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Hoje existe um consenso generalizado de que o patrimônio é uma “construção social”. De acordo com a obra Antropologia y Patrimônio de Llorenç Prats, o patrimônio como uma “construção social”, quer dizer que ele não é algo dado, que exista na natureza. Também não é um fenômeno social universal, pois não existe em todas as sociedades humanas e nem em todos os períodos históricos. Ainda quer dizer que é um artifício, idealizado por alguém (ou por um coletivo) em algum lugar e momento específicos. Assim, o patrimônio como uma “construção social” não pode ser “históricamente cambiante” (PRATS, 2004, p. 20), ou seja, o patrimônio não pode ser mudado de acordo com novos critérios ou interesses. O autor fala também em “invenção” do patrimônio, remetendo à idéia de “manipulação”. Os conceitos de invenção e o de construção social são úteis para explicar processos de construção patrimonial. Invenção se refere a processos pessoais e conscientes de manipulação enquanto que a construção social refere-se a processos inconscientes e impessoais de legitimação (PRATS, 2004, p.20). Deste modo a invenção, para perpetuar-se, precisa se converter em construção social, ou seja, alcançar um nível mínimo de consenso. O fator determinante do patrimônio é seu caráter simbólico, a capacidade de representar simbolicamente uma identidade. Segundo Prats seria por isso que se mobilizam recursos para conservá-lo e expô-lo. Relacionar Patrimônio e a construção de identidades na Europa do séc. XIX. Anne-Marie Thiesse fala, em seu texto, sobre ficções criadoras; que seriam a constituição de um discurso que unisse a opinião de intelectuais, artistas, escritores e costumes e histórias populares em uma “cultura-comum” - a identidade coletiva - o Nacional. Estes discursos ideológicos formaram a concepção de Estados Nacionais, unidos e coesos, e justificaram o anexo de alguns territórios (a unificação de determinadas regiões com características similares) em um governo comum. O Patrimônio se insere nisto, pois constitui o imaginário da nação, deste modo, ocorre uma grande valorização do monumental por ser mais visível e, portanto, mais marcante na memória coletiva. É neste período que começa a preocupação com a restauração e preservação do patrimônio material como “Monumentos Nacionais”. Estas representações arquitetônicas são inclusive utilizadas como referência para novas construções no território nacional e servem como inspiração e metáforas para a Nação. Afora o patrimônio arquitetônico a construção de identidades inclui características peculiares de cada região buscando a diferenciação em relação às outras nações, isso abrange desde recursos naturais e períodos do ano que lhes caracterizem (floresta do norte no outono, praias mediterrânicas no verão, Alpes suíços no inverno), trajes típicos, idioma nacional, entre outros, todos estes realçados por uma produção cultural (pintura, dança, literatura, ópera, teatro, música, etc.) de caráter “pedagógico” que visa a assimilação do nacional em todo o território, e o que não se encaixar nestas características é identificado como representações regionais subordinadas às do caráter nacional.

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Hoje existe um consenso generalizado de que o patrimônio é uma “construção social”. De acordo com a obra Antropologia y Patrimônio de Llorenç Prats, o patrimônio como uma “construção social”, quer dizer que ele não é algo dado, que exista na natureza. Também não é um fenômeno social universal, pois não existe em todas as sociedades humanas e nem em todos os períodos históricos. Ainda quer dizer que é um artifício, idealizado por alguém (ou por um coletivo) em algum lugar e momento específicos. Assim, o patrimônio como uma “construção social” não pode ser “históricamente cambiante”(PRATS, 2004, p. 20), ou seja, o patrimônio não pode ser mudado de acordo com novos critérios ou interesses. O autor fala também em “invenção” do patrimônio, remetendo à idéia de “manipulação”. Os conceitos de invenção e o de construção social são úteis para explicar processos de construção patrimonial. Invenção se refere a processos pessoais e conscientes de manipulação enquanto que a construção social refere-se a processos inconscientes e impessoais de legitimação (PRATS, 2004, p.20). Deste modo a invenção, para perpetuar-se, precisa se converter em construção social, ou seja, alcançar um nível mínimo de consenso. O fator determinante do patrimônio é seu caráter simbólico, a capacidade de representar simbolicamente uma identidade. Segundo Prats seria por isso que se mobilizam recursos para conservá-lo e expô-lo.

