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A dinâmica do mercado de propriedades rurais nas Minas Gerais setecentista: agricultura e mineração no termo de Mariana, comarca de Vila Rica, 1711-1780. Quelen Ingrid Lopes 1 RESUMO: O século XVIII na América portuguesa foi marcado pela exploração das jazidas minerais de ouro das Minas Gerais. A forte migração para as áreas mineradoras fomentou o estabelecimento de redes de abastecimento com objetivo de prover tudo o que ali era necessário, em troca do ouro produzido pelos mineradores. Paralelo a este mercado abastecedor, o surgimento de um mercado de propriedades rurais local aponta para uma produção agrária pulsante desde os anos iniciais da economia mineradora. Ao longo do século XVIII, ao analisar o termo de Mariana, Comarca de Vila Rica, verificamos a evolução do mercado de bens rurais assim como da paisagem agrária que demonstram forte vinculação entre a atividade mineradora e a agrícola. Pretendemos discutir alguns dos elementos que articulavam o funcionamento e dinâmica deste mercado. Palavras-Chaves: Mercado, Agricultura, Minas Gerais, Século XVIII. Introdução O ouro. Nenhum outro bem explorado na América portuguesa havia causado tantas e tão profundas mudanças econômicas, fiscais e sociais quanto esse metal precioso. Em finais do século XVII a descoberta do ouro nos sertões da América portuguesa dava início à formação de uma sociedade que afirmaria sem dúvidas a capacidade de articulação e desenvolvimento do mercado interno. Segundo estimativas do padre Jesuíta André Antonil, ao longo dos primeiros anos do século XVIII já havia em Minas Gerais uma população estimada em torno de trinta mil almas: A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as correram todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendedor e comprando o que 1 Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista Capes.

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A dinâmica do mercado de propriedades rurais nas Minas Gerais setecentista:

agricultura e mineração no termo de Mariana, comarca de Vila Rica, 1711-1780.

Quelen Ingrid Lopes1

RESUMO: O século XVIII na América portuguesa foi marcado pela exploração das

jazidas minerais de ouro das Minas Gerais. A forte migração para as áreas mineradoras

fomentou o estabelecimento de redes de abastecimento com objetivo de prover tudo o

que ali era necessário, em troca do ouro produzido pelos mineradores. Paralelo a este

mercado abastecedor, o surgimento de um mercado de propriedades rurais local aponta

para uma produção agrária pulsante desde os anos iniciais da economia mineradora. Ao

longo do século XVIII, ao analisar o termo de Mariana, Comarca de Vila Rica,

verificamos a evolução do mercado de bens rurais assim como da paisagem agrária que

demonstram forte vinculação entre a atividade mineradora e a agrícola. Pretendemos

discutir alguns dos elementos que articulavam o funcionamento e dinâmica deste

mercado.

Palavras-Chaves: Mercado, Agricultura, Minas Gerais, Século XVIII.

Introdução

O ouro. Nenhum outro bem explorado na América portuguesa havia causado

tantas e tão profundas mudanças econômicas, fiscais e sociais quanto esse metal

precioso. Em finais do século XVII a descoberta do ouro nos sertões da América

portuguesa dava início à formação de uma sociedade que afirmaria sem dúvidas a

capacidade de articulação e desenvolvimento do mercado interno.

Segundo estimativas do padre Jesuíta André Antonil, ao longo dos primeiros

anos do século XVIII já havia em Minas Gerais uma população estimada em torno de

trinta mil almas: A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as correram todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendedor e comprando o que

1 Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista Capes.

se há mister não só para a vida, mas para o regalo, mas que nos portos do mar2.

Entre brancos livres, vindos do reino ou de outros territórios da América

portuguesa, somavam-se os indígenas trazidos com “as gentes” paulistas, negros

trabalhadores da lavoura canavieira levados por seus donos interessados na nova

atividade que tanto atraía a cobiça, mas principalmente os escravos africanos que ano a

ano chegavam em grande quantidade para as Minas Gerais, suprir a necessidade de

braços necessários na cata direta ao ouro.

O abastecimento de tal contingente populacional é, sem dúvida, uma das

principais questões surgidas ao lado da produção aurífera, e por ela encetada. Os

primeiros anos da exploração do ouro foram marcados pela instabilidade em razão das

crises de fome (1698-1699 e 1700-1701) que tiveram lugar pela pouca atenção que os

mineiros deram, inicialmente, à produção de víveres, pela inflação que atingia o preço

de todos os gêneros, inclusive os mais básicos à sobrevivência como o milho, e pelas

disputas entre grupos de exploradores que culminaram na Guerra dos Emboabas.

Adriana Romeiro, analisando a influência que os surtos de fome tiveram sobre a

caracterização do espaço natural e simbólico das Minas, percebe um “padrão recorrente

nas situações de extrema penúria” praticada a princípio pelos paulistas e posteriormente

adotada pelos demais aventureiros que iam buscar a sorte na mineração. Quando das

correrias pelo sertão em busca do apresamento dos indígenas, os paulistas apreenderam

um “repertório de saberes sobre a natureza, que os capacitava a extrair dela todo o

necessário à vida, desde a subsistência até a farmacopéia”.3 Quando os paulistas se viam

em dificuldades buscavam logo o abrigo das matas, onde sabiam encontrar o que lhes

era necessário para subsistir até um momento propício para retornarem às suas regiões

de origem.

