Retratos à Sexta

3
Na Fábrica de Braço de Prata (ao Poço do Bispo,em Lisboa),há um fotógrafo a erguer um original e ambicioso projecto documental e expositivo.Para documentar a vida de uma sociedade,Fabrice Ziegler propõe-se recuperar aque- le que foi o primeiro métier dos fotógrafos:fazer retratos. TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Clément Darrasse RETRATOS ao seu dispor f otógrafo Um 64 » noticiasmagazine 20.ABR.2008

description

Projecto fotográfico de Fabrice Ziegler

Transcript of Retratos à Sexta

Na Fábrica de Braço de Prata (aoPoço do Bispo, em Lisboa), háum fotógrafo a erguer um originaleambicioso projecto documentale expositivo.Para documentar avida de uma sociedade,FabriceZiegler propõe-se recuperar aque-le que foi o primeiro métier dosfotógrafos:fazer retratos.TEXTOSarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIAClément Darrasse

RETRATOS

ao seu disporfotógrafoUm

64»noticiasmagazine 20.ABR.2008

gratuitamente, em determinados sítio, dia ehora? «Como marcar encontros com as po-pulações? Onde instalar-me, de forma regu-lar, podendo respeitar um certo calendário, ehabituar as pessoas a um programa que se es-tende ao longo de vários meses?» A respostajá a conhecemos: Fábrica de Braço de Prata,onde o fotógrafo tem desde Outubro passa-do a oportunidade de poder lançar às pessoasde Lisboa um novo desafio de 15 em 15 dias.Um desafio que a internet tornou exequível,mantendo as pessoas constantemente infor-madas sobre os temas passados e futuros,plataforma mediática de excelência paraquem pretende divulgar e dinamizar umprojecto envolvendo comunidades. Quandoas pessoas passam pelo site do Retratos à Sex-ta, podem não só ter acesso ao conjunto dostemas já propostos, como àqueles que o au-tor já calendarizou para os próximos meses.«Cada tema [até à data cerca de 16] pretendesuscitar a criatividade de cada um e, ao mes-mo tempo, revelar as qualidades do actor quehá em todos nós. E tem sido incrível, porqueas pessoas participam em massa. Sim, háuma tentação teatral muito forte. Apesar deuma certa timidez, mas que se sente apenasno início. A maioria das pessoas têm uma ati-tude activa, encaram isto como um desafio.»

Fazer parte da história Muitos já sabem o que querem fazer, porquepassaram pelo blog e já conhecem o tema.Outros chegam apenas com uma vaga ideia,baseada na informação de algum amigo quejá conhece o projecto. Outros ainda chegamsem a menor ideia do que fazer com deter-minado tema, mas, diz Ziegler, estão dispos-tos a improvisar. «Sim, a generalidade daspessoas é tímida, mas ultrapassa essa timi-dez. Na entrada, há um painel onde ponhouma grande parte das fotografias que já fiz,e as pessoas ficam imenso tempo paradas aolhar para aquele enorme conjunto de re-tratos. E depois de fazerem o seu retrato,querem saber quando vão estar no painel! É como uma marcação de território, as pes-soas também querem lá estar, fazer parte dahistória desta casa de cultura.» O fotógrafocongratula-se pela boa relação que estabele-ceu com os responsáveis pela Fábrica, JoséPinho e Nuno Nabais. «São pessoas extraor-dinárias, com uma grande abertura de espí-rito e uma vontade inabalável de propor coi-sas diferentes à cidade. O meu projecto en-controu aqui o contexto ideal, neste espaçoaberto à experimentação. Por outro lado, es-te trabalho permite fazer um levantamentoda população que frequenta a Fábrica, e issotambém é interessante para eles.»

