Retiro - cnbbleste2.org.br

13
1 Retiro A vida e a espiritualidade do presbítero em tempos de pandemia e pós-pandemia A CRISE SEGUNDO PAULO O Papa Francisco nos recorda que a lista de personagens bíblicos em crise é infinda e cada um de nós pode encontrar neles o seu próprio espelho e o seu lugar. E dá o exemplo de diversas crises. A crise de Moisés que se revela na escassa confiança que ele tinha nas suas capacidades para realizar a missão que Deus lhe confiara. A crise de Elias, que ao contrário de Moisés se julgava forte e impetuoso como o fogo (cf. Sir 48, 1), mas que lhe foi concedido fazer a experiência de Deus, não através da força e do poder, mas na fraqueza minimal “duma brisa suave” (cf. 1 Rs 19, 11-12). Porque, explica o Papa, “a voz de Deus nunca é a voz rumorosa da crise, mas é o murmúrio que nos fala dentro da própria crise”. Outras figuras de crise são João Baptista e São Paulo. O Baptista se sente confuso acerca da identidade messiânica de Jesus, pois talvez esperasse um Messias com outro estilo. E a crise de Paulo. Vejamos em 10 breves pontos a crise de Paulo. 1. Começar uma viagem caído por terra Uma viagem inusitada a meio daquele caminho de Damasco se abriu para Paulo. É verdade que ela ficou a marcar uma certa tipologia da conversão: imediata, total, fulgurante, na forma absoluta como acontece. Fala-se muito, por exemplo, da queda do cavalo, mas em nenhum passo da Cartas ou dos Actos se diz que Paulo ia a cavalo. Não se sabe, embora a tradição iconográfica tenha representado amplamente o Apóstolo dessa maneira, e numa intensidade tão impressiva, que estávamos prontos a jurar ter lido em qualquer passo acerca dele. Há, de facto, um inesquecível cavalo, mas nas imagens de Dürer, Miguel Ângelo, Tintoretto, Rubens, Parmigianino… - uma lista interminável! Frequentemente referido é o da pintura de Caravaggio, intitulada “Conversão de São Paulo”: Paulo surge caído por terra, com os braços abertos e

Transcript of Retiro - cnbbleste2.org.br

Page 1: Retiro - cnbbleste2.org.br

1

Retiro

A vida e a espiritualidade do presbítero

em tempos de pandemia e pós-pandemia

A CRISE SEGUNDO PAULO

O Papa Francisco nos recorda que a lista de personagens bíblicos

em crise é infinda e cada um de nós pode encontrar neles o seu

próprio espelho e o seu lugar. E dá o exemplo de diversas crises.

A crise de Moisés que se revela na escassa confiança que ele tinha

nas suas capacidades para realizar a missão que Deus lhe confiara.

A crise de Elias, que ao contrário de Moisés se julgava forte e

impetuoso como o fogo (cf. Sir 48, 1), mas que lhe foi concedido

fazer a experiência de Deus, não através da força e do poder, mas

na fraqueza minimal “duma brisa suave” (cf. 1 Rs 19, 11-12).

Porque, explica o Papa, “a voz de Deus nunca é a voz rumorosa da

crise, mas é o murmúrio que nos fala dentro da própria crise”.

Outras figuras de crise são João Baptista e São Paulo. O Baptista

se sente confuso acerca da identidade messiânica de Jesus, pois

talvez esperasse um Messias com outro estilo. E a crise de Paulo.

Vejamos em 10 breves pontos a crise de Paulo.

1. Começar uma viagem caído por terra

Uma viagem inusitada a meio daquele caminho de Damasco se

abriu para Paulo. É verdade que ela ficou a marcar uma certa

tipologia da conversão: imediata, total, fulgurante, na forma

absoluta como acontece. Fala-se muito, por exemplo, da queda do

cavalo, mas em nenhum passo da Cartas ou dos Actos se diz que

Paulo ia a cavalo. Não se sabe, embora a tradição iconográfica

tenha representado amplamente o Apóstolo dessa maneira, e numa

intensidade tão impressiva, que estávamos prontos a jurar ter lido

em qualquer passo acerca dele. Há, de facto, um inesquecível

cavalo, mas nas imagens de Dürer, Miguel Ângelo, Tintoretto,

Rubens, Parmigianino… - uma lista interminável! Frequentemente

referido é o da pintura de Caravaggio, intitulada “Conversão de

São Paulo”: Paulo surge caído por terra, com os braços abertos e

Page 2: Retiro - cnbbleste2.org.br

2

levantados, como quem acolhe o invisível; os olhos

completamente cerrados, ligados agora a um outro entendimento.