Aliada a essa “fuga para os matos”, um dos saberes que permitiu a penetração

das bandeiras no território que viria a se tornar a Capitania de Minas Gerais foi a técnica

do plantio de roças em determinados pontos ao longo do caminho, isto para que na volta

das expedições os exploradores pudessem se reabastecer com os víveres que haviam

2 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Introdução e Vocabulário por A. P. Canabrava, 2a. ed., São Paulo: Ed. Nacional, s/d., (Roteiro do Brasil, 2), p. 263 3 ROMEIRO, Adriana. Os sertões da fome: A história trágica das minas de ouro em fins do século XVII. In: SAECULUM – Revista de História, João Pessoa, jul./dez. 2008, p.168.

plantado. Nos primeiros anos de povoamento de Minas Gerais manteve-se este tipo de

técnica: Assim que chegavam as Minas, todos tratavam primeiro de plantar suas roças nas imediações das datas minerais, instalando-se depois nos arraiais e povoados, para esperar até que os mantimentos pudessem ser colhidos. Só então é que se tinha início os trabalhos de mineração4.

Mas devido à fragilidade de equilíbrio entre o aumento populacional constante e

a produção realizada, as crises de fome sempre assombravam os mineiros.

O início do povoamento de Minas Gerais não foi simples, ao contrário,

exatamente por ter sido fruto de um boom populacional pouco ou nada controlado, com

a ausência da autoridade real configurada por uma administração local ainda inexistente,

e pelo precário abastecimento das zonas mineradoras- resultado de caminhos e rotas de

difícil acesso e passagem além de largo tempo de viagem- os primeiros anos da

exploração do ouro foram marcados por questões que exigiam soluções prementes e

precisas.

De tal sorte, o surgimento da forte demanda de bens de consumo de toda sorte

ensejou rapidamente a criação de um espaço amplo de atuação de comerciantes e

mercadores com vistas ao abastecimento das zonas mineradoras, que se facilitaria pela

abertura do Caminho Novo ligando as Minas Gerais ao Rio de Janeiro, principal porto

de entrada e saída de produtos importados e de exportação a partir de então. Inúmeros

comerciantes ligados às casas comerciais da Bahia, Rio de Janeiro e mesmo das mais

afastadas praças como a de Lisboa, rumavam para os sertões das Gerais em busca de

negócios, vendendo toda sorte de artigos, desde os supérfluos de luxo, comestíveis

importados e também os elementos indispensáveis à economia mineradora, como

escravos e ferramentas de mineração.

A existência de um setor abastecedor interno foi de suma importância para a

continuidade da reprodução da economia mineradora, mas a criação de um setor de

abastecimento local também teve seu espaço e devida importância. É ilógico pensar que

uma área onde a demanda de abastecimento crescia exponencialmente ao longo dos

anos- resultado do contínuo afluxo de brancos livres e escravos- não fizesse surgir em

seu encalço um setor local de produção de víveres básicos à sobrevivência. De tal modo,

a agricultura e a criação de animais de pequeno porte grassou em torno das áreas de

4 ROMEIRO, Adriana. Os sertões da fome: A história trágica das minas de ouro em fins do século XVII. In: SAECULUM – Revista de História, João Pessoa, jul./dez. 2008, p.168..

exploração aurífera concomitante ao descobrimento e expansão destas. Fruto de um

ritmo contínuo de mobilidade pela região (em virtude da própria característica da

produção aurífera) surge um mercado de terras rurais que pontilhavam os núcleos de

mineração, nas quais produtores rurais (muitas vezes, sendo eles próprios mineiros

concomitantemente) produziam e beneficiavam os gêneros alimentícios básicos da sua

dieta alimentar como o milho, a mandioca e suas farinhas, além da criação de porcos e a

produção de aguardente para o consumo dos seus escravos e/ou abastecimento do

mercado local.

Este mercado de propriedades rurais deve ser compreendido dentro dos

parâmetros de uma sociedade pré-capitalista, na qual toda a ação econômica está

socialmente enraizada. Para o entendimento deste tipo de sociedade temos em vista a

obra fundamental de Karl Polanyi que, ao analisar o surgimento da economia de

mercado entre fins do século XVIII e início do XIX, questiona o modelo de economia

formal, que não contemplava as diferenças entre as sociedades pré-capitalistas, onde a

atividade econômica está inserida nas suas relações sociais, e as capitalistas, onde a

busca pela maximização de ganhos se dá pelo comportamento competitivo.5

Buscamos apresentar dados iniciais de uma pesquisa em andamento lançando

atenção específica sobre os elementos mais incisivos a dar contorno à dinâmica de

funcionamento do mercado das propriedades rurais do termo de Mariana, que se

relacionava de modo intenso à atividade mineradora da região. A delimitação temporal

tem por marco inicial o começo da produção documental base da pesquisa (os Livros de

Notas) e por marco final o momento em que se inicia uma queda irreversível da

produção aurífera, segundo a historiografia pertinente.6 Sítios, roças, engenhos e

fazendas são alguns dos tipos de propriedades que compõem tal mercado, as quais

propriedades eram muitas vezes negociadas com escravos e serviços de mineração, bens

estes de suma importância para a reprodução da economia mineradora, ligados direta ou

indiretamente à produção agrícola e ao mercado de terras local.

O Movimento do mercado de propriedades rurais

5 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1980. Para estudo acerca de mercado pré-capitalista ver: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 6 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 15a Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1977; PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1977, entre outros.

O quadro geral do mercado de propriedades rurais ao longo do século XVIII

apresenta até a década de 1720 um período de grande movimento de compras e vendas

de propriedades rurais passando, a seguir, para uma tendência geral de declínio com

retomada de crescimento no número de propriedades negociadas a partir da década de

1770. Estes dois picos de alta- no início e no final do período- com intervalo de retração

do mercado se explicam por razões ligadas diretamente ao processo de mudança da base

econômica da mineração para a agricultura de subsistência, que já na década de 1770

pode ser observada através do mercado de propriedades rurais. A subdivisão do período

de análise em décadas nos permite apreender os movimentos conjunturais pelos quais a

economia local passava e fatores diversos que, direta ou indiretamente, tiveram papel

nas mudanças sofridas pelo mercado de propriedades rurais no século XVIII.

