Retextualizacao Por Inez Matoso

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RETEXTUALIZAÇÃO – ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS 1 Maria Inez Matoso Silveira, Phd. (Universidade Federal de Alagoas) Resumo: A retextualização é uma prática discursiva muito freqüente nas rotinas de nossas vidas. Neste artigo, descreve-se sucintamente o processo de retextualização, considerando alguns componentes importantes, tais como a modalidade (oralidade / escrita) e a noção de gênero textual. Como forma de aplicação, propõe-se uma atividade de retextualização a partir de uma situação dada. Palavras-chave: retextualização – oralidade e escrita – gênero textual 1. Introdução Imagine-se uma situação em que, numa instituição de ensino, o coordenador de um curso fala para uma turma de alunos avisando sobre um evento que aconteceria na semana seguinte. Imagine-se também que, depois, um cartaz foi afixado no mural divulgando esse evento. Quais seriam as diferenças entre os dois textos – o falado, avisando sobre o evento; e o escrito, também sobre o evento, mas em forma de um cartaz? Mesmo identificando-se as diferenças entre o aviso oral e o cartaz escrito, convém assinalar que os estudos mais recentes sobre as relações entre a oralidade e a escrita têm mostrado mais semelhanças do que diferenças entre as duas modalidades da língua. Segundo Marcuschi (2001:45) as relações entre fala e escrita podem ser mais bem entendidas quando observadas no continuum dos gêneros textuais. 2 Esse continuum vai, por exemplo, desde as conversações pessoais diárias na fala, os bilhetes e cartas pessoais na escrita, mais voltados à informalidade, passa pelos gêneros orais e escritos dos meios de comunicação de massa, até os mais formais nas várias “esferas da atividade humana”, como a academia, a burocracia oficial e empresarial, a medicina, a jurisprudência, o comércio, etc. 1 Artigo apresentado em mesa-redonda durante o V ELFE – Encontro Nacional de Língua Falada e Escrita – Maceió, novembro de 2006. Publicado posteriormente no livro O ensino da Língua Portuguesa nos anos iniciais: eventos e p´raticas de letramento, organizado por Maria Auxiliadora da S. Cavalcante e Marinaide L. de Queiroz Freitas. EDUFAL, 2008. p.169-179. 2 Gêneros textuais são usos sociais autênticos da língua em situações e contextos específicos e recorrentes. (SILVEIRA, 2005) Os gêneros ocorrem na fala e na escrita, e circulam em todas as atividades humanas. No nosso dia-a-dia, temos a conversa informal, a fofoca, as saudações, as reclamações, a conversa telefônica, etc. Na área da saúde, por exemplo, temos a entrevista médica, que ocorre na oralidade, e temos a prescrição médica, que se realiza na escrita. E assim, os gêneros ocorrem em praticamente todos os setores da vida social, na fala e na escrita.

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RETEXTUALIZAÇÃO – ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS1

Maria Inez Matoso Silveira, Phd. (Universidade Federal de Alagoas)

Resumo: A retextualização é uma prática discursiva muito freqüente nas rotinas de nossas vidas. Neste

artigo, descreve-se sucintamente o processo de retextualização, considerando alguns componentes

importantes, tais como a modalidade (oralidade / escrita) e a noção de gênero textual. Como forma de

aplicação, propõe-se uma atividade de retextualização a partir de uma situação dada.

Palavras-chave: retextualização – oralidade e escrita – gênero textual

1. Introdução

Imagine-se uma situação em que, numa instituição de ensino, o coordenador de

um curso fala para uma turma de alunos avisando sobre um evento que aconteceria na

semana seguinte. Imagine-se também que, depois, um cartaz foi afixado no mural

divulgando esse evento. Quais seriam as diferenças entre os dois textos – o falado, avisando

sobre o evento; e o escrito, também sobre o evento, mas em forma de um cartaz?

Mesmo identificando-se as diferenças entre o aviso oral e o cartaz escrito,

convém assinalar que os estudos mais recentes sobre as relações entre a oralidade e a

escrita têm mostrado mais semelhanças do que diferenças entre as duas modalidades da

língua. Segundo Marcuschi (2001:45) as relações entre fala e escrita podem ser mais bem

entendidas quando observadas no continuum dos gêneros textuais.2 Esse continuum vai,

por exemplo, desde as conversações pessoais diárias na fala, os bilhetes e cartas pessoais na

escrita, mais voltados à informalidade, passa pelos gêneros orais e escritos dos meios de

comunicação de massa, até os mais formais nas várias “esferas da atividade humana”,

como a academia, a burocracia oficial e empresarial, a medicina, a jurisprudência, o

comércio, etc.

