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192 Estilos da Clínica, 2009, Vol. XlV, n° 26, 192-215 or volta das décadas de 50 a 70, a cidade de Quixeramobim, localizada no sertão do Ceará, pos- suía alguns mil habitantes e era bem diferente das grandes cidades de hoje. A luz elétrica apagava bem cedo, o som da “radiadora”, liberado pelos vários autofalantes espalhados pela cidade, era a grande atra- ção da tarde. Pode-se dizer que a convivência das pessoas nessa época se assemelhava à de uma comu- nidade. Cada cidadão era conhecido pela população com suas singularidades e havia um maior Psicóloga, psicanalista, professora do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Psicóloga. Psicóloga. Psicóloga. RESUMO Este artigo aborda o percurso dos modos de relação com a infância nas diferentes épocas da histó- ria. Tem por objetivo discutir as formas de inclusão e exclu- são social da criança. A cultu- ra promove discursos sociais normatizadores. Abordamos o discurso atual, que impõe uma estreita margem de normalida- de. Descritores: infância; normatização; inclusão; exclu- são. Artigo INFÂNCIA E NORMATIZAÇÃO: LUGAR DE CRIANÇA E O DISCURSO SOCIAL DA INCLUSÃO E EXCLUSÃO Regina Maria Ramos Stellin Luana Timbó Martins Georgia Porto Triandopolis Elisa Parente Costa P

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or volta das décadas de 50 a 70, a cidade deQuixeramobim, localizada no sertão do Ceará, pos-suía alguns mil habitantes e era bem diferente dasgrandes cidades de hoje. A luz elétrica apagava bemcedo, o som da “radiadora”, liberado pelos váriosautofalantes espalhados pela cidade, era a grande atra-ção da tarde. Pode-se dizer que a convivência daspessoas nessa época se assemelhava à de uma comu-nidade. Cada cidadão era conhecido pela populaçãocom suas singularidades e havia um maior

Psicóloga, psicanalista, professora do curso de Psicologia da

Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Psicóloga.

Psicóloga.

Psicóloga.

RESUMO

Este artigo aborda o percurso dosmodos de relação com a infâncianas diferentes épocas da histó-ria. Tem por objetivo discutiras formas de inclusão e exclu-são social da criança. A cultu-ra promove discursos sociaisnormatizadores. Abordamos odiscurso atual, que impõe umaestreita margem de normalida-de.Descritores: infância;normatização; inclusão; exclu-são.

Artigo

INFÂNCIA ENORMATIZAÇÃO:

LUGAR DE CRIANÇA EO DISCURSO SOCIAL

DA INCLUSÃO EEXCLUSÃO

Regina Maria Ramos Stellin

Luana Timbó Martins

Georgia Porto Triandopolis

Elisa Parente Costa

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compartilhamento dos ambientes ur-banos entre as pessoas. Não era mui-to visível a discrepância de classessociais. No contexto de uma cidadeisolada da capital, as condições finan-ceiras não faziam marca de diferen-ças. Até porque, os valores não esta-vam perpassados pelos objetos deconsumo. Os laços sociais se afigura-vam mais intensos onde as históriasfamiliares faziam pertinência.

Nessa mesma época, um sujeitocom o apelido de Chico Caminhãotransitava pela cidade. Este era ape-nas uma das pessoas que possuíam ocomportamento um pouco diferentedo habitual e que conviviam harmo-niosamente com o resto da popula-ção. Chico era um sujeito engraçadoe querido por todos os cidadãos deQuixeramobim. Seu fascínio, assimcomo seu universo, estava nos cami-nhões. Tinha como lugar preferido aPraça da Estação, onde ficavam esta-cionados os grandes caminhões dacidade. Comum era vê-lo conversan-do com os caminhoneiros, e eram es-ses diálogos que sustentavam suas fan-tasias sobre essas máquinas gigantes.Por conta desse deslumbramento,Chico queria ser efetivamente um ca-minhão. Para ele, seu corpo era umamáquina, e sua postura era encurvadapara se assemelhar ao formato domodelo que desejava parecer. Chicoandava fazendo barulhos pela cidade.Quando parava para cumprimentar osamigos, fazia o som do freio. Aoreiniciar sua caminhada pelas ruas, ou-via-se o acelerador em movimento.

Das muitas histórias que os mo-radores partilhavam sobre Chico, osujeito-caminhão, uma era ponto delembrança maior. O evento ocorreuquando lançaram um novo modeloque o deixou fascinado, apelidado de“Marta Rocha”. Entre suas caracterís-ticas, havia o desenho de uma meiacircunferência que tapava o farol docaminhão. Este design da marca levouChico a cortar seus cílios na tentativade ficar mais semelhante com o novomodelo. Tal ato identificatório tevecomo efeito, além de se sentir a pró-pria “Miss Brasil”, uma insônia poralgumas noites.

O mais curioso dessa história eraa convivência desse sujeito com a po-pulação. Como caminhão, tinha umafunção própria a desempenhar nessegrupo. Chico vivia a carregar enco-mendas, como sacos de farinha, açú-car e sal. Atarefado nas entregas, fa-zia parte da paisagem sertaneja alabuta de seu percurso cotidiano, acarregar mercadorias nas costas. Casodemorasse a entrega, escutavam-secomentários como: “Vixe, o Chicodeve estar quebrado por aí!”. O quede fato acontecia. Alguns diziam queChico descuidava da manutenção;outros, que corria demais nas curvas.Contava-se um episódio em que foisolicitada a entrega de um saco deaçúcar. Chico não cumpriu o compro-misso assumido. Quando localizado,estava no chão, com as pernas paracima, em meio ao açúcar espalhado.A explicação foi então traduzida pelosujeito-caminhão: “Estou com um pro-

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bleminha aqui... Estava vindo em alta velocidade e bati em uma pedra, agora

estou com o pneu furado”.

A história de Chico Caminhão na cidade de Quixeramobim1

oferece uma ideia sobre a possibilidade de se ter pessoas “diferen-tes” no convívio natural de uma cidade. Até porque, sabe-se queeste fato aconteceu antes do exacerbamento do discurso científicosobre normatização e inclusão social. Chico participava do convíviocom as pessoas de sua cidade como o sujeito que queria ser cami-nhão. Este era seu jeito de estar no mundo, em uma singularidadeque não o excluía do coletivo. Os outros não se inquietavam comsuas diferenças, não buscando, portanto, que se desprendesse destecomportamento para igualá-lo à média das pessoas, em uma posiçãomais adaptativa. Era sua marca de subjetividade: Chico, o sujeito-caminhão, como Pedro, o marceneiro, ou Maria, a rendeira.