Esses fatores, na mesma medida em que compõe o quadro geral do movimento

de mercado expressam na somatória das suas informações o início de uma mudança

estrutural da base econômica. As atividades agropastoris marcam presença no termo de

Mariana desde o início do povoamento, fato que se comprova pela alta taxa de

negociações realizadas nos primeiros vinte anos de ocupação, as quais são flagradas

pelos dados apresentados no gráfico 1.

GRÁFICO 1 - Concentração de compras e vendas de propriedades rurais, 1711-1780.

Fonte: AHCSM, Livros de Notas 1o e 2o ofício, escrituras de compra e venda, 1711-1780.

A década de 1720 foi particularmente o período de maior movimentação de

negociações de bens rurais no termo de Mariana, mas mesmo anos anteriores já

apresentavam um mercado intenso, havendo mesmo a possibilidade desta década não ter

sido tão marcante em termos percentuais quanto a anterior- visto que negociações

realizadas a partir de contratos particulares foram freqüentes, sendo citadas tais

negociações em “escrito particular” em algumas das escrituras de compra e venda. Com

valor de “fé pública”, a escritura lançada nas Notas oferecia mais segurança

especialmente aos compradores que com elas garantiam o direito à posse da terra diante

de litígios futuros com vizinhos ou antigos moradores, mas também aos vendedores que

com ela podiam exigir a retomada dos bens ou penhora no caso do não cumprimento

das obrigações de pagamento. Não obstante, o reconhecimento social do valor da

escritura particular não era menor do que aquela lançada em Nota, sendo compreensível

que quem havia feito negociação por escrito particular lançasse-as “de novo” na Nota

em virtude de posteriores mudanças no ajuste da negociação como nos prazos de

pagamento, ajustes de uma anterior sociedade nos bens vendidos, ou mesmo pela falta

da assinatura de fiador. Esta última situação é exemplificada pela venda que o tenente

Domingos de Araújo Lanhozo fez de dois sítios com escravos ao mestre de campo

Carlos Pedroso da Silveira, mesmo estando este de posse a algum tempo dos bens por

escritura feita em particular, lançavam-na “de novo” porque o vendedor não queria “que

aquela valesse porque” nela “não assinava o fiador o coronel Salvador Fernandes

Furtado”, assim queria que “essa valesse como nova”7. Lembrando que a escrituração

das notas teve início apenas em 1711, sendo que o povoamento da área há muito já

havia se iniciado e, por conseguinte, o mercado de bens rurais também.

Retornando aos dados do gráfico 1 identificamos três fases nesse mercado: a

primeira, como dito, de alto índice de negociações marcada incisivamente na década de

1720, seguida de uma fase de constante queda nas negociações pelos próximos trinta

anos, tomando novamente a direção de crescimento a partir dos anos 70. Estas fases

refletem conjunturas específicas pelas quais passava a economia e a sociedade local as

quais se refletiram no movimento do mercado. É importante que investiguemos

elementos de importância fundamental para a evolução deste mercado.

7 AHCSM, Livro de Notas 4, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 23/08/1715.

O fator da mineração

Para a análise que segue é importante indicar uma distinção que fazemos entre

propriedades com e sem atividades mineradoras. Em muitas das escrituras de compra e

venda de propriedades rurais eram vendidos conjuntamente outros bens, tais como,

escravos, serviços de mineração (águas e terras minerais, serviços mais complexos com

montagem de estruturas, represamentos e desvios de leitos de rios), moradas de casas

separadas da propriedade rural e até mesmo dívidas. Em raras ocasiões pudemos saber

os valores dos bens individualmente, pois o mais comum é que as escrituras tragam o

preço de todos os bens indistintamente num valor único. De todo modo, por

acreditarmos na relevância da mineração para o desenvolvimento não somente do

mercado como da própria atividade agrícola ao longo do século XVIII, fazemos

distinção entre propriedades com e sem bens de mineração: as propriedades rurais

negociadas com tais bens serão denominadas como propriedades mistas e aquelas que

não arrolavam bens de mineração propriedades agrícolas.

A mineração teve papel importante na constituição, desenvolvimento e posterior

redirecionamento do mercado em foco. Tomemos as primeiras três décadas do

setecentos com atenção: este período apresenta uma maior negociação de propriedades

sem serviços de mineração (em números absolutos, 510) que de propriedades mistas

(249), mas isso não significa que a mineração não tinha papel importante nesse

momento nesse mercado. Isso porque, além daquelas propriedades mistas, muitos

mineradores poderiam desenvolver as duas atividades em paragens ou mesmo

freguesias distintas ao mesmo tempo- o que veremos mais adiante. Além disso, estas

décadas são de grande produção aurífera com uma população crescente e que demanda

um abastecimento regular. Com a alta taxa populacional e o contínuo afluxo de pessoas

para as áreas mineradoras é compreensível que as propriedades agrícolas estivessem em

destaque, pois muitos recém-chegados buscavam uma porção de terra para produção de

gêneros básicos. Os mineradores, proprietários de escravos, buscavam sanar parte do

abastecimento necessário à sua empresa mineradora com o próprio trabalho dos seus

escravos em terras muitas vezes adjacentes à área em que se aplicava na busca pelo

ouro. Haja vista que a agricultura praticada na região não demandava grande inversão

de trabalho/hora, portanto, era útil e perfeitamente praticável que o proprietário

diminuísse os gastos da sua empresa ao plantar e beneficiar parte do que era consumido

em sua propriedade por sua família e escravos. As três primeiras décadas analisadas

(1711-1730) detêm o maior percentual de compras e vendas de propriedades rurais do

período de análise total (1711-1780), concentrando 64% das negociações.

