Retratos do Brasil Homossexual · Horácio Costa Emerson Inácio Wilton Garcia Berenice Bento...
Transcript of Retratos do Brasil Homossexual · Horácio Costa Emerson Inácio Wilton Garcia Berenice Bento...
Retratos do Brasil Homossexual
Fronteiras, Subjetividades e Desejos
Horácio Costa et al.organização
Horácio Costa et al. (orgs.)
Retratos do Brasil HomossexualFronteiras, Subjetividades e Desejos
Secretaria Especialdos Direitos Humanos
PPG em literatura portuguesaPPG em estudos comparadosF F L C H - D L C V I C E L P
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitora Suely Vilela
Vice-reitor Franco Maria Lajolo
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Diretor-presidente Plinio Martins Filho
COMISSÃO EDITORIAL
Presidente José Mindlin
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Adolpho José Melfi
Benjamin Abdala Júnior
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Nélio Marco Vincenzo Bizzo
Ricardo Toledo Silva
Diretora Editorial Silvana Biral
Editoras-assistentes Marilena Vizentin
Carla Fernanda Fontana
Horácio Costa
Emerson Inácio
Wilton Garcia
Berenice Bento
Wiliam S. Peres(organizadores)
Retratos do Brasil Homossexual:Fronteiras, Subjetividades e Desejos
Retratos do Brasil homossexual : fronteiras, subjetividades e desejos / Horácio Costa ... [et al] (org.). –- São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo : Imprensa Oficial, 2010.
442 p. ; 23 cm.
ISBN 978-85-314-1242-4 (Edusp) ISBN 978-85-7060-961-8 (Imprensa Oficial)
1. Homossexualidade-Sociologia. 2. Identidade sexual. I. Costa, Horácio, 1954-.
CDD 306.766
Copyright © 2010 by organizadores
Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP
Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto Nº 10.944, de 14 de dezembro de 2004.
Direitos reservados à Edusp – Editora da Universidade de São Paulo Av. Prof Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6o andar – Ed. da Antiga Reitoria – Cidade Universitária 05508-010 – São Paulo – SP – Brasil Divisão Comercial: Tel.: (11) 3091-4008 / 3091-4150 SAC (11) 3091-2911 – Fax (11) 3091-4151 www.edusp.com.br – e-mail: [email protected] Printed in Brazil 2010
519
A Propaganda Contraintuitiva e seus Efeitos na(Des)construção do Estereótipo Homossexual
FRANCISCO LEITE1
O objetivo deste trabalho é apresentar as noções conceituais de publicidade
contraintuitiva e observar alguns efeitos gerados pela articulação do seu dis-
curso no deslocamento de estereótipos negativos relativos aos homossexuais.
Para aplicação do pensamento a ser desenvolvido, toma-se como objeto de
exemplificação o audiovisual Escola, da série de campanha publicitária “Reve-
ja seus conceitos”, da Fiat. Para se compreender e suportar as reflexões abor-
dadas recorrer-se-á aos estudos da linguagem, principalmente, alguns con-
ceitos advindos da análise crítica do discurso (ACD) de Fairclough. Como
também, na literatura da psicologia social e cognitiva, além dos estudos de
audiência (dos efeitos) das teorias da comunicação.
Introdução
O discurso publicitário acompanha e reflete cada passo da sociedade
com o objetivo de extrair/recortar e, até mesmo, se apropriar das realidades
e tendências geradas no seu contexto para subsidiar a linha criativa de seus
textos, anúncios mercadológicos. Em contribuição a este pensamento segundo
Reckziegel (2004, p. 564), “as mensagens publicitárias invadem o cenário
cotidiano com relatos acerca da realidade social a partir de uma visão
mercadológica”.
1. Universidade de São Paulo.
Francisco Leite
520
No entanto, seu discurso também colabora com a ordem social ao
lançar luz, de forma sutil, sem falar diretamente em normas, sobre temas que
estimulam a reflexão da sociedade sobre determinadas questões “cordial-
mente” desconsideradas como, por exemplo, a questão da visibilidade
identitária de minorias sociais nas suas enunciações. Esta é uma das pro-
vocações propostas pelo discurso propaganda contraintuitiva: dar visibilidade
às minorias sociais em “outros/novos” cenários simbólicos de prestígio antes
restritos e possibilitados, apenas, para determinados perfis hegemônicos.