Contamos aqui esta história para introduzir a defesa de uma ideia,da relação sujeito/coletivo, ou melhor, subjetividade/laços sociais.Apontamos um discurso social como sustentador do lugar do sujeito.Nesta posição, o sujeito se configura em seu tempo/lugar, o que signi-fica mudança de processo de subjetivação com a época, produzindoefeitos nos laços sociais. As mudanças neste discurso possibilitam opensar em novos sujeitos, novos lugares sociais, outros lugares depertinência. Mas quando instituído, o discurso sobre o sujeito se pro-põe em uma existência atemporal. Dá a impressão de que os sujeitos esuas relações sempre existiram na forma contemporânea, de que nãofazem parte de uma construção histórica. Hoje em dia, nos pareceque o discurso sobre a loucura como algo a ser tratado por profissio-nais especializados sempre existiu. No entanto, a história de ChicoCaminhão nos mostra uma outra forma de episteme do sujeito, pelavia de sua inserção em uma historicidade. Hoje, Chico estaria medica-do, internado, tratado, já que deixaria de ser Chico Caminhão para serChico Maluco, nomeado não mais pelos parentes e amigos, mas pelodiscurso científico, instaurado como fonte de verdade absoluta.

Chico encontrava-se incluído no dia-a-dia das pessoas de suacomunidade de forma distinta da que uma criança “especial” encon-tra-se incluída em uma escola regular atualmente. A diferença deChico não era considerada uma patologia, não havendo então ne-cessidade de tratamento. Ele conseguia circular, conviver, ser requi-sitado, ser cidadão.

O que procuramos discutir neste artigo é a questão da inclusãoe exclusão no social contemporâneo, pautada num discurso norma-

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tizador sem maleabilidade. Um discur-so de igualdade na via totalitária, obri-gando todos a seguirem uma normade comportamento específica se qui-serem ocupar certo lugar social. Pode-se dizer o mesmo sobre certos dis-cursos sociais que nos falam dainfância. Nossa proposta é trilharuma reflexão sobre uma suposta in-questionabilidade da infância comotempo de brincadeira e educação,como preparação gradual para a vidade adulto. Pretendemos, neste arti-go, percorrer caminhos sobre a cons-trução de discursos sociais que nosfalam dos lugares dados às crianças:da não-existência de um sentimentode infância na Idade Média até a cen-tralidade dos pequenos na famílianuclear, da construção de uma liga-ção naturalizada da infância com umaeducação escolar que potencializas-se o seu desenvolvimento futuro, e,mais atualmente, de uma preocupa-ção em perceber as crianças comoatores sociais plenos desde cedo, comum questionamento de visões adul-tocêntricas anteriores.

Infância, historicidade edesenvolvimento

A Lei nº. 8.069, de 13 de julhode 1990, que dispõe sobre o Estatu-to da Criança e do Adolescente(ECA), explica em seu segundo arti-go: “Considera-se criança para os efeitosdesta Lei, a pessoa até doze anos de idade

incompletos, e adolescente aquela entre doze

e dezoito anos de idade.” A preocupa-ção com o desenvolvimento pleno doindivíduo aparece no terceiro artigo,que diz: “A criança e o adolescentegozam de todos os direitos funda-mentais inerentes à pessoa humana,sem prejuízo da proteção integral deque trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, to-das as oportunidades e facilidades, afim de lhes facultar o desenvolvimen-to físico, mental, moral, espiritual esocial, em condições de liberdade ede dignidade.” (1990, Art. 3).

Há, no Estatuto, uma ligação ex-plícita entre o desenvolvimento dascrianças e a educação escolar. Versasobre o direito à educação e é afirma-do no Art. 53: “A criança e o adolescente

têm direito à educação, visando ao pleno de-

senvolvimento de sua pessoa, preparo para o

exercício da cidadania e qualificação para o

trabalho.” Também é assegurado peloEstatuto o direito de igualdade emrelação ao acesso escolar e à obriga-ção de pais ou responsáveis pela ma-trícula de seus filhos na rede regularde ensino. O ECA (1990) estabeleceainda que “é proibido qualquer trabalho a

menores de dezesseis anos, salvo na condição

de aprendiz” (Art. 60).O ECA (1990) veio para garan-

tir, através da lei escrita, os direitosrelativos à infância e à juventude, vi-sando a inclusão social e o direito àcidadania. A ênfase do discurso so-bre a definição de infância e adoles-cência está fundamentada nos aspec-tos desenvolvimentistas. A cronologia

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de tempo de ser criança e entrar naadolescência, e também de tempopara se tornar adulto é delimitadapela lei. Esta também afirma a obri-gatoriedade dos adultos no assegu-ramento de condições para o desen-volvimento pleno deste sujeito. Estaproteção, marcada na modernidadepor leis, nos coloca um percurso deindagações: Porque essa obrigação,garantida por lei, de que toda crian-ça esteja na escola? Sempre houveessa ligação entre desenvolvimentopleno do indivíduo e escolas? E, pararesponder a estes questionamentos,torna-se necessário um breve estudosobre a história da infância. Vamossituar o momento do surgimentodesta configuração, que tem comoefeito os cuidados à infância.

Autores como Colin Heywood(2004), Jurandir Freire Costa (2004) ePhilippe Ariès (1986) afirmam que afascinação pelos anos da infância é umfenômeno um tanto recente, que sur-giu através de uma construção histó-rica. É na modernidade que infânciae desenvolvimento estabelecem umarelação intrínseca entre si. Em deter-minada época da história, a infânciapassa a se configurar como um mo-mento especial, diferente da vida adul-ta e na qual as crianças são percebidascomo seres frágeis e moldáveis, ne-cessitadas de cuidados e proteção, es-tando ainda em processo de desen-volvimento físico, moral e intelectual.Os autores supracitados formulam ahistória da família nuclear moderna,

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com uma nova configuração de lugares em relação à família medie-val. Na nova ordem, a criança tornou-se o centro da instituição fa-miliar. Passa a ocupar a posição de valor central na família, que naIdade Média era do patriarca. O conceito de infância é posicionadoem uma historicidade.

Na Idade Média, o tempo de infância descrito por Ariès (1986)reduzia-se ao período em que a criança era muito pequena, necessi-tando dos cuidados provindos dos adultos para sobreviver. Mas aoadquirir uma autonomia básica, passava a ter funções semelhantes ados outros indivíduos, guardadas as devidas capacidades. Passa en-tão, a realizar pequenas tarefas no cotidiano da casa, como aprendizdos mais velhos.