Embora a atividade mineradora tenha dado sentido à economia de Minas Gerais

por um maior espaço de tempo, este período revela uma estreita ligação entre o

desenvolvimento do mercado de bens rurais e a atividade mineradora. É fato que a

mineração de aluvião rapidamente teve de ser substituída por formas de exploração bem

mais complexas, trabalhosas e dispendiosas que a da cata do ouro por meio da

separação daquele ao cascalho nas bateias. Tal complexificação do trabalho envolvido

na extração do ouro repercutiu diretamente nas negociações de propriedades rurais, por

serem essas ligadas direta ou indiretamente à atividade da mineração. Nessa

perspectiva, três fatores se sobressaem como reflexo da atividade de extração do ouro

sobre esse mercado: a mobilidade, ou circulação, dos indivíduos dentro das diversas

freguesias do termo de Mariana, que se liga diretamente à mobilidade da empresa

mineradora, em virtude da descoberta de novas zonas auríferas e à busca por outras

águas e terras minerais diante de uma provável redução da produção aurífera; a

aquisição de escravos através das compras e vendas de propriedades rurais

(indispensáveis na mineração e utilizados também na produção agrária) e dos próprios

bens de extração; e a formação de sociedades exploradoras por meio das compras e

vendas, resultado de uma consciência empreendedora que se baseava na divisão dos

riscos e investimentos necessários da atividade mineradora (sem se desconsiderar o

empreendimento em sociedade voltado para a produção da aguardente como também de

alimentos).

A Mobilidade dos mineiros e seu reflexo no mercado de terras

A agilidade com que as propriedades eram negociadas, não permanecendo

durante longo tempo em posse de um proprietário, indica um processo de circulação

dentro da região ocasionada, principalmente, pela própria flutuação da produção

aurífera- soma-se a isso o fato do ouro funcionar como moeda ocasionando um

dinamismo nesse mercado.

Dois exemplos nos informam sobre a mobilidade dos indivíduos no termo de

Mariana. O capitão Pedro de Almeida Dinis negociou propriedades rurais por quatro

vezes ao longo das duas primeiras décadas do setecentos. Sua primeira e única venda foi

a de uma roça, situada no Sumidouro, em 1713, com atividade mineradora exercida em

“um córrego em o Sumidouro e outro em o córrego do Padre Frei Jorge” e mais

quatorze escravos, localidade onde já declarava residir no momento da compra8. Entre

1722 e 1723 comprou várias capoeiras na paragem do Bacalhau, freguesia da Piranga, e

em 1726, declarando-se residente naquela localidade, faz mais uma compra. Dessa vez

foram três sítios no arrabalde da vila do Carmo, quarenta escravos. Dois dos sítios fazia

venda apenas da metade, por pertencer a outra metade a Antônio Ferreira Pacheco, com

quem tinha sociedade no

[...] serviço de água metido nas terras minerais [...] três rodas preparadas de todo o necessário quatro eixos dois ferrados [...] dois caixões preparados de tudo que pertence a sociedade como também um serviço de água que houvera por título de compra que dele fez a Antônio Ferreira Pacheco o qual possui por carta de data [...]9

Tudo dentro da metade destes sítios, tornando-se sócio do mesmo Antônio

Pacheco em parte dos bens. As lavras situadas no Bacalhau, que também comprava

nesta escritura, indicam que Pedro de Almeida Dinis manteria seus vínculos com esta

localidade ainda que passasse a residir nas redondezas da vila.

Declarando-se morador nos Gualaxos, o capitão Antônio de Siqueira Rondon

comprava um sítio no Ribeirão dos Monsus, junto da vila do Carmo em julho de 1714.

Com cem mãos de milho, várias ferramentas de roça e mineração, entre as quais oito

almocafres e oito bateias, roda, prensa e forno de cobre de fazer farinha de mandioca,

mais de 20 aves entre patos e galinhas e 21 escravos. Por preço de 10.000 oitavas de

ouro ((15:000$000) em dois pagamentos pelo tempo de dois anos. Quase quatro anos

depois, em maior de 1718, vendeu o sítio do Gualaxo (onde residia à época em que

comprou o primeiro sítio) com poucos e simples benfeitorias, nada além de uma morada

de casas e senzalas ambas cobertas de capim. Da produção de subsistência deste sítio

contava apenas um bananal e nove alqueires de milho que estava plantado no momento

da venda10.

O capitão Guilherme Mainard da Silva era quem comprava o sítio do Gualaxo e

o mesmo seria seu sócio numa empresa mineradora e agrícola na qual ambos

investiriam no ano de 1724. Esta era formada por um sítio e vários bens extrativos,

situados na Freguesia de São Sebastião. Serafim Pereira vendia a Guilherme Mainard e

Antônio da Siqueira Rondon apenas a metade dos bens, ficando a possuir a quarta parte

8 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 27/05/1713. 9 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 30/01/1726. 10 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 05/07/1714; AHCSM, Livro de Notas 8, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 16/05/1718.

cada um dos capitães. Do sítio não há muita referência sobre a estrutura (algo não

incomum), dos bens de mineração sabemos que vendia a metade de umas [...] cartas de datas que das ditas terras [minerais] e veios de água [...] bem assim um córrego de água que se [toma] nas capoeiras do engenho de Lourenço [Dias] [danificado] e deságua no engenho das terras de que se trata [do sítio] [...]11

Nesta operação de compra e venda todos se tornavam sócios, ficando

pertencendo ao vendedor, Serafim Pereira, a metade de todos os bens negociados,

enquanto que dividiam a outra metade o capitão Antônio de Siqueira Rondon e o

capitão Guilherme Mainard da Silva, ficando todos de acordo com os termos das

obrigações da sociedade de exploração a qual previa: a introdução de 100 escravos,

sendo 25 introduzidos por cada comprador e os 50 restantes pelo vendedor, bem como

“dar as ferramentas necessárias aos seus escravos”, além de estabelecer um caixa que

receber e escrituraria o ouro que se tirasse do serviço de mineração fazendo-se

“repartição dele todos os meses”12.

