RetalhosCutâneos: Fisiologia...

14
Retalhos Cutâneos: Fisiologia e Classificação Talita Franco Diogo Franco A definição de retalho sofreu mudanças e acréscimos na medida em que aumentou seu conhecimento fisiológico e anatômico, possibilitando variações e aperfeiçoamentos. Até 0 nome retalho cutâneo, que era uma redundância, deixou de sê-lo posto que, atualmente, confeccionamos retalhos que não envolvem a pele. O conceito de que retalhos são segmentos de tecido mobilizados para outros locais (área receptora), mantendo conexões vasculares ou neurovascula- res com seu local de origem (área doadora), também já não é completamente verdadeiro porque, nos retalhos microci- rúrgicos, essas conexões são interrompidas, pelo menos du rante algum tempo. Uma definição temporária poderia ser: "Retalhos são segmentos corporais, de tamanho e espes sura variáveis, compostos de um ou mais tecidos, que são levados a outros locais, na proximidade ou a distância e que dependem, para sua sobrevivência, de circulação arteriove- nosa fornecida por seus locais de origem ou de destino." Entre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando as bases da Cirurgia Plástica Reconstrutiva foram criadas, e a década de 1960, os retalhos eram planejados com base na proporção comprimento/largura. Essa proporção varia va com a região anatômica, de maneira empírica, sem o real conhecimento do porquê de algumas regiões possibilitarem retalhos mais longos e mais seguros. Enquanto retalhos locais ou de vizinhança eram feitos com certa tranqüilidade, baseados nessa proporção, os re talhos a distância tinham rígidas limitações. Para vencê-las, Gillies,1 na Inglaterra, e Filatov,2 na Rússia, criaram os reta lhos tubulares que constituíram um grande avanço para a época. Analisados sob os conhecimentos atuais, percebemos que vários tubos bem-sucedidos estavam situados sobre ei xos vasculares, o que lhes garantia a nutrição, embora os ci rurgiões não conhecessem o conceito de retalho axial. A evolução desse conhecimento foi muito interessante, cada autor mencionando suas dúvidas, suas surpresas e seu entusiasmo quando novas experiências davam certo. Em 1965, Bakamjian3 descreveu seu grande retalho del topeitoral para reconstrução de faringe, que não necessi tava de autonomização porque ele "supunha que haveria vasos perfurantes da mamaria interna na base do retalho, o pedículo em posição mais baixa evitaria a congestão ve- nosa e a proporção comprimento/largura não ultrapassaria 2:1." Ele mesmo não sabia que seu retalho era axial. Esse conceito surgiu pouco mais tarde, na contribuição de vários autores.4 Apesquisa bibliográfica freqüentemente revela que quem "teve a idéia" primeiro nem sempre passa à história como seu autor. Em 1917, Aymard5 publicou um artigo sobre re construção nasal em que mostra o desenho de um retalho deltopeitoral, muito semelhante ao de Bakamjian, embora mais estreito. Curiosamente, o desenho evidencia também que sua extremidade móvel tem a forma de um tubo, o que o tornaria o pioneiro dos dois tipos de retalho. Mais interes sante ainda é a frase embutida no texto: "The further notes ou this ease denoting eitlier suecess orfailure ivill be supplied by Major Gillies and Lieiiteiiant Hett, in whose able hands I must now leave the case." Parece que o Major assumiu o caso de seu subalterno tirando-lhe a autoria da técnica... Talvez o tubo de Filatov-Gillies devesse ser chamado de Filatov-Aymard, pois o artigo de Filatov foi publicado também em 1917. McGregor e JacksoiV' analisam as vantagens do retalho deltopeitoral de pedículo esternal que "supõem" representar um território vascular fechado, suprido e drenado pelos va sos perfurantes do sistema mamário interno. Admitem que "se esta hipótese for válida", outros retalhos monopedicu- lados e de grandes proporções poderiam ser levantados em outras regiões. Em 1972, propõem o retalho inguinal (Groin jlap) e lançam o conceito de retalhos axiais e ao acaso,7 modi ficando a forma de classificar os retalhos que, até 1971,eram denominados com base em sua forma de mobilização, qual seja por deslizamento, rotação, transposição, tubular e a dis tância." Em 1975, Daniel sugeriu que o importante não é como o retalho chega à área receptora, e sim como ele garante sua vascularização. Relacionou os retalhos, por meio de uma classificação hemodinâmica, em arterializados, axiais, ao acaso, regionais, em ilha ou livres.9 Aforma de mobilização pode ser usada para complementar a classificação de base vascular.

Transcript of RetalhosCutâneos: Fisiologia...

Page 1: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

Retalhos Cutâneos:Fisiologia e Classificação

Talita Franco • Diogo Franco

A definição de retalho sofreu mudanças e acréscimos namedida em que aumentou seu conhecimento fisiológico eanatômico, possibilitando variações e aperfeiçoamentos. Até0 nome retalho cutâneo, que era uma redundância, deixoude sê-lo posto que, atualmente, confeccionamos retalhosque não envolvem a pele. O conceito de que retalhos sãosegmentos de tecido mobilizados para outros locais (áreareceptora), mantendo conexões vasculares ou neurovascula-res com seu local de origem (área doadora), também já nãoé completamente verdadeiro porque, nos retalhos microci-rúrgicos, essas conexões são interrompidas, pelo menos durante algum tempo.Uma definição temporária poderia ser:"Retalhos são segmentos corporais, de tamanho e espes

sura variáveis, compostos de um ou mais tecidos, que sãolevados a outros locais, na proximidade ou a distância e quedependem, para sua sobrevivência, de circulação arteriove-nosa fornecida por seus locais de origem ou de destino."Entre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando

as bases da Cirurgia Plástica Reconstrutiva foram criadas,e a década de 1960, os retalhos eram planejados com basena proporção comprimento/largura. Essa proporção variava com a região anatômica, de maneira empírica, sem o realconhecimento do porquê de algumas regiões possibilitaremretalhos mais longos e mais seguros.Enquanto retalhos locais ou de vizinhança eram feitos

com certa tranqüilidade, baseados nessa proporção, os retalhos a distância tinham rígidas limitações. Para vencê-las,Gillies,1 na Inglaterra, e Filatov,2 na Rússia, criaram os retalhos tubulares que constituíram um grande avanço para aépoca. Analisados sob os conhecimentos atuais, percebemosque vários tubos bem-sucedidosestavam situados sobre eixos vasculares, o que lhes garantia a nutrição, embora os cirurgiões não conhecessem o conceito de retalho axial.A evolução desse conhecimento foi muito interessante,

cada autor mencionando suas dúvidas, suas surpresas e seuentusiasmo quando novas experiências davam certo.Em 1965, Bakamjian3 descreveu seu grande retalho del

topeitoral para reconstrução de faringe, que não necessitava de autonomização porque ele "supunha que haveria

vasos perfurantes da mamaria interna na base do retalho,o pedículo em posição mais baixa evitaria a congestão ve-nosa e a proporção comprimento/largura não ultrapassaria2:1." Ele mesmo não sabia que seu retalho era axial. Esseconceito surgiu pouco mais tarde, na contribuição de váriosautores.4Apesquisa bibliográfica freqüentemente revela que quem

