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Retratos do Brasil Homossexual Fronteiras, Subjetividades e Desejos Horácio Costa et al. organização

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Retratos do Brasil Homossexual

Fronteiras, Subjetividades e Desejos

Horácio Costa et al.organização

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Horácio Costa et al. (orgs.)

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Secretaria Especialdos Direitos Humanos

PPG em literatura portuguesaPPG em estudos comparadosF F L C H - D L C V I C E L P

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Horácio Costa

Emerson Inácio

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Wiliam S. Peres(organizadores)

Retratos do Brasil Homossexual:Fronteiras, Subjetividades e Desejos

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Retratos do Brasil homossexual : fronteiras, subjetividades e desejos / Horácio Costa ... [et al] (org.). –- São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo : Imprensa Oficial, 2010.

442 p. ; 23 cm.

ISBN 978-85-314-1242-4 (Edusp) ISBN 978-85-7060-961-8 (Imprensa Oficial)

1. Homossexualidade-Sociologia. 2. Identidade sexual. I. Costa, Horácio, 1954-.

CDD 306.766

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A Propaganda Contraintuitiva e seus Efeitos na(Des)construção do Estereótipo Homossexual

FRANCISCO LEITE1

O objetivo deste trabalho é apresentar as noções conceituais de publicidade

contraintuitiva e observar alguns efeitos gerados pela articulação do seu dis-

curso no deslocamento de estereótipos negativos relativos aos homossexuais.

Para aplicação do pensamento a ser desenvolvido, toma-se como objeto de

exemplificação o audiovisual Escola, da série de campanha publicitária “Reve-

ja seus conceitos”, da Fiat. Para se compreender e suportar as reflexões abor-

dadas recorrer-se-á aos estudos da linguagem, principalmente, alguns con-

ceitos advindos da análise crítica do discurso (ACD) de Fairclough. Como

também, na literatura da psicologia social e cognitiva, além dos estudos de

audiência (dos efeitos) das teorias da comunicação.

Introdução

O discurso publicitário acompanha e reflete cada passo da sociedade

com o objetivo de extrair/recortar e, até mesmo, se apropriar das realidades

e tendências geradas no seu contexto para subsidiar a linha criativa de seus

textos, anúncios mercadológicos. Em contribuição a este pensamento segundo

Reckziegel (2004, p. 564), “as mensagens publicitárias invadem o cenário

cotidiano com relatos acerca da realidade social a partir de uma visão

mercadológica”.

1. Universidade de São Paulo.

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No entanto, seu discurso também colabora com a ordem social ao

lançar luz, de forma sutil, sem falar diretamente em normas, sobre temas que

estimulam a reflexão da sociedade sobre determinadas questões “cordial-

mente” desconsideradas como, por exemplo, a questão da visibilidade

identitária de minorias sociais nas suas enunciações. Esta é uma das pro-

vocações propostas pelo discurso propaganda contraintuitiva: dar visibilidade

às minorias sociais em “outros/novos” cenários simbólicos de prestígio antes

restritos e possibilitados, apenas, para determinados perfis hegemônicos.

As linhas de reflexão deste trabalho, como já exposto, estão conectadas

ao pensamento de Fairclough, que pontua que o “uso da linguagem deve ser

considerado como forma de prática social2, [...] porque o discurso é uma forma

de ação, um meio onde as pessoas podem agir sobre o mundo e sobre os outros,

em especial, além de um modo de representação (apud Batista, 2008, p. 5). Em

outras, palavras a prática discursiva possibilita a transformação da vida social

pela sua dinâmica (des)construtiva ao (des)estabilizar as estruturas3 sociais e

culturais, mediante a produção de sentido (representação) gerados pelos em-

bates e debates da sociedade, manifestados pelo ato comunicativo.