As pesadas obrigações aceitas podem ter tido fundamental importância sobre a

flagrante situação de endividamento do capitão Antônio de Siqueira Rondon, que

acabou por obrigá-lo a vender outra propriedade pouco menos de 10 anos depois, em

fevereiro de 1733. Com a anuência de sua esposa, Maria Pereira Leite, o capitão vendeu

um sítio de roça a João Pinto Fernandes um sítio de roça com datas minerais localizado

no arraial do Pinheiro, freguesia do Sumidouro, o qual se achava “penhorado a

requerimento de Luís Soares da Costa como procurador de Manoel Pereira Ramos por

uma dívida que ao dito Manoel Pereira Ramos” deviam os vendedores. Todo o valor da

propriedade e bens (4:800$000) serviria para pagar não somente a penhora como

também a outros indivíduos para quem o casal era devedor13.

Ao que nos interessa esse exemplo, vemos que o capitão Antônio de Siqueira

Rondon se move por diferentes localidades num curto espaço de tempo: sendo residente

nos Gualaxos adquire um sítio junto da vila, enquanto reside neste, compra uma

empresa mineradora e agrícola em São Sebastião. Posteriormente o flagramos, ainda, no

Sumidouro. O que devemos deter destes exemplos é o fator da mobilidade dos

indivíduos, especialmente no período de alta da produção aurífera. Este fator se torna

mais raro a partir da segunda metade do século XVIII. Essa mobilidade parece indicar

11 AHCSM, Livro de Notas 23, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 16/09/1724. 12 AHCSM, Livro de Notas 23, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 16/09/1724. 13 AHCSM, Livro de Notas 39, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 18/02/1733.

que a compra de uma propriedade e a fixação na mesma não eram sinônimos,

especialmente por aqueles que aliavam atividades de mineração à produção agrária.

Tal mobilidade, refletida num processo de recorrente mudança de donos das

propriedades, na mesma medida que também caracteriza a mudança ou o trânsito dos

indivíduos por diferentes localidades, relaciona-se diretamente com a produção aurífera.

Tendo em vista que a extração do ouro numa determinada jazida se dará pelo tempo em

que for lucrativo, é natural que os mineradores, após algum tempo de exploração de um

córrego ou terras minerais, buscassem áreas novas ou ainda pouco exploradas. Da

mesma sorte, como prática natural e mais do que cotidiana a maioria dos habitantes das

Minas Gerais seguia-se a compra ou posse de uma porção de terras agriculturáveis.

Aquisição de serviços de mineração e escravos

Nesse mercado de propriedades rurais também eram movimentados outros bens

indispensáveis à atividade mineradora: as águas e terras minerais e os escravos.

Segundo o Regimento dos Superintendentes e Guardas-Mores, promulgado em 19 de

abril de 1702, a repartição dos descobrimentos minerais se daria pela concessão por

parte do guarda-mor das cartas de datas minerais, cujo tamanho seria definido de acordo

com o número de escravos do minerador14. Assim o que determinava o acesso legal aos

veios auríferos era a qualidade de dono de escravos. Mas isso não significava a

impossibilidade do acesso por aqueles que não estavam preparados para arcar sozinhos

e de imediato com os gastos da montagem de um plantel mínimo de escravos que lhes

permitisse pleitear parcela das zonas mineradoras. Através da compra de uma

propriedade rural era possível ter acesso a esses outros tipos de bens, podendo-se pagar

os mesmos em prazos que variavam para mais de dois ou três anos. Tempo suficiente

para conseguir efetuar os pagamentos dos bens adquiridos e ainda amealhar algum valor

para si. Já vimos- tomemos, por exemplo, o capitão Antônio de Siqueira Rondon- que a

atividade mineradora demandava investimentos. Quanto maior a fosse a intenção de

lucro maior deveria ser o investimento, especialmente em escravos.

A aquisição de escravos era essencial para a reprodução da economia

mineradora. Sendo o mercado de propriedades rurais também um mercado onde

14 Regimento dos superintendentes, guardas-mores e mais oficiais, deputados para as minas de ouro. In: Códice Costa Matoso, Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999. Coordenação geral de Luciano de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos, p. 311-330.

circulavam bens de mineração e escravos é plausível que a ele se dirigissem indivíduos

mais interessados na obtenção desses bens que propriamente nas propriedades rurais.

Fato é que uma negociação envolvendo todos os bens diretamente ligados à atividade

mineradora e agrícola acrescida, ainda, da mão-de-obra escrava representava a obtenção

de uma empresa completamente estruturada pelos principais elementos que compunham

a base da economia mineira, de modo geral da economia de base agrária e escravista da

América portuguesa.

A obtenção de uma carta de datas minerais ou a compra de parcelas de áreas de

mineração sob o domínio de outrem envolvia sempre o risco de que a produção aurífera

não correspondesse ao investimento que a montagem e procedimentos de produção de

um serviço de mineração exigiam. A imagem de uma atividade mineradora feita a céu

aberto sem quaisquer implementações tecnológicas para além do uso dos instrumentos

básicos (bateias, almocafres e cavadeiras, entre outros) deve ser repensada a partir da

percepção de que, muito embora o processo mineratório permaneça com base na

exploração da superfície da terra, a mineração do ouro aluvional sofreu muito cedo com

as implicações decorrentes de uma maior complexidade das formas de extração do ouro.

Foram poucas as inovações tecnológicas encetadas pelos mineradores no século

XVIII, mas as que se fizeram tiveram papel importante. Segundo Andréa Lisly

Gonçalves, a introdução das rodas de esvaziamento das catas e o sistema de tabuleiros

ocorreu muito cedo nas Minas Gerais, baseando-se no relato do paulista Bento

Fernandes Furtado, este sistema teria sido introduzido por volta de 1707 em Minas

Gerais. O funcionamento dos tabuleiros tinha por finalidade reproduzir “o

funcionamento da natureza”:

[...] quando na época das invernadas das chuvas os morros se desmoronavam nas partes altas e das terras acumuladas mais abaixo se retiravam, depois de escavadas, os cascalhos aos quais o ouro, se houvesse pinta, se encontraria misturado15.