Costa (2004) também aponta estas condições no período doBrasil colonial. As crianças tinham um papel secundário nas famí-lias. O filho que importava era o filho adulto, que pudesse cuidar daspropriedades familiares e reproduzir as tradições seculares. As crian-ças não tinham especificidades relacionais, habitando uma convi-vência comum junto aos mais velhos. A expectativa era de que ocu-passem o mais cedo possível a posição de adultos, tanto em relaçãoao comportamento quanto ao cumprimento de tarefas.

A Tradição orienta a formação de vínculos na família antiga. Ochefe de família tinha valor social como patriarca na sustentação ereprodução dos bens materiais herdados de seus ancestrais, sendo oguardião do patrimônio. Na sociedade colonial, a missão da família,mais especificamente do patriarca, era proteger as propriedades dosancestrais e assegurar o lugar de senhores, pois os que não possuíamestas propriedades eram servos ou escravos. Assim, o papel mascu-lino era o de protetor e patrão da família, com seu saber sustentadopela Tradição. Seu poder é legitimado, estando os outros membrosfamiliares em função deste patriarca.

Os laços afetivos entre pais e filhos não eram necessários nestavida regida pelos costumes. Vários autores que tratam dos laços so-ciais antigos apontam que o sentimento familiar circula na posiçãode manutenção de patrimônio. Desta maneira, a afetividade entrecônjuges e entre os pais e os filhos não era necessária à existêncianem ao equilíbrio da família. Os cuidados com os pequenos ficavama cargo de amas de leite, que permaneciam com estas até que tives-sem independência suficiente para funcionar no meio familiar. Issodesde que sobrevivessem a este primeiro período de fragilidade, jáque era alto o índice de mortalidade infantil. Os relatos extensivos

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sobre as crianças da família medieval contam de sua permanência nacasa patriarcal até os sete ou nove anos. Após essa idade, os peque-nos eram encaminhados como aprendizes para outras casas. Tinhamcomo tarefa aprender o serviço doméstico e servir a um mestre. Aeducação era realizada na convivência do cotidiano junto aos adul-tos. Aprendiam o que se esperava deles na circulação dos afazeresjunto aos mais velhos.

Havia uma inexistência de direcionamentos específicos às cri-anças, não voltados a uma capacidade de entendimento singular, jáque não havia um reconhecimento de limitações existentes em eta-pas do desenvolvimento infantil. Portanto, ainda não existia a ideiadesenvolvimentista na constituição do sujeito, ou seja, de infânciacomo uma idade de preparação para a vida adulta.

Heywood (2004) é um autor que se baseia na sociologia infantilatual para afirmar que a infância é uma construção social, que pode sercompreendida de formas distintas nas diferentes épocas e sociedades.Segundo Heywood (2004): “Atualmente, no ocidente, acabamos real-mente por associar a infância, em termos gerais, a características comoa inocência, a vulnerabilidade e a assexualidade, enquanto pessoas emlugares como, digamos, as favelas da América Latina ou as regiõesdevastadas pela guerra da África, não o fariam.” (p. 12).

A defesa deste autor é de uma infância entendida como qualidadetemporal, situada em um contexto social e cultural. O autor consideratambém que a possibilidade de saber sobre a história do sentimentode infância é dificultada pela ausência de material a ser estudado, su-pondo que os artefatos específicos do mundo infantil pouco sobrevi-veram. Além disso, a documentação possível sobre o tema vem, naIdade Média, da classe letrada, geralmente aristocracia ou religiosos, jáque a grande massa camponesa permanecia analfabeta.

Os autores divergem sobre a existência de um sentimento deinfância neste tempo. Ariès (1986) afirma sua não-existência pelaindistinção entre criança e adulto, em uma época de ausência de par-ticularidades designadas ao sujeito dos primeiros anos de vida.Heywood (2004), de outra forma, sugere que esse sentimento eraapenas percebido de forma diferente. Sustenta que sempre houveuma diferenciação entre adultos e crianças, mas que as formas dessadiferenciação mudam no espaço e no tempo. Assim, essas noções defragilidade e inocência infantis são específicas de certos períodos emalguns lugares, e o fato da não-valorização do tema pelos autoresmedievais aconteceria por uma posição diferente frente ao entendi-

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mento de como um indivíduo se de-senvolve até a vida adulta.

Para os medievais, os primeirosanos de vida não teriam relação como posterior caráter adulto. Não há,neste período, uma ideia desenvolvi-mentista relacionada ao sentimento deinfância. Heywood (2004) coloca quea natureza das crianças na Idade Mé-dia seria determinada por sua classe egênero, e não pelas experiências indi-viduais. Dessa forma, acreditava-seque “se um menino de origem nobre viesse a

ser adotado por camponeses ou comerciantes,

sua verdadeira natureza viria à tona, à me-

dida que ele, inevitavelmente, reagisse contra

um ambiente inadequado” (p. 52).A necessidade de proteção e edu-

cação moral para as crianças surgiujuntamente com o reconhecimento deuma evolução no desenvolvimentodos sujeitos, prevendo que as expe-riências individuais de uma criançainfluenciariam na vida adulta. Reco-nhecimento este que pôde ser reali-zado a partir da modernidade, com anoção de indivíduo. Foi a partir destanova configuração relacional que oadquirido ganhou espaço em relaçãoao inato. As elites voltam sua atençãoà criação dos jovens, procurando ori-entações proporcionadas por mora-listas. Na tentativa de entender essaleitura desenvolvimentista na infância,é necessário que discorramos sobrealgumas mudanças que ocorreram nassociedades ocidentais desde a épocamedieval até a modernidade.

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Passagem para a Modernidade: a mudança dediscurso

Os discursos sociais que regem os laços e organizam as rela-ções são orientados pelo saber vigente. Façamos um percurso dosaber teológico ao científico. Esta mudança de leitura do mundopode ser produzida a partir do momento em que um discursosustentador passa a sofrer questionamentos, implicando na quebrado saber monolítico, e assim começando a apresentar fissuras, dan-do passagem a uma nova configuração no olhar sobre a civilização esuas formas de orientação.

Na Idade Média, o pensamento vigente era marcado pelodogmatismo religioso, através do qual tudo se explicava pela vonta-de divina. O cristianismo vinha se consolidando na Europa desde oséculo IV. As respostas estavam todas dadas pela ideia de que a vidaera comandada por Deus, e assim os sujeitos não precisavam mo-ver-se em busca de uma verdade própria. Figueiredo (2002) afirmaque, durante o século XVI, as margens e fronteiras eram nítidas e asidentidades duráveis. Era um mundo fechado, não havendo lacunasou vazios, e as experiências eram preenchidas de sentido e valor. Omundo estava posto, e o que rompia suas barreiras era entendidocomo pecado.