1 Artigo apresentado em mesa-redonda durante o V ELFE – Encontro Nacional de Língua Falada e Escrita – Maceió, novembro de 2006. Publicado posteriormente no livro O ensino da Língua Portuguesa nos anos iniciais: eventos e p´raticas de letramento, organizado por Maria Auxiliadora da S. Cavalcante e Marinaide L. de Queiroz Freitas. EDUFAL, 2008. p.169-179. 2 Gêneros textuais são usos sociais autênticos da língua em situações e contextos específicos e recorrentes. (SILVEIRA, 2005) Os gêneros ocorrem na fala e na escrita, e circulam em todas as atividades humanas. No nosso dia-a-dia, temos a conversa informal, a fofoca, as saudações, as reclamações, a conversa telefônica, etc. Na área da saúde, por exemplo, temos a entrevista médica, que ocorre na oralidade, e temos a prescrição médica, que se realiza na escrita. E assim, os gêneros ocorrem em praticamente todos os setores da vida social, na fala e na escrita.

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Entretanto, não há também como desconsiderar as peculiaridades existentes

num texto falado em confronto com um texto escrito e vice-versa. Obviamente, se vivemos

numa cultura em que os enunciados tanto podem ocorrer na oralidade como na escrita, o

uso de uma ou outra modalidade depende das condições materiais, dos propósitos

comunicativos, dos tipos de interação discursiva que se realizam nas relações sociais.

Nessa perspectiva, em algumas circunstâncias, em certos ambientes e para certos

propósitos, a língua falada “funciona” melhor. Noutras ocasiões e circunstâncias, a língua

escrita é mais adequada.

Vale salientar que, se na oralidade existem variações (principalmente na

pronúncia e na escolha das palavras, nas entonações, etc.), na escrita pode-se dizer que

existem mais regularidades e, de certa forma, uma considerável padronização, além de

algumas convenções que devem ser aprendidas por todo indivíduo que passou pelo

processo de alfabetização e letramento.

A perspectiva da percepção e da tentativa de uma conscientização sobre a

dinâmica dos gêneros textuais que perpassam os usos da língua falada e da língua escrita

nos leva a abordar aqui questões relacionadas ao processo de retextualização. Esse processo

pode ser entendido, grosso modo, como as diversas formas de dizer e de comunicar que se

transformam ao passarem de uma modalidade para outra, ou de um gênero textual para

outro. Por exemplo: um repórter conversa com uma celebridade, faz-lhe algumas

perguntas, grava tudo, depois reorganiza esse material e o publica em forma de uma

entrevista escrita nas páginas de uma revista semanal como Veja ou Istoé.

Obviamente, na passagem da modalidade falada (a conversa) para a escrita (a

entrevista na revista), muitas operações ocorreram no texto. É importante salientar que,

nessas variadas formas de comunicação, os temas, os conteúdos e, às vezes, até os

propósitos permanecem praticamente os mesmos, embora se percebam algumas nuances e

certos desvios. Mas, vale frisar que o fenômeno da retextualização, a bem da verdade, pode

ocorrer dentro da mesma modalidade, como, por exemplo, numa conferência em língua

estrangeira e sua tradução simultânea por um tradutor-intérprete. Na escrita, cita-se, por

exemplo, um texto por extenso e seu respectivo resumo.

2. A retextualização nas rotinas das nossas vidas

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Ao estudar esse tema da retextualização, Marcuschi (2001:48) comenta que o

fenômeno é bastante freqüente e corriqueiro nas nossas vidas, no nosso dia-a-dia. Mas,

naturalmente, não pensamos nisso, ou seja, não temos consciência do processo, pois essas

práticas de retextualização ocorrem de forma tão espontânea na vida cotidiana que não nos

damos conta da sua ocorrência. Vejamos, pois, algumas palavras do autor a esse respeito.

Atividades de retextualização são rotinas usuais altamente automatizadas, mas

não mecânicas, que se apresentam como ações aparentemente não-

problemáticas, já que lidamos com elas o tempo todo nas sucessivas

reformulações dos mesmos textos numa intrincada variação de registros,

gêneros textuais, níveis lingüísticos e estilos. Toda vez que repetimos ou

relatamos o que alguém disse, até mesmo quando produzimos as supostas

citações ipsis verbis, estamos transformando, reformulando, recriando e

modificando uma fala em outra (MARCUSCHI,2001:48). Diante disso, concordando com o citado autor, não é difícil

listarmos uma série de eventos em que as pessoas recorrem a retextualizações nas

interações sociais no dia-a-dia de nossa vida, nos ambientes familiares, nas atividades

profissionais, na vida escolar e acadêmica, e em inúmeras outras situações e atividades

mediadas pelo discurso. Citemos algumas dessas situações em que as pessoas fazem

retextualizações:

• a secretária que toma nota de informações orais do chefe pra depois redigir um ofício;

• uma pessoa que, numa reunião, foi designada para elaborar a ata, toma nota resumidamente das informações, discussões e recomendações, e depois, com mais calma, escreve o texto da ata;

• uma pessoa contando a outra o que leu no jornal ou na revista;

• uma pessoa contando a outra o capítulo da novela, ou o debate que assistiu na televisão, o que ouviu no rádio, etc.;

• o delegado que vai ditando para o escriturário o depoimento que está tomando de uma testemunha ou de alguém acusado de alguma transgressão;

• o aluno que anota o que o professor diz numa aula expositiva;

• o acadêmico que recorre a conhecimentos já produzidos sobre determinado assunto, que utiliza citações de autores para elaborar trabalhos, escrever resenhas, monografias, etc.

Evidentemente, a lista de eventos em que podem ocorrer retextualizações é

interminável. Nossa atividade lingüístico-discursiva diária é, na realidade, como diz

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Marcuschi (2001) “um encadeamento de reformulações, tal o imbricamento dos jogos

lingüísticos praticados nessa interdiscursividade e intertextualidade3”.

Como frisa o autor acima, é muito importante lembrar que uma condição

importante para a atividade de retextualização é a compreensão. Efetivamente, para que

uma pessoa possa dizer algo de outro modo, é preciso, primeiramente que ela compreenda

o que foi dito. Muitas vezes, as pessoas não dão a devida atenção a esse elemento, mas,

convenhamos, é a partir deste ponto – da compreensão do evento comunicativo inicial - que

se pode manter uma certa fidelidade aos dados essenciais da informação, senão pode haver

distorções, gerando os mal-entendidos, o desvirtuamento da mensagem e das intenções.

Um outro ponto a ser assinalado é a distinção que se deve fazer entre paráfrase,

refacção (ou reescrita) e retextualização. Primeiramente, vale dizer que, na paráfrase,

geralmente não ocorre mudança de gênero, e a tendência é dizer-se um enunciado de forma

equivalente, geralmente expandindo-o. A refacção ou reescrita assemelha-se mais a uma

“higienização” do texto, incluindo reestruturação e revisão estilística e gramatical.

Neste trabalho, trata-se, mais especificamente, da retextualização do texto oral

para o texto escrito. Veja-se abaixo um exemplo desse tipo de retextualização, citado por

Marcuschi (2001:78).

3 Interdiscursividade e intertextualidade são termos relativos ao fato de os discursos e os textos sempre retomarem e se reportarem uns aos outros. Esse fenômeno faz parte daquilo que o importante semiólogo russo Mikhail Bakhtin considera como dialogismo, e que pode ser ilustrado pelo fato de que “cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados” (BAKHTIN, 1997: 291).

NARRATIVA ORAL – Uma jovem de 17 anos

RETEXTUALIZAÇÃO 1 Aluno de Letras, UFPE, 4º Período.

RETEXTUALIZAÇÃO 2 Aluna de Letras, UFPE, 4º Per.

Eh... eu vou falar sobre a minha família... sobre os meus pais...o que eu acho

deles... como eles me tratam...bem...eu tenho uma

família ...pequena ...ela é composta pelo meu pai ...

pela minha mãe ... pelo meu irmão... eu tenho um irmão

pequeno de ...de dez anos...eh...o meu irmão não influencia em nada ... minha

mãe é uma pessoa superlegal... sabe?

Bem, eu tenho uma família pequena – meu pai, minha mãe e meu irmão. Tenho um irmão pequeno de dez anos que não influencia em nada. Minha mãe é uma pessoa superlegal.

- Bem, eu vou falar sobre a minha família, sobre meus pais, o que acho deles e como eles me tratam. - A minha família é pequena, composta pelo meu pai, minha mãe e um irmão pequeno de dez anos que não influencia em nada. Minha mãe é superlegal.