As linhas de reflexão deste trabalho, como já exposto, estão conectadas
ao pensamento de Fairclough, que pontua que o “uso da linguagem deve ser
considerado como forma de prática social2, [...] porque o discurso é uma forma
de ação, um meio onde as pessoas podem agir sobre o mundo e sobre os outros,
em especial, além de um modo de representação (apud Batista, 2008, p. 5). Em
outras, palavras a prática discursiva possibilita a transformação da vida social
pela sua dinâmica (des)construtiva ao (des)estabilizar as estruturas3 sociais e
culturais, mediante a produção de sentido (representação) gerados pelos em-
bates e debates da sociedade, manifestados pelo ato comunicativo.
Antes de prosseguir e apresentar as noções conceituais de propaganda
contraintuitiva, seus efeitos, cabe retornar ao pensamento de Fairclough
(2001) que indica a existência de três modos de ação, que se enquadram nas
práticas sociais, dos efeitos construtivos do discurso que devem ser conside-
rados, a saber: 1) o discurso contribui para a construção de identidades sociais;
2) o discurso contribui para a construção das relações sociais; e 3) o discurso
contribui para a construção de sistemas de conhecimento e crenças. Nesses três
aspectos, cabe considerar e agregar a palavra construção o prefixo “(des)”, en-
tre parênteses, para remeter à concepção dinâmica e a disparidade da produ-
2. As práticas “são entidades organizacionais intermediárias entre estruturas e eventos”
(Fairclough, 2003, apud Magalhães, 2004, p. 115). Elas incluem: ações, sujeitos e relações sociais,
instrumentos, objetos, tempo e espaço, formas de consciência, valores.
3. As estruturas são exemplificadas como: “raça”, gênero, classe, parentesco, língua entre outras.
Estas determinam um “conjunto de possibilidades” que podem ou não se concretizar em eventos
sociais, como a aula, a reunião acadêmica ou o culto religioso (idem).
A Propaganda Contraintuitiva e seus Efeitos na (Des)construção...
521
ção de sentido, que tais modos podem operar no contexto social, tanto no que
tange a construir quanto desconstruir pela força do discurso adotado.
Os efeitos da publicidade permeiam e navegam através dos três modos,
entretanto, é no terceiro que seu discurso busca sedimentar-se. Pois, busca ao
informar o indivíduo sobre determinado produto, serviço ou ideia criar pelo
seu caminho persuasivo conhecimentos que estimulem a aquisição via o
estabelecimento/produção/reforço de crenças. Enfim, deve-se atentar que,
para além do discurso entorno do objeto central (a venda do produto), a publi-
cidade utiliza-se de todos os elementos contextuais para a sua produção de
sentido e, é nesta conjuntura que várias possibilidades narrativas e práticas
sociais podem colaborar para a (des)construção dos estereótipos.
A propaganda contraintuitiva
A publicidade contraintuitiva pelo olhar do antropólogo Peter Fry
(2002, p. 308), é uma tentativa deliberada de romper com os antigos estereó-
tipos com a produção que se pode chamar de cartazes contraintuitivos4. Nos
quais representantes de grupos minoritários têm abandonado, nos enredos
publicitários, posições subalternas, por outras de maior prestígio, status, su-
cesso. Utilizando o pensamento de Fairclough e Kress, este discurso pode ser
compreendido pela sua proposta em “quebrar convenções, de práticas discur-
sivas estáveis, através de atos de ‘criatividade’” (apud Wodak, 2004, p. 227).
O composto contraintuitivo pode ser traduzido a partir do termo inglês
counterintuitive, isto é, algo que desafia a intuição ou senso comum do indi-
víduo. Em outras palavras, com a recepção/interação dessa publicidade pelo
indivíduo tenta-se operacionalizar (deslocar) o desenvolvimento do seu pen-
4. P. Fry adota esta expressão para apontar as publicidades, nas suas diversas formas, que rom-
pem com a tradição ao expor em seus enredos representantes de grupos minoritários, principal-
mente, o negro, em posições de prestígio social. Ele exemplifica sua observação ao descrever
alguns modelos desses cartazes produzidos na década de 1990 (Fry, 2002, pp. 308-309).