A economia feudal também não dava espaço para uma mobili-dade social. Os sujeitos nasciam dentro de uma classe e nela ficavampor uma questão de ancestralidade. Portanto, nessa época, uma ge-ração passava à outra sem muitas mudanças, seguindo os passos dosseus antecedentes, mantendo a mesma ocupação e posição social.

No século XVI, o saber científico que começa a ser sistemati-zado, começa a indagar o saber teológico, sustentador até então daposição do homem no mundo. Fissuras vão se abrindo junto com asgrandes navegações, que trouxeram um grande aumento do comér-cio entre os povos. Esta possibilidade de trocas interculturais au-menta as veias abertas da teologia, sopra novos ventos a favor dainstalação de um outro olhar.

Entre o século X e o fim da Idade Média houve uma grandeexplosão demográfica na Europa. Este aumento populacional foigarantido pela segurança contra invasores e pelo crescimento docomércio. Embora a ordem social permanecesse fixa, novas profis-sões surgiam: além dos padres, guerreiros e camponeses, passam a

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existir advogados, contadores, artesãos, funcionários administrati-vos, entre outras.

Figueiredo (2002) afirma que, no final da época medieval, exis-tia um sentimento de horror às margens, visto que as fronteiras tra-ziam sempre algo de novo, como o contato com formas bem dife-rentes de alteridade. Este horror tenta sustentar um saber conhecido,mas já exaurido. Afirma, pela resistência, a instalação de um novosaber. A mistura das civilizações trouxe a ideia de contágio, e a civi-lização cristã sentiu-se então ameaçada. Os clérigos passaram a fa-zer um trabalho de reforço da identidade da cultura europeia. Osconversos e os hereges constituíam-se em ameaça. Os primeirosporque corriam o risco de não ter entrado inteiramente no autênticocristianismo. Os segundos por serem transgressores de limites. Adefesa contra estes males foi, por um lado, o fanatismo intolerante epuritano, representado no movimento da Inquisição, levando osconsiderados hereges à fogueira. Por outro, a busca por novas for-mas de relacionar-se com a ideia de Deus. Dessa forma foram aber-tas as portas para a grande Reforma protestante.

A Reforma protestante do século XVI surgiu para preencher operigo de uma ausência de sentido e as ameaças de aniquilamento edestruição das identidades. Martinho Lutero (1483-1546), um dosreformadores, defendia uma liberdade maior na experiência religio-sa, uma vivência individual da fé, um contato direto do homem comDeus. Em um mundo pleno de sentidos, não seria necessário sepropor uma reforma, como não existia mobilidade social, as pes-soas não se questionavam sobre sua identidade, tudo estava dado: ascrianças seguiriam a profissão do pai e assim sucessivamente. Nãoera preciso pensar sobre o futuro ou sobre a importância dos peque-nos quando o que importava já estava escrito pela vida dos antepas-sados. No entanto, a insatisfação com o modo vigente de pensar omundo abriu questionamentos, na busca de um novo ordenamentodas ideias políticas, religiosas e culturais. Com a Reforma surgiramideias que tentavam dar sentido à forma que o homem deveria serelacionar com o mundo e com sua liberdade, mas as explicaçõesteológicas já não satisfaziam à curiosidade do homem. Abriu-se es-paço para uma concepção diferente, que se relacionasse com a ob-servação empírica do mundo. As ideias abriram um percurso emdireção a verdades científicas, estabelecendo o primado da razão.

René Descartes (1596-1650), filósofo que dedicou seus estudosà produção de um método que seria capaz de eliminar todos os

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preconceitos, contribuiu para essa re-volução no pensamento humano.Descartes só acreditava na razãocomo fonte de verdade, ou seja, comoconstrução de saber. Na busca de umaciência universal, uma verdade abso-luta, chegou a duas regras de opera-ção mental necessárias para a aplica-ção do seu método. Uma, a intuição,iluminada unicamente pela luz da ra-zão. Outra, a dedução, que seria a afir-mação da verdade de uma proposi-ção em decorrência de outros fatostidos como certos. A aplicação corre-ta dessas duas regras de pensamentoficou conhecida como Método Car-tesiano.

O Discurso do método (Descartes,1983), foi o trabalho que mudou a his-tória da filosofia. Nele, o autor des-creveu minuciosamente como desen-volveu seu pensamento e expôsdiversas ideias que foram atingidaspelo seu método. Ele nos mostracomo é possível, em um exercício darazão, destruir todas nossas crençassobre o mundo que nos rodeia se nosguiarmos por uma dúvida reflexiva epersistente. Assim chega a uma únicacerteza: o ato de pensar. Para esse fi-lósofo, só isso provaria sua existên-cia. Descobrindo que é possível duvi-dar de tudo, Descartes acaboulevantando questões sobre a própriaexistência de Deus.

Junto a Descartes, Francis Bacon(1561-1626), um dos fundadores daciência moderna com o empirismo eestudos filosóficos sobre a metodo-logia científica, desenvolveu à sua

maneira projetos de “cura da mente”,resultando em uma rachadura na sub-jetividade do homem moderno. Deum lado, a confiável e previsível ‘ob-jetividade’, de outro a volúvel, isoladae privatizada ‘subjetividade’. Acredi-tava que, retirando-se as fontes devariações existentes no homem poder-se-ia ter a constituição do sujeito epis-têmico com verdadeiras condições derepresentação do mundo. A divisãocartesiana do sujeito entre corpo emente impulsionou ainda as expe-riências ligadas à fisiologia e à anato-mia, que agora podiam dispor de ca-dáveres para seus estudos, já que a“alma” não estava mais inseparáveldo corpo.

John Locke (1632-1704) contra-põe o empirismo ao racionalismo deDescartes, pois baseava o conhecimen-to da verdade por meio da experiência(sensação, prazer, interesse). A burgue-sia, camada social que se destacava peloseu crescimento econômico e político,tem parte de suas ideias representadasno empirismo, pois buscavam umapossibilidade de mobilidade social ba-seada nas experiências de vida e nãona ideia de lugares predeterminadospor uma ancestralidade nobre. Em re-lação à infância, é importante ressal-tar que Locke trouxe a imagem dacriança como sendo uma “tábula rasa”.Tal ideia ia contra a doutrina do peca-do original e reforçava a importânciada educação na formação do caráteradulto.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) vai adicionar a esta ideia de in-

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fantil, a inocência original das crian-ças, o que a coloca padecendo nasmãos de uma sociedade contaminadapelos preconceitos e autoridades. Suateoria, apontando para uma infância“pura” e que não deve ser contami-nada pelos adultos, influenciará maistarde a pedagogia moderna (conheci-da como “escola nova”, em contra-posição com a pedagogia tradicional),já colocando que as crianças devemser educadas de modo mais livre, ex-perimentando seus sentidos e emo-ções infantis, e não de forma tão re-grada pelos adultos.

