Retrospectiva Da Família e o Seu Papel Para Desenvolvimento No Século Xxi Sob a Ótica Da...

27
RETROSPECTIVA DA FAMÍLIA E O SEU PAPEL PARA DESENVOLVIMENTO NO SÉCULO XXI SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 RETROSPECTIVE OF THE FAMILY AND YOUR FUNCTION FOR DEVELOPMENT IN XXI CENTURY UNDER THE PERSPECTIVE OF FEDERAL CONSTITUTION 1988 Nardejane Martins Cardoso * RESUMO O presente trabalho tem por objetivo discutir e analisar a família como um dos atores para o desenvolvimento individual e coletivo, haja vista, a entidade familiar ser base das sociedades, e, portanto, merecer a especial proteção dos Estados. Pretende-se, especificamente, analisar a evolução do conceito de família na história, bem como no contexto constitucional brasileiro. Para tanto, utilizar-se-á, metodologicamente, da pesquisa bibliográfica, pura, qualitativa, exploratória e descritiva, por ter-se o escopo de aprofundar os conhecimentos, sem inovações diretas, descrevendo a família nas perspectivas histórica, constitucional e social. Por fim, considera-se que o tema deve ser abordado e discutido no âmbito acadêmico, pois a família é fenômeno plural que desempenha função relevante ao desenvolvimento humano e socioeconômico das sociedades hodiernas. Palavras-chave: Direito das famílias; Desenvolvimento; Constituição Federal de 1988; História da família. ABSTRACT This article aims to discuss and analyze the family as one of the actors for individual and collective development, considering the family unit is the basis of society, and therefore deserve the special protection of the State. It is intended specifically to analyze the evolution of the concept of the family history as well as the Brazilian constitutional context. To do so, shall be used, methodologically, bibliographic, pure, qualitative, exploratory and descriptive research, is to have the scope to further our knowledge, no direct innovations, describing the family in historical, constitutional and social perspectives. Finally, it is considered that the issue should be addressed and discussed by academics since the family is plural phenomenon that plays an important human and socioeconomic development of today's societies function. Key-words: Right of families; Development; Federal Constitution of 1988; Family History. * Mestranda em “Direito Constitucional” pelo Programa de Pós Graduação em Direito Stricto Senso da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-graduanda em “Direito e Processo Constitucionais” pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Latu Senso da UNIFOR. Advogada. Pesquisadora participante do grupo de estudos “Relações econômicas, políticas e jurídicas na América Latina” (CNPq), sob a orientação e coordenação da Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu e participante, também, como pesquisadora voluntária do “Grupo de Pesquisa em Direitos Culturais”, sob a orientação e coordenação do Prof. Dr. Francisco Humberto Cunha Filho.

description

O presente trabalho tem por objetivo discutir e analisar a família como um dos atores para o desenvolvimento individual e coletivo, haja vista, a entidade familiar ser base das sociedades, e, portanto, merecer a especial proteção dos Estados. Pretende-se, especificamente, analisar a evolução do conceito de família na história, bem como no contexto constitucional brasileiro. Para tanto, utilizar-se-á, metodologicamente, da pesquisa bibliográfica, pura, qualitativa, exploratória e descritiva, por ter-se o escopo de aprofundar os conhecimentos, sem inovações diretas, descrevendo a família nas perspectivas histórica, constitucional e social. Por fim, considera-se que o tema deve ser abordado e discutido no âmbito acadêmico, pois a família é fenômeno plural que desempenha função relevante ao desenvolvimento humano e socioeconômico das sociedades hodiernas.

Transcript of Retrospectiva Da Família e o Seu Papel Para Desenvolvimento No Século Xxi Sob a Ótica Da...

  • RETROSPECTIVA DA FAMLIA E O SEU PAPEL PARA DESENVOLVIMENTO

    NO SCULO XXI SOB A TICA DA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988

    RETROSPECTIVE OF THE FAMILY AND YOUR FUNCTION FOR DEVELOPMENT IN

    XXI CENTURY UNDER THE PERSPECTIVE OF FEDERAL CONSTITUTION 1988

    Nardejane Martins Cardoso*

    RESUMO

    O presente trabalho tem por objetivo discutir e analisar a famlia como um dos atores para o

    desenvolvimento individual e coletivo, haja vista, a entidade familiar ser base das sociedades,

    e, portanto, merecer a especial proteo dos Estados. Pretende-se, especificamente, analisar a

    evoluo do conceito de famlia na histria, bem como no contexto constitucional brasileiro.

    Para tanto, utilizar-se-, metodologicamente, da pesquisa bibliogrfica, pura, qualitativa,

    exploratria e descritiva, por ter-se o escopo de aprofundar os conhecimentos, sem inovaes

    diretas, descrevendo a famlia nas perspectivas histrica, constitucional e social. Por fim,

    considera-se que o tema deve ser abordado e discutido no mbito acadmico, pois a famlia

    fenmeno plural que desempenha funo relevante ao desenvolvimento humano e

    socioeconmico das sociedades hodiernas.

    Palavras-chave: Direito das famlias; Desenvolvimento; Constituio Federal de 1988;

    Histria da famlia.

    ABSTRACT

    This article aims to discuss and analyze the family as one of the actors for individual and

    collective development, considering the family unit is the basis of society, and therefore

    deserve the special protection of the State. It is intended specifically to analyze the evolution

    of the concept of the family history as well as the Brazilian constitutional context. To do so,

    shall be used, methodologically, bibliographic, pure, qualitative, exploratory and descriptive

    research, is to have the scope to further our knowledge, no direct innovations, describing the

    family in historical, constitutional and social perspectives. Finally, it is considered that the

    issue should be addressed and discussed by academics since the family is plural phenomenon

    that plays an important human and socioeconomic development of today's societies function.

    Key-words: Right of families; Development; Federal Constitution of 1988; Family History.

    *Mestranda em Direito Constitucional pelo Programa de Ps Graduao em Direito Stricto Senso da

    Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Ps-graduanda em Direito e Processo Constitucionais pelo Programa de

    Ps-Graduao em Direito Latu Senso da UNIFOR. Advogada. Pesquisadora participante do grupo de estudos

    Relaes econmicas, polticas e jurdicas na Amrica Latina (CNPq), sob a orientao e coordenao da

    Profa. Dra. Gina Vidal Marclio Pompeu e participante, tambm, como pesquisadora voluntria do Grupo de

    Pesquisa em Direitos Culturais, sob a orientao e coordenao do Prof. Dr. Francisco Humberto Cunha Filho.

  • INTRODUO

    A famlia no contexto do sculo XXI passou a dissociar-se cada vez mais do conceito

    de formao unvoca, por intermdio do matrimnio, demonstrando pluralidade de formas e

    meios de constituio. Contudo, a funo precpua das entidades familiares, em que pese a

    multiplicidade de formas, ainda a mesma, desempenhar o papel de base das sociedades.

    A Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 contm fundamentos e

    objetivos, respectivamente presentes no artigo 1 e 3 do texto constitucional. Nesse sentido,

    compreende-se que no s as instituies estatais, mas tambm, as instituies presentes na

    sociedade tm o dever de atingir os objetivos presentes no ordenamento jurdico brasileiro.

    Logo, a famlia seria um dos atores para este desenvolvimento?

    O presente trabalho acadmico pretende abordar e fomentar a problemtica

    envolvendo as famlias e o papel da entidade familiar, que permanece como fundamento da

    sociedade e digna da proteo estatal, especialmente no Estado Democrtico de Direito

    brasileiro. Por outro lado, a famlia merece a especial proteo estatal, exatamente, por sua

    atuao. A famlia no apenas entidade destinatria de direitos, deve ser tambm um ator

    social para a fomentao do desenvolvimento humano, social e econmico.

    A metodologia utilizada consubstancia-se por intermdio de estudo descritivo-

    analtico que se desenvolve por meio de pesquisa, quanto ao tipo, bibliogrfica, por

    intermdio da leitura de livros, artigos, nacionais e internacionais, que abordam o tema de

    forma direta ou indireta.

    Quanto tipologia a pesquisa pura, com relao aos resultados, pois se presta a

    abranger o conhecimento acerca do tema, e por parte do pesquisador tem-se a tomada de

    novos posicionamentos, fato que no implica em transformao direta da realidade (BASTOS,

    2008); e qualitativa, quanto natureza, porque tem o objetivo de aprofundar a compreenso

    das aes e relaes humanas, em especial, das relaes familiares.

    Quanto aos fins, a pesquisa descritiva, haja vista ser o escopo do presente trabalho

    descrever, analisar e interpretar os fatos relativos temtica apresentada; e, tambm,

    exploratria, pois tem a finalidade de reunir perspectivas diversas sobre os problemas

    investigados, por meio de estudo interdisciplinar.

    O artigo, que ora se apresenta, tem como enfoques gerais, a compreenso do ncleo

    familiar, digno de proteo nos termos das constituies do Estado brasileiro. Pretende-se

  • compreender a formao da famlia at o momento hodierno, e, por conseguinte, analisar sua

    importncia social, histrica e econmica.