A primeira menção a presença da roda de minerar em serviços de mineração

negociados junto com propriedades rurais data de 1721. Na ocasião, Lázaro Fernandes

vendia para Francisco Gomes da Rosa a terça parte de um sítio junto com o qual, além

de outros serviços de mineração, vendia também:

15 GONÇALVES, Andréa Lisly. Escravidão, herança Ibérica e africana e as técnicas de mineração em Minas Gerais no século XVIII. In: Anais do XI Seminário sobre a Economia Mineira: Economia, História, Demografia e Políticas Publicas, Diamantina, 2004. (Disponível em http://www.cedeplar.ufmg.br/diamantina2004/textos/D04A031.PDF

[...] uma parte do serviço do veio de água que tem uma roda com serviço aberto em terras que são de Francisco Carvalho em que é sócio este e o Padre Manoel Pires de Carvalho, Manoel Carvalho, João Batista Pereira e os herdeiros do Capitão Manoel Rodrigues de Souza16

No entanto, o sistema de tabuleiro foi mencionado bem antes, em 1713, na

venda que José da Fonseca Vimeiro fez de um sítio em Ribeirão Abaixo com “serviços

das minhas lavras que constam dos serviços de um córrego na dita lavra, duas catas

desmontadas junto a minha ponte mais duas catas desmontadas no tabuleiro da roça

mais duas catas desmontadas junto a dita venda17”. Mas essa venda foi singular, pois a

complexidade da atividade mineradora só se torna patente a partir da década de 1730,

momento em que se tornam mais comuns as declarações sobre as montagens complexas

e laborais dos serviços de mineração.

Como o próprio Bento Fernandes Furtado afirma, para que se introduzisse essa

inovação no processo da mineração era preciso que o minerador contasse com “grande

desvelo, despesa e trabalho” com quantidade de escravos suficiente para a realização de

todo o trabalho necessário para a montagem do sistema18. A mineração, que desde o

início da exploração do ouro nos sertões da América portuguesa era atividade que exigia

um alto custo de reprodução, com o passar dos anos exigiu cada vez mais preparo e

trabalho dos serviços de mineração. Isto, conseqüentemente, acarretava despesas e

investimentos que nem sempre se traduziam em grandes lucros- uma vez que a

capacidade produtiva de uma data mineral poderia surpreender desagradavelmente o

minerador com uma baixa produção inicial que o obrigava a investir ainda mais no

preparo da área a ser minerada. Todos esses são fatores pertinentes para uma solução

encontrada pelos mineradores para as cada vez maiores exigências da mineração: a

formação das sociedades de exploração.

A formação de sociedades exploradoras

A formação de uma sociedade contava com um tipo de registro notarial próprio,

as chamadas escrituras de sociedade, que informava, de modo geral, os bens nos quais

16 AHCSM, Livro de Notas 17, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 20/11/1721. 17 AHCSM, Livro de Notas 2, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 30/01/1713. Grifo nosso. 18 Notícias dos primeiros descobridores das primeiras minas do ouro pertencentes a estas Minas Gerais, pessoas mais assinaladas nestes empregos e dos mais memoráveis casos acontecidos desde os seus princípios. In: Códice Costa Matoso, Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999. Coordenação geral de Luciano de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos, p 192.

os indivíduos se tornavam sócios, com quantos escravos cada um entrava na sociedade,

quem se tornava caixa administrador, se haveria ou não registro dos lucros e das dívidas

e de quanto em quanto tempo haveria acerto de contas entre os sócios a respeito destes,

o tempo que a sociedade duraria, quais as condições colocadas para a saída de um dos

sócios e declarações específicas, quando as houvessem. Como exemplo, vejamos o caso

de duas sociedades realizadas no ano de 1713. Em setembro deste ano Domingos de

Barros e Miguel Domingues Ramos escrituraram uma sociedade em torno de uma roça,

“dois serviços de lavra de ouro” e escravos19. A roça e as lavras haviam-nas comprado

ambos a Pedro de Almeida Dinis poucos meses antes, ainda estando sujeitos aos seus

pagamentos, vencendo o primeiro pagamento desta compra no mês em que fizeram a

sociedade20. Declaravam, pois, que:

[...] tinham feito entre si sociedade na dita roça, lavras e escravos, assim dos lucros como das perdas, disseram que ele dito Domingos de Barros entrava com doze escravos e ele dito Miguel Domingues com outros doze nos quais entravam nos quais entravam os quatorze que haviam comprado e cada um com a metade da roça e serviços de lavras que haviam comprado, a cuja obrigação estavam ambos obrigados, para terem igualmente parte assim dos lucros que Deus for servido dar como nas perdas, e que dado caso que eles queiram desmanchar a dita sociedade, em qualquer tempo o poderão fazer ambos ou cada um fazendo conta aos ganhos e perdas igualmente, contanto que o dito Domingos de Barros Caldas sairá com 1460 oitavas de ouro de mais do [danificado] que o dito Miguel Domingues por ter entrado com elas [...]21

A administração era dividida por ambos, cabendo aos dois os cuidados com as

cobranças de dívidas devidas à sociedade e aquelas que esta, por ventura, alguém

devesse. Esta escritura de sociedade veio a firmar em documento próprio aquilo que já

havia se realizado através da escritura de compra e venda: uma sociedade em torno dos

bens comprados, definindo o que cabia a cada um investir na sociedade (como é o caso

dos escravos) e declarando valores específicos com que entravam- neste caso as 1460

oitavas de ouro que Domingos de Barros Caldas havia investido na sociedade.

