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ISSN 1980-1858 GUAVIRA LETRAS Programa de Pós-Graduação em Letras UFMS/Campus de Três Lagoas Guavira Letras Três Lagoas v.13 n.1 p. 1-213 ago./dez. 2011

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ISSN 1980-1858

GUAVIRA LETRAS

Programa de Pós-Graduação em Letras

UFMS/Campus de Três Lagoas

Guavira Letras Três Lagoas v.13 n.1 p. 1-213 ago./dez. 2011

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Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Reitora

Célia Maria da silva Oliveira

Vice-Reitor João Ricardo Filgueiras Tognini

Pró-Reitor de Pós-graduação

Dercir Pedro de Oliveira

Diretor do Campus de Três Lagoas José Antônio Menoni

Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras

Kelcilene Grácia Rodrigues

Conselho Editorial Eneida Maria de Souza (UFMG) João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis) José Luiz Fiorin (USP) Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD) Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara) Maria José Faria Coracini (UNICAMP) Márcia Teixeira Nogueira (UFCE) Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG) Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra – Portugal) Roberto Leiser Baronas (UNEMAT) Sheila Dias Maciel (UFMT) Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM) Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS) Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália) Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre)

Comissão Editorial Kelcilene Grácia Rodrigues Rauer Ribeiro Rodrigues Taísa Peres de Oliveira

Vitória Regina Spanghero Claudionor Messias da Silva (Apoio Técnico)

Assistente Editorial (bolsista) Luciano de Jesus Gonçalves

Diagramação Edson Rosa Francisco de Souza

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©©©© Copyrigth 2011 – os autores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca do Campus de Três Lagoas – UFMS, Três Lagoas, MS, Brasil)

G918 Guavira Letras: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Graduação e Pós-Graduação em Letras. – v. 1, n. 1 (2005). - Três Lagoas, MS, 2005 -

Semestral. Descrição baseada em: v. 13, n.1, (ago./dez. 2011).

ISSN 1980-1858

1. Letras - Periódicos. 2. Funcionalismo - princípios, metas e métodos I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Graduação e Pós-Graduação em Letras. II. Título.

CDD (22) 805

_________________________________________________________________________________________________________ Organização deste volume: Taísa Peres de Oliveira e Edson Rosa Francisco de Souza Pareceristas deste número: Anna Christina Bentes (UNICAMP/IEL) Edson Rosa Francisco de Souza (UFMS/Três Lagoas) Eduardo Penhavel de Souza (UFV) Fabio Fernando Lima (USP) Flávia Bezerra de Menezes Hirata Vale (UFSCAR) Juliano Desiderato Antonio (UEM) Liliane Santana (UNESP/São José do Rio Preto) Maria Angélica de Oliveira Penna (UNICAMP/IEL) Maria Angélica Furtado da Cunha (UFRN) Maria Beatriz do Nascimento Decat (UFMG) Maria Cecilia de Magalhaes Mollica (UFRJ) Maria Maura Cezário (UFRJ) Mariângela Rios de Oliveira (UFF) Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher (UNESP/São José do Rio Preto) Mônica Veloso Borges (UFG) Nilza Barrozo Dias (UFF) Rivia Silveira Fonseca (UFRRJ) Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP/São José do Rio Preto) Taísa Peres de Oliveira (UFMS/Três Lagoas) Talita Storti Garcia (UNESP/São José do Rio Preto) Valdirene Zorzo-Veloso (UEL) Vanessa Hagemeyer Burgo (UFMS/Três Lagoas)

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Todos os direitos reservados Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Programa de Pós-Graduação em Letras Câmpus de Três Lagoas – Três Lagoas/MS CEP: 79610-011 Fone: +55 (67) 3509-3425 Portal: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira [email protected]

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Sumário

FUNCIONALISMO: PRINCÍPIOS, METAS E MÉTODOS FUNCTIONALISM: TENETS, AIMS AND METHODS

APRESENTAÇÃO 5

ARTIGOS/ ARTICLES 6

Gramática Funcional Christian Lehmann

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Linguística funcional: princípios, temas, objetos e conexões Maria Helena de Moura Neves

23

A natureza contínua das classes de palavras Roberto Gomes Camacho

39

A influência dos fatores sociais na alternância dos pronomes tu/você na fala manauara Leandro Babilônia Silvana Andrade Martins

49

A ordem SV/VS no português em aquisição como L2 na fronteira Brasil/Paraguai: uma investigação sociofuncionalista na interface aquisição/variação Sebastião Carlos Leite Gonçalves Juliana Daher Sabatin Sandra Denise Gasparini-Bastos

61

Interpretação de padrões de covariação Livia Oushiro

77

Da forma para função ou da função para forma? Raquel Meister Ko. Freitag Sebastião Carlos Leite Gonçalves

89

A origem latina dos advérbios em -mente: um processo de gramaticalização Júlia Langer de Campos

109

Revisitando a liaison do francês pela via da análise da frequência de uso Ricardo Araujo Ferreira SOARES Mônica Maria Rio Nobre

124

A locução conjuntiva temporal ((n)a) hora que: aspectos inovadores e renovadores Gisele Cássia de Sousa Nicole Regina Renck

138

(Inter)subjetivização no domínio da modalidade: o processo de gramaticalização das construções modais ter que + V2 e dever + V2 Patrícia Fabiane Amaral da Cunha Lacerda

151

A natureza fluida da língua e o estudo do português: aproximações entre gramaticalização e ensino André Luiz Rauber

165

Motivações sociointeracionais de fenômenos linguísticos e ensino de língua portuguesa: algumas contribuições Edvaldo Balduino Bispo Maria Angélica Furtado da Cunha

180

Orkut: Linguagem oral em suporte escrito Viviane Yamane da Cunha

196

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APRESENTAÇÃO

O Grupo de Pesquisa de Estudos Sociofuncionalistas (GPES), atualmente sediado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS- Câmpus de Três Lagoas), e o Programa de Mestrado em Letras têm a satisfação de apresentar aos seus leitores o volume 13 da Revista Guavira, intitulada Funconalismo: princípios, metas e métodos, organizado pelos professores Taísa Peres de Oliveira e Edson Rosa Francisco da Souza.

O presente volume reúne trabalhos apresentados durante o I Simpósio de Internacional de Linguística Funcional (SILF 2011), realizado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Três Lagoas/MS, nos dias 25, 26 e 27 de maio de 2011, sob a coordenação de Taísa Peres de Oliveira, Edson Rosa Francisco de Souza, Sebastião Carlos Leite Gonçalves, Eduardo Penhavel e Alessandra Regina Guerra. O evento recebeu apoio financeiro da Capes.

O SILF 2011 reuniu pesquisadores do exterior e de diferentes universidades brasileiras que se dedicam aos estudos da linguagem a partir das várias vertentes teóricas funcionalistas, propiciando, assim, um espaço para a divulgação de pesquisas e, principalmente, para a reflexão e discussão conjunta sobre diferentes objetos de estudo, particularmente os problemas de análise, as perspectivas teóricas e as metodologias de trabalho.

A diversidade dos temas focalizada nos textos aqui apresentados reflete a pluralidade de enfoques de análise que marcam o paradigma funcionalista: os trabalhos contemplam as diferentes teorias funcionalistas bem como as interfaces possíveis. Nesse sentido, buscou-se construir uma rede de interações assentada no conhecimento diversificado sobre o tema central, entendendo que do esforço comum pode surgir um pensamento inovador.

A edição de número 13 da Guavira Letras inclui artigos de renomados pesquisadores do Brasil e do exterior, que são frutos de suas apresentações no SILF 2011 (em conferências, mesas-redondas, sessões coordenadas e comunicações individuais), e estão distribuídos entre as variadas temáticas que o Funcionalismo em Linguística permite abordar. Dentre os assuntos discutidos pelos autores, estão as questões referentes aos aspectos definidores da Gramática Funcional e suas interfaces, fluidez categorial, variação linguística (Sociolinguística), aquisição de segunda língua (L2), gramaticalização de construções e itens linguísticos, constituição e caracterização funcional de perífrases verbais e conjuncionais, intersubjetividade/modalidade, sociointeracionismo, gêneros discurivos e ensino de língua materna.

Participam deste volume Christian Lehmann (Universität Erfurt, Alemanha), Maria Helena de Moura Neves (UNESP/Mackenzie), Roberto Gomes Camacho (UNESP/S. J. Rio Preto), Leandro Babilônia (UEA/Amazonas), Silvana Andrade Martins (UEA/Amazonas), Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP/S. J. do Rio Preto), Juliana Daher Sabatin (UNESP/ S. J. Rio Preto), Sandra Denise Gasparini-Bastos (UNESP/S. J. Rio Preto), Livia Oushiro (USP/São Paulo), Raquel Meister Ko. Freitag (UFS/Sergipe), Júlia Langer de Campos (UFRJ/Rio de Janeiro), Ricardo Araujo Ferreira Soares (UFRJ/Rio de Janeiro), Mônica Maria Rio Nobre (UFRJ/Rio de Janeiro), Gisele Cássia de Sousa (UNESP/ S. J. Rio Preto), Nicole Regina Renck (UNESP/S. J. Rio Preto), Patrícia Fabiane Amaral da Cunha Lacerda (UFJF/Juiz de Fora), André Luiz Rauber (USP/São Paulo), Edvaldo Balduino Bispo (UFRN), Maria Angélica Furtado da Cunha (UFRN), Viviane Yamane da Cunha (Mackenzie/São Paulo).

Os textos aqui reunidos constituem apenas uma pequena amostra dos caminhos possíveis de pesquisa que podemos percorrer no campo de estudos funcionalistas. Esperamos que esses textos sirvam de convite para quem deseja conhecer o Funcionalismo linguístico mais de perto e investigar os componentes constituitivos da linguagem a partir da observação da língua em funcionamento. Antes de finalizar, gostaríamos de agradecer a todos os pareceristas deste volume, pelo excelente trabalho realizado, e por terem aceitado o nosso convite.

Uma boa leitura a todos. Os organizadores

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ARTIGOS

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Gramática Funcional Christian LEHMANN1

RESUMO: Embora exista um modelo bem conhecido de descrição linguística (a saber: Gramática Funcional), o título na verdade se refere a um conceito de gramaticografia num sentido mais amplo, que é essencialmente independente de modelos particulares de descrição. Dadas as abordagens complementares para a análise e descrição linguística, como, a abordagem funcional onomasiológica ou semasiológica, 95% das gramáticas publicadas atualmente são gramáticas estruturais. Isso inclui tanto as gramáticas puramente estruturais na tradição do estruturalismo americano, incluindo gramática gerativa (na medida em que produziu descrições gramaticais), quanto as gramáticas que consideram o significado e a função das construções descritas. Para analisar as expressões linguísticas, a maioria dessas gramáticas começa pela estrutura, para, então, chegar chegar ao seu significado ou à sua função. Essa é a abordagem semasiológica. Uma gramática onomasiológica (ou funcional) começa pelos conceitos, operações e funções subjacentes à linguagem e analisa as estratégias e construções que, em uma língua particular, são usadas para codificar as informações gramaticais. Essa é a abordagem adotada pelos 5% restantes. Este desequilíbrio é lamentável, uma vez que os usuários consultam uma gramática, tanto na qualidade de falante quanto na de ouvinte, mas apenas uma gramática funcional corresponde ao ponto de vista do falante. Por isso, é importante que mais descrições linguísticas utilizem essa abordagem. Uma das razões para ser tão raramente utilizada nos estudos linguísticos é porque não há uma tradição linguística (filologica e estruturalmente orientada), no sentido de que não existe uma base científica para a abordagem funcional. Este texto busca negar essa suposição. Há, até o momento, tanto uma base teórica sólida para uma gramática funcional quanto um grande conjunto de domínios funcionais específicos para dar suporte a uma descrição de base onomasiológica. Isso será ilustrado a partir do domínio funcional do nexo (combinação). É dada especial atenção à relação de complementaridade entre a gramática funcional e estrutural.

KEYWORDS: Gramática Funcional; Gramática Estrutural; Gramaticografia. Introdução2

O propósito desta contribuição é

- descrever a abordagem funcional na gramaticografia - descrever como se compõe uma gramática funcional - e justificar a necessidade dela frente à gramática estrutural.

Trata-se, pois, de uma questão de gramaticografia e, num sentido mais amplo, de metodologia linguística. O foco da discussão não é, portanto, constituído por novos dados ou novas generalizações empíricas. Ao contrário, com poucas excepções, vamos utilizar exemplos familiares cuja análise não impõe qualquer problema para que possamos concentrar-nos na maneira de apresentá-los com base na gramática funcional. Onomasiologia e semasiologia

A língua associa operações e conceitos cognitivos e comunicativos com expressões perceptíveis. Existe variação nessa associação em todos os níveis, dentro de uma língua particular, mas também no nível interlingual, tanto na gramática como no léxico. Em termos mais formais, o pareamento (mapping, em inglês) de expressão com conteúdo não constitui

1 Professor de Linguística Geral e Comparada da Universidade de Erfurt (Alemanha). Email: [email protected] 2 Agradeço aos assistentes do SILF, sobretudo a Maria Helena de Moura Neves, as sugestões para melhorar este texto, a Marcos Wiedemer (UNESP) por ter corrigido as minhas falhas de português e a Taísa Peres de Oliveira por ter dado a forma final ao meu texto.

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uma relação biunívoca e sim uma relação n : n. Portanto, uma gramática terá uma estrutura diferente dependendo de se toma a estrutura da expressão como princípio de organização e leva de uma expressão ao conjunto de conceitos e funções gramaticais, ou ao contrário usa o mundo das operações e conceitos cognitivos e comunicativos como princípio de organização e atribui, a cada elemento ou operação, um conjunto de expressões disponíveis na língua.