    O intento, portanto, analisar, entender e dissertar acerca da entidade familiar

    enquanto fenmeno social, jurdico e econmico, no decorrer da histria humana.

    Compreendendo-se que a entidade familiar torna-se dignada da especial proteo estatal e

    reconhecida pelas legislaes como instituio fulcral das sociedades, por sua

    instrumentalidade na fomentao do desenvolvimento individual e coletivo.

    Nesse sentido, o trabalho encontra sua justificativa, exatamente, na importncia da

    temtica tanto para a compreenso do fenmeno jurdico da famlia, bem como para

    fomentao da discusso acadmica acerca da instrumentalidade da entidade familiar, que

    atualmente encontra-se marcada pela pluralidade de formaes e novas relaes emocionais e

    afetivas.

    No primeiro tpico objetivou-se realizar retrospectiva da famlia, por intermdio da

    anlise de textos jurdicos e sociolgicos, para por fim compreender a natureza atual da

    entidade familiar. No segundo tpico aborda-se a famlia no contexto do ordenamento jurdico

    brasileiro, com foco na Constituio Federal de 1988, bem como a constitucionalizao das

    relaes familiares. No terceiro tpico retrata-se a famlia como um dos atores para o

    desenvolvimento da sociedade. No decorrer do texto utiliza-se como sinnimo para famlia os

    termos entidade familiar e ncleo familiar.

    1 Retrospecto da famlia e a entidade familiar no sculo XXI

    Precipuamente, antes de se compreender a atual conceituao da entidade familiar,

    torna-se imprescindvel entender a famlia no decorrer da histria humana. Nesse sentido,

    Friedrich Engels (2012, p. 52) ao explicar o surgimento da famlia ressalta que a princpio

    existia uma economia comunitria, e os laos eram maternais. Portanto, no era importante o

    repasse de patrimnio, mas sim a sobrevivncia e permanncia do grupo. A propriedade era

    repartida pela horda ou cl.

    O autor disserta que para a preservao do patrimnio individual havia uma fraqueza

    intrnseca famlia pr-monogmica, pois no era possvel uma organizao pautada no

    patriarcado e no acmulo da propriedade produtiva, que pertencia aos homens. Para o

    surgimento da famlia burguesa pautada na monogamia deveria se ter certeza da

  • descendncia pela linha paterna, e, destarte, foi imprescindvel a supresso da economia

    comunitria e do matriarcado.

    Jean-Jacques Rousseau (2008, p. 22) estabelece, ao falar sobre o contrato social, que

    a famlia funda-se em laos naturais, e que a continuidade da filiao existe por conveno

    social. No mesmo vis, de que a famlia existe desde tempos imemoriveis, Hannah Arendt

    (2008, p. 38) afirma que a entidade familiar sempre foi base protetora da vida privada dos

    indivduos e no mundo clssico era um pressuposto para que o homem fosse considerado

    cidado.

    Historicamente, muito provvel que o surgimento da cidade-estado e da esfera

    pblica tenha ocorrido s custas da esfera privada da famlia e do lar. Contudo, a

    antiga santidade do lar, embora muito mais pronunciada na Grcia clssica que na

    Roma antiga, jamais foi inteiramente esquecida. O que impediu que a polis violasse

    as vidas privadas dos seus cidados e a fez ver como sagrados os limites que

    cercavam cada propriedade no foi o respeito pela propriedade privada tal como a

    concebemos, mas o fato de que, sem ser dono de sua casa, o homem no podia

    participar dos negcios do mundo porque no tinha nele lugar algum que lhe

    pertencesse. [...] (grifou-se)

    Neste diapaso, torna-se imprescindvel compreender o surgimento da famlia, e o

    porqu desta instituio ser to importante para o indivduo em sua vida e formao enquanto

    pessoa. A famlia considerada a clula das sociedades, pois na entidade familiar que os

    indivduos, em regra, tm suas primeiras interaes humanas. Torna-se, portanto, importante

    que haja, no lar, a estrutura familiar necessria para que a pessoa possa desenvolver todas as

    potencialidades inerentes a sua persona de maneira saudvel, embora nem sempre este tenha

    sido o intuito precpuo da famlia.

    Na antiguidade clssica, havia o pater famlias, constituindo-se a famlia como

    patriarcal, e pautada na defesa do patrimnio, para que o homem fosse respeitado, enquanto

    cidado nas cidades gregas e romanas era necessrio que fosse tambm chefe de uma entidade

    familiar (ARENDT, 2008). Os demais membros deviam obedincia apenas a ele. E existia a

    necessidade do culto aos mortos, pois o vnculo familiar no se desfazia com a morte,

    cabendo aos vivos tal encargo. mulher cabia obedecer ao marido e realizar as tarefas

    domsticas, entre elas, o cuidado com a prole e com a casa, assim como o filho tambm devia

    obedincia ao pai.

    Contudo, preciso compreender o que explica Fustel de Coulanges (1995) acerca da

    religio como fundamento das famlias gregas e romanas, por conseguinte, a autoridade

  • marital e parental so consequncias, e no causa da famlia na antiguidade. Era a religio que

    efetivamente mantinha a coeso do grupo familiar. Assim explica:

    O que uniu os membros da famlia antiga foi algo de mais poderoso do que o

    nascimento: o sentimento ou a fora fsica; na religio do lar e dos antepassados se

    encontra esse poder. A religio fez com que a famlia formasse um corpo nesta e na

    outra vida. A famlia antiga assim associao religiosa, mais que associao

    natural. Tambm veremos como a mulher s ser verdadeiramente considerada,

    quando a cerimnia sagrada do casamento a tiver iniciado no culto; como o filho j

    no conta tampouco para a famlia quando renuncia ao culto ou em sendo

    emancipado; como, ao contrrio, o adotado se tornar verdadeiro filho para a

    famlia, porque, embora no exista o lao de sangue, passa a ter na comunho do

    culto alguma coisa de amis e de melhor que o sangue; como o legatrio ao recusar-

    se a adotar o culto dessa famlia no ter a sucesso; enfim, como o parentesco e o

    direito herana esto regulados, no por virtude do fato-nascimento, mas de acordo

    com os direitos de participao no culto, e exatamente como a religio os

    estabeleceu. Sem dvida, no foi a religio que criou a famlia, mas seguramente

    foi a religio que lhe deu as suas regras e da resultando receber a famlia

    antiga constituio muito diferente da que teria tido se os sentimentos naturais

    dos homens tivessem sido os seus nicos causadores. (COULANGES, 1995, p.

    44-45) (grifou-se)

    A famlia da Idade Mdia tambm era patrimonialista e patriarcal, marcada pelos

    casamentos programados de acordo com os interesses dos pais. No havia a necessidade do

    amor, e sim da convenincia, principalmente quando se tratava da juno de reinos e famlias

    pertencentes nobreza. Segundo Lynn Hunt (2009), a Revoluo Francesa foi um momento

    de ruptura na vida privada, com certas modificaes dos valores, inclusive dos que

    concerniam famlia. No havia mais o temor de expor os fatos ocorridos no mbito do lar

    francs, poca.

    Nesse sentido, tergiversa Hunt (2009) que ocorreu a substituio da figura do casal

    que havia na monarquia francesa, pela irmandade, pautada nos ideais de fraternidade,

    liberdade e igualdade. Portanto, seria a representao de famlia comunitria, independente

    dos genitores. Embora, no contexto de uma repblica viril, onde os irmos defendem as irms,

    por serem mais fortes, ou por simplesmente, serem homens.

    Houve ainda a secularizao do casamento, desvinculado da religio, como forma de

    mostrar que o clero no deveria influenciar a famlia. Com a consequente adeso do divrcio,

    caso o matrimnio no propiciasse mais a felicidade mtua, que era o escopo, a priori, do

    casal, estes poderiam se divorciar, sem maiores problemas.

    Pode-se, compreender, portanto, que se manifesta na esfera familiar o direito

    liberdade. Ainda que houvesse a preponderncia do gnero masculino sobre o feminino,

    grande parte das mulheres, segundo Lynn Hunt (2009, p. 46) poderia solicitar o divrcio.

  • Se o Estado podia regulamentar a vida familiar e alterar a medida do tempo dirio,

    mensal ou anual, se a poltica podia decidir o nome dos filhos e a escolha das

    roupas, a vida privada tambm podia desaparecer. E a vida mais ntima se

    encontrava submetida a presses devido secularizao do casamento, restrio

    religiosa, mobilizao em massa; a ordem at ento tida como natural se tornava

    instvel. As mulheres podiam se vestir como os homens e pretender lutar na frente

    militar. Se fossem infelizes, podiam pedir o divrcio. A abolio da deferncia

    perante os reis, as rainhas, os nobres e os ricos parecia pr em questo a

    deferncia da esposa em relao ao marido, dos filhos em relao aos pais.