Já na segunda metade do séculoXVII, o Iluminismo surge como ummovimento intelectual que tinha a ra-zão e a ciência como forma de se com-preender o mundo. A defesa doracionalismo toma tal extensão que oséculo XVIII denomina-se o “séculoracionalista”, o momento em que, pelaprimeira vez, o sol da razão iluminoua humanidade, até então envolta nastrevas da fé e da autoridade. Osiluministas acreditavam que somentepela razão se poderia explicar as coi-sas do universo. A ciência passa a serconsiderada como o único meio paraalcançar os fins humanos, em umaconfiança absoluta na razão, engen-drando uma nova mentalidade huma-na. Para os iluministas, cada um teriao dom de pensar por si mesmo, e asideologias não deveriam mais falarpelos homens.

A ciência moderna pôde surgirquando a ideia de Deus perdeu suasoberania, deixando o espaço aberto

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para uma verdade a ser produzidapelos próprios sujeitos. Como se podeperceber, na modernidade houve umdeslocamento da verdade, de um ex-terior (Deus) para uma interioridade(indivíduo). Chauí (2002) explica aconsiderável contribuição de Imma-nuel Kant, no século XVIII, para aciência e para a filosofia. Foi Kant(1724-1804) quem enfatizou a impor-tância de todo filósofo conhecer, an-tes de tudo, a razão, e o que ela podeou não conhecer, para depois voltar-se sob a realidade e os objetos de co-nhecimento. Para este filósofo a ra-zão é uma estrutura inata a todos osindivíduos, não é adquirida pela ex-periência, e por esse motivo é anteri-or ao contato com o objeto de conhe-cimento. Dessa forma, a razão temcomo função, regular e controlar asensibilidade e o entendimento dohomem para que este possa apreen-der os conteúdos de sua experiência.

O racionalismo kantiano colocoumais ainda a razão no centro do pen-samento humano, contribuindo paraessa ideia de um sujeito laico, separa-do de Deus. Dessa forma, a base parase chegar ao conhecimento passa a sefundamentar exclusivamente na razãoe na ciência. Deus perde esse lugarfundamental para a compreensão domundo, dando lugar ao homem comoo centro do universo. Nessa mesmaépoca surge a burguesia com novosvalores e novos questionamentos. Oefeito é uma mobilidade social quedesconstruirá as formas de laço sus-tentadas por tantos séculos.

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O Iluminismo, ao propor a liber-tação econômica, intelectual, e social,retirando o sujeito da escuridão, ins-pira os ideais da Revolução Francesa.As ideias iluministas de liberdade,igualdade e fraternidade passaram afundamentar os laços da sociedadeocidental. O contrato social do Esta-do Moderno coloca todos em umamesma posição lógica juridicista, onde“a lei é igual para todos”. Enfatiza aideia de que todos teriam as mesmasoportunidades.

A constituição da subjetividademoderna sofre influência desse pro-cesso de conquista da liberdade que éimpulsionado pelas ideias iluministas.Essa nova visão de mundo envolvia aideia de que o sucesso na vida depen-deria exclusivamente da ação de cadaum e não de uma vontade divina. ComDeus fora de cena, o indivíduo teriaque fazer suas próprias escolhas, ten-do que voltar-se para suas experiên-cias pessoais.

Dessa forma, é somente na mo-dernidade que a noção de indivíduopôde emergir como categoria de sub-jetivação. E essa noção deu espaço auma preocupação com a interiorida-de, já que, em vez de buscar as res-postas em Deus, todos deveriam vol-tar-se para si mesmos. Portantotornava-se necessária uma educaçãodesde a infância, que preparasse ascrianças com base em experiênciasindividuais para uma vida adulta mo-ralmente saudável. Ferretti (2004) afir-ma que “a ideia de que a criança não é um

adulto em miniatura, mas um adulto em

potência, mostra a crença e a esperança de

que haja uma saída, pois a educação impli-

ca numa transformação” (p. 39).Nesse contexto da valorização e

do respeito ao que é privado, as expe-riências mais íntimas e singulares dosindivíduos assumem um novo valor erecebem formas diferentes de expres-são. Na Europa ocorre uma valoriza-ção da dinâmica familiar. Desde o es-paço geográfico, com a separação doscômodos da casa em espaços priva-dos, até aos aspectos relacionaisenfatizando a importância que se pas-sou a atribuir à mãe e à criança. Con-sequentemente, a infância passa a sertomada como um importante perío-do de subjetivação. Todas essas ques-tões estão relacionadas com as novasformas de cuidados de si que modifi-caram as relações mais íntimas dohomem moderno. Neste momento oque interessa é enxergar mais além.Agora, a subjetividade privada seexterioriza e passa a ter uma novaimportância. Essa privacidade vai abrirespaço ao que é mais íntimo do ho-mem, o ‘psicológico’.

A partir do século XIX, a ciênciapassou a influenciar diretamente ocomportamento social. Costa (2004)traz a ideia de que a ciência modernapassou a ser utilizada como estratégiada política para disciplinar a popula-ção. Segundo Foucault (1987), namodernidade surge a disciplina comoum método que permite o controleminucioso sobre as operações do cor-po dos indivíduos, realizando a sujei-ção constante de suas forças e impon-

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do a relação obediência-utilidade. A disciplina marcou uma mudan-ça no eixo da individualização. Na sociedade feudal, não havia mo-bilidade social e a propriedade de terra indicava riqueza, autoridadee poder. O nome da família e sua genealogia situavam o indivíduoem relação aos seus parentes, e seus feitos eram imortalizados atra-vés dos relatos. Nessa época, a individualização se dava de modo“ascendente”, tendo como ponto de referência os ancestrais queeram marcados por suas proezas. Na disciplina, a individualizaçãose dá de forma “descendente”: o poder é exercido de cima parabaixo, de modo silencioso. Desta forma, ele tem efeito sobre oshomens, individualizando-os através de suas fiscalizações e de suasobservações permanentes, tendo como ponto de referência a “nor-ma”, que é marcada pelos desvios.

Foucault (1987) ressalta ainda que a disciplina trouxe a ideia delinearidade do tempo, de que o tempo seria evolutivo, no sentido deque o passado determina o presente, que determina o futuro. Estesaber, aplicado ao ser humano, traz a preocupação com a constitui-ção do sujeito, já que a infância passa a ser entendida como umaetapa da vida que influenciará na idade adulta. A temporalidade dis-ciplinar coloca infância e idade adulta como uma continuidade. Acriança entendida como matriz do adulto justifica o uso de técnicasdisciplinares na infância, pois estas seriam necessárias para geraradultos disciplinados.