Em julho de 1713, Fernando de Morais Madureira vendeu aos sócios Manoel

Lopes Vieira e Manoel Rodrigues de Souza um engenho com seis escravos. Estes

sócios, em novembro do mesmo ano, firmaram sociedade com o tenente Domingos

19 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de sociedade, data 09/09/1713. 20 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 27/05/1713. 21 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de sociedade, data 09/09/1713.

Pinto de Magalhães e Bernardo Gonçalves Chaves nestes bens, sendo cada um deles

obrigados a introduzir 14 escravos22.

Após a compra da propriedade e, eventualmente, precisando de indivíduos

interessados em investir na exploração de um engenho, os sócios Manoel Lopes Vieira e

Manoel Rodrigues de Souza cederam parte dos bens da propriedade a outros. Todos os

sócios acederam à administração da sociedade a Manoel Lopes Vieira e Bernardo

Gonçalves Chaves “dispondo ambos ou cada um por si o que for de conveniência da

sociedade”, claramente selecionando um de cada parte dos sócios- embora todos

estivessem em sociedade, parece ser o caso de que os sócios que haviam adquirido a

propriedade no mercado elegeram entre si um representante, o mesmo se dando em

relação aos dois indivíduos que entraram na sociedade depois da compra. Aos

administradores cabia “tomar contas do rendimento da fazenda e cobrar as dívidas a ela

pertencentes, e dá-las (as contas) aos mais sócios quando lhe pedirem”.

Na formação de uma sociedade, portanto, se definia o que cabia a cada um

investir para o aumento da “fábrica”, quais as condições de funcionamento da mesma

desde os seus administradores até como e quando cada sócio poderia sair da sociedade.

Neste item é importante notar que a “real satisfação” de uma propriedade, ou seja, o

término do pagamento da propriedade adquirida era, em geral, o momento postulado

pelos sócios para o término da própria sociedade. As sociedades eram feitas com prazo

para acabar, o que no caso de sociedades que envolvessem propriedades rurais

significava o momento em que se finalizasse o pagamento da compra da propriedade

rural. Os quatro sócios envolvidos na exploração do engenho estipularam a repartição

do “avanço que Deus for servido dar” (os lucros) somente depois de pago o engenho.

Investir em sociedade era uma alternativa atraente, especialmente por se poder

investir com mais presteza do que singularmente se conseguiria e, conseqüentemente,

atingir os lucros “que Deus for servido dar” com maior rapidez. Era um modo eficiente

de investimento, pois se poderia adquirir e investir em mais de uma propriedade em

concomitância sem se preocupar na lide diária com a produção (desde que, obviamente

se houvesse condição para tal) nem com vultosos valores necessários para um empresa

que os exigisse, como é o caso das propriedades onde se praticava a mineração e nos

engenhos. Nos exemplos citados para discussão da mobilidade dos indivíduos dentro de

22 AHCSM, Livro de Notas 3, 1o ofício, escritura de sociedade, data [?]/11/1713.

termo de Mariana observamos a presença das sociedades, que auxiliavam na montagem

de uma nova exploração agrícola e mineradora.

Embora estes tipos de propriedades rurais garantissem bom retorno do

investimento, também eram feitas sociedades em pequenas propriedades agrícolas. O

fato é que investir em sociedade era mais seguro do que o investimento individual, pois

sempre havia “o risco de diminuição” dos bens e dos rendimentos, como mortes e fugas

de escravos, baixa capacidade de produção das lavras auríferas, perdas ou pouco retorno

da produção agrícola.

Dos exemplos citados tivemos acesso às escrituras de compra e venda das

propriedades e bens objetos da formação das sociedades. Mas isso não é uma regra. A

maior parte das sociedades era feita na própria escritura de compra e venda. Podemos

descrever a formação destas sociedades a partir de duas situações: uma envolve a venda

de uma parcela da propriedade rural por um ou mais indivíduos a um ou mais

compradores. A outra se dá quando dois ou mais indivíduos compram uma propriedade

“inteira” a um indivíduo (ou mais de um, caracterizando o término de uma sociedade

anterior envolvendo a propriedade). Ainda podemos falar em sociedade quando um

sócio vendia sua parte dos bens ao outro sócio, o que era comum e previsto na formação

da sociedade (cláusula de sempre oferecer primeiro ao sócio sua parte nos bens antes de

propor venda a terceiros).

Do total das escrituras analisadas quase a metade (45,58%) envolvia sociedades.

Os exemplos anteriores (a partir das escrituras de compra e venda e de escrituras de

sociedade) fornecem uma indicação do sentido da formação das sociedades: era

estratégia de prevenção diante da incerteza dos lucros a serem auferidos pelos bens, em

virtude de uma diminuição dos bens ou dos riscos existentes nas atividades econômicas

encetadas (produção agrícola de gêneros de subsistência, aguardente e aurífera para o

caso do termo de Mariana).

A entrada de um novo sócio, traduzida na compra de uma parte dos bens por

este, significava um novo agente capaz de trazer ânimo por meio de investimentos e

divisão dos custos arcados com produção na propriedade. Relevante nesse aspecto é

notar que ao longo do século XVIII as sociedades foram presentes em quase metade

(47,42%) das negociações de propriedades mistas (com mineração), enquanto nas

negociações de propriedades agrícolas as sociedades estiveram sete pontos percentuais

abaixo daquele, perfazendo o total de 40,40% das negociações deste tipo.

GRÁFICO 2 - Propriedades rurais agrícolas e mistas com e sem sociedade, por

números absolutos.

Fonte: AHCSM, Livros de Notas 1o e 2o ofício, escrituras de compra e venda, 1711-1780.