    (grifou-se)

    Segundo Elizabeth Roudinesco (2003), ao discorrer acerca da famlia numa

    perspectiva psicolgica e histrica, compreende-se que no contexto dos sculos XVII, XVIII e

    XIX preponderava apenas o direito do pai ao exerccio pleno da sexualidade, a liberdade

    sexual no existia para os mais jovens, ainda no casados e muito menos para as mulheres,

    ainda que casadas.

    Desta forma, compreende-se que a famlia no era ambiente de liberdade plena dos

    indivduos, ao contrrio era opressor, no qual o patriarca exercia autoridade plena e

    incontestvel. Antonie Prost (2009) explica na mesma perspectiva que a famlia burguesa no

    era to democrtica como se pode imaginar, diante da valorizao do direito de liberdade

    durante a Revoluo Francesa.

    A famlia que se forma no decorrer do sculo XVIII marcada pela hierarquizao e

    patriarcalismo, num casamento monogmico e heterossexual paradigmtico. Havia

    incompatibilidade entre a praa e o jardim (SALDANHA, 1986).

    Neste vis, pode-se afirmar que a famlia nem sempre foi como a que se conhece

    atualmente, e no se manter a mesma, talvez nem mesmo no contexto do sculo XXI. A

    sociedade mutvel, a famlia tambm, e o direito deve acompanh-las. Os paradigmas

    modificaram-se, embora a essncia do conceito de famlia permanea.

    Segundo Michelle Perrot (2009a), a famlia era compreendida enquanto instituio

    absoluta sobre o indivduo, este deveria desprender todos os seus esforos em favor do ente

    familiar, sacrificando, inclusive a felicidade e bem-estar individual em nome da entidade

    familiar. O problema histrico em tal concepo da famlia, que hodiernamente torna-se

    incongruente com a realidade social, que obrigava a pessoa a pensar numa entidade abstrata

    como mais importante que a sua dignidade e a dos indivduos com os quais compartilha os

    afetos.

  • Constata-se o carter preponderantemente patrimonialista da famlia dos sculos

    XVIII e XIX, no qual as unies davam-se muito mais por motivos econmicos e financeiros,

    que por razes sentimentais. A unio entre um casal, por intermdio do matrimnio, que era a

    nica forma de constituir-se um ncleo familiar legtimo, dava-se muitas vezes por acordos

    entre as famlias, quando mais abastadas.

    At mesmo nas famlias de origem menos prsperas, havia tal preocupao

    patrimonial, fato que pode ser notado nas obras literrias, como os romances da escritora

    inglesa Jane Austen (2010), nos quais, muitas vezes as moas casavam-se para ter a

    estabilidade financeira que somente o matrimnio poderia proporcionar, por exemplo, as

    filhas do baronete falido Walter Eliot, que no poderiam herdar a propriedade de Kellynch

    Hall, no romance Persuaso.

    As jovens contavam apenas com a possibilidade de um bom casamento e um

    pequeno dote em libras, que advinha da herana deixada pela me, e o herdeiro seria um

    primo distante que detinha relacionamento no amigvel com a famlia. Assim, compreende-

    se que por meio do pensamento de Michelle Perrot (2009a, p. 81):

    [...] A liberdade de lavrar testamento limitada pelo direito de famlia. Hegel critica

    vivamente a arbitrariedade do direito romano nesse aspecto; ele se ope ao direito

    de primogenitura e excluso das filhas. O que importa, a seus olhos, no a

    linhagem, carregada de feudalidade, e sim a famlia, pedra angular da sociedade

    moderna. Crculos de pessoas concretas independentes, as mirades, as multides

    de familiar formam a sociedade civil, que no seno a reunio de coletividades

    familiares dispersas. (grifou-se)

    Destarte, observa-se que a famlia era patriarcal. Tal configurao perdurou por

    sculos, isso porque o homem era o cerne da sociedade, ele detinha as caractersticas

    necessrias para bem governar e guiar os demais. O pater famlias era responsvel por seu lar,

    assim como o rei era responsvel por seu povo. A mulher era a parte submissa, ficando

    encarregada de cuidar do lar e dos filhos, sua funo era essa, por no se encontrar adequada

    para o exerccio de qualquer funo pblica.

    Observa-se que, h pouco mais de cinquenta anos, a mulher brasileira conseguiu ter

    certa autonomia com relao ao homem, com o advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei n

    4.121, de 27 de agosto de 1962). poca, a mulher perdia sua autonomia, e passava para o

    estado de incapacidade civil absoluta, sendo representada em tudo por seu marido.

  • Diante do exposto, importante ressaltar no pertinente formao da famlia

    brasileira, segundo Gilberto Freyre (2005, p. 178), houve sobreposio da cultura europeia

    sobre a dos nativos, e que ela preponderou por ser mais desenvolvida. Embora de incio a

    moral catlica tenha sido minoritria e com isso tenha sofrido um colapso, a catequizao dos

    aborgenes fez com que perdessem grande parte de sua cultura, ocorreu a intoxicao da

    moral crist, e assim [...] a colonizao tomou um rumo puritano [...].

    Verifica-se que na tica de Freyre (2005) uma cultura mais civilizada e organizada

    prepondera sobre uma cultura ainda simplria. Houve ruptura no desenvolvimento da

    civilizao amerndia no Brasil. Por conseguinte, a famlia nacional tem influncia

    precipuamente europeia, embora seja preciso observar que a influncia das minorias que

    tiveram seus direitos vilipendiados tambm tenha contribudo cultura familiar brasileira.

    Nesta perspectiva, como exemplo da influncia maior das sociedades europeias,

    Gilberto Freyre (2005) explica que os indgenas eram poligmicos, no havia impedimento

    por parte da mulher que seu marido tomasse outra. A famlia brasileira constituiu-se numa

    conduta moral com relao ao casamento, na moral catlico-crist, apoiada numa ortodoxia

    de uma moral europeia, que no se confundia com a moral dos amerndios.

    No que pertinente ao papel das crianas e adolescentes no contexto familiar, tem-se

    que somente a partir do sculo XVII a criana passou a ter papel mais relevante no seio da

    famlia, e tambm a ter um tratamento diferenciado dos adultos. Portanto, tais fatores

    diminuram a questo da mortalidade infantil, bem como aumentaram os laos afetivos entre

    pais e filhos, contribuindo positivamente para a formao do conceito de parentalidade que se

    tem hodiernamente. Assim, aduz Airs (2006) que, anteriormente, a criana, assim que

    aprendia a falar e andar, passava a ser considerada como um pequeno adulto. Portanto, a

    criana convivia apenas com pessoas de idade muita acima da sua.

    Nesse contexto, o surgimento das escolas foi relevante para que as crianas

    passassem a conviver com pessoas de sua mesma faixa etria. No que se refere ao

    relacionamento entre pais e filhos, Michelle Perrot (2009b, p. 144) afirma que [...] a troca de

    carinhos entre pais e filhos tolerada, e at desejada, pelo menos na famlia burguesa. Os

    mimos e afagos fazem parte do clima favorvel ao desenvolvimento de um corpo jovem [...],

    mas em contrapartida, a questo da autoridade absoluta do pai ainda permaneceu muito

    arraigada, gerando uma espcie de contradio no seio da famlia burguesa.

  • No momento histrico do fim da Segunda Grande Guerra Mundial, surgiu a

    Organizao das Naes Unidas, e dentre seus documentos, alm da Declarao Universal

    dos Direitos Humanos, datada de 1948, houve a criao da Declarao dos Direitos das

    Crianas de 1959. E no que pertinente ao mbito nacional, aps a Constituio de 1988,

    ocorreram avanos no campo do Direito da Criana e do Adolescente, com o surgimento do

    estatuto em 1990, bem como as decises judiciais que aplicam princpios constitucionais, e a

    aplicao de polticas pblicas e projetos no governamentais, com fomento efetivao dos

    direitos das crianas e adolescentes e sua proteo.

    Neste mesmo contexto, as desigualdades de gnero tambm eram prementes, pois a

    mulher era considerada subordinada ao marido, que era o nico chefe da famlia matrimonial.

    Ana Maria Brochado Teixeira (2009), ao tratar sobre autoridade parental, afirma que havia o

    ptrio poder, que alm de obrigar aos filhos aos mandos e desmandos do pai, colocava a

    mulher como uma mera auxiliadora do marido. Constata-se que a famlia era marcadamente

    hierarquizada e patriarcal.

    No Brasil, poca da Repblica, foi editado decreto que permitia viva, desde que

    no contrasse novo matrimnio, a possibilidade de exerccio do ptrio poder. A viva, em

    razo de no haver mais o patriarca da famlia, a partir da Repblica, pode tomar para si o

    ptrio poder, e assim administrar e governar a famlia, ainda que fosse numa sociedade

    estruturada pela figura masculina, ou seja, patriarcal, tratando-se, portanto de uma

    excepcionalidade. Nesse sentido, tem-se que na famlia brasileira:

    [...] O pai, centro da grande famlia e detentor do patrimnio, tambm estava no topo

    da pirmide, decidindo qual seria o destino de todas as pessoas que lhe eram

    subordinadas: filhos, parentes e empregados. A famlia era desenhada em moldes

    semelhantes famlia romano-cannica. Esse foi o modelo de famlia assumido pelo

    Cdigo Civil de 1916, deixando marcas legislativas que perpetuaram at o final do

    sculo passado. [...] (TEIXEIRA, 2009, p. 20)

    As lutas feministas, portanto, trouxeram uma nova configurao ao ncleo familiar,

    bem como a noo de democracia, e de que o exerccio da autoridade parental pelos genitores

    no um direito de imposio da vontade aos filhos, mas um poder dever que se alcana por

    intermdio do dilogo. No que pertinente ao gnero feminino, Michele Perrot (2009b, p.

