do município,

onde recusou qualquer intervenção medicamentosa. Acamado, não quis se identificar, nem

10 Relato feito a partir de documento escrito pela Promotora de Justiça da comarca de Bela Vista, Sandra Mara Garbelini.

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alimentar-se, aceitando apenas água. Aparentemente lúcido, pediu que fosse respeitado o seu

direito de morrer da maneira que havia escolhido: de inanição. A promotora solicitou então ao

Poder Judiciário autorização para que os médicos ministrassem ao referido senhor,

compulsoriamente soro, substâncias e a medicação que achassem convenientes para impedir a

sua morte por inanição.

A autorização judicial foi feita com base no Art. 5º, caput da Constituição Federal:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do DIREITO (grifo da

promotora) à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade (...) . Embora o artigo fale em

liberdade, a promotora achou por bem priorizar o direito à vida, levando em conta também o

estatuto do idoso e ainda salvaguardando o médico, a diretora do abrigo, o ministério público

e o judiciário de permanecerem inertes, assistindo a morte lenta do paciente, podendo,

inclusive, caracterizar-se aí as condutas criminosas de auxílio ao suicídio e omissão de

socorro.

O pedido da promotora foi aceito pela juíza de Direito, Vanessa Estrela Gertrudes

Montefisco e paciente foi internado no Hospital de urgências de Goiânia, sendo submetido ao

tratamento necessário. Sua foto foi divulgada pela mídia a fim que fossem encontrados os

parentes. Nos dias que se seguiram ficou comprovado que ela estava lúcido, era um professor

aposentado, possuía família e havia tomado a decisão de morrer de inanição. Fica a pergunta:

as pessoas têm o direito de morrer quando assim o decidirem? Se a própria lei fala em

liberdade, qual o limite dessa liberdade quando se trata do próprio corpo?

Foi essa liberdade que Ramón Sampedro invocou junto à justiça durante 29 anos,

cujo sentido está sintetizado na carta endereçada aos juízes em 13 de novembro de 1996, onde

ele afirma que “viver é um direito, não uma obrigação”. O caso é um exemplo emblemático da

eutanásia ativa ou suicídio assistido, retratado no cinema sob o título Mar adentro, de

Alejandro Amenábar, Espanha, 2004. Sampedro ficou tetraplégico após um mergulho no mar

e assim viveu durante 29 anos, cercado pelos cuidados dos familiares, porém, lutando pelo

direito de “morrer dignamente”. Ele falava e escrevia bem utilizando o computador através de

um artifício criado pelo sobrinho – chegou a ter um livro publicado. Sampedro conseguiu

morrer em 1998, através das mãos de uma amiga que o ajudou a tomar cianureto e que só

confessou o gesto no final de 2005 quando o delito já estava prescrito. Aos juízes, que lhe

negaram o direito de morrer, ele deixou uma mensagem:

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Srs. Jueces, negar la propiedad privada de nuestro propio ser es la más grande de las mentiras culturales. Para uma cultura que sacraliza la propiedad privada de las cosas – entre ellas la tierra y el água – es uma aberración negar la propiedad más privada de todas, nuestra Patria y Reino personal. Nuestro corpo, vida y conciencia. Nuestro Universo (kanashiro, 2005, p.2).

Em Sull’orlo dell’abisso, Jonas elege o amor como parâmetro para as decisões

difíceis. A eutanásia é um exemplo dessas situações, em que o critério do amor é o único

capaz de justificar a decisão pela morte. A eutanásia era uma entre outras questões que

estavam sendo discutidas numa mesa redonda da qual o filósofo participou na Alemanha,

pouco antes de morrer. A pergunta era se em determinadas situações não seria coerente o

médico assumir o controle e colocar fim ao processo com uma injeção. Não, responde ele. O

papel de matar não deve nunca competir ao profissional da saúde, pois isso poderia colocar em

risco suas funções de médico na sociedade, que é curar e procurar um lenitivo ao sofrimento

das pessoas. “Jamais um paciente deverá nutrir a suspeita de que seu médico possa

transformar-se no seu carrasco. Um médico não pode matar. E uma outra pessoa pode fazê-

lo?” (Jonas, 2000, p.63)

O entendimento de Jonas é que este é um campo para o qual não se pode

estabelecer normas jurídicas. O marido ou a mulher que se querem bem, conhecendo os

tormentos do próprio companheiro, podem, eventualmente, correndo o risco de uma pena

carcerária, abreviar-lhe o sofrimento. “Todavia – completa ele – não se pode estabelecer

normas. Eu digo somente que esta é uma possibilidade aberta para quem ama e tem a

capacidade e a vontade de decidir. Não se pode colocar algo assim num código geral”

(Jonas, 2000, p.63).

Numa de suas considerações sobre o direito de morrer, Engelhardt observa que a

decisão de terminar o tratamento de maneira a não prolongar a agonia pode não levar a uma

morte fácil. Ele se refere às debilidades provocadas pela enfermidade e suas conseqüências,

problemas que vão desde a incontinência fecal e urinária até a exaustão. E isso pode tornar

inaceitável a continuação da vida. O autor conta, então, o exemplo de Sigmund Freud:

“Depois de lutar durante 16 anos contra o câncer, e de sofrer 33 operações, ele estava

deitado em seu leito de morte, em Londres, aos 82 anos. Quando viu que seria inútil

prolongar sua vida, pediu a seu médico pessoal que o ajudasse” (Engelhardt, 2004, p.432). O

autor registra que para Freud tudo era agora uma tortura e nada fazia mais sentido. E conta

que na manhã seguinte, o médico de Freud deu a ele uma dose de morfina que, nas condições

em que se encontrava, foi suficiente.

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Para ilustrar o argumento de que só quem ama pode tomar uma decisão desta

natureza, Jonas relatou uma história ocorrida em Chicago na década de 90, onde um menino

nasceu com terríveis defeitos congênitos. Os pais foram informados pelo médico de que

deveriam fazer determinadas operações capazes de salvar a vida do menino, mas não eliminar

os defeitos congênitos – um estado extremamente patológico. A vida do menino seria

prolongada por certo tempo, mas ainda assim ele morreria em breve. O pai e a mãe se

declararam contra o tratamento. Diante disso, o hospital conseguiu uma autorização de

urgência, instituindo tutores para o menino, dado que seus genitores eram contra.

A operação foi feita. A ela seguiram-se diversas intervenções, o menino sofria

terrivelmente. Os pais continuavam a vê-lo e a protestar contra o tratamento. Depois de seis

meses, vieram a saber que os médicos queria transferir o menino para outro hospital, longe de

Chicago, onde haviam desenvolvido um tratamento especial. Ao saber disso, o pai se

apresentou ao hospital, dirigiu-se ao setor de reanimação onde sacou um revólver, rendendo o

pessoal de arma em punho. Chorando, tira o filho do respirador e o segura nos braços, com o

revólver apontado para os médicos. Passados alguns minutos, fora do respirador, o menino

morre encostado ao peito do pai, que o abraça soluçando e então abaixa a arma. Naturalmente

que o pai foi acusado por homicídio premeditado. Mas, ao final do julgamento foi declarado

culpado por um único ato: a detenção abusiva de armas – com a aprovação, se pode dizer, de

90% da nação americana. “Este é um exemplo – diz Jonas – do que é possível acontecer e que

não se pode escrever em qualquer código. Reitero que é danoso ao médico a permissão de

matar” (Jonas, 2000, p. 64).

Vamos concluir esse tópico relembrando uma observação de Jonas: abrir espaço

para a discussão sobre o direito de morrer é também uma conseqüência do desenvolvimento da

técnica médica que possibilitou a ampliação do nosso poder graças ao aparelhamento técnico.

O nascer e o morrer eram tidos como naturais até o final do século passado. E por que

discussões como essas são necessárias? Porque o desenvolvimento tecnológico, filho das

ciências, caminhou muito mais depressa do que vem caminhando as coisas ditas do homem,

por exemplo o sentido da vida. Para isso temos uma resposta? Essa é uma discussão que

podemos prorrogar, mas que se torna imprescindível num momento crucial como o que

precede a morte, especialmente quando a questão é desligar ou não desligar os aparelhos que

sustentam uma vida com morte cerebral. Em momentos como este faz-se a ponte entre a

biologia de Potter e a filosofia de Jonas que, agora no espaço da bioética, se alimenta

epistemologicamente da interdisciplinariedade. A expressão foi cunhada por Márcio Fabri dos

Anjos:

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Diante, por exemplo, de uma questão bem particularizada como a de desligar ou não os aparelhos que sustentam uma vida com morte cerebral, a bioética procede pesquisando outras questões como o sentido da vida e da morte, os compromissos da vida individual com a social, e semelhantes, sem cuja consideração se chegaria com muita precariedade a discernimentos éticos. Aqui se abre, portanto, um amplo espaço em que a bioética se alimenta epistemologicamente da interdisciplinariedade (Anjos, 2001, p. 24).

Transplante e doação de órgãos

Parece paradoxal, mas às vezes o exercício do direito de uns morrerem pode

significar a possibilidade para outros sobreviverem. É o caso dos transplantes de órgãos que,

para se realizarem, dependem da doação prevista em vida ou autorizada pelos parentes de

quem está morrendo. Quando se fala em banco de órgãos humanos, têm se a idéia de que

existe uma reserva de córneas, rins, fígado e coração, que são os órgãos transplantados com

mais freqüência. Não é verdade. O que existe é uma lista de espera que apenas em são Paulo,

segundo dados da Secretaria de Saúde daquele estado, em 2005 somavam 15.987 pessoas

entre 8.572 esperando por um rim; 3.915 esperando por um fígado; 103 por um coração; 42

por um pulmão e 3.045 esperando por uma córnea.

Os dados da Associação Brasileira de Transplantes de órgãos (ABTO/2005) -

mostram que em 2005 foram feitos no Brasil inteiro 196 transplantes de coração; 8.713 de

córnea; 1.594 de rins, oriundos de vivos; 1768 de rins, oriundos de cadáveres; 197 de fígado

oriundos de vivos e 759 de fígado, oriundos de cadáveres.

Também aqui a tecnologia influenciou bastante, especialmente quanto aos

equipamentos e aos novos remédios que minimizam a rejeição. Mas, alguns dilemas ainda são

existenciais, como por exemplo a predisposição daqueles que estão vivos de se colocarem

como doadores em potencial. Preencher uma ficha da ABTO, se oferecendo como doador para

o caso de uma fatalidade, significa ter que pensar na própria finitude, ter que se preparar para

ela ou pelo menos ter consciência do que isto significa. Também aqui é preciso ter clareza a

respeito da definição da morte: a morte encefálica, quando o coração ainda está batendo é o

ponto final de uma vida? Esta definição é importante no caso do transplante de coração – para

ser utilizado em outra pessoa, o coração tem que ser tirado do corpo ainda batendo. E isto vai

soar mal aos ouvidos de um ente querido.

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Um outro dilema continua sendo: desligar ou não desligar os equipamentos quando

já foi constatada a morte cerebral? O que se questiona aqui não é a eutanásia passiva, o deixar

morrer naturalmente quando a vida se torna um tormento. É justamente o fato de que o

respirador tem que ser mantido no caso da doação do coração para um transplante. Como

saber, então, que a respiração não poderia continuar por si mesma, a exemplo do que

aconteceu com Terri Schiavo ou karen Ann Quinlan? Como ter certeza de que já era chegada

a hora? No caso de ter que escolher, quem tem mais direito em permanecer vivo: o paciente

com morte cerebral – ainda que em estado vegetativo – ou o paciente à espera de um doador,

cujo restabelecimento também não tem garantia?

Jonas entende que existem duas situações: uma em que o paciente está em estado

vegetativo, sem nenhuma chance de se recuperar e ligado a equipamentos extraordinários.

Sendo mantido assim, artificialmente, se a família opta por desligar os aparelhos abre-se o

espaço para que as coisas sigam seu curso normal. O que ocorrer a partir daí será obra da

natureza. Mas, concluir pela morte encefálica e optar pela manutenção do respirador apenas

para manter vivo o órgão que se destina ao transplante seria um desfrutamento do corpo do

paciente – um corpo que ainda está vivo. O problema aqui não está em doar os órgãos, mas em

doar os órgãos de um paciente que não morreu ainda: apenas está “tecnicamente morto”.

Azevedo dá um exemplo que mostra bem para onde pode resvalar uma situação

dessa natureza. Na UTI de um hospital temos uma pessoa em morte cerebral. Ao mesmo

tempo existem cinco pessoas aguardando na fila por um transplante de córneas, rins, coração,

fígado, pulmão. Mas, o paciente não está morto, está em estado vegetativo. Embora sejam

mínimas as chances desse paciente um dia viver uma vida normal, que razão existe para

preterir essa pessoa em detrimento das demais? A situação pode dar margem a perigosos

precedentes. O autor explica:

O argumento dos absolutistas contra os utilitaristas é que admitir ‘matar’ essa pessoa implicará cedo ou tarde na admissão de qualquer outro tipo de motivo para a morte de um doente, mesmo aqueles que contrariem nosso senso moral. É o argumento da ladeira escorregadia11. Permitir a eutanásia de alguém em vida

11 Slippery slope, traduzido em português como ladeira escorragadia. Batista/Schramm descrevem assim o princípio: “pretende justificar que não devem ser feitas ‘concessões’ aparentemente inócuas em temas controversos, sob pena de abrir o precedente para atitudes de inequívoco malefício. Oposições alicerçadas no argumento ‘escorregadio’ incluiriam: 1)a potencial desconfiança – e subseqüente desgaste – na relação medico-paciente; 2) a possibilidade de atos não inspirados em fins altruístas, mas motivados por outras razões (por exemplo,questões de heranças, pensões, seguros de vida e outras); 3) a ocorrência de pressão psíquica – por exemplo, o pensamento, pelo enfermo, de que sua condição é um verdadeiro ‘estorvo’ para os familiares -, que poderia deixar os pacientes, cuja morte se aproxima, sem perspectiva outra que não a ‘eutanásia’, de fato não desejada e, portanto, de alguma forma imposta por razões circunstanciais; e (4) a erosão definitiva do respeito à

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vegetativa é equivalente a permitir dar fim à vida de alguém, o que é inaceitável. Assim, seguindo o argumento absolutista, em casos como esse, deveríamos estar preparados para aceitar a morte, por exemplo, dos cinco que esperam na fila do transplante (Azevedo, 2002, p. 78).

Deixar que cinco pessoas com possibilidade de viver uma vida boa, caso o

transplante seja bem sucedido, morram em detrimento de uma cujas chances são minimamente

plausíveis não parece razoável. Podíamos dizer junto com Jonas que ao médico não cabe a

decisão de matar e sim de curar, de melhorar a vida. Sim, mas se o paciente em EV tem

chances remotas, optar pelos cinco que estão na fila é dar uma chance a quem tem mais

possibilidades. Isso dá um saldo positivo de vida. Mas, este ainda é um raciocínio utilitarista.

Aliás, fica difícil fugir do raciocínio utilitarista quando se trata do

“aproveitamento” de um coração – ou de um rim, um fígado, pulmão, etc - pertencente a

quem não vai mais precisar dele por uma outra pessoa que tem possibilidades de “usufruir”

desse órgão. Aqui o limite entre o profano e o sagrado é muito tênue e até mesmo a escolha

das palavras pode dar a impressão de que essa oferta e procura tem a configuração de um

mercado. O que dizer então dos argumentos muitas vezes utilizado de que os custos na UTI

são altos e que uma vaga deve ser melhor aproveitada por um paciente mais jovem ou com

maiores chances de sobrevivência? Nota-se, então, que a escolha das palavras é o primeiro

cuidado a ser tomado numa situação em que o clima é de dor e os parentes estão fragilizados.

Especialmente quando se trata de falar em doação. O termo está estreitamente relacionado à

solidariedade, de quem se coloca como doador em vida ou da família de um paciente em

estado de terminalidade.

As pessoas vivas podem ser doadoras, desde que se trate de órgãos duplos e

considerando-se que o doador não será prejudicado – o que é difícil de garantir. Aqui também

é evocado o princípio da autonomia que o doador deve ter para poder decidir por si mesmo,

após os devidos esclarecimentos sobre riscos e conseqüências. Assim é que a doação por parte

de crianças depende do consentimento dos pais e, em alguns países, de autorização judicial.

Parizi e Silva (1998) acham que esse tipo de doação deve ser questionado:

No entanto, será justo que os pais possam dispor dos órgãos de um filho em benefício de outro? A doação de órgãos é um ato irreversível, sem possibilidade de

vida humana, tomando-se por base o recorrente exemplo do nazismo. Entretanto, nem sempre tal preocupação poderá ser fundamentada, uma vez que o mau uso (ou o abuso) de algo não contra-indica, em termos absolutos, o seu uso (abusus non tollit usus)” (Batista et Schramm, 2005, p. 7).

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arrependimentos ou revisões, diferentemente, por exemplo, de uma opção religiosa feita pelos pais, que poderá mais tarde ser modificada pelo filho. Ao atingir a capacidade de discernimento este filho poderá repudiar uma religião e converter-se a outra, mas nunca poderá pleitear a devolução de seu rim ‘doado’ há muitos anos (Parisi e Silva, 1998, p. 163).

Na categoria dos menores, os autores inserem também os recém-natos portadores

de malformações neurológicas incompatíveis com a sobrevida, como é o caso dos anencéfalos

– uma malformação congênita do sistema nervoso central em que não se desenvolvem os

hemisférios cerebrais. Nessa situação, o tronco cerebral do paciente funciona, o que significa

que suas funções vitais podem se manter por dias e até semanas. O caso deles é igual ao dos

adultos com lesão grave dos hemisférios cerebrais, sem capacidade de qualquer contato com o

meio exterior, embora sejam capazes de regular sua homeostasia graças à persistência do

funcionamento adequado do tronco cerebral. Esse estado, portanto, não caracteriza morte

encefálica – o que inviabiliza a doação de órgãos.

Um outro grupo cuja autonomia para doação se discute é o dos prisioneiros. Por

ocasião da regulamentação da Lei sobre doações no Brasil foram apresentadas propostas no

sentido de se diminuir as penas e abrandar as condições carcerárias como recompensa pela

doação de órgãos. Parisi e Silva consideram que essa possibilidade não é ética, nem

moralmente aceitável, uma vez que, em tese, a pena imposta pela sociedade aos criminosos

tem caráter educativo, objetivando tornar aquele cidadão ajustado ao convívio social. “Não

pode, portanto – continuam os autores – ser ‘trocada’ por um órgão, pois assim estaria a

sociedade admitindo o retorno ao seu convívio de alguém que deveria ter sido reeducado e

não o foi”( Parisi e Silva, 1998, p.163).

Se a oferta de vantagens envereda por um espaço moralmente perigoso, o que dizer

da remuneração aos doadores – ou o que é pior – da venda de órgãos? Parece uma heresia a

quem leva em conta a sacralidade do corpo. Mas é um assunto já discutido em congressos e

denunciado pela mídia. Berlinguer e Garrafa (2001) relatam o registro da Transplantation

Society, de que em 1990 havia cinco maneiras de se obter órgãos de pessoas vivas: a) a doação

de parentes; b) doações de pessoas ligadas emocionalmente ao receptor; c) doações com fins

altruísticos; d) doações remuneradas; e) e comércio agressivo. A respeito do assunto, eles

comentam que quase sempre as leis evitaram confundir a doação com outros atos que

implicam uma contrapartida em moeda ou em benefícios. No entanto, o que se denomina

“doações remuneradas” é, de fato, comercialização de órgãos. Já o comércio agressivo

ultrapassa todas as fronteiras da moral e da própria legalidade.

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Esse termo também parece insuficiente para abranger fenômenos diversos entre eles, que vão da comercialização sem regras ao roubo de órgãos e ao assassinato com objetivo de extração. Estes dois últimos casos deveriam constituir o ponto f (roubo) e o ponto g (homicídio) dessa lista, se quisermos classificar realmente o fenômeno (Berlinguer, Garrafa, 2001, p. 124/125).

Os autores citam o livro de Siegfried Pater e Aschwin Raman Organhandel –

Ersatzeille aus der Dritten (Comércio de órgãos. Peças de reposição do Terceiro Mundo), que

provocou grande repercussão no Brasil no final de 199112. Segundo o relato do livro, o

mercado negro do comércio de órgãos realizado entre países subdesenvolvidos e a Europa

inclui a obtenção de órgãos mediante homicídios. As denúncias feitas no livro se estendem

às experiências com seres humanos, inclusive crianças, se constituindo num farto material para

vários filmes de terror. Os autores comentam as denúncias feitas no final de 1993, pela

imprensa internacional de que a Universidade de Heidelberg, na Alemanha, com comissões

da indústria automobilística, comprava cadáveres de crianças para remodelá-los, submetendo-

os a testes de impacto e de resistência dos veículos em acidentes simulados, a fim de verificar

a resistência da lataria, dos pára-brisas e de novos materiais antichoques. (Berlinguer et

Garrafa, 2001, p. 125/126).

A doação de sangue, embora esteja associada a um ato de solidariedade, já suscitou

sérias polêmicas, especialmente em países onde é permitida a sua comercialização. Um dos

casos mais emblemáticos ocorreu na Nicarágua, durante a ditadura de Anastásio Somoza,

também relatado por Berlinguer e Garrafa. Em Manágua, junto com o médico cubano Pedro

Ramos, Somoza abriu um centro de transfusão chamado Plasmaferesis, que agia com a licença

da Food and Drug Administration dos Estados Unidos. Entre 1973 e 1977, o centro produziu

300 mil frascos de sangue exportado para a Europa e Estados unidos. O jornal de oposição La

Prensa denunciou que o sangue era coletado, mediante pagamento, dos cidadãos pobres e

desnutridos – muitos dos quais morriam logo após. Além disso, os prisioneiros eram forçados

a “doar”, bem como os militares eram coagidos à doação por meio de pressão baseada na

hierarquia. Somoza respondeu à denúncia mandando matar o diretor do jornal, Pedro Joaquim

12 Conforme registro dos autores, o Jornal O Globo publicou no dia 18 de novembro de 1991 uma matéria a respeito do assunto intitulada “Alemão denuncia assassinatos no Brasil para tráfico de órgãos”, autoria de G. Magalhães Ruether.

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Chamorro. A população, indignada e gritando “Somoza vampiro”, ateou fogo à sede da

Plasmaferesis13 (Berlinguer/Garrafa, 2001, p.118).

Um outro problema dos transplantes de órgãos, nem sempre considerado, está nos

custos dos procedimentos médicos e no tratamento pós-cirurgia. Sérgio Costa, após ressalvar

que os custos dos procedimentos de alta complexidade em medicina oscilam na dependência

das intercorrências que possam surgir em cada caso, registrou em 2006, que um transplante

hepático tem um custo estimado de 400 mil dólares; um transplante cardíaco custa o

equivalente a 200 mil dólares; e um transplante renal em torno de 60 mil dólares. A esses

valores deve se acrescentar recursos da ordem de mais de seis mil dólares por ano. No Brasil,

as despesas em geral são subsidiadas pelo Estado, embora renunciando-se a gastos sanitários

básicos, que oferecem benefícios a um número maior de pessoas (Costa, 2006, p.190/191).

Que direitos tem o homem sobre o seu próprio corpo? Até onde se estendem esses

direitos? Que sentido tem para o ser humano e para a própria humanidade institucionalizar a

mercantilização do corpo? Uma coisa é falar sobre liberdade – liberdade para crescer, para

ampliar os espaços da evolução do homem, para melhorar a si mesmo e melhorar o mundo.

Outra coisa é ter liberdade para praticar a mercantilização da natureza, do conhecimento, dos

sentimentos e do próprio corpo. O grito do espanhol Ramon Sampedro, reivindicando o

direito de propriedade sobre o próprio corpo para abdicar da vida, morrendo com dignidade,

tem um sentido de libertação. Mas, admitir que uma pessoa tem o direito de vender seus

órgãos, ou ser remunerada como cobaia de experiências científicas, é voltar atrás no tempo e

admitir a escravidão e a venda de um ser humano como escravo. Que diferença faz

comercializar um órgão ou comercializar o corpo inteiro? Vender o próprio corpo é tão

questionável quanto vender o corpo dos outros.

Experiência com seres humanos

D. Freitas e Hossne (1998) observam que pensamos sempre na biomédica ou na

saúde quando se trata de experiências com seres humanos. No entanto, pesquisas dessa

natureza são feitas no setor da educação, da fisioterapia, da terapia ocupacional, da educação

13 Os autores sugerem o filme feito no Brasil por Sérgio Rezende, intitulado Até a última gota, que contém esse e outros episódios a respeito do tema.

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física, da sociologia, entre outras áreas do saber humano. Ocorrem ainda situações em que as

pessoas não sabem que estão sendo objeto de experiências, tampouco os cientistas. Ambos

tomam conhecimento depois, quando as conseqüências vêm à tona. Os autores dão dois

exemplos:

Foi o caso dos linfomas detectados em prevalência maior nas localidades (na

Europa) em que as crianças conviveram constantemente com redes de alta tensão. Foi o caso,

também, das leucemias diagnosticadas em operadores (e em seus descendentes) de radar por

longo período, durante a II Guerra (D. Freitas e Hossne, 1998, p. 194).

Algumas experiências com seres humanos têm dimensões históricas e por causa

delas é que a bioética tomou forma. A mais citada é a cruel experiência do nazismo, dentro e

fora dos campos de concentração. Os médicos que protagonizaram essas experiências foram

julgados no ano de 1947, em Nüremberg. O julgamento tornou-se um marco na história da

medicina, nascendo daí uma declaração de princípios conhecida no mundo inteiro como

Código de Nüremberg. Através deste código foram estabelecidas normas básicas de pesquisas

em seres humanos, entre eles o consentimento voluntário, a necessidade de estudos prévios em

laboratórios e em animais, análise de riscos e benefícios da investigação proposta, liberdade

do sujeito da pesquisa para se retirar do projeto, qualificação adequada do pesquisador

científico.

Em 1948 foi criada a Associação Médica Mundial. É também o ano da Declaração

dos Direitos Humanos aprovada em Genebra – no bojo dessas discussões e na mesma cidade

cria-se a Declaração de Genebra, onde é exigido o respeito à autonomia das pessoas, quando

ela estiver inserida em experiências médicas e científicas. Vê-se aí uma reafirmação do

Juramento de Hipócrates, porém, dando a ele um redirecionamento da moral hipocrática.

Azevedo observa que o documento surgiu num contexto em que a moral interna da medicina

não pôde mais se sustentar sem refletir e acompanhar a crítica e o desenvolvimento da própria

humanidade. Uma exigência substancialmente externa que passou a ter implicações internas.

Ele explica que:

Nenhum médico poderia mais deixar de refletir sobre as conseqüências morais de seus atos após a revelação feita ao mundo dos experimentos praticados pelos médicos sob o nazismo. Mesmo porque muitas dessas práticas já vinham ocorrendo antes do advento da guerra; e não somente na Alemanha. A revelação das experiências nazistas apenas expôs uma chaga mantida encoberta muito além das fronteiras alemãs. Nos Estados Unidos, por exemplo, juízes já haviam aceitado a esterilização de deficientes mentais, fato denunciado inclusive como argumento de

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defesa dos juizes nazistas durante os julgamentos ocorridos em Nüremberg. Ou seja, não era somente na Alemanha que havia tratamento desumano de doentes mentais, deficientes físicos e indivíduos de outras raças e credos. A medicina sofria um processo ampliado de degeneração moral mesmo nos recantos menos esperados (Azevedo, 2002, p.73).

Mas, na Alemanha a lista de atrocidades chega a ser desconcertante. Azevedo

relata as principais, começando por uma lei proclamada em 1933 para a prevenção da

progenia de defeitos hereditários – lei que permitia a esterilização compulsória nos casos de

defeitos mentais congênitos, esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva, epilepsia hereditária e

alcoolismo severo. Em 1937 decidiu-se que todas as crianças de cor fossem esterilizadas. Em

1939 já era praticada a eutanásia por inanição nos hospitais psiquiátricos (Azevedo, 2002,

p.73).

Os experimentos com prisioneiros políticos foram praticados durante a guerra,

entre eles as pesquisas em busca de um método barato e eficaz para esterilização em massa.

Um deles, feito em Auschwitz, consistia em inocular no útero das prisioneiras injeções das

mais diversas substâncias, o que causou a morte de muitas mulheres. Outro método de

esterilização foi testado junto aos homens: aparelhos de raios-X eram colocados no interior de

mesas onde os homens sentavam-se para preencher questionários ficando, então, sob o efeito

das máquinas. O programa não pôde ser concluído porque tais pessoas passaram a sofrer de

severas queimaduras.

Padres católicos foram submetidos a dois tipos de experimentos, em Dachau: num

grupo fazia-se a inoculação de germes como a malária e o bacilo de tuberculose; no outro

observava-se os efeitos do frio intenso no organismo humano. O objetivo era saber o efeito do

frio no organismo dos soldados alemães, caso eles tivessem que enfrentar a neve.

Mas, a Alemanha realmente não foi o único laboratório para experiências que

maculavam a dignidade humana. Fernando Lolas (2001) discorre sobre um caso que se tornou

emblemático nos Estados unidos. O fato ocorreu em Tuskegee, Alabama, a partir de 1932,

quando teve início um estudo sobre a história natural da sífilis não tratada. Ou seja, a evolução

da doença sem nenhum tipo de tratamento. Os participantes eram todos negros e jamais foram

informados sobre o objetivo das observações, tampouco sobre o risco que corriam. Pela

participação, recebiam transporte, alimentação e funeral gratuitos. Os pacientes nunca foram

tratados, nem mesmo a partir de 1946, quando a penicilina já estava disponível.

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A história veio à tona em 1972. Em 1974 o Congresso Americano criou a

Comissão Nacional para Proteção dos Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e

Comportamental. Em 1979 cria-se a Comissão Presidencial para o Estudo dos Problemas

Éticos em medicina e na Investigação Biomédica e Comportamental. Segundo o autor, o caso

Tuskegee serve para mostrar que o consentimento informado é pouco quando se trata de ética

em pesquisa médica: A compaixão pelos semelhantes é fundamental, ainda que as pesquisas

sejam realizadas com o intuito de incrementar o conhecimento útil para a humanidade. Lolas

enfatiza que

O caso Tuskegee deve valer como exemplo. Houve muitos outros semelhantes. Trata-se, por um lado, da necessidade de conhecimento em benefício da humanidade, e, por outro, do respeito às decisões das pessoas sobre seus corpos. Em terceiro lugar, trata-se de limites que podem ser impostos aos estudos que representam riscos para as pessoas (Lolas, 2001, p. 24).