Relacionar Patrimônio e a construção de identidades na Europa do séc. XIX. Anne-Marie Thiesse fala, em seu texto, sobre ficções criadoras; que seriam a constituição de um discurso que unisse a opinião de intelectuais, artistas, escritores e costumes e histórias populares em uma “cultura-comum” - a identidade coletiva - o Nacional. Estes discursos ideológicos formaram a concepção de Estados Nacionais, unidos e coesos, e justificaram o anexo de alguns territórios (a unificação de determinadas regiões com características similares) em um governo comum. O Patrimônio se insere nisto, pois constitui o imaginário da nação, deste modo, ocorre uma grande valorização do monumental por ser mais visível e, portanto, mais marcante na memória coletiva. É neste período que começa a preocupação com a restauração e preservação do patrimônio material como “Monumentos Nacionais”. Estas representações arquitetônicas são inclusive utilizadas como referência para novas construções no território nacional e servem como inspiração e metáforas para a Nação. Afora o patrimônio arquitetônico a construção de identidades inclui características peculiares de cada região buscando a diferenciação em relação às outras nações, isso abrange desde recursos naturais e períodos do ano que lhes caracterizem (floresta do norte no outono, praias mediterrânicas no verão, Alpes suíços no inverno), trajes típicos, idioma nacional, entre outros, todos estes realçados por uma produção cultural (pintura, dança, literatura, ópera, teatro, música, etc.) de caráter “pedagógico” que visa a assimilação do nacional em todo o território, e o que não se encaixar nestas características é identificado como representações regionais subordinadas às do caráter nacional.

O Patrimônio Cultural e a Construção Imaginária do Nacional

Nestor Canclini

“Os processos de urbanização, industrialização e massificação de cultura, as migrações e a transnacionalização dos bens materiais e simbólicos, a globalização e as formas de integração econômica exigem a redefinição do que hoje podemos entender por nação.” A população originária se utiliza de vários bens e mensagens vindas do estrangeiro, incorporando-os a nossa vida cotidiana. “...o rádio, a televisão, o cinema, os vídeos e os discos tornam-se recursos-chave para a documentação e a difusão da própria cultura, para além das comunidades locais que a geraram. São, por isso, parte do nosso patrimônio.” Como redefinir o patrimônio cultural diante das condições históricas, sociais e comunicacionais deste fim de século? Existem atualmente 3 movimentos de reconceitualização:

a) O patrimônio não inclui apenas as expressões mortas da cultura de cada povo, mas também os bens culturais, visíveis e invisíveis;

b) Ampliou-se a politica patrimonial de conservação e administração do que foi produzido no passado;

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c) O patrimônio de uma nação também se compõe da cultura popular e não apenas dos bens culturais produzidos pelas classes dominantes.

PATRIMÔNIO CULTURAL E DESIGUALDADE Participação desigual dos grupos sociais na formação do patrimônio. Existe uma hierarquia dos capitais culturais: vale mais a arte que os artesanatos, a medicina cientifica do que a popular. O patrimônio cultural serva, assim, como recurso para produzir as diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que gozam de um acesso preferencial à produção distribuição dos bens. os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais representativos da história local e mais adequados às necessidades presentes do grupo que os fabrica. Constituem, neste sentido, seu próprio patrimônio. A memória popular, à medida que depende das pessoas, é uma memória curta, sem os recursos para alcançar a profundidade histórica obtida pelo patrimônio reunido por intelectuais na universidade.