Francisco Leite
522
samento, inserido no senso comum, levando-o do conhecimento superficial
ao reflexivo, filosófico gerador do senso crítico. O senso comum segundo
Lalande (1996, p. 998), é o “conjunto das opiniões tão geralmente admitidas,
numa dada época e num dado meio, que as opiniões contrárias aparecem
como aberrações individuais”.
A expressão/produção publicidade contraintuitiva é utilizada, de acor-
do com Fry, contra o preconceito essencialista que define o papel do indivíduo
na sociedade produzindo e reforçando estereótipos negativos.
É necessário abrir parênteses aqui e pontuar a noção conceitual de este-
reótipo. O estereótipo pode ser entendido como uma ferramenta cognitiva
utilizada para categorizar na memória a pluralidade dos elementos sociais,
com o objetivo de auxiliar o indivíduo a organizar e compreender de forma
menos complexa seu ambiente.
Os estereótipos surgem como uma capacidade de síntese, condensação
e agregação de vários elementos em uma imagem. Uma matriz que se replica.
Os estereótipos podem ser definidos, segundo o pesquisador Pereira (2002,
p. 157):
[...] como artefatos humanos socialmente construídos, transmitidos de
geração em geração, não apenas através de contatos diretos entre os
diversos agentes sociais, mas também criados e reforçados pelos meios
de comunicação, que são capazes de alterar as impressões sobre os gru-
pos em vários sentidos.
A principal função da propaganda contraintuitiva, além do seu caráter
mercadológico, pode ser identificada pela sua proposta de estimular o proces-
so de dissociação de antigos estereótipos negativos fixados na memória implí-
cita e explícita dos indivíduos, ao indicar pelo seu conjunto imagem e som
(informação), um diferenciado e atualizado olhar social e intelectual para as
outras realidades (de prestígio e valorização) de indivíduos vítimas de precon-
ceitos e discriminação. Em outros termos, o estímulo contraintuitivo auxilia
o processo de reavaliação e contrabalanceamento de pensamentos estereotí-
A Propaganda Contraintuitiva e seus Efeitos na (Des)construção...
523
picos (crenças) ao expor em seu enredo discursivo, informações que justificam
e/ou caracterizam tais pensamentos como concepções altamente negativas e
ultrapassadas. Assim, pela força da justificativa e pela contínua exposição de
mensagens sob a mesma linha nos veículos de comunicação é possível a ocor-
rência deste processo de deslocamento cognitivo do indivíduo receptor em
relação aos estereótipos negativos.
É bom enfatizar, fortemente, que o formato contraintuitivo não se isola
do objetivo principal da propaganda que é o mercadológico. Apenas mescla-
se a ele como uma “outra/nova” forma de contextualização enunciativa de
temas minoritários, utilizados pelos novos e atuais profissionais de comuni-
cação. Logo, essas produções possivelmente realizam além de sua função
mercadológica, trazem a sua contribuição social pela forma contraintuitiva
que visa estimular (pelo conteúdo informativo de sua mensagem) uma nova
postura do indivíduo, diante da realidade desses nichos minoritários, contex-
tualizada nas variadas peças comunicacionais no contemporâneo.
Portanto, pode-se supor a publicidade contraintuitiva se fortalece tam-
bém pelo contínuo acompanhamento e percepção do mercado às mudanças
sociais tais como: poder aquisitivo e reconhecimento do respeito devido a
esses grupos minoritários pela sociedade e os danos causados pela rejeição
social. Fatos impulsionados pela ativa luta organizada desses grupos para o
reconhecimento e respeito de suas identidades. Segundo Gastaldo (2004), “o
discurso publicitário vem abandonando lógicas de persuasão racionalizantes,
passando a investir na persuasão via identificação”.