Berlinguer e Garrafa admitem que existem casos de cessão do próprio corpo para

fins de pesquisa científica, sobretudo no campo dos medicamentos ou de terapias

experimentais, mediante pagamento ou outros benefícios materiais e ainda devido a pressões

de várias naturezas. Embora seja um assunto controverso, poucas pessoas acreditam que a

ciência possa dispensar completamente a experiência humana. Isso quer dizer que ela foi e

ainda é indispensável para tornar possível o aperfeiçoamento de terapias eficazes. Daí que

experiências com seres humanos – desde que as regras sejam respeitadas – não se constituem,

a princípio, um delito. O s autores confirmam que

Ainda hoje antes de introduzir uma substância para uso comum no mercado, depois de testes de laboratórios e experimentação em animais ( esses podem ser em muitos casos substituídos por células cultivadas e, ás vezes, por modelos elaborados por computadores), não se pode prescindir de uma etapa rigorosa de controle clínico sobre os homens (Berlinguer e Garrafa, 2001, p. 71).

Os autores supra citados não são vozes isoladas no sentido de reconhecer a

necessidade das pesquisas em seres humanos. Engelhardt (2004) discorre sobre o assunto e

afirma que o uso de sujeitos humanos em pesquisa deve vincular-se ao livre e informado

consentimento, garantindo que este será dado sem coerção. Prega a democratização da ciência

e a parceria do conhecimento, argumentando que não são apenas os cientistas, médicos,

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cirurgiões e enfermeiros que orientam o curso das pesquisas – mas também os pacientes e

sujeitos de pesquisas. A estrutura do raciocínio é parecida com a que Jonas utiliza no

princípio responsabilidade: os pacientes de hoje devem pensar nos pacientes do futuro. Mas,

Jonas não pede o sacrifício dos homens de hoje. O filósofo fala em mudanças de hábitos,

evitando, por exemplo o desperdício ou o consumismo. Já Engelhardt, quando fala que os

pacientes de hoje devem permitir que seus corpos e suas mentes sejam “explorados”, está

sugerindo que aceitemos o papel de “cobaias” e consideremos isso como “altruísmo”.

Vejamos:

A medicina não será capaz de transmitir suas habilidades de uma geração para outra se os pacientes atuais não estiverem dispostos a permitirem que seu corpo e sua mente sejam explorados por estudantes e jovens médicos e enfermeiros que estão adquirindo a prática necessária para cuidar e, se possível, curar as queixas dos pacientes do futuro. Assim, também, quando os pacientes e outros participam livremente da pesquisa, eles passam a fazer parte do empreendimento coletivo de indivíduos preocupados em evitar tratamentos que causam maiores danos do que benefícios, e em desenvolver tratamentos que curem melhor e custem menos, assim como interessados nas aspirações culturais gerais em busca de uma melhor compreensão do homem e da condição humana. O princípio do consentimento define o caráter dessa interação; o princípio da beneficência apóia a dedicação altruísta de alguns, para o bem de todos (Engelhardt, 2004, p. 414).

E Jonas, o que ele pensa a respeito do tema em pauta? Em Técnica, medicina e

ética, ele abre um capítulo para discorrer sobre “experiências com seres humanos”,

admitindo que em biologia as experiências nem sempre são bem sucedidas com a simulação,

como pode ser feito na física. É preciso trabalhar com o original - após todos os

experimentos com animais é o homem quem deve oferecer informações sobre si mesmo. O

filósofo argumenta que antes do problema de um eventual dano, o que escandaliza mais no

uso de uma pessoa como sujeito de experimentos não é tanto o fato de que temporariamente

nos tornamos um meio, mas o fato de que nos tornamos uma coisa qualquer, um objeto para

experimentar o efeito de atos que nem são ações verdadeiras, mas testes, simulações de uma

ação real que se cumprirá em outro lugar e no futuro. “Ser uma cobaia humana – diz ele – é

ser reduzido a um caso, a uma simulação ou a um exemplo”(Jonas, 1997, p. 82).

O problema de ser uma cobaia é que mesmo dando o consentimento, o sujeito não

tem autonomia para interagir com a pesquisa. A situação da experimentação não permite que o

participante seja o antagonista dos fatos ou das circunstâncias, caso ele assim o queira. Jonas

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exemplifica com o caso do soldado que é mandado à guerra, submetido a uma autoridade

unilateral, se arriscando a mutilações e morte, sem o seu consenso e talvez sem a sua vontade.

No entanto, existe para ele um espaço no qual ele pode reagir: ser bem sucedido ou falir em

determinadas situações, em consonância com os desafios que surgirem e esses desafios serão

reais, palpáveis. Para o comando ele é um número, sem chegar a ser uma coisa, um simples

exemplo. Mas, como se sentiria esse soldado se viesse a constatar que a guerra é apenas uma

simulação, uma encenação para recolher informações a respeito da sua coragem ou da sua

covardia? Essa foi a situação protagonizada por Jim Carrey em O show de Truman, em que ele

vive desde o nascimento numa cidade em que todos são personagens de um programa

transmitido ao vivo durante 24 horas por dia. Quem convive com ele tem conhecimento disso,

menos ele mesmo que ao descobrir se sente totalmente desnorteado.

Jonas se dedica a analisar a colocação de que uma pesquisa tem por objetivo o bem

maior, que é a sociedade. A esse respeito constrói sua argumentação no sentido de que o

indivíduo é um conceito primariamente concreto, que vem antes de qualquer definição – e o

seu bem ou o seu mal é notado menos ou mais. Já uma multiplicidade de indivíduos é um

conceito abstrato. A incógnita consiste em definir o que seja bem comum ou bem público a

fim de se analisar a equação em que o bem do indivíduo pode ser sacrificado em prol do bem

da comunidade. Ele se nega a utilizar o argumento numérico, pois seria perigoso, mas se

arrisca a perguntar:

O número de contaminados por uma determinada doença é suficientemente alto

para justificar que sejam lesados aqueles que não estão contaminados?

Considerando-se que estes últimos são em número muito maior , este argumento

pode de fato se transformar na afirmação de que o peso cumulativo do interesse a

ser considerado é da parte deles. Enfim, poderia também acontecer que o interesse

do indivíduo à própria inviolabilidade seja ele mesmo um interesse público de tal

forma que sua violação publicamente tolerada, independentemente da cifra, está

violando o interesse de todos. Proteger esse direito constitui, então, um interesse

supremo em cada caso individual e o confronto numérico seria logo descartado

(Jonas, 1997, p. 85).

Essa seria a dimensão social e jurídica da experiência com seres humanos que,

como bem caracterizou Jonas, apresenta algumas dificuldades em seu modelo conceitual. Mas,

o filósofo trabalha também a dimensão moral e a esta prefere dar mais ênfase. Trata-se do

verdadeiro espírito de sacrifício como total abnegação, para o qual não existe outra lei e outra

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regra se não aquela da absoluta liberdade. Aí sim, se situaria o verdadeiro altruísmo que,

literalmente, significa “pensar no outro”. Para referendar a sua colocação, o filósofo lembra o

que foi afirmado num simpósio americano: “Ninguém tem o direito de escolher os mártires

para a pesquisa”. Nem devemos negar a eles a liberdade de se oferecer. Jonas está falando,

inclusive, dos próprios cientistas:

Não se pode impedir nenhum estudioso de fazer de si mesmo um mártir para a sua ciência. Em todas as épocas, pesquisadores, pensadores e artistas se sacrificaram em nome da profissão. O gênio criativo frequentemente paga com a felicidade, a saúde e a vida pela sua própria realização. Mas ninguém, nem a sociedade, tem o mínimo direito de esperar ou de exigir coisa similar no curso normal das coisas. A maioria do resultado chega até nós como uma gratia grátis data (Jonas, 1997, p.85)

Oferecer-se para as experiências na área médica pode representar o reembolso aos

benefícios que nós mesmos recebemos das experiências que nos precederam? Esse

questionamento é feito por Jonas, para considerar em seguida que tendo sido uma “oferta”,

não há débito. Ora, se esta oferta se caracterizar posteriormente como débito, então deixou de

ser uma oferta. E não se pode estabelecer uma obrigação desta natureza. A nossa gratidão não

pode ser conseguida à força ou deixará de ser gratidão. Coisas dessa natureza não se obtém à

força e essa liberdade deve ser mantida (Jonas, 1997, p.95/96).

Jonas tem razão: quando a oferta é imposta, perde o sentido. Mais que isso, aqueles

que poderiam ofertar vão refluir da sua intenção, revoltados com a perda da liberdade. E disso

tivemos o exemplo no Brasil da “doação presumida” – lei N° 9.434, de 5 de fevereiro de 1997,

que estabelecia como doador todo aquele que não houvesse se manifestado contrariamente em

vida. Dadas as reações contrárias que, inclusive, fez diminuir o número de doadores de órgãos,

a lei foi alterada em 30 de março de 2000, acrescentando que “na ausência de manifestação de

vontade do potencial doador, o pai, a mãe, o filho ou o cônjuge poderá manifestar-se

contrariamente à doação, o que será obrigatoriamente acatado pelas equipes de transplante e

remoção”.

No caso das experiências científicas, o termo mais apropriado é voluntariado.

Portanto, segundo Jonas é inadmissível o uso do paciente em coma para experimentos não

terapêuticos, uma vez que ele está ali inerte, a exigir proteção. E o paciente tem o direito de

esperar que seu médico não realize sobre ele nada que tenha como propósito o aprendizado

que apenas trará vantagens para outras pessoas. A não ser que o paciente esteja lúcido e dê o

seu consentimento, após ser esclarecido. Jonas simula a conversa do médico com o paciente:

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O médico deve dizer ao seu paciente: ‘Nada posso fazer por você. Mas, você pode fazer qualquer coisa por mim e assim pela ciência médica. Nós podemos aprender muito para os casos futuros, similares ao seu se você permitir a realização deste experimento. Não você, é certo, mas outros depois de você terão vantagens do conhecimento que em tal modo talvez se possa adquirir’. Um sim levaria, então, a afirmar que o médico não tentará mais curar o paciente, mas descobrir como se pode curar outros no futuro. Neste caso, porém, o experimento não é sobre o paciente: é sobre a sua doença (Jonas, 1997, p. 107).

O que se pode perceber, caminhando junto com Jonas, é que a totalidade dos

experimentos sobre o paciente é uma zona de sombras, em que evitar o comprometimento

torna-se impossível. As sutilezas são infinitas e somente o médico e o pesquisador – reunidos

em uma única pessoa – estão à altura de distingui-las com exatidão, caso a caso. A decisão

está toda em suas mãos. Uma vez assumida a idéia, a regra filosófica não pode efetivamente

especificar as suas aplicações. O que se pode transmitir ao expert é só uma máxima ou um

comportamento geral que vai lhe consentir o uso do próprio juízo e da própria consciência nos

casos concretos da sua atividade (Jonas, 1997, p.106).

No Brasil, o primeiro documento oficial regulamentando as normas da pesquisa

em saúde é a Resolução CNS nº 1, de 13 de junho de 1988, do Conselho Nacional de Saúde.

Segundo D. Freitas e Hossne, a pesquisa brasileira referente à experimentação com seres

humanos leva em conta os princípios básicos da bioética: a não-maleficência, a beneficência

(riscos e benefícios), a justiça e, sobretudo, a autonomia (autodeterminação), respeitando-se o

sigilo, a privacidade e a auto-estima (D.Freitas e Hossne, 1998, p.196).

Pode-se dizer, junto com Pessini, que o cerne da preocupação na área dos

experimentos com seres humanos está localizado especialmente no espaço desguarnecido pela

lei, onde não existem diretrizes éticas, nem controle social das pesquisas. É o caso das regiões

mais pobres do mundo, palco de denúncias e matérias alarmantes sobre episódios ocorridos

principalmente no hemisfério sul. Esses lugares se constituem em terreno fértil para as

multinacionais de medicamentos conseguirem voluntários que se submetem, não por

altruísmo, mas pelos atrativos financeiros, pressionados que estão pela miséria e opressão.

Não se deve condenar um excluído social, da África por exemplo, porque ele

vendeu seu rim ou submeteu-se como cobaia aos testes de um novo remédio. O que se

condena, neste caso, é a miséria que leva um ser humano a vender o corpo ou pedaços dele

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para garantir a sobrevivência e as pessoas ou grupos que se aproveitam dessa situação para

garantir ou aumentar ainda mais os seus próprios lucros.

Podemos concluir – e os autores aqui apresentados foram unânimes nessa

afirmação - que as experiências com os seres humanos, em um grau menor ou maior, são

necessárias à evolução da medicina. O problema situa-se na forma como essas pesquisas são

realizadas, no estabelecimento dos critérios e na busca de alternativas que ao longo do tempo

dispensem a participação do homem e também dos animais no papel de cobaias. Em Jonas o

progresso em si não é colocado como um problema, mas a forma através da qual ele é

conduzido. A argumentação é que um progresso mais lento no processo de derrotar as

doenças não coloca em risco a sociedade. Mas essa mesma sociedade pode ser colocada em

perigo, caso esse progresso seja obtido à custa do sacrifício dos valores morais.

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Terceiro capítulo

BIOÉTICA E O FUTURO DA HUMANIDADE

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No capítulo anterior foram analisadas questões da medicina que a técnica veio

modificar, provocando dilemas de cunho existencial – e às vezes legal – para os quais o

homem não se encontra preparado ainda, como o prolongamento da vida ou os transplantes de

órgãos. Na abordagem que ora se inicia, o tema ainda está centrado na biomedicina, embora

possa ser tratado pelas ciências exatas, humanas e, especialmente, pela filosofia. É, portanto,

um assunto de bioética, ciências da vida, multidisciplinar pela sua própria natureza. O assunto

em pauta é a engenharia genética, cujo desenvolvimento pode ser considerado uma

“Revolução Biotecnológica”, iniciada nos anos 70, tendo alcançado seu clímax nos anos 90.

Claro está, no entanto, que o futuro desta disciplina ainda é uma incógnita: o espaço de

atuação que se descortina para os cientistas é imenso. Justamente por isso, mister se faz

estabelecer parâmetros. O primeiro deles diz respeito à ética que , como diz Jonas, é o lenitivo

da técnica.

Sobre a engenharia genética

Ao introduzir o oitavo capítulo de Técnica, Medicina e ética – da eugenia à

engenharia genética – Jonas reitera o discurso que permeia “O princípio responsabilidade”,

agora direcionado às questões da engenharia genética. Segundo o filósofo, o controle

biológico, em particular o controle genético, levanta questões éticas totalmente novas para as

quais nem a prática, nem o pensamento precedente nos prepararam. No momento em que é

nada menos que a natureza do homem a recair na esfera de poder das intervenções humanas,

a prudência deve tornar-se nosso primeiro preceito moral e o nosso primeiro papel, o

aprofundamento das reflexões sobre a base das hipóteses suscitadas. Eis a a explicação do

autor:

Prudência, neste caso, significa considerar as conseqüências antes de agir. Feito isso, é preciso sabedoria para prosseguir. Em outras palavras: é preciso examinar o eventual uso da capacidade conquistada, antes que ela esteja pronta para ser usada. De tal exame, um resultado previsível poderia ser o conselho de não permitir a execução de alguns gêneros de capacidade. Isto é: suspender as linhas de pesquisa que conduzem a esses gêneros, tendo em vista a extrema facilidade com que o homem se deixa seduzir pelas capacidades das quais se apossa. (Jonas, 1997, p.122).

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Experimentos nessa área tornam-se inadmissíveis diante da consideração de que

essa capacidade somente pode ser praticada sobre o “material autêntico” ou original, ou seja:

o próprio homem. A isto se acrescenta que este exercício se realiza em forma de “prova e

erro”. No caso de uma manipulação imperfeita, o que fazer com o “resultado errado”? É o

caso, então, de se perguntar: Hans Jonas está propondo uma interferência na liberdade da

pesquisa? Da ciência? Sim, porém com a ressalva de que isto não é nada considerando-se a

gravidade das questões éticas que os resultados dessas pesquisas podem suscitar. O filósofo

argumenta que “pelo menos estamos em guarda”. Será que estamos? E adverte que é

necessário recorrer ao reaparecimento extremo da nossa razão moral para tratar esta que é a

mais delicada de todas as questões em uma época na qual a teoria ética é, infelizmente mais

do que nunca, insegura de si mesma.

As preocupações de Jonas dizem respeito à clonagem, produtos geneticamente

modificados, eugenia positiva e negativa, reprodução in vitro e reprodução assistida. Assim

como o filósofo não trabalha com o termo bioética, vez que no exercício dos seus escritos a

palavra ainda não era muito utilizada, ele não trata especificamente do projeto genoma

humano, cujo desenvolvimento tomou forma na década de 90. Os temores do filósofo não

dizem respeito ao conhecimento propriamente dito sobre o genoma humano, mas aos rumos

que podem ser dados à aplicação da engenharia genética. Os temas referenciados serão

tratados separadamente. Para o melhor entendimento deles, será feita uma introdução ao

assunto através da engenharia genética, passando depois pelo projeto genoma humano.

Filha das ciências, a técnica deve muito de sua expansão, pelo menos da sua

aplicabilidade, à globalização. Mas, a própria globalização só tomou forma a partir da

revolução tecnológica, que possibilita a administração dos negócios através de redes em tempo

real ou virtual. Ou seja: a globalização se vale das novas tecnologias que, por sua vez, ganham

força através da globalização. É no contexto da globalização – partindo daí para chegar à

sustentabilidade – que o físico Fritjof Capra aborda as questões da engenharia genética. Aliás,

a sustentabilidade é justamente o ponto de intersecção entre Capra e Jonas: ambos estão

preocupados com as futuras gerações, com a diferença de que o físico prega uma nova forma

de ver o mundo - a teoria da percepção - enquanto o filósofo prega o Princípio

Responsabilidade. O tema será tratado no próximo capítulo. Por enquanto estamos buscando

Capra para historiar a evolução da engenharia genética.

Por envolver a manipulação de informações genéticas, a engenharia genética é, por

vezes, considerada um ramo específico da informática. No entanto, as estruturas conceituais

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em que se baseiam essas duas tecnologias apresentam diferenças fundamentais: a Revolução da

Informática tem como elementos essenciais a compreensão e o uso do conceito de redes; já a

engenharia genética baseia-se numa abordagem linear e mecânica, feito “encaixe de peças”.

Sem contar que até há pouquíssimo tempo a engenharia genética desconsiderava as redes

celulares, que são fatores cruciais de todas as funções biológicas. “Com efeito – continua o

físico - agora que entramos no século XXI, ficamos admirados ao ver que os mais recentes

avanços da genética estão forçando os biólogos moleculares a questionar muitos dos conceitos

fundamentais sobre os quais baseavam-se originalmente todas as suas pesquisas (Capra, 2002,

p.169).

Biotecnociência, biotecnologias, biologia molecular, são termos bastante utilizados

quando tratamos das questões genéticas. Quando falamos de “engenharia genética” estamos

nos referindo às abordagens relativas à manipulação ou rearranjo dos genes. Mas, antes de

entrar nesse assunto propriamente dito, vamos buscar em Schramm uma definição para

biotecnociência e biotecnologias que são, por assim dizer, uma “macro-abordagem” dentro da

qual está inserida a engenharia dos genes.

O autor relata que historicamente as raízes do paradigma biotecnocientífico se

encontram na segunda metade do século XIX, quando surgiram a teoria da evolução de Darwin

e a teoria genética de Mendel. Já o paradigma biotecnológico emerge de forma progressiva a

partir da segunda metade do século XX, tendo em vista os avanços tecnológicos ocorridos de

forma espetacular em relação à análise e manipulação da informação genética de praticamente

todas as espécies de seres vivos, especialmente a espécie humana. Embora recente e ainda

rodeada de incertezas, parece que esta competência veio para ficar e, justamente por isso, o

assunto é hoje objeto de esperanças, temores e controvérsias morais.

Apesar de serem sinônimos, os termos biotecnologia e biotecnociência têm um

sentido técnico diferente: biotecnociência indica a vigência de um paradigma científico. O

termo biotecnologia se refere às tecnologias biológicas da engenharia genética - tecnologia do

Dna recombinante, clonagem, fertilização in vitro, dentre outras. O termo também se refere às

tecnologias biológicas mais antigas ou tradicionais – algumas remontam há milhares de anos -

tais como a seleção, a criação e o cruzamento de animais e plantas, a utilização de

microorganismos para produzir pão, vinho, cerveja, iogurte e queijo. Estamos tratando de

conceitos de ordens lógicas diferentes, uma vez que as biotecnologias e seus produtos são

objetos conceituais de primeira ordem, ao passo que a biotecnociência é um objeto de segunda

ordem que define o espaço conceitual da análise epistemológica de tais ciências e técnicas

(Schramm, 1998, p.221).

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Em outras palavras, biotecnologia é a utilização de agentes biológicos para prover

bens e assegurar serviços. Entre os bens podemos listar os alimentos, bebidas, produtos

químicos, energia, produtos farmacêuticos, pesticidas. Entre os serviços, purificação de água,

tratamentos de resíduos, controle de poluição. A biotecnologia trata ainda de questões ligadas a

agentes biológicos como microrganismos, células e moléculas (enzimas, anticorpos, Dna).

Quanto às áreas de conhecimento ligadas à biotecnologia, temos a microbiologia, bioquímica,

genética, engenharia e informática. As questões genéticas são tratadas também dentro da

biologia molecular, que investiga as interações entre os diversos sistemas celulares, incluindo a

relação entre DNA, RNA e síntese protéica. Aqui são frequentemente combinadas técnicas e

idéias provindas da genética, bioquímica e biofísica. É na biologia molecular que se realiza a

interface entre a bioquímica e a genética, relacionando conhecimento dos dois campos. Um

exemplo disso é a investigação dos mecanismos de replicação, transcrição e tradução do

material genético.

De acordo com Schramm, é conveniente registrar que a emergência stricto sensu

do paradigma biotecnocientífico ocorreu somente depois da segunda Revolução Biológica 1.

com a descoberta da estrutura do DNA por Watson e Crick, em 1953, e a consequente

aplicação prática operada pela engenharia genética dos anos oitenta. Com a segunda revolução

biológica viabiliza-se uma aliança entre o saber-fazer dos engenheiros e o saber-fazer dos

biólogos. A partir desta aliança a biotecnociência emerge como um paradigma e surge o

biotecnologista. As considerações que o autor faz, a seguir, nos remetem ao princípio

responsabilidade:

A vigência deste paradigma amplia quantitativa e qualitativamente o poder humano de atuação, logo também a probabilidade dos riscos ligados a suas práticas. Com isso, transforma-se também a responsabilidade humana em pelo menos dois sentidos: a) porque o saber-fazer do biotecnologista afeta a própria identidade do homem, ou sua ‘natureza’, graças à intervenção programada nos seus genes ou ‘programa’; b) porque transforma-se a própria autocompreensão que o humano tem de si, de suas práticas e de sua posição no mundo. Assim, o novo know how torna-se objeto das mais variadas especulações e motivo de controvérsias morais (Schramm, 1998, p. 220).

1 Barchifontaine considera que a primeira revolução se deu com a teoria celular elaborada nos anos de 1838 e 1839 pelo botânico alemão Mattias-Jakob Schleiden e pelo zoólogo prussiano Theodore Schwann. Desta forma a segunda revolução seria a Teoria da Evolução de Darwin/Wallace. A descoberta da estrutura da molécula do DNA fica sendo a terceira revolução biológica (Barchifontaine, 2001,p.244/245).

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Valendo-se das palavras da bióloga molecular Mae-Wan Ho, Capra conceitua a

engenharia genética como “um conjunto de técnicas para isolar, modificar, multiplicar e

recompor genes de diferentes organismo 2. É este ramo da ciência que permite aos cientistas a

transferência de genes entre espécies que jamais se cruzariam na natureza. É possível, por

exemplo, colocar os genes de um peixe num morango ou num tomate. Ou inserir genes

humanos em vacas ou ovelhas, criando, assim, novos organismos chamados “transgênicos” ou

OGMs – organismos geneticamente modificados. O cientista descobre, então, que pode brincar

de “criador e criatura”. A primeira Scientific American de 2007 traz o relato de uma

experiência feita para demonstrar o conceito de transgênese: um gene da água-viva, que

codifica a proteína fosforescente GFP, foi inserido no genoma de um camundongo que passou

a emitir um brilho verde3. Esta não é a primeira experiência de caráter bizarro, nem será a

última. Pelo menos ainda está restrita aos animais. Mas até quando?

O presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (2004/2006), José Eduardo de

Siqueira relata um diálogo que presenciou em Londres, durante um congresso em que estavam

reunidos biólogos de renome. Dois deles – Haldane e Lederberg – comentavam sobre a

possibilidade de se criar formas humanas desconhecidas e mais apropriadas para a exploração

espacial. A sugestão foi uma figura que tivesse rabo, a fim de se facilitar a apreensão quando

ele estivesse fora da nave. Um deles concluiu seu raciocínio dizendo que a inserção de alguns

genes especiais talvez permitisse dotar a espécie humana de características físicas parecidas.

Enquanto o outro concluía: “Estamos nos preparando para modificar o homem

experimentalmente através de mudanças psicológicas e embriológicas e mediante a

substituição de diferentes partes do corpo por máquinas. Se desejarmos um homem sem

pernas, assim o faremos. Se desejarmos um homem com rabo, encontraremos um meio de

introduzi-lo” (Siqueira, 2005, p.118/119).

A descoberta da estrutura física do DNA e da decifração do código genético ocorreu

na década de 50, consolidando a ciência da genética. Mas, a engenharia genética consolidou-se

vinte anos mais tarde quando os biólogos desenvolveram a capacidade de determinar a

seqüência exata de elementos genéticos (as bases de nucleotídeos) em qualquer trecho da dupla

hélice do DNA – a isto se denomina “seqüenciamento do DNA”. E também a capacidade de

2 Conforme citação de Capra: Ho (1998a) p.19 3 Existem vários métodos disponíveis para a geração de um animal transgênico: introdução, modificação ou inativação de um gene. O método a ser empregado depende do tipo de modificação genética que se deseja realizar (Pesquero, Baptista, Motta e Oliveira, 2007, p. 80).

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recortar e juntar seções de DNA com a ajuda de certas enzimas especiais isoladas de

microorganismos – a isto se denomina “fusão de genes” (gene-splicing).

Capra explica que os geneticistas não podem inserir genes estranhos diretamente

em uma célula por causa das barreiras naturais que separam as espécies, além de outros

mecanismos de proteção que eliminam ou tornam inativo o DNA estranho. Por isso, os

cientistas inserem os genes estranhos em certos vírus ou elementos paraviróticos que as

bactérias usam rotineiramente em suas trocas de genes. Usa-se, então, esses vetores de

transferência de genes a fim de contrabandear genes estranhos para dentro das células

selecionadas, onde os vetores são introduzidos – junto com os genes neles inseridos – até o

DNA da célula. Funcionando essas etapas de modo previsto, o que é difícil (muitas tentativas

são necessárias), o resultado é um novo organismo transgênico. Outra técnica de recombinação

genética consiste em produzir cópias de seqüências de DNA, que são inseridas em bactérias

nas quais elas se multiplicam rapidamente – também aqui se faz uso dos vetores.

É justamente o uso dos vetores que torna os processos da engenharia genética

perigosos, na medida em que vetores infecciosos e agressivos podem recombinar-se com vírus

já existentes e causadores de doenças para gerar novas linhagens de vírus. Capra cita o livro de

Mae-Wan-Ho , Genetic Engineering – Dream or nightmare? – aventando a hipótese de que

um grande número de novos vírus e linhagens de bactérias resistentes à antibióticos na década

passada deveu-se à comercialização em grande escala da engenharia genética nesse mesmo

período.

Os cientistas têm consciência do perigo da criação inadvertida de linhagens

virulentas e bactérias. Tanto que nas décadas de 70 e 80 cuidavam para que os OGMs criados

por eles fossem preservados dentro dos laboratórios, cientes de que não seria seguro liberá-los

no meio ambiente. A Declaração de Asilomar é fruto dessa preocupação que em 1975 reuniu

os geneticistas em Asilomar, Califórnia. A declaração pedia uma moratória na engenharia

genética até a elaboração de diretrizes reguladoras e apropriadas. A moratória não durou muito

tempo:

Infelizmente, essa atitude cuidadosa e responsável foi praticamente esquecida na década de 1990, marcada pela frenética corrida de comercialização das novas tecnologias genéticas para o uso na medicina e na agricultura. No começo, pequenas empresas de biotecnologia organizaram-se em torno de vencedores do Prêmio Nobel em algumas grandes universidades e centros de pesquisa norte-americanos; alguns anos depois, elas foram compradas por mega-empresas do setor químico e farmacêutico, que logo se tornaram ardentes defensores da biotecnologia (Capra, 2002, p.171).

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A clonagem genética de uma ovelha no Instituto Roslin, de Edimburgo, e de vários

camundongos na Universidade do Havaí foi anunciada ao mundo na década de 90. Já a

biotecnologia vegetal se expandiu com muito mais rapidez. Capra busca em altieri (2000b) a

informação de que somente em 1996 e 1998 a área total plantada com sementes transgênicas

no mundo mais do que decuplicou de 2,8 para 30 milhões de hectares. “Essa dimensão maciça

de OGMs no meio ambiente – continua Capra - acrescentou o risco ecológico aos problemas

que a biotecnologia já apresentava. Infelizmente, esse risco é simplesmente desconsiderado

pelos geneticistas que, em geral, não têm quase nenhum conhecimento de ecologia (Capra,

2002, p. 171).

E o pior é que, apesar do aumento dos perigos em potencial, vez que as técnicas de

engenharia genética são mais rápidas e mais poderosas do que há 20 anos atrás, não se viu mais

nenhuma declaração dos geneticistas em favor de outra moratória. Ao invés disso, o que se vê

são os conselhos responsáveis pela regulamentação a respeito do tema cederem continuamente

à pressão das empresas.