IMAGINANDO A NAÇÃO Aquilo que SE ENTENDE POR CULTURA NACIONAL MUDA DE ACORDO COM AS ÉPOCAS. ISTO DEMONSTRA QUE, MESMO EXISTINDO, SUPORTES CONCRETOS E CONTÍNUOS DO QUE SE CONCEBE COMO NAÇÃO (o território, a população e seus costumes etc), em boa parte o que se considera como tal é uma construção imaginária. Benedict Anderson pôs em evidencia que o nacionalismo é um artefato cultural e não um objeto natural, é uma ficção constituída historicamente. Devemos transcender a simples análise das relações com o território originário ocupado por cada grupo, com as sedimentações monumentais e institucionais.OS USOS DO PATRIMÔNIO Frequentemente, esta tendência leva à exploração indiscriminada do ambiente natural e urbano, à expansão voraz da especulação imobiliária e do transporte privado, em detrimento dos bens históricos e do interesse das maiorias. Em parte, a degradação do meio natural e urbano deriva de que os diversos tipos de empresa – industriais, imobiliárias, turísticas – utilizam [a seu bel-prazer] o patrimônio sob uma ótica setorial e competitiva. O Estado também tem uma relação ambivalente com o patrimônio. Por um lado valoriza-o como elemento integrador da nacionalidade. Em anos recentes, a expansão demográfica, a urbanização descontrolada e a depredação ecológica suscitam movimentos sociais preocupados em recuperar bairros e edifícios, ou em mantes o espaço urbano habitável.

CONCLUSÃOA política cultural referente ao patrimônio não tem como tarefa resgatar apenas objetos “autênticos” de uma sociedade, mas os que são culturalmente representativos. Os processos nos interessam mais do que os objetos, e nos interessam não por sua capacidade de permanecer “puros”, iguais a si mesmos, mas sim porque “representam certos modos de conceber e viver o mundo e a vida próprios de certos grupos sociais”.Por isso mesmo a investigação, a restauração e a difusão do patrimônio não tem por fim último perseguir a autenticidade, ou reinstaurá-la, mas reconstruir a verossimilhança histórica.O museu e qualquer politica patrimonial devem tratar os objetos, os ofícios e os costumes de tal modo que, mais que exibi-los, tornem inteligíveis as relações entre eles, proponham hipóteses sobre o que significam para a gente que hoje os vê e evoca.

Patrimônio histórico e cultural

Pedro Paulo Funari, Sandra Pelegrine

O PATRIMÔNIO, DO INDIVIDUO À COLETIVIDADE

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Patrimônio : bens que transmitimos aos nossos herdeiros, que podem ser materiais; bens materiais de significado emocional + patrimônio espiritual = patrimônio de um individuo.

O patrimônio individual depende de nós que decidimos o que nos interessa. Já o coletivo é sempre algo mais distante, pois é definido e determinado por outras pessoas, mesmo quando essa coletividade nos é próxima.

A TRAJETORIA DO PATRIMÔNIO NO CONTEXTO MUNDIAL Origem latina da palavra patrimonium, que se referia a tudo o que pertencia ao pai, pater ou pater familias. Com a invenção da imprensa, multiplicaram-se as edições das obras clássicas, na língua original e traduzidas.

Em paralelo, os humanistas começaram a se preocupar com a catalogação e coleta de tudo que viesse dos antigos: moedas, inscrições em pedra, vasos de cerâmica, estatuária em mármore e em metal ANTIQUARIADO

Alguns estudiosos enfatizam que o patrimônio moderno deriva, de uma maneira ou de outra, do Antiquariado que, alias, nunca deixou de existir e continua até hoje, na forma de colecionadores de antiguidades. No entanto, a preocupação com o patrimônio rompe com as próprias bases aristocráticas e privadas do colecionismo, e resulta de uma transformação profunda nas sociedades modernas, com o surgimento dos Estados nacionais.O Estado Nacional e a Invenção do Patrimônio

A palavra Nação, derivada do latim, vem do verbo nascer, originalmente, referia-se apenas ao local de nascimento.