Embora o objeto da discussão seja a gramática funcional, terei que falar muito da gramática estrutural também. Isto é uma consequência natural do fato de as gramáticas funcional e estrutural serem complementares e se definirem uma por delimitação em relação à outra. As duas perspectivas no léxico

Os termos ‘onomasiologia’ e ‘semasiologia’ foram introduzidos na lexicologia no século 19 e são tradicionais. Voltarei à questão dos termos mais adiante. Um estudo lexicológico que toma uma expressão – no caso típico, uma palavra – de uma língua como ponto de partida e analisa os seus sentidos é um estudo semasiológico. Por outro lado, um estudo que toma um conceito como ponto de partida e pergunta como esse se exprime na língua em questão é um estudo onomasiológico. O diagrama apresenta as duas direções da associação de expressões com conceitos, utilizando como exemplo o verbo inglês entertain.

D1 . Onomasiologia e semasiologia no léxico

Partindo-se dos conceitos, ou seja, em uma perspectiva onomasiológica, apresenta as

possibilidades de exprimir a situação de ‘X diverte Y’. Para tanto, o inglês promove, entre outros, os verbos divert, entertain e amuse.

Partindo-se das expressões, ou seja, em uma perspectiva semasiológica, o diagrama responde à questão do quê significa a expressão verbal X entertains Y. Os significados possíveis são, entre outros os três apresentados em e ilustrados pelos exemplos :3

3 O sentido ‘X sustém Y’, ilustrado em .a, exprimir-se-ia mais comumente por maintain.

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E1 . a. Linda has to entertain her destitute brother. b. Linda entertained the whole party. c. Linda entertains strange hypotheses on Portuguese grammar.

Assim, o léxico semasiológico dá conta da polissemia de um lexema, mostrando como

este, dependendo do contexto, apresenta sentidos diferentes. Por outro lado, o léxico onomasiológico dá conta da sinonimia entre todas as expressões que correspondem a um conceito dado, mostrando como este toma formas diferentes dependendo de condições contextuais. As duas perspectivas na gramática

apresenta as duas direções de associação de expressão e conteúdo com base no exemplo do genitivo inglês.

D2 . Onomasiologia e semasiologia na gramática

Na perspectiva onomasiológica, estamos considerando uma relação possessiva entre um objeto possuído X e um possuidor Y, e estamos buscando as estratégias da gramática inglesa para codificar tal relação. Tais estratégias são, entre outras, as quatro construções esquematizadas na linha de base de , ilustradas pelos exemplos :

E2 . a. The pen belongs to the teacher.

b. the pen of the teacher c. the teacher’s pen d. the teacher has a pen Na perspectiva semasiológica, a questão são os sentidos ou as funções da construção

inglesa [ XNom [ of YNP ] ]. Essas incluem, entre outras, as quatro relações conceptuais

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representadas na parte superior de (com indicação das funções do genitivo tradicionalmente reconhecidas) e ilustradas, por ordem, pelos exemplos :4

E3 . a. the top of the pen

b. the pen of the teacher c. the process of grammaticalization d. the teacher’s publications

O exemplo complica-se um pouco pelo fato de que o inglês possui dois genitivos. O papel das duas perspectivas na lingüística

Como se vê, faz uma sensível diferença metodológica tomar um conceito ou uma função como ponto de partida e investigar os recursos estruturais que os codificam na língua, ou, ao contrário, partir de uma expressão e da sua estrutura e investigar os seus significados ou funções. A primeira perspectiva é a onomasiológica, a segunda a semasiológica.

As duas perspectivas metodológicas têm relação às duas atividades linguísticas, a produção e o entendimento da fala. De um ponto de vista sistemático, o locutor segue o procedimento onomasiológico, já que começa com o que quer dizer, ou seja, os conceitos e as operações cognitivos e comunicativos, e busca os meios de codificá-los na língua. O ouvinte, ao contrário, segue o caminho semasiológico, porque o que lhe é dado é um texto, portanto expressões, e a tarefa dele é de procurar-lhes os sentidos.

Na base da onomasiologia, está uma sistemática semântica, ou seja, um sistema de conceitos, relações conceptuais e operações cognitivas e comunicativas. A estrutura genérica dessa sistemática é universal e, em parte, até extralinguística, ainda que em níveis mais finos de granularidade se ramifique nos significados e categorias gramaticais próprias de cada língua. Do mesmo modo, na base da semasiologia, está uma sistemática estrutural, ou seja, um sistema de unidades, relações e processos do meio expressivo; e essa também é parcialmente universal e até extralinguística.

A distinção entre um dicionário semasiológico e um onomasiológico está firmemente estabelecida na lexicografia. Todos nós temos dois volumes do nosso dicionário de inglês. Quando escrevemos, tomamos o ponto de vista onomasiológico e nos servimos do volume português-inglês, enquanto ao ler um texto, assumimos o ponto de vista semasiológico e utilizamos o volume inglês-português. O volume português-inglês é um dicionário onomasiológico do inglês, porque os lemas portugueses não nos interessam como unidades do sistema português, mas os utilizamos somente como representantes dos conceitos que queremos exprimir em inglês. O volume inglês-português é um dicionário semasiológico do inglês, porque o que nos interessa nas definições prestadas não são as expressões e sim, exclusivamente, o significado que representam. Em todo o caso, para um léxico de uma língua estrangeira, a organização em dois volumes nos parece totalmente natural e até necessária.

Como é bem sabido, existem também dicionários monolíngues onomasiológicos e semasiológicos. O renomado Thesaurus de Roget (1852) foi um dos primeiros dicionários onomasiológicos já feitos. No Brasil, o dicionário analógico de Azevedo (1974) é bastante difundido. Nesse tipo de dicionário, os verbetes estão ordenados em campos semânticos. Por outro lado, um dicionário semasiológico deveria ser ordenado conforme uma sistemática estrutural, quer dizer, segundo critérios morfológicos e fonológicos. Ainda que existem tais dicionários, eles não são comuns. A maioria dos consulentes acha mais útil um dicionário semasiológico cujas entradas estão ordenadas alfabeticamente.

4 Entende-se que .b é muito menos idiomático do que .c.

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Gramática onomasiológica e semasiológica

Com a exceção de linguistas que elaboram teorias abstratas, aqueles linguistas que descrevem línguas concordam em que o sistema significativo de uma língua tem duas seções, o léxico e a gramática. Como se observa através da comparação dos diagramas e , a gramática não se distingue do léxico por que as suas unidades não tenham significado e sim por que possuem um significado mais abstrato. Portanto, a alternativa de se adotar uma abordagem onomasiológica ou semasiológica faz sentido na gramática exatamente como no léxico. Contudo, aqui encontramos uma diferença enorme entre as tradições lexicográfica e gramaticográfica: enquanto ambos os dicionarios onomasiológico e semasiológico estão bem estabelecidos tanto na metodologia da disciplina quanto no mercado editorial, a distinção correspondente na gramaticografia é ou bem desconhecida ou não considerada relevante. Aqui vale a pena uma pequena retrospectiva.

As primeiras gramáticas do mundo ocidental, as gramáticas gregas de Dionísio da Trácia e Apolônio Díscolo, e as gramáticas latinas de Élio Donato e Prisciano, seguem essencialmente um modelo semasiológico. Embora os conceitos gramaticais com que operam sejam compostos de critérios semânticos e estruturais, a organização global dessas gramáticas é puramente estrutural. Essa estruturação das gramáticas das línguas clássicas pode ser entendida perfeitamente como uma consequência dos objetivos que levaram os usuários a consultá-las: Essas obras estavam destinadas a pessoas que falavam uma variedade da koiné ou do proto-românico e cuja tarefa era a de entender os textos clássicos, médio milênio mais antigos. Só uma ínfima minoria tinha o propósito de escrever em grego ou latim clássico; e ninguém tinha o propósito de falar essas línguas.

Essa perspectiva mudou na Idade Média. Agora todos os vernáculos diferiam tanto das línguas clássicas que já ninguém se enganava acreditando que a sua língua materna fosse o latim clássico. Por outro lado, havia, sobretudo na administração e jurisdição, nos monastérios e nas universidades, um crescente número de pessoas que deviam escrever e até falar em latim, já que essa era, no mundo ocidental, a única língua em que se escrevia e que era utilizada na comunicação intercultural. Portanto, não é nenhuma coincidência o fato de os modistas, aqueles escolásticos que se ocupavam da teoria gramatical, terem criado uma teoria onomasiológica da gramática latina. É interessante observar que Tomás de Erfurt, em certo sentido o aperfeiçoador dessa corrente linguística, critica por repetidas vezes os gramáticos antigos pelos seus conceitos estruturais, insistindo que conceitos gramaticais devem ter uma base puramente semântica.

Aqui se encerra a torrente de gramáticas que são consistentes quanto à alternativa entre abordagem semasiológica e onomasiológica. As gramáticas das línguas europeias escritas desde o início da modernidade, bem como as gramáticas das línguas faladas nas colônias, compostas tipicamente por missionários, mesclam os dois modelos. A típica gramática tradicional está subdividida em morfologia e sintaxe. A morfologia trata dos paradigmas de flexão, a sintaxe das construções de dependência e do significado das formas morfológicas. Até aqui, tudo conforme com o modelo semasiológico. Depois, e na medida em que uma gramática é completa, de repente muda-se a perspectiva, e encontramos capítulos sobre interrogação, negação, advérbios locais e temporais e orações causais e concessivas, todos esses assuntos claramente semânticos. Isso significa que essas gramáticas confundem de maneira incontrolada as abordagens semasiológica e onomasiológica. Esse tipo de gramática se encontra até hoje em dia. O que é particularmente desconcertante é o fato de que, naquela corrente gramaticográfica que se dedica às línguas minoritárias e que se chama tipológica, é bem aceita a afirmação (que tipicamente figura na introdução do livro) de que já que não parece útil aderir a um modelo formal de descrição, o autor oferece uma gramática de índole tradicional – e com isso quer dizer, uma gramática que não obedece a nenhum sistema consistente.

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O primeiro que reparou nesse estado de coisas foi o linguista alemão Georg von der Gabelentz. Na sua introdução à linguística (1891), postulou uma gramática bipartida. O primeiro sistema, chamado gramática analítica pelo autor, deve tomar o ponto de vista do ouvinte ou leitor e explicar as construções, enquanto o outro sistema, chamado gramática sintética, deve tomar o ponto de vista do falante ou escritor e descrever os recursos expressivos que a língua lhe coloca à disposição. Na sua gramática chinesa, o autor levou essa metodologia a cabo, comprovando com isso que uma gramática bipartida conforme esse esquema é viável e útil. Tal ideia foi resumida pelo linguista dinamarquês Otto Jespersen, porém depois não resultou muito frutífera.

Como é bem sabido, o estruturalismo americano declarou a necessidade de uma gramática puramente estrutural. Muitas das gramáticas produzidas sob tal orientação, com exemplar clareza as gramáticas tagmêmicas publicadas na década de 1960, não somente observam uma sistemática puramente estrutural, mas também se negam – perfeitamente obedientes à doutrina bloomfieldiana – a dar informação semântica alguma. Com isto passam da medida, simultaneamente, em dois aspetos: o primeiro, porque uma gramática exclusivamente semasiológica não serve ao falante ou escritor e é, portanto, incompleta; e o segundo, porque uma gramática semasiológica não pode, de maneira alguma, ser “assemântica”. Muito pelo contrário, a semasiologia, no entendimento dos linguistas do final do século 19 e da primeira parte do século 20, é quase o mesmo que a semântica linguística, vale dizer, uma semântica que, em vez de pressupor uma lógica de conceitos que busca na língua, parte das expressões e as explica.

A ideia de que uma gramática deve ser puramente estrutural foi, como sabemos, levada ao extremo pelo modelo da gramática gerativa, o qual, porém, não produziu descrição linguística completa de quase nenhuma língua. A partir dos anos 1970, surge uma corrente de linguística funcional que se incumbe da produção de gramáticas de línguas minoritárias. Ainda que a maioria das gramáticas então produzidas se identificasse com as gramaticas ditas “tradicionais” já mencionadas, podem-se citar ao menos algumas gramáticas onomasiológicas. O Summer Institute of Linguistics iniciou a produção, nos anos 1970, de uma série de gramáticas que deixaram de lado o modelo tagmêmico e se denominaram ‘discourse grammar’ (testemunho a homenagem Abraham et al. 1995), o nome utilizado então em lugar de ‘functional grammar’.

Resumindo, então: Tanto uma gramática puramente estrutural como uma gramática puramente funcional são parciais e devem complementar-se mutuamente. Uma gramática em duas partes (como Lehmann 208ff) é necessária tanto por razões teóricas como por razões práticas. As razões teóricas dizem respeito ao sistema que subjaz à organização da gramática em capítulos e seções. Uma gramática deve tratar junto (numa mesma seção) o que é parecido na língua. Porém, temos que optar por tratar junto ou bem o que é parecido semanticamente ou bem o que é parecido formalmente. Isso nos força a descrever a língua com base em dois sistemas independentes. As razões práticas concernem ao usuário. Uma gramática funcional é inútil para o ouvinte e leitor, bem como uma gramática estrutural é inútil para o falante e leitor. Esta última experiência tem sido vivenciada por todos os tipólogos que têm tentado explorar gramáticas estruturais na sua pesquisa comparativa: visto que uma questão de tipologia gramatical opera forçosamente com um denominador comum de natureza funcional, para tal fim só serve uma gramática que ofereça esse ponto de vista. Boa parte das gramáticas publicadas na época do estruturalismo resulta, assim, inúteis até para os profissionais, para não mencionar os leigos.

Os termos ‘gramática onomasiológica’ e ‘semasiológica’ são altamente enrolados, fáceis de confundir e pouco espalhados na disciplina. Já utilizei os termos alternativos, ‘gramática funcional’ e ‘estrutural’, muito melhor estabelecidos na linguística contemporânea.