Fruto do capitalismo global, cuja expansão se deu na década de 90, também a

biotecnologia virou um bom negócio, onde a ética não costuma prevalecer. Capra denuncia que

atualmente muitos geneticistas de renome são donos de empresas de biotecnologia ou

trabalham em íntima associação com tais empresas. “A motivação desse crescimento da

engenharia genética – lamenta ele – não é o progresso da ciência, nem a descoberta de curas

para as doenças, nem a vontade de alimentar os famintos: é o desejo de garantir ganhos

financeiros nunca vistos antes (Capra, 2002, p.171/172).

O físico observa que muitas das idéias otimistas divulgadas hoje pelas empresas de

biotecnologia lembram a era da agricultura química que ficou conhecida como a Revolução

Verde, com resultados que nem de longe foram os propagandeados. Naquela época se dizia que

o aumento da produção possibilitado pelas novidades na agricultura iria dirimir a fome do

mundo. O mesmo argumento está sendo utilizado agora pelos defensores da biotecnologia em

relação aos transgênicos. Ou seja: a liberação dos OGMs pode vir travestida de uma segunda

revolução verde. Dietmar Mieth chama isso de “máscaras” ou promessas mascaradas. O

mesmo se dá em torno da energia nuclear e parece estar ocorrendo com a engenharia genética:

A luta em torno da energia nuclear poderia mostrar-nos quando chegamos atrasados frente às promessas mascaradas, e como após o fato consumado será trabalhoso estabelecer limites. Nós vivemos ainda no crepúsculo da primeira idade da

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tecnologia genética e estamos expostos aos muitos sonhos do que pode ser feito e que ainda não pôde concretizar-se. Mas tudo continuará a marchar durante a noite, enquanto dormimos. Para o profeta não é bom chegar demasiado cedo; para o político não é bom chegar tarde demais (Mieth, 2003, p. 19/20).

Nem é preciso ser profeta para perceber que, assim como na revolução verde, as

razões do desenvolvimento da engenharia genética chegam sob o disfarce do melhoramento da

produção, do aperfeiçoamento do produto oferecido e, de novo, sob a argumentação de que a

fome desaparecerá do mundo. Agora o discurso inclui o meio ambiente, sob o argumento de

que a agricultura não será mais dependente de produtos químicos e, consequentemente, não

fará mais mal algum ao meio ambiente. No entanto, o que está movendo as inovações na área

de biotecnologia é a possibilidade de lucros cada vez maiores. Capra cita o exemplo da

Monsanto, que produziu uma soja transgênica e que resiste especificamente ao herbicida

Roundup, da mesma empresa, para aumentar as vendas do produto. Produziu sementes de

algodão portadores de um gene inseticida a fim de aumentar as vendas de sementes. “As

empresas de biotecnologia – diz ele – cobram taxas de tecnologia sobre o preço das sementes,

ou senão forçam os agricultores a pagar preços abusivos por pacotes de sementes e

herbicida” (Capra, 2002, p.196).

Segundo o autor, o que está acontecendo agora é uma concentração nunca vista da

propriedade e do controle de alimentos, através de uma série de grandes fusões e em virtude do

controle rigoroso possibilitado pela tecnologia genética. Ele registra que

As dez maiores empresas agroquimicas controlam 85 por cento do mercado mundial; as cinco

maiores controlam praticamente todo o mercado de sementes geneticamente modificadas

(GM). Só a Monsanto comprou parte das maiores empresas produtoras de sementes da Índia e

do Brasil, além de ter comprado diversas empresas de biotecnologia; e a Du Pont comprou a

Pioneer Hibred, a maior produtora de sementes do mundo. O objetivo desses gigantes

empresariais é criar um único sistema no qual eles possam controlar tanto os estoques quanto

os preços da comida. Como explicou um executivo da Monsanto, ‘Vocês estão assistindo à

formação de um monopólio sobre toda a cadeia alimentar’ (Capra, 2002, p.196).

O problema da fome não é pautado pela escassez de alimentos. Capra demonstra

que no decorrer dos últimos 30 anos, o aumento da produção global de alimentos superou em

16 por cento o aumento da população mundial. O aumento da produção de alimentos superou o

da população em todas as regiões do mundo, exceto a África, nos últimos 50 anos. Um estudo

feito em 1997 nos países em desenvolvimento constatou que 78 por cento de todas as crianças

desnutridas com menos de cinco anos moram em países que produzem um excedente

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alimentar, que é exportado embora a fome entre a população carente seja uma realidade

cotidiana.

Essas estatísticas, segundo Capra, evidenciam a má-fé da argumentação de que a

biotecnologia é necessária para alimentar os famintos. As causas radicais da fome no mundo

não têm relação nenhuma com a produção de alimentos: são a pobreza, a desigualdade e a falta

de acesso aos alimentos e à terra. As pessoas ficam com fome porque os meios de produção e

distribuição de alimentos são controlados pelos ricos e poderosos. “A fome no mundo –

acrescenta - não é um problema técnico, mas político. Quando os executivos das empresas

agroquimicas afirmam que a fome continuará a menos que a tecnologia mais recente seja

adotada, eles ignoram as realidades sociais e políticas” (Capra, 2002, p.198). Torna-se

pertinente observar que “só o aumento da produção de alimentos” não resolverá a fome do

mundo. No entanto, nenhuma boa vontade política será capaz de resolver o problema, sem o

aumento da produção.

O projeto genoma humano

O Projeto Genoma humano pode ser considerado como o maior empreendimento

de biotecnologia de que se tem notícia e talvez o mais concorrido. O seu desenvolvimento, que

teve início na década de 90, foi uma demonstração de como a ambição desmedida, a busca

obsessiva pelo lucro coloca em risco o futuro da natureza humana. Conforme relata Capra, o

desenrolar das pesquisas deu-se em meio a uma desabalada corrida entre um projeto

financiado pelo governo norte-americano – que tornava todas as suas descobertas disponíveis

ao público - e um grupo privado de geneticistas, a Celera Genomics, que guardava segredo de

todas as informações obtidas, a fim de patentear e vender às empresas de biotecnologia.

Caso o grupo privado, financiado por investidores capitalistas, ultrapassasse o

projeto financiado pelo governo, os dados sobre o genoma seriam patenteados e o grupo teria a

exclusividade de direitos comerciais sobre a manipulação de genes humanos. Ou seja, o

trabalho futuro da compreensão do genoma humano estava correndo o risco de ficar sob o

controle de empresas privadas para ser comercializado. Em dezembro de 1999, David

Haussler, professor de ciência da computação na Universidade da Califórnia (Santa Cruz)

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entrou para o consórcio público e avaliou que o projeto já dispunha de dados suficientes para a

elaboração de um programa de computador que montasse corretamente as peças.

Em maio de 2000, Haussler relata a um de seus pós-graduandos – James kent - que

o desenvolvimento do programa utilizado era lento demais e que a perspectiva de terminar

antes da Celera era mínima. James assume então junto ao seu professor a incumbência de

escrever um programa de composição baseado numa estratégia superior e mais simples.

“Depois de quatro semanas de trabalho ininterrupto - conta Capra - no decorrer do qual

aliviava com bolsas de gelo as dores nos pulsos entre as sessões de digitação, James Kent

havia escrito 10.000 linhas de código, completando a primeira seqüência do genoma humano”

(Capra, 2002, p.173). Além do programa de sequenciamento, apelidado de “Caminho de ouro”

– o sequenciamento foi chamado de “O livro da vida” - Kent criou um outro programa, uma

espécie de browser, através do qual os cientistas poderiam acessar gratuitamente a primeira

seqüência montada do genoma humano, sem ter de assinar o banco de dados da Celera.

A corrida do genoma humano terminou oficialmente sete meses depois quando o

consórcio público e os cientistas da Celera4 publicaram seus resultados na mesma semana: o

primeiro na nature e os outros na Science. Mas esse era apenas um esboço, uma espécie de

rascunho do genoma. O sequenciamento foi concluído em 14 de abril de 2003. Isto significa

que 99,99% das peças do quebra-cabeças foram coladas. Os cientistas explicam que nunca

chegarão a 100%, considerando-se as ligeiras diferenças entre um ser humano e outro. É um

avanço, sem dúvida nenhuma e servirá como referência para um grande número de pesquisas

médicas, biológicas e relativas à evolução humana. No entanto, o sequenciamento, por si só

não produz uma grande descoberta científica.

Não se trata apenas de pessimismo. Capra explica que a movimentação gerada pelo

mapeamento do genoma humano desencadeou uma revolução conceitual na genética

demonstrando que as aplicações práticas ainda são intangíveis. Ele quer dizer com isso que

para usar o conhecimento da genética a fim de influenciar o funcionamento do organismo –

para prevenir ou curar doenças, por exemplo – não basta saber onde os genes específicos se

localizam: é preciso saber também como eles funcionam. Ele continua:

4 Conforme artigo de Herton Escobar, publicado no Estado de São Paulo em 15/04/2003, a Celera Genomics, empresa americana liderada por Craig Venter, que competiu com o Projeto Genoma Internacional, perdeu prestígio e acabou saindo de cena depois que se descobriu que o genoma usado era o do próprio Venter e que grande parte do trabalho era feito com base nos dados do consórcio público (Escobar, 2003, Com AP e New York Times Service).

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Depois de determinar a sequência de grandes porções do genoma humano e de mapear os genomas completos de diversas espécies vegetais e animais, os geneticistas naturalmente voltaram a sua atenção da estrutura dos genes para a sua função; e, quando o fizeram, constataram o quanto ainda é limitado o nosso conhecimento do funcionamento dos genes. Como observa Evelyn Fox Keller, ‘Os desenvolvimentos mais recentes da biologia molecular nos deram uma noção da grandeza do abismo que separa a informação genética do significado biológico’(Capra, 2002, p. 173/174).

A biotecnologia não põe à nossa disposição possibilidades ilimitadas. Isto está

relacionado com a dimensão finita da capacidade humana de conhecimento e com a dimensão

infinita daquilo que pode ser conhecido. A afirmação é de Dietmar Mieth que, em outras

palavras, está concordando com Fox keller, quando traz para a era tecnológica a máxima do

velho e sábio Sócrates : “Até agora sempre tem sido assim: quanto mais o homem sabe, tanto

mais ele fica sabendo também sobre quanto não sabe”. Ele acredita que só a diferenciação de

nosso conhecimento nos permite ver as lacunas e os pontos inacessíveis, ver os campos em

branco sobre o mapa das coisas que sabemos e que podemos. “É verdade que podemos escapar

a esta lei – mas só ao preço de nós mesmos – acrescenta – pois como o homem não está

preparado para aumentar a factibilidade pela objetivação de si mesmo, teríamos que criar um

homem novo, uma inteligência superior a do homem, para encarregá-lo do próximo estágio da

evolução” (Mieth, 2003, p.26).

Apesar do muito que ainda resta para saber, o que se descobriu recentemente tem

possibilitado alguns avanços. Com base nos dados do genoma, mais de 30 genes diretamente

relacionados a doenças genéticas já foram identificados. Mutações de genes específicos estão

sendo utilizadas como marcadores de suscetibilidade a certas doenças, como por exemplo os

genes BRCA1 e BRCA2, associados ao câncer de mama. Ou seja: não há dúvida de que o

levantamento de todas as bases químicas contendo informações necessárias para formar um ser

humano é uma conquista de primeira grandeza. E sobre ela já se delineiam muitas

possibilidades dentro da medicina. Num exercício futurístico, Barchifontaine faz uma lista das

principais, que apresentamos em forma de tabela :

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AS PROMESSAS DA DESCOBERTA

Hoje Alguns tipos de câncer e doenças hereditárias já podem ser diagnosticados com testes genéticos, embora ainda estejam beneficiando poucas pessoas.

Em 5 anos Criação de banco de dados genéticos, através dos quais será possível saber se determinado paciente sofrerá ou não com efeitos colaterais ao tomar um medicamento.

Em 10 anos

Testes genéticos estarão disponíveis para o diagnóstico antecipado e preciso de mais de 25 doenças, como o câncer, diabetes e enfarte. A terapia genética, hoje restrita e ineficaz, começará a ter seus primeiros sucessos nas doenças cardíacas, hemofilia e alguns tumores. O diagnóstico precoce e a conseqüente mudança de hábitos de vida permitirão diminuir o risco de surgimento de doenças genéticas.

Em 20 anos

Já estarão disponíveis os diagnósticos e tratamentos genéticos para doenças mentais. Os geneticistas aprenderão como realizar a terapia genética em genes específicos de embriões sem afetar o restante do DNA do futuro bebê. Os médicos poderão receitar remédios personalizados depois de consultar o DNA do paciente.

Em 30 anos

Doenças hereditárias serão eliminadas com a correção de genes defeituosos. Os cientistas conhecerão os mecanismos genéticos envolvidos no processo de envelhecimento. A análise completa do genoma de uma pessoa será um exame comum e custará menos de 1.000 dólares. Os testes laboratoriais, como os de sangue, serão substituídos por análises computadorizadas de células, mesmo nas doenças mais comuns.

Em 50 anos A terapia genética estará disponível para a maioria das doenças. Com os avanços da genética, a expectativa média de vida das pessoas chegará aos 90 anos.

(Fonte: Barchifontaine, 2001, p.249/250)

De uma forma didática e fácil de ser entendida, Barchifontaine explica que o

genoma é o conjunto de instruções necessárias para formar um ser humano. Essas informações

estão no DNA, uma longa molécula em formato de dupla hélice que carrega os genes

compostos por quatro elementos básicos: A (adenina), T (timina), G (guanina) e C (citosina). O

código da vida é formado pela combinação de A, T, C e G. Eles funcionam como letras

arrumadas numa longa receita que determina desde a cor dos cabelos até a predisposição para

certas doenças. As letras A, C, T, e G formam os genes, estruturas com funções específicas.

Estima-se que sejam cerca de 50 mil genes distribuídos ao longo do DNA. Os genes estão

agrupados em conjuntos maiores, os cromossomos. Cada célula humana contém 23 pares de

cromossomos. Cada cromossomo carrega um trecho de fita do DNA. Juntos, no núcleo da

célula, reúnem todas as informações genéticas de uma pessoa. O corpo humano é constituído

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de 100 trilhões de células - todas elas contém uma cópia completa de DNA. Metaforicamente,

ficaria assim: se o genoma fosse um livro, os componentes do DNA seriam as letras, os genes

seriam as palavras, os cromossomos seriam os capítulos, o DNA seria o texto. E o homem seria

uma coleção de 100 trilhões de livros (Barchifontaine, 2001, p.248, 249).

Questões de biossegurança

É evidente que o conhecimento da raiz biológica dos seres humanos e de outras

espécies vai transformar a medicina, permitir o desenvolvimento de novos remédios, expandir

o número de doenças tratáveis e facilitar, diagnósticos, entre outras modificações na área das

ciências médicas e suas bases de sustentação . Essas e outras transformações advindas da

biotecnociência – algumas mais radicais, como os OGMs e a própria clonagem de um ser

humano – já são objeto de estudos dentro da bioética, partindo daí para criação de normas

éticas e jurídicas através das quais são erigidos parâmetros e limites que vão nortear as novas

situações criadas.

Além da bioética, que se preocupa com os argumentos morais e que acabam

culminando numa posição de “a favor’ ou “contra”, Schramm chama a atenção para a

biossegurança, que visa estabelecer os padrões aceitáveis de segurança no manejo de técnicas e

produtos biológicos. A biossegurança deve tomar forma através de ações concretas voltadas

para a prevenção, minimização e eliminação dos riscos que acompanham tanto as atividades de

pesquisa, como a produção e até mesmo o ensino. Ações nesse sentido devem se estender ao

desenvolvimento tecnológico e à prestação de serviços, contemplando todos os riscos que

dizem respeito à sanidade do homem, dos animais e do meio ambiente. O autor complementa:

Em outros termos, bioética e biossegurança se preocupam com a legitimidade, ou não, de se utilizar as novas tecnologias desenvolvidas pela engenharia genética para transformar a qualidade de vida das pessoas. Mas a natureza e a qualidade dos objetos e dos argumentos de cada disciplina são diferentes: a bioética preocupando-se com a análise imparcial dos argumentos morais acerca dos fatos da biotecnociência; a biossegurança ocupando-se dos limites e da segurança com relação aos produtos e técnicas biológicas (Schramm, 1998, p.223).

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Em que sentido é preciso falar em segurança quando estamos tratando de questões

relacionadas à engenharia genética? Schramm reitera que a nova competência apresentada pela

biotecnociência é encarada, muitas vezes, como tendo um poder ambíguo, senão daninho, que

precisa, portanto, ser considerado cautelosamente ou até rejeitado. O argumento é o de que este

poder estaria interferindo na “ordem natural das coisas”. Ele cita o exemplo de um assunto

desta natureza que foi tratado em Asilomar: a legitimação da utilização da tecnologia do DNA

recombinante, quando foi proposta a elaboração de normas para o novo campo de atividades, o

que tomou forma em 1976, quando o National Institute of Health (NIH) norte-americano

promulgou as primeiras diretrizes de biossegurança. “Contudo – prossegue o autor – tais

diretrizes referiam-se unicamente à segurança laboratorial e a agentes patogênicos para os

humanos e é com esse espírito que a iniciativa norte-americana repercutiu em outros países

como o Reino Unido, França, Alemanha e Japão” (Schramm, 1998, p. 223). Ou seja: a

concepção sobre o papel da biossegurança era bastante limitada, especialmente porque o

conceito de risco ainda era muito restrito.

Mas, graças às análises da epidemiologia e das demais ciências da saúde, Schramm

considera que o conceito de risco tornou-se mais complexo e abrangente, vindo a ser concebido

como uma verdadeira característica estrutural das sociedades pós-industriais. E isto afetou a

própria concepção do papel da biossegurança, agregando à sua atuação uma nova ordem de

riscos, que o autor assim relaciona: a segurança contra outros riscos presentes nas atividades de

laboratórios, tais como riscos físicos, químicos, radioativos, ergonômicos e outros. Importante

salientar que agora já estão também integrados os riscos ambientais, o desenvolvimento

sustentado, a preservação da biodiversidade e a avaliação dos prováveis impactos advindos da

introdução de OGMs no meio ambiente (Schramm, 1998, p.123/124).

No Brasil, a biossegurança é tratada através da Lei n. 11.105, de 24 de março de

2005 que disciplina, entre outras medidas, as normas de segurança e fiscalização de

Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) e seus derivados, objetivando “proteger a

vida e a saúde humana, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente”. Orientações

nesse sentido já estão expressas na Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos

Humanos (UNESCO, 1997), proibindo especificamente a clonagem e a venda do patrimônio

genético humano – as orientações são válidas para os países membros da ONU. Podemos

ainda recorrer à Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, adotada pela

Conferência Geral da UNESCO, em 16 de outubro de 2003. E à Declaração Universal sobre

Bioética e Direitos Humanos, de 2005. No entanto, como a própria Declaração Universal dos

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Direitos Humanos, esses documentos não podem ser impostos juridicamente. Ou seja: não tem

poder coercitivo.

As novas descobertas na engenharia genética dão margem a muitas perguntas,

algumas delas de cunho emergencial e que ainda estão sem respostas: é ético fazer o

diagnóstico pré-sintomático de doenças que não têm cura? Qual o nível de confiabilidade dos

testes genéticos preditivos? Quais são as conseqüências de indivíduos sadios ficarem sabendo

do seu destino médico? A regulamentação de laboratórios que oferecem testes preditivos é

suficientemente confiável para evitar erros devastadores? Como podem os indivíduos sadios

ser protegidos de discriminação por seguradoras e empregadores por doenças em potencial?

Quais são os verdadeiros prós e contras dos testes preditivos?

As colocações são de J. Pena e Eliane Azevedo para em seguida fazerem as

seguintes considerações: entre ser um portador de um gene alterado a apresentar a doença

relacionada a este gene existe uma probabilidade e não uma certeza. A desinformação genética

poderá, às vezes, ter conseqüências mais maléficas do que o próprio gene mutante. Um tópico

importante é saber se o conhecimento gerado pelos testes preditivos pode salvar vidas – para

doenças neurodegenerativas, a resposta é não. Para cânceres familiares a resposta ainda não

está clara – vão prevalecer os diagnósticos dos exames adotados como prevenção para a

população em geral, como a mamografia, a retossigmoidoscopia5. No entanto, a simples

permanência no nível das probabilidades pode causar problemas psicológicos, estigmatização

social e preconceitos. Os autores prosseguem:

Para o paciente haverá problemas psicológicos, porque o diagnóstico pré-sintomático antecipa a passagem do indivíduo do estado de sadio para o de doente. Haverá também o problema da estigmatização social e o do preconceito. Ele poderá sofrer discriminação de vários tipos. É possível que os empregadores venham a exigir testes genéticos dos candidatos a emprego e recusar a admissão dos ‘afetados’. E a companhia de seguros? Teria ela o direito de pedir testes genéticos para o indivíduo que tem predisposição para o câncer? Terá ela acesso à ficha médica dessa pessoa? (J.Pena e Eliane Azevedo, 1998, p. 148)

5 A retossigmoidoscopia permite ao médico examinar a mucosa do reto e de uma porção do cólon (intestino grosso). É um exame utilizado para diagnósticos que vão desde patologias simples – como hemorróidas, fissuras e fístulas – até doenças inflamatórias crônicas, pólipos e neoplasias (algum tumor).

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Até o século passado, as questões relativas à formação da vida eram tratadas

auscultando-se as leis da natureza6 . O Projeto Genoma Humano traz com ele as possibilidades

da intervenção, especialmente na área da reprodução. Pessini observa que em meio a todos

esses novos conhecimentos científicos que interferem profundamente na vida humana, surge a

necessidade da reflexão ética. “O que antes o acaso da natureza resolvia, pela nossa

ignorância e desconhecimento dos processos vitais – diz ele - hoje passa pelo crivo da

intervenção humana” (Pessini, 2006, p.49). Isto significa que, agora que temos mais poder,

mister se faz aumentar também o nível da sabedoria – ou não haverá serenidade para avaliar as

conseqüências por exemplo dos Organismos Geneticamente Modificados, da fertilização in

vitro e muitas outras possibilidades de manipulação genética que a revolução biotecnológica

está concretizando e outras possíveis de se concretizar, como a clonagem humana.

O determinismo genético

O que fazem os genes? Como dão origem aos traços e formas de comportamento

hereditário? Capra relata que depois da descoberta da dupla hélice do DNA e do mecanismo

de auto-replicação dessa molécula, os biólogos moleculares levaram mais dez anos para

encontrar uma resposta a essa pergunta, numa pesquisa mais uma vez comandada por James

Watson e Francis Crick. A exemplo de Barchifontaine, o físico também consegue falar sobre

isso de forma didática e fácil de ser entendida:

Para dizê-lo de forma extremamente simplificada, os processos celulares que subjazem às formas biológicas e ao comportamento são catalizados por enzimas, e as enzimas são especificadas pelos genes. Para produzir-se uma enzima específica, as informações contidas no gene correspondente (ou seja, na seqüência correspondente de bases nucleotídicas no filamento de DNA) são copiadas para um filamento complementar de RNA. A molécula de RNA serve de mensageira e leva as informações genéticas para um ribossomo, a estrutura celular onde são produzidas as enzimas e outras proteínas. No ribossomo, a seqüência genética é traduzida em instruções para a montagem de uma seqüência de aminoácidos, os elementos básicos

6 Auscultar a Lei da natureza em relação à formação da vida, significa aqui observar o processo de reprodução da forma como ele acontece naturalmente, sem interferência da técnica.

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de que são feitas as proteínas. O célebre “código genético” é a correspondência precisa pela qual os sucessivos tripletes de bases genéticas no filamento de RNA traduzem-se numa seqüência de aminoácidos na molécula de proteína. (Capra, 2002, p. 179).

Essas descobertas davam a impressão de que a resposta do funcionamento do gene

parecia incrivelmente simples: os genes detêm os códigos de produção das enzimas, que são os

catalisadores necessários de todos os processos celulares. Ou seja: os genes determinam os

traços biológicos e o comportamento, e cada gene corresponde a uma enzima específica. Essa

explicação recebeu de Francis Crick o nome de “Dogma Central da biologia molecular”.

Capra explica que ela postula uma cadeia causal linear que vai do DNA ao RNA, desde às

proteínas (enzimas) e destas às características biológicas. O autor mostra que os biólogos

também têm as suas formas coloquiais de se expressar. Assim, pode-se dizer que ‘O DNA faz

o RNA, o RNA faz as proteínas e as proteínas fazem a gente’. A idéia do Dogma Central é

também chamada de determinismo genético e tornou-se a base conceitual da engenharia

genética (Capra, 2002, p.179).

No entanto, o que parecia simples tornou-se bem mais complicado depois que os

conhecimentos foram se ampliando. O problema estava na maneira de ver as coisas. Vamos

seguir o raciocínio de Capra. Um novo conjunto de problemas relacionados à idéia de

determinismo genético surge quando deixamos de olhar só para o gene e passamos a olhar para

o genoma inteiro. “E do mesmo modo - continua o físico - quando deixamos de lado a

formação de proteínas específicas e voltamos nossa atenção para a formação do organismo

como um todo”. No desenvolvimento do embrião, quando as células se dividem, cada nova

célula recebe o mesmo conjunto de genes. No entanto, elas se especializam de maneiras muito

diversas, tornando-se células musculares, células sangüíneas, células nervosas, entre outras.

Sobre isto já existe alguma explicação.

Há muitas décadas, os biólogos desenvolvimentistas concluíram desse fato que os tipos de células são diferentes não porque contém genes diferentes. Em outras palavras, a estrutura do genoma é a mesma em todas essas células, mas os padrões de atividade genética são diferentes. A pergunta que fica é a seguinte: o que causa a diferença de atividade nos genes, ou, para usar um termo técnico, a diferença de ‘expressão’ genética? Nas palavras de keller, ‘os genes não se limitam a agir; têm de ser ativados’. Eles são como que ‘ligados’ e ‘desligados’ em face de determinados sinais (Capra, 2002, p.182).

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No começo da década de 60, os biólogos moleculares François Jacob e Jacques

Monod, criaram uma engenhosa distinção entre os ‘genes estruturais’ e os ‘genes reguladores’,

visando resolver o problema da expressão genética. Disseram que os genes estruturais seriam

os responsáveis pela codificação das proteínas, ao passo que os genes reguladores controlariam

as taxas de transcrição do DNA e ordenariam, assim, a expressão genética. Os biólogos

conseguiram manter-se dentro do paradigma do determinismo genético partindo do princípio

de que os próprios mecanismos reguladores eram genéticos. “E salientaram esse ponto

mediante o uso da metáfora da ‘programação genética’ para descrever o processo de

desenvolvimento biológico”, acrescenta Capra, lembrando que na mesma época, por causa do

avanço da ciência da computação, a metáfora da programação genética ganhou muita força e

em pouco tempo tornou-se a explicação predominante do desenvolvimento biológico (Capra,

2002, p.183).

No entanto, as pesquisas que vieram depois mostraram que o programa responsável

pela ativação dos genes não reside no genoma, mas na rede epigenética da célula. Várias

estruturas celulares ligadas à regulação da expressão genética já foram identificadas: proteínas

estruturais, hormônios, redes de enzimas e muitos outros complexos moleculares. Uma dessas

redes de proteínas que se entremeiam aos filamentos de DNA dentro dos cromossomos, a

‘cromatina’, parece desempenhar um papel especial – ela constitui o ambiente mais imediato

em que existe o genoma.

Através do desenvolvimento verificado até agora, acredita-se que é essa rede celular

na qual o genoma está inserido que regula os processos biológicos que envolvem os genes: “A

fidelidade com que o DNA” se reproduz, a taxa de mutações, a transcrição das seqüências

codificadoras, a escolha das funções das proteínas e os padrões de expressão genética”.

Como essa rede é altamente não-linear e contém múltiplos anéis de realimentação, os padrões

de atividade genética mudam continuamente em face das circunstâncias mutáveis (Capra,

2002, p.183). Então, apesar de ser uma parte essencial da rede epigenética, o Dna não é o

único agente causal das formas e funções biológicas, contradizendo o que pregava o Dogma

Central ou seja, o determinismo genético.

O que o autor está tentando provar é que o que se descobriu a respeito do gene até

agora é muito pouco para explicar as formas e funções biológicas. Ele vê com otimismo o fato

de que muitos dos principais pesquisadores em genética molecular sentiram a necessidade de ir

além dos genes, adotando uma perspectiva epigenética mais ampla. Registra, por outro lado,

seu pessimismo em relação às possibilidades da engenharia genética obter um conhecimento

maior em relação a um grande número de doenças . como era a expectativa inicial. Explica que

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a esperança dos geneticistas era associar doenças específicas com genes isolados. No entanto,

parece que essas doenças de um único gene são extremamente raras e não representam mais do

que dois por cento de todas as doenças humanas. Ele cita os exemplos.

E até mesmo nos casos claros – anemia falciforme, por exemplo, ou a distrofia muscular, ou a fibrose cística – em que uma mutação causa uma disfunção numa única proteína de crucial importância, os vínculos entre o gene defeituoso e o desenvolvimento da doença ainda não são compreendidos. O desenvolvimento da anemia falciforme, por exemplo, que é comum em pessoas de origem africana, pode ser muitíssimo diferente em indivíduos portadores do mesmo gene defeituoso; as manifestações da doença vão desde uma morte dolorosa na infância até uma manifestação branda, praticamente irrelevante, na meia-idade (Capra, 2002, p. 189).

Se prevalece ou não prevalece a suposta determinação dos genes, nenhum dos dois

lados – os contra e os favoráveis - conseguiu ainda provar. Se pela ótica das ciências, o

conhecimento não é por si só ético ou anti-ético, embora os dilemas já estejam aí embutidos, o

mesmo não sucede com a sua aplicação – quanto a isso não há dúvidas. E as conseqüências da

prática da manipulação genética, no caso de se confirmar o determinismo dos genes, vem

sendo já antecipada pela ficção científica – o filme Gattaca é um bom exemplo7. O tema já tem

ramificações, como o determinismo neurogenético, que poderia explicar tudo pela genética,

desde a infidelidade, passando pelo alcoolismo, até a violência. No campo da ética, as

conseqüências dessas ilações suscitadas pelas descobertas que se avizinham já são motivo para

preocupações. No futuro, se ao invés de uma carteira de identidade, tivermos uma carteira

genética, que tipo de garantias teremos contra todos os possíveis tipos de discriminação?