    260) aduz que a mulher foi [...] retalhada, grande gnero da crnica policial, ilustra ao

    paroxismo uma realidade prpria do sculo XIX: a fria contra uma mulher por no se admitir

    que ela se emancipe.

  • Neste diapaso, pode-se, inclusive, auferir que as principais conquistas da

    Constituio Brasileira de 1988, como aduz Paulo Lbo (2011), foram, a igualdade entre os

    cnjuges, que deriva da igualdade entre os gneros, e a igualdade entre os filhos,

    independente da origem, fatos que sero expostos pelo tpico que segue. Na mesma

    perspectiva, Maria Celina Bodin de Moraes (2010, p. 63) assevera que:

    Culturalmente, a famlia brasileira ainda estruturalmente patriarcal e o

    patriarcalismo, como se sabe, fundamenta-se sobre uma trplice desigualdade: os

    homens tm mais valor que as mulheres; os pais, maior importncia que os filhos, e

    os heterossexuais, mais direitos que os homossexuais. A Constituio de 88 ps fim,

    expressamente, a duas dessas desigualdades: uma ao estabelecer no art. 226, 5, a

    igualdade dos cnjuges no casamento; e a outra quando, no art. 227, atribuiu aos

    filhos a posio de centralidade no grupo familiar ao garantir a absoluta prioridade

    s crianas e aos adolescentes. Quanto terceira hiptese, ao ampliar as formas de

    organizao da famlia (art. 226, 3 e 4), o texto constitucional abriu a

    possibilidade para novas entidades, inclusive para a unio civil de pessoas do

    mesmo sexo.

    Por conseguinte, h uma pluralidade de atores na esfera familiar, no importa apenas

    a vontade do patriarca, superou-se tal figura, ao menos em termos de ordenamento jurdico,

    sendo necessrio dilogo amplamente democrtico (MORAES, 2010), entre pais, filhos,

    irmos, tios, sobrinhos, avs, netos, cunhados, padrastos, madrastas, enteados etc., todos os

    atores presentes na entidade familiar.

    A famlia a unidade fundamental de todas as sociedades humanas, instituio

    secular que perdura at os dias hodiernos. Segundo Joo Baptista Villela (1999), a famlia

    anterior ao Estado e religio, e contempornea ao direito. Assim, o Direito das Famlias,

    ao qual se faz referncia neste trabalho monogrfico, caracteriza-se pela anlise jurdica da

    regulamentao inerente ao ncleo familiar, clula das sociedades, desde a formada pelos

    primeiros homindeos at as da humanidade no contexto da mundializao.

    2 A famlia na Constituio brasileira de 1988

    No que concerne ao ser humano vivenciando a experincia da comunidade, Pontes de

    Miranda (2001) aduz acerca da afetividade como fator precpuo para a formao dos

    grupos humanos, e neste diapaso, tambm a famlia, primeiro grupo no qual se insere o

    indivduo. Ainda conforme o autor, os agrupamentos sociais so criados e mantm-se coesos

    pelos sentimentos e pelo afeto:

    [...] Cada ser humano pode pertencer a muitas sociedades e, pois, estar sujeito (e est

    sempre) a mais de um sistema jurdico, econmico ou moral. A todos os grupos,

    desde os binrios aos mais vastos e mltiplos, correspondem formas afetivas de

    entusiasmos, de dedicao, de amor e de sacrifcio. Do par conjugal famlia, do

  • cl fratria, tribo, nao, s chamadas raas, aos continentes, s civilizaes, h

    a mesma exaltao sentimental, fecunda, que amplifica ou eu, aumenta,

    cerebralmente, todos os valores, transforma o objeto amado em sinal de sinais,

    aluso simblica a tudo que belo. assim que se explicam as paixes do grupo

    binrio (homem, mulher), os delrios das escolas religiosas, dos agrupamentos

    fanticos, das seitas e das sociedades reformadoras, o patriotismo, o pan-

    americanismo, o hispano e o ibero-americanismo, o pan-eslavismo, o pan-

    germanismo, o latinismo, o anglosaxonismo, o humanitarismo. (MIRANDA, 2001,

    p. 56) (grifou-se)

    Diante do exposto pelo civilista, observa-se que o afeto sempre permeou as reales

    familiares, sem necessariamente fazer-se presente como valor jurdico, princpio ou regra.

    Destarte, observa-se que as Constituies brasileiras anteriores a de 1988 vinculavam o

    conceito de famlia ao de casamento, mas a partir dela houve a consagrao de outros

    modelos. A famlia advinda da unio estvel e a unidade familiar formada por um dos pais e a

    prole tornaram-se ao lado do matrimnio, famlias dignas de especial proteo do Estado

    brasileiro.

    Questionou-se, ao final do sculo XX, se as famlias que no estavam presentes no

    texto constitucional tambm mereciam a especial proteo estatal como disposto no artigo

    226 da Constituio brasileira de 1988. Concluiu-se que no se tratava de rol taxativo,

    presente nos pargrafos do artigo j mencionado, mas de apenas trs dos diversos modos de

    constituio de ncleo familiar.

    O conceito de famlia complexo, no porque esta exija formalidades, mas porque

    tema controverso na doutrina e jurisprudncia brasileira e mundial. Gustavo Tepedino (2008,

    p. 395) afirma que a famlia aquela que tem como fim o desenvolvimento da personalidade

    dos indivduos que dela fazem parte, a famlia possui funo social, por essa razo a

    Constituio brasileira de 1988 a considera como clula mater da sociedade.

    famlia, no direito positivo brasileiro, atribuda proteo especial na medida em

    que a Constituio entrev o seu importantssimo papel na promoo da dignidade

    humana. Sua tutela privilegiada, entretanto, condicionada ao atendimento desta

    mesma funo. Por isso mesmo, o exame da disciplina jurdica das entidades

    familiares depende da concreta verificao do entendimento desse pressuposto

    finalstico: merecer tutela jurdica e especial proteo do Estado a entidade familiar

    que efetivamente promova a dignidade e a realizao da personalidade de seus

    componentes.

    Sob esta perspectiva, percebe-se que com o advento da Constituio brasileira de

    1988 no h mais a fuso dos conceitos de famlia e casamento. A famlia pode constituir-se

    de outras maneiras, e estas modalidades esto alm das elencadas pelo artigo 226 da

    Constituio Federal de 1988. A unio formal entre homem e mulher, de forma perene, foi

  • durante muito tempo, a nica forma de constituio de entidade familiar digna da proteo

    especial do Estado brasileiro.

    Daniel Sarmento (2010) tergiversa acerca da despatrimonializao do Direito

    Privado, ou seja, a valorizao dos aspectos humanos, da pessoa e toda a sua dignidade diante

    do patrimnio, da propriedade, fato que no significa o desinteresse do Estado nos aspectos

    econmicos da vida.

    Os bens materiais devem ser vistos como meios de atingir-se a dignificao do ser

    humano. Neste sentido, compreende-se que o Direito Privado constitucionalizou-se. Os

    valores dispostos na Constituio brasileira de 1988 devem estar espraiados por todo o

    ordenamento nacional, tratando-se assim da fora normativa do texto constitucional, como

    disposto por Konrad Hesse (1991). Neste diapaso, afirma Sarmento (2010, p. 91) que:

    [...] A despatrimonializao implica, isto sim, o reconhecimento de que os bens e

    direitos patrimoniais no constituem fins em si mesmos, devendo ser tratados pela

    ordem jurdica como meios para a realizao da pessoa humana. Antes, prevalecia o

    ter sobre o ser, mas agora vai operar-se uma inverso, e o ser converter-se- no

    elemento mais importante do binmio. Esta nova perspectiva provoca a necessidade

    de redefinio dos prprios direitos patrimoniais e institutos que lhes so correlatos,

    como a propriedade, a posse e o contrato, cuja tutela passar a sujeitar-se a novos

    condicionamentos, ligados a valores extrapatrimoniais sediados na Constituio.

    Despatrimonializao significa, portanto, o outro lado da moeda da

    personalizao do Direito Privado. (grifou-se)

    Neste diapaso, Ingo Sarlet (2009) discorre acerca do conceito de identidade

    enquanto escopo da pessoa. Ele disserta que a individualidade deve ser protegida, bem como

    suas manifestaes, como forma de proteo dignidade humana, que fulcro da Repblica

    Federativa do Brasil como bem disposto no artigo 1, inciso III da Constituio de 1988.