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Porém, temos que evitar dois mal-entendidos. Primeiro, as gramáticas funcional e estrutural não se distinguem por tratarem uma das funções e a outra das estruturas da língua. Ao contrário, ambas tratam de ambos os aspetos. A diferença é que a gramática estrutural desenvolve uma sistemática estrutural e fornece as funções das construções, enquanto a gramática funcional desenvolve uma sistemática funcional e converte as operações e conceitos cognitivos e comunicativos em expressões com as suas estruturas formais. Em segundo lugar, observamos, na linguística do meio século passado, uma oposição totalmente estéril entre funcionalismo e formalismo. Um linguísta que pretende descrever a gramática prestando atenção exclusiva às estruturas sem preocupar-se jamais com as funções preenchidas por essas é simplesmente um mau linguista; e um linguista que pretende pesquisar as funções da língua sem basear as suas teorias funcionais numa análise das estruturas é igualmente um mau linguista. Portanto, se esta contribuição leva o título de ‘gramática funcional’, nenhuma prioridade dessa abordagem está implicada. Qualquer gramática completa é tanto estrutural como funcional. A gramática funcional

Enquanto as gramáticas que são ou se dizem estruturais não fazem falta, há pouquíssimas gramáticas funcionais. Porém, algumas variedades da linguística funcional têm produzido modelos de gramática funcional que se podem aplicar na descrição. Faço referência, em particular, aos domínios funcionais preconizados, entre outros, por Talmy Givón (1993) e Hansjakob Seiler (2000). A ideia que subjaz a esse conceito é a seguinte: O total dos significados gramaticais transportados pelos formativos e as construções gramaticais das línguas do mundo se deixa organizar num conjunto não demasiado grande de domínios que têm certa coerência funcional. Esses são subordinados às duas funções mais gerais da linguagem humana, a cognição e comunicação. O conjunto enumerado em parece satisfazer às línguas conhecidas até hoje.

D3 . Domínios funcionais da linguagem domínio funcional subdomínios importantes

apreensão e nominação sistemas de categorização, tipos de conceitos, individuação de objetos

modificação de conceito atribuição, aposição

referência determinação (incl. dêixis), fora

possessão possessão na referência, predicação possessiva, possessão e participação

construção do espaço pontos de referência, relações locais, regiões espaciais, propriedades espaciais e figurais de objetos

quantificação quantificação na referência / na predicação

predicação apresentação, existência/estado, caracterização

participação controle e afeto, papéis de participante centrais e periféricos

orientação temporal tipos de situação, aspectualidade, caracteres verbais e modos de ação; tempo absoluto, relação temporal

contraste, comparação, graduação

negação, comparação, graduação, intensificação

Nexo reprodução de fala, orações de conteúdo, relações interproposicionais

estrutura informacional dinamismo comunicativo, estrutura do discurso

ilocução e modalidade afirmação, pergunta, exclamação, pedido e comando, exortação, obrigação, volição, possibilidade, evidencialidade, modalização

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Ao julgar a utilidade desse quadro, é necessário levar em mente que a associação de funções e estruturas nas línguas é múltipla. Portanto, uma estratégia estrutural de uma língua não se deixa necessariamente subsumir exaustivamente sob um dos domínios. Muito pelo contrário, o caso normal será que uma estratégia sirva em mais de um domínio, preenchendo várias funções simultaneamente ou alternativamente. Isto não é um ponto fraco do modelo, mas ao contrário, está previsto nele.

Eis um exemplo que ilustra a questão: uma análise semasiológica do português vai diagnosticar a construção [[X]Nom de [Y]SN], como em casa do João, e vai reconhecê-la também em expressões como mãe do João, braço da estátua, ocupação do Iraque e muitas outras. Ora, a relação semântica que liga X e Y difere nesses exemplos: em casa do João a relação é de posse; em mãe do João é a relação de parentesco, em braço da estátua é a relação da parte ao inteiro, e em ocupação do Iraque é a relação do paciente à ação, chamada tradicionalmente genitivo objetivo. O domínio de possessão exposto acima abrange algumas dessas construções, mas não todas. Exclui a construção de genitivo objetivo, porque a relação do paciente à ação não é uma relação possessiva. Essa construção leva uma relação paradigmática à construção transitiva do tipo (alguém) ocupa o Iraque, a qual não tem contrapartida nos outros exemplos. De um ponto de vista onomasiológico, esta última construção pertence ao domínio de participação. Portanto, as fronteiras entre os domínios funcionais - se realmente se trata de fronteiras - podem separar construções estruturalmente semelhantes.

Por outro lado, o domínio de possessão abrange também as predicações possessivas, como em o João tem uma casa, a casa é do João. Essas não são construções nominais como as anteriores e sim verbais. Do ponto de vista estrutural, pertencem a outro capítulo da gramática. Do ponto de vista funcional, porém, cabe observar que a relação de posse que existe entre o João e a casa é exatamente a mesma nas expressões casa do João, o João tem uma casa e a casa é do João. Visto que o que constitui o domínio funcional da possessão é a natureza da relação entre duas entidades, ele abrange todas essas construções. E mais uma vez, é verdade que existem relações paradigmáticas entre elas. Por exemplo, a casa do João transforma-se em a casa que o João tem. Assim, a gramática onomasiológica faz passar pela mesma fieira construções que podem ter pouco a ver uma com a outra sob um ponto de vista estrutural, mas o faz com razão e controle metodológico.

Vários linguistas que se localizam na tradição estruturalista acham difícil aceitar uma descrição onomasiológica. E essa é, sem dúvida, a razão por que há muito mais gramáticas semasiológicas do que onomasiológicas. Essa desconfiança se explica provavelmente pelo fato de os critérios de uma análise onomasiológica serem menos óbvios. Porém, os critérios na análise gramatical são, em geral, os mesmos que na análise lexical: da mesma forma que o léxico onomasiológico traz todos os lexemas semanticamente relacionados com um conceito base, e, sobretudo, todos os sinônimos, a gramática onomasiológica traz todas as construções semanticamente relacionadas que mantêm alguma relação paradigmática entre si. Assim, as transformações, como modo de formalizar as relações paradigmáticas no nível sintático adquirem um papel metodológico importante na gramática funcional, afastando o perigo de arbitrariedade.

O quadro aqui não pode ser justificado nos seus detalhes e serve somente para mostrar o contexto no qual se enquadra o domínio de nexo, domínio esse a ser analisado um pouco mais a fundo. Gramática do período composto Pressupostos

O campo gramatical a ser brevemente analisado é delimitado pelos dois procedimentos metodológicos. Do ponto de vista estrutural, o objeto é a frase complexa, enquanto sob o

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ponto de vista funcional, é a proposição complexa. Uma frase complexa é uma frase que contém mais de uma forma verbal. Esta definição inclui, naturalmente, as construções que contêm mais de uma oração, mas exclui as formas verbais perifrásticas, já que cada uma delas é uma só forma verbal. Uma proposição complexa é aquela que abrange mais de uma proposição. Vista a associação múltipla entre estruturas e funções, esses dois conceitos não cobrem, naturalmente, o mesmo campo de fenômenos. Por exemplo, uma frase clivada como é complexa sob o ponto de vista estrutural, mas não cabe no domínio funcional de nexo, já que não há nenhuma relação interprop

E4 . É assim que se faz.

E por outro lado, a frase de semanticamente, grupos carnavalescos não lamentam um apoio e sim lamentam o fato o apoio seja fraco.

E5 . Grupos carnavalescos lamentam fraco apoio prestado pelo empresariado (http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/lazer

A esse sintagma nominal subjaz, pois, uma proposição. Disso, segueo que apresenta complexidade sintática pertence ao domínio de nexo, e igualmente, nem tudo o que exprime uma proposição complexa é uma frase complexa.

Frase complexa

Tendo em vista o propósito desta contribuição, não vamos aprofundar a abordagem semasiológica e nos limitaremos à estrutura geral da gramática da frase complexa. Os parâmetros que articulam esse capítulo da gramática são conceitos puramente estruturais. Os principais são os apresentados em

D4. Gramática estrutural da frase complexa

ponto de vista funcional, é a proposição complexa. Uma frase complexa é uma frase que contém mais de uma forma verbal. Esta definição inclui, naturalmente, as construções que

de uma oração, mas exclui as formas verbais perifrásticas, já que cada uma delas é uma só forma verbal. Uma proposição complexa é aquela que abrange mais de uma proposição. Vista a associação múltipla entre estruturas e funções, esses dois conceitos não

brem, naturalmente, o mesmo campo de fenômenos. Por exemplo, uma frase clivada como é complexa sob o ponto de vista estrutural, mas não cabe no domínio funcional de nexo, já que não há nenhuma relação interproposicional entre as duas orações.

E por outro lado, a frase de contém o sintagma nominal semanticamente, grupos carnavalescos não lamentam um apoio e sim lamentam o fato

Grupos carnavalescos lamentam fraco apoio prestado pelo empresariado(http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/lazer-e-cultura/2011/2/9 …)

A esse sintagma nominal subjaz, pois, uma proposição. Disso, segueo que apresenta complexidade sintática pertence ao domínio de nexo, e igualmente, nem tudo o que exprime uma proposição complexa é uma frase complexa.

Tendo em vista o propósito desta contribuição, não vamos aprofundar a abordagem emasiológica e nos limitaremos à estrutura geral da gramática da frase complexa. Os

parâmetros que articulam esse capítulo da gramática são conceitos puramente estruturais. Os principais são os apresentados em :

D4. Gramática estrutural da frase complexa

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ponto de vista funcional, é a proposição complexa. Uma frase complexa é uma frase que contém mais de uma forma verbal. Esta definição inclui, naturalmente, as construções que

de uma oração, mas exclui as formas verbais perifrásticas, já que cada uma delas é uma só forma verbal. Uma proposição complexa é aquela que abrange mais de uma proposição. Vista a associação múltipla entre estruturas e funções, esses dois conceitos não

brem, naturalmente, o mesmo campo de fenômenos. Por exemplo, uma frase clivada como é complexa sob o ponto de vista estrutural, mas não cabe no domínio funcional de nexo, já

contém o sintagma nominal fraco apoio; mas semanticamente, grupos carnavalescos não lamentam um apoio e sim lamentam o fato de que

Grupos carnavalescos lamentam fraco apoio prestado pelo empresariado cultura/2011/2/9 …)

A esse sintagma nominal subjaz, pois, uma proposição. Disso, segue-se que nem tudo o que apresenta complexidade sintática pertence ao domínio de nexo, e igualmente, nem tudo

Tendo em vista o propósito desta contribuição, não vamos aprofundar a abordagem emasiológica e nos limitaremos à estrutura geral da gramática da frase complexa. Os

parâmetros que articulam esse capítulo da gramática são conceitos puramente estruturais. Os

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Esses parâmetros produzem uma classificação cruzada de forma a permitir uma descrição semasiológica fina das frases complexas.

Semasiologia da construção de movimento com propósito

A construção que nos vai servir de exemplo para ilustrar a abordagem dupla é a construção de movimento com propósito (motion cum purpose, em inglês), ilustrada em .5

E6 . A Linda veio trabalhar conosco / na cidade.

Essa construção tem a estrutura mostrada em : D5. Construção de movimento com propósito

Explicando: A construção é um sintagma verbal (SV) complexo que contém o verbo principal (finito ou infinito) (A) e um SV dependente infinitival (SV.inf). Repare-se que não há nenhuma preposição que introduza esse SV. A é um verbo de movimento orientado.6 No caso mais simples, é um dos verbos ir e vir, como em e :

E7 . Após ser liberado fui para casa repousar (www.recantodasletras.com.br/homenagens/2911611)

Outros verbos de movimento orientado encontram-se raramente na posição de A. Assim, o verbo sair aparece em frases como . E8 . quando chego da escola meio dia, ela já saiu trabalhar (feelingsjust.tumblr.com/.../vou-contar-as-voces-uma-coisa-que-vi-hoje-quando-eu)

Mas ao se pesquisar, no Google, a incidência da colocação saiu trabalhar, observa-se que é encontrada ao mais 113 vezes (19/05/2011),7 enquanto a colocação saiu para trabalhar é encontrada 120.000 vezes. Do mesmo modo, o Google menciona 24 provas de subiu cantar, como em , mas 2.310 exemplos de subiu para cantar.

E9 . nosso amigo Anderson Nogueira estava presente e subiu cantar 3 musicas com o loirinho (www.youtube.com/user/danimosena)

Outros verbos de movimento orientado, como entrar e baixar, não são usados nessa

construção. B em é um local que representa a meta do movimento. Deve ser simples, como em e :

5 Embora esta construcão esteja firmemente estabelecida no sistema do português (como, aliás, no de muitas outras línguas), não parece estar igualmente firmemente estabelecida nas grámaticas dessa língua. 6 Os verbos de movimento orientado são uma subclasse gramaticalmente relevante da classe lexical dos verbos de movimento, a qual abrange também verbos de movimento não-orientado como vadear e nadar. 7 Digo “ao mais” porque não analisei os exemplos encontrados, embora consciente de que o número inclui vários irrelevantes à nossa construção. (O mesmo vale, naturalmente, para todas as cifras citadas.) No IBORUNA, encontra-se um único exemplo: o outro sai passeá(r) c’os filho e depois... o carro acaba gasolina ...

[ [ A ] V.intr ( [ B ]SAdv ) [ [ C ]V.inf ( D ) ]SV.inf

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E10 O capelão que veio a casa dar-lhe a extrema unção … conhecia-o ... (ultramar.terraweb.biz/.../Imagens_CTIG_HumbertoDuarte_AHomenagem.htm)

C é um verbo transitivo ou intransitivo em infinitivo, que pode ser acompanhado dos

seus dependentes D. Conforme dito, A é um verbo intransitivo. O uso de verbos de transporte orientado,

como trazer e levar, é muito mais restringido. Assim, no Google se encontram 68 exemplos de levou trabalhar, como em , mas 11.900 de levou para trabalhar.