Para J. Pena e Eliane Azevedo, a tentativa de responsabilizar o genoma pelo

comportamento formalmente “reprovável” de algumas pessoas é bastante sintomática de uma

propensão da nossa sociedade a assumir paradigmas deterministas para abdicar da

responsabilidade social. Eles apostam na possibilidade de que um programa de educação

vigoroso possa gerar uma mudança no paradigma reducionista permitindo, então, a

7 O filme Gattaca, de Andrew Niccol, antecipa o que poderíamos definir, plagiando Dietmar Mieth, de “Ditadura dos genes”. É a história de Vincent, nascido numa época em que a civilização era obcecada pela perfeição genética. Vincent nasceu do amor – um “filho de Deus”, como costumavam chamar quem era concebido de forma natural. Os outros eram filhos do planejamento genético, em que escolhiam sexo, cor da pele, inteligência e eliminavam características consideradas como deficiências, a exemplo da miopia, calvície, etc. Vincent sofria de miopia e “possibilidade de doença coronária” e era do grupo dos “inválidos” – os válidos eram os planejados, com um quociente genético elevado. Como inválido, Vincent apenas podia trabalhar nos serviços de limpeza. Mas seu sonho era viajar pelo espaço sideral. Por isso negocia com Gerome a sua identidade. Este era um “válido” que, apesar dos 9,3 pontos na avaliação genética, havia tentado o suicídio e agora estava paraplégico. Vincent consegue entrar na Corporação Aeroespacial Gattaca e é selecionado para a viagem espacial. O desfecho mostra Gerome – o válido - concretizando o suicídio, enquanto Vincent - “inválido” – viaja pelo espaço. A conclusão: a determinação do espírito prevalece sobre a determinação genética.

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implantação de programas de testes genéticos dentro dos ideais éticos de autonomia,

privacidade, justiça e qualidade defendidos pelo Projeto Genoma Humano.

Considerando-se que o mapeamento refere-se aos genes e que eles representam

apenas 3% do genoma; considerando-se que os genes seriam as palavras, soltas, ainda sem

articulação umas com as outras; considerando-se que ainda faltam 97% do genoma para serem

desvendados, podemos, sim, fazer coro ao pessimismo de Evelyn Fox Keller: com as

descobertas recentes da biologia molecular, o que se percebe é a grandeza do abismo que

separa a informação genética do significado biológico. Ainda falta muito para completar os

capítulos e concluir o “Livro da Vida”.

Clonagem – a criatura se volta para a criação

Ainda no início do capítulo que trata da engenharia genética Jonas pergunta: em

que sentido é possível falar de técnica biológica em analogia ou por diferença em respeito à

restante técnica ou engenharia? O filósofo faz a analogia começando pelo engenheiro

mecânico que constrói os artefatos instrumentais para propósitos bem definidos ao uso do

homem. O “fabricar” aqui referido é bem expresso na palavra “construir” – construção de

máquinas, de pontes, de navios. Quando se elabora projetos para a construção de máquinas,

pontes ou navios, geralmente acrescenta-se algo aos modelos já existentes ou modifica-se

alguma coisa. Assim, pode se falar em uma geração subseqüente de computadores, linhas de

avião, de carros. Essa construção terá sempre o sentido de um aperfeiçoamento ou de outros

progressos, visando sempre um bem presumido para o homem.

Até agora, a técnica vinha lidando com material inanimado, por exemplo, o metal,

através do qual criava meios não humanos para uso do homem. Havia aí uma nítida divisão: o

homem era o sujeito e a natureza o objeto de domínio técnico. Na tecnologia orgânica, a

relação entre o engenheiro e seu “projeto” é diversa. E não é tão simples.

Agora, o advento da técnica biológica, cuja extensão pode modificar o projeto da espécie vivente e, quem sabe, o projeto do gênero humano, marca um radical distanciamento desta nítida divisão, uma fratura de significado potencialmente metafísico, precisamente em relação à sua constituição física hereditária. Mas, mesmo sem aplicá-la propriamente ao homem – e a prescindir de questões

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metatécnicas que assim se levantam - a tecnologia orgânica é em si diversa por significativos aspectos formais, da engenharia mecânica (Jonas, 1997, p.123/124).

O “produzir” na engenharia genética tem um sentido muito mais complexo que na

engenharia mecânica. Nesta última, com matéria inanimada, o produzir percorre o inteiro

caminho da matéria prima ao produto acabado, que é composto todo ele de partes

independentes. Seja a estrutura do todo, seja qualquer uma de suas partes, são produtos da sua

vontade, da sua escolha, partindo de um projeto; somente a matéria informe já existe. Já a

técnica biológica procura modificar estruturas pré-existentes, que possuem uma realidade

autônoma, com uma morfologia completa. Aqui os organismos em questão é que são o dado a

priori, a matéria prima: não há projeto para ser criado ou inventado, simplesmente porque o

projeto já existe. É preciso, então, “encontrar” ou conhecer melhor esse projeto a fim de que

qualquer uma de suas corporificações individuais tornem-se objeto de aperfeiçoamento

inventivo.

Para falar em aperfeiçoamento em relação a tal projeto é preciso colocar-se no

campo de ação de um sistema já determinado, com funções internas intercambiáveis e

condicionadas a manter a capacidade vital. Temos, assim, uma produção parcial (e muito

marginal) ao invés de total; temos, assim, a modificação de um projeto ao invés de um projeto

novo. “Entre a substância permanece ainda a criação original da natureza – continua o

filósofo – daí deriva uma importante diferença qualitativa entre o fazer e o seu substrato”

(Jonas, 1997, p.124). Mais adiante ele observa que aqui o ato técnico tem a forma de uma

intervenção sobre algo que já está acabado, concluído. Não se trata de uma construção. E nós

complementamos: é, de fato, uma intervenção. A analogia de Jonas com a engenharia

mecânica deixa isso bem claro.

Todo projeto inclui um planejamento, que por sua vez inclui a previsibilidade. Na

construção do engenheiro mecânico o número de incógnitas é praticamente nulo, pode-se

prever com exatidão a propriedade ou a capacidade do seu produto. Ou não confiaríamos na

sua ponte. Isto é possível porque é possível comparar a construção desejada com o projeto

planejado. Na engenharia biológica as coisas não funcionam dessa forma.

Para o engenheiro biológico, que deve de certo modo colar-se à caixa fechada, a enorme complexidade dos elementos determinantes, existentes e em parte escondidos, na sua dinâmica autonomia, o número de incógnitas no projeto geral , ao contrário, é enorme. O projeto não é em grande parte seu e uma porção indeterminada disso não lhe é nítida. (Jonas, 1997, p.125).

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Na tecnologia normal os experimentos se efetuam com modelos substituíveis, que

se podem modificar, trocar no caso de não dar certo. Tal substituição não pode ser concedida

na manipulação genética em geral, muito menos ao homem. A fim de que a experiência seja

válida deve ter lugar sobre o próprio original, sobre o objeto real e autêntico no senso mais

pleno. E isto que aqui se coloca entre o início e a conclusão definitiva do experimento é a vida

real do indivíduo e talvez de populações inteiras. Isto anula a distinção entre simples

experimentos e ações definitivas. O experimento é a ação real e a ação real é um experimento.

A isto ocorre acrescentar a característica da irreversibilidade, que distingue os

processos orgânicos daqueles mecânicos. Na construção mecânica tudo é reversível. Pode se

corrigir a cada momento os erros até o produto final ficar pronto. E mesmo depois de colocado

no comércio, a exemplo do automóvel, ainda é passível de ser devolvido à fábrica. Com gente

é diferente:

Isto não acontece na técnica biológica. As suas ações não são revogáveis em nenhum de seus passos. Quando os resultados se revelam é tarde demais para corrigi-los. Não se pode remeter ao estaleiro pessoas ou reduzir a um resto a inteira população. Em manipulação genética, em caso de erro, o que devemos fazer com os deformados? Devemos introduzir na equação humana o conceito de descarte? Estas são questões éticas que ocorre examinar e a qual ocorre responder antes que se possa dar um passo nesta direção (Jonas, 1997, p.126).

Agora que foram apresentadas as primeiras considerações filosóficas de Hans

Jonas, passemos às considerações de caráter técnico, começando pela etimologia da palavra

clone. Segundo Goldim (2003), é a designação utilizada para identificar indivíduos idênticos

geneticamente, tendo sido introduzida na língua inglesa no início do século XX. Sua origem

etimológica remonta à palavra grega Klon, que quer dizer broto de um vegetal. Quando

falamos em clonagem nos referimos a uma forma de reprodução assexuada que existe

naturalmente em organismos unicelulares e em plantas. É um processo reprodutivo que se

baseia em um único patrimônio genético, ocorrendo de forma natural nos animais quando

surgem gêmeos vitelinos – neste caso, os dois indivíduos gerados tem o mesmo patrimônio

genético. “A geração de um novo animal a partir de um outro pré-existente ocorre apenas

artificialmente, em laboratório – prossegue Goldim - os indivíduos resultantes deste processo

terão as mesmas características genéticas cromossômicas do indivíduo doador, ou também

denominado de original” (Goldim, 2003, p. 1).

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Quanto a esta afirmação – que não é só de Goldim – existem algumas divergências.

Capra, por exemplo, considera que ao contrário dos gêmeos idênticos o animal clonado não é

completamente idêntico, do ponto de vista genético, ao doador de seus genes : “Pois a célula

manipulada a partir da qual cresce não é formada só pelo núcleo da célula do doador – que

fornece, portanto, a maior parte do genoma -, mas também pela célula enucleada de outro

doador, que contém outros genes fora de seu núcleo” (Capra, 2002, p.192). Assim, segundo

ele, gêmeos idênticos são muito mais semelhantes entre si, do ponto de vista genético, do que

um organismo clonado é semelhante ao doador de seus genes. Um outro detalhe a respeito da

reprodução via manipulação genética é que ela não se utiliza de sêmen, descartando o papel do

homem na perpetuação da espécie.

Se os clones não são, como geralmente se pensa, “cópias” dos indivíduos originais,

essa seria uma razão a menos para se protestar contra a clonagem. Por outro lado desarma

aqueles defensores da técnica que anseiam a possibilidade de trazer de novo ao mundo a

genialidade de um Mozart , um Shakespeare ou um Einstein. O físico diz que essa idéia é

absurda:

Como o público em geral não conhece a falácia fundamental da doutrina de que os genes ‘fazem’ o organismo, tende naturalmente a crer que genes idênticos produzem pessoas idênticas. Em outras palavras, a maioria das pessoas confunde o estado genético de um organismo com a totalidade das características biológicas, psicológicas e culturais de um ser humano. Não são os genes que determinam o desenvolvimento de um individuo – tanto no que diz respeito ao surgimento da forma biológica quanto no que se refere à formação de uma personalidade humana única e singular a partir de certas experiências de vida. Por isso a idéia de ‘clonar Einstein’ é absurda. (Capra, 2002, p. 191).

A diferença entre o método científico artificial de reprodução denominado

clonagem e o método natural é que no laboratório ao invés de óvulos se utiliza as células

somáticas – aquelas que formam órgãos, pele e ossos. Na natureza, com exceção dos vírus, das

bactérias e diversos seres unicelulares, a reprodução se faz através das células sexuais, não das

células somáticas. Capra tem razão: a clonagem ainda não foi entendida por completo pelos

médicos e cientistas, no que se refere aos conhecimentos teóricos. Ora, em tese, as células

somáticas não poderiam atuar como células sexuais, uma vez que nas somáticas quase todos

os genes estão desligados.

No entanto, a ovelha Dolly foi gerada de células somáticas mamárias retiradas de

um animal adulto. A parte nuclear das células – que é onde se encontram os genes – foi

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armazenada. Na fase seguinte, os núcleos das células somáticas foram introduzidos dentro dos

óvulos de uma outra ovelha, de onde haviam sido retirados os núcleos. Com esta operação

foram formadas “células artificiais”. Com um choque elétrico, após um estado em que ficaram

de certa forma dormindo, as células foram estimuladas. Os genes passaram a agir novamente,

formando novos embriões que foram introduzidos no útero de uma ovelha. Após muitas

tentativas, nasceu a ovelha Dolly.

A ovelha Dolly é uma experiência do Instituto Roslin (Edimburgo/Escócia),

realizada Por Ian Wilmut, no ano de 1996. Entre 277 embriões criados, ela foi o único a

sobreviver – o que representa 0,35 por cento de acerto. Capra observa que os procedimentos de

clonagem praticados atualmente ocorrem muito mais com base na tentativa e erro do que

numa compreensão real dos processos biológicos envolvidos. Não se trata propriamente de

uma metodologia, mas da falta de conhecimento a respeito do assunto, cabendo aí perguntar:

numa situação de incertezas, como essas que são geradas na engenharia genética, a prudência

não deve falar mais alto do que a coragem de avançar?

Algumas recomendações nesse sentido podem ser encontradas, como por exemplo a

da National Bioethics Advisory Commission (NBAC), citada por Azevedo, onde se lê que

“até esse momento é moralmente inaceitável para qualquer um, seja no setor público ou

privado, seja em pesquisa ou abordagens clínicas, tentar gerar uma criança empregando

clonagem por transferência de núcleos de células somáticas”. A comissão chegou a um

consenso sobre esse ponto porque, até agora, as informações científicas existentes indicam que

esta técnica não é segura para ser empregada em humanos”.

O autor concorda que a restrição do uso da clonagem a pesquisas médicas visando

para o futuro seu uso clínico, é um dos modos de se evitar os abusos das técnicas reprodutivas.

E prega que a medicina continue sendo orientada pelos fins tradicionais, como a saúde

humana, regida por rigorosos preceitos deontológicos, como a obrigação da não maleficência.

No contexto das sociedades modernas Azevedo diz que “isso também implica respeitar os

princípios e normas que dão corpo à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por outro

lado, se a clonagem tornar-se um procedimento subordinado aos objetivos do mercado de

consumo, como impedir abusos orientados por objetivos que nada têm a ver com a busca ou

preservação da saúde humana?” (Azevedo, 2002, p. 164).

Muitas perguntas estão sendo feitas desde que as primeiras experiências com

manipulação genética sobre o homem foram suscitadas. As de Jonas são: O que, exatamente, se

obtém com a clonagem? Por que ocorre obtê-lo? Isto é, que motivos existem para desejar um

clone? Deve-se obtê-lo? Esse objetivo é aceitável ou reprovável? Ele não tem as respostas. E,

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justamente por isso, é taxativo em dizer que “não se deve permitir nem mesmo o primeiro

caso até que essas perguntas sejam respondidas”. O filósofo discorre sobre algumas razões

favoráveis à clonagem, mas apenas relativas aos animais, como o melhoramento da carne

bovina, por exemplo. E transcreve uma lista de possíveis aplicações da manipulação genética,

relativas ao homem, sugeridas por um seu amigo de Chicago, Leon Kass:

1. Replicar indivíduos de grande gênio ou de grande beleza para melhorar a espécie ou transformar mais prazerosa a vida. 2. Replicar indivíduos saudáveis para evitar o risco de doenças hereditárias, inseridas na loteria da recombinação sexual. 3. Fornecer grande quantidade de sujeitos geneticamente idênticos para conduzir estudos científicos sobre a relativa importância de natureza inapta e ambiente para os diversos aspectos da prestação humana. 4. Obter um filho para um casal estéril. 5. Obter um filho com um genótipo de escolha própria: de uma celebridade que se admira, de um ente querido extinto, do cônjuge ou de si mesmo. 6. Determinar o sexo dos filhos que virão: o sexo de um clone é o mesmo da pessoa da qual provém o núcleo celular transplantado. 7. Produzir esquadras de sujeitos idênticos para executar tarefas especiais em paz e em guerra (não excluída a espionagem. 8. Produzir cópias de embriões de cada pessoa para ter congelado quando forem necessários como reserva de órgãos para transplante sobre o gêmeo geneticamente igual. 9. Para vencer russos e chineses, não admitir lacunas no campo da clonagem. (Kass,1972, in Jonas, 1997, p. 141).

Sob o último item Jonas acrescentaria por sua própria conta as olimpíadas e

similares competições internacionais e encabeçaria a lista com mais uma razão especial para

clonar: a curiosidade, para ver como vai terminar uma coisa deste gênero. Evidente que o

filósofo não está falando sério. Ele diz, em seguida, que a lista é menos divertida quanto

parece: nenhum desejo é tão perverso, como aquele de auto-replicar-se; cínico e utilitarístico

como aquele de uma esquadra para executar trabalho homogêneo; fanático como aquele que

institui como tema da pesquisa a própria bagagem genética (ele poderia estar se referindo ao

caso da Celera Genomics).

Mas, não serão essas as razões defendidas e pretendidas por aqueles que na calada

da noite podem já estar encaminhando a clonagem humana? Quando em 1941, George Orwell

escreveu 1984, toda a tecnologia de que fala o livro, incluindo câmeras colocadas em todos os

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cantos, parecia uma quimera futurística. Passados pouco mais de 60 anos, as tecnologias de que

dispomos colocam aquelas no patamar das antiguidades. O Admirável Mundo Novo, de

Aldous Huxley, já não tem o sabor da ficção quando se sabe que estamos a poucos passos de

possibilitar a materialização do “princípio de produção em série aplicado enfim à biologia”8.

Enfim, por que e para que clonar um homem? Se razões houverem que não esbarrem em

nenhum princípio das declarações que zelam pelos direitos humanos, que não tropecem nos

princípios éticos e morais e que não coloquem em risco a interioridade do homem e o futuro da

humanidade, então poderemos começar a pensar nas probabilidades.

Eugenia positiva e negativa

Ainda na pré-história da genética, quando o conhecimento sobre os genes eram

incipientes, a manipulação já era pensada como um instrumento de modificação das coisas

humanas. O poder das ciências era quase nada se comparado ao que temos hoje, mas nem por

isso era menos perigoso. O que nós chamamos hoje de manipulação genética, engenharia

através da qual é possível criar organismos geneticamente modificados, realizar fertilização in

vitro, trabalhar com diagnósticos de pré-implantação e até mesmo pensar na criação de um

clone, começou a tomar forma na Inglaterra do século XIX. Estamos falando da “Eugenia”.

O dicionário Aurélio define Eugenia como a ciência que estuda as condições mais

propícias à reprodução e melhoramento da raça humana. Embora tenha chegado ao

conhecimento popular através das atrocidades praticadas pela Alemanha nazista, a eugenia é

bem mais antiga, como prática e não como ciência. Goldim ( 1998) inicia seu artigo sobre

eugenia assinalando que ao longo da história da humanidade, vários povos, tais como os

gregos, celtas e fueginos (indígenas sul americanos) eliminavam as pessoas deficientes, as mal-

formadas ou as muito doentes. Nesse caso, ao nosso ver, a prática se caracteriza como eugenia

por causa da palavra “eliminação” e ainda por incluir os deficientes e mal formados. Algumas

8 A frase está em Admirável Mundo Novo, dita pelo Diretor do Centro de Incubação e Condicionamento de Londres Central, enquanto ele apresenta aos estudantes a “sala de fecundação”, onde 300 fecundadores se debruçam sobre as incubadoras. “Um ovo, um embrião, um adulto é o normal – diz o diretor - mas um ovo bokanovskizado tem a propriedade de germinar, proliferar, dividir-se: de oito a 96 germes, e cada um destes se tornará um embrião perfeitamente formado, e cada embrião, um adulto completo. Assim se consegue fazer crescerem noventa e seis seres humanos em lugar de um, como no passado. Progresso” (Huxley, 2005, p.12/13).

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culturas adotam a mesma prática para as pessoas muito velhas ou muito doentes, mas

considerando-se que os objetivos são outros, aqui ela é denominada eutanásia.

Etimologicamente falando, a eliminação de pessoas, como aconteceu no caso do holocausto,

não pode ser definida nem como eugenia, que significa “bem nascer’, nem como eutanásia, que

significa “boa morte”.

O termo Eugenia foi cunhado pelo inglês Francis Galton (1822/1911), querendo

com ele designar a melhoria de uma determinada espécie através da seleção artificial. Suas

idéias foram registradas na obra Inquires into Human Faculty and its Development (Pesquisas

sobre as Faculdades humanas e seu Desenvolvimento), de 1883. Os estudos que precederam

esta obra foram registrados no livro Hereditary Genius (O gênio herdado), escrito em 1869,

em que através da observação e compilação de dados, Galton sistematizou a inteligência em

vários membros durante sucessivas gerações de várias famílias inglesas. Ele concluiu, então,

que a inteligência acima da média nos indivíduos de uma determinada família se transmite

hereditariamente. Galton foi influenciado pela obra de seu primo, Charles Darwin – A

Evolução das espécies, de 1859. A eugenia logo se transformou num movimento, angariando

adeptos entre os cientistas e a população – especialmente no período de 1870 a 1933 . Nos

primeiros anos do século XX contou com o milionário americano John D. Rockefeller, entre

os seus apoiadores financeiros.

Andréia Guerra, geneticista da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP,

historia o movimento eugênico a partir da publicação da Evolução das espécies, de Darwin. A

proposição dele de que a maioria das espécies tem o seu processo de sobrevivência governado

pela seleção natural teria influenciado importantes pensadores e cientistas, nascendo daí um

novo conceito: o darwinismo social. Isto significa que na luta pela sobrevivência muitos seres

humanos eram não só menos valiosos, como também estavam fadados a desaparecer (Guerra,

s.data, p. 1). O raciocínio culminou numa nova ideologia: a melhoria da raça humana por meio

da ciência. É aí que entra em cena Sir Francis J. Galton, cujo nome é associado ao surgimento

da genética humana e da eugenia.

Galton dedicou sua carreira científica ao que ele pensava ser a melhoria da

humanidade, mas que era na verdade o aperfeiçoamento da espécie. Ele estava certo de que a

natureza e não o ambiente é que determinava as habilidades humanas. O meio de que se

utilizou para as pesquisas e suas pretensões foi a realização de casamentos seletivos. A

argumentação de Galton encontrou um terreno fértil: predominava na época a preocupação dos

ingleses em relação à queda na taxa de natalidade nas classes alta e média, em nível mais

elevado que na classe baixa – o que foi por eles denominado de “degeneração biológica”

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(Guerra, p.1). É conveniente observar que atualmente a baixa taxa de natalidade volta a ser

uma preocupação em quase toda a Europa, inclusive com programas de incentivo a quem

quiser ter filhos.

As propostas de Galton ganharam o mundo. A primeira organização a defender

essas idéias de forma organizada e ostensiva foi a Eugenics Society, fundada em Londres no

ano de 1908, tendo como um de seus líderes Leonard Darwin, oitavo dos dez filhos de Charles

Darwin. Sociedades semelhantes foram criadas na Alemanha, França, Dinamarca,

Tchecoslováquia, Hungria, Áustria, Bélgica, Suíça, União Soviética. Estados unidos, Argentina

e Peru. Goldim relata que o Primeiro congresso Brasileiro de Eugenismo foi realizado no Rio

de janeiro, em 1929 tendo entre os temas “O problema eugênico da migração”. Entre as

propostas, anunciadas no Boletim de Eugenismo, estava a exclusão de todas as migrações não-

brancas.

Embora o racismo seja uma de suas características, a eugenia vai muito além,

interferindo, inclusive, na subjetividade do ser humano. Os objetivos da Comissão Central de

Eugenismo, criada no Brasil em 1931, demonstram isso. A citação é de Goldim (1998):

1.Manter o interesse do estudo de questões eugenistas no país; 2. Difundir o ideal de regeneração física, psíquica e moral do homem; 3. Prestigiar e auxiliar as iniciativas científicas ou humanitárias de caráter eugenista que sejam dignas de consideração.

Como ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e

melhoramento da raça humana, a eugenia é, a priori, inofensiva, mas não inocente. É difícil

conservar a pureza ideológica quando se fala em “melhoramento” porque melhorar é por si só

uma palavra eivada de subjetividades. Essa subjetividade permeia também a divisão que se

criou para a aplicação desse “melhoramento”: eugenia negativa – que por princípio deveria ser

algo ruim – é a parte aceitável, uma vez que tem por objetivo evitar, através da reprodução,

aspectos negativos, centrados nas moléstias. A eugenia positiva – que por princípio deveria ser

algo bom - é a parte condenável, uma vez que o objetivo aqui não é sanar problemas -

claramente identificados como problemas, a exemplo das doenças. O que se busca aqui é o

perfeccionismo arbitrário, quase sempre embasado em razões político-ideológicas.

A eugenia, da forma como foi idealizada e praticada por Galton era positiva: suas

experiências com os casamentos seletivos não visavam evitar doenças e sim perpetuar o sangue

azul da burguesia inglesa. Quando foi importada pelos Estados Unidos estava travestida de

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eugenia negativa. Mas logo ficou demonstrado que os propósitos tinham muito mais a ver com

a ideologia do que com a medicina. Segundo Andréia Guerra, o que se pretendia – e muitas

pretensões tomaram forma - era a eliminação de futuras gerações de “geneticamente

incapazes” – enfermos, racialmente indesejados e economicamente empobrecidos - por meio

da proibição marital, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em última análise,

extermínio. Ela observa que o racismo dos primeiros eugenistas norte-americanos não era

contra não-brancos, mas contra não-nórdicos e as doutrinas de pureza e supremacia raciais

eram elaboradas por figuras públicas cultas e respeitadas. “Quando as teorias de Mendel

chegaram aos EUA, esses pensadores influentes acrescentaram um verniz científico ao ódio

social” (Guerra, p.2).

Disseminada por meio de livros didáticos e instituições de instrução eugenista, a

eugenia era vista como ciência prestigiosa. Em 1912 foi realizado o Primeiro Congresso

Internacional de Eugenia, reunindo líderes de delegações dos EUA e países europeus que

formaram o Comitê Internacional de Eugenia. Esse comitê deu origem à Federação

Internacional de Organizações Eugenistas, com uma agenda política e científica que era

dominada pelos Estados Unidos, onde, inclusive, eram ministrados treinamentos para

estrangeiros, no laboratório de Gold Spring Harbor.

Foi, portanto, a eugenia norte-americana que serviu de inspiração na Alemanha para

os nacionalistas defensores da supremacia racional, entre os quais Hitler. O que veio depois, o

mundo inteiro conhece: segregação, esterilização, eutanásia e extermínio em massa dos

indesejáveis. A revelação das atrocidades cometidas provocou o descrédito da eugenia e a

palavra caiu em desuso. Mas, segundo Andréia Guerra, ela não desapareceu: apenas ganhou

uma roupagem nova.

A revelação das atrocidades nazistas desacreditou a eugenia, científica e eticamente, e fez com que a palavra desaparecesse abruptamente do uso. No entanto, a eugenia não desapareceu, mas se refugiou em muitos casos sob o rótulo ‘genética humana’. O laboratório de Cold Spring Harbor é dirigido hoje por um dos descobridores da dupla hélice do DNA, o geneticista James Watson, que vem propagando idéias claramente eugênicas. Avanços científicos vêm sendo direcionados à identificação de ‘indesejáveis’, como a utilização de exames que detectam doenças genéticas por companhias de seguro e planos de saúde e o uso de bancos de DNA no controle da imigração (Guerra, p. 3).

Siqueira faz coro às preocupações da geneticista quanto à eugenia permanecer em

pauta ainda hoje no âmbito político/institucional. Para ele é um grande paradoxo dentro da

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modernidade o ressurgimento das cinzas de antigas idéias eugênicas, relatando que propostas

dessa natureza estão reaparecendo com vigor e se apresentando sob o argumento de salvação

de Estados nacionais. “Lamentavelmente – continua – parece ser a bandeira de crescentes

movimentos na Europa e nos Estados unidos. O retorno da eugenia não se faz presente nos

discursos acadêmicos, mas como programas político-institucionais” (Siqueira, 2005, p.168).

Por definição, eugenia negativa é o processo que visa impedir que genes

patogênicos ou danosos sejam transmitidos pelos seus portadores durante o processo de

reprodução. Quando trata do assunto, Hans Jonas usa também o termo Eugenia preditiva, que

nos parece ser mais apropriado. Os métodos vão desde o aconselhamento até a esterilização.

Muito discutido ultimamente, especialmente por questões éticas, é o DGPI – diagnóstico

genético de pré-implantação, através do qual o embrião num estágio de oito células passa por

um exame genético de precaução. O procedimento é sugerido pelos médicos aos pais que

desejam evitar o risco da transmissão de doenças hereditárias, como a diabetes, por exemplo.

Ao DGPI está também ligado o termo “Fertilização in vitro”, pois o embrião é analisado na

proveta.

Após o exame, se confirmada a doença, restam aos pais duas possibilidades: não

reimplantar o embrião no útero da mãe ou reimplantar e aceitar que o nascituro seja também

portador da mesma doença genética. Com a evolução da engenharia genética, espera-se que os

problemas detectados possam ser corrigidos no embrião. Mas, por enquanto, o DGPI apenas

confirma, não corrige. A vantagem de antecipar o diagnóstico é que de outra forma ele seria

conhecido apenas no pré-natal, dificultando a interrupção da gravidez por razões morais e

legais.

Que razões levariam o casal ou a mulher – já que é sobre ela que recai a decisão

final – a pretender o descarte de um embrião diagnosticado por uma doença hereditária? Essa é

uma situação mais complicada, já que o status do embrião é fonte de polêmica e indefinição. A

maioria das legislações leva em conta o limite de 14 dias para que o embrião seja considerado

como um ser humano. Por isso, no caso do aconselhamento prévio, antes do início da gestação,

tendo em vista a existência de doenças hereditárias, costuma ser aventada a possibilidade de

não ter filhos.

