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324 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 324-345. RESUMO Este artigo pretende refletir so- bre os critérios de normalidade que se aplicam à relação mãe- bebê. As questões que orientam a análise são as seguintes: como é uma relação mãe-bebê consi- derada normal? Por outro lado, o que é considerado patológico nessa modalidade de relação? Por meio do exame de manuais de puericultura publicados des- de as primeiras décadas do sé- culo XX, busca-se verificar mudanças e permanências nas maneiras especializadas de ava- liar as relações entre as mães e seus bebês como adequadas ou não. A análise fundamenta-se em textos de Canguilhem e Foucault sobre o conceito de nor- malização. Descritores: relação mãe- bebê; normalização da infância e da maternidade; manuais de puericultura; saberes especiali- zados sobre os bebês. Artigo Professora no Programa de Mestrado em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), São Paulo, SP, Brasil. O NORMAL E O PATOLÓGICO NA RELAÇÃO MÃE-BEBÊ: UM ESTUDO A PARTIR DE MANUAIS DE PUERICULTURA PUBLICADOS NO BRASIL (1919-2009) Ana Laura Godinho Lima Introdução A presença amorosa e tranquilizadora da mãe, seu contato com ela desde o primeiro momento, o colo, o embalo, o carinho, o sorriso, a voz suave, as canções em sussurros, a maneira aco- lhedora de segurá-lo e o socorro aos seus problemas ensina- rão que o mal-estar e a frustração têm um limite, que depois deles virá a gratificação (alimentos gostosos, um banho agra- dável, um ambiente alegre e um brinquedo ou objeto ama-

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RESUMO

Este artigo pretende refletir so-

bre os critérios de normalidade

que se aplicam à relação mãe-

bebê. As questões que orientam

a análise são as seguintes: como

é uma relação mãe-bebê consi-

derada normal? Por outro lado,

o que é considerado patológico

nessa modalidade de relação?

Por meio do exame de manuais

de puericultura publicados des-

de as primeiras décadas do sé-

culo XX, busca-se verificar

mudanças e permanências nas

maneiras especializadas de ava-

liar as relações entre as mães e

seus bebês como adequadas ou

não. A análise fundamenta-se

em textos de Canguilhem e

Foucault sobre o conceito de nor-

malização.

Descritores: relação mãe-

bebê; normalização da infância

e da maternidade; manuais de

puericultura; saberes especiali-

zados sobre os bebês.

Artigo

Professora no Programa de Mestrado em Estudos Culturais da

Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São

Paulo (EACH-USP), São Paulo, SP, Brasil.

O NORMAL E OPATOLÓGICO NA

RELAÇÃO MÃE-BEBÊ:UM ESTUDO A PARTIR

DE MANUAIS DEPUERICULTURA

PUBLICADOS NOBRASIL (1919-2009)

Ana Laura Godinho Lima

Introdução

A presença amorosa e tranquilizadora da mãe, seu contato comela desde o primeiro momento, o colo, o embalo, o carinho, osorriso, a voz suave, as canções em sussurros, a maneira aco-lhedora de segurá-lo e o socorro aos seus problemas ensina-rão que o mal-estar e a frustração têm um limite, que depoisdeles virá a gratificação (alimentos gostosos, um banho agra-dável, um ambiente alegre e um brinquedo ou objeto ama-

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do...) e o bebê desenvolverá normalmente várias funções mentais e psíquicas in-dispensáveis para o seu futuro. (De Lamare, 2008, p. 35)

texto acima fala sobre a importância da relação mãe-bebê para o desenvolvimento normal da criança. Foi retirado da42ª. edição do livro A vida do bebê, o manual de puericultura brasilei-ro mais bem sucedido de todos os tempos, tendo atingido já a mar-ca de seis milhões de exemplares vendidos. Publicado pela primeiravez em 1941, foi redigido pelo eminente doutor Rinaldo de Lamare,professor da cadeira de Pediatria na Universidade Federal do Rio deJaneiro, que atuou ainda como presidente da Academia Nacional deMedicina e da Sociedade Brasileira de Pediatria (De Lamare, 2008).A vida do bebê continua sendo a obra mais conhecida do gênero,embora haja atualmente muitos outros livros disponíveis aos paisbrasileiros em busca de orientações sobre como criar seus filhos.

Há desde os compêndios que seguem as características tradici-onais do gênero até vários outros que apresentam forma e conteú-dos inovadores. Dentre esses, há aqueles que foram escritos nãopor pediatras, mas por mães ou mesmo pais que buscam comparti-lhar com os leitores suas experiências no campo da maternidade ouda paternidade; outros que se destinam a difundir os princípios damedicina alternativa e mesmo manuais que têm como objetivo pre-parar espiritualmente os pais para a chegada de um novo bebê1.Cada um desses livros apresenta seus próprios parâmetros de nor-malidade para a avaliação das maneiras como as mães se relacionamcom seus bebês, assim como oferecem uma série de sugestões so-bre como as mães podem melhorar ou corrigir sua atuação em rela-ção aos bebês, com vistas a solucionar problemas, favorecer o de-senvolvimento da criança ou apenas aproveitar melhor a convivênciacom o filho pequeno.