Uma trocaMas quem fotografa Ziegler na Fábrica àssextas-feiras? «Todo o tipo de pessoas. Em-bora pertencendo a uma categoria social so-bretudo das classes média e média-alta culti-

66»noticiasmagazine 20.ABR.2008

Há quem acabe a tiraro retrato por acaso,porque foi à Fábricade Braço de Prata a

um lançamento de um livro, por exemplo.Ou porque foi lá comprar um livro raro ou jáfora do circuito comercial das livrarias con-vencionais – trata-se de um espaço que re-sulta da fusão de dois projectos livreiros, aLer Devagar e a Eterno Retorno, anterior-mente sediadas no Bairro Alto e dedicando--se ambas ao mercado de fundos de livros. Ououvir um concerto de jazz.Ou participar nu-ma Roda de Choro. Ou comprar produtos doComércio Justo e trapos em segunda mão.Ou visitar Michel na sua sala denominadaPétaouchnock – «o lugar de que sempre sefalou e que nunca existiu». Ou só beber umacerveja ou um chá de chocolate. Ou ouviruma conferência. Ou ver uma exposição defotografia ou de pintura. Ou assistir a um es-pectáculo de teatro de rua feito por acroba-tas e outros habilidosos cheios de talento. Ouver um filme de Tarkovski ou de IngmarBergman, na sala chamada Visconti. Oudançar pela noite fora debaixo da enormetenda, entretanto montada na zona exteriorda antiga fábrica de espingardas, morteiros,metralhadoras e demais parafernália mili-tar. Um lugar excepcional, irrepetível, infran-chisável, único em Lisboa, onde o francês Fa-brice Ziegler encontrou o espaço e o contex-to para produzir um happening alargado notempo chamado Retratos à Sexta.

Um ano de retratosUm happening tornado de tal forma popular,que há também quem vá à Fábrica de Braçode Prata de propósito para fazer o retrato, noestúdio ali montado (de 15 em 15 dias, às sex-tas-feiras, entre as 21h30 e as 02h00) pelo fo-tógrafo Ziegler. Imagens que os retratadospodem ver imediatamente após a sessão, nocomputador de Fabrice Ziegler, e 48 horasdepois na internet, no site www.retratosa-sexta.blogspot.com, podendo usá-las para

fins restritos – mostrar aos amigos, à famíliaou imprimir para pôr na parede da sala lá decasa. Imagens que alguns dos retratados porZiegler desde Outubro passado poderão vol-tar a ver no início de Outubro próximo, no es-paço da Fábrica. «Cerca de um ano depois deter iniciado o projecto, vou expor uma gran-de parte das fotografias aqui na Fábrica, numformato relativamente pequeno, de forma apoder mostrar muitas. Vou ter de escolher,claro, não vai ser possível incluir todas [nes-ta data mais de cinco mil]. Em 2009, farei ou-tra exposição, também em Lisboa, mas numespaço ainda por identificar. Essa terá outrascaracterísticas, construída com a ajuda decuradores, integrando em princípio cerca dequarenta imagens de grandes dimensões, nomáximo sessenta. Estou a negociar com aCâmara Municipal de Lisboa a cedência deum espaço para acolher esta exposição, e es-pero também ter alguns parceiros privados.»

O primeiro métier do fotógrafoEm 1991 Ziegler estava no Gard, região do Sulde França, quando lançou mãos ao projectode retratar as populações rurais de zonascom uma densidade populacional a decres-cer velozmente, em favor de uma desertifica-ção, que na Europa constitui desde há muitoum flagelo generalizado. O fotógrafo contaque «infelizmente houve um problema de fi-nanciamento e o projecto ficou suspenso».Um projecto que não se chamou Retratos àSexta, mas cujo princípio programático era omesmo: «Pegar no primeiro métier dos fotó-grafos, e que era o de substituir-se aos pinto-res a fazer os retratos das pessoas, democra-tizando o retrato – durante mais de um sécu-lo a função principal do fotógrafo foi essa:retratar as pessoas. Hoje é raro haver pessoasa solicitar este serviço, mas antigamente o fo-tógrafo acompanhava a vida das pessoas, donascimento até à morte. Nos momentos es-peciais da vida de cada um estava lá, e por ve-zes era sempre o mesmo, sim.» Às vezes, osestúdios de fotografia eram negócios de fa-mília, o pai era fotógrafo, o avô porventuratambém já tinha sido, e o filho seguia as pisa-das e já agora herdava a carteira de clientes.