E11 Eu tinha 13 anos e meu padrasto me levou trabalhar como boy no Cartório de Notas (http://www.atibaianews.com.br/index2.php)

As mesmas proporções valem para trouxe trabalhar como oposto a trouxe para trabalhar. Assim, pode-se dizer que a construção de movimento com propósito está firmemente estabelecida com os verbos básicos de movimento orientado, que são os verbos ir e vir. Alguns outros verbos de movimento orientado, como sair e subir, e os verbos básicos de transporte orientado, levar e trazer, aparecem nessa construção muito raras vezes e exclusivamente em variedades não-estândar.8 Por fim, cabe mencionar que a construção de movimento com propósito, com o verbo de movimento orientado mais básico, está na origem da gramaticalização do futuro perifrástico com ir .

A descrição semasiológica da construção em termos do sistema será, pois, a seguinte: Uma oração subordinada q segue a uma principal p. Q é uma oração infinita, reduzindo-se a um sintagma infinitival. O verbo principal é um verbo intransitivo básico de movimento orientado, em segunda linha um verbo transitivo básico de transporte orientado. A posição de sujeito deixada livre pelo infinitivo está controlada pelo sujeito do verbo principal se esse é intransitivo, e pelo objeto direto dele se é transitivo. Q segue p assindeticamente. A construção significa que o referente do sujeito de p se move para participar, ou que transporta o referente do objeto direto para que esse participe, na situação designada por q. Esta última frase da descrição semasiológica faz referência à seção da gramática onomasiológica a que passamos agora.

Nexo Passando agora à análise funcional dessa construção, encontramo-nos no domínio

funcional de nexo. Os parâmetros que estruturam este capítulo da gramática são conceitos puramente funcionais, mais precisamente, cognitivos. Como a abordagem onomasiológica é uma passagem a meios de expressão, e essa não é um mapping direto e sim uma transição gradual, no seu percurso vão aparecendo categorias gramaticais específicas com a sua face estrutural. Começamos com a visão geral do domínio funcional de nexo, que aparece em .

D6. Domínio funcional de nexo

8 É possível que sejam próprios da linguagem sincopada dos blogs em internet, como opina Maria Helena de Moura Neves.

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Aqui não vamos poder explicar todos esses conceitos, e, em vez disso, seguiremos a

hierarquia conceptual de cima para baixo para chegar à construção de movimento com propósito. Uma dependência semântica entre duas proposições pode ser constituída ou bem por uma relação interproposicional entre elas ou bem pelo fato de que certas propriedades de uma delas dependem de propriedades da outra. Isto nos dá a divisão principal do domínio de nexo. A interdependência entre proposições gerada por compartilharem certos componentes não nos vai ocupar mais aqui. As relações interproposicionais são de três tipos. O primeiro consiste da relação metalinguística levada pela oração principal ao discurso citado. No resto, cabe distinguir entre relações interproposicionais intrínsecas e extrínsecas. O critério da distinção reside na questão de se a relação interproposicional é inerente a uma das proposições ou fica fora de ambas. No primeiro caso, uma das proposições é tipicamente um argumento do predicado da outra. Esse subdomínio trata, pois, de predicados de atitudes proposicionais. A relação de reprodução de discurso poderia parcialmente subsumir-se a esse conceito. No segundo caso, a relação entre as duas proposições é estabelecida por um relator que se acrescenta a uma ou ambas delas. Este relator pode ou não ser codificado em forma de conectivo ou conjunção.

As relações extrínsecas, por sua vez, são de dois tipos, lógicas e concretas. As relações lógicas não têm nenhum conteúdo semântico e antes dizem respeito ao estatuto das proposições como asseridas, pressupostas ou hipotéticas. As relações concretas são aquelas que envolvem os conceitos de espaço, tempo, causa, contraste etc. São estabelecidas por relatores interproposicionais. Um relator interproposicional é um operador bivalente assimétrico. Na sua vaga rectiva, toma uma das proposições como argumento, formando com esta um sintagma que modifica a outra proposição. Por exemplo, em ‘p porque q’, a conjunção ‘porque’ se combina com q, formando assim uma proposição causal que modifica p. Nisso, um relator proposicional funciona como um relator de caso.

I. Relações interproposicionais A. Reprodução de discurso

i. Discurso direto ii. Discurso indireto

B. Relações intrínsecas i. Declarativa indireta: argumento de predicado fasal, modal, de comunicação,

percepção, cognição, emoção, volição, manipulação ii. Interrogativa indireta iii. Jussiva indireta

C. Relações extrínsecas i. Relação lógica

a) Coordenação lógica: conjunção, disjunção, explicação b) Condição

ii. Relação concreta: local, temporal, modal, causal, final, concessiva, contrastiva, comparativa

II. Interdependência de proposições A. Interdependência de referência temporal e aspectualidade B. Interdependência de referência de participantes C. Estatuto informacional das proposições

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Desse modo, um relator proposicional converte a proposição com que se combina num ponto de referência para a proposição modificada. A proposição de referência é subordinada, enquanto a outra é a proposição principal. Muitos relatores têm contrapartidas inversas de maneira que o falante pode escolher a qual das proposições atribuir o estatuto subordinado. Por exemplo, em vez de ‘p depois de que q’ podemos ter ‘q antes de que p’; e em vez de ‘p porque q’ podemos ter ‘q de modo que p’. A escolha depende de considerações de estrutura informacional, coesão textual e relevância/ênfase.

A assimetria entre as duas proposições numa relação interproposicional concreta pode refletir-se na estrutura sob forma de uma construção em que a proposição de referência é codificada por uma oração subordinada enquanto a proposição principal é codificada como oração principal. Para maior clareza, os conceitos de relações interproposicionais específicas definidas abaixo serão ilustrados por tais frases complexas assimétricas. Porém, cabe ter em mente que toda relação interproposicional pode também ser codificada por orações coordenadas. Os relatores interproposicionais coordenativos diferem semanticamente dos subordinativos por terem a sua vaga rectiva ocupada por uma referência dêitica ou anafórica à oração subordinada. Por exemplo, em vez de p porque q podemos ter q, portanto p. A conjunção coordenativa portanto contém o demonstrativo tanto, que ocupa a posição rectiva do relator interproposicional por e faz referência a q.

Onomasiologia da construção de movimento com propósito

Numa relação causal da forma ‘p causa q’, p é a causa ou a razão de q, e q a consequência ou o resultado de p. Em , a subordinada especifica a razão da principal.

E12 A Linda afogou-se porque não via nenhum futuro para a linguística. O motivo de uma ação pode ser um propósito que o agente persegue, como aparece em . E13 A Linda afogou-se porque queria que a lagoa transbordasse.

Neste subtipo de período causal, a oração principal é agentiva, quer dizer, tem a estrutura semântica ‘A faz P’, enquanto a subordinada tem a estrutura semântica ‘A quer q’. Ora, a configuração ‘[A faz P] é causado por [A quer q]’ subjaz à relação interproposicional chamada final. Algumas línguas têm conjunções subordinativas cujo significado compreende justamente o componente sublinhado dessa configuração, como é o caso do português para. Isto aparece comparando-se com .

E14 A Linda afogou-se para que a lagoa transbordasse.

A relação paradigmática entre e pode descrever-se por uma transformação. Isso mostra que a relação final está baseada na relação causal combinada com o conceito de volição. Ora, dada uma relação ‘p causa q’, aquele que controla p também controla, mediatamente, q. É, portanto, uma configuração natural que p e q tenham o mesmo agente, como é o caso em .

E15 A Linda afogou-se porque queria chatear seu marido.

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A relação final com sujeito idêntico é tão básica que é gramaticalizada em muitas línguas.9 A construção dedicada a essa configuração aproveita o fato de haver controle anafórico de sujeito através de orações. Em tal configuração, o predicado da subordinada pode ser um infinitivo, como em .

E16 A Linda afogou-se para chatear seu marido.

Mais uma vez, a relação paradigmática entre e é regular e, portanto, suscetível de uma descrição transformacional. Ora, numa situação em que A faz P para fazer Q, a ação P mais básica é um movimento de A. E vice-versa, vista a essencial inércia humana, se alguém se move, o faz com um propósito. Portanto, uma configuração frequente da relação interproposicional final é o movimento com propósito, como aparece em :

E17 A estrela subiu ao palco para cantar.

A construção de é a mesma de . Em outras palavras, ainda que exprima um movimento com propósito, não apresenta nenhuma construção particular que difira do infinitivo final visto em . Contudo, podemos restringir mais ainda as condições: o movimento do agente é um movimento genérico, quer dizer, não implica mais que a oposição básica de dêixis espacial, como em e :

. A Linda veio trabalhar conosco / na cidade. . Após ser liberado fui para casa repousar

Especificando assim cada vez mais as condições semânticas que valem para a relação final entre p e q, chegamos finalmente ao movimento com propósito propriamente dito. Este representa, portanto, uma combinação de proposições ‘q causa p’ tal que p é ‘A se desloca a uma meta’ e q é ‘A quer participar numa certa situação’. Tal combinação de proposições codifica-se pela construção de movimento com propósito, esquematizado em . Esta última frase da descrição funcional faz referência ao capítulo da gramática estrutural () que vimos antes.

Conclusão

Quem compara os dois quadros e , da gramática estrutural da frase complexa e do domínio funcional de nexo, se dá conta imediata de que os conceitos desta última abordagem são bem familiares da nossa gramática escolar e até das descrições linguísticas de línguas minoritárias, enquanto os conceitos da gramática estrutural faltam quase por completo nesse campo da gramática. Assim, o exemplo do período composto mostra com particular claridade quão inconsistentes são as nossas gramáticas tradicionais: embora sejam preponderantemente semasiológicas na sintaxe nominal e verbal, rependinamente mudam de perspectiva na gramática sentencial, assumindo uma abordagem onomasiológica.

Ao mesmo tempo, vemos que o preconceito estruturalista conforme o qual a base cognitiva e comunicativa da gramática onomasiológica não possa ter fundamento na linguística e só poderia ser algo de lógica carece de justificação. O método para constituir os domínios funcionais é a comparação tipológica. E a base metodológica para subsumir construções diferentes sob um domínio funcional são as relações paradigmáticas regulares que essas levam entre si.

9 V. Moura Neves 2011: 888 para o português.

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Assim concluímos que uma gramática completa tem duas partes complementares, uma que parte das funções cognitivas e comunicativas e mostra como essas se preenchem na língua em questão por construções gramaticais, e outra que parte das expressões com a sua estrutura e mostra quê significados têm e quê funções preenchem.

FUNCTIONAL GRAMMAR ABSTRACT: Although there is a well-known model of linguistic description by the name of the title of this article (Functional Grammar), the title actually refers to a grammaticographic concept in a wider sense which is essentially independent of particular models of description. Given the complementary approaches to linguistic analysis and description, viz. the onomasiological alias functional and the semasiological alias structural approach, 95% of the grammars published to this day are structural grammars. This is true both of the purely structural grammars in the tradition of American structuralism, including Generative Grammar (to the extent it has produced grammatical descriptions), and of grammars that do include the meaning and function of the constructions described. The far majority of these grammars start from the structures of linguistic expressions, analyze these and thus arrive at their meaning or function. That is the semasiological approach. An onomasiological (or functional) grammar starts from the concepts, operations and functions underlying language and seeks the strategies and constructions which in the particular language code and fulfill them. That is the approach taken by the other 5%. This imbalance is unfortunate, because users consult a grammar both in their capacity as speakers and as hearers; but only a functional grammar corresponds to the point of view of the speaker. It is therefore important that more linguistic descriptions take this approach. One of the reasons why it is so seldom taken is that there is an inveterate tradition in (both philologically and structurally oriented) linguistics to the effect that a scientific basis for a functional approach does not exist. The lecture will falsify this assumption. There is, by now, both a sound theoretical basis for a functional grammar and a large set of specific functional domains which are known in sufficient detail to base an onomasiological description on. This will be illustrated from the functional domain of nexion (whose structural counterpart is complex sentence formation). Particular attention is paid to the complementary relationship between functional and structural grammar.

KEYWORDS: Functioal Grammar; Structural Grammar; Grammaticographic. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Linguística funcional: princípios, temas, objetos e conexões

Maria Helena de Moura NEVES10 RESUMO: O estudo dedica-se a traçar um panorama de propostas funcionalistas das diferentes vertentes, a partir da verificação dos princípios funcionalistas que estariam em relevância, nos diferentes casos. Entende-se que por aí pode ficar revelado o caminho que leva ao abrigo diferenciado de determinados temas e de determinados objetos de análise, e, muito especialmente, o caminho que leva ao aproveitamento mais efetivo, em cada proposta, de determinadas conexões com outros campos de conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo; Deslizamentos categoriais; Dicionário e gramática.

[As abordagens funcionalistas] se caracterizam, antes de tudo e principalmente, pela visão de que a linguagem deve ser entendida, em primeiro lugar como um meio de comunicação humana em contextos cocioculturais e psicológicos, e de que esse fato deve determinar nossa consideração de como a linguagem deve ser modelada. (BUTLER, Functional approaches to language, 2005)11.

Introdução

Escolhi tratar aqui, daquilo que tem representado, nas minhas atividades de pesquisa e ensino, o abrigo teórico em que me movo, e que tenho indicado como um Funcionalismo sem bandeira nem filiação exclusiva.

Compete-me, então, esboçar exatamente o que o título desta conferência registra: os princípios que me movem, os temas que ressaltam, os objetos de escolha de análise e as conexões que naturalmente se delineiam, pela própria escolha das propostas.

De tudo isso, como exposição, farei um apanhado, e oferecerei como amostra uma atividade a que me tenho dedicado e de que pouco tenho falado em minhas publicações, atividade na qual as escolhas de princípios, temas, objetos e conexões ficam patentes. Faço-o especialmente para dizer que, também nela, diferentemente do que se poderia pensar, são princípios funcionalistas que guiam minhas decisões e minhas ações.

Trata-se da atividade de elaboração de dicionários em que me tenho envolvido, dentro de uma equipe, na UNESP de Araraquara, com publicação de três obras, em 1990, 2002, 2004, respectivamente, e com uma obra (um thesaurus) em elaboração12.