Costa (2004) explica que a medicina higiênica, no século XIX,utilizando-se de técnicas disciplinares, encontrou espaço de inter-venção junto às famílias, devido à preocupação com a alta taxa demortalidade infantil e com as epidemias que dizimavam a popula-ção. Estes fenômenos foram atribuídos pelos higienistas aos mauscuidados das famílias para com as crianças e a condutas familiaresanti-higiênicas. O autor fala de uma pedagogia médica que, valendo-se das precárias condições de saúde, passou a impor às famílias umaeducação física, moral, intelectual e sexual. A antiga tradição queditava a maneira de agir das famílias, dando prioridade à vida adultae esquecendo-se das crianças, havia de ser combatida. Os fracos la-ços afetivos entre pais e filhos seriam a causa da mortalidade dospequenos. Corpos mal cuidados, física e moralmente, seriam culpa-dos pela propagação de doenças. Desta forma, a higiene, ao alterar operfil sanitário da família, modificou também sua feição social. Con-tribuiu, junto com outras instâncias sociais, “para transformá-la na ins-

tituição conjugal e nuclear característica dos nossos tempos” (p. 12).

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A família higienizada traz umpapel essencial para todos os mem-bros. Ao pai cumpre trabalhar e su-prir materialmente o lar, deixando desugar o trabalho escravo. A mãe pas-sa a ter a função de cuidar e educar osfilhos pequenos, não os deixando nasmãos de uma ama de leite; e às crian-ças cumpre servir não mais à famíliae ao poder paterno, mas à nação e àsociedade. Saindo da tradição familiar,o que a ordem médica produz é umanorma familiar. Com a perda dos an-tigos valores, resta à família buscar oauxílio de especialistas que revelemseus excessos e faltas. Os agentes denormatização são encarregados entãode reeducar as famílias, disciplinandoseus membros.

Além do trabalho no interior doslares, para haver um controle dos cor-pos na sociedade, os indivíduos deve-riam ser fixados em lugares de fácilreconhecimento mediante a criação delocais físicos e sociais, nos quais todaa população pudesse ser observada ese observar mutuamente. A ideia deutilidade é prioridade em uma socie-dade disciplinar. Todos devem ter umafunção, tudo deve remeter a uma or-dem. Foucault (1987) fala de um“quadriculamento disciplinar”, quecoloca “cada indivíduo no seu lugar; e em

cada lugar, um indivíduo” (p. 123). Pos-sibilitando saber como e onde encon-trar cada um. Mais ainda, saber o quecada um está ou deveria estar fazen-do no momento. Assim, para acabarcom o caos da sociedade medieval,tornando seus membros úteis e obe-

dientes, são criados lugares sociais queamarram os sujeitos em um funcio-namento específico, além de uma pa-dronização de comportamentos ade-quados à saúde e à felicidade. E dessaforma, a responsabilidade pela saúdeda população passa a ser de todos,sendo que cada um deveria estar vigi-lante em relação ao seu próximo, re-primindo comportamentos que fugis-sem dos padrões higiênicos.

Bons hábitos de disciplina deve-riam ser trabalhados. Desta forma, oprimeiro alvo desta educação higiêni-ca seriam as crianças, seres aindamoldáveis em seu desenvolvimento.A ideia de preocupação com a infân-cia surge então desta separação entreindivíduos frágeis, que deveriam serprotegidos de más influências morais,e adultos, já impregnados por maushábitos. Como foi dito, a prevençãona infância geraria adultos disciplina-dos, que então poderiam tomar as ré-deas de suas vidas novamente, sendoque agora uma vida higienizada.

A infância, antes reduzida à ida-de em que as crianças eram totalmen-te dependentes, foi ampliada e sepa-rada do meio adulto, dando um tempomaior para que os pequenos se pre-parassem para uma vida futura mo-ralmente saudável. A partir daí a or-ganização familiar começou a girar emtorno das crianças, e a mortalidadeinfantil passou a diminuir. Ressaltan-do que, segundo Heywood (2004), apreocupação com o futuro das naçõesemergentes trouxe a necessidade dese cuidar da saúde, da educação e da

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moral das novas gerações. No séculoXIX, fortaleciam-se as grandes naçõese surgia a ideia de população comoriqueza demográfica de um país. Avida e a saúde da população serviriamassim ao bem da nação. E dessa ma-neira, a política teria de se ocupar dodesenvolvimento dos indivíduos.

Os padrões de boa conduta higi-ênica foram estabelecidos pelos mé-dicos como o caminho a ser seguidopara alcançar a saúde do corpo, o pro-longamento da vida e da felicidade.Aqueles que não seguissem esses pa-drões continuariam sofrendo comepidemias e mortalidade. Costa (2004)afirma que a intervenção dos higie-nistas se deu principalmente com asfamílias de elite, pois era necessárioque existissem ainda os exemplos deantinorma, famílias infratoras da hi-giene médica e que por isso sofreri-am as consequências: os escravos emiseráveis.

A higiene pública vai levar emconsideração as classes sociais paratratar os indivíduos. Uma mulher daalta sociedade terá direito a todos oscuidados, enquanto a mulher pobreserá tratada de acordo com as “regrasda vida”. Quando a normatização doscomportamentos aparece, os que seconformam e se adequam, reprodu-zem-na, e os que se rebelam servemde antinorma, justificando uma re-pressão. A norma produz então tantoconformistas quanto delinquentes. Ahigiene buscava um corpo forte, se-xual e moralmente regrado, e em con-traposição com este corpo higienizado

precisavam existir exemplos decorrupção que demonstrassem aindamais a necessidade da regra. Visto quea família era percebida como um fa-tor patogênico pelos higienistas, oscolégios passaram a ser o lugar de pre-ferência para os educandos. Assim, oensino tornou-se uma forma de iso-lar as crianças durante seu período deformação moral e intelectual.

Escola como o lugar socialda infância

O surgimento das instituiçõesescolares está intimamente ligado àcriação da infância, tornando comum,na configuração da modernidade, afrase “lugar de criança é na escola”.Ou seja, entende-se que o lugar dainfância na sociedade ocidental passanecessariamente por uma educaçãoescolar.

Ariès (1986) nos conta que, apartir do século XV, as relações fami-liares foram mudando. Os pais já nãomandavam seus filhos para outras ca-sas como acontecia na Idade Média.A escola, que antes era reservada so-mente aos clérigos, tornou-se um ins-trumento de iniciação social, quemarcava a passagem da infância paraa vida adulta. Isso aconteceu porqueos educadores acreditavam que umrigor moral era necessário a fim deque as crianças resistissem às tenta-ções do mundo adulto e pudessempreservar sua inocência. Começava a

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surgir a ideia de etapas de desenvol-vimento com a noção da possibili-dade de moldar os indivíduos aindapequenos para que se tornassemadultos saudáveis.