"teve a idéia" primeiro nem sempre passa à história comoseu autor. Em 1917, Aymard5 publicou um artigo sobre reconstrução nasal em que mostra o desenho de um retalhodeltopeitoral, muito semelhante ao de Bakamjian, emboramais estreito. Curiosamente, o desenho evidencia tambémque sua extremidade móvel tem a forma de um tubo, o queo tornaria o pioneiro dos dois tipos de retalho. Mais interessante ainda é a frase embutida no texto: "The further notesou this ease denoting eitlier suecess orfailure ivill besupplied byMajor Gillies and Lieiiteiiant Hett, in whose able hands I mustnowleave the case." Parece que o Major assumiu o caso de seusubalterno tirando-lhe a autoria da técnica... Talvez o tubo deFilatov-Gillies devesse ser chamado de Filatov-Aymard, poiso artigo de Filatov foi publicado também em 1917.McGregor e JacksoiV' analisam as vantagens do retalho

deltopeitoral de pedículo esternal que "supõem" representarum território vascular fechado, suprido e drenado pelos vasos perfurantes do sistema mamário interno. Admitem que"se esta hipótese for válida", outros retalhos monopedicu-lados e de grandes proporções poderiam ser levantados emoutras regiões. Em 1972, propõem o retalho inguinal (Groinjlap) e lançam o conceito de retalhos axiais e ao acaso,7 modificando a forma de classificar os retalhos que, até 1971,eramdenominados com base em sua forma de mobilização, qualseja por deslizamento, rotação, transposição, tubular e a distância."Em 1975, Daniel sugeriu que o importante não é como o

retalho chega à área receptora, e sim como ele garante suavascularização. Relacionou os retalhos, por meio de umaclassificação hemodinâmica, em arterializados, axiais, aoacaso, regionais, em ilha ou livres.9 A forma de mobilizaçãopode ser usada para complementar a classificação de basevascular.

Page 2: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

CAPÍTULO 10 • RETALHOS CUTÂNEOS: FISIOLOGIAE CLASSIFICAÇÃO 59

Fig. 10.1 • Método de construção de um novo narizatravés do ombro.1. Osenxertos de cartilagem são introduzidos embaixo da pele. 2.Separaçãoe liberação do pedículo comsutura em tubo. 3.0 retalho em posição.Figura apresentada no artigo de J.L Aymard, publicado em 1917, emquepropõeum retalhocom características dos retalhostubulare deltopeitoral,antes dos trabalhosde Gillies (1920) e de Bakamjian (1965). Éinteressanteassinalar queAymard trabalhava comGillies quando fez essapublicação.

O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgicoe material de sutura, além da adaptação do microscópiobinocular para uso em cirurgia, possibilitaram anastomosede vasos cada vez menores. Jacobsen e Saurez (1960) conseguiram realizar experimentalmente a sutura de vasos com 1mm de diâmetro.10 Transplante de órgãos e reimplantes desegmentos corporais com pedículo definido foram iniciados.

Para os retalhos dermoadiposos, entretanto, a falta de conhecimento aprofundado sobre a vascularização tegumen-tar trazia o receio de que vasos superficiais não pudessemcomportar-se como pedículos para segmentos compostos eisolados desses tecidos.

Em 1965, Krizek etai. realizaram transplante de segmentodermoadiposo em cães com anastomose microvascular." Oprimeiro retalho microcirúrgico dermoadiposo em humanosfoi feito por Harii et ai. (1972), seguido por Daniel e Taylor(1973).No Brasil, em 1972,Franco etai. foram os pioneiros em rea

lizar, em cães, transplante dermoadiposo mediante anastomose vascular, sem uso de microscópio.'"1 Em 1978, Ferreirarealizou o procedimento em pacientes.15Na evolução do progresso da humanidade, alguns estu

dos, descobertas ou invenções precisam aguardar o desenvolvimento de outras áreas para serem finalmente aplicados.Manchot (1889) e Salmon (1936) realizaram estudos abrangentes sobre a vascularização dos tegumentos superficiais.'6'17Sua aplicação prática, entretanto, só veio a se fazer com adifusão do uso de retalhos dos mais variados tipos. A Cirurgia Plástica contribuiu para aprofundar o conhecimentoda anatomia macroscópica dos pequenosvasos, que, para osanatomistas antigos, não tinham maior significado.Extensos estudos sobre a vascularização tegumentar fo

ram feitos por Taylor, que, desde a década de 1970, vemapresentando novos e variados trabalhos sobre o assunto,culminando com o mapeamento dos territórios vascularesdo corpo, que ele denominou angiossomas.™Diferentes outros autores têm estudado retalhos espe

cíficos ou camadas tegumentares, e há muitas informaçõesimportantes sobre a estratigrafia vascular que nutre fásciase músculos.7'8-20 Um exemplo da diferença que esse conhecimento proporcionou está nas lesões de membros inferiores,particularmente da perna, a qual, há cerca de 30 anos, eravista como área de difícil tratamento e os retalhos nela confeccionados tinham elevada incidência de insucesso. Sabemos hojeque a vascularizaçãoda perna é feita por camadase que, respeitados seus limites e planos, vários retalhos devascularização robusta podem ser nela coletados.A experiência com novos possíveis retalhos em toda a

superfície corporal diminuiu a necessidade de retalhos mi-crocirúrgicos, procedimentos caros, que dependem de instrumental ultraespecializado, pessoal treinado e grandesequipes, e que podem ficar reservados para ferimentosmaiscomplexos.