«Algumas aldeias tinham fotógrafo, outrasnão, e nesse caso o fotógrafo deslocava-se emdia marcado, chegava com guarda-roupa, eas pessoas vestiam-se para parecer ricas edistintas, nos retratos que muitos de nós te-mos nos nossos arquivos familiares.»

Um outro olhar sobre si próprioZiegler diz que na origem do projecto estáum desejo de criar «uma memória da socie-dade» passível também de poder «interessarantropólogos, sociólogos e todos os interes-sados nas ciências humanas. É uma matrizextraordinária para estudar qualquer tipo desociedade. Hoje quase ninguém vai ao fotó-grafo tirar uma fotografia. Toda a gente temacesso à fotografia graças à massificação des-te meio, mas cujo grande drama, do meu pon-to de vista, é o desaparecimento da estética».A facilidade com qualquer um de nós tira fo-tografias, as reproduz, as manipula e as des-carta vai talvez fazer com que a maior partedestas imagens desapareçam. «Trata-se deregistos, com certeza, embora por vezes malconservados, porque as pessoas não fazemideia de qual vai ser o futuro de toda a infor-mação digital que vão acumulando. Por outrolado, parece-me que ninguém fica entusias-mado, do ponto de vista técnico e estético,com as fotografias que tira com a família e osamigos durante as férias. Feita a constatação,tive a ideia de pegar novamente no projectoque tinha lançado no Gard no princípio dosanos noventa, adaptando-o a uma sociedadeurbana, de uma forma que pudesse suscitar acuriosidade das pessoas.» Ziegler quis «pro-por um outro olhar sobre si próprio. Que é nofundo o que estou a fazer: reabituar as pessoasa confiar a imagem delas a um fotógrafo pro-fissional». Sendo certo que a função do fotó-grafo é não só captar a imagem, mas tambémtrabalhar a luz, produzi-la de tal forma quepossa «dar volume, acentuar as expressões».

Olhò fotógrafo!Colocou-se depois a Ziegler uma outra ques-tão: como anunciar às pessoas a existência doseu estúdio temporário? Como informá-lasda possibilidade de fazerem o seu retrato,

67»noticiasmagazine 20.ABR.2008

105x2901/2 pág alto

Fabrice Ziegler nasceu em 1968 em Thioville, na região francesa da Alsácia-Lorena, e cresceu em Estrasburgo. Viveu em Paris, e depois na Provença, onde diz ter descoberto a luz, o que para um fotógrafo não é coisa de somenos. Fotógrafo de

publicidade, mora em Lisboa há dez anos. Diz que o que o trouxe à capital portuguesa nãofoi a luz (esse grande cliché) nem o fado (esse outro), antes um amor e o seu trabalho. Para ele, «Lisboa é a cidade que fica ao lado do Tejo. O resto é conversa, e é igual ao que se encontra em qualquer cidade do mundo. Estou sempre a 500 metros, máximo a um quilómetro, do rio. Aí vivo e me movo, nessa faixa junto ao rio. Gosto das cidades mediterrâ-nicas. Lisboa é muito parecida com Marselha, tem o mesmo espírito romano, a mesmacapacidade de integração de outros povos e culturas. A mim interessam-me as diferen-ças. Como neste projecto fotográfico. Se toda a gente fosse igual não tinha interesse».

O fotógrafo

68»noticiasmagazine 20.ABR.2008

vadas. Pessoas que vêm à procura de culturae de enriquecimento pessoal. Já fotografeipessoas de todas as idades, desde crianças asujeitos de noventa anos. Houve noites emque fotografei 150, é uma maratona!» No diaem que é publicado este trabalho, FabriceZiegler terá já retratado qualquer coisa co-mo 750 pessoas. «A matéria para a minha ex-posição são as caras das pessoas, e eu propo-nho uma troca: ofereço as imagens, que dis-ponibilizo no blog com resolução paraimpressão (podem imprimi-las com garan-tia de uma boa qualidade), e as pessoas ce-dem os direitos de utilização.» No final dassessões, os modelos e o fotógrafo assinam umdocumento que assegura a este último o di-reito à sua posterior utilização, para fins ex-positivos e editoriais (quando ligados ao tra-balho do autor). Neste documento, FabriceZiegler responsabiliza-se pelo conteúdo daslegendas que acompanham a reproduçãopública das fotografias, o qual não deveráevidentemente prejudicar a reputação ou avida privada dos retratados. Um projecto querevela um apreciável grau de elaboração.