Quero justamente dar uma amostra do que representa, do ponto de vista teórico, buscar ver na elaboração de dicionários uma explicitação da gramática da língua (em função), ou seja, formular e registrar informações de natureza dicionarística, mas com a nítida noção de que o que se está pretendendo registrar é uma lexicogramática dos itens. Isso significa entender que, vistos no ponto de partida, a formulação e o registro de informações de natureza dicionarística são uma tradução lexicográfica de resultados de sentido captados no uso, e daí

10 UPM - Universidade Presbiteriana Mackenzie, Centro de Comunicação e Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras; UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquista Filho, Câmpus de Araraquara, Faculdade de Ciências e Letras, Departamento de Linguística. Araraquara-SP, Brasil. CEP: 14801-308. E-mail: [email protected]. 11 Tradução minha de: Functionalist approaches [....] are characterised first and foremost by the claim that language should be seen primarily as a means of human communication in sociocultural and psychological contexts, and that this fact must determine our view of how language should be modelled. (BUTLER, 2005, p. 4). 12 Eu poderia ainda falar de outra equipe, a que fez o primeiro Dicionário grego-português, em 5 volumes, publicados sucessivamente em 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, de cuja coordenação participei, juntamente com duas colegas da UNESP, e em cuja elaboração também atuei.

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traduzidos para formulações abrigáveis em um dicionário, que são sempre tidas como informações sobre itens, não sobre construções, como em uma gramática.

Além disso, vou-me deter mais especialmente nas conexões, porque é por elas que chego mais limpidamente à questão de indeterminação de fronteiras na gramática, o ponto que mais ficará em evidência no exame de usos que farei, em contraponto às apresentações dicionarísticas que aqui entrarão como amostra de como as obras lexicográficas estão comprometidas com a gramática. Princípios

Quando se fala de descrição da língua em uso, de língua em função, fica implicado que a consideração das estruturas lingüísticas se pauta pelo que elas representam de organização dos meios linguísticos que expressam as funções a que serve a linguagem.

Nessa linha, são lições básicas de uma gramática de direção funcionalista, como aponto em Neves (2006): 1) A linguagem não é um fenômeno isolado, mas, pelo contrário, serve a uma variedade de propósitos (Prideaux, 1987), e, portanto tem motivações: há uma competição de forças (externas e internas à língua), que, vindas de diferentes direções e possuindo natureza diferente, buscam equilibrar a forma da gramática. 2) A língua (e sua gramática) não pode ser descrita nem explicitada como um sistema autônomo (Givón, 1995), imune a uma relação com fatores externos de ativação: embora o sistema lingüístico exiba algum grau de arbitrariedade, ele se ativa motivado por fatores externos (e de mais de um tipo). 3) As formas e os processos da língua (a gramática) são meios para um fim, não um fim em si mesmos (Halliday, 1994): na atividade bem-sucedida, os fins são os correlatos das motivações.

Nesses três princípios entra a importância das motivações de uso e das necessidades comunicativas, às quais voltarei adiante, com uma sugestão em figuras que elaborei.

Isso é o que estará na base da amostra de análise de entradas de dicionários que vou oferecer. Temas Subordinados a esses princípios, vêm os temas de uma consideração funcionalista da gramática13: 1) relações entre discurso e gramática (porque o discurso conforma a gramática, mas

principalmente porque ele não é encontrável despido da gramática); 2) liberdade organizacional do falante, dentro das restrições construcionais (porque o falante

processa estruturas regulares, mas é ele que faz as escolhas que levam a resultados de sentido e a efeitos pragmáticos);

3) distribuição de informação e relevo informativo (porque os diversos eventos têm, inerentemente, diferente importância comunicativa, mas é o falante que lhes confere relevo, segundo seus propósitos);

4) fluxo de informação e fluxo de atenção (porque no discurso há sempre uma informação que flui, mas é o falante que dirige, dentro de um ponto de vista, o fluxo de atenção que “empacota” a informação, para apresentá-la ao ouvinte);

Fica assumida a existência das seguintes propriedades na organização gramatical14: (i) caráter não-discreto das categorias; (ii) fluidez semântica, com valorização do papel do

13 A base é Neves (2006, p. 17).

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contexto; (iii) gradualidade das mudanças e coexistência de etapas; (iv) regularização, idiomatização e convencionalização contínuas. Conexões

Considerados tais princípios e tal natureza dos temas que se oferecem à incursão do pesquisador, pode-se entender que uma teoria funcional seguramente se assume em conexão com dois outros campos teóricos: o cognitivismo e o socioculturalismo. Com a primeira conexão (cognitivista) têm especial ligação, por exemplo, as chamadas Gramática funcional (FG/GF), Gramática discursivo-funcional (FDG/ GDF), Gramática de papel e referência (RRG)15, bem como o Funcionalismo da Costa Oeste (de Givón e outros). Com a segunda conexão (socioculturalista) tem especial ligação a Gramática sistêmico-funcional (SFG/GSF).

Nas vinculações com essas outras duas teorias, chegam algumas escolas / autores a desviar para uma quase fusão ou combinação de seu funcionalismo com tais propostas, embora seja evidente, por exemplo, que (como mostra Butler, 2005) teorias cognitivistas como a Gramática cognitiva ou uma Gramática das construções (também de base cognitivista), têm suportes epistemológicos e assunções básicas que diferem das funcionalistas, indo em busca de metas e respostas diferentes. As conexões, entretanto são evidentes: 1) Partindo da conexão com o cognitivismo – mas sempre abrigando as relações com as determinações situacionais / socioculturais – chega-se à noção de que a gramática inclui o embasamento cognitivo das unidades lingüísticas, o que se dá no conhecimento que a comunidade tem a respeito da organização dos eventos e de seus participantes (Beaugrande, 1993). 2) Partindo da conexão com o socioculturalismo – mas sempre abrigando as determinações do domínio cognitivo – chega-se à noção de que há um componente conceptual como força condutora por trás do componente gramatical, entretanto a gramática é susceptível às pressões do uso (Du Bois, 1993), ou seja, às determinações do discurso (Givón, 1979b), visto o discurso como a rede total de eventos comunicativos relevantes (Beaugrande, 1993). Por aí, fica estabelecido que a gramática se resolve no equilíbrio entre forças internas e forças externas ao sistema (Du Bois, 1985), e essas forças externas são tanto as cognitivas como as socioculturais16. Objetos

Nesta direção das reflexões, seleciono três objetos de análise17: 1) motivação icônica e competição de motivações (porque as forças externas ao sistema interagem com as forças internas, em contínua busca e manutenção de equilíbrio); é o que explorarei nos gráficos 2 e 3; 2) gramaticalização, e suas bases cognitivas (porque a atividade do discurso pressiona o sistema, chegando a reorganizar o quadro das estruturas lingüísticas, embora dentro de regularidades previsíveis); é o que explorarei no gráfico 1; 3) fluidez de categorias, e prototipia (porque, no lento processo de extensão de membros de uma categoria, há uma constante alteração de limites, com redefinição de protótipos).

14 Ver Neves (2002, p.176). 15 Van Valin & LaPolla, 1997, p. 3 dizem que o estudo do uso da língua em diferentes situações sociais não é uma prioridade. 16 Ver Neves (2006, p.16). 17 A base é Neves (2006, p.20-24).

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Para o que acabo de apontar quanto à fluidez de categorias (o objeto de estudo 3), trago, mais adiante, as indicações da análise ilustrativa que escolhi fazer a partir de dicionários gerais de língua, particularmente, da língua portuguesa.

Por outro lado, para o que apontei nos objetos de estudo 1) e 2) trago, a seguir, três esquemas ilustrativos daquilo que representa: a) o DINAMISMO DA GRAMÁTICA, mostrado pela gramaticalização (esquema 1, logo a segui); b) a ATIVAÇÃO DA GRAMÁTICA, mostrada pela motivação icônica e pela competição de motivações (esquemas 2 e 3, na sequência).

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Explanando: Partindo-se da linguagem como negociação entre os interlocutores (novamente com

fundamento nas mais básicas lições funcionalistas), fica ela entendida como resultante das motivações de uso somadas às necessidades comunicativas. Esse quadro desemboca exatamente no acionamento das duas categorias que respondem a essas motivações e a essas necessidades: de um lado, INFORMATIVIDADE , de outro, ECONOMIA.

São características da INFORMATIVIDADE , no esquema registrado, descendo-se pela esquerda:

� aumento na forma fônica;

� aumento da complexidade;

� maior dispêndio de tempo no enunciado;

� relação (mais) direta entre forma lingüística e estrutura da experiência.

Em correlação negativa, são características da ECONOMIA, no esquema registrado, descendo-se pela direita:

redução da forma fônica;

perda de complexidade;

rapidez do enunciado;

relação mais frouxa entre forma linguística e estrutura da experiência.

Ora, relacionados a essas quatro características estão estes fatores (no centro), respectivamente:

frequência de uso;

existência de marcas;

velocidade de processamento;

grau de iconicidade.

Reguladas por esses quatro fatores as quatro características chegam aos seguintes resultados (à direita), respectivamente:

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A frequência de uso leva a:

A existência de marcas leva a

A velocidade de processamento leva a

A iconicidade leva a

E, afinal, INFORMATIVIDADE se liga a maior elaboração e a expressividade, enquanto ECONOMIA se liga a simplificação e a normalidade, tudo isso dando um mapa equilibrado do uso da linguagem para responder a motivações e a necessidades comunicativas.

Motivações e/ou necessidades (como desejo de clareza, desejo de expressividade, busca de rotinização, busca de regularização, redução ou ampliação de contexto, obtenção de maior transparência ou de maior opacidade) facilmente serão encontradas no exame das diversas variações que os enunciados exibem. Por exemplo, muito disso se pode ver na criação de novas locuções conjuncionais adverbiais: mais claras e mais expressivas, menos rotinizadas e menos regularizadas, mais transparentes do que os já gastos itens gramaticais que são as conjunções simples (por exemplo, um depois que, um logo que, um assim que em relação a um quando). Também muito disso se pode ver na continuação do processo de gramaticalização de certas locuções conjuncionais adverbiais que, já num determinado momento, se aproximam de valores mais neutros de conjunções simples, mostrando-se mais opacas, mais reduzidas, mais regulares, mais rotineiras (o caso, por exemplo, do porque, mais reduzido e mais opaco do que qualquer locução condicional causal.

Afinal, fala-se de gramática, mas, diferentemente do que muitas vezes se tem entendido, fala-se confortavelmente de discursividade (de um lado) e de determinações cognitivo-perceptuais (de outro lado) –“conexões” que invoquei –, justamente aquilo que realmente nos ensina o trato com a análise do uso lingüístico. Um outro modo de mostrar o processamento está no ESQUEMA 2, a seguir:

maior transparência, quanto à INFORMATIVIDADE , e maior opacidade, quanto à ECONOMIA.

amliação do contexto, quanto à INFORMATIVIDADE, redução do contexto, quanto à ECONOMIA;

expressividade, quanto à INFORMATIVIDADE, e regularização, quanto à ECONOMIA;

clareza, quanto à INFORMATIVIDADE , e rotinização, quanto à ECONOMIA;

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Explanando: O centro do esquema mostra um círculo vicioso (e ao mesmo tempo virtuoso) em que

informatividade e economia, duas qualidades da linguagem, se combinam em contínuo no uso lingüístico, o que resulta do fato de que, canonicamente, de um lado (ver à esquerda, no alto) economia elevada representa baixa informatividade, e de outro lado (ver à direita, no alto) informatividade elevada representa baixa economia. O primeiro caso (à esquerda) leva à busca de reforço (para a informação) e o segundo caso (à direita) leva à busca de desbaste (na informação). Ou seja, o que poderia constituir resultado negativo da alta informatividade (que é a baixa economia) corrige-se, fica compensado (no centro, abaixo) com a própria economia, com a busca de desbaste; e, por outro lado, o que poderia constituir resultado negativo da alta economia (que é a baixa informatividade) corrige-se com a própria informatividade, com a busca de reforço, o que acaba por representar correção e compensação (ver ao alto), ou seja, compatibilização e equilíbrio.

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Nos dois esquemas apresentados se envolve a ICONICIDADE, que é, afinal, a própria determinação cognitiva dos processos de levam a variação e a mudança na língua.

Afinal, no terceiro esquema eu explicito o “dinamismo da gramática” pela gramaticalização.

Como se lê (colocado no alto desse esquema 3, como rubrica inicial do processo), o dinamismo da gramática é visto a partir de uma visão em PANCRONIA. Essa visão domina o percurso de caixas que descem verticalmente pelo centro e que podem ser lidas como segue.

a) Nesse eixo vertical central, com fundamento nas mais básicas lições funcionalistas, que aqui expus, parto exatamente da categoria “gramática”, definida como de

equilíbrio instável / dinâmico / provisório,

devido a pressões externas e internas,

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gradualidade das alterações semânticas + + categoriais

equilíbrio provisório/ dinâmico / instável

categorias não discretas

o que configura a existência de

b) Nesse ponto da descida, ou seja, assentado o estatuto da gramática como instável, dinâmica e provisória em seu equilíbrio, flechas apontam para a direita e para a esquerda, e vão tocar as duas linhas laterais que, descendo da rubrica PANCRONIA, marcam as duas perspectivas pelas quais a gramática pode ser vista em seu uso: de um lado (esquerdo), a “perspectiva sincrônica”, na qual se pode verificar, no USO, a “fluidez de padrões”; do outro lado (direito), a “perspectiva diacrônica”, na qual se pode verificar, no USO, a “alteração de padrões”.

c) Ambas as perspectivas anunciam a existência de uma concorrência de formas (no centro): fica registrado que “padrões emergentes’ continuamente “se somam” a “padrões estáveis”.