• FISIOLOGIA NEUROVASCULAR DA PELEA pele funciona como um órgão sensorial e de proteção,

atuando também como suporte nutricional e na termorregu-lação. Devido a esta última propriedade, seu fluxo sangüíneo é dos mais variáveis do corpo. Em condições normaisde temperatura, o volume sangüíneo circulando pela pelecorresponde a cerca de 0,25 L/m2 de superfície corporal. Essefluxo pode aumentar até sete vezes, na vasodilatação máxima, ou diminuir tanto, como no frio intenso, que leva à ne-crose cutânea.

Page 3: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

60 CAPÍTULO 10 • RETALHOS CUTÂNEOS: FISIOLOGIAE CLASSIFICAÇÃO

O sistema circulatório da pele e dos tegumentos superficiais provêm de duas fontes distintas: os vasos cutâneosdiretos ou septocutâneos, que cursam paralelamente à superfície, e os vasos musculocutâneos, que surgem perpendicularmente, provenientes da parte profunda dos músculos,os quais perfuram.Esses dois sistemas são amplamente interconectados atra

vés de plexos dérmicos e subdérmicos que chegam à pele passando entre os septos conjuntivos que separam os lóbulos degordura subcutanea. Na derme, os vasos aferentes formamplexos, no nível da derme reticular, dos quais sobem novosramos para formar outro plexo subpapilar, na derme superficial. Destes, surgem as arteríolas pré-capilares e, delas, oscapilares. O fluxo venoso repete o trajeto em sentido oposto."Nos vasos cutâneos, 80% do sangue circula lentamente nosvasos de baixa pressão ou vasos capacitivos (vênulas pós-ca-pilares e plexos venosos dérmicos) e 20%passa rapidamentepelos vasos de pressão elevada ou vasos resistivos (artérias,arteríolas e capilares). O volume sangüíneo cutâneo total éde cerca de 300 mL ou 5%do volume sangüíneo corporal."19De acordo com sua vascularização, os retalhos são classi

ficados em ao acaso (ou randomizados) e axiais.20Retalhos ao acaso são os nutridos por ramos de artérias

musculocutâneas que superficializam próximo à sua base. Aampla rede anastomótica que comunica os vasos cutâneos diretos com os vasos musculocutâneos explica a sobrevivênciade alguns retalhos ao acaso longos e finos. Entretanto, comonão contam com um eixo vascular como os retalhos axiais,são mais sujeitos a isquemia, e, neles, a relação comprimento/largura deve ser considerada, com variações decorrentesdo tipo de vascularização de cada região.Retalhos axiais são os que incorporam uma artéria septo-

cutânea em seu eixo longitudinal. Se um retalho axial se estende além do comprimento de sua artéria nutridora, a partedistai a ela terá características de retalho ao acaso.Retalhos ilhados são os que têm seu pedículo ou base

constituída apenas pelo tecido que contém sua vascularização, perdendo qualquer ponte cutânea.

• EVENTOS QUE ACOMPANHAM OPREPARO DOS RETALHOS

Fenômeno Isquemia/ReperfusãoO progressivo conhecimentoadquirido sobre as espécies

ativas do oxigênio tornou possível identificar, nessas substâncias, um papel fisiopatológico relevante no metabolismodos retalhos cutâneos. Os radicais livres derivados do oxigênio são estruturas instáveis sintetizadas através de reaçõesde oxidação/redução, radiólise ou fotólise, intimamente ligadas aos processos inflamatóriose isquêmicos.2122 Emcondições fisiológicas, a hipoxantina proveniente do catabolismodos nucleotídeos energéticos é transformada em ácido úri-co, em reação catalisada pela xantina desidrogenase, a qualtransfereo hidrogênio do substrato hipoxantina para o cofa-tor nicotinamida adenina dinucleotídeo (NAD). Quando aisquemia ocorre, aumenta o catabolismo dos nucleotídeos egrande quantidade de hipoxantina se acumula nos tecidos.Nessa fase, a xantina desidrogenase se converte em xantina

oxidase. A normalização do fluxo sangüíneo no retalho mobilizado ocorre após cerca de 12 h, atingindo o máximo em24 h. Porém, ao haver reperfusão, a xantina oxidase utilizao oxigênio molecular, em lugar do cofator NAD, e catalisa aconversão de hipoxantina em ácido úrico, tornando-se umafonte geradora de radicais superóxidos e, consequentemente, dos demais radicais livres de oxigênio.As lesões causadas pelas frações ativas do oxigênio se

caracterizam por alterações nas biomembranas, estruturasque delimitam as células entre si, as organelas e o núcleo(lipoperoxidação). A peroxidação lipídica danifica tambémo endotélio vascular e inibe a síntese de oxido nítrico, umasubstância relaxadora da musculatura lisa, além da prosta-ciclina-sintetase, responsável pela formação de substânciavasodilatadora (prostaciclina-PGI). Ocorre, então, o predomínio de agentes vasosconstritores e que estimulam a agregação plaquetária (como o tromboxane-TXA2) contribuindopara a necrose tecidual.23Paradoxalmente, portanto, a reperfusão pode agravar a

isquemia dos retalhos, pelo menos em sua fase inicial.

Inflamação/ProstaglandinasO trauma cirúrgico resulta em resposta inflamatória.

Após a elevação do retalho, há liberação de histamina, sero-tonina e cinina no compartimento extracelular, aumentandoa permeabilidademicrovasculare o fluxo sangüíneo local. Oefeito benéfico dessas ocorrências é antagonizado pelo edema resultante.A ação dos mediadores primários da resposta inflamató

ria (histamina, serotonina e cinina) é curta. Após formaçãoda cinina e na presença do complemento, as células lesiona-das sintetizam prostaglandinas, via degradação dos ácidosgraxos poli-insaturados das membranas celulares, em umprocesso peroxidativo. As prostaglandinas têm importantepapel nos estágios tardios da reação inflamatória, após a elevação dos retalhos, enquanto, simultaneamente, iniciam asfases primárias de reparo tecidual.Por outro lado, Rees et ai.24 observaram que a atividade

da xantina oxidase aumenta a população de neutrófilos eque, por sua vez, também produzem oxirradicais. Quandohá uma resposta inflamatória aguda persistente, verifica-seacentuada produção de radicais livres, e que esgotam a capacidade de defesa orgânica composta por inativadores doestresse oxidativo, amplificando a resposta agressora ao retalho. Assim, a área de necrose será tanto mais extensa quanto mais perdurar o infiltrado leucocitário.21