Entre tantas novidades, contudo, os guias convencionais, redi-gidos por pediatras reconhecidos e dedicados principalmente aostemas da saúde e do desenvolvimento infantil, mantêm-se comoreferências de grande credibilidade entre os leitores. Este artigo buscaexaminar nesses materiais os critérios de normalidade e as orienta-ções dos pediatras que dizem respeito à relação mãe-bebê. As ques-tões que orientam a análise são as seguintes: Como é uma relaçãomãe-bebê considerada normal? Por outro lado, o que é consideradopatológico nessa modalidade de relação? Como é uma mãe normal?

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O que caracteriza uma mãe anormal?E ainda: Como se comporta um bebênormal? E um bebê anormal? Pormeio do exame de manuais de pueri-cultura publicados desde as primei-ras décadas do século XX até os diasde hoje, busca-se verificar mudançase permanências nas maneiras especia-lizadas de avaliar as relações entre asmães e os seus bebês e nos modos deorientar a conduta materna, com vis-tas a favorecer o desenvolvimentonormal da criança. A análise funda-menta-se em textos de Canguilhem eFoucault sobre o conceito de normale de normalização.

Para a escrita deste artigo foramconsiderados doze manuais de pueri-cultura escritos por pediatras brasilei-ros entre 1919 e 2008. Tendo em vis-ta as questões propostas, priorizou-seo exame dos capítulos que descrevemas características do recém-nascidonormal, assim como aqueles dedica-dos à descrição do desenvolvimentoinfantil e aos problemas da criança.

A seguir apresentam-se conside-rações sobre o surgimento dos ma-nuais de puericultura, como parte deum conjunto de ações empreendidaspela medicina social desde o séculoXVIII na Europa e nos séculos XIXe XX no Brasil. Descrevem-se aindaalgumas transformações nos modosde produção e nos objetivos propos-tos para a publicação dos compêndi-os brasileiros nas primeiras décadasdo século XX e nos dias de hoje.Depois disso, à luz de textos deFoucault (1996/2005) e Canguilhem

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(2005) sobre o conceito de “normali-zação”, efetua-se a análise do conteú-do dos manuais, tendo em vista am-pliar a compreensão das questõesformuladas na introdução do textosobre a normalização da relação mãe-bebê.

Os manuais de puericulturae a normalização dainfância e da família

A família não deve ser mais apenas uma teiade relações que se inscreve em um estatutosocial, em um sistema de parentesco, em ummecanismo de transmissão de bens. Deve-setornar um meio físico denso, saturado, per-manente, contínuo que evolua, mantenha efavoreça o corpo da criança. Adquire, então,uma figura material, organiza-se como o meiomais próximo da criança; tende a se tornar,para ela, um espaço imediato de sobrevivên-cia e de evolução. (Foucault, 1996, p. 199)

Segundo Foucault, as publica-ções dedicadas a transmitir aos paisensinamentos sobre como cuidar ade-quadamente dos bebês proliferaramna França a partir da segunda metadedo século XVIII, quando a políticade saúde elegeu como prioridade oinvestimento na infância, por meio damedicalização da família. O que se ti-nha em vista era atacar o problemada mortalidade infantil e garantir queos indivíduos chegassem vivos e pro-dutivos à idade adulta. Tratava-se,portanto, de promover a melhoria daqualidade da população, recorrendo-

se, para isso, à higienização das famí-lias.

Em Ordem médica e norma familiar,a partir da análise de teses de medici-na defendidas no Brasil no séculoXIX, Jurandir Freire Costa observouo mesmo investimento médico nanormalização da família. O autor en-controu diversos trabalhos dedicadosà defesa do aleitamento materno, alémde uma tese em que se atribuía o pro-blema da mortalidade infantil à igno-rância das mães em matéria de edu-cação física, moral e intelectual (Costa,2004, p. 164). Debruçando-se sobreas mesmas fontes, José GonçalvesGondra (2004) investigou o proces-so de institucionalização da medicinano Brasil no decorrer da segundametade do século XIX e observouque a educação higiênica era consi-derada pelos médicos como um re-curso capaz de superar a maioria dosproblemas sociais e urbanos enfren-tados no país. Pretendendo difundiros princípios da higiene infantil, osmédicos ministravam cursos de higi-ene nas escolas normais; proferiampalestras pelo rádio; escreviam arti-gos para jornais, publicavam colunassobre higiene em revistas femininas ededicavam-se à escrita de manuais depuericultura. De acordo comWladimir Piza, autor do Livro das mãe-

zinhas,

se os que vão receber este livrinho bem me-ditarem nos conselhos que veicula, temos acerteza, as cifras de mortalidade de crianças,entre nós, cairão rapidamente e assim, den-tro em breve, teremos afastado dos nossos

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olhos esse fantasma terrível, que penetra nos lares paulistas e rouba do regaço demães amantíssimas, aqueles que seriam os continuadores das nossas tradições eos propugnadores do nosso progresso. (Piza, 1940, p. 6)

Diversos pesquisadores têm se voltado para o exame da biblio-grafia especializada dedicada aos pais sobre o cuidado e a educaçãodos filhos2. Como tem sido destacado em parte desses trabalhos, oesforço empreendido pelos primeiros pediatras que se dedicaram adivulgar os princípios da higiene infantil na forma de manuais pare-ce ter gerado uma demanda por cada vez mais orientações.