    Por conseguinte, assevera o autor, que necessria a regulamentao acerca da

    identidade gentica, diante dos novos meios e tcnicas de reproduo assistida, bem como,

    proteo s novas configuraes de ncleos familiares como a unio homoafetiva-sexual, que

    consagra igualdade jurdica e a livre orientao sexual inerente ao indivduo humano. Assim

    aduz, Ingo Sarlet (2009, p. 538):

    Para alm do j referido reconhecimento de um direito geral ao livre

    desenvolvimento da personalidade, diretamente deduzido do princpio da dignidade

    da pessoa humana, em virtude de sua dignidade, vale destacar, pela sua atualidade e

    relevncia, o direito (de personalidade) da pessoa proteo contra eventuais

    excessos cometidos em sede de manipulaes genticas, inclusive, no que diz com a

    fundamentao de um (novo?) direito identidade gentica da pessoa humana, ainda

    no contemplado como tal (ao menos no expressa e diretamente) no nosso direito

    constitucional positivo. Tambm um direito identidade pessoal (neste caso no

  • estritamente referido identidade gentica e sua proteo, no caso, contra

    intervenes no genoma humana) tem sido deduzido do princpio da dignidade da

    pessoa humana, abrangendo inclusive o direito ao conhecimento, por parte da

    pessoa, da identidade de seus genitores. Nesta mesma senda, reportando-se

    expressamente conexo entre a dignidade da pessoa humana e o princpio da

    igualdade, j assume ares de consenso, tambm entre ns, o reconhecimento de um

    direito a livre orientao sexual, do que d conta, em carter meramente ilustrativo,

    a proteo jurdica das unies entre pessoas do mesmo sexo e todas as

    consequncias que a doutrina e a jurisprudncia da j tm extrado.

    Na perspectiva de Maria Berenice Dias (2009, p. 40) as transformaes polticas,

    econmicas e sociais refletiram nas relaes familiares. Surgiram ideais a serem alcanados

    pelas famlias: pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade, liberdade e humanismo.

    Portanto, a famlia tem o escopo de efetivar a proteo dos direitos de personalidade. Como a

    entidade familiar detm hodiernamente funo instrumental, que o melhor atendimento aos

    interesses afetivos das pessoas. Devido extrema mobilidade de suas configuraes, novas

    formas de famlia surgiram.

    Deve-se esclarecer que ao classificar como tipos de famlia no significa que estar-

    se a considerar que existam classes e hierarquizao dos diversos modos de constituio de

    ncleo familiar. Ao contrrio, cr-se que o legislador ordinrio tem que refletir sobre o

    casamento ainda ser a melhor opo para as pessoas que constroem seus ncleos familiares.

    Bem como, explorar com mais acuidade a questo das famlias monoparentais, que

    no possuem qualquer dispositivo no Cdigo Civil brasileiro de 2002. No se deve olvidar

    das demais hipteses de famlia, ainda no elencadas. A existncia ftica implica no

    reconhecimento jurdico e consequente regulamentao.

    No h como se negar a existncia de outros modelos de entidade familiar, haja vista

    que o direito positivo, nem sempre alcana a realidade ftica da sociedade que est em

    constante mutao. Compreende-se que devido mudana constante e reorganizao social,

    dificilmente ter-se- todos os tipos possveis de famlia positivados.

    Hodiernamente no h que se confundir o conceito de famlia com o de casamento,

    mas pelos diplomas legais anteriores a Constituio brasileira de 1988, ambos eram o mesmo.

    O ncleo familiar somente constitua-se pela unio formal entre homem e mulher, de forma

    solene e com a livre vontade das partes contraentes, e indissolvel, at o surgimento da

    possibilidade do desquite e da Lei do Divrcio de 1977.

  • Portanto, deve-se indagar, precipuamente, se o direito deve existir para a sociedade,

    ou esta para o direito. A sociedade evolui e modifica-se, e incumbe aos operadores do direito

    e aos legisladores adequar ambas para que a legislao e os julgamentos no se tornem

    incuos, injustos ou retrgados. A famlia formada por meio da unio formal entre homem e

    mulher est prevista no 1 do artigo 226 da Constituio Federal de 1988. Todas as

    constituies brasileiras vincularam ao conceito de famlia ao matrimnio. A primeira

    Constituio a dar uma noo plural da famlia foi a de 1988.

    A Constituio de 1937 afirmava que a famlia era constituda pelo casamento, que

    era indissolvel. A Constituio de 1946 aduzia o mesmo que a anterior. E a Constituio

    de 1967, por fim, veio a dizer que a unidade familiar era a constituda pelo casamento. Em

    todas as constituies falou-se da proteo Estatal para com a entidade famlia, isso, porque,

    ela a formadora da sociedade.

    O ncleo familiar a clula da sociedade, e mantm esta caracterstica at hoje. A

    Constituio brasileira de 1988, por sua vez, desvinculou o conceito de famlia do conceito

    de casamento. Segundo o texto constitucional so trs os tipos de famlia: a constituda pelo

    casamento, a unio estvel entre homem e mulher, e a famlia monoparental.

    Verifica-se, hodiernamente, o fenmeno da repersonalizao do direito, sua

    despatrimonializao, ou seja, a constitucionalizao do direito privado, que sofre influncia

    direta da Constituio brasileira de 1988. Neste diapaso, a Constituio, no deve ser mais

    considerada um mero pedao de papel, e sim um documento legal dotado de fora normativa

    (HESSE, 1991), que regulamente, regula e vigora no mbito de um Estado Democrtico de

    Direito.

    Observa-se, assim, a prevalncia das normas constitucionais sobre as demais para

    garantia da unicidade e coerncia do sistema normativo nacional, bem como a observncia

    dos princpios norteadores do Estado e da sociedade brasileira. Nesse sentido Guilherme

    Calmon Nogueira Gama (2008, p. 117) aduz que:

    Cuida-se da reestruturao da famlia que exige no apenas do jurista, mas tambm

    de outros cientistas e profissionais, a sensibilidade de buscar a verificao da

    validade de teorias e de prticas tradicionalmente adotadas num contexto histrico,

    poltico, social, econmico e cultural diverso do que se apresenta na

    contemporaneidade.

  • Na famlia atual, os interesses patrimoniais perderam seu protagonismo. Portanto, a

    realizao pessoal tornou-se mais relevante, por intermdio das relaes de afeto. Entretanto,

    ela deve ser vista tambm, como uma unidade de produo, no se funda apenas no afeto, ou

    na busca de felicidade dos indivduos que a compe. A famlia instituio-instrumento e

    pauta-se na coletividade, onde h o compartilhamento da vida, as pessoas fazem concesses e

    auxiliam-se. A entidade familiar clula da sociedade, afetiva, contudo tem fulcro

    econmico e social, tambm.

    A Constituio Federal de 1988 consagra em seu artigo 226 que a famlia base da

    sociedade e digna da proteo especial do Estado, podendo-se constituir por intermdio do

    casamento, da unio informal entre duas pessoas de sexo diferente, ou mesmo advir da

    convivncia entre um dos pais e seus filhos.

    Contudo, o Direito de famlia passa por constantes mudanas, atualmente, denomina-

    se Direito das famlias, exatamente pela pluralidade que se discorreu alhures, e nesse sentido,

    compreende-se que as famlias elencadas pela Constituio de 1988 so exemplos de modos

    de formao da famlia. Noutro vis, importante ressaltar a necessidade de requisitos

    objetivos, haja vista a temerosa judicializao da moral e a segurana jurdica das relaes

    intrafamiliares.

    Afinal, em que pese a considerao de que o afeto um dos elementos das famlias

    hodiernas, ressalta-se que a entidade familiar no s afeto. Ela pautada numa pluralidade

    de relaes que no envolvem apenas sentimentos e preferncias, mas tambm tratam de

    responsabilidades (parental e filial), renda familiar (economia domstica) ou mesmo herana

    (direito sucessrio).

    3 A famlia como um dos atores do desenvolvimento

    Por que a famlia um dos atores do desenvolvimento? Porque ela fundamento das

    sociedades. A famlia sempre existiu, embora suas nuances nem sempre serem as mesmas.

    Todas as sociedades de que se tem conhecimento foram aliceradas pelas famlias, formadas

    por necessidade de sobrevivncia, proteo da propriedade ou mesmo pelos afetos. A famlia

    uma das antigas instituies humanas, e apesar de manter o carter de base da sociedade,

    atualmente, ela deixa de se sobrepor aos indivduos e passa a ser instrumento (MORAES,

    2010).

  • A partir dos anos 2000, observa-se a alavancada do afeto no direito, mas o que o

    afeto? E qual o sentido de reduzir o contexto familiar unio de afetos? Assim fala Ana

    Carolina Brochado Teixeira (2009, p. 136-137) que [...] No mbito de uma famlia

    solidarista, o autoritarismo cedeu espao a afetividade. [...]. Entretanto, deve-se ponderar que

    a famlia no perdeu seu carter econmico, e trat-la com floreios e romantismos pode

    acarretar reducionismo da importncia da entidade familiar para a sociedade, precipuamente,

    no sculo XXI, no qual se observa o fenmeno da globalizao.