Efeito NeurovascularAs incisões teciduais para a elevação de um retalho impli

cam não só a secção dos vasos circundantes, como tambémdos nervos que os acompanham. A perda da sensibilidadepoderá representar um problema após a transposição, dificultando a adaptação do retalho às funções da área receptora. A denervação adrenérgica, entretanto, representa riscospara sua sobrevivência imediata.Quando um nervo simpático é seccionado, as catecolami-

nas liberadas levam a um estado hiperadrenérgico, e a va-

Page 4: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

CAPÍTULO 10 • RETALHOS CUTÂNEOS: FISIOLOGIAE CLASSIFICAÇÃO 61

soconstrição, mediada por receptores alfa-adrenérgicos damusculatura cutânea, reduz o fluxo sangüíneo no retalho,agravando a isquemia produzida pela secção vascular. Issoafeta negativamente a pressão de perfusão das arteríolas doplexo subdérmico. Uma porção maior do segmento distai doretalho é excluída do fluxo sangüíneo, aumentando as chances de necrose.O fluxo sangüíneo melhora, após 24 h, devido à redução

da concentração de noradrenalina, porém, em áreas críticasdo retalho, esse período isquêmico temporário pode ter sidofatal.

Além disso, denervação simpática acentuada contribuipara a produção de radicais livres de oxigênio, que podemter efeito inibitório na revascularização.

AutonomizaçãoPara que um retalho seja produzido, incisões devem ser

feitas em seu contorno e em sua profundidade. Vários eventos cercam esse processo, prejudicando a vascularização dostecidos contidos no retalho. A interrupção da circulação nasáreas de incisão, a secção de nervos vasomotores, a intensavasoconstrição associada com a liberação de noradrenalina eos processos inflamatórios que cercam a evolução cicatricialsão alguns dos fatores deletérios que ocorrem com a lesão.Como reação a esses eventos, o fkixo sangüíneo se organizaparalelamente às linhas de incisão e aumenta pela vasodilatação e pela angeogênese.25 O tempo de espera antes datransferência do retalho permite a redução da noradrenalinaliberada. O preparo parcial de um retalho que não interrompa completamente sua vascularização periférica, portanto,enseja a melhora do fluxo, favorecendo sua sobrevivênciaquando for finalmente liberado. A isto se denomina autonomização. Johnson et ai. mediram a tensão de oxigênio nosretalhos autonomizados e observaram que ela cai após as incisões periféricas e volta ao normal em torno do 14° dia.26 Aelevação definitiva do retalho, após esse momento, não voltaa produzir queda da tensão de oxigênio. Os mecanismos mi-crocirculatórios que acompanham a autonomização não sãobem claros. A isquemia, a simpatectomia e a supersensitivi-dade dos shinits arteriovenosos à denervação são alguns dosfatores importantes.Com a finalidade de melhorar a viabilidade dos retalhos

cutâneos, vários tipos de fármacos com diferentes formas deação têm sido testados: superóxido dismutase, corticosteroi-des, hipoxantina, propranolol, bufluomedil, entre outros.A autonomização foi muito usada na época em que o co

nhecimento da vascularização dos tegumentos era precário,mas ainda tem sua indicação em alguns tipos de retalhos aoacaso.

• REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1.Gillies HD. The Ptastic Surgery of the Face. Oxford Medicai Publica-tions, 1920.

2. Filatov VP. Plastie à tige ronde. Vestnik Oftal, 1917;34:149.3. Bakamjian VY. A two-stage method for pharyngoesophageal recons-truction vvith a primary pectoral skin flap. Plast Recottstr Surg, 1965;36(2): 173-83.

4. Milton SH. Pedicle skin-flaps: the fallacy of the length: width ratio.BrilJSurg,1970;57(7)502-8.

5. Aymard JL. Nasal reconstruction. The lancei, 1917 Dec; 15:888-91.6.McGregor IA, Jackson IT. The extended role of the delto-pectoralflap. Bril ] Plast Surg, 1970;23:173-85.

7. McGregor IA,Jackson IT.The groin flap. Brit ] Plast Surg, 1972;25:3-16.

8. Kahn S. The terminology of flaps. Plast Reconstr Surg, 1971;47(5):485-7.

9. Daniel RK. Toward an anatômica! and hemodynamic classificationof skin flaps. Plast Reconstr Surg, 1975;56(3):330-2.

10.Jacobsen JH, Saurez EL. Microvascular surgery. Dis Chest, 1962;41:220.

11.Krizek TJ, Tasaburo T, Desprez JD, Kiehn CL. Experimental trans-plantation of composite grafts by microsurgical vascular anastomo-ses. Plast Reconstr Surg, 1965;36(5):538-46.

12.Harii K,Ohmori S. Useof the gastroepiploic vessels as recipiente ordonor vessels in the free transfer of composite flaps by microvascular anastomoses. Plast Reconstr Surg, 1973; 52(5):541-8.

13.Daniel RK, Taylor GI. Distant transfer of an island flap bv microvascular anastomoses. Aclinicai technique. Plast Reconstr Surg, 1973;52(2): 111-7.

14. Franco T, Aldrovando J, Rebello C. Contribuição ao tratamento dasperdas de substância cutâneas e subcutâneas: estudo experimentalde retalho epidermo-dermo-adiposo com transposição direta. A Folha Médica, 1973; 67:833-50.

15.Ferreira MC.Transferência deretalhos cutâneos livres com nücrocirurgiavascular. Tese. Faculdade de Medicina da USP, 1978.

16.Manchot C. DieHautarterien des Menschlichen Kòrpers. Leipzig: FCVVVogel, 1989.

17. Salmon M. Artères de Ia Peau. Paris: Masson & Cie, 1936.18. Taylor GI, Palmer JH. The vascular territories (angiosomes) of thebody: experimental studv and clinicai applications. Br J Plast Surg,1987; 40:113.

19. Mevnadier J. Précis de physiologie culanée. Paris: Editions de Ia PorteVerte, 1980.

20.McGregor IA, Morgan G. Axial and random partem flaps. Brit ) PlastSurg, 1973; 26:202-13.

21. Manson PN, Anthrnelli MA, IM MJ, Bulkley GB, Hoops JE. The roleof oxigen free radicais in ischemia tissue in island skin flaps. Surgen/,1986; 99:211-4.

22. McCord JM. Oxigen-derived free radicais in post ischemic tissue injuries. N Engl} Med, 1985; 372:159-63.

23.Boghossian LC.Contribuição do halopurinol para a preservação deretalhoscutâneosaoacaso:estudoexperimental em ratos.Tese. Rio de Janeiro:Faculdade de Medicina da UFRJ, 1998.