E, no centro, um cavalo imenso, a deslocar-se suavemente para

fora de cena, como se não fosse já necessário, ou adivinhasse que

começava, precisamente aqui, outro tipo de peregrinação para o

seu cavaleiro derrubado.

Se o texto bíblico não alude à presença de um cavalo, e se se sabe

que Paulo viajou por terra maioritariamente a pé, como se chegou

a essa representação? Há um motivo que joga com aquilo que o

relato não diz, mas que entra no puro território das probabilidades

(de facto, o cavalo seria um meio de transporte utilizado). E há

uma importante razão simbólica. O retrato inicial de Paulo é o de

um homem investido de força, acorrentado a uma convicção

implacável. Ora o que a narrativa da sua conversão vai mostrar é a

prostração e a fragilidade perante a revelação de Jesus («Saulo,

Saulo, porque me persegues?»).

Os textos bíblicos não dizem que Paulo tombou de um cavalo,

apenas que «caiu por terra». De facto, “apesar do papel de Paulo,

que leva autorização do sinédrio para deter os discípulos de Jesus,

o autor dos Actos não o apresenta como uma expedição militar”.

«Caiu por terra». Também Ezequiel perante a visão da glória de

Deus, descreve: “à sua vista eu caí de rosto por terra e ouvi uma

voz que falava” (Ez 1,28).

2 Cor 12, 7-10

Gal 4:13-14

2. Amadurecer com as crises

Há que ler, contudo, este momento da vida de Paulo em

profundidade. Quando ele declara a sua missão cumprida (Rm

15,23) não quer dizer que tudo esteja assente e resolvido. Aliás,

Paulo tem vivido em extrema turbulência aqueles anos. E ele sabe

que a crise que atravessa as suas igrejas, se é “provocada por

intromissões externas, não deixa também de encontrar

ressonâncias, para não dizer conivências, dentro das próprias

comunidades”. Temos de poupar-nos a leituras simplistas e, desde

já, aludir a um dos nós do problema. Claramente, a vulnerabilidade

que estala nas comunidades paulinas tem a ver com o processo

mesmo da sua constituição, alicerçada em torno daquilo que a

historiadora Marie-Françoise Baslez designa como prática de

“assimilação”. Um corpo o mais heterogéneo que se possa pensar,

Page 3: Retiro - cnbbleste2.org.br

3

em termos étnicos, sociais e culturais, teria, como se veio a

verificar, naturais dificuldades em coincidir numa comunhão

estável de pontos de vista. Os cristãos de Corinto não se entendiam

quanto à circuncisão. Os de Colossos pretendiam manter a

separação de mesa entre os cristãos vindos do judaísmo e os de

extração pagã. Na Galácia guerreava-se por manter ou por abolir o

calendário das festas judaicas, mesmo depois de Paulo lhes ter

pregado a liberdade trazida por Cristo (“Ó Gálatas insensatos!

Quem vos enfeitiçou, vós a quem Cristo crucificado foi

apresentado”, Gal 3,1). Paulo vai tomando progressiva consciência

da necessidade de “sair da estrutura gruposcular”. A missão cristã

tem o seu dinamismo próprio e verdadeiramente depende de outro:

“Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fez crescer” (1 Cor

3,6). Paulo visitou as suas Igrejas ao longo do tempo, manteve

contactos directos, enviou-lhes os seus colaboradores, escreveu-

lhes cartas, formou um grupo de responsáveis para garantir a

coesão organizativa... Sente que fez a sua parte. A sua expectativa

agora é que estas igrejas estejam, mesmo com todas as hesitações,

preparadas para caminhar pelo próprio pé.