Até o século XVIII, na Europa, os Estados eram religiosos e monárquicos, baseados na identificação da nação com a casa real. O patrimônio era privado e aristocrático. o surgimento dos estados nacionais era o que faltava para desencadear uma transformação radical no conceito de patrimônio o moderno conceito de patrimônio se desenvolveu na França, a partir da Revolução de 1789, quando se torna um estado nacional moderno. A República criava a igualdade, refletida na cidadania dos homens adultos. E precisava criar os cidadãos, fornecer meios para que compartilhassem valores e costumes, para que pudessem se comunicar entre si, para que tivessem um solo e uma origem supostamente comuns. o Estado nacional surgiu, portanto, a partir da invenção de um conjunto de cidadãos que deveriam compartilhar uma língua e uma cultura, uma origem e um território.

Introjeção ou doutrinação interior, que visava a imbuir o jovem desde cedo, de sentimentos e conceitos que passavam a fazer parte de sua compreensão de mundo, como se tudo fosse dado pela própria natureza das coisas. Assim começa a surgir o conceito de patrimônio que temos hoje, não mais no âmbito privado ou religioso das

tradições antigas e medievais, mas de todo um povo, com uma única língua, origem e território.O Patrimônio em duas tradições do direito Os modernos Estados nacionais surgiram a partir de dois grandes sistemas jurídicos:

Direito consuetudinário, anglo-saxão: limitação ao direito de propriedade é, em geral, muita mais tênue. Os bens achados em propriedade privadas, são de seu proprietário e podem ser vendidos;

Direito romano ou civil: tradição latina considerava a propriedade privada sujeita a restrições, derivadas dos direitos dos outros ou da coletividade em geral. Bens são considerados públicos e não podem ser usados pelos particulares.

Essas duas tradições legais diversas levaram a duas concepções diferentes do patrimônio, uma mais voltada para a proteção dos direitos privados e outra mais atenta ao Estado nacional.Em ambas: 1) o patrimônio é entendido como um bem material concreto, um monumento, um edifício, assim como objetos de alto valor material e simbólico para a nação 2) patrimônio = excepcional, belo, exemplar, que representa a nacionalidade 3) criação de instituições patrimoniais, além de uma legislação especifica.O nacionalismo e o patrimônio A ênfase no patrimônio nacional atinge seu ápice no período que vai de 1914-1945, quando duas guerras

mundiais eclodem sob o impulso dos nacionalismos. Os vestígios mais distantes, no tempo e no espaço, podiam ser lidos como parte da construção da nacionalidade (nacionalismo italiano usava símbolos materiais

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do poder romano, como o feixe, do qual deriva o próprio nome do mov. nacionalista , o fascismo). Acontecia mesmo em países democráticos.

O patrimônio mundial e a diversidade O nacionalismo, associado ao imperialismo, seria superado com o fim da segunda guerra e a criação da ONU

e da UNESCO, ambas em 1945. Fim do Imperialismo Índia independente em 1947 falência dos modelos nacionalistas que enfatizavam

um patrimônio homogêneo. A consolidação do poderio soviético na Europa Oriental, também contribuiu para reforçar, nos países ocidentais, a importância da diversidade no interior das sociedades, contrastava-se a variedade nos países capitalistas com os aspectos monolíticos do socialismo real.Países capitalistas desenvolvidos (pós-guerra): crescente desenvolvimento de movimentos sociais, do reconhecimento da diversidade em vários níveis e aspectos.Movimentos em defesa do meio ambiente também foram importantes para a ampliação da noção de patrimônio. Já na década de 1950, a legislação de proteção do patrimônio ampliava-se para o meio ambiente e para os grupos sociais e locais, antes preteridos em beneficio da nacionalidade.As nações interagiam mais do que nunca. A convivência levou à eleição da diversidade, humana e ambiental, como um valor universal a ser promovido. Por esse mesmo princípio nos diversos Estados nacionais, surgiram gradativamente possibilidades de uma ampla variedade de âmbitos patrimoniais, para além do nacional. Essa multiplicação patrimonial ocorreu em conjunto com a crescente participação das próprias pessoas na gestão dos bens patrimoniais, culturais e ambientais, que deixaram de ser apenas preocupação da administração pública nacional. Com o despertar para a importância da diversidade, já não fazia sentido valorizar apenas, e de forma isolada, o mais belo, o mais precioso ou o mais raro. É nesse contexto que se desenvolve a noção de materialidade do patrimônio. Assim fazem parte do patrimônio não apenas as fantasias de carnaval, como também as melodias, que são bens imateriais.