Isso leva a

Essas alterações se resolvem, na “perspectiva sincrônica”, de um lado (esquerdo), em “variação”; e, na perspectiva diacrônica, do outro lado (direito), em “mudança”. A caixa seguinte, na descida central, mostra a chegada à “reanálise”, que desemboca, mais uma vez, em

E mais uma vez se chega, nesse círculo vicioso, a um

Ora, facilmente se postula que a) A chegada à gramática de uma expressão (a gramaticalização) se inicia por forças que se encontram fora da estrutura lingüística, e aí se inclui prioritariamente a cognição. b) Existe uma correlação (diagramaticamente) icônica entre o “empacotamento” cognitivo e o “empacotamento” gramatical, reconhecendo-se a possibilidade de que as diversas línguas apresentem diferenças na codificação estrutural de um mesmo evento ou na codificação de semelhantes tarefas do processamento da fala (pelo fato de haver diferentes recursos à disposição do falante nas diferentes línguas). c) O componente conceptual é, mesmo, a força condutora que está por trás do componente gramatical, colocando os níveis estipulados para a gramática em interação com esse

categorias não discretas.

padrões estáveis +

+ padrões emergentes

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componente cognitivo (mesmo que ele seja considerado fora do componente propriamente gramatical). d) Exatamente por essa relação entre um processamento global de origem e um processamento linear e segmentável de chegada, fica evidenciado que os limites entre as categorias gramaticais são vagos, difusos, e até móveis: cada membro da categoria pode ser conceituado segundo o grau de semelhança que tenha com o membro que configura a representação mais característica dessa categoria (prototipia), dentro de um conjunto de categorias naturais, formadas por ação da analogia e por interpretação metafórica, com contínua redefinição de sentidos (incluída aí a estereotipia).

Com esta última questão – a fluidez dos limites categoriais na gramática (NEVES, 2010a; 2010b) – eu chego à minha amostra prática, que abrange dois campos de categorização da gramática do português: uma zona mais evidentemente “lexical” e uma zona exatamente de transição entre o considerado “(mais) lexical” e o considerado “(mais) “gramatical”). O objetivo geral da pesquisa foi verificar em que medida e de modo a apresentação lexicográfica abriga esse deslizamento funcional (um típico caso de “gramaticalização”).

Uma amostra de análise

O que ofereço a seguir retoma dois estudos (NEVES, 2010b; NEVES, no prelo), em que reconheço a necessidade que têm as obras lexicográficas de, seja qual for a direção teórica que lhes dê suporte, oferecer uma categorização que organize as entidades sob certos critérios, o que, aliás, ocorre em qualquer organização de campos, na visão humana das entidades. O que pus em discussão foi a noção do que possa significar a adoção dos rótulos disponíveis, se sabemos que a visão categorizadora não pode simplificar-se na noção corrente que costuma sustentar a sua aceitação: a noção de que, realmente, as categorias têm limites rígidos e estanques. Selecionaram-se como objeto de análise seis dicionários: dois mais antigos, o Aulete (1948) e o Melhoramentos (1964); dois dicionários contemporâneos, o Aurélio (1999) e o Houaiss (2001), que já sugerem regras de acionamento gramatical, além daquelas tradicionais regras de flexão e das indicações ortográficas dos dicionários tradicionais; dois dicionários baseados em usos (elaborados a partir de bancos de dados), que registram indicações gramaticais mais explícitas ainda, o já rotulado como Dicionário de usos do português do Brasil (2002), doravante DUP, e o Dicionário UNESP (2004), doravante Dic. UNESP18. A verificação dos usos, para cotejo, fez-se no banco de dados disponível no Laboratório de Estudos Lexicográficos da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Câmpus de Araraquara (o chamado Córpus de Araraquara), banco que constitui exatamente a fonte dos dois últimos dicionários que citei, ambos elaborados exclusivamente com base em usos19:

A primeira incursão buscou verificar, no próprio interior do léxico, esse caráter categorial contínuo, identificando casos daquilo que considero “deslizamentos” categoriais de substantivos a adjetivos, com todos os graus de avanço do processo que, com certeza, se formam, sem muita condição de decidir-se exatamente em que ponto de deslizamento a palavra se encontra, num determinado uso.

18 Devo observar que sou coautora desses dois últimos dicionários, elaborados por uma equipe de seis e de cinco linguistas, respectivamente, sob coordenação de Francisco da Silva Borba, na UNESP, Câmpus de Araraquara. 19 Há a observar que esse banco de dados se vem ampliando (sua extensão, hoje, é de mais de 220 milhões de ocorrências). Ele era, portanto, mais reduzido quando da elaboração do DUP e do Dicionário UNESP.

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Sirva como primeiro exemplo esta ocorrência encontrada no banco de dados disponível20:

(1) Avise-me a tempo para fazer um vestido à moda, saia balão e babados grandes....

A primeira indicação vai no sentido de que qualquer falante do português identificará, nessa ocorrência, que o texto fala de uma saia, não de um balão, e que, portanto, saia é o substantivo, o núcleo do sintagma. No entanto, se o falante foi a um dicionário para consultar o verbete balão, lá encontrou o registro de categoria Sm (substantivo masculino), e, seguramente, essa discrepância nem foi percebida, ou, pelo menos, não chocou. Ocorre que, na interpretação do sintagma, operou a regra (interiorizada) do sistema da língua portuguesa segundo a qual um (considerado) substantivo, posto à direita de outro, tem alguma perda da categoria substantivo e algum ganho da categoria adjetivo. Tal percepção é natural, já que, colocado no sintagma português na posição canônica do adjetivo, o substantivo faz acréscimo de propriedade(s) ao feixe de propriedades que o substantivo da esquerda já carrega, tal como opera o adjetivo (e, ainda mais especificamente, dada a maior complexidade de traços existente na configuração de um substantivo do que na de um adjetivo). Assim, no caso da frase oferecida, propriedades de “balão” são acrescidas ao feixe de propriedades que define um determinado representante da classe “saia”.

Os graus de tal sensibilização ao contexto variam, e assim varia a natureza do valor adjetivo ganho, a intensidade desse valor, e até o encaminhamento posterior do processo, na direção de alguma possível mudança categorial que seja visivelmente assimilável pela comunidade de fala.

Facilmente se observa essa variedade na natureza dos deslizamentos, no sentido de que o substantivo da direita pode, por exemplo:

a) Simplesmente subcategorizar o substantivo da esquerda (que se encaminha para um adjetivo classificador), como em (1) a (3):

(2) O quarto reversível está mobiliado com um sofá bicama. (3) A Cooperativa obrigava os compradores a adquirir 55% do açúcar cristal empacotado

por ela mesma.

b) Qualificar o substantivo da esquerda (que se encaminha para um adjetivo qualificador), como em (4) a (6):

(4) Um bedel chaleira levou-o às pressas ao Dr. Ribas. (5) Habib, o nariz colosso apontando o chão (6) A comunidade neste período é denominada comunidade clímax.

Entretanto, não é de um modo assim discreto que a categoria adjetiva se insere, já que

é muito evidente a fluidez em que se encontra a decisão subcategorial de substantivos da direita como os que ocorrem em (7) a (12), que, no todo do enunciado, podem estar qualificando, mas também podem simplesmente estar tipificando (ou ambos):

(7) Sua diretoria chegou a considerar uma solução camicase. (8) Importante lembrar que os escravos eram o elemento chave da mineração. (9) A geração blitz [...] até então não tinha dado nenhum depoimento 20 A busca no banco de dados foi absolutamente aleatória. Por economiade espaço, e dada a nenhuma relevância da informação, deixo de fornecer as referências bibliográficas de cada ocorrência.

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(10) Oh, que é, virei o homem borracha. (11) personagem camaleoa (12) à p. 230 de seu romance azorrague

Fica mais evidente ainda essa difusão de limites, para estabelecimento de (sub)categorizações, quando se verifica que oum mesmo substantivo caubói pode qualificar (13) ou tipificar (14) um substantivo da esquerda, do mesmo modo que um mesmo substantivo cristal pode qualificar (15) ou tipificar (16) um substantivo da esquerda (dadas as relações semânticas contraídas, e/ou dados os enquadramentos pragmáticos instituídos no enunciado):

(13) Mostrou [...] que seu jeito caubói de ser não é mero efeito especial. (14) Comemoram sorvendo goladas de uísque caubói. (15) olhos vidrados na sua beleza cristal (16) Arrancou Piano desse reinar uma topada numa pedra cristal

As indecisões de categorização espontânea (aquela que realmente constitui resposta da atuação linguageira) ainda se refletem em escolhas funcionais, tais como:

a) Fazer ou não a concordância de número no sintagma com os dois “substantivos”: (17) O resultado são leis centauros. (18) O escrivão revela dois depoimentos bomba. (19) os exageros da ponta das botinas agulha (20) outras trinta e quatro cartas consulta b) Manter os dois “substantivos” como formadores de um sintagma, ou compor com eles um substantivo composto (registro com hífen)21: (21) Seria um livro-brinquedo? (21) doações que ela encaminha a públicos-alvo

Dado esse tipo de situação – aqui apenas esboçada – cabe verificar qual é a contraparte

dos dicionários no tratamento da questão. Aqui reproduzo uma amostra de resultados que obtive em duas análises de substantivos que costumeiramente ocorrem nesse tipo de construção (NEVES, 2010b), questão que continuei a tratar em Neves (no prelo).

Em Neves (2010b), examinei, entre outros, os substantivos fantasma e padrão, em sintagmas como conta fantasma, ou empresa fantasma, e operário padrão, ou unidade padrão.

Nos dois dicionários mais antigos (Aulete e Melhoramentos) não há nenhuma indicação que leve a considerar um deslizamento de funções. Nos dicionários contemporâneos a questão já é tratada, mas com grau e natureza diferentes, em cada obra, ou, mesmo, em cada verbete. O Houaiss introduz, no final dos verbetes, um compartimento sob a rubrica ���� GRAM/ USO para os casos em que é oferecida alguma indicação de natureza gramatical: nos casos de fantasma e de padrão22, mantém-se a classificação inicial Sm e faz-se uma indicação que

21 Há a observar que esse tipo de decisão muitas vezes pode não representar escolha do usuário, dada a existência de algum órgão regulador da ortografia; no Brasil, por exemplo, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), elaborado pela academia Brasileira de Letras, e com poder de lei, na questão. 22 Na íntegra: a) Para fantasma, ���� GRAM/ USO seguindo um subst., ao qual se liga por hífen, é um determinante específico e significa ‘fictício, não existente, criado esp. para iludir o fisco’ (empresa-fantasma, conta-fantasma).

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apenas contempla a união dos dois elementos por hífen (a formação de um substantivo composto), o que, na verdade, desvia a reflexão do processo de deslizamento categorial, além de desrespeitar a maciça preferência dos usuários (que verifiquei quantitativamente no banco de dados) pelas construções sem hífen. O Aurélio, por sua vez, trata diferentemente os dois casos: para o Sm fantasma, a indicação vai no mesmo sentido da de Houaiss, ou seja, ele também reduz à união por hífen as construções com esse substantivo à direita de outro substantivo (com exemplos como empresa-fantasma)23; para o Sm padrão, porém, há um encaminhamento explícito para categorização como adjetivo, entretanto sem nenhum exemplo24.

Por fim, os dois dicionários que são elaborados a partir de um banco de dados contemplam o deslizamento categorial, mas não exatamente da mesma maneira. O DUP, declaradamente um “dicionário de usos”, que, realmente, só abriga usos atestados no córpus, escancara a indicação de que cada um desses Sm se usa com “função adjetiva”, contemplando diversas acepções e documentando com ocorrências sem hífen e com hífen25. O Dic UNESP, que também parte de usos, embora não se restrinja a um registro documentado, apenas anota a “associação” de um substantivo a outro (ilustrando com ocorrências sem hífen e com hífen), partindo daí para as definições lexicográficas e/ou para o oferecimento de acepções, todas claramente adjetivas26

Em resumo, verifica-se que: (i) o Houaiss, com o rótulo “GRAM/ USO”, cria, para o verbete, uma subseção que, em certa medida, já relativiza a categorização inicial Sm, e dentro dessa subseção já categoriza explicitamente fantasma e padrão como “determinantes”27, se usados “seguindo um subst.”; (ii) o Aurélio fala em “valor adjetivo”; (iii) o DUP fala em “função adjetiva”; (iv) o Dic. UNESP28 já vai à sintagmatização, falando da “associação de um substantivo a outro substantivo” (o da direita ao da esquerda, o que sugere dependência do segundo ao primeiro). Verifica-se, então, que tais reflexões gramaticais o consulente tem de operar por si, no caso de dicionários mais antigos, como o Aulete e o Melhoramentos, enquanto os contemporâneos Aurélio e Houaiss já sugerem regras de acionamento gramatical, além daquelas tradicionais regras de flexão e das indicações ortográficas dos dicionários tradicionais.

b) Para padrão, ���� GRAM/ USO após subst., ao qual se liga por hífen, é um determinante específico invariável e significa ‘que serve de modelo’, ‘exemplar’ (unidade-padrão, operários-padrão); não se modifica no pl. 23 Na íntegra: [Posposto a outro substantivo ao qual se liga por hífen, este vocábulo tem valor adjetivo e significa ‘que existe apenas aparentemente, e/ou que existe apenas no papel, e/ou que esconde propósitos fraudulentos, etc.’: � (empresa-fantasma, conta-fantasma).] 24 Na íntegra: [Posposto a substantivo, este voc. tem valor adjetivo.] 25 Na íntegra: a) Para fantasma: � [Função adjetiva] [nome+~] 7 falso; fictício: temos preferido criar pequenos monstros e funcionários fantasmas, em lugar de indagarmos nossas necessidades (AR-O) 8 imaginário; irreal: os ansiosos temem a ameaça, esse perigo-fantasma, mas ao mesmo tempo a desejam (NE) 9. mal-assombrado: o nômade garimpeiro abandona as corrutelas e arraiais fazendo surgir as cidades-fantasmas (FN) 10. fantasmagórico: Vamos chamar o primeiro batalhão de marinheiros fantasmas (PF). b) Para padrão: � [Função adjetiva] [nome+~] 5 que serve de modelo; exemplar; prototípico: Ela se firmou como um modelo padrão para as mulheres de todas as idades. (VEJ) 6 uniforme: Os trilhos são fabricados nos comprimentos padrão de 12 ou 18 m. (EFE). 26 Na íntegra: a) Para fantasma: � Associado a um S é invariável e equivale a: (i) falso, fictício: Os projetos aprovados estariam favorecendo empresas-fantasma. (ii) mal-assombrado: Até hoje os navegantes contam histórias da nau fantasma. b) Para padrão: � Associado a um S é invariável e equivale a “que serve de padrão”, “que constitui modelo”: operários padrão; famílias padrão. 27 Registre-se que esse tipo de informação não deve ter interpretação fácil do consulente de dicionário. 28 A indicação sobre a invariabilidade do segundo substantivo constitui uma evidência de que não se trata, realmente da categoria “adjetivo”, pois este concordaria com o substantivo que seria seu núcleo (o da esquerda), no caso de plural.