Neste inverno em Corinto, andando no movimentado porto de

Cêncreas que se abre sobre o mar Egeu ou recolhido em casa de

Gaio, Paulo tem o tempo interior necessário para reconfigurar a

sua missão. Talvez mais do que em outras estações, Paulo é aqui

“um homem livre e um apóstolo maduro”. No intenso debate

doutrinal com os seus adversários, teve oportunidade de testar a

coerência, mas também de compreender certas insuficiências da

sua própria pregação. O diálogo, nem sempre fácil, com as suas

comunidades em crise permite-lhe aprofundar as razões essenciais

da fé e do estilo de vida cristã. Andaria, agora, pelos sessenta anos

de idade, o vigor físico já não é o mesmo, e não lhe resta,

porventura, muito tempo. Mas é um Paulo surpreendentemente

sereno e esperançado aquele que encontramos.

3. Um ancião com sonhos

Paulo saberia que o território ocidental do Mediterrâneo era muito

diferente daquele que conhecera como a palma das suas mãos. Não

teria levado muito tempo a concluir de que lhe seria útil a

experiência de quem estivesse mais perto desse admirável mundo

novo. Roma emergiu então como a preciosa peça que faltava.

Page 4: Retiro - cnbbleste2.org.br

4

Roma não lhe era completamente estranha. Os seus fiéis

colaboradores, Priscila e Áquila, provinham dessa Igreja. Eles

trabalham ao lado de Paulo, primeiro em Corinto e depois em

Éfeso (1 Cor 16,19). Há uma rede de relações que o capítulo 16 da

Carta aos Romanos nos faz supor, com muita certeza. Nesse

capítulo saúda vinte e seis pessoas, vinte e quatro das quais são

tratadas pelo nome. Além disso, refere três igrejas domésticas

(Rom 16, 5.14.15) e dois grupos de (ex)escravos (vv.10.11) que

podem corresponder a outras duas. De Andrônico e Júnia Paulo diz

serem seus “parentes e companheiros de prisão” (v.7). A

adjectivação de “caro amigo” (v.8) dedicada a Amplíato não pode

não ser considerada, e muito menos o que Paulo diz a Rufo: que a

mãe deste foi uma mãe para ele (v.13).

Mas não se tratava apenas de suporte logístico ou linguístico,

embora isso estivesse naturalmente na mente de Paulo. Se fosse

apenas isso, talvez Paulo o encontrasse mais à mão, entre as

comunidades por ele fundadas na Ásia Menor e na Grécia. Paulo

precisava de outra coisa dos cristãos de Roma. Jewett não tem

dúvidas: o seu propósito é desencadear uma “missão cooperativa”

a fim de evangelizar as Espanhas.

Os desenvolvimentos críticos na Galácia e em Corinto, com o

questionamento do seu estatuto de apóstolo e da sua autoridade,

mostrou-lhe o perigo que representava poderem dizer dele que era,

no fundo, um outsider, uma voz fora do coro que só se

representava a si próprio. Era preciso que existisse uma Igreja a

suportar as novas fundações de comunidades, e que pudesse, pelo

seu prestígio, exercer um magistério de autoridade. Paulo estava

pronto a estabelecer que esta responsabilidade seria de Roma, mas

precisava persuadir aquela comunidade a assumi-lo como seu

delegado e a dar-lhe o mandato de missionário (Rm 15,24).

É aqui que surge a Carta aos Romanos. A dizer a verdade Paulo

nunca tinha escrito uma carta desse tipo. Todos os seus escritos

anteriores tinham sido suscitados em diálogo com comunidades

que Paulo conhecia directamente e constituíam muitas vezes

resposta a problemas concretos. Que poderia ele, um

desconhecido, dizer que interessasse a membros de uma Igreja

estranha, na capital do Império? Paulo reveste-se de especiais

cuidados. Com a ajuda de um secretário de nome Tércio (Rm

16,22), Paulo vai ditar em tom didáctico e com uma argumentação

ponderada e universal uma espécie de manifesto das suas

convicções. Já Orígenes observara que em Romanos, de forma

diferente do que sucede, por exemplo, em Gálatas, Paulo não

critica a fé dos seus destinatários. A carta é pensada como a síntese

Page 5: Retiro - cnbbleste2.org.br

5

do anúncio que o apóstolo vem há duas décadas fazendo, e que

conhece agora uma apresentação convenientemente orgânica e

articulada, sem deixar de ser intensa e pessoal. É claro que neste

momento Paulo não sabe, nem ele escreveu a carta com esse

propósito, mas de um ponto de vista histórico e teológico este texto

será considerado o seu testamento.