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O exemplo envolve um texto de partida um pouco curto, mas acredita-se ser

suficiente para que se percebam algumas operações que ocorreram na elaboração do texto

escrito. Marcuschi (2001) aponta alguns aspectos envolvidos nos processos de

retextualização, que se enquadram, primeiramente em duas categorias, quais sejam:

1) os aspectos lingüísticos-textuais-discursivos entendidos como:

a) idealização – eliminação, completude, regularização;

b) reformulação – acréscimo, substituição, reordenação;

c) adaptação – tratamento da seqüência dos turnos

2) os aspectos cognitivos (relativos à compreensão)

a) inferência

b) inversão

c) generalização

A bem da verdade, as fronteiras ou limites desses aspectos são muito tênues,

pois no ato de elaboração da retextualização eles se imbricam e se recobrem. Quanto às

operações que se realizam, efetivamente, durante o ato de retextualizar, Marcuschi (2002)

aponta as seguintes:

1ª operação: eliminação de marcas estritamente interacionais (hesitações, por

exemplo).

2ª operação: Introdução de pontuação.

3.ª operação: Retirada de repetições, reduplicações, redundâncias.

4ª operação: Introdução de parágrafos e pontuação detalhada.

5ª operação: Introdução de marcas metalingüísticas, dêitico.

6ª operação: reconstrução de estruturas frasais truncadas, concordância, reordenação

sintática.

7ª operação: tratamento estilístico.

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8ª operação: reordenação tópica do texto e reorganização da seqüência argumentativa.

9ª operação: agrupamento de argumentos condensando as idéias.

Evidentemente, esse modelo operacional, alerta o citado autor, não pode, às

vezes, ser aplicado na sua totalidade, de forma mecânica, em todos os textos; mas, pelo

menos alguns elementos e operações podem ser usadas na tarefa de retextualização.

3. Conclusões

A conscientização sobre o fenômeno da retextualização é de grande valia para o

ensino e a prática da leitura e da escrita na escola. Com certeza, pode-se dizer que, junto

com a noção de gêneros textuais, a idéia e a prática da retextualização são estratégias de

ensino e de aprendizagem que podem dar grande significabilidade à leitura e a escrita na

escola. Desse modo, o professor, ao proporcionar a prática da retextualização na sala de

aula, pode levar o aluno-aprendiz a perceber não só os aspectos formais da língua ao

utilizar os inúmeros recursos estilísticos e de textualização, como também pode colaborar

para o letramento desse aluno. Afinal, o contato com os diferentes tipos de textos e de

gêneros textuais, obviamente com diferentes propósitos comunicativos, ajuda o aluno a

desenvolver e diversificar suas estratégias de leitura e, com a mediação do professor, pode

desenvolver um certo censo crítico diante do que lê.

A título de exercício, propomos uma atividade prática4, cuja tarefa é

retextualizar um aviso escrito numa placa tosca de madeira (Fig. 1) colocada na entrada do

banheiro de um camping, que passou a ser administrado por uma organização não-

governamental.. A proposta é a elaboração de: 1) um pequeno cartaz sucinto, feito com

material resistente, com letras grandes, a ser impresso e afixado na porta do banheiro e 2)

um aviso mais detalhado a ser colocado no quadro de aviso da cabana da administração do

camping e 3) uma passagem do folder para a divulgação e propaganda do camping entre

turistas.

4 Trata-se de uma contribuição da Profa. Nílvia Pantaleoni da PUC-SP, disponível no sítio: http://www.paratexto.com.br/filles/0003/ALO 1506.doc.

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Fig. 1 – Texto escrito numa Placa encontrada na porta do banheiro de um camping

“ALO - ATENÇÃO QUANDO VOÇE

SAIR DO BANHEIRO APAGAR A LUZ POR FAVOR

OBRIGADO| - - - - OUTRAS COIZAS VOÇEIS QUE

FUMÃN POR FAVOR NÃO JOGUE BITUCA DE CIGARROS

EN QUAU QUER LUGAR - - NÃO É PERMITIDO

VOÇE ANDAR FUMANDO MACONHA______

DENTRO DO CAMPIMG. RESPEITE

A REGRA DO CAMPIMG. OBRIGADO

NÃO ANDAR - GRITANDO NEIN DE DIA

NEIN DINOITE. OKEI TODOS – VÃO GOSTAR

DE VOÇE PRINCIPALMENTE O CAMPIMG

VOÇE É UMA PESSOA BEM EDUCADA

ENTÃO FAÇA ISTO QUE VOÇE

VAI EN QUAL QUER LUGAR VOÇE CERA

BEM VINDO OU BEM – INDO. NOEL AGRADECE

A TODOS _ A COMPRIENÇÃO E QUE – DEUS

NOSSO CRIADOR A BEMSSOIE A TODOS

AMÉM OBRIGADO< < < < < < 2005”

_________________________________

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ________. Estética a criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1997. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita – atividades de retextualização. São Paulo: Cortez Editora, 2001. SILVEIRA, M. Inez Matoso. Análise de gênero textual – concepção sócio-retórica. Maceió: Edufal, 2005.