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Entretanto, não apenas a diferença de medida dessas indicações como também a diferença de natureza delas atesta inquestionavelmente a falta de rigidez de fronteiras na avaliação da pertença dos elementos lingüísticos a categorias firmemente rotuladoras.

Em Neves (no prelo), com consulta aos mesmos dicionários, estendi a análise a um grupo maior de substantivos, de que são amostra: alvo (como em público alvo), chave (como em palavra chave), limite (como em situação limite), mãe (como em ideia mãe), objeto (como em mulher objeto), padrão (como em língua padrão), fantasma (como em navio fantasma), pirata (como em cópia pirata), problema (como em criança problema), prodígio (como em criança prodígio), símbolo (como em cidade símbolo), esporte (como em carro esporte). Na apresentação lexicográfica desses dez substantivos, verifica-se que, num extremo de manutenção da categorização como substantivo, ou seja, sem nenhuma sugestão, pelos dicionários em exame, de gramaticalização, estão objeto e símbolo: todos os dicionários examinados, mesmo os de usos, só abrigam, nessas entradas, a categorização pura “substantivo”, o que aponta, pelo menos, para a baixa frequência de ocorrências em que se verifica deslizamento de função. No outro extremo estão os substantivos mãe, padrão, fantasma e esporte, registrados na sua direção adjetiva em todos dicionários contemporâneos. Na sequência estão chave e pirata. Um caso interessante é o de prodígio, que, sem registro ligado a adjetivação em nenhum dos dicionários contemporâneos, entretanto já tinha essa sugestão no Melhoramentos (1964).

Neste ponto, cabe voltar a acentuar o foco deste estudo, exatamente a natureza gradual, necessariamente não categórica das decisões, o que precisa constantemente nos alertar para a pouca consistência de uma prisão a rótulos, que sugerem um sim/não muito longe de existir.

A análise (NEVES, no prelo) verificou que as condições para a formação desses sintagmas variam de acordo com uma grande ordem de fatores. Em primeiro lugar, e em todos os casos, é determinante a compatibilidade semântica, já que o substantivo “qualificador” ou “tipificador” tem de pertencer a uma subclasse que seja aplicável (tal como o seria uma oração adjetiva do tipo restritivo) ao substantivo nucleador do sintagma, aquele que realmente faz a nominação. Como atribuidor de propriedade(s) a um feixe de propriedades já configurado (no núcleo nominal), o tipificador ou qualificador só pode trazer propriedades compatíveis com as desse feixe. Casos há com carga muito forte de restrições de seleção por parte do núcleo, e esse foi, aqui na nossa análise, o caso dos substantivos “atribuidores” que tiveram zero de reconhecimento nos dicionários: objeto e pirata. De fato, a atribuição do substantivo objeto a outro seleciona a categoria “pessoa”, e, mais restritivamente ainda, uma pessoa que possa constituir “objeto de desejo” de outra, como se vê claramente em mulher objeto e homem objeto; e a atribuição do substantivo pirata a outro seleciona uma categoria relativa a produção ou a criação, já que o que se “pirateia”, o que se reproduz ilegalmente, é necessariamente uma obra com autoria, como se vê claramente em cópia pirata e disco pirata. Considerações finais

Como indicou o resumo do texto, o objetivo foi traçar um panorama de propostas funcionalistas das diferentes vertentes, a partir da verificação dos princípios funcionalistas que estariam em relevância, nos diferentes casos. Entendo que, por aí, pode ficar revelado o caminho que leva ao abrigo diferenciado de determinados temas e de determinados objetos de análise, e, muito especialmente, o caminho que leva ao aproveitamento mais efetivo, em cada proposta, de determinadas conexões com outros campos de conhecimento.

Acima de tudo procurei mostrar, dentro do que une as propostas funcionalistas de análise lingüística, que é necessário pautar nossos exercícios metalingüísticos por uma visão

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que não subverta a própria natureza e direção da produção linguística, o que significa montar, para respaldo da análise, um círculo virtuoso (apesar de “vicioso”, ou por isso mesmo) que permita ter como parâmetros que: a contínua redefinição da relação entre formas e funções – e seu aproveitamento no uso – leva à readaptação contínua do sistema lingüístico; tal flexibilidade do sistema leva à multiplicidade dos arranjos; o múltiplo aproveitamento desse aparente desarranjo (virtuoso) leva à renovação; a renovação – garantida nesse caráter sempre emergente da gramática – leva à garantia de uma gramática sempre equilibrada, bastante e suficiente, sem as falhas, os vícios ou cacoetes que os desavisados ou alheados gostam de impingir-lhe, desfigurando-a e banalizando-a.

FUNCTIONAL LINGUISTICS: PRINCIPLES, THEMES, OBJECTS AND CONNECTIONS

ABSTRACT: This paper aims at offering an overview of the different functionalist approaches in all their programmes, by verifying which functionalist premises would be relevant in each case. This may be a way to elucidate the differentiated approach of certain themes and of certain objects of analysis, and especially, to contribute to a better account of certain relations between each proposal and others realms of knowledge.

KEYWORDS: Functionalism; Categorical landslides; dictionary and grammar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUGRANDE, R. A. Introduction to the study of text and discourse. Wien: Universitäts Verlag (pré-impressão), 1993. BORBA, F. S. (Coord.). Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática, 2002. ______. (Coord.). Dicionário UNESP do português contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 2004. BUTLER, C. S. Functional approaches to language. In: BUTLER, C. S.; GÓMEZ GONZÁLEZ, M. A.; DOVAL-SUÁREZ, S. M. (Eds.). The dynamics of language use: Functional and contrastive perspectives. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins, 2005, p. 3-17. BUTLER, C. S.; GÓMEZ GONZÁLEZ, M. A.; DOVAL-SUÁREZ, S. M. (Eds.). The dynamics of language use: Functional and contrastive perspectives. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins, 2005. CALDAS AULETE, F. J. Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa. 3. ed. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1948. DIRVEN, R.; FRIED, V. (Eds.). Functionalism in linguistics. Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins, 1987. DU BOIS, J. W. Competing Motivations. In: HAIMAN, J. (Ed.). Iconicity in syntax. Amsterdam: John Benjamins, 1985. p. 343-365. ______. Discourse and the ecology of grammar: Strategy, grammaticization, and the locus. Rice Symposium, Ms., University of California: Santa Barbara, 1993. FERREIRA, A. B. de H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. GIVÓN, T. Syntax and semantics: discourse and syntax. v. 12. New York: Academic Press, 1979. GIVÓN, T. Functionalism and grammar. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins publishing Company, 1995. HAIMAN, J. (Ed.). Iconicity in syntax. Amsterdam: John Benjamins, 1985.

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A natureza contínua das classes de palavras

Roberto Gomes CAMACHO29

RESUMO: A continuidade categorial é uma propriedade indiscutível da linguagem para a tradição funcionalista, que a trata como um verdadeiro universal linguístico. Além de buscar evidência sistemática para a comprovação desse axioma, o principal objetivo deste trabalho é analisar a estrutura argumental da nominalização, num esforço concentrado por demonstrar que esse mesmo princípio universal é metodologicamente útil e teoricamente válido para postular relações intralinguísticas de continuidade categorial mesmo entre classes aparentemente discretas como as de substantivo e verbo. A trajetória percorrida para a sustentação da hipótese da continuidade categorial passa necessariamente pela comprovação de uma hipótese secundária, a de preservação de valência, postulada por Dik (1985; 1997), segundo a qual a estrutura argumental é parte constitutiva da nominalização. Essa busca não teria êxito se a trajetória percorrida não utilizasse um atalho necessário, representado pela teoria prototípica de categorização. A existência de estrutura argumental, que sinaliza a representação de entidades de ordem superior, permite aproximar a nominalização de membros não-prototípicos da categoria dos verbos como formas não-finitas, enquanto a ausência de estrutura argumental, que sinaliza a representação de uma entidade de primeira ordem, permitiu aproximá-lo de membros prototípicos da categoria dos substantivos.

PALAVRAS-CHAVE: prototipicidade; classes de palavras; nominalização. Palavras iniciais

A continuidade categorial é uma propriedade indiscutível da linguagem para a tradição funcionalista, que a trata como um verdadeiro universal linguístico. Além de buscar evidência sistemática para a comprovação desse axioma, o principal objetivo deste trabalho é analisar a estrutura argumental da nominalização, num esforço concentrado por demonstrar que esse mesmo princípio universal é metodologicamente útil e teoricamente válido para postular relações intralinguísticas de continuidade categorial mesmo entre classes aparentemente discretas como as de nome e verbo.

A trajetória a ser percorrida para a sustentação da hipótese da continuidade categorial passa necessariamente pela comprovação de uma hipótese secundária, a de preservação de valência, postulada por Dik (1985; 1997), segundo a qual a estrutura argumental é parte constitutiva da nominalização. Essa busca não teria êxito se a trajetória percorrida não utilizasse um atalho necessário, representado pela teoria prototípica de categorização.

De fato, postular a existência de categorias intermediárias, como a de nominalização, implica necessariamente a existência de membros mais prototípicos de uma categoria. A existência de estrutura argumental, que sinaliza a representação de entidades de ordem superior, permite aproximar a nominalização de membros não-prototípicos da categoria dos verbos como formas não-finitas, enquanto a ausência de estrutura argumental, que sinaliza a representação de uma entidade de primeira ordem, permite aproximá-lo de membros prototípicos da categoria dos nomes.

Esse é o roteiro deste trabalho, que se divide em três seções. A seção 1 discute a questão da natureza contínua das classes de palavras; a seção 2 examina a situação da nominalização nesse contínuo categorial; a seção 3 trata de fornecer critérios discursivos para a natureza prototípica dos nomes. Os dados que servem de suporte para as posições aqui assumidas são extraídos do córpus do Projeto Nurc-São Paulo (CASTILHO, PRETI, 1986).

29 UNESP – Universidade Estadual Paulista – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Departamento de Estudos Linguísticos e Literários – São José do Rio Preto – Estado de São Paulo – Brasil – CEP: 15054-000 – email: [email protected].

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A natureza contínua e não-discreta das classes de palavras Na tradição gramatical, a divisão do discurso em partes chamadas classes de palavras

baseia-se em critérios nocionais de natureza discreta que acabam por fornecer uma abrangência supostamente universal, como se categorias próprias das línguas clássicas indo-europeias pudessem aplicar-se a todas as línguas naturais.

Todavia, a realidade é que a conhecida diversidade tipológica das línguas, com base na relação raramente biunívoca entre as categorias ontológicas e as categorias gramaticais disponíveis, não tem deixado livre de problemas nem mesmo a alegada distinção universal entre nome e verbo. E, com efeito, a literatura funcionalista sobre tipologia está repleta de evidências que comprovam essa afirmação.

Num trabalho bastante ilustrativo, Hengeveld (1992), postula que os sistemas de classes de palavras podem ser ordenados na escala contida em (1), conforme as línguas disponham ou não das quatro classes de palavras predicadoras. (1) Verbo > Nome > Adjetivo > Advérbio (HENGEVELD, 1992, p.70)

Essa hierarquia pressupõe que uma categoria de predicados é mais provável de ocorrer como uma classe de palavras distinta se ela estiver localizada mais à esquerda da escala; pressupõe, ainda, que cada estágio pode servir de ponto de corte para os diferentes tipos de línguas.

Generalizando observações como essas, Hengeveld (1992) assinala que os sistemas de classes de palavras podem ser divididos em dois grupos principais: o de línguas diferenciadas, como o inglês e o português, que têm quatro diferentes classes de palavras exercendo quatro diferentes funções, e o de línguas não-diferenciadas, como o holandês, com menos de quatro das categorias de predicados presentes nas línguas diferenciadas.

Expandindo ainda mais essas observações, pode-se afirmar que sistemas não-diferenciados de classes de palavras podem ser subdivididos em dois outros grupos: o das línguas flexíveis, em que uma única parte do discurso pode ser usada com diferentes funções, como o holandês; e o das línguas rígidas, em que falta uma parte do discurso para o exercício de algumas funções.

A Figura 1 mostra que um caso de língua com grau máximo de flexibilidade é o tongan (língua polinésia falada nas ilhas de Tonga), para a qual, uma única classe pode ser empregada, sem qualquer modificação formal, para traduzir todas as funções predicadoras exercidas por verbos, nomes, adjetivos e advérbios no português.

Um caso extremo de língua rígida é o tuscarora (língua da América do Norte da família do iroquês), que dispõe de apenas uma classe de palavra, o verbo; desse modo, para traduzir, por exemplo, o significado de nomes típicos do português é necessário usar uma predicação verbal.