Antes de prosseguir e apresentar as noções conceituais de propaganda

contraintuitiva, seus efeitos, cabe retornar ao pensamento de Fairclough

(2001) que indica a existência de três modos de ação, que se enquadram nas

práticas sociais, dos efeitos construtivos do discurso que devem ser conside-

rados, a saber: 1) o discurso contribui para a construção de identidades sociais;

2) o discurso contribui para a construção das relações sociais; e 3) o discurso

contribui para a construção de sistemas de conhecimento e crenças. Nesses três

aspectos, cabe considerar e agregar a palavra construção o prefixo “(des)”, en-

tre parênteses, para remeter à concepção dinâmica e a disparidade da produ-

2. As práticas “são entidades organizacionais intermediárias entre estruturas e eventos”

(Fairclough, 2003, apud Magalhães, 2004, p. 115). Elas incluem: ações, sujeitos e relações sociais,

instrumentos, objetos, tempo e espaço, formas de consciência, valores.

3. As estruturas são exemplificadas como: “raça”, gênero, classe, parentesco, língua entre outras.

Estas determinam um “conjunto de possibilidades” que podem ou não se concretizar em eventos

sociais, como a aula, a reunião acadêmica ou o culto religioso (idem).

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ção de sentido, que tais modos podem operar no contexto social, tanto no que

tange a construir quanto desconstruir pela força do discurso adotado.

Os efeitos da publicidade permeiam e navegam através dos três modos,

entretanto, é no terceiro que seu discurso busca sedimentar-se. Pois, busca ao

informar o indivíduo sobre determinado produto, serviço ou ideia criar pelo

seu caminho persuasivo conhecimentos que estimulem a aquisição via o

estabelecimento/produção/reforço de crenças. Enfim, deve-se atentar que,

para além do discurso entorno do objeto central (a venda do produto), a publi-

cidade utiliza-se de todos os elementos contextuais para a sua produção de

sentido e, é nesta conjuntura que várias possibilidades narrativas e práticas

sociais podem colaborar para a (des)construção dos estereótipos.

A propaganda contraintuitiva

A publicidade contraintuitiva pelo olhar do antropólogo Peter Fry

(2002, p. 308), é uma tentativa deliberada de romper com os antigos estereó-

tipos com a produção que se pode chamar de cartazes contraintuitivos4. Nos

quais representantes de grupos minoritários têm abandonado, nos enredos

publicitários, posições subalternas, por outras de maior prestígio, status, su-

cesso. Utilizando o pensamento de Fairclough e Kress, este discurso pode ser

compreendido pela sua proposta em “quebrar convenções, de práticas discur-

sivas estáveis, através de atos de ‘criatividade’” (apud Wodak, 2004, p. 227).

O composto contraintuitivo pode ser traduzido a partir do termo inglês

counterintuitive, isto é, algo que desafia a intuição ou senso comum do indi-

víduo. Em outras palavras, com a recepção/interação dessa publicidade pelo

indivíduo tenta-se operacionalizar (deslocar) o desenvolvimento do seu pen-

4. P. Fry adota esta expressão para apontar as publicidades, nas suas diversas formas, que rom-

pem com a tradição ao expor em seus enredos representantes de grupos minoritários, principal-

mente, o negro, em posições de prestígio social. Ele exemplifica sua observação ao descrever

alguns modelos desses cartazes produzidos na década de 1990 (Fry, 2002, pp. 308-309).

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samento, inserido no senso comum, levando-o do conhecimento superficial

ao reflexivo, filosófico gerador do senso crítico. O senso comum segundo

Lalande (1996, p. 998), é o “conjunto das opiniões tão geralmente admitidas,

numa dada época e num dado meio, que as opiniões contrárias aparecem

como aberrações individuais”.

A expressão/produção publicidade contraintuitiva é utilizada, de acor-

do com Fry, contra o preconceito essencialista que define o papel do indivíduo

na sociedade produzindo e reforçando estereótipos negativos.

É necessário abrir parênteses aqui e pontuar a noção conceitual de este-

reótipo. O estereótipo pode ser entendido como uma ferramenta cognitiva

utilizada para categorizar na memória a pluralidade dos elementos sociais,

com o objetivo de auxiliar o indivíduo a organizar e compreender de forma

menos complexa seu ambiente.