Na análise de Hans Jonas a intenção de evitar o nascimento geralmente tem como

finalidade dois tipos de motivação: a humanitária e a evolucionista, às vezes as duas juntas. A

humanitária visa o bem estar individual do possível descendente e impõe, por amor a ele, a

prevenção de um sofrimento futuro. Seria um caso particular da ética da compaixão: a

compaixão antecipada por um sujeito imaginado abstratamente, poupando-o de existir para lhe

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poupar futuras dores. A decisão neste caso, é isenta da obrigação de consultar o indivíduo e

obter sua aprovação. Não se está lesando algum direito de descendência negando a capacidade

deles serem gerados, porque não existe algum direito à existência da parte de indivíduos

hipotéticos, ainda não concebidos. Se poderia antes argumentar que a lesão de seus direitos

consistiria, isto sim, em gerá-los mesmo prevendo que isto conduziria a uma existência infeliz.

(Jonas, 1997, p.130).

Ele considera que a eugenia negativa se assemelha mais a uma ampliação da

medicina preventiva do que ao início de uma projetiva manipulação biológica. Ressalva, no

entanto, que é preciso cuidar para que a definição de patogênico não assuma a conotação de

“indesejável”, principalmente no âmbito social. Quanto à eugenia positiva, ele adverte que

não temos nenhum auto-evidente mandato que nos autorize a pretensão de selecionar e

reestruturar o patrimônio genético da humanidade, salientando que os exemplos do passado

(ele se refere à Alemanha) ultrapassaram os confins daquele território muito mais delicado da

eugenia positiva ou melhorística (Jonas, 1997, p. 132).

A recomendação de Jonas em relação à definição das patologias, a fim de que os

nascidos nessas condições não se sintam “indesejáveis” tem procedência. Já existem, inclusive,

movimentos organizados para protestar contra a discriminação que trazem em si os tratamentos

de reprodução visando evitar portadores de condições consideradas patogênicas. A antropóloga

Débora Diniz discorre sobre a evolução de um grupo de pessoas portadoras de surdez que veio

culminar na “Comunidade Surda”, assim definida como o grupo de pessoas que possuem o

pertencimento à cultura surda. Já a cultura surda define-se pela linguagem dos sinais e pela

história política de opressão. Em seu artigo, ela cita alguns casos que tem se tornado um

desafio para a ética e para a própria ciência: famílias e comunidades surdas que, através das

tecnologias reprodutivas, fazem questão de embriões surdos, descartando os embriões

ouvintes. Aqui, o sentimento de rejeição deu lugar ao sentimento de orgulho pelo

pertencimento à comunidade. A surdez, antes obra do acaso, agora pode ser programada graças

ao mapeamento genético (Diniz, 2005, p. 102).

É preciso observar que mesmo a definição de “patogênico” pode ser um critério

subjetivo para se evitar o nascimento de alguém. Quantas crianças com Síndrome de Down

estão vivas, felizes e fazendo a felicidade de seus pais? A respeito da patogenia como

justificativa para o aborto, Jonas tem um exemplo interessante. Um ano antes de sua morte,

numa mesa redonda da qual participou na Alemanha, ele foi questionado sobre o diagnóstico

pré-natal. Ele pega, então, como exemplo a epilepsia, reconhecendo ser esta doença uma

desgraça para quem é portador e para quem está à sua volta. “No entanto - diz o filósofo -

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tomando-se esta definição como justificativa para um aborto ou um infanticídio, não teríamos

tido no mundo um Dostoievski” (Jonas, 2000, p. 74).

Em “O futuro da Natureza Humana” – A caminho de uma eugenia liberal,

Habermas faz uma ampla análise sobre o assunto, centrado na política e na filosofia. O que

Habermas teme é que no futuro “lançaremos um olhar retrospectivo às práticas, hoje

contestadas, considerando-as como precursoras de uma eugenia liberal, regulada pela oferta e

pela procura” (Habermas, 2004, p.2). Ele está se referindo às pesquisas com embriões,

especialmente o DGPI que, na sua opinião, acirram os ânimos sobretudo porque são o exemplo

de um perigo que se vincula à metáfora da “criação de humanos”. O espaço que separa a

eugenia negativa da eugenia positiva é uma das considerações feitas por Habermas. O filósofo

chama a atenção para os riscos desses limites se estreitarem, dependendo da forma como o

assunto for tratado dentro dos processos políticos de autocompreensão, que precisam de tempo,

e onde a falta de perspectiva é o maior perigo. Vejamos:

Por razões conceituais e práticas, esse limite entre as duas é flutuante e, portanto, a

intenção de conter as intervenções genéticas que beiram esse limite do

aperfeiçoamento genético de características nos confronta com um desafio

paradoxal: justamente nas dimensões em que os limites são pouco definidos,

precisamos traçar e impor fronteiras precisas. Atualmente esse argumento já serve

para defender uma eugenia liberal que não reconhece um limite entre intervenções

terapêuticas e de aperfeiçoamento, mas deixa as preferências individuais dos

integrantes do mercado a escolha dos objetivos relativos a intervenções que alteram

características (Habermas, 2004, p.27).

José Nicolau Heck (2006) discorre sobre a abordagem de Habermas a respeito da

eugenia, concordando que a invenção e a disseminação dos testes e intervenções médicas para

avaliar riscos e evitar a gestação de fetos com problemas mapeados pela engenharia genética,

amplia, sim, as fronteiras da eugenia. Isto por um lado. Por outro lado, traz de volta o espectro

nazista da purificação da raça ariana. A isso ele acrescenta que

À primeira vista, parece razoável limitar o termo eugenia a políticas públicas que

buscam interferir em aspectos étnicos ou raciais da população e enquadrar, em

contrapartida, o diagnóstico pré-natal extracorporal nos direitos individuais de obter

informações e poder decidir a bel-prazer com elas. Basta, porém, atentar que os

milhões de mortos pelos regimes totalitários do século XX eram vistos como

indignos à luz das doutrinas racistas ou revolucionárias de seus algozes para

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suspeitar que exista algum tipo de incompatibilidade entre dignidade humana e

manipulação genética, quer autoritária, quer liberal (Heck, 2006, p. 2)

Se, por um lado, devemos estar atentos aos rumos que a engenharia genética está

tomando, não podemos, por outro lado, nos pautar pela excessiva desconfiança. Nesse sentido

Heck busca o exemplo da radicalização ecológica de proteger a natureza das intervenções da

ciência, da técnica e da economia, para concluir que a eliminação radical da eugenia toma o

mesmo caminho. No paralelo que faz entre as duas posturas, ele observa que “enquanto a

crítica ecológica à civilização é abrangente, a desconfiança para com as técnicas eugenéticas

limita-se a manter a natureza humana o mais possível separada da manipulação

biotecnológica”.

Para ele, o debate genético, enquanto inspirado na posição do movimento

ecológico, critica as práticas eugênicas em nome da indisponibilidade técnica da espécie

humana em seu todo. Assim, “o claro-escuro que distingue o que somos naturalmente e o

que é inovação em nós induz uma cultura de vulnerabilidade que justifica toda sorte de

regulamentação e protege, assim, a prole na condição de vítima das presumidas motivações

corretivas e dos anseios transformistas dos respectivos progenitores” (Heck, 2006, p. 2).

De Galton (eugenia-século XIX) a Ian Wilmut (criador de Dolly-século XX), a

engenharia genética vem sendo desenvolvida através de um processo que inclui diversas

nomenclaturas, mas que se sustenta sobre o mesmo eixo: a intervenção na natureza humana e

também na natureza extra-humana. A eugenia é uma espécie de simulado da clonagem, feita

ao longo do tempo como aprimoramento da receita. O que distingue uma experiência da outra

é que nos processos de eugenia o homem vai sendo melhorado aos poucos, geração, após

geração através da reprodução. A clonagem pretende dar um salto, fazendo com um

procedimento só o homem “perfeito”. E este é um sonho antigo, que já permeava o imaginário

dos alquimistas e fez de Mary Shelley um fenômeno literário quando ela criou Frankestein. A

evolução é espantosa: o que hoje se idealiza nos laboratórios está mais para um Superman do

que para um Frankestein.

Jonas observa que essa busca pelo ideal de um homem perfeito é um desejo da

arrogância, da soberba, não da necessidade. Os rumos que esses experimentos estão tomando

são temerários. O filósofo alemão alerta que, com o tempo, eles podem se tornar dementes e

irresponsáveis, conduzindo - no melhor dos casos - a brutas figuras e - no caso pior - à

desgraça. Essas últimas ele diz que já estão presentes do ponto de vista político, humano e

ético (independentemente da sorte) nos mesmos métodos das gerações planejadas, através da

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despersonalização da relação sexual reprodutiva; da separação do amor da reprodução, do

matrimônio da liberdade de querer ser pai; da sacrílega intromissão do poder público naquela

secreta dimensão de futuro da união mais íntima que vem concedida da natureza à constituição

humana (Jonas, 1997, p.135).

Nem todos são assim, tão pessimistas. Engelhardt, por exemplo, enumera uma série

de conquistas possibilitadas pela biotecnologia: imunização passiva e ativa; desenvolvimento

de lentes, válvulas e juntas protéticas; o controle de mecanismos naturais para rejeição de

tecidos estranhos, para transplantar órgãos; passamos a entender os mecanismos hormonais, de

maneira a romper o vínculo natural entre as relações sexuais e a reprodução. E sobre isso

conclui que “até agora , nossas intervenções têm sido muito humildes”. Essas intervenções

aumentarão no futuro, aumentando a nossa capacidade de limitar e manipular a natureza

humana “para ir em busca dos objetivos estabelecidos pelas pessoas”.

Com o desenvolvimento da engenharia genética, ampliando sua capacidade de

intervenção para a linha germinal humana e não apenas das células somáticas, Engelhardt

acredita que “seremos capazes de dar forma e modelar a natureza humana à imagem e

semelhança dos objetivos estabelecidos pelas pessoas humanas, e não pela natureza de Deus”.

Ele reconhece – e outros autores também já disseram isto – que no “final isto poderá

significar uma mudança tão radical da natureza humana que nossos descendentes poderão ser

considerados pelos taxiólogos do futuro como uma nova espécie”. Mesmo assim, ele parece

não se preocupar. “Se nada há de sagrado a respeito da natureza humana (e nenhum

argumento meramente secular pode revelar o que é sagrado), nenhum raciocínio será capaz

de reconhecer por que, com os devidos cuidados, a natureza humana não pode sofrer

mudanças radicais” (Engelhardt, 1998, p. 494).

“O homem é a medida de todas as coisas, das coisas existentes de que existem, das

coisas não existentes, de que não existem”. Segundo Engelhardt, este fragmento de Protágoras

pode ser melhor interpretado agora, após uma reavaliação secular da nossa natureza. Porque

são as pessoas que dão medida a todas as coisas, porque ninguém mais existe para tomar as

medidas, a não ser elas. O que vem depois demonstra, no entanto, que o otimismo de

Engelhardt é aparente. Que ele reconhece a evolução e tem noção das suas medidas – mas isso

não quer dizer que tem de ser assim. Ele não tem certeza de que estamos no caminho certo.

Vejamos.

Precisamos ser responsáveis por nós mesmos, e em nossos próprios termos, porque

não aceitaremos qualquer reclamo independente, canônico e essencial de Deus sobre

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nós, e não podemos encontrar um reclamo na razão. Não podemos reconhecer sequer

uma essência em nossa responsabilidade para com nossa própria pessoa. Ficamos

diante do projeto de nos reprojetarmos sem virtudes substantivas que nos sustentem

ou sem um sentido de responsabilidade canônica essencial para nos orientar. Não

temos uma visão canônica normativa essencial da natureza humana e de seu

significado. Tendo nós mesmos nos transformado em medida, não temos um padrão

para nos orientar (Engelhardt, 1998, p.495).

Quem sabe, nós não somos mesmo a medida de todas as coisas? Mas, será que

temos consciência disso? De quais parâmetros devemos nos utilizar para medir o mundo, para

medir a vida, a existência? Antes de medir as coisas é preciso ter consciência de si mesmo. A

liberdade que nos é concedida pelo livre arbítrio ainda está limitada pelo desconhecimento de

“Quem somos nós”. Responder a essa pergunta vai além do mapeamento e do

sequenciamento do genoma humano, que para muitos cientistas – como Evelyn Fox keller –

não é mais que a constatação de que sabemos muito pouco em relação ao muito que existe por

saber. Não é prudente investir num programa de clonagem humana, que pode ser uma

replicação - mas também pode ir muito além de uma cópia de um ser humano - sem responder

perguntas que ainda são básicas: quem é este homem que se deseja replicar? Do mesmo modo,

a eugenia, especialmente a eugenia positiva, é um tipo de ladeira escorregadia: falar em

melhorar e aperfeiçoar a espécie humana pressupõe a constatação de que o homem, como

existe hoje, é imperfeito. Mas, sob que medida? E se é preciso melhorar, é preciso ter um

modelo. Temos um modelo ideal?

Não queremos aqui demonizar o desenvolvimento tecnológico. E discordamos de

Jonas quando ele diz que: “(...) por estar em jogo qualquer coisa de grande e de metafísico, a

simples ética da conveniência é suficiente para proibir, ao início, a manipulação dos genótipos

humanos; sim, ainda que soe mal aos ouvidos modernos, já na zona franca da pesquisa

experimental” (Jonas, 1997, p. 154). No entanto, concordamos com ele que é preciso cautela e

prudência . Os resultados do Projeto Manhanttan e o desenvolvimento da eugenia nos Estados

unidos e na Alemanha são uma clara demonstração de que a ciência não é neutra, ainda que

isso fique claro apenas no momento da sua aplicação. Os cientistas são, sim, os primeiros

responsáveis pelas suas descobertas.

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Quarto capítulo

ÉTICA, RESPONSABILIDADE E SUSTENTABILIDADE

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Jonas nomeia a técnica como o vaso de pandora: agora que tiramos a tampa e vimos

o que existe dentro, ainda que esta visão não nos agrade, não é mais possível retroceder, nem

estacionar. Quem em sã consciência é capaz de trabalhar pela paralisação ou retrocesso do

progresso? Nem é isso o que o autor pretende: o que se quer é aplacar o delírio da técnica – e

esta é uma incumbência da ética. De que estamos falando? Podia ser da ameaça de uma

hecatombe atômica. Ou da emergente destruição do meio ambiente. Sobre o primeiro, que

também podia ser chamado “o suicídio da humanidade” não há nenhuma dúvida de que a nossa

reação é um NÃO incondicional,pois aqui não existem direitos ou bens contrastantes, está tudo

claríssimo.

Mas, temos de reconhecer, junto com o filósofo, que uma tal evidência falta à outra

ameaça apocalíptica da técnica moderna, que é a destruição do ambiente. Esta pode concluir-se

com uma devastação das entidades não inferiores, quem sabe com um sofrimento ainda maior

no caso de uma catástrofe inesperada (o mundo tem vivenciado algumas amostras dessa

possibilidade, especialmente os Estados unidos, a Indonésia, a China). O NÃO à destruição

final que se afigura com suficiente clareza será certamente unânime como àquele dado à morte

atômica. No entanto, esse processo avança através de centenas de pequenos caminhos, em

milhares de pequenos passos, onde quer que seja, pleno de incógnitas a respeito dos valores-

limites. Portanto, pleno de interrogativas abertas sobre o quanto se pode avançar nesta ou

naquela direção.

A ética, o homem e a natureza

A primeira edição de Técnica, medicina e ética, em alemão, foi publicada em 1985.

É dessa época a consideração de Hans Jonas de que a questão do meio ambiente ainda não

comporta decisões dramáticas. A preocupação dele era com o futuro e com a sutileza das ações

que comprometem a natureza. Ações que se movem na banal cotidianidade, empregando os

meios em si inocentes, úteis à vida ou pelo menos assim transformados através do processo de

produção de bens que alimenta o consumo mundial. Aqui não se pode falar de prevenção

indolor, como no caso dos arsenais em silenciosa espera. E se perde a unanimidade do NÃO

porque o confronto ocorre com uma ameaça abstrata: aquela do saber porque essa é lacunosa;

aquela do querer, porque o talvez distante, que impõe sacrifícios, não considera quem é

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oprimido pela certeza do presente. Até o sim ético ao dever universal entra em conflito com si

mesmo porque a subdivisão iníqua dos sacrifícios requeridos globalmente vai ferir, ofender,

lesar a moral mesma. Quem reivindicaria a tutela do meio ambiente à população faminta?

(Jonas, 1997, p. 4/5).

As colocações foram feitas por Jonas no prefácio de Técnica, medicina e ética. No

entanto, somente o último capítulo, após outros 13 em que ele discorre sobre temas da bioética

na área médica, fala sobre questões do meio ambiente. Trata-se de um discurso feito na cidade

de Frankfurt, no ano de 1987, em agradecimento ao prêmio pela paz, a ele conferido por uma

editora alemã. Suas primeiras palavras são de questionamento: porque um prêmio pela paz a

quem fala de responsabilidade? Ele mesmo responde: “A paz se funda sobre a

responsabilidade”. E acrescenta que na época atômica a paz, ao menos como ausência de

guerra entre as nações, sobretudo entre as superpotências, torna-se a tarefa principal e de agora

em diante permanente, da responsabilidade mundial. A questão mostra no modo mais evidente

que o poder desmedido da nossa técnica impõe à responsabilidade, em primeiro lugar, a

prevenção (Jonas, 1997, p.240).

Seguindo o mesmo raciocínio do prefácio, o filósofo reitera no último capítulo que

não é somente essa técnica, declaradamente agressiva, que representa um perigo. Mesmo a

técnica desenvolvida sob fins pacíficos, com a qual hoje a humanidade maltrata o planeta

quotidianamente, esconde em si um potencial negativo: um potencial involuntário, porém

previsto, de forma furtiva, que ocorre em períodos mais longos ou mais curtos, que vai

crescendo como uma sombra que acompanha a obra que se pretende e que frequentemente é

necessária. Ele está falando das contravenções quotidianas, involuntárias, possibilitadas pela

técnica e que são mais difíceis de se evitar porque estão escondidas em mil maneiras de se

relacionar com o meio ambiente. Lutar contra isso é diferente de lutar contra uma guerra em

que o crime é mais evidente.

Ao contrário da guerra, em que um NÃO se caracteriza pela ausência de todas as

ações beligerantes – começando no âmbito da política – uma decisão de não maltratar o meio

ambiente não pode se caracterizar simplesmente pela abstenção de ações, nem é suficiente uma

decisão política. O próprio Jonas reconhece que “de fato devemos continuar com o

desfrutamento técnico da natureza; só a modalidade e a medida disto é que está em

discussão”(Jonas, 1997, p.240). Após considerar que o pânico apocalíptico não deve nunca

fazer esquecer que a técnica é uma obra da liberdade própria de nós, os homens, ele conclui

que as ações provenientes dessa liberdade é que conduziram ao mundo como ele está

atualmente: da mesma forma, agora o futuro depende de nós.

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A relação do homem com a natureza já havia sido tratada por Jonas no Princípio

Responsabilidade, em dois momentos: no primeiro capítulo, com uma abordagem introdutória,

e no penúltimo em que ele se aprofunda na questão da responsabilidade do homem quanto aos

efeitos da técnica. Nesse segundo momento ele assinala que preocupações desta ordem não se

faziam necessárias, na medida em que a relação entre homem e natureza era travada dentro de

um equilíbrio simbiótico. Com a técnica e o progresso, o homem é elevado a uma posição de

supremacia, nascendo daí a necessidade de se restaurar o equilíbrio – o que não significa

elevar a natureza à condição do homem. O homem continua sendo mais importante. Jonas

chama isso de “egoísmo das espécies”, reconhecendo que quando a luta pela existência impõe

a escolha entre o homem e a natureza, o homem, de fato, vem em primeiro lugar. Ele continua:

Mesmo que se reconheça à natureza a sua dignidade, ela deve curvar-se à nossa dignidade superior. Ou, caso se conteste aqui a idéia de um direito “maior”, o egoísmo da espécie sempre se impõe na natureza. Portanto, o exercício do poder humano em relação ao mundo vivo restante é um direito natural, fundado em nosso poder maior. Esse foi o ponto de vista prático de todos os tempos, ao longo dos quais o conjunto da natureza parecia invulnerável, estando, portanto, inteiramente disponível para os homens, como objeto de usos particulares. Mas, se o dever em relação ao homem se apresenta como prioritário, ele deve incluir o dever em relação à natureza, como condição de sua própria continuidade e como um dos elementos da sua própria integridade existencial (Jonas, 2006, p.229/230).

O que se quer, portanto, é salvar a existência da humanidade em um ambiente

satisfatório – um raciocínio eminentemente antropocêntrico. O raciocínio é simples: a

humanidade precisa da natureza para sobreviver e como tal deve protegê-la. Aqui se pode

vislumbrar um certo viés baconiano. E em um outro trecho um viés darwinista, quando ele fala

que no mundo vivo, a conquista de outras vidas é um fato dado, uma vez que cada espécie vive

de outras ou contribui para modificar o meio ambiente daquelas. Em seguida Jonas traduz a

idéia de forma simples e direta:“Comer e ser comido é o princípio da existência dessa

diversidade, à qual devemos obediência” (Jonas, 2006, p.230).

Então, antes que o poder do homem aumentasse de forma imensurável com a

técnica, sua relação com a natureza era simbiótica. Vale dizer permeada de interferências

mútuas, reciprocamente restritivas, incluindo aí a destruição de elementos individuais. No

entanto, prevalecia a lei da ecologia, impedindo a pilhagem excessiva de uma espécie por outra

– e isso garantia a preservação do conjunto. Agora esse equilíbrio simbiótico está ameaçado

pelo homem. Suas intervenções no mundo suscitam considerações antes feitas no âmbito da

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ficção científica a respeito da existência dos homens, da existência da vida, da existência do

mundo. Esse perigo iminente leva Jonas a transferir para um plano posterior todo o trabalho a

respeito do homem “verdadeiro”. Ou seja: é preciso, antes, garantir o espaço do mundo para

essa revelação. Segundo o autor,

Da questão em aberto sobre o que deveria ser o homem, questão que pode merecer respostas variáveis, diante do perigo absoluto que paira neste momento da história mundial, somos devolvidos ao primeiro imperativo, que se encontrava como fundamento daquela questão, mas que antes nunca precisara ser enunciado: o imperativo de que deva haver homens, efetivamente, mas como homens . Esse ‘como’ transporta a essência como a conhecemos ou intuímos, para o imperativo do ‘que deva’, como fundamento último da sua incondicionalidade, devendo impedir que sua observância devore a própria sanção ontológica, ou seja, que a existência ôntica tenha deixado de ser uma existência humana (Jonas 2006, p.232).

Já foi afirmado, mas vamos reiterar aqui, que o princípio responsabilidade não tem

por objetivo final a preservação do meio ambiente por ele mesmo: o que se quer é preservar o

espaço de permanência do homem, como homem – daí a preocupação de Jonas com a

clonagem, a eugenia e outros experimentos que possam intervir no “SER” humano. Da mesma

forma, quando ele aborda as questões do meio ambiente no penúltimo capítulo do princípio

responsabilidade, o eixo condutor não é a natureza em si, é a política. O objetivo é refutar o

princípio esperança, de Ernst Bloch, questionando os limites da “utopia” proposta pelo

marxismo, uma vez que sua primeira condição é a abundância material, de modo a satisfazer as

necessidades de todos; e a segunda condição é a facilidade em adquirir essa abundância.

Qual dos dois – o socialismo ou o capitalismo – estaria mais apto a satisfazer as

necessidade de todos? A exemplo de Capra, Jonas considera que boa parte das privações do

planeta são de natureza econômico-política e não de natureza técnico-material. Quanto a esse

aspecto, uma sociedade marxista leva vantagem sobre a sociedade capitalista, uma vez que

poderia promover uma melhor seleção e condução social da direção do progresso técnico e

uma distribuição social mais igualitária dos seus frutos. Essa vantagem não acompanha os

marxistas na questão da inventividade ou da ampliação das inovações técnicas e os fatos

empíricos têm mostrado isso.

Mas, tanto o marxismo quanto o capitalismo precisariam, apenas para manter o

status quo de uma população mundial crescente, de adotar como palavra de ordem o

crescimento da produção global e de uma técnica mais intensa e mais agressiva. Jonas então se

pergunta como a natureza reagirá a essa agressão intensificada, já que para ela não importa que

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tal agressão venha da direita ou da esquerda ou que o agressor seja marxista ou burguês liberal.

“Em última instância – assinala o filósofo – não se trata de saber precisamente o que o homem

ainda é capaz de fazer – nesse aspecto se pode ser prometéico e sanguíneo - mas o quanto a

natureza é capaz de suportar. Ninguém duvida de que haja tais limites” (Jonas, 2006 ,p. 301).

Não se trata de lutar pelo socialismo ou pela manutenção do capitalismo: a luta pelo meio

ambiente deve preceder qualquer um dos dois ou não haverá cenário, nem condições, para a

realização de nenhum deles.

Desconsiderar os limites da natureza significa deixar de pensar nas catástrofes que

podem advir daí e que afetarão mais as finalidades humanas do que a natureza, pois esta, como

tal, não conhece nenhuma catástrofe. Isso impõe amortecer o progresso, seja socialista ou

capitalista. De que problemas estamos falando? Jonas refere-se às questões tratadas no

domínio do saber da ciência ecológica, particularmente nas áreas de conhecimento de biólogos,

agrônomos, químicos, geólogos, climatologistas e outros, além de economistas e engenheiros,

urbanistas e especialistas em transporte. Aqui, argumenta ele, o filósofo nada tem a dizer,

apenas ouvir. Mesmo assim, ele discorre sobre questões emergenciais: a alimentação,

matérias primas, energia e o problema que ele denomina de térmico, mais conhecido como

aquecimento global.

Jonas considera que o problema de alimentar a crescente população mundial vem

em primeiro lugar, uma vez que dele depende tudo o mais. E assinala que esse é o lócus

essencial da utópica “reconstrução da natureza” de Bloch. O que se questiona aqui, além da

utopia, diz respeito às possibilidades de se obter alimentos para toda a população do planeta,

especialmente os meios que deverão ser utilizados. O autor considerou uma população mundial

de 4,2 bilhões de habitantes (final da década de 70) - atualmente somos mais de 6 bilhões -

para observar que tal tarefa está exigindo e vai exigir muito mais o emprego maciço dos

fertilizantes artificiais.

A discussão sobre os OGMs – Organismos geneticamente modificados - viria

depois. Já falamos sobre o tema no terceiro capítulo. A preocupação no Princípio

Responsabilidade diz respeito aos produtos químicos que a humanidade se vê forçada a

adicionar à camada produtiva da crosta terrestre, tendo em vista seu êxito biológico. Os

resultados apenas mantém a situação, dentro de um quadro que não é nada tranqüilizador e

ainda comprometem o meio o ambiente. Jonas continua:

As tecnologias agrárias de maximização têm impactos cumulativos sobre a natureza que mal começaram a revelar-se em âmbito local, por exemplo, na poluição química

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dos recursos hídricos e das águas costeiras (para o que contribuem também as indústrias), com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar. A salinização dos solos pela irrigação constante, a erosão provocada pela aragem dos campos, as mudanças climáticas decorrentes do desmatamento (e eventualmente até a diminuição do oxigênio disponível na atmosfera) são outros castigos advindos de uma agricultura cada vez mais intensiva e expansiva (Jonas, 2006, p. 302).

O segundo problema listado por Jonas diz respeito às matérias-primas. Pode ser

que as reservas minerais necessárias à civilização sejam praticamente inesgotáveis. Mas o

mesmo não se pode dizer sobre aquelas que se encontram na superfície, de forma concentrada,

e que foram facilmente exploradas até os nossos dias. Essas não serão suficientes para vários

tipos de matérias-primas. Quanto às reservas encontradas nas camadas mais profundas, no leito

dos oceanos ou dispersas pela crosta terrestre, exigem um dispêndio cada vez maior de energia

para ser exploradas, passando num segundo momento a exigir o beneficiamento industrial. O

raciocínio de Jonas é o seguinte: se o atual consumo de energia já assume uma dimensão

ameaçadora, como seriam então os cálculos para que a média ocidental per capita viesse a ser a

média mundial?

Ora, o paraíso utópico do princípio esperança (ou do marxismo) depende das

condições analisadas e dessas condições dependem outras projeções de progresso, segundo

Jonas, menos imodestas. “Esse é o x do problema – diz ele – seu nome é energia e não

matérias-primas. Tal problema não consiste apenas na existência e na viabilidade de

exploração das fontes de energia planetárias” (Jonas, 2006, p.303). Ou seja: o problema não

está na extração de energia livre, mas nas conseqüências de sua utilização para a biosfera

planetária, considerando-se as magnitudes aí requeridas. Jonas passa, então, à questão

energética.

A questão energética deve ser analisada sob o ponto de vista das fontes de energia

renováveis e das não-renováveis – é no consumo dessas últimas que se situa o problema atual.

As fontes de energia não renováveis são o resultado da sedimentação de milhões de anos de

síntese orgânica e estão relacionadas aos combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural.

Estas se constituem na fonte predominante do consumo energético do planeta. Apesar de

beneficiar apenas uma fração da população mundial, que são os países industrializados, o

consumo dessa energia é imenso, estando, portanto, com os seus dias contados. Jonas observa

que esses recursos, que o sol armazenou durante milhões de anos no mundo vegetal, os homens

estão consumindo em alguns séculos. É deles que dependem os fertilizantes químicos. De onde

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se deduz que o paraíso agrário – Jonas acrescenta o paraíso industrial – depende do suprimento

energético.

Além de estarem com o fim anunciado, os combustíveis fósseis quando utilizados,

ou queimados, não só poluem o meio ambiente como estão contribuindo para o aquecimento

global. A conseqüência disto é o efeito estufa. Ou seja: quando o dióxido de carvão – formado

pelo efeito da combustão - se acumula na atmosfera, ele funciona como a cobertura de vidro

de uma estufa, permitindo que os raios de sol entrem, mas impedindo que a radiação térmica

escape da terra. Isso provoca o aumento da temperatura global e significa que após um

determinado grau de saturação será mantido mesmo que a combustão deixe de aumentar. Esse

parece ser o problema mais emergencial que a terra está vivendo atualmente. As conseqüências

não são mais apenas admoestações. E, depois de Jonas, adquiriram novas configurações.

Vamos a elas.