4. Um tradutor da experiência cristã

Paulo situa-se na dependência desse acontecimento chamado Jesus

e coloca-se, por inteiro, ao serviço do seu anúncio. Mas fá-lo de

uma maneira nova, com uma gramática diversa, em contacto com

espaços culturais inéditos. O cristianismo na dicção primeira de

Jesus era sociologicamente uma realidade oral e campesina. As

parábolas de Jesus falam com propriedade de campos e de

sementeiras acidentadas, de assalariados rurais e de colheitas, de

mães de família que amassam o pão de cada dia ou de pequenos

negociantes de passagem. Não raro, por detrás do grego corrente

em que os evangelhos as narram, ainda se pode como que sentir o

eco do aramaico falado nas aldeias palestinenses. Opina Wayne A.

Meeks: «Paulo era um homem de cidade e a toda a sua linguagem

respira o mundo urbano». Com Paulo o cristianismo ganhou a

amplidão que o próprio Jesus prometera (Mt 28,19-20), tornando-

se cosmopolita, transfronteiriço e...escrito. Paulo estava estava

apto para protagonizar uma das operações teológicas mais criativas

e complexas: a da tradução da mensagem cristã. Diz Romano

Penna: “Paulo é o homem de vários primados. Os seus são os

primeiros escritos em absoluto na história do cristianismo: a

literatura cristã começa precisamente com ele!”

No mundo das cidades greco-romanas onde os homens são

desiguais por nascimento e onde os grupos sociais parecem

separados por fronteiras raramente ultrapassáveis, o cristianismo

podia oferecer a cada um uma nova consciência de si e a

solidariedade real e simbólica de uma pertença comum. E podia

fazê-lo isto com as possibilidades de impacto e alcance da

mensagem escrita. O Baptismo, quer dizer, a decisão de colocar a

sua existência sob a senhoria de Cristo crucificado, pressupõe uma

escolha pessoal e a aceitação de um novo caminho (cf. 1Cor 7).

Cada baptizado reforça a sua singularidade por uma participação

pessoal no mistério de Cristo. Doravante, «não há judeu nem

grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque

todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3,28), garantiu Paulo e...

Page 6: Retiro - cnbbleste2.org.br

6

por escrito. E falar assim desta nova realidade é também assinalar

o arranque da aventura cristã.

5. Manter um centro fixo num pensamento móvel

Possuímos de Paulo várias cartas, e há um consenso em

considerá-las os primeiros escritos cristãos que chegaram até nós.

Em década e meia de actividade epistolar intensa e de reflexão, o

seu pensamento evolui, as motivações amadurecem, alteram-se os

destinatários e as situações que enfrenta. Mas a evolução do seu

pensamento liga-se também a um amadurecimento da forma

literária em que se exprime. Se os primeiros escritos de Paulo são

cartas simples, sem especial elaboração, o apóstolo passa a

conhecer os recursos da oficina literária e a manejá-los, tornando-

se um verdadeiro escritor.

Esta evolução é ainda mais interessante – e é certamente um factor

que confere ao pensamento de Paulo um potencial de sedução

muito forte - se tivermos em conta que o mundo paulino tem um

centro que permanece imutável: a ressurreição de Jesus. «Se Cristo

não ressuscitou a nossa pregação é vazia, e vazia também é a vossa

fé» (1 Cor 15,12). Um centro fixo num pensamento móvel – assim

se poderia descrever em grande parte o génio do apóstolo que

inaugura o cânone cristão.