O que fazer com um temaUm tema que mobilizou uma quantidadeimpressionante de gente foi o das Férias. Aspessoas tinham acabado de voltar das fériasde Verão, já cheias daquela nostalgia por an-tecipação que tão bem nos caracteriza. «Nes-sa noite retratei cerca de 180 pessoas (!), oque parece inacreditável. Foi uma grandesurpresa. Quando na sessão seguinte houveapenas 15 pessoas, foi quase um choque [ri-sos].» Já o Segundo Sexo, na ordem do dia 8 deMarço último, Dia Internacional da Mulher,revelou-se um tema difícil. «Constatei que

muito poucos sabiam do que estávamos a fa-lar. Ou seja, apesar de o nível cultural da ge-neralidade das pessoas ser bom, poucos sa-biam o que era o Segundo Sexo[um livro de Si-mone de Beauvoir, publicado em 1949, sobrea condição – biológica, psicológica, social epolítica – da mulher, onde ficou por exemplodito que «ninguém nasce mulher»]. Fiqueimuitíssimo surpreendido, mas mesmo assimfiz cerca de cinquenta retratos, embora umquarto dessas pessoas se tenha completa-mente alheado do tema. Eu estava um boca-do receoso, pensei que fosse só ter mulherescom mais de cinquenta anos, esclarecidas, jácom uma experiência de vida como mulhe-res, a aderir ao tema, mas não: todos partici-param, homens e mulheres, de todas as ida-des, embora o tema tenha sido um bocadoposto de lado, pouco participado. Já o tema2008, na primeira sessão do ano, foi muitoapreciado. As pessoas levaram para os retra-tos os seus desejos para o Ano Novo.» Zieglerconfessa-se muito surpreendido e grato coma participação em massa. «É uma grande sor-te que tenho, poder conviver com todas estaspessoas e sentir a sua satisfação. É muito gra-tificante. Isto são retratos, nada mais do queisso. Mas que têm o meu olhar particular.»

Documentar a vidaNo dia em que fazemos esta reportagem, otema é Narciso. Tema complexo – talvez maisdo que pareça. No corredor que dá acesso aoestúdio do fotógrafo há imensa gente. Mui-tos encenarão o seu retrato narcísico paraZiegler nessa noite. Alguns chegam com es-pelhos, molduras, narcisos, fotografias dequando eram crianças. Ouve-se música portodo o lado. Parece haver um concerto ao vi-

vo em cada sala (e nalguns momentos da noi-te sê-lo-á mesmo), a Fábrica de Braço de Pra-ta surge como uma imensa casa da música,com músicos em todos os cantos, e até mes-mo alguns a ensaiar nos corredores. PassaNuno Nabais numa azáfama, cadeiras paraum lado e para outro, cheio de questões prá-ticas para resolver. Chegam raparigas aos pa-res de amigas. Fabrice Ziegler fotografa pri-meiro uma, depois outra, depois ambas. Che-ga então alguém com um busto de si próprio,enorme, pesadíssimo, de tal forma que o mo-delo descansa uns minutos, pousando o bus-to no chão, sentando-se num banquinho du-rante uns breves minutos, antes de ir fazer oretrato consigo próprio na forma do busto.Não será tímido, o senhor do pesado busto.Mas a generalidade das pessoas é-o, e haverásempre qualquer coisa de enternecedor numadulto maior e vacinado, intimidado dianteda objectiva do fotógrafo. Que somos semprecrianças, em frente ao fotógrafo. Que um re-trato será sempre o de um ser múltiplo, con-tendo a criança, o jovem, o adulto.«

Próximos temas >Desajeitado – 2 de Maio >Correspondência – 16 de Maio >Dualismo – 30 de Maio

Fábrica de Braço de PrataRua da Fábrica do Material de Guerra, n.º 1 (em frente aoscorreios do Poço do Bispo).

Tel.: [email protected] www.retratosasexta.blogspot.comwww.bracodeprata.org