A associação com outros indivíduos em uma exploração significava auxílio

mútuo para o desenvolvimento da atividade mineradora, aumento da “fábrica” e divisão

de custos e riscos. Associar-se ampliava o número de investimentos em diferentes

serviços de mineração o que aumentava a margem de produção e rendimento,

conseqüentemente. Um exemplo disso é a grande quantidade de áreas em mineração das

quais era dono o Alferes José Pires Santiago na Passagem. De algumas delas era único

proprietário e em outras já minerava na companhia de outros sócios, quando vendeu 3/4

destes bens de mineração, um sítio com engenho de fazer farinha e mais quatro escravos

ao capitão Manoel da Cruz Pereira e ao licenciado Antônio de Souza Rego. Constavam

os bens de mineração das seguintes terras minerais e serviços:

[...] quatro datas de terras minerais com suas cartas (que partiam) com a dita roça [negociada] que lhe haviam concedido duas pelo [rego] da água [...] duas que se concederam a Agostinho da Costa Lopes que as trespassara a ele vendedor como também disse que era senhor [...] de um serviço de água que principia na roça do dito Luís Vieira e Francisco Antunes sócios pelo qual vinha um [córrego grande] que por termos de amigável composição feita no cartório [...] havia ajustado com o dito Luís Vieira e seu sócio a partir a dita água ao meio e servir-lhes aos ditos e a ele vendedor e que o mesmo se praticara em outro córrego pequeno que passa por debaixo de umas bicas repartindo pelo meio contanto que os ditos sócios Luís Vieira e Francisco Antunes o ajudarão a meter a ele [torná-lo produzível] [...] a sexta parte de uma água que saía do [Itaquês] da qual metade era do Capitão João Pinto de Carvalho e a outra dele vendedor (e) do Capitão

Francisco Ribeiro de Andrade e do Capitão Gonçalo da Costa Gomes da qual sexta parte [...] lhe servia de com ela minerar em três datas de terra [...]23.

Luís Vieira era dono de um sítio que se avizinhava da propriedade do alferes

José Pires Santiago e, como o trecho citado permite observar, as terras minerais dos

sítios de ambos também faziam divisão umas com as outras. As parcelas de águas e

terras minerais concedidas pelas cartas de datas determinavam o que cabia a cada

minerador, mas algumas situações podiam surgir, por exemplo, da necessidade de se

desviar o rio para melhor proveito das áreas mineradas. Neste caso específico, o córrego

em que mineravam os vizinhos foi divido, mas tal divisão parece dizer mais respeito ao

que cabia a cada um do que propriamente a um acordo de forma de utilização da água.

Resolvendo-se a divisão, que provavelmente satisfizera a ambas as partes, coube aos

sócios Luís Vieira e Francisco Antunes, vizinhos do alferes José Pires, a o auxiliarem

no trabalho de colocar em produção a parte que lhe coube pertencer após a amigável

composição das partes. Esses detalhes de acertos anteriores eram declarados pelos

compradores dos ¾ dos bens negociados sócios interessados em tudo e, portanto,

devendo tomar ciência de ajustes anteriores envolvendo os bens que adquiriam. Mas é

interessante notar que, ao contrário de disputas e rixas pela posse de áreas de

mineração- que existiam, de fato- a boa convivência e a procura por um ajuste

satisfatório partindo da máxima “uma mão lava a outra” também era comum nas áreas

de mineração: no caso, ajustada a divisão dos córregos, que pode ter beneficiado mais

aos sócios Luís Vieira e Francisco Antunes que ao alferes José Pires, comprometiam-se

os vizinhos a ajudarem na preparação do terreno que tocava ao alferes para o início da

mineração.

De todo modo, este exemplo demonstra que a sociedade foi um elemento

importante na atividade mineradora, tendo em vista os inúmeros serviços de mineração

e a sociedade de exploração da qual o vendedor já fazia parte com os capitães Francisco

Ribeiro de Andrade e Gonçalo da Costa Gomes. Pelo viés dos compradores, a

diversificação de áreas de atuação pode ser percebida pelo capitão Manoel da Cruz

Pereira, que ao residir em Antônio Dias, termo de Vila Rica, se tornava sócio num sítio

com bens de mineração no termo de Mariana.

23 AHCSM, Livro de Notas 10, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 15/05/1719. Dos quais bens de mineração apresentou o Alferes José Pires Santiago cartas de datas de todos.

O tempo de preparo das terras e águas minerais podia ser consideravelmente

longo, o que acarretava assomarem-se as despesas com os escravos com pouca entrada

de rendimentos- ao menos aquele provindo das terras que se preparava- como nos

testemunha Francisco de Castro Ribeiro ao vender seu sítio nas Catas Altas, com

serviço “de água metida em as terras minerais em (a) qual gastara mais de um ano que

nela trabalharam seus escravos para o haver de por corrente para efeito de se poderem

lavrar as terras minerais24”.

Conclusão

Sobressai, principalmente, dos dados e reflexões feitas a forte vinculação entre a

agricultura e a mineração. A utilização feita pelo proprietário das terras da força escrava

em concomitância nas duas atividades demonstra que não havia menosprezo pela

prática agrária pelos mineradores, ao contrário, ela foi largamente realizada na região

ainda no auge minerador, o que se contrapõe à visão de que a mineração era o objetivo

único daqueles que se aventuravam à cata do ouro sendo a agricultura relegada aos

simples roceiros. A formação das sociedades é um fator que deve ser ainda melhor

explorado, mas, no momento, ela nos informa o quão indispensável era construir laços

com outros indivíduos para se inserir ou se estabelecer em certas atividades

dispendiosas, como a mineração e a produção da aguardente, e para redução dos gastos

e mesmo das incertezas advindas das atividades encetadas.

ABREVIATURAS

AHCSM - Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana

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24 AHCSM, Livro de Notas 10, 1o ofício, escritura de compra e venda, data 23/11/1718.

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