24. Rees R, Smith D, Dongli T, Cashmer B, Garncr W, Puncit J et ai. Therole of xanthine oxidase e xanthine dehidrogenase in skin ischemia.Surg Res, 1994;56(2):162-7.

25. Finseth F, Cutting C. Experimental neurovascular island skin flap forthe study of the delay phenomenon. Plast Reconstr Surg, 1978;61(3):412-20. '

26. Johnson K, Hunt TK, Brennan SS, Mathes SJ. Tissue oxygen mea-surements delayed skin flaps: a reconsideration of the mechanism ofthe delay phenomenon. Plast Reconstr Surg, 1988; S2(2):327-34.

Page 5: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

Retalhos Cutâneos: Fisiologia,Classificação, Principais Retalhos

Luís Roberto Perez Flores

• INTRODUÇÃOComo definição, retalho cutâneo é a transferência de um

segmento de pele de um local do organismo para outro, mantendo-se um pedículo vascular. Os retalhos, juntamente com osenxertos, são os dois pilares de sustentação da Cirurgia Plástica, tanto na cirurgia reparadora como na cirurgia estética.E a capacidade de elaborar retalhos que diferencia o cirur

gião plástico dos outros cirurgiões; e a capacidade de prevere visualizar o melhor retalho para os diferentes tipos de reconstruções é que diferencia um cirurgião plástico do outro.O melhor retalho é aquele que reconstrói, da forma mais

simples, totalmente uma área com perda de substância (defeito), seja ela congênita, decorrente de um trauma ou da retirada de um tumor, mantendo, da melhor maneira possível,as mesmas características do local do defeito: cor, espessura,textura, elasticidade, presença ou não de pelos e/ou outrosanexos da pele; sem distorções ou retrações, preservando afunção do local (pescoço, axilas, mãos, membros inferioresetc), ou órgão reconstruído (nariz, palpebras, lábios, orelhas, genitais etc), além do aspecto estético, sem provocarseqüelas na área doadora.

• HISTÓRICOSushruta (400 AD) descreveu o primeiro retalho da his

tória da Cirurgia Plástica (retalho da região frontal para reconstrução de nariz em indianos mutilados).Tagliacozzi (1597) descreveu o retalho cutâneo direto do

membro superior para a reconstrução nasal.No século XVII, na era da Revolução Científica, houve um

grande avanço nos conhecimentos de Anatomia e de Fisiologia e, consequentemente, das Técnicas Cirúrgicas.No século XVIII, foi criada a Sociedade dos Cirurgiões,

primeiro na França e, depois, na Inglaterra.No século XIX, deu-se início à Medicina Moderna, com o

desenvolvimento da Anestesia, em 1846, e grande progressoda Cirurgia.Após esse período, vários autores foram descrevendo no

vos estudos anatômicos e trajetos das artérias, dando origemaos mais diferentes tipos de retalhos e técnicas cirúrgicas.

• ANATOMIA CUTÂNEA EVASCULARNa cobertura do esqueleto osteomuscular, temos os se

guintes planos: epiderme, derme, tecido celular subcutaneo- camada superficial ou areolar, fáscia superficial ou de Scar-pa, camada profunda ou lamelar, fáscia profunda, músculo.Essas camadas possuem características específicas em

cada região corpórea, mudando de espessura, elasticidade,coloração e composição (palpebras, face, couro cabeludo,axilas, dorso, palmas das mãos e plantas dos pés). A camadaareolar permite o deslizamento da pele sobre o plano profundo e contém poucos vasos, apenas perfurantes, sendo umótimo plano de clivagem para levantamento de retalhos.

• MACROCIRCULAÇÃOProvenientes dos grandes ramos vasculares (aorta, caróti

das, axilares e femorais), emergem as artérias denominadasscgmentarcs, que irão irrigar extensas massas musculares;provenientes desses ramos, emergem as artérias perfurantes, que podem ser de três tipos: iniocutâneas, septocutâneas oucutâneas diretas, as quais são ramos perpendiculares à pele e

Fig. 11.1 • Anatomia da pele e planos subjacentes: (l) epiderme, (2) derme, (3) tela subcutanea - camada areolar, (4) fáscia superficial, (5) tela subcutanea - camada lamelar, (6) fáscia profunda, (7) músculo.

Page 6: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

CAPÍTULO 11 • RETALHOS CUTÂNEOS: FISIOLOGIA, CLASSIFICAÇÃO, PRINCIPAIS RETALHOS 63

Pele

Tecido

subcutaneo

Fáscia

Músculo

Fig.11.2 • Esquema da variação dos trajetos vasculares das artérias mio-cutâneas (MC)e septocutâneas (SC).

formarão os plexos vasculares subfascial, subdérmico e dér-mico, que, por sua vez, irão irrigar determinadas regiões dapele, regiões estas que compõem os mais diferentes retalhos,de acordo com essa circulação local.As artérias miocutâneas têm como característica irrigar

uma pequena região circular de pele e dão excelentes ramospara compor os retalhos ao acaso, a partir dos plexos vasculares subfascial, subdérmico e dérmico. As artérias septocutâneas e cutâneas diretas são ramos mais longos e, portanto,ótimas para compor os retalhos axiais, com grandes segmentos de pele.

• MICROCIRCULAÇÃOProveniente dos plexos subdérmico e dérmico, emergem

os ramos que irão formar a microcirculação cutânea, a responsável pela nutrição da pele, termorregulação, homeosta-se e hemodinâmica vascular.Inicialmente emergem as arteríolas (50 a 100 um de diâ

metro), que dão origem às metarteríolas, ou arteríolas terminais (50 um), que se dividem em capilares (7 um), ondeocorrem as trocas gasosas e de energia em nível celular.Esses capilares possuem os esfincteres pré-capilares, que regulam a microcirculação de acordo com os estímulos nervosos simpáticos, que controlam a abertura ou fechamentodesses esfincteres, e determinam uma vasodilatação ou va-soconstrição, conforme as necessidades metabólicas locais(oxigênio, adenosina, hidrogênio, manutenção ou perda detemperatura etc). Da confluência de dois ou três capilaressurgem as vênulas pós-capilares ou coletoras (3 a 8 um), quedão origem às vênulas musculares (50 a 100 um), que, porsua vez, dão origem às veias coletoras e, a partir daí, reinicia-se a macrocirculação.Existem, na rede capilar, as anastomoses ou shunts arte-