6. Trabalhar em equipa

Ao contrário daquilo que a imaginação cristã parece em traços

largos ter favorecido, Paulo não foi um navegador solitário e auto-

suficiente na extraordinária aventura que o cristianismo de matriz

paulina representou. A verdade é que ele sozinho não poderia levar

a cabo a ingente e complexa tarefa da fundação e acompanhamento

das comunidades. E não podia fazê-lo por três ordens de razões:

1) Uma primeira ordem de razões é de natureza teológica e

eclesial. O trabalho em equipa não é uma inovação paulina. O

testemunho mantido pelos evangelhos é que o próprio Jesus enviou

os apóstolos dois a dois (Lc 10,1; cf. Mc 6,7). E não deixa de ser

relevante que nos evangelhos, tal como nos Actos dos Apóstolos, o

termo “apóstolo” compareça sempre no plural e nunca no singular.

O próprio Paulo começou por ser um missionário ligado à rede da

Igreja de Antioquia. Podemos dizer que Paulo continuou

simplesmente a operar numa metodologia que identificara desde

sempre a construção da identidade cristã.

Page 7: Retiro - cnbbleste2.org.br

7

2) Um segundo motivo prende-se com as modalidades de

edificação das comunidades paulinas. No estudo que lhes dedica,

Margaret Y. Macdonald sublinha duas palavras fundamentais:

“experiência” e “processo”. Muitas vezes houve a tendência de

olhar para a teologia de Paulo “num vácuo” como se a doutrina

moldasse de forma directa (e algo abstracta) as comunidades. Ora

a teologia de Paulo não se entende sem experiência, sem aplicação

prática e sem processo. A sua teologia avança experimentalmente,

dialogando com as circunstâncias históricas. Tem um ponto fixo:

“o Messias crucificado e ressuscitado ocupa o centro do sistema

simbólico paulino”, recorda Macdonald. Mas tem também uma

plasticidade que se justifica também pela multiplicidade de actores

envolvidos.

3) E temos, por fim, os constrangimentos pessoais do próprio

Paulo. No retrato que os Actos dos Apóstolos traçam dele, o

apóstolo é uma figura eminente, quase um enviado divino (como

em Listra, se julgou que fosse – Act 14,5-18), capaz de actuar

miraculosamente, possuindo altos dotes retóricos (Act 17,16),

falando grego, hebraico e aramaico (Act 21,37; 22,2), podendo ser

apresentado como a encarnação ideal de um judeu exemplar na

fidelidade à Torá, crente em Cristo e súbdito leal do Império

Romano, de que seria aliás cidadão. A tomar à letra os Actos,

Paulo possuiria “uma elevada condição social” e “notáveis meios

económicos para sustentar o seu nível de vida inclusive como

propagandista da comunidade messiânica”. Há que reconhecer

que esta importante posição social atribuída a Paulo não recebe

confirmação das Cartas Paulinas. Bem pelo contrário: “todas as

afirmações de Paulo nesta matéria nos obrigam a pensar que Paulo

tenha trabalhado manualmente para garantir o sustento próprio e

que tenha recebido ajudas económicas alheias.” O quadro traçado

por R. F. Hock pode parecer demasiado cru, mas tem mais

realismo histórico do que as imagens idealizadas de Paulo que

subsistem. Diz ele: “Paulo era o Paulo fabricante de tendas muito

mais do que habitualmente se imagina. Esta actividade absorvia a

maior parte do seu tempo... A sua vida era, em grande parte, a vida

de um homem empregado numa oficina...inclinado sobra a banca

de trabalho como um escravo trabalhando conjuntamente com

outros escravos.” Podemos, por isso, concluir que Paulo tinha de

recorrer a uma abundante rede de colaboradores para suprir os seus

constrangimentos de acção que seriam mais do que muitos.

Ora, lendo com atenção quer o seu epistolário quer os Actos dos

Apóstolos, apercebemo-nos de que um dos traços identificadores

do projeto pastoral de Paulo é o trabalho em equipa. O apóstolo

Page 8: Retiro - cnbbleste2.org.br

8

valeu-se de uma importantíssima rede de colaboração, que em

parte conseguimos reconstruir pelos textos. Homens e mulheres,

mais jovens ou mais adultos, judeus e pagãos, compatriotas e

estrangeiros – foi amplo e diversificado o grupo de colaboradores

de Paulo, e para mais dotado de uma surpreendente mobilidade nas

grandes cidades do Império Romano. Para isso, na opinião de

Meeks, contribuiu muito o facto da composição social do

movimento cristão: por um lado, era um movimento societário

transversal, representativo da diversidade social e urbana daquele

tempo; e, por outro, o cristão “típico” de então começou por ser o

artesão livre e o pequeno comerciante, gente que, em qualquer

caso, podia viajar e contar com alguns outros sinais de bem-estar

económico.

