resumo ode triunfal

4
ODE TRIUNFAL Trata-se de um poema do heterónimo Álvaro de Campos, poeta que surge como reflexo do ardor futurista de Fernando Pessoa. A observação do mundo que o rodeia naquele início do século XX, retratando a rebeldia e a insubmissão dos movimentos de vanguarda. Olha também para o futuro e canta-o na sua poesia. Na obra de Álvaro de Campos reconhece-se uma evolução ao longo de três fases: A decadentista, que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações; a futurista e sensacionista, caracterizada pela exaltação da energia, de “todas as dinâmicas”, da velocidade e da força até situações de paroxismo; e finalmente a fase intimista em que o poeta diante da incapacidade de realizar o que projectou entra novamente na abulia, no abatimento, que provoca um supressíssimo cansaço. Este poema integra-se claramente na segunda fase de evolução do poeta a futurista sensacionista. Esta foi influenciada pelo futurismo de Marinetti e pelo sensacionismo de Whitman. Se bem que ambos estejam presentes na Ode Triunfal, o facto é que o sensacionismo acaba por absorver o futurismo. Neste poema, merece desde já a nossa atenção o título. Ode remete-nos para um canto de exaltação. Neste caso o “eu” exalta a máquina, a vida mecânica e industrial, a civilização industrial, o quotidiano das gentes, ou melhor, as sensações que defluem do amor à vida moderna em toda a sua variedade. Com o epíteto triunfal pretende-se vincar, mas também hiperbolizar o sentido de ode. Dá-nos deste modo logo a sensação de qualquer coisa de grandioso, não apenas no conteúdo, mas também na forma. Foi exactamente com os poemas desta segunda fase de Álvaro de Campos que Fernando Pessoa mais se afastou do lirismo tradicional. Daqui resulta a dificuldade de analisar estes poemas. A rotura com a lírica tradicional verifica-se mormente na irregularidade das estrofes. Existem estrofes de quatro versos, de dez, de onze, de dezasseis, etc. Semelhante irregularidade se detecta na métrica: há versos de cinco a vinte e uma sílabas e outros em que a contagem se torna difícil, sobretudo quando entram sons que não são signos linguísticos. Da conjugação destes elementos resulta um ritmo nervoso e irregular, que traduz a dinâmica vivencial do sujeito poético, a sua energia interior. Ao nível da sintaxe é também possível constatar o afastamento da lírica tradicional. A quase ausência de subordinação (algumas relativas, poucas comparativas e uma consecutiva) corrobora esta afirmação. As orações coordenadas marcam parataticamente o ritmo

Transcript of resumo ode triunfal

Page 1: resumo ode triunfal

ODE TRIUNFAL

Trata-se de um poema do heterónimo Álvaro de Campos, poeta que surge como reflexo do ardor futurista de Fernando Pessoa. A observação do mundo que o rodeia naquele início do século XX, retratando a rebeldia e a insubmissão dos movimentos de vanguarda. Olha também para o futuro e canta-o na sua poesia.Na obra de Álvaro de Campos reconhece-se uma evolução ao longo de três fases:A decadentista, que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações; a futurista e sensacionista, caracterizada pela exaltação da energia, de “todas as dinâmicas”, da velocidade e da força até situações de paroxismo; e finalmente a fase intimista em que o poeta diante da incapacidade de realizar o que projectou entra novamente na abulia, no abatimento, que provoca um supressíssimo cansaço.Este poema integra-se claramente na segunda fase de evolução do poeta a futurista sensacionista. Esta foi influenciada pelo futurismo de Marinetti e pelo sensacionismo de Whitman. Se bem que ambos estejam presentes na Ode Triunfal, o facto é que o sensacionismo acaba por absorver o futurismo.Neste poema, merece desde já a nossa atenção o título. Ode remete-nos para um canto de exaltação. Neste caso o “eu” exalta a máquina, a vida mecânica e industrial, a civilização industrial, o quotidiano das gentes, ou melhor, as sensações que defluem do amor à vida moderna em toda a sua variedade. Com o epíteto triunfal pretende-se vincar, mas também hiperbolizar o sentido de ode. Dá-nos deste modo logo a sensação de qualquer coisa de grandioso, não apenas no conteúdo, mas também na forma.Foi exactamente com os poemas desta segunda fase de Álvaro de Campos que Fernando Pessoa mais se afastou do lirismo tradicional. Daqui resulta a dificuldade de analisar estes poemas.A rotura com a lírica tradicional verifica-se mormente na irregularidade das estrofes. Existem estrofes de quatro versos, de dez, de onze, de dezasseis, etc. Semelhante irregularidade se detecta na métrica: há versos de cinco a vinte e uma sílabas e outros em que a contagem se torna difícil, sobretudo quando entram sons que não são signos linguísticos. Da conjugação destes elementos resulta um ritmo nervoso e irregular, que traduz a dinâmica vivencial do sujeito poético, a sua energia interior.Ao nível da sintaxe é também possível constatar o afastamento da lírica tradicional. A quase ausência de subordinação (algumas relativas, poucas comparativas e uma consecutiva) corrobora esta afirmação. As orações coordenadas marcam parataticamente o ritmo rápido do poema. Cada oração coordenada exprime um fenómeno da vida moderna que cruzou o pensamento do sujeito de enunciação. Ao longo do poema surgem ainda exclamações que sublinham a emoção do sujeito diante dos fenómenos da vida moderna. Repare-se nos últimos versos: vinte e cinco são exclamações, sendo apenas três afirmações onde se verifica a presença do verbo. Os infinitivos marcam também presença nas expressões exclamativas. Devemos ainda considerar nesta linha de pensamento as repetições e as enumerações gradativas, permitindo a justaposição de palavras, que brotam torrencialmente através dessas enumerações falsamente caóticas, que conduzem ao excesso de expressão definido por José Augusto Seabra. Tudo o que até agora mencionei, aliado a uma catadupa de figuras (metáforas, comparações, imagens, apóstrofes, anáforas, etc.) produzem um estilo ferozmente dinâmico que jamais se produziu em Portugal.Aparecem também alguns desvios sintácticos “ fera para a beleza de tudo isto”; “Por todos os meus nervos dissecados fora”; “frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita”.Há palavras que não transportam em si interesse lírico. Não obstante Álvaro de Campos como o escritor parnasiano recorreu a uma série de vocábulos prosaicos até de índole técnica “fábrica”, “maquinismos”, “dissecados”, “correias de transmissão”, “êmbolos”, “cargas de navios”, “guindastes”, “chumaceiras”, etc., adaptando a mudança da vida