Atualmente, além dos pediatras, diversos outros especialistastêm contribuído com recomendações formuladas em seu campoespecífico de atuação. Obstetras, psiquiatras, psicólogos, neurolo-gistas, nutricionistas e outros profissionais têm redigido guias parapais ou vêm oferecendo sua contribuição em compêndios elabora-dos por equipes multidisciplinares, como é o caso de A saúde dos

nossos filhos (Waksman et al, 2005), organizado pelo departamentode pediatria do Hospital Albert Einstein. Esse manual traz orienta-ções sobre o desenvolvimento da criança e sobre doenças, emer-gências e acidentes. Há uma seção em que se procura responder adúvidas frequentes, como as seguintes: “meu filho é desatento”;“meu filho está gordo”; “meu filho não para de chorar”. Participa-ram na elaboração desse compêndio 91 profissionais, a maioria dosquais médicos de diversas especialidades, mas também enfermeiras,psicólogas, psicanalistas, nutricionistas, pedagogas e inclusive uma“musicoterapeuta” e uma “brinquedista” (Waksman, Schvartsman& Troster, 2005, p. 17).

A ampliação das especialidades profissionais que se ocupamdo desenvolvimento infantil, assim como a sofisticação crescentedos procedimentos de pesquisa e dos recursos tecnológicos empre-gados na área da saúde favoreceu uma expansão inédita dos conhe-cimentos nessa área, bem como a percepção de que os primeirosanos de vida são decisivos para o desenvolvimento ulterior do serhumano. Sendo assim, a tarefa de cuidar das crianças parece cadavez mais exigente para as famílias e os primeiros educadores, o quetende a reforçar a sensação de que é necessário recorrer a conselhosespecializados de diversas áreas. Os próprios manuais o afirmam:

Na época atual, apenas o instinto e as características imanentes são insuficientespara uma atenção adequada, pois as pessoas, a família, a sociedade e o ambienteestão cada vez mais difíceis e complexos. É imperiosa a necessidade de aprender

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e, mais do que isto, aprender bem como secuida adequadamente do desenvolvimento deuma pessoa. (Waksman et al., 2005, p. 11)

Os manuais mais recentes exa-minados neste artigo costumamapresentar a intenção de esclarecer ospais sobre os princípios básicos dacriação dos filhos com o objetivo deevitar dificuldades previsíveis e sofri-mentos desnecessários. Esperamcontribuir para tornar a experiênciavivida pelos pais e filhos durante aprimeira infância tão gratificante eenriquecedora quanto possível. Emseu Manual do bebê, o doutor Ruy PupoFilho (2002) afirma:

Ao longo desses anos de prática, pude per-ceber que a informação adequada fornecidaaos pais na hora certa pode evitar muitas di-ficuldades. Ou pelo menos atenuá-las bastan-te. De tal forma que a chegada do bebê pos-sa ser realmente festejada, curtida e vivenciadacomo um momento especial e único na vidadaquelas pessoas. Sem nenhum tipo de so-frimento desnecessário. (pp. 3-4)

De modo que se pode estabele-cer aqui uma primeira distinção im-portante entre os manuais mais anti-gos e os recentes. No início do séculopassado, ao difundir os princípios dahigiene infantil, os pediatras declara-vam que sua intenção era contribuirpara solucionar um grave problemade saúde pública, as altas taxas demortalidade das crianças nos primei-ros anos. Desejavam ainda promovero aprimoramento da qualidade dapopulação como um todo, tendo emvista o progresso da nação. A relação

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mãe-bebê patológica era, portanto,aquela que punha em risco a saúde dacriança e, assim, o futuro da nação.Essa intenção não aparece anunciadada mesma maneira nos compêndiosatuais. Nos dias de hoje, a principalmotivação dos pediatras para elabo-rar um manual de puericultura pare-ce ser a de contribuir para a felicida-de e a realização de cada mãe, cadafilho, cada família. De modo que apatologia associa-se principalmente àinsatisfação, ao desprazer da mãe narelação com o bebê e aos sintomasde sofrimento da criança, ainda que,do ponto de vista orgânico, ela estejapassando bem. Isso não quer dizerque o tema da felicidade estivesse au-sente dos manuais mais antigos, ouque o tema da saúde pública seja con-siderado de pouca importância nosguias atuais. A diferença é que, en-quanto nas décadas iniciais do séculoXX, a felicidade do bebê costumavaser apresentada como uma decorrên-cia natural de sua boa saúde, atual-mente o raciocínio parece ser o in-verso: entende-se que um bebê quetiver a sorte de ter uma mãe que sesente feliz em cuidar dele será muitoprovavelmente saudável. É assim quemuitos dos problemas de saúde fre-quentes na primeira infância são atu-almente atribuídos a problemas emo-cionais da mãe, que se refletem nofilho. Em Manual do bebê (2002), porexemplo, o autor relaciona o proble-ma da cólica dos recém-nascidos à an-siedade dos pais (Pupo Filho, 2002,p. 13).