Aquecimento global: os efeitos mais visíveis

Capra assinala que o elo causal entre o aquecimento global e a atividade humana já

não é uma simples hipótese: no fim do ano 2000, o Painel Intergovernamental de Mudança

Climática ( PIMC) – que ele considera uma organização de grande autoridade em seu campo

de atividades – publicou uma afirmação, fruto de consenso entre os estudiosos, que não deixa

dúvidas: a liberação de dióxido de carbono e outros gases de ‘efeito estufa’ na atmosfera por

parte do ser humano contribuiu significativamente para o aquecimento observado nos últimos

cinqüenta anos. O PIMC prevê que até o final do século a temperatura poderá aumentar, em

média, quase 6° C – o que representaria um aumento maior do que a mudança de temperatura

ocorrida entre a última era glacial e os nossos dias. Em virtude desse fato, praticamente todos

os sistemas naturais terrestres e todos os sistemas econômicos humanos seriam ameaçados pela

elevação do nível das águas, por tempestades mais violentas e secas mais intensas (Brown et al,

2001, p.10, in Capra, 2002, p.218).

Esse foi o segundo relatório do PIMC. No terceiro, divulgado em 2001, as

evidências da influência humana sobre o clima global são mais acentuadas. Segundo José

Goldemberg, nesse documento os cientistas já admitem uma probabilidade que vai de 90 a

99% de que o aumento das concentrações de gases do efeito estufa esteja contribuindo

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substancialmente para o aquecimento global nos últimos anos. O quarto relatório foi anunciado

no dia 02 de fevereiro do ano em curso, em Paris, confirmando o aumento das influências

antrópicas (causadas por atividade humana) sobre o sistema do clima, tendo como base o ano

de 2001. Nesse documento, os cientistas reiteram que as atividades humanas conduzem ao

aquecimento da Terra. Um quadro sintético das principais conclusões está sendo apresentado

na conclusão do presente trabalho.

Esses relatórios do PIMC têm tido muita influência sobre os governos. Uma delas

foi a decisão tomada por diversos países de adotar, em 1997, o Protocolo de Quioto, aprovado

na Conferência do Rio, em 1992. Enquanto o relatório reconhecia a importância e a gravidade

que o problema do efeito estufa tem sobre o clima, fazendo recomendações genéricas no

sentido de reduzir esses efeitos, o Protocolo de Quioto estabeleceu os limites das emissões e

um calendário para que os limites sejam cumpridos. Goldemberg explica:

Em linhas gerais, o Protocolo determinou que as emissões dos gases deveriam ser reduzidas – globalmente – em 5,2% até 2012, em relação às emissões em 1990. Cotas foram negociadas para os países, sendo que os países em desenvolvimento ficaram isentos delas, em reconhecimento ao fato de que necessitam crescer e se desenvolver, além de terem contribuído muito pouco para as emissões do passado. Já as grandes nações industrializadas – as principais responsáveis pelas emissões – teriam que reduzir suas emissões em uma porcentagem variada, mas que poderia chegar a 8% em relação a 1990. Para os Estados unidos, que continuam a aumentar suas emissões, as reduções seriam de cerca de 2,5% até o ano 2012. Esta é a razão principal pela qual esse país se recusou a ratificar o Protocolo de Quioto (Goldemberg, 2003, p. 177).

Lançado em 2006, “Verdade inconveniente”, de Al Gore1, traz informações

detalhadas a respeito dos principais problemas do meio ambiente, especialmente o

aquecimento global. Ainda na introdução ele chama a atenção para a hipótese equivocada,

defendida por muitos, de que a terra é tão grande que nós, seres humanos, não podemos exercer

1 Al Gore foi vice-presidente de Bill Clinton durante oito anos e candidato a presidente dos Estados Unidos em 2000, tendo sido derrotado por George W. Bush. Professor universitário, dono de uma empresa que trabalha com meio ambiente e sustentabilidade, proprietário de uma rede de TV a cabo em que os telespectadores podem criar os programas, abrindo espaço para a discussão de temas da atualidade, Al Gore tem uma experiência de mais de 30 anos estudando a crise climática. Suas informações a esse respeito vinham sendo repassadas através de slides durante palestras. Daí nasceu a idéia do filme “Verdade Inconveniente”, dirigido por Davis Guggenheim, e posteriormente do livro. Na introdução do livro ele declara ter ouvido os principais cientistas do mundo. Traz dados, depoimentos e tabelas. E conta que 100% dos lucros do filme e do livro estão sendo doados a uma campanha bipartidária, não-lucrativa, que tem por objetivo influenciar a opinião pública, de modo que ela apóie certas iniciativas corajosas necessárias para deter o aquecimento global. Sua primeira obra foi “Terra em balanço”.

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um grande impacto no sistema ecológico do planeta. Isso podia ser válido no passado. “A

população humana aumentou tanto - diz Al Gore - e nossas tecnologias se tornaram tão

poderosas que hoje somos capazes de exercer uma influência significativa em muitas partes do

meio ambiente” (Gore, 2006, p.22).

Realmente, existem aqueles que não acreditam na gravidade do problema ou que

discordam da ideologia do movimento ambiental. Besserman2, ao questionar sobre as ameaças

reais decorrentes das agressões aos sistemas, constata a ausência de prioridade na produção de

estatísticas ambientais, sugerindo que as razões podem decorrer “da idéia completamente falsa

de que devemos nos preocupar com a destruição da natureza ‘por amor a ela’, e não por suas

conseqüências sobre a humanidade, em especial sobre as populações mais pobres”

(Besserman, 2003, p.96/97). Ele não tira da natureza o seu valor, mas acredita que a

humanidade é completamente impotente para, na escala de tempo das eras geológicas,

provocar algum dano à natureza. O que pode acontecer é a destruição de parte do meio natural

em que se vive hoje.

Besserman constrói a sua argumentação a partir do asteróide que caiu na penísula

de Yucatan há 65 milhões de anos e que finalizou o processo de extinção de espécies, entre

outras a dos dinossauros. Segundo ele, isto gerou um impacto 10.000 vezes superior ao de todo

o arsenal nuclear existente hoje na terra. Outro exemplo é a grande extinção do Permiano, há

cerca de 235 milhões de anos, quando desapareceram quase 90% das espécies. Tudo isto para

provar o quanto são reduzidos os poderes destrutivos da humanidade e que ela pode

recuperar-se: “A humanidade – diz ele – pode destruir-se, mas não pode destruir o planeta”.

No final do raciocínio, o economista reconhece os danos, mas parece não se importar que a

recuperação da natureza leve de 5 a 10 milhões de anos. Eis o raciocínio dele:

A verdade é que, na escala de tempo adequada – que não é das poucas décadas da nossa existência, ou dos séculos e milênios da nossa curta história, ou mesmo das poucas centenas de milhares de anos do gênero Homo – de milhões, dezenas de milhões de anos, a espécie Homo sapiens não tem capacidade de gerar um dano notável à natureza do planeta. No máximo, provocaríamos uma grande extinção, ao final da qual uma nova era, com uma nova biodiversidade, surgiria (calcula-se em de 5 a 10 milhões de anos o tempo de recuperação da natureza após cada uma das

2 À época do artigo, Besserman era diretor de informações Geográficas do Instituto Pereira Passos da Prefeitura do Rio de janeiro. É professor de Economia Brasileira da PUC/RJ e foi presidente do IBGE, onde lançou, entre outras publicações, os Indicadores de Desenvolvimento sustentável, o glossário do meio ambiente e a cartilha da mudança climática para crianças. Foi diretor de Planejamento e Meio Ambiente do BNDES. Foi um dos membros da missão diplomática brasileira em Conferências das Partes da Convenção Mundial do Clima.

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cinco grandes extinções). E nós certamente não estaríamos mais aqui. (Besserman, 2003, p. 97).

Os argumentos de Besserman não são convincentes e, de certa forma contraditórios:

deixar a situação chegar aos limites por ele aventados é sinal de que os homens de hoje não se

preocupam nem com a natureza, nem com a humanidade. Mais adiante ele mostra que suas

preocupações, na verdade, dizem respeito às estatísticas ambientais que não devem, segundo

ele, ser consideradas um apêndice, uma nota de pé de página, “mas parte integrante e

fundamental da produção das informações que retratam a vida humana no planeta e da

construção de uma governança global democrática” (Besserman, 2003, p.98).

No livro de Al Gore as estatísticas ambientais, envolvendo tabelas, depoimentos ou

fotos, dão fundamento à sua preocupação com o aquecimento global. Ele vai buscar em Carl

Sagan uma explicação sobre a atmosfera a fim de mostrar que ela é vulnerável porque é

extremamente fina. O cientista costumava dizer que “Se você recobrir um globo com uma

camada de verniz, a espessura dessa camada seria mais ou menos a mesma que a espessura da

atmosfera terrestre em relação à própria terra – essa camada é tão fina que somos capazes de

mudar a sua composição”(Gore, 2006, p.24).

A energia do sol entra na atmosfera sob a forma de ondas de luz, aquecendo a terra.

Parte dessa energia é refletida e volta a irradiar-se no espaço, sob a forma de ondas

infravermelhas (Anexo A). Parte dessa radiação fica retida na atmosfera e isso é necessário

para manter a temperatura da terra em limites confortáveis - em Marte, onde os gases de efeito

estufa que cercam o planeta são rarefeitos, a temperatura é fria demais. Em Vênus, onde esses

gases são muito densos, a temperatura é elevada demais. O que está acontecendo e por que

devemos nos preocupar? Al Gore explica que

O problema que enfrentamos agora é que essa fina camada atmosférica está ficando mais espessa em conseqüência da enorme quantidade de dióxido de carbono e outros gases-estufa produzidos pelo homem. A atmosfera, agora mais densa, retém grande parte da radiação infravermelha que deveria escapar e se irradiar para o espaço. Como resultado, a temperatura da atmosfera terrestre – e também dos oceanos – está ficando perigosamente mais alta, transformando a Terra em uma grande ‘estufa’. Em poucas palavras, é nisso que consiste a crise climática (Gore, 2006, p.27).

Quando falamos em gases de efeito-estufa e nas mudanças climáticas, o dióxido de

carbono - CO2 – é o mais importante porque representa 80% das emissões, embora existam

outros. O que todos eles têm em comum é o fato de permitir a entrada de luz solar na

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atmosfera, mas reter parte da radiação infravermelha que deveria sair do planeta, causando,

assim, o aumento da temperatura . O problema é o excesso desses gases, pois na quantidade

certa precisamos deles: sem o efeito estufa a temperatura média da superfície da terra – hoje

em torno de 15º C - seria 18º C negativos. O CO2 é liberado na atmosfera quando queimamos

combustíveis fósseis - petróleo, gás natural e carvão - seja em casa, nos carros, fábricas ou

usinas elétricas; quando cortamos ou queimamos florestas; e também durante a produção de

cimento.

Além do CO2, existem o metano, oriundo de aterros sanitários, queima de

combustíveis fósseis, tratamento de água e esgoto, entre outras atividades do homem. O óxido

nitroso, fruto da era industrial, provindo, de combustíveis fósseis, queima de florestas e de

resíduos nas plantações. O hexafluoreto de enxofre e os PFCs (Perfluorcarbonos e os HFCs

(Hidrofluorcarbonetos). Estes últimos são usados como substitutos dos CFCs

(Clorofluorcarbonetos) que foram proibidos porque suas emissões provindas de sistemas de

refrigeração e outros, estavam destruindo a camada de ozônio, além de ser gases-estufa muito

potentes. Os PFCs e o SF6 são liberados na atmosfera por atividades industriais como a

fundição de alumínio e a fabricação de semi-condutores, bem como pela rede elétrica que traz

a iluminação para as cidades. A esta lista se deve acrescentar ainda o vapor d’água, um gás-

estufa natural que aumenta de volume com a elevação das temperaturas, ampliando o impacto

de todos os gases-estufas naturais (Gore, 2006, p. 28).

O gráfico utilizado por Al Gore para materializar a constatação das emissões dos

gases de efeito estufa foi elaborado por Roger Revelle, primeiro cientista a propor a medição

do CO2 na atmosfera terrestre. Tendo como parceiro Charles David Keeling, Revelle começou

o trabalho em 1958, se dedicando a medir o CO2 diariamente no meio do Oceano Pacífico,

sobre a grande ilha do Havaí. Após alguns anos, os dados obtidos revelaram uma concentração

de CO2 na atmosfera terrestre sempre em ascendência, num ritmo significativo percebido

através do gráfico por uma linha que sobe quase verticalmente. Esse mesmo padrão

ascendente tem sido mantido, ano após ano, há quase meio século de medição. Segundo Al

gore, esse estudo constitui uma das mais importantes séries de medições de toda a história da

ciência3. E acrescenta: “Na era pré-industrial a concentração de CO2 era de 280 ppm (partes

3 Atualmente esse estudo está mais elaborado. Com as informações obtidas a partir dos testemunhos (cilindros de gelo) extraídos na Antártida e na Groelândia, a tabela de Revelle foi muito ampliada – ela agora remonta a 650 mil anos atrás. Com a ajuda de modernos supercomputadores e de sofisticadas simulações climáticas, a tabela também pode ser projetada muitos anos à frente, para medir o impacto futuro das escolhas que fazemos hoje (Gore, 2006, p.41).

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por milhão). Em 2005 esse nível, medido em Mauna Loa – a mais alta de duas montanhas

vulcânicas no Havaí - em uma altitude elevada, chegou a 381 ppm” (Gore, 2006, p.37)4.

Capra observa que, embora a emissão de carbono tenha diminuído um pouco nos

últimos anos, o ritmo da mudança climática global não se alterou. Ao contrário, os indícios

mais recentes mostram que está havendo uma aceleração. Duas observações distintas, mas

igualmente preocupantes, caracterizam esses indícios: o rápido descongelamento das geleiras e

da capa de gelo do Mar Ártico – por um lado – e a derrocada dos corais 5. Da forma como o

gelo está derretendo, o nível do mar vem se elevando, desde 1990, em média 3.3 milimetros ao

ano (Anexo B). Esse descongelamento terá efeitos dramáticos sobre o mundo inteiro. Capra

explica o porquê.

O gelo do ártico é um elemento importante da dinâmica da corrente do golfo, como constataram recentemente os cientistas. A eliminação dele do sistema de circulação do Atlântico Norte mudaria drasticamente o clima da Europa e afetaria o de outras partes do mundo. Além disso, uma capa de gelo menor refletiria menos a luz do sol e aceleraria, assim, ainda mais o aquecimento da terra, desencadeando um círculo vicioso. Na pior das hipóteses previstas pelos cientistas do PIMC, as neves do Kilimanjaro, imortalizadas no famoso conto de Hemingway, desapareceriam em 15 anos; o mesmo ocorreria com a neve dos Alpes (Capra, 2002, p.218/219).

O nível de derretimento dessas e de outras geleiras está documentado por Al Gore

através de imagens no filme e no livro6. Ele apresenta comprovação do derretimento da Geleira

4 Parte do dióxido de carbono liberada na atmosfera através da queima de combustíveis fósseis é absorvida pelos oceanos. Essa era uma preocupação de Revelle já na década de 60. Al Gore assinala que só recentemente novos e rigorosos estudos confirmaram que o cientista tinha razão também nesse aspecto: os oceanos estão ficando mais ácidos por conta da enorme quantidade de CO2 que, combinada com a água, produz ácido carbônico e modifica o pH. Isso se verifica primeiro nas águas mais frias, perto dos pólos; mas em breve – se não mudarmos logo nossa maneira de agir – ocorrerá em todos os oceanos do planeta (Gore, 2006, p. 40). 5 Segundo Al Gore, a relação entre o aquecimento global e o branqueamento em grande escala dos corais – que era um fato controverso há apenas 10 ou 15 anos – é hoje aceito em âmbito universal. Os corais e outras formas de vida marinha estão ameaçados pelo aumento sem precedentes das emissões de dióxido de carbono não só porque esses gases se acumulam na atmosfera, aumentando a temperatura dos oceanos. Mas também porque 1/3 de todas essas emissões acabam absorvidas pelos oceanos, aumentando a acidez das águas marinhas. (Gore, 2006, p.168). 6 Por que o derretimento nas geleiras é tão sintomático ? Al Gore explica que há dois lugares no mundo que funcionam como os tradicionais canários nas minas de carvão: são os primeiros a dar o alerta. Esses lugares são o Ártico e a Antártida, regiões muito sensíveis ao aquecimento global. É aí que os cientistas estão constatando mudanças mais rápidas e efeitos mais dramáticos da mudança climática do que em qualquer lugar do mundo. O extremo norte do planeta se parece com o extremo sul apenas de forma superficial. A diferença está abaixo da superfície: a calota de gelo da Antártida mede 3 mil metros de espessura enquanto que no Ártico ela tem, em média, menos de 3 metros. A razão dessa diferença se encontra abaixo do gelo: a Antártida é uma região de terra rodeada por oceanos; o Ártico é um oceano rodeado de terras. Daí que o Ártico é extremamente vulnerável à variação de temperatura e é lá que está ocorrendo o impacto mais dramático das mudanças climáticas. As áreas

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de Colúmbia, no Alasca, que vem acontecendo desde 1980; dos Andes, na América do Sul; no

Peru, entre 1970 e 2006; na Patagônia, através de fotos feitas hoje, em comparação com a

geleira como era há 75 anos, além de pontos dos Alpes Suiços e italianos. Mas, as geleiras do

Himalaia, no Planalto do Tibet, são as mais atingidas pelo aquecimento global - é o caso mais

grave, até mesmo porque a cordilheira do Himalaia contém 100 vezes mais gelo do que os

Alpes. E especialmente porque ela fornece mais da metade da água potável para 40% da

população mundial, por meio de sete sistemas fluviais asiáticos, todos com origem nesse

planalto. A partir desses dados, Al Gore faz um alerta: “Nos próximos 50 anos, esses 40% da

população mundial devem enfrentar uma grave falta de água potável, a menos que o mundo

tome medidas rápidas e corajosas para mitigar o aquecimento global” ( Gore, 2006, p. 58).

O problema da água potável também está registrado no livro de Capra. Ele conta

que no decorrer do século XX, o nível do mar subiu 20 centímetros, como resultado do

aquecimento global. A confirmarem-se as tendências atuais, terá subido mais 50 centímetros

até 2.100. A previsão dos meteorologistas é de que essa elevação colocará em risco os

principais deltas do mundo: o de Bangladesh, o do amazonas e o do Mississipi, podendo,

inclusive, causar a inundação do sistema de metrô de Nova York (Capra, 2002, p. 220).

Para o físico, esses desastres tidos como “naturais” são causados, em parte, pelas

mudanças climáticas induzidas pelo homem e por outras práticas ecologicamente incorretas.

Ele relata três desses desastres, ocorridos no ano de 1998, com a perda de milhares de vidas

humanas e prejuízos financeiros catastróficos. O furacão Mitch, considerado a mais mortífera

tempestade atlântica ocorrida nos últimos 200 anos, ceifou 10.000 vidas e devastou grandes

áreas da América Central, atrasando em décadas o desenvolvimento da região. Na China, a

catastrófica enchente do Rio Yangtzé, que provocou mais de 4.000 mortes e a inundação de 25

milhões de hectares de terras cultivadas – o desastre se deveu em grande medida pelo

desmatamento que deixou nuas muitas encostas de colinas. Nesse mesmo ano Bangladesh

sofreu sua enchente mais devastadora do século, em que morreram 1.400 pessoas e deixou

inundados dois terços do país por vários meses. O físico registra que a enchente foi piorada

pelas chuvas que caíram em áreas intensamente desmatadas e pelas águas escoadas de áreas

terrestres ao norte do Círculo Ártico ficam congeladas a maior parte do tempo. Essa parte do solo permanentemente congelada se chama “permafrost”. Na Sibéria, existem edifícios, casas e estradas construídas em cima do permafrost. Com o aquecimento global, parte do permafrost está derretendo e cedendo: os edifícios estão ruindo, as casas sendo tragadas pelo solo e as estradas intransitáveis. Por ironia, diz Al Gore, as empresas petrolíferas que tentam convencer o Congresso americano a autorizar perfurações de poços em áreas protegidas do Alasca também dependeriam dessas estradas congeladas. O principal especialista russo na área, Sergei Kirpotin, da universidade Estadual de Tomsk, já deu um alerta: “O derretimento do permafrost é uma avalanche ecológica...vinculada ao aquecimento global” (Gore, 2006, p. 126, 133).

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modernizadas mais próximas às cabeceiras dos rios da região, cujos leitos não puderam, assim,

conter o volume de líquido (Capra, 2002, p.219/220).

No mundo todo, a temperatura não parou de aumentar (anexo C). No verão de 2003,

a Europa foi atingida por uma fortíssima onda de calor que matou 35 mil pessoas. Em 19 de

julho de 2005, Las Vegas, Nevada, chegou a 47,2ºC – um recorde histórico. Esses aumentos

estão ocorrendo também nos oceanos e por causa disso as tempestades ficam mais fortes: em

2004, a Flórida foi atingida por quatro furacões extraordinariamente violentos. As tempestades

tornam-se mais fortes, uma vez que a água mais aquecida na camada superior gera mais

energia de convecção, alimentando furacões mais poderosos. A isso Al Gore acrescenta que

“as provas mais recentes estão fazendo alguns cientistas afirmarem que o aquecimento global

está aumentando também a freqüência dos furacões – um fato mais forte do que a

variabilidade que sempre se considerou parte dos ciclos naturais das correntes oceânicas

profundas” (Gore, 2006, p.81).

Em 2004 alguns recordes foram quebrados. Até o Brasil, embora os livros de

ciência dissessem que era impossível haver furacões no Atlântico Sul, foi atingido pelo

Catarina7.. O Japão detinha o recorde histórico de sete tufões em um só ano, mas em 2004 dez

tufões atingiram aquele país8. No verão de 2005 vários furacões atingiram o Caribe e o Golfo

do México, entre eles os furacões Dennis e Emily, provocando danos significativos. Então veio

o Katrina, atingindo Nova Orleans em 29 de agosto, como uma violenta tempestade e violento

poder de destruição9. Três semanas depois do Katrina, chegou ao litoral americano o Rita, de

categoria 5, afetando áreas menos populosas, porém de efeitos devastadores. Depois do Rita

veio o Wilma, tornando-se o mais poderoso furacão já registrado enquanto estava nos mares do

Caribe. Foram tantos furacões que as letras do alfabeto ocidental se esgotaram: a Organização

Meteorológica Mundial teve de usar as letras do alfabeto grego para nomear os furacões e

tempestades que continuaram até dezembro (Gore, 2006, p.84,92,94 e 103).

7 O furacão Catarina, considerado o primeiro extra-tropical de que se tem notícia, chegou ao sul do Brasil em 28 de março de 2004, atingindo desde Laguna, em Santa Catarina, até Torres, no Rio Grande do Sul. 40 municípios catarinenses foram atingidos. Cerca de 1,2 mil pessoas ficaram desalojadas. Ele foi enquadrado pela escala Saffir-Simpson na categoria 1 (Apolo11.com, 2007). 8 Os tufões, furacões e ciclones representam o mesmo fenômeno climático, ou seja, tem a mesma intensidade. A nomenclatura vai variar de acordo com o oceano do qual se originam. 9 O Katrina atingiu a categoria 5 da escala de furacões Saffir-Simpson, regredindo a 4 antes de chegar à Costa Sudeste dos EUA. Os ventos do furacão alcançaram 280 km por hora, causando grandes prejuízos na região litorânea do sul do país, especialmente em torno da região metropolitana de New Orleans, onde mais de um milhão de pessoas foram evacuadas. O Katrina fez aproximadamente mil mortos, sendo considerado um dos furacões mais destrutivos a atingir os Estados Unidos (Wikipédia, 2007).

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Um Mês antes do Katrina atingir os Estados Unidos, uma pesquisa do

Massachussets Institute Technology (MIT) deu respaldo ao consenso científico de que o

aquecimento global está tornando os furacões mais poderosos e mais destrutivos. “As grandes

tempestades, tanto no Atlântico como no Pacífico, aumentaram em duração e intensidade,

desde a década de 1970, em cerca de 50%” (Estudo do MIT, 2005, in Gore, 2006, p. 92).

As catástrofes naturais da última década são para Capra um indício claro de que as

ações humanas, responsáveis pela instabilidade climática, estão ao mesmo tempo prejudicando

ecossistemas saudáveis que nos ofereceriam proteção contra esse tipo de desastres. As

conseqüências disto, ele vai buscar em Janet Abramovitz, do Worldwatch Institute:

Muitos ecossistemas foram fragilizados a um ponto em que já não têm resistência e não são capazes de suportar perturbações naturais, o que facilita a ocorrência de ‘desastres artificiais’ – calamidades que se tornam mais freqüentes ou mais severas em virtude das ações humanas. Destruindo florestas, construindo barragens em rios, aterrando mangues e desestabilizando o clima, estamos cortando os fios de uma complexa rede de segurança ecológica (Janet Abramovitz em Brown et al, 2001, in Capra, 2002, p.220).

Essa rede de segurança ecológica implica, entre outras mudanças, em questões de

economia e de saúde. Assim como os cientistas da engenharia genética descobriram a partir do

projeto do genoma humano que existe muito mais para se conhecer do que as descobertas que

estão sendo feitas agora, os cientistas do meio ambiente não se sentem totalmente seguros - ou

ainda não têm informações suficientes – para mensurar a influência das ações humanas sobre

as mudanças climáticas. Não há dúvidas de que elas estão acontecendo, mas, a verdadeira

dimensão das conseqüências vai sendo revelada no dia a dia, através das estatísticas dos

acidentes ecológicos e suas conseqüências sobre a economia e a saúde da população mundial.

Ou seja: já existem números. Até mesmo a perda da biodiversidade pode ser calculada em

cifras – essas, sim, com capacidade para sensibilizar os governos estabelecidos.

Questões de economia, saúde e segurança

As questões ambientais estão se tornando fatores fundamentais nas decisões

econômicas – se não é pelo lucro que os recursos naturais podem proporcionar, é pelo prejuízo

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que os danos ao meio ambiente podem causar. Para medir o impacto do aquecimento global na

economia mundial, o governo britânico encomendou ao chefe do serviço econômico daquele

país, Nicholas Stern, ex economista-chefe do Banco Mundial, um estudo que durou 16 meses

e foi divulgado em novembro de 2006 com o seguinte alerta: “Ainda há tempo para evitar os

piores impactos da mudança climática se uma ação firme for tomada”. O segundo alerta é que

os danos causados pelo aquecimento global podem alcançar anualmente o custo de 20% do

PIB mundial - uma cifra estimada em 7 trilhões de dólares - caso não seja criada uma rede de

cooperação entre os países. Um resumo do relatório foi divulgado pelo Portal Compet, onde se

lê que esse valor é equivalente às perdas das duas guerras mundiais, somadas às perdas da

depressão da década de 20. Os custos referem-se aos elementos básicos que afetariam a vida

das pessoas de forma direta em todos os países do mundo. Algumas localidades poderiam

sofrer mais com o fenômeno que o autor nomeou como “tempo extremo”, ou seja, secas,

inundações e tempestades mais fortes (Portal CONPET, 2006).

Para combater os efeitos do aquecimento planetário, evitando as mudanças

climáticas, Stern sugere que as emissões sejam reduzidas em 80% até o ano de 2050, tendo por

base o nível atual de emissões. O custo das ações a serem tomadas fica em torno de 1% do PIB

mundial (contra os 20% estimados em relação aos prejuízos) daqui até o limite fixado.

Segundo o economista, se os níveis de concentração de dióxido de carbono na atmosfera se

estabilizarem entre 450 e 550 ppm, as piores conseqüências das mudanças climáticas terão seus

riscos bastante reduzidos. Para se ter uma idéia, o nível atual global é de 430 ppm, com um

índice de crescimento anual em torno de 2 ppm. Como ações a serem tomadas, o relatório

indica a busca por maior eficiência energética no uso dos combustíveis fósseis e o incentivo a

pesquisas para a produção energética originada de fontes limpas e renováveis (Portal

COMPET, 2006).

Achim Steiner, diretor-executivo do Pnuma – Programa das Nações Unidas para o

Meio Ambiente – considera que o mundo já perdeu 10 anos por não levar a sério a questão das

emissões. E assinala que elas estão crescendo de maneira fenomenal, especialmente na China e

na Índia. Quanto ao Brasil, ele avalia que tem tomado medidas importantes, citando como

exemplo a política de promoção de combustíveis alternativos a longo prazo – uma política que

já se pagou, pois o país é hoje um dos líderes no uso do etanol. Destaca ainda a popularização

do uso de múltiplos combustíveis na tecnologia dos veículos, colocando à disposição do

usuário um carro que permite tanto o uso do álcool como a gasolina, uma referência ao motor

flex, que ele considera uma idéia brilhante. O Brasil está dando um bom exemplo, diz ele.

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O que o Brasil demonstrou com esse exemplo é a possibilidade de gerar um mercado para um novo combustível, com medidas que obriguem montadoras a oferecer automóveis flex. Na Europa, nem sequer conseguimos fazer algumas montadoras incluírem filtros de partículas em seus motores a diesel (Flor, Ana. 2006).

Na mesma ocasião, Steiner fez uma avaliação a respeito do aquecimento global e

suas implicações com a biodiversidade. Em algumas áreas ele concorda com as visões mais

pessimistas de que “chegamos a um estágio sem volta”, considerando-se para isso que as

mudanças climáticas irão levar à extinção de algumas espécies e à perda de hábitats. A isso

acrescentou que “por causa das variações climáticas, nos não poderemos mais utilizar parte

das zonas costeiras que antes considerávamos perfeitamente passíveis de desenvolvimento.

Apesar disso não estamos em um nível no qual o mundo está condenado” (Flor, Ana, 2006).

Ibsen de Gusmão Câmara10 inclui a perda da biodiversidade como um dos

problemas ambientais que devem ser analisados dentro das complexas implicações trazidas

pelo conhecimento científico e tecnológico. Em síntese, ele define o termo como a diversidade

de seres vivos, de seu patrimônio genético e a dos ecossistemas de que eles participam. E conta

que nos últimos 590 milhões de anos, a Terra presenciou pelo menos cinco grandes crises

biológicas em que o número total de espécies vivas foi drasticamente reduzido num espaço de

tempo relativamente curto. As razões para essas crises foram diversas: geológicas, climáticas e

mesmo siderais. Ao fim de cada uma dessas crises foram necessários vários milhões de anos de

lenta evolução para que as perdas fossem compensadas e a riqueza biológica pudesse se

recompor com o surgimento de novas espécies (Câmara, 2003, p.166).