    No que pertinente relao entre o divrcio e a renda familiar, o nmero de

    divrcios no Brasil tem aumentado, segundo Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatstica, em 2000, o nmero era de 1,7%, enquanto que em 2010 passou para 3,1%. Tal

    fato no significa que o nmero de matrimnios tenha diminudo, ao contrrio, estes tambm

    tem aumentado. Passando-se a constatar o fenmeno dos recasamentos, que se constituem

    nas famlias recompostas (GRISARD FILHO, 2010).

    No obstante, compreende-se a quebra de um ncleo familiar, alm das implicaes

    emocionais aos que dele faam parte, acarreta consequncias econmicas, precipuamente, se

    houver patrimnio comum constitudo no contexto da sociedade conjugal e a necessidade de

    prestao alimentcia.

    A renda familiar, com a ruptura, tende a diminuio, sero duas novas famlias, ou

    uma famlia monoparental e uma pessoa que provavelmente viver sozinha. Alm da partilha

    dos bens, existe tambm a questo dos alimentos necessrios aos filhos, que por serem

    menores, ou ainda estudantes em formao, necessitam do auxlio e amparo financeiro dos

    pais responsveis. Portanto, discutir-se-o as questes relativas aos alimentos devidos entre os

    parentes.

    A questo dos devedores de alimentos um dos problemas enfrentados pela

    sociedade brasileira no sculo XXI, pois, embora exista o mecanismo da priso civil para

    devedor de alimentos (artigo 5, LXVII, CF/88), ainda persiste a inadimplncia, o que

    demonstra ser mais um problema cultural e moral, relacionado ao comportamento masculino

    na sociedade brasileira, do que jurdico. Sem embargo, como aduz Rolf Madaleno (2009), no

    se pretende obrigar a amar, e sim que haja com responsabilidade no que pertinente aos

    deveres inerentes paternidade, ainda que a criana ou adolescente constitua laos afetivos,

    por exemplo, com a figura substituta do padrasto.

  • Noutra esfera, a entidade familiar tambm consumidora, pois a famlia precisa

    manter-se, e, nesse sentido, parte-se para a noo de bens materiais durveis ou perecveis. O

    ambiente no qual se tem a famlia o lar, ou a casa. Richard Posner (2007, p. 143) dispe que

    a famlia tem importncia no e to somente no mbito do consumo, mas tambm na prpria

    produo, diante da especializao das atividades dos membros que a compe.

    Na perspectiva de Posner (2007, p. 143-144), a famlia perdura como instituio h

    tanto tempo por possuir relevncia no mbito econmico. O custo inerente famlia seria

    justamente a adaptao para a convivncia com o outro, que um dos fatores

    individualizantes da famlia. Portanto, para o economista uma das caractersticas positivas da

    famlia a facilitao que surge com a especializao do trabalho.

    No contexto do casamento, por exemplo, estabelece-se parceria, similar em certos

    aspectos comercial, entretanto, com o fulcro no amor mtuo, nos laos afetivo-emocionais,

    como uma espcie de altrusmo que se aplica nas relaes paterno-filiais, tambm. O

    altrusmo, neste diapaso, ser um elemento facilitador da cooperao e assim solidariedade.

    Entretanto, ocorre quebra na famlia tradicional proposta e exemplificada por Posner

    (2007), precisamente na realidade brasileira. Ao se observarem os dados da Pesquisa Nacional

    por Amostra de Domiclio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE),

    expressivamente, maior o nmero de famlias nas quais ambos os cnjuges obrigam-se a

    trabalhar, constituindo 65% da populao brasileira. Isto, porque, na famlia, que um dos

    cnjuges no consegue subsistir o lar sozinho, necessria complementao do outro. Em

    contrapartida, 13,1% dos lares no Brasil no possuem qualquer dos cnjuges laborando, o que

    leva tais ncleos a estarem em situao de vulnerabilidade, haja vista constiturem as famlias

    com crianas e adolescentes de 0 a 14 anos.

    Tab. 1. Distribuio percentual das famlias com pessoas de 0 a 14 anos de idade residentes

    em domiclios particulares, por condio de ocupao da pessoa de referncia e cnjuge no

    Brasil.

    Pessoa de referncia

    ocupada

    Cnjuge ocupado Chefe e cnjuge

    ocupados

    Nem chefe e nem cnjuges

    ocupados

    15,9 % 6,0 % 65,0 % 13,1 % Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio 2009.

    No que pertinente ao regime de bens, seja no contexto do casamento, como da

    unio estvel, ficam patentes as questes econmicas e financeiras que transitam no mbito

  • familiar, reforando a ideia de que a famlia possui uma pluralidade de questes que

    transpassam a mera noo de afeio.

    Em fevereiro de 2013, o Superior Tribunal de Justia, em sede de Recurso Especial,

    que por segredo de justia no teve seu nmero divulgado, julgou ser possvel a alterao do

    regime de bens de casal, que contraiu o matrimnio sob a gide do Cdigo Civil de 1916,

    ainda que contrria ao disposto no artigo 2039 do Cdigo Civil de 2002, para o problema

    patrimonial havido entre o casal, j que o marido deseja se arriscar em empreendimento

    considerado perigoso para a esposa, e a mesma no quer arriscar-se financeiramente. Seria a

    mudana do regime de comunho total para o de separao convencional.

    O ministro relator, Luis Felipe Salomo, afirma que plausvel a mudana de

    regimes, j que se tornou pacfico o entendimento que se aplica a nova regra de mudana do

    Cdigo Civil de 2002, sendo necessrio o cuidado de verificar se no conduz ao vilipendio de

    direito de outrem (BRASIL, STJ, 2013, on line). Entende-se, portanto, que o carter

    patrimonial da famlia no deve ser olvidado, devido s consequncias econmicas que

    acarretam as relaes de parentesco, seja civil, biolgico ou por afinidade.

    A dignidade humana capitada na obra de Immanuel Kant (2007, p. 428) tornou-se

    princpio e fundamento dos ordenamentos jurdicos hodiernos. Para que o ser humano seja

    dotado de autodeterminao deve ser garantido o mnimo existencial, que permita o pleno

    desenvolvimento de sua personalidade e capacidades (SARLET, 2012, p. 136). Nesse

    diapaso, constata-se a importncia da entidade familiar e o motivo precpuo pelo qual ela

    deve ter especial proteo do Estado.

    Destarte, verifica-se que as relaes entre direito de propriedade, direito educao,

    direito de famlia e programas de apoio (exemplo brasileiro: bolsa famlia), so essenciais

    para a promoo e preservao de direitos fundamentais. Importa ressaltar, que no significa

    retorno ao patrimonialismo, mas constata-se a relevncia do patrimnio1 para o

    desenvolvimento do indivduo.

    Questiona-se, assim, qual seria o papel da entidade familiar, enquanto instituio e

    instrumento na sociedade hodierna? No Brasil, o artigo 226 da Constituio Federal de 1988

    1 Luiz Edson Fachin (2006, p. 62) explica que o patrimnio vincula-se noo de direitos e obrigaes

    apreciveis economicamente. Portanto, o patrimnio deve ser compreendido, segundo o autor, como uma

    universalidade de bens, direitos e obrigaes.

  • proclama que a famlia fundamento da sociedade. Isso, porque, a famlia a base, e seu

    planejamento atrela-se a ideia de desenvolvimento afetando a sociedade. Em contrapartida, as

    modificaes sociais tambm implicam em mudanas nas estruturas dos ncleos familiares.

    Pietro Perlingieri (2002, p. 245-246) afirma que a famlia deve estar integrada

    sociedade civil em colaborao peremptria s outras formaes sociais, explica que o valor

    da solidariedade pressuposto da unidade familiar, e fundamenta os direitos e deveres dos

    indivduos que compem a famlia. Desta forma, o autor afirma que a entidade familiar no

    pode ser eliminada do sistema de instituies civis que existem para finalidades similares.

    Neste contexto, nota-se a relevncia do planejamento familiar e da economia

    domstica. E surgem, tambm, questionamentos: como passar s famlias a importncia da

    adequada estruturao familiar? Como compreender a relao entre o mbito econmico,

    local e global, e a famlia como atora do desenvolvimento humano, social e econmico?

    Quais as implicaes que surgem a partir da economia da famlia para a economia de modo

    abrangente?

    Conforme foi explanado alhures pela perspectiva histria de Engels (2012), constata-

    se que famlia, sociedade e economia esto entrelaadas, e impactam-se simultaneamente. Por

    conseguinte, pode-se concluir que o artigo 226 da Constituio brasileira de 1988 veio a

    proteger especialmente a famlia por motivos que vo alm da valorizao do afeto, como a

    legtima proteo dignidade humana e busca pela efetivao do mnimo existencial. Isto,

    porque, a famlia deve ser analisada como um dos atores para o desenvolvimento da

    sociedade.