A Unesco e o Patrimônio cultural da Humanidade A primeira convenção referente ao patrimônio mundial, cultural e natural foi adotada pela conferencia geral

da Unesco em 1972. Segundo essa convenção, subscrita por mais de 150 países, o patrimônio da humanidade compõe-se de: monumentos, conjuntos, sítios, monumentos naturais, formações geológicas ou fisiográficas, sítios naturais.

Uma das preocupações da Unesco é a catalogação de mais de duas dezenas de sítios patrimoniais da humanidade ameaçados; uma convenção de 1970 trata do tráfico ilícito de bens culturais. A chancela da Unesco dá aos sítios um emblema de patrimônio mundial que constitui um atrativo cultural e econômico.

POLÍTICAS PATRIMONIAIS NO BRASIL Governo Vargas: primeiras ações em defesa do patrimônio nacional que incluíram a seleção de edifícios do

período colonial – em estilo barroco – e palácios governamentais, em sua maioria prédios neoclássicos e ecléticos. Os bens culturais não pertencentes as elites acabaram relegados ao esquecimento.

Promulgação da Constituição de 1946 inaugurou a preocupação com a proteção de documentos históricos e reafirmou o que havia sido previsto na Constituição de 1937, a gestão do patrimônio manteve-se submetida ao Estado brasileiro.

As políticas públicas devotadas à proteção patrimonial tem cambiado de acordo com os conceitos de identidade nacional dos governos que se sucedem no poder.

A Carta Constitucional de 1967 criou novas categorias de bens a serem preservados, elegendo como patrimônio as jazidas e os sítios arqueológicos, anteriormente classificados apenas como locais de valor histórico.

1973: programa de reconstrução das cidades históricas, recuperação dos bens e incremento do turismo e comércio.

1979: fundação nacional pró-memória. O reconhecimento de uma vasta gama de bens procedentes, sobretudo, do saber popular alargou a concepção de patrimônio, agora assentada na diversidade cultural, étnica e religiosa do país. A ampliação da noção de bens a serem preservados foi reforçada pelas políticas de incentivo fiscal voltadas para a cultura.

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VARIEDADES DE HISTÓRIA CULTURAL3 História como memória social