Além disso, com a valorização doinfantil e com a inclusão da afetividadenos laços familiares, os pais começa-ram a se preocupar com seus filhos equeriam mantê-los mais próximos,passando também a se preocupar comsua educação e sua carreira. Apesarde se afastarem da família no períodoescolar, esse distanciamento era dife-rente do ocorrido na Idade Média,pois os pequenos voltavam para casaao término dos estudos. Os pais co-meçaram a requisitar escolas mais pró-ximas de suas casas para que seus fi-lhos não precisassem ficar longedurante muito tempo. A civilizaçãomoderna é então marcada pelo esta-belecimento da escola como forma deeducar. Então, a educação toma lugarde pertinência social infantil, ou seja,de inclusão.

Entre o fim da Idade Média e osséculos XVI e XVII, a educação ain-da era marcada pelos tratados de cor-tesia, pelas regras morais, pois o mun-do adulto se transmitia através doscontatos humanos e das conversações.O que existia era um sistema de apren-dizado familiar, caracterizado por umgrande conservadorismo, passandotradições de geração em geração, atra-vés da experiência dos mais velhos.Heywood (2004) lembra que as esco-las começaram a isolar as crianças domundo adulto a partir dos séculos

XVI e XVII, mas que entre as classeseconômicas inferiores, o tipo de edu-cação familiar permaneceu sem mu-danças até o século XIX.

Somente a partir do séculoXVIII, a família começou a se confi-nar em um espaço limitado e a se dis-tanciar da sociedade. A casa se tor-nou um lugar de defesa contra omundo. A cisão público/privado ga-rantia certa liberdade de comporta-mento para indivíduos dentro de umambiente específico: sua própria casa.As modificações na arquitetura pos-sibilitaram a independência dos cômo-dos através de um corredor de livreacesso, valorizando mais ainda a indi-vidualidade. A família se reduziu aospais e às crianças, permitindo umaintimidade cada vez maior. Os cria-dos, os amigos e os clientes ficaramfora da reorganização da casa e de seuscostumes devido à criação de espa-ços determinados. A saúde e a educa-ção passaram a ser as duas maiorespreocupações dos pais em relação àscrianças, bem como a igualdade entreos filhos, pois a desigualdade passoua ser considerada uma injustiça into-lerável. Esse ideal de igualdade, comojá foi dito anteriormente, surge comas mudanças sociais ligadas ao Ilumi-nismo.

Ainda no século XVIII, surgiramos primeiros sistemas nacionais deeducação na Europa. Os educadores,seguindo os ideais iluministas, acredi-tavam na redução da criminalidade, namaior produtividade dos trabalhado-res e na introdução de valores morais

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por meio da educação. Igualdade deoportunidades passou então a serequiparada com a educação escolar.O lugar da infância passou a ser a es-cola, na qual a disciplina desde cedotraria o adestramento do corpo, noespaço e no tempo, a regulação dosexo e o aprendizado intelectual emoral, buscado pelos higienistas.

Ariès (1986) afirma a disciplinarigorosa como a marca de diferençaentre o ensino medieval e o do colé-gio moderno. A arquitetura dos co-légios se organiza dentro dessa ordemdisciplinar moderna, com a qual oprofessor consegue ver todos os alu-nos da sala devido à disposição dascadeiras, e assim pode passar tarefassimultâneas, permitindo uma novaeconomia do tempo na aprendizagem.A ideia desenvolvimentista passouentão a ser colocada em prática nassalas de aula, separando-se os alunospor faixa etária. Antes esta economianão era possível, pois, até o século XV,os alunos ficavam misturados, inde-pendente de sua idade e de seu grau.

Na Idade Média, os alunos eramseparados no máximo por grau deinstrução, não importando suas ida-des. Somente a partir do século XIX,com a linearidade do tempo aplicadaao desenvolvimento humano aconte-ceu a homogeneização das salas deaula por faixa etária. O aprendizadogradual de acordo com o desenvolvi-mento infantil se tornou importantepara evitar o risco de contaminaçãomoral dos mais novos pelos mais ve-lhos. E, a partir daí, pôde surgir tam-

bém a noção de um mestre para umgrupo de alunos em um determinadograu. O que havia então era uma no-ção de fragilidade das crianças meno-res, trazendo um sentimento de res-ponsabilidade moral dos mestres paracom a infância, pois a ideia era que “o

novo homem e a nova sociedade começariam

a ser construídos no colégio” (Costa, 2004,p. 181).

O tempo também passou a serritmado pela e para essa ordem, sen-do tudo fixo: hora de acordar, de co-mer, de estudar, de se exercitar e atéde descansar. O lazer ganha espaçocomo obrigação higiênica para com asaúde, como descanso do trabalho.Foucault (1987) afirma que, ao fixaro tempo, pretende-se garantir sua qua-lidade, pois esse controle ininterruptocertificará sua utilidade. Costa (2004)coloca que o surgimento dessa noçãode utilidade do tempo possibilitou queele fosse, a partir de então, desperdi-çado com o ócio. Defende que foi ahigiene médica que preparou o terre-no para a regulamentação do progres-so intelectual na sociedade brasileirapós-colônia. Ariès (1986) ressalta que,na Europa, ainda no século XVIII, otrabalho de moralização realizado pelaIgreja, pelas leis e pelo Estado, já es-tava envolvido com o movimento daescolarização. O primeiro afirma umainfância “reduzida” aos colégios, en-quanto o segundo aponta um “en-clausuramento” das crianças a partirda modernidade. Ao se criar umaépoca de estudos obrigatórios, umadivisão clara entre adultos e crianças

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pode ser percebida: separaram-se osque trabalham dos que apenas estu-dam. As crianças são retiradas domundo do trabalho para se prepararpara a vida adulta, tornando assim aescola o lugar de pertinência infantil.“Lugar de criança é na escola”. Retidasna escola, podem se especializar paraseguir uma carreira e futuramente fa-zer parte da vida social.

Heywood (2004) ressalta que asfamílias camponesas se interessavampela educação dos filhos, mas de umaforma diferente do Estado. E assimcomeça o que o autor se refere comosendo uma “ditadura educacional”:“observadores aristocratas na Euro-pa costumavam se referir à ‘hostilida-de’ ou ‘indiferença’ dos pais com re-lação à educação, sugerindo, no séculoXIX, que a nova classe trabalhadoraera incapaz de criar seus filhos de for-ma responsável. A implicação dissoera de que as escolas e seus professo-res teriam de assumir algumas dessasfunções” (p. 214).