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Por sua vez, o guia da Sociedade Brasileira de Pediatria, intituladoFilhos: da gravidez aos dois anos de idade (Lopez & Campos Jr.,2009) afirma que o estado emocional da mãe é determinante para osucesso da amamentação e para o desenvolvimento do lactente.Atualmente, portanto, a saúde e o bom desenvolvimento do bebêsão muitas vezes apresentados como decorrência de um ambientefamiliar feliz, enquanto nos manuais publicados nas décadas de 1940e 1950 ocorria o inverso: era comum afirmar-se que a felicidade dosbebês era conseqüência natural de cuidados higiênicos adequados.“A sisudez não é peculiar à criancinha sadia; ao contrário: sorri porqualquer pretexto, à menor excitação ou à vista de todo objeto lu-minoso ou fortemente colorido” (Rocha, 1951, p. 70). Naquele pe-ríodo, procurava-se convencer as mães de que a receita para a felici-dade de seus rebentos era a estrita observância dos princípios dahigiene infantil, em que o asseio e a disciplina eram aspectos funda-mentais e complementares. Hoje em dia, embora ainda se valori-zem as condições higiênicas do ambiente onde se desenvolve a cri-ança, é comum afirmar-se que o elemento mais importante para asaúde do bebê é uma mãe carinhosa e dedicada, aquela a queWinnicott se referia como sendo a boa mãe comum. A influênciado pediatra psicanalista no discurso especializado atual é evidente,muitas vezes explícita, como no caso de Filhos: da gravidez aos 2anos de idade, em que se sugere aos pais de “crianças especiais” aleitura de quatro textos desse autor. As referências à obra deWinnicott aparecem ainda no capítulo “Vínculo pais-filho”, ondese afirma: “A mãe que se adapta perfeitamente às necessidades dorecém-nascido é chamada de ‘mãe suficientemente boa’” (Lopez &Campos Jr., 2009, p. 51).

Os pediatras das primeiras décadas do século XX desejavamque as mães se tornassem capazes de controlar o excesso de cuida-dos e atenções dispensadas aos seus filhos e aprendessem a atuarcomo verdadeiras enfermeiras, executando suas tarefas de modoeficiente e racional, orientadas pelos preceitos da higiene infantil.Atualmente, pelo contrário, boa parte dos doutores lhes solicita queexercitem a sua sensibilidade materna no trato com seus bebês; quese tranquilizem; que se tornem mais confiantes em si mesmas emenos dependentes dos saberes médicos. No manual elaborado pelaSociedade Brasileira de Pediatria lê-se: “É interessante lembrar queninguém, nem mesmo o médico, nem o marido ou sua própria mãe,pode saber mais do que você, mãe, quais as melhores condições para

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amamentar o bebê ou para dar comi-da à criança maior” (Lopez & Cam-pos Jr., 2009, p. 51). Mesmo assim,cabe observar que nunca houve tantaoferta de orientação especializada aospais sobre como proceder em cadasituação.

As mães e os seus bebêsentre a normalidade e apatologia no discursopediátrico

Em sua obra O normal e o patológi-

co, Canguilhem (1995) adverte para ofato de que, quando se trata de sereshumanos, a normalidade do organis-mo não se define exclusivamente porsuas características naturais, mas pelomodo de vida no qual o indivíduo estáinserido: “as normas fisiológicas de-finem não tanto uma natureza huma-na, mas, sobretudo, hábitos humanosrelacionados com os gêneros de vida,os níveis de vida e os ritmos de vida”(pp. 125-126). Essa é uma ideia im-portante porque nem todo modo devida foi ou é considerado normal pe-los pediatras. Pode-se identificar nosmanuais publicados ao longo de todoperíodo a valorização de um estilo devida familiar, que se apresenta comonormativo, servindo como referênciapara a avaliação das condições vivi-das em cada caso. Esse estilo de vidainclui elementos tais como: renda ade-quada; planejamento familiar; dispo-

nibilidade materna para amamentar ecuidar pessoalmente do bebê nos pri-meiros meses ou anos de vida; rotinaregular; hábitos saudáveis de alimen-tação e higiene; disposição para re-nunciar a hábitos pouco saudáveis,tais como o consumo de álcool e ci-garros; instrução dos pais em maté-ria de puericultura; atmosfera de tran-qüilidade no lar, etc. Cada desvio emrelação a essa norma era/é conside-rado como uma falta a ser preenchi-da; um erro a ser corrigido ou umproblema a ser superado.

A seguir, analisam-se especifica-mente as descrições e prescrições re-lativas à mãe e ao bebê, buscando-seidentificar como foram caracterizadasas mães normais e anormais, bemcomo as crianças normais e anormais,segundo o discurso da pediatria des-de a primeira metade do século XX.