Peter Burke

A visão tradicional da relação entre a história e a memória é relativamente simples. A função do historiador é ser o guardião da memória dos acontecimentos públicos quando escritos para proveito dos atores, para proporcionar-lhes fama, e também em proveito da posteridade, para aprender como exemplo deles. A história, como escreveu Cícero em um trecho que se tem citado desde então (De oratore, ii. 36), é a "vida da memória" (vita memóriae).Historiadores tão diversos quanto Heródoto, Froissart e Lorde Clarendon afirmaram que escreviam para manter viva a memória de grandes feitos e grandes fatos.Essa explicação tradicional da relação entre a memória e a história escrita, na qual a memória reflete o que aconteceu na verdade e a história reflete a memória, parece hoje demasiado simples. Tanto a história quanto a memória passaram a revelar-se cada vez mais problemáticas.os historiadores aprendem a levar em conta a seleção consciente ou inconsciente, a interpretação e a distorção. Nos dois casos, passam a ver o processo de seleção, interpretação e distorção como condicionado, ou pelo menos influenciado, por grupos sociais. Não é obra de indivíduos isolados.O primeiro pesquisador sério da "estrutura social da memória", como a chamou, foi o sociólogo ou antropólogo francês Maurice Halbwachs, na década de 1920.1 Halbwachs afirmou que as memórias são construídas por grupos sociais. São os indivíduos que lembram, no sentido literal, físico, mas são os grupos sociais que determinam o que é "memorável", e também como será lembrado. Os indivíduos se identificam com os acontecimentos públicos de importância para seu grupo. "Lembram" muito o que não viveram diretamente. Um artigo de noticiário, por exemplo, às vezes se torna parte da vida de uma pessoa. Daí, pode-se descrever a memória como uma reconstrução do passado. Como fiel discípulo de Émile Durkheim, Halbwachs assentou seus argumentos sobre a sociologia da memória de uma forma sólida, embora não extrema. Contudo, Halbwachs foi mais vulnerável às críticas mais precisas do grande historiador francês Marc Bloch. Foi Bloch que salientou o perigo de tomar emprestado termos da psicologia individual e apenas acrescentar o adjetivo "coletivo". Apesar dessa crítica, Bloch se prontificou a adotar a expressão mémoire collective e a analisar costumes camponeses nesses termos interdisciplinares.E escolhi o termo "memória social", estabelecido na última década, como uma forma útil e simplificada que resume o complexo processo de seleção e interpretação em uma fórmula simples, e enfatiza a homologia entre os meios pelos quais se registra e se recorda o passado.Os historiadores se interessam, ou de qualquer modo precisam se interessar, pela memória a partir de dois pontos de vista. Em primeiro lugar, têm de estudar a memória como uma fonte histórica, elaborar uma crítica da confiabilidade da reminiscência no teor da crítica tradicional de documentos históricos. Esse empreendimentojá se acha de fato em movimento desde a década de 1960, quando historiadores do século XX passaram a compreender a importância da "história oral". Mesmo os que trabalham com períodos anteriores têm alguma coisa a aprender como movimento da história oral, pois precisam estar conscientes dos testemunhos e tradições orais embutidos em muitos registros históricos.Em segundo lugar, os historiadores se interessam pela memória como um fenômeno histórico, pelo que se poderia chamar de história social do lembrar. Considerando-se o fato deque a memória social, como a individual, é seletiva, precisamos identificar os princípios de seleção e observar como eles variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, e como mudam como passar do tempo. As memórias são maleáveis, e é necessário compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade.A história social do lembrar é uma tentativa de respondera três perguntas principais. Quais os modos de transmissão de memórias públicas, e como esses modos mudaram ao longo do tempo? De modo inverso, quais os usos do esquecimento? Estas amplas questões serão examinadas aqui apenas do ponto de vista relativamente estreito de um historiador do início da Europa moderna.As memórias são influenciadas pela organização social de transmissão e os diferentes meios de comunicação empregados. Examinemos por um momento a simples variedade desses meios, particularmente cinco.

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1) As tradições orais, discutidas do ponto de vista do historiador, em um famoso estudo de Jan Vansina. As transformações desse estudo, entre sua publicação original em francês em 1961 e a versão inglesa de 1985, muito revisada, empregam úteis indicadores das mudanças ocorridas na disciplinada história, na última geração, em particular o declínio da esperança de estabelecer os "fatos" objetivos e o surgimento do interesse por aspectos simbólicos da narrativa.2) A tradicional esfera de ação do historiador, as memórias e outros "relatos" escritos (outro termo relacionado a lembrar, ricordare em italiano). Precisamos, é claro, nos lembrar deque esses relatos não são atos inocentes da memória, mas antes tentativas de convencer ,formara memória de outrem.3) As imagens, sejam pictóricas ou fotográficas, paradas ou em movimento. Os praticantes da chamada "arte da memória", da Antiguidade clássica ao Renascimento, enfatizavam o valor de associar o que se quisesse a imagens imponentes.4) As ações transmitem memórias ao transmitir aptidões, do mestre ao aprendiz, por exemplo. Muitas delas não deixam traços para os historiadores posteriores estudarem, mas muitas vezes se registram pelo menos as ações rituais de "comemoração".5) Uma das mais interessantes observações no estudo de Halbwachs sobre a estrutura social da memória se referia à importância de um quinto meio de comunicação na transmissão de memórias: o espaço. Ele tornou explícito um ponto implícito na arte da memória clássica e renascentista, o valor de "pôr" imagens que desejamos Lembrar em locais imaginários impressionantes, como palácios ou teatros memoráveis, explorando assim a associação de idéias.Há uma pergunta óbvia para um historiador fazer neste ponto. Por que os mitos se vinculam a alguns indivíduos (vivos ou mortos) e não a outros? Apenas poucos governantes europeus se tornaram heróis na memória popular, ou pelo menos continuaram sendo heróis por um longo período. A existência de esquemas não explica por que estes passaram a vincular-se a determinados indivíduos, por que algumas pessoas são mais, digamos assim,"mitogênicas" que outras. Em minha opinião, o elemento central na explicação dessa mitogênese é a percepção (consciente ou inconsciente)de "enquadramento", em algum aspecto ou aspectos, de determinado indivíduo em um estereótipo vigente de herói ou vilão - governante, santo, bandido, feiticeiro, ou seja lá o que for. Esse "enquadramento" impressiona a imaginação das pessoas, e começam a circular histórias sobre o determinado indivíduo, oralmente, a princípio.