Os estereótipos surgem como uma capacidade de síntese, condensação

e agregação de vários elementos em uma imagem. Uma matriz que se replica.

Os estereótipos podem ser definidos, segundo o pesquisador Pereira (2002,

p. 157):

[...] como artefatos humanos socialmente construídos, transmitidos de

geração em geração, não apenas através de contatos diretos entre os

diversos agentes sociais, mas também criados e reforçados pelos meios

de comunicação, que são capazes de alterar as impressões sobre os gru-

pos em vários sentidos.

A principal função da propaganda contraintuitiva, além do seu caráter

mercadológico, pode ser identificada pela sua proposta de estimular o proces-

so de dissociação de antigos estereótipos negativos fixados na memória implí-

cita e explícita dos indivíduos, ao indicar pelo seu conjunto imagem e som

(informação), um diferenciado e atualizado olhar social e intelectual para as

outras realidades (de prestígio e valorização) de indivíduos vítimas de precon-

ceitos e discriminação. Em outros termos, o estímulo contraintuitivo auxilia

o processo de reavaliação e contrabalanceamento de pensamentos estereotí-

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picos (crenças) ao expor em seu enredo discursivo, informações que justificam

e/ou caracterizam tais pensamentos como concepções altamente negativas e

ultrapassadas. Assim, pela força da justificativa e pela contínua exposição de

mensagens sob a mesma linha nos veículos de comunicação é possível a ocor-

rência deste processo de deslocamento cognitivo do indivíduo receptor em

relação aos estereótipos negativos.

É bom enfatizar, fortemente, que o formato contraintuitivo não se isola

do objetivo principal da propaganda que é o mercadológico. Apenas mescla-

se a ele como uma “outra/nova” forma de contextualização enunciativa de

temas minoritários, utilizados pelos novos e atuais profissionais de comuni-

cação. Logo, essas produções possivelmente realizam além de sua função

mercadológica, trazem a sua contribuição social pela forma contraintuitiva

que visa estimular (pelo conteúdo informativo de sua mensagem) uma nova

postura do indivíduo, diante da realidade desses nichos minoritários, contex-

tualizada nas variadas peças comunicacionais no contemporâneo.

Portanto, pode-se supor a publicidade contraintuitiva se fortalece tam-

bém pelo contínuo acompanhamento e percepção do mercado às mudanças

sociais tais como: poder aquisitivo e reconhecimento do respeito devido a

esses grupos minoritários pela sociedade e os danos causados pela rejeição

social. Fatos impulsionados pela ativa luta organizada desses grupos para o

reconhecimento e respeito de suas identidades. Segundo Gastaldo (2004), “o

discurso publicitário vem abandonando lógicas de persuasão racionalizantes,

passando a investir na persuasão via identificação”.

A identidade é um tema atual e complexo muito debatido por diversos

atores sociais, que tentam estudá-la pesquisando seu desenvolvimento his-

tórico. Neste trabalho propõe-se uma breve explanação da conceituação de

identidade, sem aprofundamento, pois o que se busca neste estudo é saber

como esse elemento contribui e aparece numa publicidade contraintuitiva.

Utiliza-se, neste trabalho, o conceito de identidade sob o olhar de Trin-

dade (2003, p. 77), que a percebe da seguinte forma: “a identidade acontece

por relações de pertencimento, que implicam o ser incluído em alguma cate-

goria identitária. Já a relação de pertinência dá-se quando se tem o reconhe-

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cimento de algo a partir do outro, pelo outro”. Entende-se então que a iden-

tidade inicialmente é moldada pelas conexões de pertença, inserção e apren-

dizado de um indivíduo em um grupo e seus desdobramentos acontecem pelas

nuanças relacionais de referência e identificação de características que delimi-

tam a linha imaginária de pertencimento.