    As famlias so tambm unidades de consumo e unidades produtoras, haja vista o

    exemplo das empresas familiares e a relao entre as crises financeiras e o planejamento

    econmico familiar. Richard Posner (2007, p. 143-144) dispe que a famlia tem importncia

    no e to somente no mbito do consumo, mas tambm na prpria produo, diante da

    especializao das atividades dos membros que a compe. Segundo o autor, h uma maior

    eficincia se um dos membros ocupa-se em trazer o sustento, e o outro em administrar como

    dinheiro ser gasto no mbito familiar.

    Conforme afirma Vernica A. da Motta Cezar-Ferreira (2011, p. 160), no momento

    da dissoluo de laos matrimoniais pode haver a utilizao de meios econmicos e

    financeiros para agredir emocional e psicologicamente a outra pessoa. A autora retrata a

  • dimenso plural de compreenso da famlia e a relevncia de que todas as nuances devem ser

    trabalhadas pelo jurista.

    O dinheiro, em ltima anlise, tem um significado na vida das pessoas, um

    simbolismo muito particular. Em razo disso, o mediador deve ficar atento quando

    os mediados trazem suas definies sobre o assunto, para tentar entender o que os

    mantm em suas posies e ajuda-los a sair do impasse para a deciso.

    Amartya Sen (2010, p. 258) ao tratar do desenvolvimento como liberdade, explica

    que a emancipao feminina aumentou a instruo e independncia das mulheres. O

    economista afirma que a educao feminina permite que a mulher amplie seus conhecimentos

    sobre planejamento familiar, como cuidar dos filhos e como controlar os gastos e contribuir

    para a renda familiar. Ressalta que [...] mulheres instrudas tendem a gozar de mais liberdade

    para exercer sua condio de agente nas decises familiares, inclusive nas questes

    relacionadas fecundidade e gestao de filhos.

    Nesse diapaso, Muhammad Yunus (2008, p. 69), ao relatar sua ao de conceder

    emprstimos s famlias, expe que o fornecimento do crdito s mulheres era mais vantajoso

    para entidade familiar. O autor observou que os homens tendiam a gastar o dinheiro obtido

    com vantagens individuais, sem pensar na famlia, precipuamente nas crianas. Enquanto que,

    as mulheres apresentavam uma maior preocupao com o ncleo familiar, conhecendo suas

    necessidades e o modo adequado de distribuir o dinheiro obtido por meio do emprstimo.

    O captulo VII da Constituio brasileira de 1988 aborda no s a famlia, enquanto

    instituio, mas tambm seus componentes que necessitam de proteo: crianas,

    adolescentes e jovens, e os idosos. Esses indivduos, em especial, merecem destaque no

    mbito familiar, e a famlia deve buscar protege-los e garantir-lhes o mnimo existencial,

    preservando a sua dignidade. Os direitos e deveres expostos neste captulo coadunam-se com

    as noes de responsabilidade parental e filia.

    Nota-se que a legislao infraconstitucional brasileira profcua no que se refere

    promoo dos direitos e deveres dos membros familiares, como exemplos, tm-se o Estatuto

    da Criana e do Adolescente (Lei 8069 de 13 de julho de 1990), o Estatuto do Idoso (Lei n.

    10.741, de 1 de outubro de 2003), bem como o prprio Cdigo Civil (Lei 10.406, de 10 de

    janeiro de 2002).

    A Constituio brasileira de 1988 dispe a famlia como base da sociedade, ou seja,

    como um de seus sustentculos. por intermdio da entidade familiar, que o indivduo tem

    seus primeiros contatos com o meio social. Com o planejamento familiar, os responsveis

  • podem orientar, proteger e cuidar dos demais componentes da famlia que precisam de tutela,

    auxlio e proteo. Neste contexto, a economia faz-se presente no ambiente familiar, tambm.

    Amartya Sen (2010, p. 251-252) ressalta que o papel feminino foi fundamental para a

    mudana da configurao da famlia, especialmente no que pertinente s questes

    econmicas. O autor explica que com a evoluo dos sistemas, valores e convenes sociais a

    diviso intrafamiliar, educao, emprego e direitos de propriedade das mulheres podem ser

    fundamentais para os destinos econmicos, bem-estar e liberdade dos demais membros da

    famlia.

    Para alm dessa perspectiva, importante analisar o comportamento das famlias, e

    as consequncias da estruturao no contexto da economia nacional e global, haja vista, que

    as crises podem ser agravadas pela falta de planejamento da famlia, e, por consequncia, as

    entidades familiares precisam estar preparadas para situaes de mudanas causadas por

    fatores externos.

    Nesse sentido, Rachel Sztajn (2005, p. 80-81) ao dissertar sobre Law and Economics

    ressalta a importncia do dilogo entre Direito e Economia para a compreenso dos

    fenmenos que se do nas relaes familiares, assim a autora explica que:

    A noo de escolha racional est nsita na ideia de capacidade e de imputao. At

    os padres do homem mdio, do bom pai de famlia, do homem ativo e probo

    tomam a racionalidade como suporte, porque essas pessoas se baseiam, ao

    determinar suas aes, nos padres sociais ou institucionais existentes, aprovados,

    desejados, estimulados. Desvios levam a punies, sejam elas impostas pelo sistema

    jurdico seja por normas socialmente aceitas. Sob tal perspectiva, fica claro que nada

    obsta que Economia e Direito mantenham profcuo dilogo.

    Por conseguinte, ressalta-se que a pesquisa no se justifica somente pela anlise do

    patrimnio familiar, mas pela interao entre o Direito das famlias e a economia no contexto

    do Estado Democrtico de Direito, fundamentado por uma constituio que prev a especial

    proteo da entidade familiar, inclusive com a obrigao do Estado de buscar proteger o

    ncleo familiar, enquanto ator do desenvolvimento individual e social.

    Conforme expe Gina Pompeu (2012, p. 134), os direitos humanos fundamentam os

    direitos sociais e tambm os direitos de personalidade que devem ser efetivados. A autora

    conclui que as instituies so essenciais para superao das adversidades uma vez

    desenvolvidas emancipam-se do prprio Estado. Destarte, a famlia tambm uma dessas

    instituies.

  • Nesse contexto, Luiz Edson Fachin (2006, p. 20-21) explana que para que a pessoa

    tenha sua dignidade preservada torna-se necessria a garantia de um patrimnio mnimo que

    d suporte existncia digna. Assim, o autor explica que: A garantia de um patrimnio

    mnimo conecta-se com a superao da compreenso formal dos sujeitos. Funda-se na

    dignidade da pessoa para apreend-la, concretamente na realizao de necessidades

    fundamentais.

    Destarte, importa, informar que segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatstica (IBGE) a renda familiar de 27,2% dos brasileiros em 2009 era de 1 salrio

    mnimo, conforme se observa na seguinte tabela.

    Tab. 2. Renda familiar no Brasil.

    Perodo Mais de 1/2 a

    1 salario

    mnimo

    Mais de 2 a 3

    salarios

    mnimos

    Mais de 3 a 5

    salarios

    minimos

    Mais de 5

    salarios

    mnimos

    Sem

    rendimento

    1992 25,7 4,8 3,6 2,7 3

    1993 25,2 4,9 3,9 3,3 2,9

    1995 26,1 6,6 5,8 5,3 3,2

    1996 25,4 7 5,5 5,4 3,6

    1997 25,5 7,1 5,5 5,4 3,6

    1998 25,7 6,8 5,6 5,2 3,5

    1999 26,4 6,6 5,3 4,9 3,5

    2001 26 7 5,4 5 3,8

    2002 26,3 7 5,1 5 3,2

    2003 27,4 6,5 5 4,4 3,3

    2004 27,6 7 4,8 4,4 2,9

    2005 27,8 7,2 5,3 4,8 2,7

    2006 27,4 8,2 5,9 5,4 2,5

    2007 27 8,2 6,2 5,5 2,7

    2008 26,7 8,7 6,4 5,5 2,2

    2009 27,2 8,3 6 5,1 2,3

    Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (2009).

    A Constituio brasileira de 1988 afirma que a renda mnima deve ser suficiente para

    garantir a existncia digna ao indivduo e sua famlia. Compreender e buscar solues para a

    superao dessa discrepncia entre a vontade de constituio e a realidade (LASSALLE,

    2001) papel dos juristas, tambm. Destarte, o artigo 3 da Constituio Federal de 1988, que

    contm os objetivos da Repblica no deve ser olvidado pelo Estado e pelas instituies, e

    entre elas, est famlia.

  • CONSIDERAES FINAIS

    Conforme o exposto durante no presente trabalho, compreende-se que a entidade

    familiar, em que pese suas modificaes no decorrer da histria, sempre manteve seu papel

    precpuo de fundamento para s sociedades, como bem assevera o caput do artigo 226 da

    Constituio brasileira de 1988.