MEMÓRIA E IDENTIDADE SOCIALMichael Pollack

Trata da ligação entre memória e identidade social, no âmbito da história oral utiliza entrevistas, sobretudo entrevistas de história de vida, onde se recolhem memórias individuais, ou se for o caso, de entrevistas de grupo, memórias coletivas; problema = saber interpretar esse material.A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes. Na maioria das memórias também existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis. Em certo sentido, determinado número de elementos tornam-se realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos e fatos possam se modificar em função dos interlocutores, ou em função do movimento da fala.Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em 1º lugar são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em 2º lugar, são os acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. É possível que, por meio de socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identidade com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memoria quase herdada.

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Além de acontecimentos, a memória é constituída por pessoas, personagens. Podemos aplicar o mesmo esquema, falar de personagens realmente encontradas no decorrer da vida, de personagens frequentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim dizer, se transformaram quase que em conhecidas, e ainda de personagens que não pertenceram necessariamente ao espaço-tempo da pessoa.Além de acontecimentos e personagens, podemos arrolar os lugares. Existem lugares de memória, lugares ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio no tempo cronológico.Esses três critérios, conhecidos direta ou indiretamente, podem dizer respeito a acontecimentos, personagens e lugares reais. Mas pode se tratar também da projeção de outros eventos.Esses aspectos formam uma primeira caracterização do fenômeno da memória: A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado.A memória é em parte herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória.A organização da memória em função das preocupações pessoais e políticas do momento mostra que a memória é um fenômeno construído (construído tanto conscientemente como inconscientemente). O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização.Se podemos dizer que a memória é um fenômeno construído social e individualmente, quando se trata da memória herdade, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre memória e o sentimento de identidade.Na construção de identidade há três elementos essenciais. Há a unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas; há a continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra, mas também no sentido moral e psicológico; finalmente, há o sentimento de coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são efetivamente unificados. De tal modo isso é importante que, se houver forte ruptura desse sentimento de unidade ou de continuidade, podemos observar fenômenos patológicos. Podemos portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referencia aos outros, em referencia aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. A memória e a identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo.Conceito de trabalho de enquadramento da memória. Historiadores orgânicos (historiadores do Partido Comunista, do movimento gaullista, socialistas) tem a tarefa de enquadrar a memória. Além do trabalho de enquadramento de memória, há também o trabalho da própria memória em si. Ou seja: cada vez que uma memória está relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, da organização. Quando a memória e a identidade trabalham por si só, isso corresponde a conjunturas ou períodos calmos, em que diminui a preocupação com a memória e a identidade.

- Sobre a crítica à história oral como método apoiado na memória, capaz de produzir representações e não reconstituições do real:Se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação também o é. O autor não faz diferenciação entre fonte escrita e oral. O trabalho do historiador faz-se sempre a partir de alguma fonte. É evidente que a construção que fazemos do passado, inclusive a construção mais positivista, é sempre tributária da intermediação do documento. Na medida em que essa intermediação é inescapável, todo o trabalho do historiador já se apóia numa primeira reconstrução.A coleta de representações por meio da história oral, tornou-se claramente um instrumento privilegiado para abrir novos campos de pesquisa.