Segundo Canguilhem,

A saúde perfeita não passa de um conceitonormativo, de um tipo ideal. Raciocinandocom todo o rigor, uma norma não existe,apenas desempenha seu papel que é desvalo-rizar a existência para permitir a correçãodessa mesma existência. Dizer que a saúdeperfeita não existe é apenas dizer que o con-ceito de saúde não é o de uma existência, massim o de uma norma cuja função e cujo valoré relacionar esta norma com a existência afim de provocar a modificação desta. (1995,p. 54)

Assim como a saúde perfeita nãoencontra existência concreta, mascorresponde a um conceitonormativo que visa transformar a vida

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das pessoas, assim também a mãenormal e o bebê normal consistemem tipos normativos, idealizados pe-los pediatras e outros especialistaspara promover transformações narelação mãe-bebê, tendo em vistaatingir seus objetivos. Em seus ma-nuais, os autores frequentementeapresentavam noções de eugenia ecuidados médicos pré-natais, poisentendiam que a instrução dos paisnessas matérias permitiria evitar onascimento de crianças anormais. Opediatra Francisco Laport (1941), emseu livro A.B.C. das mães, afirmava queas providências para prevenir a anor-malidade nas crianças deveriam seriniciadas bem antes do nascimento.No capítulo 1, intitulado “Conselhoaos pais” o doutor advertia: “Deve-mos, de inicio, frisar o seguinte: sómuito antes da criança nascer, podemos pais cooperar com sucesso para onascimento de um bebê sadio” (p. 7).Laport aconselhava os adultos quefossem portadores de vícios ou tarasorgânicas, tais como a sífilis ou a tu-berculose, que renunciassem ao ca-samento e à procriação para evitar onascimento de crianças débeis con-gênitas. Em diversas passagens dosguias maternos publicados na primei-ra metade do século XX está presen-te a ideia de que a família normal eraaquela capaz de responsabilizar-se porsi mesma, pelo cuidado e a educaçãode seus filhos. Depender da caridadeou do poder público configurava-se,assim, como patologia e acreditava-se que eram os pais portadores de ta-

ras hereditárias aqueles mais propen-sos a produzir filhos que se tornari-am um peso para a sociedade.

Em manuais recentes, como Asaúde dos nossos filhos (Waksman et al,2005), esse tema também está presen-te, embora não mais por meio do ape-lo para que os pais portadores de do-enças ou vícios desistam da união ouda concepção. Também já não sepressupõe que os pais do bebê sejamcasados. Mesmo assim, espera-se queadultos esclarecidos estejam dispos-tos a modificar sua conduta com vis-tas a favorecer a saúde do futuro fi-lho. Espera-se ainda que se submetama todo tipo de exames e controles pré-natais que têm como objetivo propi-ciar maior segurança ao desenvolvi-mento intra-uterino da criança.

Para além dos defeitos de origembiológica, em seus compêndios depuericultura os pediatras discorremtambém sobre os entraves ao desen-volvimento infantil decorrentes deproblemas de personalidade da mãe.Importa, portanto, investigar quaiseram, segundo a compreensão dosdoutores, esses desvios.

De um modo geral, pode-se afir-mar que, segundo o discurso especi-alizado veiculado na primeira metadedo século XX, problemática era a mãemuito emocional. Denominada pelospediatras como “nervosa”, ela eraexcessivamente preocupada com ofilho, o que a levava a não respeitar ohorário das mamadas, a agasalhar de-mais a criança e a estimulá-la oumimá-la demais. Sendo pouco racio-

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nal, era suscetível às superstições e fal-tava-lhe a tranqüilidade e a objetivida-de necessárias ao adequado atendimen-to das necessidades da criança,sobretudo quando essa era acometidapor uma doença infantil, o que era ca-paz de levar a mãe nervosa ao deses-pero e à impotência. De acordo como Livro das mães (Departamento Naci-onal da Criança, 1962), o problema eramais comum nas mães de primeiro fi-lho, devido à sua inexperiência.

Nos dias de hoje, os manuaisdemonstram a preocupação dos es-pecialistas com a mãe “deprimida”,ou seja, aquela que se sente incapazde atender a todas as necessidades dorecém-nascido ou não consegue sesentir satisfeita e realizada ao cuidarde seu filho. Os pediatras admitemque muitas mães sofrem com esseproblema e costumam relacioná-lo àssúbitas alterações hormonais pelasquais passa a mulher no puerpério.Em todo caso, entendem que essa tris-teza deve ceder normalmente em atéduas semanas, caso contrário confi-gura-se como “depressão pós-parto”,condição que, segundo os especialis-tas, exige tratamento, pois a vulnera-bilidade psicológica da mãe pode porem risco a saúde e o desenvolvimen-to do bebê. A esse respeito, é curiosonotar que nos manuais antigos não sefazia referência à depressão pós-par-to, o que faz pensar que o problemapossa estar relacionado a mudançasculturais e não a fatores biológicos.