7. A capacidade de um olhar profético e novo

Enquanto peregrino Paulo é capaz de olhar de forma nova e

profética e emprestar uma nova plástica à caligrafia do mundo.

Enumeremos apenas alguns dos seus contributos:

1) O mundo greco-romano que Paulo conhecia, era dominado

pelas oligarquias. Os cidadãos dotados de direitos políticos

representavam uma pequena minoria – calcula-se à volta de dez

por cento do total da população. Esta nomenclatura constituía

sociedades predominantemente homogéneas, defendidas por

fronteiras de convívio muito rígidas. A mobilidade das pessoas e a

cooperação entre classes ou os relacionamentos mistos eram

olhados com grande reserva, se não mesmo com repúdio.

Paulo enquanto peregrino alcançado por Jesus, vai ter a capacidade

de pensar numa configuração diferente, inclusiva e universal. Ele

arrisca, por exemplo, olhar para a cidade, para a polis – e não nos

podemos esquecer que, com Paulo, o cristianismo é urbano pela

primeira vez – com a liberdade de aproximar o distante, de reunir

no mesmo corpo social aquilo que é diferente: «não há judeu nem

grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque

todos sois um só em Jesus Cristo» (Gal 3,28). Este perspectivar da

convivência social, não já em dialéctica, mas numa corajosa

dinâmica integradora, é de facto algo novo, que só uma grande

peregrinação podia permitir. Um exemplo fortemente esclarecedor

é a própria palavra ecclesia/Igreja. Ela provém não do âmbito

religioso, mas tem uma imediata conotação política, porque a

ecclesia originariamente era o conselho dos homens bons que

conduzia a cidade. Paulo vai utilizar essas categorias societárias e

Page 9: Retiro - cnbbleste2.org.br

9

políticas, mas emprestando-lhes um conteúdo novo. A Igreja

emerge como um inédita comunidade sem fronteiras.

2) Igual novidade repercute-se na luta em que Paulo se envolve

para que a mesa seja um reflexo da convivialidade fraterna e

igualitária, e não já das assimetrias e das exclusões. A ruptura que

Paulo ensaia com Pedro a esse propósito, na Carta aos Gálatas,

vale mais do que mil palavras (Gal 2,11-14: «Mas, quando Cefas

veio para Antioquia, opus-me frontalmente a ele, porque estava a

comportar-se de modo condenável. Com efeito, antes de terem

chegado umas pessoas da parte de Tiago, ele comia juntamente

com os gentios. Mas, quando elas chegaram, Pedro retirava-se e

separava-se, com medo dos partidários da circuncisão. E com ele

também os outros judeus agiram hipocritamente, de tal modo que

até Barnabé foi arrastado pela hipocrisia deles. Mas, quando vi

que não procediam correctamente, de acordo com a verdade do

Evangelho, disse a Cefas diante de todos: «Se tu, sendo judeu,

vives segundo os costumes gentios e não judaicos, como te atreves

a forçar os gentios a viver como judeus?»).

Sabemos como a mesa é um espaço, por excelência, das

identidades e da sua salvaguarda. A mesa é um lugar exclusivo. E

a grande revolução cristã é transformar a mesa num lugar

abrangente, num espaço de abertura, onde as nossas identidades se

reinventam a partir da universalidade do encontro.

3) Paulo adopta em grande medida os modelos de convivência

social do mundo romano, mas sempre adaptando-os, purificando-

os a partir da antropologia cristã e da novidade de Jesus Cristo. Por

exemplo, Paulo é por vezes criticado por não ter sido mais

explícito em relação à escravatura. Mas na Carta a Filémon, Paulo

é muito claro: por um lado parece manter um certo conformismo

social, mas por outro incendeia de novidade o seu discurso e a

realidade da História, dizendo que o dono e o escravo se devem

reconhecer como irmãos. Paulo dissemina elementos fundamentais

de novidade cristã, ousando uma configuração nova do mundo e

das relações, mostrando a possibilidade de ser cristão para lá das

fronteiras estritas do judaísmo ou do helenismo. Com Paulo, nós

percebemos que é a própria experiência cristã que peregrina, é a

própria experiência cristã que viaja.