A identidade é um tema atual e complexo muito debatido por diversos
atores sociais, que tentam estudá-la pesquisando seu desenvolvimento his-
tórico. Neste trabalho propõe-se uma breve explanação da conceituação de
identidade, sem aprofundamento, pois o que se busca neste estudo é saber
como esse elemento contribui e aparece numa publicidade contraintuitiva.
Utiliza-se, neste trabalho, o conceito de identidade sob o olhar de Trin-
dade (2003, p. 77), que a percebe da seguinte forma: “a identidade acontece
por relações de pertencimento, que implicam o ser incluído em alguma cate-
goria identitária. Já a relação de pertinência dá-se quando se tem o reconhe-
Francisco Leite
524
cimento de algo a partir do outro, pelo outro”. Entende-se então que a iden-
tidade inicialmente é moldada pelas conexões de pertença, inserção e apren-
dizado de um indivíduo em um grupo e seus desdobramentos acontecem pelas
nuanças relacionais de referência e identificação de características que delimi-
tam a linha imaginária de pertencimento.
A construção do conceito de identidade transcorre em um processo de
descentramento histórico, Hall (2003) examina essa construção em três fases:
do conceito ligado ao indivíduo do iluminismo, em que a identidade estabe-
lecia-se pelo individualismo (eu); o conceito do indivíduo sociológico que se
define com a interatividade do indivíduo (eu e a sociedade); e por fim, o
indivíduo pós-moderno, que não tem uma identidade fixa, e sim em constante
transformação. Para o autor Hall (apud Trindade, 2003, p. 78):
[...] existiram cinco movimentos que determinaram essa ruptura de
passagem da compreensão da subjetividade una, indivisível, para a
subjetividade fragmentada, mutável e dinâmica e que repercutem no
olhar epistemológico sobre as discussões da identidade do homem e do
mundo contemporâneo. Esses movimentos são: a reflexão que se deu a
partir do pensamento marxista; a psicanálise freudiana e sua evolução
no trabalho de Jacques Lacan; a concepção de língua de Saussure; e os
movimentos sociais das minorias, principalmente dos anos 60.
Esses cinco movimentos ajudam na compreensão conceitual de iden-
tidade no contemporâneo, que se caracteriza pela sua fragmentação e diversi-
ficação. Observa-se que o quinto movimento soma subsídios para o objetivo
desta pesquisa. Os movimentos sociais de grupos minoritários (étnicos, reli-
giosos, de gênero – feministas, homossexuais –, classes sociais, entre outros)
refletem com precisão o conceito de identidade contemporânea, pois são
grupos sociais distintos que possuem razões, ideologias e lutas específicas,
e buscam o reconhecimento social, independentemente, de sua diferença e
alteridade. Ainda segundo Hall (2003, p. 45), “cada movimento apelava para
a identidade de seus sustentadores. Isso constitui o nascimento histórico do
A Propaganda Contraintuitiva e seus Efeitos na (Des)construção...
525
que veio a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para
cada movimento”.
A publicidade contraintuitiva direta ou indiretamente fortalece com
suas (re)articulações, a luta pelo reconhecimento da questão do multicultu-
ralismo identitário, tão defendida pelos nichos estigmatizados. Em uma de
suas observações a pesquisadora Prudêncio (2003, p. 96) pontua que: “Nesse
sentido os movimentos sociais contemporâneos não estão em busca de ne-
nhum modelo de sociedade perfeita, mas lutam pela democratização das rela-
ções sociais”. Em outros termos, estes movimentos buscam questões para
além da igualdade, pois este conceito já está teoricamente estipulado pelas
normas sociais, como a Declaração dos Direitos Humanos, porém, na reali-
dade os discursos produzidos por tais grupos pretendem estabelecer uma
política/consciência de tolerância para com as diversas identidades que con-
figuram o contexto social. Logo, a luta não é pela igualdade e sim pelo reco-
nhecimento (respeito) da multiculturalidade identitária. É necessário que os
discursos sociais colaborem com esse percurso e estimulem a sociedade ao
exercício de colocar-se cognitivamente, pela reflexão e tomada de consciência,
no lugar dos membros desses grupos que cotidianamente sofrem hostilizações
de diversas formas (física, moral e psicológica). É relevante para um avanço
desta temática transpor o “eu” para o lugar do “outro”. Sabe-se, que isto não
é um exercício fácil de se alcançar, mas o desafio/provocação deve acontecer
para a construção de “novos/outros” olhares e contextos socioculturais.