As escolas passam então a assu-mir funções que eram da família, su-gerindo um efeito benéfico na sepa-ração entre crianças e adultos. O autorafirma que a legislação educacionalveio “de cima para baixo” e “a noção

de que os pais eram os melhores juízes dos

interesses de seus filhos acabou por ser sobre-

pujada nessa esfera” (p. 215). SegundoCosta (2004), o Brasil vivia um perío-do semelhante, mas a educação aindaestava voltada para a aristocracia bra-sileira. Neste período, o Brasil estavacomeçando a educar sua elite, base-

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ando-se nos ideais europeus de edu-cação. Somente no final do séculoXIX surgiram as primeiras crechespara os filhos de escravas livres, e es-tas não foram instituídas como umdireito da criança, mas como uma aju-da para os pais a fim de que eles pu-dessem trabalhar.

No século XX, no mundo oci-dental em geral, várias determinaçõesforam estabelecidas por especialistasem tais assuntos, por meio de conhe-cidas organizações internacionais queconsideramos importantes e que nosdizem como as crianças devem sercuidadas (UNICEF, OIT, OMS etc.).Mesmo no Brasil e em outros paísesque sofram com uma desigualdadesocial mais acentuada, nos quais essaseparação criança/família é mais con-fusa, permeada por questões de sus-tento de casa e de cuidado com os ir-mãos menores enquanto os paistrabalham, a norma é a escolaridadeobrigatória com currículos escolhidose generalizados por especialistas.

A escola tornou-se o lugar idea-lizado da infância. Tem como objeti-vo a transmissão dos valores e dosconhecimentos da cultura, possibili-tar a formação de vínculos e permitirque o sujeito se posicione como umcidadão. A criança que não estuda estáfora da norma e, consequentemente,é desqualificada, perdendo sua carac-terística infantil. Não será mais cha-mada de criança, mas sim de “mirim”,“menor”, “menino de rua”, “porta-dor de deficiência”, entre outras de-nominações.

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As ideias expostas neste artigo, em uma proposta de subjetivi-dade/laços sociais no campo da historicidade, mostram como o dis-curso social encaminha a infância para a escola. Ao configurar apertinência social da criança no âmbito escolar, apontamos a ideiacontemporânea “lugar de criança é na escola”, como fator de inclu-são/exclusão.

O mundo atual, diferente do que antecedia às grandes nave-gações, se configurou como multicultural. As diferenças trouxe-ram e trazem ainda inquietações. Curiosamente, a forma de lidarcom isso foi a busca pelo padrão, a normatização e a exclusão,sustentados pelo discurso científico que se comprometeu com umamegalomania, em uma proposta de trocar Deus pela razão. Adialética igualdade/diversidade que se instalou no contato com osnovos mundos, povos, religiões e culturas, além da construção dassingularidades ao se tomar na modernidade o sujeito como priori-dade, busca pelo discurso científico uma inclusão a qualquer pre-ço, que na verdade gera uma exclusão mascarada. Incluir uma cri-ança considerada diferente do normal em uma escola não é apenasmatriculá-la e escolher uma sala de aula. É necessário um trabalhopara que ela faça parte daquele grupo, daquela escola. Um trabalhomuitas vezes criterioso, pois será necessário modificar algumasnormas da sala ou até mesmo da instituição para que seja possívelessa inclusão. Ao não se repensar no funcionamento das institui-ções, as crianças são matriculadas na escola, mas não fazem parteda mesma, e é comum se ouvir de crianças com necessidades espe-ciais que passam a manhã no pátio da escola, separadas das outras.Elas continuam excluídas, a diferença que essa exclusão está acon-tecendo dentro da escola. Negam-se as diferenças pela tentativade apagamento das singularidades: “todos são iguais e têm os mes-mos direitos e oportunidades”. Diferenças são incômodos a ques-tionar as ideias vigentes de verdades absolutas.

Novos estudos já vêm sendo realizados há algum tempo com ointuito de mudar essa visão sobre a infância, pretendendo perceberas crianças como atores sociais plenos. A sociologia da infância, porexemplo, tem de certa forma tomado as rédeas desta discussão, re-vendo aspectos teóricos e metodológicos de seu objeto de pesquisa,procurando sair de uma visão dos adultos na compreensão da infân-cia (Sarmento, 2002). Esperamos, com este trabalho, contribuir paraa abertura de um espaço para se pensar como a subjetividade infan-til pode ser afetada com esses discursos, sobre como as crianças se

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posicionam como sujeitos no contem-porâneo, e sobre o que a psicologiapode acrescentar nisso. Sabemos ain-da que estudos empíricos que se pro-põem a realmente escutar os peque-nos enquanto sujeitos ainda sãonovidade, é mais comum achar pes-quisas que discorrem sobre as criançasdo que pesquisas que as consideremcomo participantes efetivas, com di-reito de serem escutadas em seus di-zeres.

Enfim, vimos que discursos so-ciais são construções históricas e in-fluenciam na visão que os sujeitos têmde si e do mundo. Assim como emoutra época, Chico Caminhão pôdefazer parte de sua comunidade semser classificado como louco, houve umtempo em que lugar de criança nãoera necessariamente na escola e o ci-clo de vida não era padronizado emetapas evolutivas de desenvolvimen-to. Ressaltamos que não nos posicio-namos contra a educação formal eescolar, mas que podemos refletir so-bre ela no sentido de não cristalizaridades certas para desenvolvimentosesperados, com foco em resultadospredeterminados.

CHILDHOOD AND STANDARDIZA-TION: PLACE OF CHILD AND THE DIS-COURSE ABOUT INCLUSION ANDEXCLUSION

ABSTRACT

This paper cover a historical path of childhoodrelationship. It discusses the ways of social inclusionand exclusion. The culture normalize the socialdiscourse. We approach the current social discoursetoo, that it’s very restrictive.

Index terms: childhood; normalizacion; inclusion;exclusion.

INFANCIA Y NORMALIZACIÓN: LU-GAR DE LA CRIANZA Y EL DISCUR-SO SOCIAL DE LA INCLUSIÓN YEXCLUSIÓN

RESUMEN

Este artículo aborda el recorrido de los modos derelación con la infancia en las diferentes épocas de lahistoria. Tiene por objetivo discutir las formas deinclusión y exclusión social del niño. La culturapromueve discursos sociales normalizadores. Abor-damos el discurso actual, que impone un estrechomargen de normalidad.

Palabras clave: infancia; normalización; inclusión;exclusión.

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NOTAS

1 Tal história é real e conhecida pelos antigos moradores da cidade, tendo sidocontada por um deles: o pai de uma das pesquisadoras.

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Recebido em outubro/2008.

Aceito em fevereiro/2009.

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