8. O segredo de Paulo é Cristo

Page 10: Retiro - cnbbleste2.org.br

10

O acontecimento de Cristo inaugura na vida de Paulo um estádio

radicalmente novo. Quando Paulo pensa o que é a sua própria

existência e a existência do homem no mundo, já não a dissocia da

revelação pascal de Cristo. Ele descobre que nós somos por Ele. É

por Cristo que nós somos, no Pai e no Espírito. Cristo, pela sua

morte e ressurreição, introduz-nos numa relação nova e dinâmica

com Deus. Temos acesso à Sua intimidade. É interessante a

palavra prosagogé – acesso – que nos é citada tanto em Romanos

5,2, como em Efésios 3,12. A etimologia desta palavra liga-se ao

ritual que, nas cortes, levava os íntimos do rei a ter com ele uma

proximidade directa, que, claramente, a maioria dos súbditos não

teria. Cristo é aquele que nos dá esse acesso à intimidade do Pai. E

é a esta luz que a existência humana pode verdadeiramente ser

qualificada de nova.Nós somos associados a Cristo e a nossa

existência torna-se uma existência crística.

Toda a teologia de Paulo é fundada sobre uma descrição das

transformações que acontecem ao homem no seu itinerário, na sua

peregrinação para Deus, em Cristo. A percepção da ressurreição é

um marco fundamental na teologia de Paulo. Paulo adere a Jesus

Cristo porque imediatamente O apreende como Salvador. O

indivíduo Jesus não interessa jamais a Paulo. Nem nas suas cartas

encontramos uma cristologia em torno ao Filho do Homem, tal

como encontramos nos Evangelhos Sinópticos. Enquanto que S.

Lucas, por exemplo, se esforça por relevar a continuidade entre o

Jesus histórico e a Igreja das origens, Paulo está muito mais

interessado na revelação de Jesus como Filho de Deus, e na

redenção e salvação que nos chega pela sua cruz. Ele faz a

experiência mística de um Jesus que está vivo. Ele morreu na cruz

mas Paulo descobre-O como bem-aventurado de Deus. E Paulo faz

da dicção do Mistério Pascal o centro da sua teologia.

9. Uma nova identidade

O cristianismo começa em Paulo pela operação necessária de

instauração ou de re-instauração do sujeito crente. Assim, a lição

de Paulo é que cristãos não somos, mas sim nos tornamos,

obrigando-nos a romper com o conformismo teológico de um

cristianismo como dado adquirido, que se dá meramente por

descontado, “como se ser cristão fosse a coisa mais óbvia deste

mundo”. Pelo contrário: o crer passa com Paulo a ser regido e

modalizado por uma experiência de transformação. Como escreve

ele na Segunda Carta aos Coríntios: “todos nós, com o rosto

Page 11: Retiro - cnbbleste2.org.br

11

descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos

transformados (metamorphoumetha) nesta imagem” (2 Cor 3,18).

Um marcador desta nova identidade transformada é o baptismo,

que na perspectiva de Paulo se compõe de dois elementos: um

processo de radical assimilação que leva os batizados a viver “para

Cristo” (eis Christō) e, consequentemente, uma ética da

transformação que os conduz, no decorrer da história, a ousar viver

uma vida nova e peculiar, uma vida de batizados “em Cristo” (en

Christō). Aqui as preposições (eis: para; e en: em) têm uma

semântica efetiva a que é preciso atender. O acontecer de Cristo na

vida de cada um torna-se uma realidade tão transformante que

introduz uma radical contestação identitária. Há uma relativização

das fronteiras de género, étnicas ou de cidadania. A transformação

cristológica que instaura o sujeito crente determina assim uma

contínua “metamorfose das pertenças”. A existência cristã,

segundo Paulo, é uma existência metamórfica, que habita

criativamente a transformação trazida por Cristo. Crer em Cristo

significa participar do dinamismo de vida que está escondido e ao

mesmo tempo revelado no acontecimento da Sua ressurreição. É

uma novidade total, tornada possível apenas pela iniciativa de

Deus. Compreende-se assim o vocabulário da “nova criação”