Nas primeiras décadas do sécu-lo XX a mãe anormal era aquela cuja

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ligação emocional com o bebê era considerada excessiva, na medi-da em que seu comportamento protetor impedia que se estabele-cesse o regime disciplinar considerado desejável pelos médicos. Paraesses autores, boa mãe era a mulher mais prática e racional, dispostaa seguir à risca o regulamento higiênico. Atualmente, os especialis-tas, influenciados pelo discurso psicanalítico, tendem a considerarque as mães mais afetivas estão em melhores condições de propor-cionar aos seus bebês um bom começo, enquanto aquelas mais afei-tas ao mundo da profissão, da eficiência e da racionalidade podemser colocadas sob suspeita. Imagina-se que possam ter dificuldadesem se devotar ao bebê e em aceitar a vida de renúncias que suposta-mente a maternidade implica. Esse risco é considerado no livro Asaúde de nossos filhos, que dedica um capítulo ao tema da depressãopós-parto (Waksman et al., 2005, p. 84).

Outra categoria de mães que os manuais de puericultura apre-sentam como desviante da norma é formada por aquelas que, poruma ou outra razão, não amamentam seus bebês. Os autores dosmanuais das décadas iniciais do século XX eram especialmente du-ros com aquelas que recusavam o peito aos seus filhos por vaidade oupor não desejarem renunciar à vida social. Acusavam-nas de“desnaturadas” e afirmavam que essas sequer mereciam o título demãe. Afirmavam ainda que a ligação entre mãe e filho se tornavanecessariamente mais frouxa quando a mãe se recusava a amamentar.

É no íntimo contacto da amamentação que se fortalece o amor materno e se gerao amor filial. A mãe que abandona a outrem o privilégio de amamentar o filho,ou, por comodidade sua, lhe dá alimentos artificiais, cava entre si e a criança umgrande abismo, depois difícil de transpor. (Almeida Júnior & Mursa, 1938, p. 61)

Nos manuais recentes a mãe que não amamenta também é apre-sentada como desviante. Dentre aqueles examinados neste artigo, omais enfático a esse respeito é o Manual do bebê, do Dr. Ruy PupoFilho. Além de advertir as mães sobre os perigos que rondam acriança submetida a outras formas de alimentação, o autor afirmaque as crianças que mamam no peito são superiores àquelas quenão o fazem. Diz ele: “E as pesquisas comprovam: crianças ama-mentadas são mais inteligentes!” E ainda: “Um bebê amamentadono seio será, para o resto da vida, uma pessoa mais saudável, feliz esegura” (Pupo Filho, 2002, p. 105).

Em diversos dos manuais examinados, o bebê normal é descri-to em suas características físicas, seu estado de espírito e o seu de-

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senvolvimento (peso, comprimento, habilidades conquistadas se-mana a semana, mês a mês). A normalidade era verificada por meioda balança, da fita métrica, do termômetro e do volume de leite oude alimentos consumidos a cada refeição. Era comum apresenta-rem-se tabelas indicando os valores normais para cada faixa etária,muitas vezes divididos em duas colunas, uma para o sexo masculinoe outra para o feminino. De todo modo, admitia-se a existência deconsideráveis variações individuais. Almeida Júnior e Mario Mursaafirmavam que era preciso levá-las em conta, sobretudo na avalia-ção do desenvolvimento intelectual: “Dadas as extensas variaçõesindividuais, mais acentuadas ainda que as do físico, dependentes dahereditariedade e da ação do meio familiar, não se pode estabelecerum esquema uniforme para o desenvolvimento intelectual da crian-ça” (1938, p. 154).

A descrição do desenvolvimento normal do bebê por meioda indicação da idade média para a aquisição de cada habilidade éum aspecto importante a ser considerado nessa análise sobre oscritérios de normalidade aplicados à avaliação do bebê. A maiorparte dos manuais consultados fornece aos pais indicações sobreo que as crianças devem ser capazes de fazer em cada faixa etária.Tais parâmetros permitem avaliar o desenvolvimento do bebê apartir de uma perspectiva temporal, de modo que os indivíduosque se distanciam da norma são classificados como atrasados ouadiantados.

Pode-se dizer que em todos os manuais de puericultura consul-tados nesta pesquisa, as mães são encorajadas a atuarem como “fis-cais do desenvolvimento infantil”, expressão que foi apropriada-mente empregada por Cláudia Amaral dos Santos (2009) em seutrabalho de investigação sobre diferentes edições de A vida do bebê.De fato, o compêndio do Dr. De Lamare parece ter sido um dosmais bem sucedidos nessa empresa, uma vez que 24 dos 32 capítu-los (na edição de 2008) têm como objetivo principal descrever ascaracterísticas do bebê que atravessa uma determinada fase do de-senvolvimento. Um diferencial desse livro é trazer na primeira pági-na de cada capítulo uma fotografia de um bebê na idade indicada,seguida de uma legenda que chama atenção para um aspecto impor-tante daquela etapa. Na página que abre o capítulo referente aostrês meses, por exemplo, observa-se a fotografia de um bebê debruços, com a cabeça erguida. A legenda é a seguinte: “Sustentar acabeça aos três meses é a melhor prova de que o desenvolvimento

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psicomotor do bebê está perfeito”(De Lamare, 2008, p. 218). Ainda namesma página, depois da fotografiaapresenta-se uma tabela intitulada “Odesenvolvimento do bebê” que trazas medidas esperadas para o terceiromês em relação ao peso, estatura, pe-rímetro cefálico, perímetro torácico eganho de peso mensal, com valoresdiferentes para meninos e meninas.Esse guia apresenta ainda uma se-qüência de provas para a avaliação dodesenvolvimento da inteligência dacriança, mês a mês. A grandelegibilidade dessas informações, quepermitem fazer uma ampla avaliaçãodo desenvolvimento de um bebê con-sultando-se poucas páginas do livro,contribui para explicar o grande su-cesso de A vida do bebê, entre tantosmanuais do gênero.