riovenosos, que fazem a ligação das arteríolas às vênulas emnível pré-capilar; a abertura/fechamento desses shunts é controlada pela presença de esfincteres pré-shunts, também iner-vados pela ação do sistema nervoso simpático. A aberturadesses shunts desvia o fluxo sangüíneo dos capilares diretamente para as vênulas, isolando a rede capilar, impedindoas trocas gasosas e aumentando o fluxo na macrocirculação.O inverso também é verdadeiro, e é através desse mecanismo que ocorrem a termorregulação e o auxílio no controle àsvariações de pressão arterial (hemorragia, choque séptico),duas das funções mais importantes da pele.A simpatectomia inibe o efeito da ação simpática vaso-

constritora nos esfincteres pré-capilares e nos shunts arterio-

Fig. 11.3 • Esfincteres pré-capilares (*) e pré-shunts (•) na pele. Os esfincteres pré-capilaresregulam o fluxo sangüíneo nutricional da pele erespondem a estímulos locais.Os esfincteres préshunts estão envolvidos na termorregulação e sãocomandados por estímulos simpáticos provenientes do sistema nervoso central.

Page 7: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

64 CAPÍTULO 11 • RETALHOS CUTÂNEOS: FISIOLOGIA, CLASSIFICAÇÃO, PRINCIPAIS RETALHOS

venosos, provocando,de uma forma transitória,uma vasodilatação e aumento do fluxo sangüíneo na microcirculação capilar. Esse fatoé de importância clínica nasmicroangiopatiasprovocadas por diabetes, hipertensão, varizes em membrosinferiores e tabagismo.

• ANATOMIA E FISIOLOGIANEUROVASCULAR DOS RETALHOSO suprimento sangüíneo para os retalhos é feito basica

mente de duas formas:

1. As artérias miocutâneas, após nutrirem e atravessaremos músculos, dão ramos perpendiculares à pele, os quaisformarão os plexos subdérmicos e dérmicos, e, desses plexos, partem ramos que irrigarão pequenos segmentos depele (circulação randomizada). Esse é o padrão vascular,principalmente dos retalhos ao acaso, cuja circulação dependedo número de perfurantes em sua baseque, atravésda rede microvascular do plexo dérmico, levam o sangueaté a ponta do retalho. Relaçõesentre a largura da base eo comprimento do retalho ao acaso foram mencionadasem diferentes regiões corpóreas; mas, hoje em dia, essasrelações largura/comprimento não são bem aceitas pelamaioria dos autores, e sabe-se que o importante mesmoé o número de perfurantes na base do retalho. Esses retalhos são geralmente locais, ou seja, próximos ao defeito,e podem ser movimentados por rotação, transposição,avanço ou tubolizados.

2. As artérias septocutâneas, ou cutâneas diretas, apósemergirem de seus ramos segmentares, correm paralelae longitudinalmente à pele, enviando pequenos ramosque formarão os plexos subdérmicos e dérmicos em umaextensa região da pele, muitas vezes estreita, porém comprida; possuem, em geral, um ou dois ramos venosos (ouaté um ramo nervoso) que acompanham seu trajeto, formando o chamado pedículo neurovascular. Esse é o padrão vascular, principalmente, dos retalhos axiais, que emgeral são muito longos, com maior flexibilidade para rotações e menor possibilidade de necrose, podendo ser emilha de pele; além disso, a área de pele a ser incluída noretalho pode ser aumentada pela circulação randomizadados plexos subdérmicos e dérmicos (como no padrão aoacaso).

O suprimento nervoso da pele origina-se nos nervossensitivos e nos nervos do sistema simpático. A inervaçãosensitiva é distribuída em segmentos, formando os dermá-tomos, e participa da função protetora da pele. As fibrassimpáticas cutâneas terminais pós-ganglionares liberamneurotransmissores: (1) noradrenalina e adrenalina, queproduzem vasoconstrição e fechamento dos esfincterespré-capilares e pré-shunts, além da angiotensina e vaso-pressina, que produzem o mesmo efeito por ação humo-ral; (2) acetileolina, que produz vasodilatação e a aberturadesses esfincteres, além da bradicinina, serotonina e histamina, que também produzem o mesmo efeito por açãohumoral.

• ALTERAÇÕES FISIOLÓGICAS APÓSA ELEVAÇÃO DO RETALHOAprincipal alteraçãoé, obviamente, a interrupção parcial

do fluxo sangüíneo, que resultará em uma redução da pressãode perfusão.Nas porçõesda peleonde há boa pressão deperfusão por ação direta dos ramos vasculares das artériasmioe septocutâneas, não costumahaver problema de necrose; mas, nos retalhos randomizados, ou na porção randomizada dos retalhos pediculados ou axiais, essa regressão dapressão de perfusão é cada vez maior, à medida que aumenta a distância da base à ponta do retalho. Quando a pressãode perfusão se reduz a níveis críticos, territórios vascularesadjacentes de uma outra artéria perfurante podem oferecerum fluxo sangüíneo de baixa pressão, através da rede vascular dos plexos subdérmico e dérmico. Outro aspecto físicoimportante é a resistência intravascular dos capilares, quedificulta o fluxo sangüíneo.Como as necessidades nutricionais da pele são muito

baixas (apenas 1% a 2% do fluxo normal), pode haver lesão de várias perfurantes, com grande regressão da pressão de perfusão, sem ocorrer necrose. Quando a pressãode perfusão cai abaixo da pressão de colabamento doscapilares, cessa o fluxo sangüíneo; caso essa situação semantenha por um período superior a 24 ou 48 horas, podeocorrer necrose.