(kainē ktisis) aplicado metaforicamente à existência dos crentes (2

Cor 5,17; Gal 6,5). Esse exprime de uma forma plástica a novidade

escatológica que doravante determina a sua existência. O que é um

cristão para Paulo: é um sujeito crente em construção, é uma

escolha de viver em estado de processo, de viver ao mesmo tempo

a plenitude e o inacabamento, o tesouro e o barro, a esperança e a

experiência. Um cristão para Paulo nunca é um assunto arrumado,

resolvido de uma vez por todas: mas é aceitar habitar uma tensão,

um fazer e refazer permanentes, sabendo que a fé que temos é

frágil e incompleta. Olhando, por exemplo, para a Primeira Carta

aos Tessalonicenses capta-se isso no uso que Paulo faz do verbo

“estabelecer/ confirmar” (stērixai). A fé da comunidade está, no

juízo de Paulo, em aberta e necessária maturação. O apóstolo

envia-lhes Timóteo para os “estabelecer/ fortalecer” (stērixai) (1

Tes 3,2) e reza para que o Senhor “faça crescer” e “estabeleça”/

“confirme” (stērixai) (1 Tes 3,13) os seus corações. E não só: ele

“especifica uma quantidade de caminhos onde ainda os seus

corações deverão ainda consolidar-se”. A fé não está por isso

fechada, em Tessalónica ou em lugar algum: ela é um declarado

work in progress.

10.O desafio a viver em estado de recomeço

Page 12: Retiro - cnbbleste2.org.br

12

O Evangelho é, segundo Paulo, o meio pelo qual os crentes são

gerados (1 Cor 4,15). E é de uma verdadeira gestação que se trata.

Entre o ser e o tornar-se estamos inscritos, isto é, somos esta

“tensão entre o já e o ainda não que se reflecte nas imagens de

família: é verdade que podemos ser chamados família de Deus em

sentido estrito (Gal 3,26; Gal 4,6; Gal 4,7; Rom 8, 14; Rom 8,16);

mas também é verdade que ainda não recebemos a plenitude da

filiação (Rom 8,19.21.23)”. Precisamos por isso de ser gerados.

Parece-me pertinente, partindo desta premissa tipicamente paulina,

ir ao encontro daquilo que diz André Fossion sobre o presente

histórico da Igreja: “a fé cristã –diz ele - encontra-se hoje num

estado generalizado de começo ou de recomeço. Quem diz

«recomeço» diz, ao mesmo tempo, processo de morte e de

renascimento. Hoje assistimos, com efeito, tanto ao fim de um

mundo, como ao fim de um certo Cristianismo. Contudo, este não

é o fim do mundo nem o fim do Cristianismo. É antes um tempo

de germinação com tudo o que pode implicar de saudade – e

também de satisfação – por aquilo que morre, bem como de

incertezas e de esperança por aquilo que nasce. Trata-se, portanto,

de uma perda, mas também de reencontros noutros lugares e de

outra forma”.

Se é este o quadro histórico do nosso cristianismo, como favorecer

nele os começos da Fé? – pergunta-se Fossion. E ele próprio

responde: desaprendendo e reconstruindo um conjunto de

representações. A primeira dela liga-nos diretamente ao núcleo

vital da teologia de Paulo: precisamos de reaprender o significado

de criação. A criação não é o Big Bang inicial, como coisa que

deixamos no passado. A criação não só está atrás de nós: ela está

também no presente e, sobretudo, à nossa frente [no futuro]. Deus,

com efeito, não criou o homem; ele cria-o, e continuará a criá-lo.

Neste sentido, nós estamos sempre em estado de ser criados e de

criar: «Toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao

presente», diz S. Paulo (Rm 8,22). A história humana, a aventura

crente é criação continuada, “é história de salvação que a potência

criadora de Deus acompanha, recomeçando, excedendo-se,

conduzindo-nos sem cessar para novos horizontes, para aspirações

ainda maiores”. Nós não somos simplesmente testemunhas de um

passado. Cada cristão é um documento do futuro.

Page 13: Retiro - cnbbleste2.org.br

13