A construção do conceito de identidade transcorre em um processo de

descentramento histórico, Hall (2003) examina essa construção em três fases:

do conceito ligado ao indivíduo do iluminismo, em que a identidade estabe-

lecia-se pelo individualismo (eu); o conceito do indivíduo sociológico que se

define com a interatividade do indivíduo (eu e a sociedade); e por fim, o

indivíduo pós-moderno, que não tem uma identidade fixa, e sim em constante

transformação. Para o autor Hall (apud Trindade, 2003, p. 78):

[...] existiram cinco movimentos que determinaram essa ruptura de

passagem da compreensão da subjetividade una, indivisível, para a

subjetividade fragmentada, mutável e dinâmica e que repercutem no

olhar epistemológico sobre as discussões da identidade do homem e do

mundo contemporâneo. Esses movimentos são: a reflexão que se deu a

partir do pensamento marxista; a psicanálise freudiana e sua evolução

no trabalho de Jacques Lacan; a concepção de língua de Saussure; e os

movimentos sociais das minorias, principalmente dos anos 60.

Esses cinco movimentos ajudam na compreensão conceitual de iden-

tidade no contemporâneo, que se caracteriza pela sua fragmentação e diversi-

ficação. Observa-se que o quinto movimento soma subsídios para o objetivo

desta pesquisa. Os movimentos sociais de grupos minoritários (étnicos, reli-

giosos, de gênero – feministas, homossexuais –, classes sociais, entre outros)

refletem com precisão o conceito de identidade contemporânea, pois são

grupos sociais distintos que possuem razões, ideologias e lutas específicas,

e buscam o reconhecimento social, independentemente, de sua diferença e

alteridade. Ainda segundo Hall (2003, p. 45), “cada movimento apelava para

a identidade de seus sustentadores. Isso constitui o nascimento histórico do

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que veio a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para

cada movimento”.

A publicidade contraintuitiva direta ou indiretamente fortalece com

suas (re)articulações, a luta pelo reconhecimento da questão do multicultu-

ralismo identitário, tão defendida pelos nichos estigmatizados. Em uma de

suas observações a pesquisadora Prudêncio (2003, p. 96) pontua que: “Nesse

sentido os movimentos sociais contemporâneos não estão em busca de ne-

nhum modelo de sociedade perfeita, mas lutam pela democratização das rela-

ções sociais”. Em outros termos, estes movimentos buscam questões para

além da igualdade, pois este conceito já está teoricamente estipulado pelas

normas sociais, como a Declaração dos Direitos Humanos, porém, na reali-

dade os discursos produzidos por tais grupos pretendem estabelecer uma

política/consciência de tolerância para com as diversas identidades que con-

figuram o contexto social. Logo, a luta não é pela igualdade e sim pelo reco-

nhecimento (respeito) da multiculturalidade identitária. É necessário que os

discursos sociais colaborem com esse percurso e estimulem a sociedade ao

exercício de colocar-se cognitivamente, pela reflexão e tomada de consciência,

no lugar dos membros desses grupos que cotidianamente sofrem hostilizações

de diversas formas (física, moral e psicológica). É relevante para um avanço

desta temática transpor o “eu” para o lugar do “outro”. Sabe-se, que isto não

é um exercício fácil de se alcançar, mas o desafio/provocação deve acontecer

para a construção de “novos/outros” olhares e contextos socioculturais.

Para aplicação do pensamento desenvolvido neste trabalho, toma-se

como objeto de exemplificação o filme audiovisual Escola, da série de

campanha publicitária “Reveja seus conceitos”, da Fiat, para o lançamento do

automóvel Palio 2002.

O contexto deste comercial acontece em uma sala de aula, com luz e

som ambiente. Uma mulher (professora) está em pé, se movimentando.

No ambiente está em andamento, supostamente, uma reunião de pais

e mestre. Os pais (casais) sentados em cadeiras, em forma de semicírculo, e

a professora ao centro, em pé, dá sequência a uma orientação. Na mão direita

segura algumas folhas de papel.