Nos retalhos viáveis, há um aumento gradual do fluxosangüíneo, se ele estiver em contato com um leito receptoradequado (sem infecção, hematoma ou compressão), devido à formação de uma camada de fibrina após o segundodia, que servirá de apoio ou como guia de orientação para ocrescimento da neovascularização, entre o terceiro e o sétimodia. Essa neovascularização depende de estímulo dos fatoresde crescimento angiogênicos, que são liberados pelas célulasendoteliais dos capilares locais.Começando com os fatores angiogênicos, há uma se

qüência de fatores e reações. Inicialmente, os vasos se dilatam e tornam-se mais permeáveis, com retração das célulasendoteliais e diminuição das junções endoteliais; a membrana basal é dissolvida por proteases, permitindo que as células endoteliais migrem para o extravascular; começa a repli-cação das células endoteliais, formando os brotos capilares,que cresceme se anastomosam uns aos outros, formando anova rede capilar.Para prevenir uma incontrolável neovascularização, há

mecanismos de inibição, ou até pelo próprio contato, comoocorre continuamente com o processo de coagulação.O retorno venoso ocorre pelos plexos subdérmico e dér

mico ou pelos canais venosos que acompanham as artériascomponentes dos pedículos. A oclusão ou congestão venosapode ser maisdanosa para a sobrevivênciado retalho do quea insuficiência arterial, pois ela ocorre mais facilmente devido à menor pressão de perfusão.A lesão linfática também ocorre, levando a um aumen

to da pressão coloidosmótica do líquido intersticial, devidoao aumento da permeabilidade vascular,extravasamento deproteínas e pela ação de substâncias inflamatórias liberadasno local; o edema resultante pode diminuir a perfusão capi-

Page 8: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

CAPÍTULO 11 • RETALHOS CUTÂNEOS: FISIOLOGIA, CLASSIFICAÇÃO, PRINCIPAIS RETALHOS 65

lar devido à compressão externa aos capilares, levando aoaumento da resistência intravascular.

Tanto os nervos sensitivos como os simpáticos são lesadoscom a elevação do retalho. Enquanto a lesão sensitiva causa poucos problemas, a lesão do nervo simpático provoca aliberação de catecolaminas, que provocarão vasoconstriçãoe conseqüente redução do fluxo sangüíneo local. Esse fator,somado à redução da pressão de perfusão causada pela lesão de algumas artérias perfurantes, leva ao colapso dos capilares, principalmente nas porções mais distais do retalho,que pode durar de 24 a 48 horas. Até a reversão total dessequadro, que só ocorre com a diminuição da concentração denoradrenalina e o aumento da pressão capilar induzida pelaação de substâncias vasodilatadoras do processo inflama-tório, o retalho tem que resistir a esse período de isquemiapara que não ocorra a necrose.

• FATORES QUE INFLUENCIAMA CIRCULAÇÃO DOS RETALHOS

1. Reperfusão e Radicais Livres: o retorno do fluxo sangüíneo em um retalho que ficou isquêmico pela ação constri-tora inicial da noradrenalina por um período médio de 12a24 horas, leva novamente oxigênio ao metabolismo celular,formando os radicais livres (também chamados de produtos da reperfusão), que podem causar dano celular, induzindo a necrose. O uso de antioxidantes ou de quelantesdesses radicais livres (alopurinol, superóxido dismutase,deferoxamina, vitaminas A, C e E, aminoácidos) pode neutralizar esse efeito deletério, protegendo os retalhos.

2. Drogas que Influenciam a Microcirculação: o uso de drogas dilatadoras da microcirculação, como o buflomedil,tem demonstrado eficácia na prevenção da necrose em retalhos com evidências clínicas de sofrimento arterial (pa-lidez, diminuição da temperatura, ausência de reperfusãopós-compressão). A dose é de 150 mg EV de 8/8 horas,contínua, iniciada já no transoperatório, até 2 ou 3 dias,período no qual se inicia a microdilatação capilar fisiológica; pode ser mantida por um período de até 7 a 10diasem alguns casos, quando então se inicia a neovasculari-zação do retalho através do seu leito receptor. A pento-xifilina (trental), substância que atua na camada externadas hemácias, aumentando a sua mobilidade e capacidade de deformação, facilitando sua passagem em capilaresmais estreitos, tem demonstrado ser eficaz na prevençãode necrose na dosagem de 1 a 2 ampolas EV de 6/6 horas,contínua, ou 1 comprimido VO de 6/6 horas. A aspirina(AAS), droga que bloqueia a ciclo-oxigenase, bloqueandoo processo inflamatório, não está indicada, principalmente devido à sua outra ação antiagregante plaquetária.

3. Expansão Tecidual: a expansão de tecidos aumenta osegmento de pele e outras estruturas a serem transferidasnos retalhos. Estudos revelaram a ocorrência de aumentoda atividade mitótica na epiderme, aumentando sua espessura, enquanto a derme se adelgaça. A colocação doexpansor acaba funcionando como um processo de auto-nomização do retalho, estimulando a neovascularização etornando esses retalhos mais resistentes à necrose.

4. Câmara Híperbárica: o aumento da pressão de oxigênioexterno provoca aumento na sobrevivência dos retalhos,ou até a reversão de um quadro inicial de necrose. Essaação seria explicada por um aumento da oferta de oxigênio externo, que penetraria na célula por osmose, prote-gendo-a da isquemia provocada pelo déficit circulatório.A câmara híperbárica pode ser utilizada também parainduzir a granulação em feridas extensas (perda de substância em traumas ou queimaduras).

5. Tabagismo: o uso do cigarro aumenta as chances de necrose do retalho. O efeito deletério da nicotina parece aumentar proporcionalmente ao tempo e à quantidade defumo. O mecanismo de agressão da nicotina e do tabacoainda não é totalmente conhecido, mas tem relação com alesão endotelial direta, vasoconstrição secundária à liberação de catecolaminas, ou concentração local de prosta-glandinas. Sugere-se a suspensão do hábito de fumar porum período de, no mínimo, 30 dias antes da cirurgia. Hácirurgias que têm contraindicação relativa, ou até absoluta, para pacientes fumantes.

6. Radiação: a radiação é deletéria à sobrevivência do retalho. A intensidade dessa agressão depende da dosagem,do fracionamento e do tempo entre a radiação e a cirurgia. A radiação provoca uma endoarterite obliterante ealteração no processo de cicatrização. Se for necessáriaa associação de radioterapia com cirurgia, sugere-se nãoesperar mais do que 30 dias para realizar a cirurgia, pois,após esse período, já se instalam as lesões endoteliais, queserão evolutivas e definitivas. Apesar da radiação, a auto-nomização do retalho melhora sua resistência à necrose.