Para aplicação do pensamento desenvolvido neste trabalho, toma-se
como objeto de exemplificação o filme audiovisual Escola, da série de
campanha publicitária “Reveja seus conceitos”, da Fiat, para o lançamento do
automóvel Palio 2002.
O contexto deste comercial acontece em uma sala de aula, com luz e
som ambiente. Uma mulher (professora) está em pé, se movimentando.
No ambiente está em andamento, supostamente, uma reunião de pais
e mestre. Os pais (casais) sentados em cadeiras, em forma de semicírculo, e
a professora ao centro, em pé, dá sequência a uma orientação. Na mão direita
segura algumas folhas de papel.
Francisco Leite
526
Aparentemente, a professora finaliza uma orientação, iniciando a
entrega dos boletins (os papéis que estão na sua mão) e diz:
– O importante é vocês fazerem esse acompanhamento em casa. Eu vou
distribuir os boletins, agora. Nisso ela pede que os pais se identifiquem, quan-
do ela chamar pelos nomes dos alunos.
– A mãe e o pai da Alessandra?
Uma jovem senhora branca ergue o braço e pega o boletim da filha. A
professora ao entregar diz: – A Alessandra está muito bem.
A professora continua entregando os boletins aos pais.
– Daniel. Daniel é ótimo! Quem é a mãe do Dani?
Neste momento, a mãe do Daniel, uma jovem senhora branca, de
cabelos curtos e louros, simpaticamente, levanta seu braço direito para
identificar-se.
E a professora diz a ela: – Ah, oi!
Perguntando logo em seguida: – Quem é o pai?
Nisso, a imagem se abre para o lado esquerdo e uma outra mulher mais
séria, morena, de cabelos longos e escuros, com um sorriso pacato levanta o
braço identificando-se como o “pai” do Daniel. Ela abaixa o braço após iden-
tificar-se e em seguida olha para a mulher loura, amavelmente, e segura na
mão dela, estabelecendo a imagem de cumplicidade e família. A mulher loura
retribui o olhar à companheira e as duas de mãos dadas dirigem seus olhares,
com sorrisos nos rostos, à professora.
A câmera foca a professora que sorri também, porém, totalmente
desconcertada diante do casal de mulheres.
Nesse instante, ocorre um corte no anúncio e surge uma locução de voz
masculina off, com uma entonação irônica que narra “Xi... tá na hora de você
rever seus conceitos, principalmente, seus conceitos sobre carros. Palio 2002
o carro que está mudando seus conceitos”.
A narrativa publicitária do filme Escola da Fiat expõe sua essência con-
traintuitiva ao apresentar no seu discurso um casal homossexual feminino
inserido num contexto distante dos estereótipos depreciativos aos quais geral-
mente são inscritos. As amarrações discursivas desta produção apresentam ao
A Propaganda Contraintuitiva e seus Efeitos na (Des)construção...
527
indivíduo receptor “outras/novas” perspectivas informativas sobre a possível
realidade de indivíduos homossexuais. No filme descrito identifica-se esta rea-
lidade, a união civil de pessoas do mesmo sexo, pela exposição do casal lésbico
configurando uma “outra/nova” concepção de família contemporânea, forma-
da por um casal de mulheres e um filho.
O efeito produzido pelo discurso contraintuitivo pode instaurar uma
reflexão no receptor estimulando-o a deslocar seus pensamentos estereo-
típicos mediante a assimilação dos argumentos (informações) discursivos
explícitos na enunciação publicitária, possibilitando a construção de dife-
renciados horizontes de sentido. O conceito de assimilação da informação é
considerado por Barreto (2002) como “o processo de interação entre o
indivíduo e uma determinada estrutura de informação, que vem a gerar uma
modificação em seu estado cognitivo, produzindo conhecimento, que se
relaciona corretamente com a informação recebida”.