O recém-nascido consideradoanormal era aquele portador de de-formidades hereditárias ou congêni-tas, conforme a designação emprega-da nas primeiras décadas do séculoXX. Era também o bebê prematuroou débil congênito, aquele que, ape-sar de nascido no tempo certo, apre-sentava-se insuficientemente desen-volvido para adaptar-se ao meioextra-uterino. Nos compêndios atu-ais, evita-se a designação “anormal”e emprega-se a expressão bebê com“deficiência”, bebê “especial” ou“portador de necessidades especiais”,mais de acordo com a perspectiva atu-al, que defende a inclusão dos indiví-duos portadores de deficiência nasociedade.

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Para além das deficiências físicas e mentais, trata-se de problemas de com-portamento apresentados pelas crianças, cujas causas são associadas tanto adisposições hereditárias quanto a erros educativos cometidos pelos pais. Nasdécadas iniciais do século XX diversos problemas de comportamento eramexplicados como decorrentes do “temperamento nervoso” da criança. Em A.B.C

das mães, do Dr. Francisco Laport, há um capítulo intitulado “Hábitos nervo-sos”, que trata dos seguintes problemas: enurese, convulsões, “batimentos decabeça”, masturbação, vômitos, insônia, “chupar o polegar”, cacoetes, “roer asunhas” e “piscar os olhos”. É curioso observar que, não importava qual dessesdistúrbios a criança apresentasse, atribuía-se sua origem ao nervosismo, de modoque a providência a tomar era quase sempre a mesma: em primeiro lugar con-sultar o médico, para averiguar a existência de causa orgânica. Eliminada essahipótese, os pais deveriam tratar de proporcionar à criança vida ao ar livre,exercícios adequados à idade, alimentação saudável e um ambiente tranqüilo,livre de excitações. Era o que recomendava, por exemplo, o Dr. FernandesFigueira em suas Consultas práticas de higiene infantil:

Numa idade em que a compreensão se desenha, ainda cumpre afastar das causas de esgotamen-to a criança irritável. Afastemo-la das visitas e dos passeios nos grandes centros. Brinquedossem contrariedades, recreações no campo e na floresta, algum exercício, e pouco trabalho inte-lectual. Como isso vale mais que dar calmantes e existência irregular e ruidosa! (Figueira, 1919,p. 286)

Pode-se compreender a descrição do temperamento “nervoso”, assim comoas recomendações para o seu tratamento como uma maneira que os pediatrasda primeira metade do século passado encontraram de criticar os aspectos queconsideravam anti-higiênicos no modo de vida das famílias burguesas. A prote-ção e o mimo com que se costumava cercar as crianças de boa condição socialeram considerados excessivos e prejudiciais à formação do futuro cidadão dapátria ou da futura mãe de família. Às vezes, os problemas eram atribuídos àvida em apartamento, que se disseminava em meio urbano. Vários médicosconsideravam o apartamento um tipo de habitação nefasto para a saúde dascrianças, pois as mantinha contidas em um espaço exíguo e artificial. Na visãodesses especialistas, a todas as crianças deveria ser assegurada a possibilidadede viver ao ar livre e de beneficiar-se de passeios e banhos de sol diários.

De maneira análoga, as publicações mais recentes também expressam asrestrições dos pediatras em relação a determinados hábitos das famílias atuais.Em A saúde de nossos filhos, alertam-se os leitores para o problema do consumis-mo e para os riscos associados à influência da televisão e da internet na forma-ção das crianças. Sugere-se que os pais procurem se comportar como bons

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modelos, dando preferência a ativida-des como a leitura e os esportes, emvez de passar longos períodos emfrente à TV (Waksman et al., 2005,pp. 256-257). Filhos: da gravidez aos2 anos de idade, enfatiza a importân-cia de se criar para o lactente um am-biente seguro e afetivo, por meio daobservância da rotina e da auto-vigi-lância emocional dos pais. Segundo ocompêndio, é importante que os paisestejam se sentindo bem ao se relaci-onarem com os filhos pequenos, poisas crianças são sensíveis às alteraçõesde humor de seus cuidadores. Reco-menda-se: “Se você estivernervoso(a), afaste-se um pouco dobebê, pois ele é capaz de sentir o seunervosismo e pode começar a chorarsem parar.” (Lopez & Campos Jr.,2009, p. 280). Mais uma vez encon-tramos a ideia de que pais nervosostendem a produzir bebês nervosos,dessa vez num guia recente.

Considerações finais

Os discursos da puericultura exa-minados neste artigo expressam a per-cepção dos pediatras sobre a relaçãomãe-bebê e sua importância para avida em sociedade. Vivendo em con-dições econômicas e culturais privi-legiadas, os médicos têm sua própriacompreensão dos problemas vividospelas famílias e vislumbram alternati-vas para superá-los. Os textos nosquais buscam comunicar-se com os

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pais nos revelam suas preocupaçõese suas esperanças em relação às con-dições vividas pelas crianças.