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Aparentemente, a professora finaliza uma orientação, iniciando a

entrega dos boletins (os papéis que estão na sua mão) e diz:

– O importante é vocês fazerem esse acompanhamento em casa. Eu vou

distribuir os boletins, agora. Nisso ela pede que os pais se identifiquem, quan-

do ela chamar pelos nomes dos alunos.

– A mãe e o pai da Alessandra?

Uma jovem senhora branca ergue o braço e pega o boletim da filha. A

professora ao entregar diz: – A Alessandra está muito bem.

A professora continua entregando os boletins aos pais.

– Daniel. Daniel é ótimo! Quem é a mãe do Dani?

Neste momento, a mãe do Daniel, uma jovem senhora branca, de

cabelos curtos e louros, simpaticamente, levanta seu braço direito para

identificar-se.

E a professora diz a ela: – Ah, oi!

Perguntando logo em seguida: – Quem é o pai?

Nisso, a imagem se abre para o lado esquerdo e uma outra mulher mais

séria, morena, de cabelos longos e escuros, com um sorriso pacato levanta o

braço identificando-se como o “pai” do Daniel. Ela abaixa o braço após iden-

tificar-se e em seguida olha para a mulher loura, amavelmente, e segura na

mão dela, estabelecendo a imagem de cumplicidade e família. A mulher loura

retribui o olhar à companheira e as duas de mãos dadas dirigem seus olhares,

com sorrisos nos rostos, à professora.

A câmera foca a professora que sorri também, porém, totalmente

desconcertada diante do casal de mulheres.

Nesse instante, ocorre um corte no anúncio e surge uma locução de voz

masculina off, com uma entonação irônica que narra “Xi... tá na hora de você

rever seus conceitos, principalmente, seus conceitos sobre carros. Palio 2002

o carro que está mudando seus conceitos”.

A narrativa publicitária do filme Escola da Fiat expõe sua essência con-

traintuitiva ao apresentar no seu discurso um casal homossexual feminino

inserido num contexto distante dos estereótipos depreciativos aos quais geral-

mente são inscritos. As amarrações discursivas desta produção apresentam ao

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indivíduo receptor “outras/novas” perspectivas informativas sobre a possível

realidade de indivíduos homossexuais. No filme descrito identifica-se esta rea-

lidade, a união civil de pessoas do mesmo sexo, pela exposição do casal lésbico

configurando uma “outra/nova” concepção de família contemporânea, forma-

da por um casal de mulheres e um filho.

O efeito produzido pelo discurso contraintuitivo pode instaurar uma

reflexão no receptor estimulando-o a deslocar seus pensamentos estereo-

típicos mediante a assimilação dos argumentos (informações) discursivos

explícitos na enunciação publicitária, possibilitando a construção de dife-

renciados horizontes de sentido. O conceito de assimilação da informação é

considerado por Barreto (2002) como “o processo de interação entre o

indivíduo e uma determinada estrutura de informação, que vem a gerar uma

modificação em seu estado cognitivo, produzindo conhecimento, que se

relaciona corretamente com a informação recebida”.

Considerações finais

O presente trabalho, de forma despretensiosa, procurou contribuir com

as discussões acadêmicas sobre as questões dos efeitos dos discursos comu-

nicacionais no deslocamento sociocognitivo dos estereótipos. As possibilida-

des de leitura apresentadas aqui não se esgotam e podem servir de base para

críticas e outras construções discursivas.

Ressalta-se que uma das propostas deste trabalho também foi inscrever

uma leitura crítica aos atuais e futuros profissionais de comunicação, para

demonstrar a relevância da responsabilidade social da propaganda, na forma-

ção (produção do saber/conhecimento) de “outros/novos” olhares críticos, à

luz da comunicação mercadológica. Conforme afirma Fry (2002, p. 305):

“queira-se ou não o mercado é o divulgador mais eficiente de conceitos e ideias

no Brasil contemporâneo”.

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