Considerações finais
O presente trabalho, de forma despretensiosa, procurou contribuir com
as discussões acadêmicas sobre as questões dos efeitos dos discursos comu-
nicacionais no deslocamento sociocognitivo dos estereótipos. As possibilida-
des de leitura apresentadas aqui não se esgotam e podem servir de base para
críticas e outras construções discursivas.
Ressalta-se que uma das propostas deste trabalho também foi inscrever
uma leitura crítica aos atuais e futuros profissionais de comunicação, para
demonstrar a relevância da responsabilidade social da propaganda, na forma-
ção (produção do saber/conhecimento) de “outros/novos” olhares críticos, à
luz da comunicação mercadológica. Conforme afirma Fry (2002, p. 305):
“queira-se ou não o mercado é o divulgador mais eficiente de conceitos e ideias
no Brasil contemporâneo”.
Francisco Leite
528
Referências bibliográficas
FAIRCLOUGH, N. Discurso e Mudança Social. Brasília, Ed. UnB, 2001.
FAIRCLOUGH, N. & KRESS, G. Critical Discourse Analysis, 1993, mimeo.
FRY, Peter. “Estética e Política: Relações entre “Raça”, Publicidade e Produção da Belezano Brasil”. In: GOLDENBERG, Mirian. Nu & Vestido: Dez Antropólogos Revelama Cultura do Corpo Carioca. Rio de Janeiro, Record, 2002.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro, DP&A,2003.
LALANDE, A. Vocabulário Técnico e Crítico de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes,1996.
MAGALHÃES, Izabel. “Teoria Crítica do Discurso e Texto”. Revista Linguagem em(Dis)curso – LemD, Tubarão, vol. 4. n.esp., pp. 113-131, 2004.
PEREIRA, M. E. Psicologia Social dos Estereótipos. São Paulo, EPU, 2002.
PRUDÊNCIO, Kelly. “Mídia e Movimentos Sociais Contemporâneos: A Luta do Sujeitopela Construção do Significado”. Revista Comunicação & Política pelaIntegração Latino-Americana. vol. X, n. 3, nova série, set.-dez. 2003.
TRINDADE, Eneus. “Brasil, Mostra a tua Cara”: A Publicidade e a Identidade CulturalBrasileira na Transição Secular. São Paulo, Universidade de São Paulo/Escolade Comunicações e Artes. Tese de Doutorado, 2003.
WODAK, Ruth. “Do que Trata a ACD: Um Resumo de sua História, Conceitos Importantese seus Desenvolvimentos”. Revista Linguagem em (Dis)curso – LemD,Tubarão, vol. 4. n. esp., pp. 223-243, 2004.
Webgrafia
BARRETO, Aldo A. A Transferência da Informação para o Conhecimento. Disponívelem: http://www.e-iasi.org/cinfor/transfIK.htm. Acesso em: 18 jul. 2008.
BATISTA, Nadezhda B. “Rugas e Pneuzinhos, que Mal Tem? O Discurso da Beleza Forados Padrões na Publicidade”. Revista Ciberlegenda/UFF, ano 10, n. 20, jun.,2008. Disponível em: www.ciberlegenda.uff.br. Acesso em: 12 jun. 2008.
GASTALDO, Édison. “A Publicidade e Movimentos Sociais no Brasil: Uma Reflexão sobrePolíticas de Representação”. Revista de Economía Política de las Tecnologíasy Comunicación. vol. VI, n. 1, ene.-abr., 2004. Disponível em: www.eptic.com.br/edison.pdf, 2004. Acesso em: 29 set. 2008.
RECKZIEGEL, J. L. de Carvalho. “A Publicidade entre o Exercício da Hetero e da Homos-sexualidade”. Actas do III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO, vol. III, 2005. Dispo-nível em: www.bocc.ubi.pt/pag/reckziegel-jose-a-publicidade-entre-o-exercito-da-hetero-e-da-homossexualidade.pdf. Acesso em: 22 out. 2008.