Segundo ele, o que vem acontecendo no mundo hoje está se caracterizando numa

sexta crise tão intensa quanto as anteriores e, provavelmente, mais rápida. As razões podem ser

buscadas na intensa ocupação do planeta pela população humana em rápida expansão, a

degradação dos ambientes naturais e o enorme poder de destruição possibilitado pelo

desenvolvimento tecnológico. Dezenas ou mesmo centenas de espécies estariam sendo

eliminadas da terra a cada dia - uma perda irreparável, posto que não existe conhecimento

científico ou tecnológico capaz de trazer novamente à vida uma espécie extinta. Ele assinala,

então, lembrando os cientistas da Biologia da Conservação, que “A extinção é para sempre” e

busca em Wilson as explicações:

10 Ibsen de Gusmão Câmara é membro do Grupo de Trabalho em Biodiversidade, do CNPq. Dedica-se a estudos sobre a natureza desde 1940, particularmente nos campos da Zoologia, Ecologia, Paleontologia e Evolução Orgânica. Presidente da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN) de 1981 a 1987. É mestre e doutor em Ciências Navais.

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Um famoso biólogo, Edward O. Wilson, alertou-nos que , dentre as inúmeras

atividades agressoras do meio ambiente, por mais graves que sejam, a única que

levará milhões de anos para ser corrigida pela natureza, e a que mais será deplorada

pelos nossos descendentes, é a perda da diversidade biológica do planeta. Este

aspecto sumamente lamentável da realidade atual é uma conseqüência indireta da

Ciência e da Tecnologia, pois foram eles que tornaram factível a explosão

demográfica humana e o colossal aumento do poder de interferência no mundo

natural (Câmara, 2003, p.167).

A biodiversidade tem um valor econômico. O próprio Wilson reconheceu que ela é

uma das maiores riquezas do planeta. Esses valores estão divididos entre valores de uso:

direto, através do turismo, ou de novas substâncias farmacêuticas; uso indireto, como a

polinização de plantas e outros serviços biológicos; e o não uso, valor intrínseco. O valor dos

serviços prestados pela natureza foram estimados por Constanza e colaboradores, em um

trabalho publicado na Nature, em 1997. A idéia geral era contabilizar quanto custaria por ano

para uma pessoa ou mais, por exemplo, polinizar as plantas ou quanto custaria para construir

um aparato que serviria como mata ciliar no anti-açoriamento dos rios. O trabalho englobou

vários “serviços” ecológicos. Ou seja: quanto o homem gastaria para realizar o trabalho que a

natureza faz espontaneamente? Os cálculos culminaram numa cifra média de

US$33.000.000.000.000,00 (Trinta e três trilhões de dólares) por ano - duas vezes o produto

interno bruto mundial (Wikipédia, 2007).

O valor da biodiversidade é tratado por al Gore, mas em relação à saúde humana.

Segundo ele, quando a biodiversidade é mais rica, em áreas como as florestas tropicais, por

exemplo – onde se localiza o maior percentual de espécies do planeta – o perigo dos micróbios

diminui. Os desmatamentos e outras ações contra o meio ambiente, além de contribuir para o

aquecimento global, aumentam a vulnerabilidade humana a doenças novas e desconhecidas,

assim como a novas variedades de doenças antes sob controle. Sobre esse fenômeno, Al Gore

considera importante o exemplo dos mosquitos que são, segundo ele, afetados pelo

aquecimento global de forma profunda. O fenômeno foi observado em Nairóbi, no Quênia,

e Harare, no Zimbábue, cidades que originalmente se localizavam acima da “linha dos

mosquitos” – ou seja, em uma altitude onde os mosquitos não iam, especialmente por causa das

temperaturas frias. Mas, agora, com o aquecimento global, os mosquitos estão subindo para

altitudes mais elevadas. O clima mais quente está fazendo com que certos tipos de mosquitos

migrem para altitudes mais elevadas, levando com eles as doenças que transmitem. Cerca de

30 novas doenças surgiram nos últimos 25 a 30 anos, entre outras antigas que estavam sob

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controle e que voltaram a atacar, como é o caso da tuberculose. Outro exemplo é o vírus do

oeste do Nilo, que entrou nos EUA pelo litoral de Maryland em 1999 e em dois anos

atravessou o rio Mississipi. Dois anos depois, o vírus já se espalhava por toda a América do

Norte (Gore, 2006, p.173, 174, 175).

A propósito dos mosquitos, Giovanni Berlinguer11 tem informações da Organização

Mundial de Saúde (OMS) que vem corroborar a preocupação de Al Gore: Devido à expansão

da área freqüentada por mosquitos anófeles para bem além das zonas tropicais, o risco da

malária poderá crescer até 2050 de 45 a 60% e o número de mortes passar de 2-3 milhões a

3,5-5 milhões por ano12. Quanto a esses processos, devidamente comprovados e em

andamento, o autor entende que é preciso propor uma pergunta que é crucial sob o aspecto

ético: “é possível subtrair-se à ação quando, mesmo havendo dúvidas sobre alguns

desenvolvimentos, tem-se a certeza de que no caso de passividade os efeitos serão

seguramente graves, amplos e irreversíveis?” (Berlinguer, 2004, p.237).

Uma outra face da redução da biodiversidade é levantada por José Eli da Veiga: os

seus efeitos medicinais. Ele observa que a quase extinção da Mata Atlântica está

comprometendo a identificação de espécies de plantas potencialmente cultiváveis, seja para

fins comestíveis, medicinais ou energéticos. Além disso, temos o Cerrado, a segunda savana

mais rica do mundo, o segundo maior bioma brasileiro, depois da Amazônia. É no Cerrado que

estão concentrados 1/3 da biodiversidade nacional e 5% da flora e da fauna mundiais. Não

obstante essa incontestável importância, não obstante seu papel decisivo para a manutenção

das dinâmicas biogeoquímicas planetárias, a opinião pública brasileira lhe atribui um valor

secundário.

Veiga estranha o fato de que não existam significativas campanhas públicas

voltadas para a preservação do cerrado, atribuindo a isso, como uma das razões, o fato de que o

Cerrado é uma “floresta de cabeça para baixo”. Estranha também que a Constituição brasileira

não tenha concedido ao Cerrado a qualificação de patrimônio nacional, como ocorreu com a

Amazônia, a Mata Atlântica, o Pantanal e os sistemas costeiros. Daí a sua pergunta: “Será

11 Giovanni Berlinguer é médico sanitarista, nascido na Sardenha, Itália, em 1924. Foi deputado e senador pelo Partido Comunista Italiano. Foi professor de medicina social na universidade de Sassari, assumindo posteriormente a cátedra de saúde no trabalho na Universidade La Sapienza, de Roma. Em 2000 foi homenageado em Brasília com os títulos de Doutor Honoris Causa, da UnB, e Cidadão Honorário, na Câmara Legislativa da cidade, pelos seus “relevantes serviços prestados nos campos da saúde pública e da bioética no Brasil nos últimos 50 anos”. Sua obra é composta por 45 livros publicados em vários idiomas. 12 Conforme nota do autor, os dados são da Organização Mundial de Saúde. The World Health Report 1998. Genebra, 1998. p.126.

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preciso lembrar que está na biomassa um dos principais triunfos com os quais poderá contar o

Brasil ao longo do século 21?” (Veiga, 2003, p. 204).

Na abordagem das questões de saúde em relação às novas tecnologias e ao

ambiente, Berlinguer observa, com propriedade, que não existem apenas pontos negativos.

Muitas transformações contribuíram para melhorar a saúde humana, a começar pelo

saneamento urbano, fator decisivo na luta contra as doenças transmitidas pela água e pelos

alimentos. Além disso, e talvez em maiores proporções, o aumento da produtividade agrícola

vem influindo na luta contra a fome – e aí não se pode negar a influência do uso da química e

das biotecnologias. No entanto, o autor chama a atenção para o fato de que uma

conscientização para a saúde e para a relação entre ambiente e doenças não vem evoluindo na

mesma proporção e nos mesmos moldes da consciência ambientalista, especialmente porque

esta última se baseia na constatação elementar de que se vive num único planeta. Ele faz,

então, algumas observações.

É de se perguntar o quanto pesaram para favorecer essa passividade disseminada, o silêncio interessado de quem sabe, o oportunismo de quem pode (a começar da Organização Mundial da Saúde), a cumplicidade da política e, por fim, as distorções das ciências médicas. Essas são fortemente avessas a reconhecer que a origem das doenças está sobretudo no entrelaçamento entre biologia humana, ambiente e sociedade. Mas principalmente é de se perguntar quais sejam as novidades (Berlinguer, 2004, p.235).

Entre as novidades está o fato de que nas últimas décadas acentuaram-se os riscos e

os danos imediatos derivados das transformações negativas do ambiente que agora atingem a

todos, ainda que em graus diferentes para cada indivíduo, população ou classe. Que riscos são

esses? Quais são esses danos? Berlinguer responde que eles provém da contaminação do ar,

das águas, do solo e do subsolo, do esgotamento dos recursos naturais e da redução da

qualidade de vida nas grandes aglomerações urbanas, onde está se concentrando a maior parte

da população mundial. Ele observa, além disso, que muitas doenças de origem ambiental

advém da globalização de produções e consumos insalubres, de fatores patogênicos

principalmente introduzidos por países desenvolvidos (ao contrário dos fatores infecciosos) em

países pobres, às vezes deliberadamente transferidos, sob forma de indústrias nocivas e de

resíduos tóxicos. A novidade é que agora os riscos tornaram-se globais. Como ilustração dessas

afirmações, Berlinguer vai buscar no New York Times, de 1º de dezembro de 1997, uma lista

de possíveis efeitos do aquecimento global (Global Warming), assinada por alguns médicos

cientistas.

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> Doenças e mortes crescentes, advindas de ondas de calor e de poluição atmosférica, particularmente nas áreas urbanas, com risco, sobretudo, para idosos, crianças, pobres e afetados por doenças cardíacas e pulmonares crônicas. > Aumento de lesões e mortes advindas de eventos climáticos extremos. > Explosão e disseminação de algumas doenças infecciosas transmitidas por mosquitos, incluídas a encefalite viral, a dengue, a febre amarela, a malária. > Propagação de algumas doenças transmitidas pela água, como as diarréias infantis e o cólera. > Menor disponibilidade de água potável por efeito de secas, inundações e do aumento do nível dos oceanos. > E, por fim, talvez a preocupação maior, efeitos danosos aos organismos vivos terrestres e marinhos, o que poderia comprometer a produção de alimentos e alterar o funcionamento do ecossistema que torna possível a vida no nosso planeta. (Berlinguer, 2004, p. 237).

Quanto a essa lista que ele chamou de “apelo”, o autor italiano observa que os

cientistas signatários reconhecem as incertezas das previsões e que alguns dos efeitos descritos

podem ser menos graves à saúde do que se espera. Entende, no entanto, que as observações

merecem duas considerações, sendo a primeira de ordem prática: mesmo que a gravidade dos

danos seja imprevisível, muitos deles já são perceptíveis e outros são previsíveis dentro de um

prazo não muito longo. Por exemplo, a avaliação da OMS de que até 2020 haverá 700 mil

mortes a mais (evitáveis) por causa da exposição a partículas por combustíveis fósseis13 .

A outra consideração é de caráter moral e diz respeito às conseqüências dos danos

já conhecidos e aos riscos das transformações ambientais frequentemente recaírem em lugares

afastados de quem as provoca. Além disso, é preciso considerar que muitos desses danos e

riscos vão atingir aqueles que nem nasceram ainda. Berlinguer diz que neste caso as análises

danos/benefícios e riscos/benefícios são absolutamente improponíveis devido à total assimetria

entre os indivíduos envolvidos. Ou seja: uns poucos terão os benefícios e muitos outros arcarão

com os riscos e os danos.

Isso vai implicar numa capacidade de previsão e de prevenção no âmbito global e

em mudanças na ética pública e no direito. Fora isso, Berlinguer não vê caminhos abertos. A

esse respeito pode-se recorrer à heurística do temor, de Hans Jonas. E isso significa que é

preciso dar primazia ao mau prognóstico sobre o bom. Esse medo, como diria Jonas, não é

13 Conforme nota do autor, os dados são da Organização Mundial de Saúde. The World Health Report 1998. Genebra, 1998. p.126.

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aquele que nos aconselha a não agir, mas justamente o que nos convida a agir: um sentimento

que faz parte da responsabilidade. “A responsabilidade como cuidado reconhecido, como

obrigação em relação a um outro ser, um ser que se tornou preocupação porque existe uma

ameaça à sua vulnerabilidade” (Jonas, 2006, p.352).

Ética e sustentabilidade

No primeiro capítulo foi trabalhada a constatação de Hans Jonas de que a ética

tradicional já não abarca os eventos suscitados pelas novas tecnologias. O momento exige uma

nova ética. A partir daí, o que se quis demonstrar junto com o filósofo é que a vida é o fio

condutor das questões que vão desde a medicina até os fenômenos climáticos. Mais que isso, o

que está em jogo a partir dos problemas levantados é a essência do SER humano, que poderá

ser revelada ou eclipsada dependendo das nossas ações. No entanto, esse desvelamento passa

para um segundo plano na medida em que é preciso antes garantir a “matriz” do homem e o

espaço físico para sua revelação. Isso requer cuidado com as intervenções genéticas e requer

cuidados em relação ao meio ambiente. Esse “cuidar de” está expresso no Princípio

Responsabilidade e o “querer cuidar” é o primeiro passo para as ações que se propõe. Já temos,

então, uma nova ética.

Desta forma, a ética adquire pela primeira vez uma dimensão quase cósmica, além

de tudo isto que é inter-humano. Uma vez admitido isto, ainda permanece a pergunta: a quem,

concretamente, se dirige este apelo? Quem deve acolhê-lo? Quem deve levar a termo os

sacrifícios que este acolhimento comporta? Jonas responde que, em primeiro lugar, é um dever

de todos nós. Mas, é preciso deixar claro que esse “nós” quer dizer inicialmente a sociedade

industrial avançada. Nós, do assim chamado “Ocidente” criamos um colosso tecnológico e o

jogamos contra o mundo; somos nós, além disso, os principais consumidores dos seus frutos e,

nesse sentido, os maiores pecadores contra a terra. Assim, prossegue o filósofo

Da nossa opulência se pode, portanto, pretender uma limitação. Seria obsceno pedir aos famintos dos países pobres desta terra que respeitem o meio ambiente pelo bem de todos. O pior é que as rigorosas necessidades quotidianas os impelem cada vez mais à explorações do meio ambiente. O que vai conduzir a necessidades ainda maiores nos anos sucessivos. (...) Mas o verdadeiro problema está nos ricos desta terra, nos esbanjadores com a sua culpa e os seus deveres globais. Não é um

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problema de impotência, mas do poder e com isto, momentaneamente ainda, da liberdade (Jonas, 1997, 245, 246).

Aqui o sujeito das ações não é um indivíduo. Jonas está falando do poder

tecnológico, que é coletivo. Portanto, para fazer face a ele, só o poder político. Ora,

considerando-se que nas democracias parlamentares esse poder advém do povo; considerando-

se que esse povo é que escolhe seus governantes; e considerando-se que os governantes devem

seguir a vontade daqueles que o elegeram, então, através da liberdade política, cada indivíduo

está submetido ao novo dever em relação ao meio ambiente. Outra consideração deve fazer

face a essas: na esfera política é a maioria quem decide, cabendo, portanto, a quem vai decidir

observar cotidianamente o rumo que tomam os acontecimentos. Não se trata aqui de uma

clarividência altruística. Pode ser a renúncia aos viciados interesses que o momento requer.

A essa altura, Jonas faz um parêntese para esclarecer o que havia falado sobre a

possível aceitação de uma tirania benevolente. Na verdade, ele se referia a situações extremas,

em que não existe espaço ou tempo para os complicados processos decisionais da democracia.

Portanto é melhor que não cheguemos a esse ponto a fim de não colocarmos em risco a

liberdade política – essa forma rara e histórica de liberdade. E isto pode suceder se o homem

não superar a prova mais dura à qual foi submetida até agora toda a liberdade humana (Jonas,

1997, p.246/247). O filósofo está se referindo às intervenções na área da engenharia genética e

aos problemas gerados pelas intervenções do homem no meio ambiente – a priori, temos a

liberdade para essas intervenções. Mas, isso é conveniente?

Quais são as esperanças de superar essa prova? Quais são os possíveis meios à

disposição do homem? Aos cidadãos, ele diria “Cautela”, reconhecendo, no entanto, que a

imprevisível natureza da liberdade não daria nenhuma segurança a essa recomendação. Assim,

resta a via não institucional de uma educação da consciência geral por obra daqueles que

estão qualificados e que a isso são impelidos pela sua própria consciência. Aqueles que detém

o conhecimento nos diversos campos – num processo de multidisciplinaridade - devem se

reunir espontaneamente nesta missão. A educação, neste caso, consiste em abrir os olhos dos

outros para que todos possam ver com os seus próprios olhos aquilo que só os especialistas

estão enxergando. Uma instrução incansável através de tais porta-vozes pode provocar uma

pressão da opinião pública, à qual se dobrariam também os relutantes. Nada de líderes

carismáticos, mas um incremento de natureza sóbria, isento de suspeitas e interesses escusos,

algo que já há algum tempo está em curso na América e na Europa (Jonas, 1997, p.247).

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Capra se refere a esses movimentos, quando prega para os atuais problemas

ambientais uma legislação ambiental mais rigorosa, uma atividade empresarial mais ética, uma

tecnologia mais eficiente. Ele reconhece que, embora necessário, só isso não é eficiente:

precisamos de uma mudança sistêmica mais profunda. Segundo ele, essas mudanças já estão

acontecendo através de coalizões eficientes integradas por acadêmicos, líderes comunitários e

ativistas do mundo inteiro, a exemplo do Instituto Worldwatch, O Instituto Rocky Mountain, o

Instituto de Estudos Políticos, o Fórum Internacional sobre a Globalização, o Global Trade

Watch, a Fundação de Tendências Econômicas, o Instituto de política Alimentar e de

Desenvolvimento, o Instituto da Terra e o Centro de Eco-Alfabetização – nos Estados Unidos.

No Reino Unido, o Schumacher College; na alemanha, o Instituto Wuppertal de Clima, energia

e Meio ambiente; no Japão, na África e na América Latina, a instituição Pesquisa e Iniciativas

em Prol da Emissão Zero; e na Índia, a Fundação de pesquisas em Ciência, Tecnologia e

Ecologia14. Trata-se, segundo ele de “pessoas que estão levantando a voz não só para exigir

que ‘viremos o jogo’, mas também para propor maneiras concretas de fazer isso (Capra, 2002,

p.221). Falaremos sobre isso mais adiante.

Mas, ao longo da caminhada, a espontaneidade não-institucional não basta. O

consenso de princípio, ou de máxima, que pode ser alcançado no melhor dos casos deve ser

consolidado no Direito público. Jonas ressalva não ser expert nessa área, mas diz que aprendeu

junto a quem tem competência que se pode pensar neste caso em normas constitucionais

preventivas, normas essas que possam subtrair-se ao arbítrio do mercado ou inovações técnicas

particularmente grávidas de conseqüências ou efeitos irreversíveis para as gerações futuras.

Neste último caso, bastariam normas que vetassem tudo o que não for explicitamente permitido

e isto se referiria às coisas novas (Jonas, 1997, p.247/248). Novamente aqui este último caso

refere-se às intervenções genéticas.

De concreto, Jonas sugere uma inteira mudança em nossas atitudes de

consumidores, portanto no estilo de vida de nós todos e, consequentemente, na inteira estrutura

econômica que está a serviço do consumismo e que vive disso. Como isso deveria acontecer

sem causar de sua parte desgraças como o desemprego em massa, num tempo em que deveria

14 A maior parte desses institutos de pesquisas são comunidades de estudiosos e ativistas que se dedicam a uma larga variedade de projetos e campanhas – à reforma eleitoral, à defesa da mulher, ao Protocolo de Kyoto sobre o Aquecimento Global, ao estudo da biotecnologia ou das fontes renováveis de energia, à luta contra a patente de medicamentos e outros. Entre esses temas, há três conjuntos que parecem ser os focos de atenção das maiores e mais ativas coligações de movimentos populares: o desafio de remodelar as instituições e as regras da globalização; a oposição aos alimentos transgênicos e a promoção da agricultura sustentável; e o projeto ecológico (ecodesign) – um esforço conjunto de redefinição das nossas estruturas físicas, cidades, tecnologias e indústrias de modo a torná-las ecologicamente sustentáveis (Capra, 2002, p.231).

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prevenir, ele diz que não está preparado para dizer: encontrar um caminho a percorrer sobre a

crista entre dois abismos é uma tarefa para os economistas políticos. Seguramente isto imporia

sacrifícios a respeito da liberdade de mercado, mas a liberdade política pode sobreviver a isto

(Jonas, 1997, p.248).

A esperança de Jonas se funda toda ela na razão humana – a mesma que se mostra

estupefata com os rumos da consecução do nosso poder e que agora deve tomar em mãos um

guia e estabelecer limitações. Duvidar disso seria irresponsável e uma traição em relação a nós

mesmos. Na conclusão de Técnica, medicina e ética, Jonas admite que não tem uma solução

segura para o nosso problema, que uma panacéia para a nossa doença não existe. A síndrome

tecnológica é muito mais complexa. Até com uma grande conversão e reforma dos nossos

costumes o problema fundamental não desapareceria. De fato, a aventura tecnológica deve

continuar. Já a correção voltada à salvação exige um emprego sempre novo de engenho técnico

e científico que por seu lado provoca novos riscos. Assim, a tarefa de prevenção é permanente

e a sua execução torna-se necessariamente um trabalho fragmentário e, frequentemente, só um

remendo (Jonas, 1997, p. 249).

É evidente que permanece nessa obra o viés de pessimismo que permeou o

princípio responsabilidade. Mas, aqui, na conclusão, ao invés de “heurística do temor”, esse

pessimismo leva o nome de “sombra”. A última recomendação de Jonas é que devemos viver

em relação ao futuro à sombra da ameaça de uma calamidade. Ele está falando daquele medo

que, ao invés de imobilizar, provoque uma reação, provoque o desejo de cuidar daquilo que

está a exigir cuidados. E aqui, embora na obra anterior tenha tentado refutar o Princípio

Esperança (Prinzip Hoffnung), ele abre espaço, nas últimas linhas do livro, para a utopia de

Ernst Bloch, como se buscasse com ele uma conciliação.

Ser, todavia, consciente da sombra, como estamos já vivendo, torna-se uma paradoxal fresta de esperança: isso não deixa calar a voz da responsabilidade. Esta luz não brilha como aquela da utopia, mas a sua admoestação clareia o nosso caminho, junto à fé na liberdade e na razão. Assim, ao fim, o princípio responsabilidade e o princípio esperança se encontram. Não mais a exagerada esperança em um paraíso terrestre, porém aquela mais modesta habitabilidade (qualidade de vida) também futura do mundo e em uma sobrevivência humanamente digna da nossa espécie, sobre a base da herança não certo mísera, mas por certo limitada a essa custódia. Sobre essa proposta se assenta minha esperança (Jonas, 1997, p.249).

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O próprio Jonas reconhece que é impossível dizer não ao progresso. Ele fala em

frear, diminuir o ritmo – será que o mundo aceitaria botar um freio no desenvolvimento? Nem

os países evoluídos, muito menos os países em desenvolvimento. Technik, Medizin und Ethik.

Zur Praxis des Prinzips Verantwortung (Técnica, Medicina ed ética – Prassi del principio

responsabilità) foi publicado em 1985. A expressão “Desenvolvimento sustentável” ainda

estava em seu nascedouro. Conforme o registro de Capra, o conceito de sustentabilidade foi

criado na década de 1980 por Lester Brown, fundador do Instituto World Watch, que definiu a

sociedade sustentável como “aquela que é capaz de satisfazer suas necessidades sem

comprometer as chances de sobrevivência das gerações futuras”. Em 1987, o Relatório

Brundtland (cuja síntese foi publicada no relatório Nosso Futuro Comum) usou a mesma

definição. (Capra, 2002, p.238).15

Ora, essa definição não é nada mais nada menos que a expressão do Princípio

Responsabilidade. Ou seja: usar os recursos naturais de forma sustentável, a fim de que

existam futuras gerações. Quando Jonas em seu último parágrafo (última citação do autor)

refuta a exagerada esperança do paraíso terrestre de Ernst Bloch e prega uma mais modesta

habitabilidade; quando ele sugere uma inteira mudança em nossos hábitos de consumidores, ele

está falando de sustentabilidade. Não estaria na sustentabilidade a intersecção do Princípio

Esperança com o Princípio Responsabilidade? Não estaria na sustentabilidade a ponte entre a

futurologia da utopia de Bloch e a futurologia da advertência de Jonas?

Há mais conexões entre a ética (ou bioética) e a sustentabilidade. Já foi assinalado

aqui que Jonas e Potter trataram dos mesmos temas da bioética, ainda que Jonas só tenha

utilizado esse termo uma vez ,no último capítulo de Técnica, medicina e ética. Também na

sustentabilidade eles tiveram pontos de vistas similares, embora a bioética de Potter use a

referida denominação quando trata do assunto, enquanto que Jonas fala da sustentabilidade,

sem dar a ela esse nome. Num artigo escrito em 1998, publicado em português em 2001, o

oncologista confessa que suas preocupações com o progresso e para onde o avanço

materialista da ciência e tecnologia estava levando a cultura ocidental haviam começado 36

15 O relatório da Comissão Mundial sobre Meio ambiente e Desenvolvimento (CMAD) – intitulado Our Common Future – definiu “Desenvolvimento Sustentável” como o desenvolvimento que vai ao encontro das necessidades do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações de satisfazer suas necessidades. Essa declaração busca encontrar o equilíbrio entre proteção ambiental e maximização de desenvolvimento econômico, especialmente nos países não desenvolvidos. A CMAD levou este desafio à Conferência das nações Unidas sobre meio Ambiente e Desenvolvimento – a ECO 92, realizada no Rio de janeiro – onde a proposta foi discutida por mais de 170 países. Daí nasceu a Agenda 21, como forma de cristalizar a sustentabilidade (Wikipédia, 2007).

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anos atrás. Enquanto historia o desenvolvimento da bioética, ele faz, num determinado trecho,

a ponte entre a ética médica e a ética ambiental:

Uma ética médica reconstruída seria, a longo prazo, uma ponte com a ética ambiental e suas diretrizes imediatas. Juntas elas formam a segunda fase da bioética ponte,a chamada bioética global, um sistema cuja missão é a definição e o desenvolvimento a longo prazo de uma ética para a sobrevivência humana sustentável (Potter, 2001, p.338).

Bartholo Jr. e Bursztyn partem da responsabilidade de Hans Jonas para conceber o

desenvolvimento sustentável como uma proposta que tem em seu horizonte uma modernidade

ética, não apenas uma modernidade técnica. “Pois o princípio ‘sustentabilidade’ – dizem eles -

implica incorporar ao horizonte da intervenção transformadora do ‘mundo da necessidade’ o

compromisso com a perenização da vida” (Bartholo Jr/Bursztyn, 2001, p. 167). Mas, em

determinados momentos esse novo princípio assume o lugar do princípio responsabilidade. Ou

seja: é a mesma coisa. De onde se pode concluir que os autores também adotaram a

responsabilidade como princípio do desenvolvimento sustentável – assim como é a proposta

original da tese ora em curso.

O raciocino deles também percorre o Princípio Responsabilidade, a exemplo do

trecho em que eles atestam que “nossos atos atingem um limiar de poderes nunca antes

conhecidos”. E que “esses poderes implicam uma nova responsabilidade, que por sua vez para

ser exercida requer conhecimento” (grifo dos autores). Então, eles buscam o filósofo para

dizer textualmente que

Esse conhecimento diz respeito tanto ao campo das causalidades físicas como das finalidades humanas. A ética da sustentabilidade tem uma perspectiva ‘futurista’ e se apóia sobre uma ‘futurologia’ (isto é, uma projeção científico-tecnologicamente informada de cenários aos quais as ações presentes podem conduzir). Nesse contexto, Hans Jonas (1992) nos coloca diante da questão nevrálgica: a futurologia dos cenários desejados é conhecida como utopia; mas a futurologia da advertência nós ainda precisamos aprender, para o autocontrole de nossos poderes desenfreados. E ela somente pode advertir aqueles que, além da ciência das causas e efeitos, também sustentam uma imagem do homem que lhes impõe valores mais altos e limites/freios ao irrestrito exercício de tais poderes (Bartholo Jr./Bursztyn, 2001, p.172)

O que se pretende com essa abordagem é mostrar que os referidos autores fizeram

a ponte entre a ética da responsabilidade e o desenvolvimento sustentável. A diferença é que

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eles demonstram uma identificação entre o princípio – a responsabilidade – e a proposta – a

sustentabilidade. Já o trabalho em curso, além de reconhecer essa identificação, elege a

responsabilidade como primeiro passo do desenvolvimento sustentável no sentido de que a

referida ética é o sentimento que possibilita uma primeira atitude: a atitude de “querer”

conservar, “querer” cuidar da Terra16 e, como tal, o mundo, aí incluídos o homem e a natureza

extra-humana..