Nas primeiras décadas do sécu-lo XX, os pediatras personificaram adefesa da ciência e da racionalidade eprocuraram converter as mães emsuas principais aliadas na missão depromover a higienização da socieda-de. Dirigiam-se especialmente às mu-lheres de boa condição social, instru-ídas, que viviam em meio urbano eestavam empenhadas em ser e pare-cer modernas. O modelo de boa mãeera, então, aquela que colaborava como médico, atuando como mãe-enfer-meira. A mãe responsável empenha-da em cuidar pessoalmente do seu lare de sua família, atenta às recomen-dações científicas. Para esses médicos,anormal e problemática era a mãeexcessivamente afetiva. Preocupadaem satisfazer todas as vontades dofilhinho, era incapaz de impor o mí-nimo de disciplina e o resultado erauma criança com os mais variadosproblemas de saúde e de comporta-mento.

Os autores dos guias mais recen-tes, ao contrário de seus colegas dasgerações anteriores, valorizam a sen-sibilidade e a afetividade maternas narelação com o bebê e consideram-nanão mais como um empecilho, mascomo uma condição indispensávelpara a saúde física e psicológica dacriança. Informados pela psicanálisee pela psicologia do desenvolvimen-to, os autores dos compêndios atuaisencorajam as mães a conversarem

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com seus bebês, a tomarem-nos ao colo sempre que desejarem e a seguiremsua própria intuição. Atualmente, considera-se que o normal e desejável é que amãe sinta-se realizada ao cuidar de seu bebê, mesmo que isso exija dela umasérie de sacrifícios pessoais. Consideram-se patológicos os casos em que a mãese mostra deprimida ou indiferente em relação ao seu bebê.

Uma categoria que atravessou o período considerado no discurso da pue-ricultura é a do nervosismo, que aparece ora na mãe, ora no bebê ou em ambossimultaneamente. Por meio dessa categoria, os autores reconhecem que existetensão na díade mãe-bebê. Há algo além do amor incondicional e da simbioseharmônica entre mãe e recém-nascido. Há o nervosismo, que se manifesta dasmais variadas formas. No entanto, embora os autores reconheçam sua presen-ça incômoda, não parecem dispostos a aceitá-lo como manifestação normal nodifícil processo de adaptação entre dois indivíduos que começam a se conhe-cer. Classificam o nervosismo como patológico, como um problema a ser solu-cionado a partir de uma série de medidas profiláticas ou terapêuticas, às vezesmedicamentosas.

THE NORMAL AND THE PATHOLOGICAL IN THE MOTHER-BABY

RELATIONSHIP: A STUDY BASED ON BABY BOOKS PUBLISHED IN BRAZIL (1919-2009).

ABSTRACT

This article intends to discuss the criteria of normality that apply to the mother-baby relationship. The questions

which the analysis seeks to answer are the following: How is a mother-baby relationship considered to be

normal? On the other hand, what is considered to be pathological in this relationship? The analysis is based on

baby books published since the first decades of the XX century and intends to verify changes and permanencies

in the specialized ways of evaluating the relations between the mothers and their babies. The analysis is based

in texts from Canguilhem and Foucault on the concept of normalization.

Index terms: mother-baby relationship; normalization of childhood and maternity; baby books; specialized

knowledge about babies.

LO NORMAL Y LO PATOLÓGICO EN LA RELACIÓN MAMÁ-BEBÉ: UN

ESTUDIO A PARTIR DE MANUALES DE PUERICULTURA PUBLICADOS EN

BRASIL (1919-2009)

RESUMEN

Este artículo pretende reflexionar sobre los criterios de normalidad que se aplican a la relación mamá-bebé. Las

cuestiones que orientan el análisis son las siguientes: ¿cómo es la relación mamá-bebé considerada normal? Por

otro lado, ¿qué se considera patológico en esa modalidad de relación? Mediante el examen de manuales de

puericultura publicados desde las primeras décadas del siglo XX, se busca verificar cambios y permanencias en

las maneras especializadas de evaluar las relaciones entre las madres y sus bebés como adecuadas o no. El

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342 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 324-345.

análisis se fundamenta en los trabajos de Canguillem

y Foucault sobre el concepto de normalización.

Palabras clave: r elación mamá-bebé;

normalización de la infancia y de la maternidad;

manuales de puericultura, saberes especializados so-

bre los bebés.

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NOTAS

1 Alguns exemplos desses manuais alter-nativos são: Veiga & Rodrigues (2003);Goebel & Glölkler (1993); Chopra, Simon &Abrams (2006).

2 Dentre os pesquisadores brasileiros quetêm estudado essa bibliografia, pode-se ci-tar: Santos (2009); Freire (2009, 2008);Martins (2008); Bock (2007); Volpe (2006).

[email protected]. Arlindo Bettio, 1000

03828-000 – São Paulo – S.P – Brasil.

Recebido em junho/2011.

Aceito em setembro/2011.

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