Page 2: resumo ode triunfal

moderna à mudança no conteúdo ideológico das palavras.Sendo esta a primeira obra de Campos, tem o dom de despertar em nós admiração e até espanto, contribuindo para tal, como já referi, o próprio vocabulário.O poema inicia-se com a iluminação das lâmpadas eléctricas. Somos colocados no meio de um ambiente fabril, em que o sujeito poético escreve num estado febril. Sentimos de repente um rugir “rugindo os dentes” que nos afasta do tempo dos outros heterónimos. Estamos num tempo de modernidade.Logo no início da segunda estrofe somos lançados no meio dos ruídos de todos os elementos que constituem a dita fábrica. O homem enfraquecido pela febre, exposto aos barulhos produzidos pelas máquinas, é arrebatado pelos movimentos dos mecanismos (rodas, engrenagens). O seu ritmo coaduna-se ao ritmo das máquinas que estão à sua volta. São as papilas, os lábios, os nervos e a sua cabeça que giram como os mecanismos da civilização moderna. Todo este mundo chega até si através dos sentidos que estão alerta procurando abarcar tudo.A maioria das suas frases são nominais, jogando apenas com verbos conjugados que se referem ao sujeito poético “tenho febre”, “escrevo”, “sinto”, “canto”. Os verbos no infinitivo são também recorrentes. A forma como o “ eu” observa e tenta abarcar o mundo não parece dar-lhe tempo para organizar o seu discurso de outro modo. O uso recorrente de exclamações, interjeições e onomatopeias: “r-r-r-r-r- eterno!; “Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios”; “Hup-lá, hup-lá, hup lá hô...; as apóstrofes “Ó fazendas nas montras”, Ó manequins!, “Ó últimos figurinos! Ó cais, ó portos, ó comboios!....; as enumerações “Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!; “guerras, tratados, invasões, Ruído, injustiças, violências” e nas apóstrofes; as anáforas “Olá grandes armazéns, ... Olá anúncios eléctricos... Olá tudo!; “Eh-lá-hô fachadas, Eh-lá-hô elevadores, Eh-lá-hô recomposições ministeriais!” são os recursos estilísticos que lhe permitem cantar com excesso de expressão as suas sensações.Acrescente-se ainda o recurso a comparações inesperadas “olhando os motores como a uma natureza tropical”; “Possuo-vos como a uma mulher bela”; “um orçamento é tão natural como uma árvore e um parlamento tão belo como uma borboleta.”O excesso de expressão corporiza-se ainda nas aliterações onomatopaicas “ de ferro e fogo e força” “ rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando” e “quase silêncio ciciante”.Note-se ainda a frequência de uma série de sequências de três ou mais adjectivos ”Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável”; “Em vós ó grandes, banais, úteis, inúteis”; “Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus”; Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos”. Veja-se ainda uma série de adjectivos e advérbios que servem a exaltação do belo atroz “Maravilhosa gente humana que vive como cães”; “fauna maravilhosa do fundo do mar da vida”; “Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transtlânticos!”; “ruído cruel e delicioso da civilização”. Agora os advérbios “Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos”; “Amo-vos carnivoramente / Pervertidamente”Termina de forma abrupta o furor do eu que exalta o seu amor pela civilização, passando o tom a ser de uma certa fatalidade da morte, a ternura perdida na infância e o mistério do mundo.Campos aproxima-se de Caeiro no recurso ao verso livre e na importância conferida à sensação. Mas o que no mestre é a “sensação das coisas como são” em Campos, o que salta à vista é a fome de um mundo de sensações novas. Daí que sinta o bem como sente o mal, o mórbido como sente o saudável, o normal como sente o anormal, única forma de “ser toda a gente e toda a parte” e “sentir tudo de todas as maneiras”.Assim o que é serenidade epicurista em Caeiro é ânsia futurista do novo Homem (segundo Marinetti deveria este ser isento, saudável, amoral, dominador e livre de todas as peias) em Campos “que como uma febre e um cio e uma fome agita” o impele a querer sentir tudo de todas as maneiras.