Agora que está demonstrada a conexão entre o princípio responsabilidade e o

desenvolvimento sustentável, voltemos às perguntas que o próprio Jonas não conseguiu

responder: O QUÊ fazer e COMO fazer a partir das constatações de que o mundo vive

momentos cruciais por causa das intervenções do homem no meio ambiente. Lembrando a

constatação de Jonas de que esta é uma tarefa para a razão humana, pode-se recorrer a Enrique

Leff quando ele fala que a resolução dos problemas ambientais, assim como a possibilidade de

incorporar condições ecológicas e bases de sustentabilidade aos processos econômicos,

construindo uma “racionalidade ambiental” e um estilo alternativo de desenvolvimento,

implica a ativação e objetivação de um conjunto de processos sociais, que ele relaciona a

seguir:

A incorporação dos valores do ambiente na ética individual, nos direitos humanos e na norma jurídica dos atores econômicos e sociais; a socialização do acesso e apropriação da natureza; a democratização dos processos produtivos e do poder político; as reformas do Estado que lhe permitam mediar a resolução de conflitos em torno da propriedade e aproveitamento dos recursos e que favoreçam a gestão participativa e descentralizada dos recursos naturais; o estabelecimento de uma legislação ambiental eficaz que normatiza os agentes econômicos, o governo e a sociedade civil; as transformações institucionais que permitam uma administração transetorial do desenvolvimento; e a reorientação interdisciplinar do desenvolvimento do conhecimento e da formação profissional. Estes processos implicam a necessidade de abrir a reflexão e a pesquisa sociológica para o campo dos problemas ambientais (Leff, 2002, p.111,112).

16 Hector Ricardo Leis e José Luis D’Amato estabelecem uma diferença conceitual entre “Terra” e “mundo”, para demonstrar que a crise ecológica põe em evidência o drama de toda a civilização. Segundo eles, a humanidade vive em duas realidades: uma, mais permanente, é a Terra – formada por ecossistemas altamente integrados. A outra é o mundo, que se apresenta, ao contrário, como uma realidade composta de sistemas culturais, sociais, políticos e naturais, nos quais seus elementos se revelam com um maior grau de desintegração e conflito do que cooperação e solidariedade. A crise ecológica origina-se nesta dualidade Terra – Mundo, ou melhor, na radicalidade desta dualidade nos tempos modernos, já que ela é inerente ao princípio ativo da civilização e, portanto, inevitável. O ambientalismo expressa, então, uma tendência vital e orgânica de caráter defensivo, conseqüência da alta entropia de nosso modelo civilizatório (Leis/D’Amato, 2003, p.78, 79).

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A construção dessa “racionalidade ambiental”, é explicada por Leff como um

processo político e social que passa pelo confronto e concerto de interesses opostos, pela

reorientação de tendências (dinâmica populacional, racionalidade do crescimento econômico,

padrões tecnológicos, práticas de consumo); pela ruptura de obstáculos epistemológicos e

barreiras institucionais; pela criação de novas formas de organização produtiva, inovação de

novos métodos de pesquisa e produção de novos conceitos e conhecimentos. A isso ele

acrescenta que o saber ambiental está vinculado à solução prática de problemas e à elaboração

de novas políticas e estratégias de desenvolvimento (Leff, 2002, p.112).

Como bem disse Jonas, os problemas que estão acontecendo junto ao meio

ambiente têm suas raízes na técnica, da técnica devem emergir as soluções. A técnica é filha

das ciências, mas é orquestrada pelo capitalismo, de onde se deduz que as mudanças

necessárias a um desenvolvimento sustentável devem trazer em seu bojo a possibilidade do

lucro e não somente a idéia de contenção e sacrifícios. É possível falar em lucro e uso racional

dos recursos naturais? Sim, é possível falar, fazer e mostrar que dá certo. A filosofia desses

projetos, a funcionalidade deles e a aceitação que vêm tendo no mundo inteiro está no livro O

capitalismo natural, de Paul Hawken, A. Lovins e L. H. Lovins. Os trabalhos dessa natureza

são chamados por Capra de Projetos Ecológicos que dá a eles a seguinte definição:

O que chamamos de ‘projeto’ (design), em seu sentido mais amplo, é a moldagem dos fluxos de energia e de materiais feita em vista dos fins humanos. O projeto ecológico é um processo no qual nossos objetivos humanos são cuidadosamente inseridos na grande rede de padrões e fluxos do mundo natural. Os princípios do projeto ecológico refletem os princípios de organização que a natureza desenvolveu para sustentar a teia da vida. A prática do desenho industrial nesse contexto exige uma mudança fundamental da nossa atitude em relação à natureza (Capra, 2002, p.241).

Trata-se de uma Revolução Industrial capaz de superar até mesmo a utopia de Ernst

Bloch, na medida em que antevê a possibilidade de um mundo de cidades tranqüilas, carros e

ônibus sem ruído e sem emissão de gases; mais parques e mais áreas verdes; fim da OPEP que

deixará de existir porque o uso do petróleo será substituído por alternativas melhores, mais

limpas e mais baratas; um padrão de vida melhor para todos, sobretudo os pobres e os países

em desenvolvimento; habitações em condições de se auto-financiar com a energia que vão

produzir; a existência de um número mínimo de aterros sanitários; o aumento das áreas

florestais; fim das barragens; diminuição do nível de CO2 pela primeira vez em 200 anos; um

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sistema de esgoto que vai escoar uma água mais limpa do que a água que entrou; redução de

80% do consumo dos recursos naturais pelos países industrializados. A essas mudanças

tecnológicas virão agregadas, naturalmente, importantes alterações sociais (Hawken/Lovins/

Lovins, 2006, p.1).

O livro trata das possibilidades que hão de surgir com um novo tipo de

industrialismo, diferente na filosofia, nos objetivos e nos processos fundamentais do sistema

padrão. Com essas transformações, a sociedade terá condições de criar uma economia vital que

consuma radicalmente menos material e energia. Isso implicará em mais recursos, menos

impostos, menos problemas sociais e a reparação dos danos causados ao meio ambiente. Em

resumo: mais eficiência econômica, preservação ambiental e justiça social. Em que consiste o

capital natural? Os autores explicam que

As sociedades precisam adotar objetivos comuns a fim de aumentar o bem estar social, os quais, porém, não devem ser a prerrogativa de nenhum sistema de valores e de crenças específico. O capitalismo natural é um desses objetivos. Sem ser conservador nem liberal na ideologia, ele apela para ambas as posições. Sendo um meio, não um fim, longe de preconizar um resultado social particular, possibilita muitos. Portanto, por variadas que sejam as visões esposadas pelos diferentes partidos e facções, a sociedade pode empenhar-se hoje mesmo a favor da produtividade dos recursos, sem aguardar a solução das disputas políticas (Hawken/Lovins/Lovins, 2006, p. 18).

Os autores não estão falando em tese. Amory Lovins – físico especialista em

energia – desenvolveu junto com seus colegas do Rocky Mountain a idéia do “Hipercarro”, um

carro ultraleve, com alta eficiência aerodinâmica e movido por um motor elétrico híbrido. O

carro já é comercializado pela Toyota e pela GM. Após desenvolver a idéia do Hipercarro no

Rocky Mountain Institute, Lovins e sua equipe tornaram os resultados públicos através de

artigos e um volumoso relatório intitulado Hypercars: Materials, Manufacturing, and Policy

Implications, no ano de 1996. Para aumentar a competição entre as indústrias automobilísticas,

a equipe do hipercarro fez questão de enviar as idéias para mais de vinte grandes montadoras

de automóveis.

Além de automóveis movidos a células de hidrogênio e que podem ser plugados em

geradores elétricos – que talvez sejam as usinas do futuro – os autores de Capitalismo natural

trabalham com projetos de “prédios verdes”, capazes de produzir oxigênio, energia solar e

água potável. Além disso, são prédios capazes de auto-financiar-se enquanto seus moradores

trabalham dentro deles. Os autores relacionam exemplos de prédios que já utilizaram e estão

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utilizando essas tecnologias no mundo inteiro, com resultados satisfatórios para quem

encomendou o projeto, para quem trabalha dentro dele e para quem usa. Entre os exemplos de

“prédios verdes” ou “prédios eficientes”, os autores citam a sede do Banco ING, na Holanda;

O Village Homes, em Davis, na Califórnia; e o Inn of the anasazi, um hotel de luxo em Santa

Fé, no México. (Hawken/Lovins/Lovins, 2006, p.77, 78,79).

Exemplos como o do capitalismo natural servem para mostrar que os momentos de

crise podem ser encarados como oportunidades para a revelação de medidas inteligentes,

criativas e econômicas. E isso gera lucros. Al Gore faz referência a essas alternativas, quando

observa que, além do perigo do aquecimento global, esta crise também traz oportunidades sem

precedentes: “Podemos construir motores limpos, aproveitar a energia do sol e do vento,

parar de desperdiçar energia, utilizar os abundantes recursos do carvão sem aquecer o

planeta”. Ele tem conhecimento de que algumas das maiores empresas mundiais já estão

tratando de aproveitar as oportunidades econômicas oferecidas por um futuro com energia

limpa. Sem contar que nos últimos anos dezenas de empresas reduziram as emissão de gases

que retém o calor na atmosfera, conseguindo com isso obter mais lucros (Gore, 2006, p.11).

Contudo, a lição mais importante que essa crise possibilita aprender está nos

sentimentos do homem, na capacidade de revelação que se apresenta a cada um de nós diante

do perigo, diante das ameaças. Al Gore se refere a este momento como a oportunidade que essa

geração tem de estabelecer um propósito moral poderoso, uma causa comum unificadora, a

chance de deixar de lado as mesquinharias e conflitos que tantas vezes sufocam a necessidade

humana de transcendência, a oportunidade de nos elevarmos. Com palavras que parecem ter

sido inspiradas em Hans Jonas, Al Gore diz que o que está em jogo é a sobrevivência da nossa

civilização e a possibilidade de habitar a terra. Em última análise, diz ele, não se trata de uma

discussão científica ou diálogo político.

Trata-se de saber quem somos nós como seres humanos. Trata-se da nossa

capacidade de transcender nossas limitações, de nos elevarmos para estar à altura

dessas novas circunstâncias. Trata-se de enxergar com o coração, e não só com a

cabeça, o que se exige de nós hoje. É um desafio moral, ético e espiritual (Gore,

2006, p.11).

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CONCLUSÃO

A intenção de Hans Jonas quando escreveu o Princípio Responsabilidade era

mostrar a insustentabilidade da ideologia marxista, como ideal de livrar a sociedade da miséria

através da técnica. Para atingir esse propósito, Jonas desenvolve uma tal argumentação que o

objetivo inicial passa para um segundo plano. Ou seja: os questionamentos se voltam muito

mais para a ética, a técnica e o progresso e, especialmente, para o meio ambiente do que para

o marxismo ou o Princípio Esperança propriamente dito. Assim como vimos no último

capítulo, não se trata de defender o socialismo ou o capitalismo, mas de pensar a relação do

homem com a natureza. A luta pelo meio ambiente transcende as tendências da economia

política e se impõe como uma condição para a sobrevivência humana.

Jonas, contudo, não abandona o objetivo inicial e é com ele que conclui o livro. A

contraposição ao marxismo vai tomar forma a partir do penúltimo capítulo. Antes, ao longo de

quatro capítulos, é como se o filósofo tomasse gosto pela discussão sobre a ética e a técnica, e

ao longo dela fosse percebendo a importância e a profundidade do assunto. Tanto que se

propõe – e registra isso no prefácio - a escrever o próximo livro sobre a técnica e suas

implicações na área médica, especialmente as intervenções genéticas. Os problemas do meio

ambiente também foram incluídos no livro que ficou pronto em 1985, intitulado Technik ,

Medizin und Ethik. Zur Práxis des Prinzips Verantwortung.

Enquanto desenvolveu o Princípio Responsabilidade, Jonas demonstrou que a ética

tradicional já não oferece parâmetros às ações do homem num mundo em que as conseqüências

dessas ações assumem dimensões planetárias. Chamou a atenção para os riscos das

intervenções genéticas interferirem no próprio vir a ser do homem. Ora, se nem descobrimos

ainda como é a “matriz”, como podemos nos dar ao luxo de falar em aperfeiçoamento? Quanto

aos problemas do meio ambiente, especialmente o aquecimento global e suas conseqüências, a

intenção de Jonas foi demonstrar que a utopia é mais que um equívoco cognitivo: é uma

impossibilidade prática, um sonho irrealizável, uma vez que o próprio espaço para a construção

da esperança – a Terra - está comprometido, está ameaçado. E isto agora é mais urgente.

Jonas fez isso de uma forma tão eficiente que passou a ocupar um lugar de destaque

entre os filósofos que tratam do meio ambiente. Ele mesmo admitiu posteriormente ter feito um

diagnóstico e um prognóstico dos problemas do meio ambiente, embora o que lhe passasse

pelo coração fosse a refutação do Princípio Esperança de Ernst Bloch. “O que o meu livro

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pretendia esclarecer – disse o filósofo – é que devemos nos tornar mais moderados, que não

podemos nos permitir determinados privilégios, ao contrário, deveres completamente novos

nos esperam” (Jonas, 2000, p.54).

Que deveres são esses? Em relação a nós, os indivíduos, significa que não nos é

permitido fazer tudo que estamos acostumados a fazer. Que a nossa sede de consumo não pode

aumentar mais, e constantemente, como tem acontecido até agora. Enfim, devemos ser mais

modestos em nosso padrão de vida – sem espírito de sacrifício existe pouca esperança. Quanto

à economia, é preciso adotar relações, formas de desenvolvimento que não contribuam para

saquear ainda mais o planeta (Jonas, 2000, p. 78).

Outra medida na qual Jonas insiste é o controle da reprodução por parte do Estado,

referindo-se neste caso aos países em desenvolvimento. Ele mesmo reconhece que isto é uma

perda terrível da liberdade e conta que por esta razão foi acusado por Karl Popper de ser um

traidor da democracia e um amigo da ditadura. “Mas, não se poderá permitir todo o tipo de

liberdade que o Ocidente criou, pelo menos por um determinado período”, rebate ele (Jonas,

2000, p. 44). Com efeito, mais do que editar medidas de controle, Jonas se fixa na

responsabilidade de todos pelas futuras gerações e aí, embora ele tenha refutado a ética

kantiana como parâmetro para a civilização tecnológica, com algumas adaptações, a ética de

Kant poderia servir, como por exemplo: Não faça com o planeta em relação ao futuro aquilo

que você não gostaria que as gerações do passado tenham feito com ele em relação a você.

Mas, quantos de nós se dispõe a pensar nas gerações que nem nasceram ainda? E

por que razões a não ser as questões existenciais? Quem ousaria solicitar algo àqueles que já

são modestos, aqueles que nada tem a sacrificar porque já são por demais sacrificados? A

resposta pode estar na ponta da língua: por que devo pensar no futuro da humanidade se antes

ninguém pensou em mim?

Preservar o mundo para a sobrevivência das futuras gerações é a argumentação

mais refutável de Hans Jonas. Na prática, o mundo assiste diariamente a morte de milhares de

pessoas, de fome, nas guerras, através do terrorismo, acidentes de trânsito, violência urbana,

questões de saúde - e isto não tem se constituído em razão palpável , concreta, para mudanças

de hábitos, nas políticas públicas ou nas relações e construções econômicas. Se não nos

sensibilizamos com aqueles que estão aqui e agora, por que pensaríamos nas gerações do

futuro?

Isto, provavelmente, não passou despercebido a Jonas. Tanto é que ele preferiu

firmar a sua tese na heurística do temor. Ou seja: por medo de que as catástrofes aconteçam

aqui e agora, pode ser que os hábitos se transformem, pode ser que medidas políticas e

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econômicas sejam tomadas. Nesse aspecto, as previsões de Jonas assumiram a forma de

profecias do apocalipse, mas às quais as recentes advertências de Al Gore feitas, mediante

minuciosas estatísticas e exaustivos estudos, ajustam-se perfeitamente. Estamos falando dos

últimos acontecimentos relacionados ao clima.

A heurística do temor de que fala Jonas, o medo de que o pior venha a acontecer

como forma de levar os cidadãos do mundo a assumir uma atitude de cuidar do meio ambiente;

as advertências de Al Gore feitas ao longo de 30 anos dedicados ao meio ambiente e que agora

se cristalizam na sua obra “Uma Verdade inconveniente”; além, é claro dos alertas feitos por

cientistas no mundo inteiro – nem sempre considerados - se não tomaram forma, pelo menos

adquiriram mais consistência no dia 02 de fevereiro do ano em curso, em Paris.

Nessa data foi anunciado, e a mídia divulgou massivamente ao mundo todo, o

quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas1. O IPCC é

vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e à Organização

de Meteorologia Mundial (OMN). Nesse primeiro relatório estão apenas as questões

relacionadas à ciência do clima. Depois dele, virão mais dois: um dedicado aos estudos de

vulnerabilidade e adaptação à mudança do clima, a ser divulgado em abril; e outro abordando

os aspectos de mitigação (ações para redução das emissões líquidas antrópicas de gases de

efeito estufa), a ser divulgado em maio.

As informações apresentadas no dia 02 de fevereiro estão em um documento

intitulado “Resumo para Tomadores de Decisão do 4º Relatório de Avaliação do Painel

Intergovernamental de Mudança do Clima (IPCC, sigla em inglês) – Base Científica”. O texto

final do resumo foi aprovado depois de quatro dias de discussão entre representantes dos

países-membros do Painel, incluindo o Brasil. O portal do Ministério da Ciência e Tecnologia

elaborou uma síntese das conclusões que foram apresentadas pelos cientistas, e que nós

colocamos num quadro para maior visibilidade . Vejamos:

1 O painel reúne os maiores cientistas especialistas em suas áreas para avaliar a literatura científica sobre mudança de clima. Sua estrutura administrativa é pequena - cinco pessoas – mas convida os cientistas do mundo inteiro, especialistas em mudanças climáticas, a participarem, de modo voluntário e não remunerado, da elaboração de Relatórios de Avaliação periódica sobre o status da ciência do clima, por meio de revisão da literatura científica publicada na área de mudança do clima. Os relatórios são publicados em geral a cada cinco anos. Além dos relatórios de avaliação, o IPCC também elabora relatórios temáticos especiais, conforme solicitação da comunidade científica ou da Convenção sobre Mudança do Clima. Os relatórios do IPCC estão organizados em três volumes, sob a responsabilidade de três Grupos de Trabalho. O Grupo 1 trata da avaliação da ciência da mudança global do clima. O Grupo 2, ocupa-se da avaliação dos seus impactos, enquanto que o Grupo 3 cuida dos aspectos sociais e econômicos associados às medidas de mitigação. Embora todos sejam importantes, o relatório do Grupo 1 tem um papel fundamental no processo (Ministério da Ciência & Tecnologia, Assessoria de Imprensa, 2007, p.2).

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PRINCIPAIS CONCLUSÕES DO PAINEL INTERGOVERNAMENTAL DE MUDANÇA DO CLIMA

> As influências antrópicas (causadas por atividades humanas) sobre o sistema do clima cresceram desde a última divulgação (2001). Esses efeitos são responsáveis pelo aquecimento do planeta.

> É “muito provável” – probabilidade maior que 90% - que o aumento de temperatura observado desde a metade do século 20 seja resultado do aumento das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera, provocados por atividades humanas. O relatório de 2001 afirmava que era apenas “provável”.

> As concentrações de dióxido de carbono (CO2), metano e óxido nitroso, principais gases de efeito estufa, cresceram consideravelmente desde o início da revolução industrial (1750), como conseqüência das atividades humanas, sendo as emissões de CO2 resultado, principalmente, do uso de combustíveis fósseis e, em menor escala, da mudança do uso da terra (conversão de florestas) e as emissões de metano e óxido nitroso, proveniente das atividades agrícolas.

> O aquecimento do sistema climático é inequívoco, comprovado pelas observações das temperaturas do ar e dos oceanos, pelo derretimento das geleiras e o aumento do nível do mar.

> O Relatório prevê para as próximas décadas um aumento de temperatura de 0,2ºC, por década, mesmo que as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera sejam mantidas nos níveis do ano 2000. O aumento de emissões, acima dos níveis atuais, conduziria a aumentos de temperaturas até o ano de 2100, na faixa de 1,8ºC a 4ºC, dependendo do cenário socioecnômico avaliado. O relatório estima, também, um aumento do nível do mar entre 18 e 59 cm, até 2100.

> Os cientistas têm um alto grau de confiança quanto ao aumento dos eventos climáticos extremos, incluindo um aumento de episódios de temperaturas muito altas e chuvas abundantes. O relatório prevê, também, o aumento da intensidade dos ciclones tropicais.

(Fonte: Ministério da Ciência & Tecnologia, 2007)

Temos, então, com o relatório do IPCC, a constatação de problemas sobre os quais

Hans Jonas já alertava há mais de 20 anos atrás, além de sacramentar as conseqüências do

aquecimento global que Al Gore vem divulgando institucionalmente desde o ano passado. O

relatório deu credibilidade às preocupações antes tratadas no nível das probabilidades. E o

mundo inteiro tomou conhecimento disso. Mas, e agora? O que fazer? De acordo com a

organização ecológica Greenpeace, o informe do painel intergovernamental aciona o “sinal de

alerta” necessário para impulsionar os governos à ação. “(...) A boa notícia é que nossa

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compreensão do sistema climático e do impacto humano melhorou. A ruim é que nosso futuro

parece perigoso”, afirma o Greenpeace em um comunicado (UOL, 2007, p.2).

O Brasil tem tudo para não contribuir com o aquecimento global: a floresta

amazônica que, se preservada, contribui para a captação de CO2; muito sol o ano inteiro para

a implementação da energia solar; ventos para a implementação da energia eólica; uma enorme

extensão de mar, cujas ondas também podem produzir energia; muito espaço para o

planejamento da agricultura de forma apropriada ou mesmo o replantio de novas florestas;

entre outras possibilidades. Aqui existe espaço e possibilidades para um desenvolvimento

limpo e sustentável, bastando para isso a conscientização de quem detém o poder: e aí estamos

falando de todos os tipos de poderes: econômico, político, intelectual, religioso. Sim, mas

qual será o ponto de partida para decisões dessa natureza?

É preciso levar em conta – e muita gente não está levando – que não existe

desenvolvimento sem sustentabilidade. Ora, todo e qualquer desenvolvimento, pressupõe

recursos naturais, matéria-prima. Não havendo preservação, não havendo cuidados com o meio

ambiente, com a natureza extra-humana, muito em breve não haverá matéria-prima. Deixar de

cuidar disto tudo é como serrar, paulatinamente, o galho sobre o qual se está sentado. O mundo

nunca desconheceu isto, mas sempre jogou esses eventos para muito distante, muito além no

tempo.

Agora, os cientistas estão mostrando – e provando – que os limites estão se

aproximando. E chamar a atenção sobre isto não é ser catastrófico – o que representa, num

tempo histórico, 50 ou 100 anos? Ainda que não pensemos nas gerações mais distantes, é

preciso lembrar que esse espaço de tempo atinge já a próxima geração, que são os nossos

filhos; e a próxima depois dessa, que são os nossos netos. Por esse prisma, preservar o meio

ambiente torna-se uma questão de sobrevivência para os que ainda estão aqui e agora.

Sim, mas a pergunta – o que fazer? – ainda não foi respondida. O que foi falado

acima sobre a relação entre sustentabilidade e desenvolvimento encontra ressonância em

Cavalcanti, quando ele diz que não pode haver dúvida de que, em qualquer época, em qualquer

lugar, os problemas da organização econômica devem manter uma relação profunda e

determinante com a dimensão ambiental e depender de sua judiciosa utilização para que

possam ser solucionados sustentavelmente. “Proferir tal afirmação – continua ele - não

envolve originalidade alguma, até porque ela é uma verdade evidente por si mesma. O

condicionamento ecológico, afinal de contas, através da base física de matéria e energia de

que o mundo é feito, regula tudo o que o homem faz e pode fazer” (Cavalcanti, 1996, p. 319).

Mais adiante ele explica que o problema do meio ambiente está na base biofísica, de matéria e

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energia, em que se assentam a vida e a sociedade: é esta base biofísica que sofre a degradação

entrópica em ritmo acelerado, desencadeada pelo homem( Cavalcanti, 1996, p.322).

Considerando-se que estamos falando da relação entre preservação e

desenvolvimento, o primeiro passo em direção a novas atitudes é a conscientização da nossa

dependência em relação à natureza extra-humana. O segundo passo é entender como funciona

a natureza. Fritjof Capra vem defendendo ao longo do tempo uma nova maneira de ver o

mundo que significa, de forma sintetizada, entender os princípios de organização das

comunidades ecológicas (ecossistemas) e usar esses princípios para criar comunidades

humanas sustentáveis. Segundo o autor, “precisamos revitalizar nossas comunidades –

inclusive nossas comunidades educativas, comerciais e políticas – de modo que os princípios

da ecologia se manifestem nelas como princípios de educação, de administração e de política”

(Capra,1996, p.231).

Feito isto é preciso encontrar alternativas plausíveis e viáveis. Mas, ninguém busca

alternativas se não tiver boas razões para isto. Eu posso entender minha dependência em

relação à natureza, conhecer o funcionamento dos ecossistemas e optar pela relação que vinha

mantendo até então com a natureza, com a argumentação de que os prejuízos advindos dos

problemas ambientais ou a insustentabilidade gerada por eles não afetarão o meu negócio.

Neste caso, apenas as considerações relativas aos acidentes climáticos, enchentes, ciclones, a

elevação da temperatura podem sensibilizar. Ou seja: a heurística do temor, o medo de que as

conseqüências venham bater na minha porta.

Quanto às alternativas, quem se interessar por elas pode buscar em Capra muitas

possibilidades de desenvolvimento ecológico e sustentável, inclusive listas de ONGs que

desenvolvem projetos arquitetônicos, captação de energia e outros, dentro dos padrões

econômicos atuais, isto é, com possibilidade de serem até mais lucrativos - o livro Conexões

ocultas está repleto delas. Desta forma, a preservação, sem deixar de ser ética, torna-se uma

atitude racional e mais inteligente e, o que é melhor, vai contribuir para o desenvolvimento.

Um ano antes de sua morte, ocorrida em 1993, num discurso feito em Munique,

Hans Jonas asseverou que a filosofia, por haver repensado o conceito de responsabilidade e sua

extensão – o que nunca se concebeu antes sobre o comportamento de nossa espécie inteira em

relação à natureza – estaria dando o primeiro passo em direção a assumir essa responsabilidade

(Siqueira, 2005, p.106). Jonas contava na ocasião com 89 anos. E disse que o seu desejo, agora

que estava de partida, era que a filosofia perseverasse nesse empenho, sem medo de qualquer

eventual dúvida referente ao seu sucesso. Suas palavras estão ecoando. Mas, começaram a

ecoar enquanto ele ainda era vivo.

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Nessa mesma época, durante uma mesa redonda, o filósofo foi questionado se os

partidos políticos ligados ao meio ambiente costumavam fazer referência à sua obra. Ele

respondeu que na Alemanha o Partido Social Democrático foi o primeiro a acolher o seu

pensamento e a discutir suas idéias. Isto se deu em 1980, depois que Helmut Schmidt

declarou publicamente que havia lido o Princípio Responsabilidade. As discussões não se

restringiram ao âmbito político: grandes indústrias se interessaram pelas idéias de Jonas. Uma

delas foi a Siemens que o convidou para um seminário, outra foi a indústria farmacêutica

Hoechst, onde ele compareceu por ocasião do centenário da empresa para uma conferência

inaugural (Jonas, 2000, p.36).

O que se quer dizer com essas referências é que o Princípio Responsabilidade,

desde aquela época, já estava repercutindo em outras esferas, que não a filosofia. Algumas

ressonâncias do discurso jonasiano são nítidas, por exemplo, em Al Gore. Jonas fala das

situações difíceis – a exemplo de um terremoto, uma inundação, um incêndio – quando

subitamente devemos nos pôr à prova, mostrar de que material somos feitos, quando os

homens decididos se diferenciam dos homens desorientados, os corajosos, dos recalcitrantes,

os capazes de sacrifícios, dos egoístas, e quando se ativa o sentimento de coletividade

despertado pelo perigo. (Jonas, 2006, p.328).

Al Gore se utiliza do mesmo raciocínio quando diz que a crise climática nos dá a

chance de vivermos algo que poucas gerações na História tiveram o privilégio de experimentar:

“um compromisso de uma geração; o entusiasmo de ter um propósito moral poderoso; uma

causa comum unificadora; a emoção de ser forçado pelas circunstâncias a deixar de lado as

mesquinharias e conflitos que tantas vezes sufocam a necessidade humana de transcendência,

a oportunidade de nos elevarmos” ( Gore, 2006, p. 11).

Essas e as de Jonas são razões mais do que convincentes para se preservar. Se bem

que as últimas avaliações climáticas nos dão diagnósticos e prognósticos que exigem mais do

que preservar – exigem uma recuperação. E aí seria o caso de relembrar as palavras de

Churchill, ditas em 1936, quando uma tempestade diferente, terrível, sem precedentes ganhava

força na Europa. Ele avisou que era preciso preparar-se e muitos não quiseram acreditar em seu

aviso. Ele teria ficado impaciente com essa indecisão e disse: “A era da procrastinação, das

meias medidas, dos expedientes que acalmam e confundem, a era dos adiamentos está

chegando ao fim. No seu lugar, estamos entrando na era das conseqüências” (Winston

Churchill, 1936, in Gore, 2006, p. 100/102).

Para concluir, gostaria de dizer que o balanço que faço é positivo. A ética da

responsabilidade está repercutindo – Al Gore é a maior prova disto. O livro de Hans Jonas

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ganhou o mundo, oxalá seja adotado nas universidades, especialmente nos cursos de biologia.

As instituições mundiais responsáveis pelo acompanhamento do meio ambiente estão

ganhando força nas esferas política e econômica, adquirindo cada vez mais credibilidade junto

aos tomadores de decisão. Agora, quando se comprova através de minuciosos relatórios que as

ações do homem são, sim, responsáveis pelo aquecimento global, os investidores no mundo

inteiro haverão de procurar projetos sustentáveis – sejam eles na arquitetura, na agricultura, na

indústria ou de que área for. E por que a responsabilidade e a sustentabilidade se traduzem

numa ética para o desenvolvimento? Porque o desenvolvimento sem sustentabilidade é um

suicídio lento e gradual. A sustentabilidade não é nada mais, nada menos do que uma atitude

racional e inteligente. E a sustentabilidade já não é mais possível sem um mínimo de

responsabilidade.

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Anexos Anexo A – O Efeito de estufa

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Anexo B – A elevação do nível do mar

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Anexo C – A elevação da temperatura global

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