7. Fenômeno da Autonomização dos Retalhos: na tentativade aumentar a viabilidade e a segurança dos retalhos e osegmento de pele a ser transferido, surgiram os primeirosestudos a respeito da autonomização dos retalhos. Pararealizar a autonomização de um retalho, faz-se a secçãoe/ou ligadura do pedículo vascular principal que seria sec-cionado no momento da cirurgia, sem que ocorra o descolamento de seu próprio leito. Outra maneira seria manterum retalho bipediculado e fazer um descolamento total doretalho de seu leito doador, simulando o ato e a agressãocirúrgica. Qualquer um desses procedimentos terá de serrealizado em um período nunca inferior a 30 dias da cirurgia de elevação do retalho, para haver tempo de ocorrer toda a alteração vascular necessária para aumentar suaviabilidade. Ainda não se conhece ao certo a fisiopatologiado fenômeno da autonomização, mas a teoria mais aceita,segundo os estudos de Reinisch, é de que a autonomização provocaria uma isquemia, que seria o estímulo para oaumento da vascularização interna do retalho, além dosefeitos da simpatectomia e da liberação de substâncias in-flamatórias proporcionadas pelo descolamento do retalho.A isquemia e a liberação de fatores de crescimento angiogê-nicos induzem a neovascularização local, que melhoraria acirculação do retalho a ser levantado posteriormente.

• CLASSIFICAÇÃO DOS RETALHOSA classificação dos retalhos pode ser feita com base em

diversos aspectos:

Page 9: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

66 CAPÍTULO11 • RETALHOS CUTÂNEOS: FISIOLOGIA, CLASSIFICAÇÃO, PRINCIPAIS RETALHOS

1. De Acordo com o Suprimento Sangüíneo:• Randomizados: sem pedículo definido, recebem fluxo sangüíneo das artérias miocutâneas, que enviamramos para formar os plexos subdérmicos e dérmicos(exemplos: retalhos em avanço, V-Y, rotação).

• Axiais: com pedículo definido, recebem fluxo sangüíneo das artérias septocutâneas e cutâneas diretas, queenviam ramos para formar os plexos subdérmicos edérmicos; o comprimento do retalho depende do tamanho e do trajeto da artéria que compõe o pedículo,geralmente formando um feixe neurovascular. Podemser de dois tipos:a) Peninsulares: têm continuidade da pele da base atéa ponta do retalho (exemplo: retalho frontal com pedículo na artéria supratroclear).

b) Em Ilha: não têm continuidade da pele, levandoapenas um segmento de pele interposto por umsegmento somente com o feixe neurovascular; têmmelhor mobilidade para rotações (exemplos: retalho chinês, retalho interdigital).

Podem ainda ser divididos em retalhos axiais locaisou a distância (microcirúrgicos).

2. De Acordo com a Localização do Retalho:• Locais: quando os retalhos estão adjacentes ao defeito, geralmente mantendo as características da pelea ser reconstruída (cor, textura, pelos, espessura).Esses retalhos necessitam de menos estágios opera-tórios e menos tempo de hospitalização, sendo ideais para indivíduos mais idosos. Podem ser de doistipos:a) Que rodam sobre seu próprio eixo: em rotação, emtransposição ou em interpolação.

b) Em avanço: movem-se diretamente sobre o defeito, sem movimentos de rotação ou lateralidade.Podem ser de pedículo simples, bipediculado ouem V-Y.

• Distância: a área doadora do retalho é distante do defeito a ser reconstruído. Os retalhos podem ser:a) A distância diretos: geralmente tornam necessáriauma etapa cirúrgica para a confecção do retalho eoutra para a liberação do seu pedículo 3 a 4 semanas após; a mobilidade das extremidades (membrossuperiores e inferiores) é de grande importância(exemplos: retalho inguinal - groin flap -, para reconstrução do dorso da mão, cross-leg, cwss-fingcr,retalho de Tagliacozzi - do antebraço para a reconstrução do nariz).

b) A distância indiretos: transferem-se tecidos atravésde um transportador (geralmente um membro) ouatravés de migrações (tubos pediculados). São pouco utilizados após o surgimento dos retalhos microcirúrgicos.

3. De Acordo com a Região Anatômica:• Retalhos da cabeça e do pescoço• Retalhos do tronco

• Retalhos de membros superiores• Retalhos de membros inferiores

4. De Acordo com a Composição dos Retalhos:• Simples: quando têm uma única estrutura anatômica(cutâneo, de mucosa, de fáscia, muscular, tendinoso,de omento).

• Compostos: quando têm duas ou mais estruturas anatômicas: fasciocutâneos, miocutâneos, osteomuscula-res, osteocutâneos (condrocutâneos).

I 111 1 )\U

Defeito Ponto de rotação

Fig. 11.4 • A.Retalho cutâneoem rotação. B.Incisão de compensação. C.Triângulo de Bürow: pode ser usadoquando é necessária rotaçãoadicionalou maior compensação.

Page 10: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

CAPÍTULO 11 • RETALHOS CUTÂNEOS: FISIOLOGIA, CLASSIFICAÇÃO, PRINCIPAIS RETALHOS

r

Defeitoprimário

Defeitosecundário

Ponto de rotação

Fig. 11.5 > A. Retalho cutâneoem transposição. B.Incisão compensatória que pode serusadapara rotação adicional do retalho.

rotação

runhademaiorjçnsão/X -J-Vt

Ponto de

B

67

Fig. 11.6 • Retalho cutâneo em interpoiação. A, B. 0 retalhocutâneo é rodado para um defeito na vizinhança, com o pedículo passando sobre umsegmento de pelesadia. C,D.Três semanas depois, após a porçãodo retalho adquirir umnovosuprimento sangüíneo, o pedículo é excisado.

180°

Fig. 11.7 • Oretalho cutâneo emrotação sobre um eixo de rotação torna-se menor emcomprimento quanto maior o grau de rotação doretalho.

Page 11: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de

68

r—i-H

CAPÍTULO 11 • RETALHOS CUTÂNEOS: FISIOLOGIA, CLASSIFICAÇÃO, PRINCIPAIS RETALHOS

B

f li

t

Triângulode Bürow

ht

Expansãopantográfica

Fig.11.8 • Retalho cutâneo em avanço monopediculado. A.Avançoobtido com a elasticidade da pele. B. Avanço com a excisão do triângulo de Bürow.C. Avanço com expansão pantográfica.

Fig. 11.9 • Retalho cutâneo em avanço bipediculado.

Fig. 11.10 • Retalhos diretos transferidos a distância. A. Retalho cutâneo direto do tronco para a mão. B. Retalho cutâneo direto do membro superiorpara o nariz (Tagliacozzi, 1597).C. Retalho cutâneo direto de um membro inferiorpara o outro (cross-leg).

Page 12: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de
Page 13: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de
Page 14: RetalhosCutâneos: Fisiologia eClassificaçãolacipufmg.com.br/wp-content/uploads/2017/05/RETALHOS.pdf · O aperfeiçoamento tecnológico de instrumental cirúrgi coe material de