    No decorrer do artigo, procurou-se entender a evoluo da famlia no contexto da

    histria humana, a situao da entidade familiar na perspectiva do texto constitucional

    brasileiro de 1988, para se considerar que, a famlia fomentadora do desenvolvimento

    social, humano e econmico no sculo XXI. Logo, depreende-se, pelo apresentado, que a

    famlia formao social fundamental para humanizao das relaes interindividuais,

    tambm.

    Considera-se que a famlia torna-se merecedora da proteo do Estado por ser um

    dos atores sociais que tem como finalidade o desenvolvimento, no apenas dos indivduos,

    garantindo-se a igualdade de gnero, e a proteo de crianas, adolescentes, incapazes e

    idosos no mbito da entidade familiar. O desenvolvimento, pelo qual a famlia torna-se

    responsvel, tambm coletivo, traduzindo-se em desenvolvimento social e econmico.

    Constata-se que h consequncias econmicas diante das dissolues de casamentos

    e unies estveis, ou mesmo do falecimento ou nascimento de algum indivduo pertencente

    determinada entidade familiar. Questes como regime de bens, partilhas, as prprias empresas

    familiares (holding familiar) pertencem ao mbito das relaes familiares, e conectam-se

    esfera econmica, haja vista o direito de propriedade.

    Por conseguinte, em que pese a extrema relevncia do afeto para formao e

    continuidade da entidade familiar, no sentido do afeto, enquanto sentimento positivo e de

    agregao, a famlia vai alm dos laos afetivos. Nesse diapaso, afere-se que o ncleo

    familiar fenmeno complexo e plural que precisa ser compreendido para o progresso e

    sustentao das sociedades humanas.

    Diante do exposto acerca destas novas formaes familiares, imprescindvel que os

    juristas, estudiosos e aplicadores do Direito estejam atentos para as consequncias e para

    questes como ativismo judicial e segurana jurdica. Em que pese no ser o tema central

    travado no presente trabalho, ressalta-se que, ao se compreender a famlia como responsvel

  • pelo desenvolvimento das sociedades humanas atenta-se para outra pluralidade, ou seja, a

    pluralidade funcional da instituio/instrumento que a famlia do sculo XXI.

    Portanto, considera-se que traar perspectivas para compreenso do conceito de

    famlia, no decorrer da histria humana at os dias hodiernos, basilar para anlise das

    relaes familiares e a funo precpua da entidade familiar. Nesse diapaso, ao se conceber a

    famlia como um dos atores para o desenvolvimento, busca-se analisar o fenmeno em suas

    variadas nuances. O afeto e a diversidade de reas de atuao da entidade familiar traduzem

    sua significao de instituio instrumentalizada no contexto do sculo XXI.

    Por fim, constata-se ento que a famlia o primeiro locus no qual o indivduo se

    relaciona com seus semelhantes, constri os primeiros laos, afetos e sentimentos. Embora, se

    esteja no contexto sculo XXI e a humanidade encontre-se cercada por tecnologias,

    consumismo e individualidade, a famlia continua como base e sustentculo dos Estados, pois

    influencia a pessoa e suas caractersticas, assim como sua ausncia tambm. Por conseguinte,

    pode-se inferir que a famlia instituio promotora do desenvolvimento, individual e

    coletivo.

    REFERNCIAS

    ARENDT, Hannah. A condio humana. Traduo de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de

    Janeiro: Forense Universitria, 2008.

    ARIS, Philippe. Histria social da criana e da famlia. Traduo de Dora Flaksman. 2.

    ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

    AUSTEN, Jane. Persuaso. Traduo de Roberto Leal. So Paulo: Martin Claret, 2010.

    BASTOS, Nbia Maria Garcia. Introduo metodologia do trabalho acadmico. 5.ed.

    Fortaleza: Nacional, 2008.

    BRASIL. Cdigo Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponvel em:

    . Acesso em: 14 abr. 2014.

    BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. 41. ed. So

    Paulo: Saraiva, 2008.

    BRASIL. Estatuto da Criana e do Adolescente. Lei n 8069 de 13 de julho de 1990.

    Disponvel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 28 mar.

    2014.

    BRASIL. Estatuto do Idoso. Lei n. 10.741 de 1 de outubro de 2003. Disponvel em: <

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741.htm>. Acesso em 29 mar. 2014.

  • BRASIL. Estatuto da Mulher Casada. Lei 4.121 de 27 de agosto de 1962. Disponvel em: <

    http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1962/4121.htm >. Acesso em: 13 mar.

    2013.

    BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Recurso especial n 11833378/RS. Voto do Ministro

    Luis Felipe Salomo. Disponvel em:

    .

    Acesso em: 27 jul. 2014

    CEZAR-FERREIRA, Vernica A. da Motta. Famlia, separao e mediao: uma viso

    psicojurdica. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense; So Paulo: Mtodo, 2011.

    COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Traduo de Fernando de Aguiar. 3. ed. So

    Paulo: Martins Fontes, 1995.

    DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famlias. 5. ed. So Paulo: Revista dos

    Tribunais, 2009.

    ENGELS, Friedrich. A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado. Traduo

    de Ciro Mioranza. So Paulo: Lafonte, 2012.

    FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurdico do patrimnio mnimo. 2. ed. Rio de Janeiro:

    Renovar, 2006.

    FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formao da famlia brasileira sob o regime da

    economia patriarcal. 50. ed. So Paulo: Global, 2005.

    GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Princpios constitucionais de direito de famlia:

    guarda compartilhada luz da lei n 11.698/08: famlia, criana, adolescente e idoso. So

    Paulo: Atlas, 2008.

    GRISARD FILHO, Waldyr. Famlias reconstitudas: novas unies depois da separao. 2.

    ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

    HESSE, Konrad. A fora normativa da constituio. Traduo de Gilmar Ferreira Mendes.

    Bahia: Srgio Antonio Fabris Editor, 1991.

    HUNT, Lynn. Revoluo Francesa e vida privada. In: PERROT, Michelle (Org.). Histria da

    vida privada: Da Revoluo Francesa Primeira Guerra. Traduo de Denise Bottman,

    Bernardo Joffily. So Paulo: Companhia das Letras, 2009. v. 4. p. 18-46.

    INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA IBGE. Censo de 2010:

    famlias e domiclios. Disponvel em:

    .

    Acesso em: 10 abr. 2014

    INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA IBGE. Pesquisa

    Nacional por Amostra de Domiclio: Rendimento familiar per capita (1992-2009).

    Disponvel em:

    . Acesso em: 10 abr. 2014

  • KANT, Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. Lisboa Portugal: Edies

    70, 2007.

    LASSALLE, Ferdinand. A essncia da constituio. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2001.

    LBO, Paulo. Direito civil: famlias. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2011.

    MADALENO, Rolf. Curso de direito de famlia. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense , 2009.

    PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introduo ao direito civil constitucional.

    Traduo de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

    PERROT, Michelle. A famlia triunfante. In: PERROT, Michelle (Org.). Histria da vida

    privada: Da Revoluo Francesa Primeira Guerra. Traduo de Denise Bottman, Bernardo

    Joffily. So Paulo: Companhia das Letras, 2009a. v. 4. p. 79-90.

    PERROT, Michelle. Figuras e papis. In: PERROT, Michelle (Org.). Histria da vida

    privada: Da Revoluo Francesa Primeira Guerra. Traduo de Denise Bottman, Bernardo

    Joffily. So Paulo: Companhia das Letras, 2009b. v. 4. p. 107-168.

    POMPEU, Gina Vidal Marclio. Crescimento econmico e desenvolvimento humano: entre a

    soberania do Estado e a proteo internacional dos direitos do homem. Pensar: revista de

    cincias jurdicas, Fortaleza, v. 17, n. 1, p. 115-137, jan/jun., 2012.

    POSNER, Richard A. Economic analysis of law. 7. ed. Aspen: Aspen Publishers, 2007.

    PROST, Antonie. Fronteiras e espaos do privado. In: PROST, Antonie; VINCENT, Grard

    (Org.). Histria da vida privada: Da primeira guerra a nossos dias. Traduo de Denise

    Bottman, Dorothe de Bruchard. So Paulo: Companhia das Letras, 2009. v. 5. p. 13-136.

    ROUDINESCO, Elisabeth. A famlia em desordem. Traduo de Andr Telles. Rio de

    Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

    ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Traduo de Pietro Nassetti. 2. ed. So

    Paulo: Martin Claret, 2008.

    SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na

    Constituio Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

    SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Traduo de Laura Teixeira Motta. So

    Paulo: Companhia das Letras, 2010.

    SZTAJN, Rachel. Law and economics. In: ZYLBERSTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel (Org.).

    Direito e economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 74-83.

    TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

    TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Famlia, guarda e autoridade parental. 2. ed. Rio de

    Janeiro: Renovar, 2009.

  • VILLELA, Joo Baptista. Repensando o direito de famlia. (1999). Disponvel em:

    . Acesso em: 26 fev. 2013.

    YUNUS, Muhammad. Um mundo sem pobreza: a empresa social e o futuro do capitalismo.

    Traduo de Juliana A. Saad e Henrique Amat Rgo Monteiro. So Paulo: tica, 2008.