1 V/N/A/Adv tongan Flexível 2 V N/A/Adv quechua 3 V N A/Adv holandês Diferenciada 4 V N A Adv inglês 5 V N A --- wambon Rígida 6 V N --- --- !xù30 7 V --- --- --- tuscarora Fig. 1: Sistemas de classes de palavras (adaptado de HENGEVELD, 1992, p. 69)

30 !xù é uma língua da família Khoisan (Coisã) falada no sudoeste da África, principalmente Botsuana e Namíbia, pelos bosquímanos ou hotentotes.

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Para dar um exemplo simples, o tuscarora necessita fazer uma predicação do tipo de “ele é jovem” para traduzir o que o português denota com o nome menino. Assim, para traduzir o que se diria em português com o menino olhou para o bode, seria necessário criar em tuscarora, aproximadamente uma sequência de predicações do tipo “ele é jovem, ele olha para ele, ele fede”.

É por isso que os pesquisadores que reconhecem alguma universalidade na distinção categorial entre nomes e verbos se apoiam não numa categorização em unidades discretas, nitidamente distintas, mas numa categorização prototípica, que prevê uma continuidade categorial.

Em termos tipológicos, é possível predizer que certas percepções prototípicas de entidades próximas a coisas são codificadas numa forma gramatical identificável como nomes, ao passo que percepções prototípicas de ações ou eventos são gramaticalmente codificadas como verbos (cf. HOPPER; THOMPSON, 1984).

As classes de nomes e de verbos dispõem, assim, de correlatos semânticos que correspondem aproximadamente a entidades cognitivamente percebidas no mundo real. Para os nomes, a entidade é qualquer coisa similar a objeto, ou a uma percepção que Givón (1979) designa por “estabilidade temporal” (time-stability). Ao contrário, os verbos são prototipicamente ações ou eventos: representam percepções sem estabilidade temporal.

Essa dualidade se deriva de numa tendência universal de associar entidades temporalmente estáveis com a classe gramatical dos nomes e entidades não temporalmente estáveis com a classe gramatical dos verbos. Como essa correlação tem validade quase universal, Hopper e Thompson (1984) aplicam à noção de categorialidade o princípio cognitivo da prototipia, desenvolvido por Rosch (1973, apud TAYLOR, 1989), segundo o qual a categorização humana não é arbitrária, mas procede de exemplares mais centrais para exemplares mais periféricos de categorias sendo prototípicos justamente os exemplares centrais que parecem mais salientes aos falantes.

A nominalização no continuum categorial

Um aspecto teoricamente instigante, relacionado às classes de palavras é a identificação categorial das nominalizações, que, a rigor, não podem ser consideradas membros prototípicos nem da classe dos nomes nem da classe dos verbos. Consistem, na realidade, em categorias complexas, intermediárias num continuum funcional com os polos ocupados pelo nome e pelo verbo.

Como nomes, deveriam referir-se a entidades perceptíveis do mundo, mas, como os verbos, podem ser providos de valência e representar não entidades de primeira ordem, que são percepções cognitivas de objetos físicos, palpáveis, mas entidades de segunda ordem, ou estados de coisas. Nesse aspecto, um bom postulado a defender é o de que quanto mais uma nominalização preservar a estrutura argumental herdada do verbo input, mais próximo ela está da referência a um estado de coisas.

De acordo com a definição de classes de palavras, proposta por Hengeveld (1992), o português pode ser classificado, conforme já mencionado, como uma língua diferenciada, já que dispõe de classes gramaticais distintas para exercer funções predicadoras distintas. Por disporem de certa rigidez formal, línguas diferenciadas precisam contar com operações transcategoriais para derivar nomes de verbos, o que costuma ocorrer, por exemplo, no português, com processos produtivos de sufixação, como a nominalização.

Qual seria, então, o correlato gramatical mais evidente para as classes de palavras desse traço tipológico do português? Como língua diferenciada, nem flexível, nem rígida, a gramática do português necessita, em geral, de ajustes formais para converter um item lexical de uma classe de predicados num item lexical de outra. A morfologia derivacional do

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português é rica em afixos, conforme mostra o seguinte exemplo: forma [N] > formar, deformar, reformar [V] > formoso, formal, deformado, reformável [Adj] > formosamente, formalmente [Adv] para uma derivação a partir de uma palavra primitiva da classe dos nomes e partindo da classe de verbos, construir [V] > construção [N] > construtivo [Adj] > construtivamente [Adv].

Em seus estudos sobre nominalização, Dik (1997) alega que esse tipo de forma derivada atua como uma construção encaixada que tem propriedades em comum com um termo nominal primário, como é o caso de demissão em (2).

(2) Maria lamentou a demissão de Pedro.

Com efeito, em (2), o constituinte na função de paciente da nominalização aparece sob

forma de sintagma de possuidor31, que é especialmente adequada para expressar relações no interior de sintagmas nominais. O fato de Pedro aparecer em (2) sob a forma de sintagma de possuidor é interpretado por Dik como uma propriedade nominal, e o SN a demissão de Pedro é descrito como uma construção encaixada na posição de complemento da oração matriz que tem como núcleo o predicado lamentou (cf. DIK, 1997, p. 57-8).

A principal implicação teórica dessa posição é a de que nominalizações dispõem de valência potencial como outras construções encaixadas. Como um tipo derivado de nome, os deverbais podem ser mono, bi e trivalentes, na mesma medida em que são os verbos que lhe dão origem, conforme entende Dik (1985; 1997).

As nominalizações deverbais constituem exemplos flagrantes de predicados verbais que necessitam submeter-se a ajustes formais próprios de um modelo prototípico de termo, que é o nome denotando entidades de primeira ordem, ou seja, os chamados nomes concretos (DIK, 1985; LYONS, 1977).

Como mostra a Figura 2, os ajustes mais comuns da predicação verbal encaixada à expressão do termo nominal são os seguintes: um predicado verbal transforma-se num núcleo nominal; um operador de predicado verbal, como o sufixo modo-temporal, torna-se zero no predicado nominal e, inversamente, um zero no predicado verbal, como a noção de definitude expressa pelo artigo, transforma-se num operador de termo no predicado nominal; o primeiro e o segundo argumento podem tanto assumir a forma de uma expressão de possuidor quanto a de um adjetivo; já um satélite adverbial só pode assumir a forma de um adjetivo (DIK, 1985; 1997).

Construção encaixada

∅ Operador Verbo Argumento1 Argumento2 Satélite

∅ Determinante Quantificador Nome Possuidor Adjetivo

Termo de primeira ordem Fig. 2: Ajustes formais entre verbos e nomes

(DIK, 1997, p. 158)

31 Conforme será tratado mais adiante, forma de sintagma de possuidor nem sempre significa função semântica de possuidor. Nomes denotando membros prototípicos contêm, de fato, a noção semântica de posse, como em o livro de Maria. Nesse caso, nominalizar um predicado verbal é aproximá-lo da estrutura de um nome, ajustando os termos do predicado à estrutura de um membro prototípico da classe. Esse ajuste implica que as relações argumentais sejam representadas por um SP introduzido por de. É esse o significado da expressão “sintagma de possuidor”.

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Os predicados verbais de (3a) e nominal de (3b) são casos ilustrativos desses ajustes.

(3) a. O Brasil comprou rapidamente os dólares do mercado b. A rápida compra brasileira dos dólares do mercado

O mesmo é verdadeiro para os predicados nominais derivados de predicados

adjetivais, os quais, na condição de monoargumentais, tendem simplesmente, como os nominais derivados de verbais de um lugar, a preservar o argumento central, como se observa em (4a-b).

(4) a. eles conseguem chegar a uma fidelidade linear... da natureza... à extrema

exatidão do desenho (EF- SP-405). b. A natureza é linearmente fiel e o desenho é extremamente exato

Observe-se, além disso, outras mudanças categoriais, mediante o uso de processos

derivacionais, como as que ocorrem entre linear e linearmente e extrema e extremamente. Esses ajustes permitem limitar os tipos de nominalização que podem variar entre quase completamente verbais para quase completamente nominais.

Conforme mostra a Figura 2, a nominalização envolve tanto a aquisição de propriedades nominais como a perda de propriedades verbais, numa relação de oposição discreta. Entretanto, segundo Malchukov (2004), a pesquisa tipológica mais recente tem reconhecido que a articulação entre os dois processos acarreta possibilidades mais graduais que discretas e, portanto, empiricamente mais adequadas. E, com efeito, as operações transcategoriais, quando aplicadas à nominalização, envolvem tanto descategorização quanto recategorização.

O termo descategorização, introduzido inicialmente por Hopper e Thompson (1984), indica que nomes e verbos perdem algumas das propriedades morfossintáticas associadas com suas funções primárias de relatar estados de coisas e referir-se a entidades, respectivamente. Quando usado como expressão referencial, um verbo adquire propriedades nominais, como caso (se houver), determinação, modificação, concordância nominal etc. E é por isso que o termo “nominalização” reúne propriedades relacionadas tanto ao processo de desverbalização quanto ao de nominalização propriamente dito (cf. MALCHUKOV, 2004).

Usando exemplos do inglês, Malchukov menciona quatro possibilidades na tipologia das construções completivas encaixadas, contidas em (5):

(5) a [-D –R] complementos sentenciais: I know that he comes. b [+D -R] infinitivos: I want him to come early c [-D +R] nominalização oracional: I disapprove of his driving the car so carelessly d [+D +R] nominalizações: I didn’t see John’s arrival (MALCHUKOV, 2004, p. 57

A construção (5a) se refere a um complemento sentencial: embora ocorra numa posição de objeto (SN), ela retém a estrutura de uma sentença e raramente adquire traços nominais.

No caso (5b), os infinitivos retêm a sintaxe interna de um SV em relação a alguns traços semânticos, como possibilidade de argumento, aspecto e voz, mas não podem assumir outras propriedades tipicamente verbais, como tempo e modo e, no caso citado do inglês, concordância e combinação com um sujeito nominativo da forma sentencial.

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O caso (5c) combina, por seu lado, traços nominais e verbais: é capaz de receber objeto, enquanto o sujeito é expresso como um SP, isto é, na forma gramatical típica de possuidor.

Finalmente, em (5d), o verbo é completamente assimilado a um nome: assume todas as flexões nominais e raramente preserva traços gramaticais próprios de verbo. Enquanto complementos sentenciais e nominalizações, representando os polos opostos na escala, são codificados por classes lexicais quase universais, como verbo e nome respectivamente, o estatuto categorial das classes intermediárias difere muito de uma língua para outra.

Vale acrescentar que os exemplos do inglês servem apenas para ilustrar as construções encaixadas possíveis e não podem, por isso, ser tomados como universais, principalmente em função da diversidade tipológica das línguas; na realidade, o que constitui um traço universal, que os exemplos ilustram bem, é o caráter contínuo, não discreto das classes. Assim, a gramática do português, por exemplo, não licencia a ocorrência da categoria intermediária (2c), e só permite construções não-finitas com predicados volitivos (5b), se houver identidade de sujeito entre matriz e encaixada, como em (6). (6) Eu quero ir para casa cedo hoje.

Nesse aspecto, difere da gramática do inglês, que, como se vê em (5b), licencia a

forma não-finita mesmo com identidade entre objeto da matriz e sujeito manifesto como anáfora zero na encaixada. Um critério discursivo para a prototipicidade

O critério semântico de estabilidade temporal, invocado por Givón (1979) para determinar o grau de prototipia dos nomes, não é suficiente para atribuir uma classe lexical a uma dada forma: “a prototipia de categorias linguísticas depende não apenas de propriedades semânticas independentemente verificáveis, mas também – e talvez mais crucialmente – da função linguística no discurso” (HOPPER; THOMPSON, 1984, p. 708) 32. Nem sempre o uso de um nome é capaz de construir ou de identificar um referente (DIK, 1989, p. 114), como ocorre, por exemplo, com o termo definição na sentença (7). (7) ela quer saber as matérias que ela vai ter... o curso::... o segundo ciclo que ela

pretende fazer... sabe? bom já está numa:: idade de definição quanto ao segundo ciclo porque elas já estão na oitava série as mais velhas não é? (D2-SP-360) Segundo Hopper e Thompson (1984), o fato semântico de que um termo denote uma

entidade concreta, visível (que já não é o caso de uma entidade de segunda ordem, como definição) não é crucial para determinar se esse termo é um membro prototípico da classe. Em vez disso, é mais importante e decisivo que o nome exerça algum papel no discurso em que ele figura, seja construindo seja identificando um referente na interação, como o caso de definição em (8), núcleo de um SN com um conjunto completo de possíveis constituintes. 33

32 Cf. o original: prototypicality in linguistic categories depends not only on independently verifiable semantic properties, but also – and perhaps more crucially – on linguistic function in the discourse. 33 Considerando que entidades são coisas que podem ser construções mentais, é possível distinguir duas funções principais para o uso de termos: ao empregar um termo numa referência construtora, o falante pretende ajudar o ouvinte a construir um referente, o que implica em introduzir a entidade no modelo mental do ouvinte; já ao empregar um termo numa referência identificadora, o falante pretende ajudar o ouvinte a identificar um referente que já se acha disponível (cf. DIK, 1989, p. 114).

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(8) Você entendeu aquela segunda definição de sintagma que o professor deu na aula de ontem?

Do mesmo modo, os traços semânticos do verbo (visibilidade, movimento e

efetividade) não são suficientes para determinar sua prototipia. Para qualificar-se como membro prototípico da classe, uma forma verbal deve referir-se à ocorrência de um evento do discurso. Assim, uma forma não-finita, como acertar em (9), não é um membro prototípico como o de (10), em que a forma finita representa o evento de acertar como efetivamente concluído no passado. Também para verbos, é o papel discursivo da forma empregada que consiste, para Hopper e Thompson (1984) no principal fator que determina se ele é um membro central ou periférico de sua categoria. (9) Acertar traves exige habilidade. (10) Neymar acertou a bola na trave para provar que é habilidoso.

A nominalização tem como modelo prototípico o nome comum não-derivado e, como tal, usa a expressão de possuidor, típica dos nomes comuns, para a expressão argumental. Entretanto, enquanto a nominalização fizer referência não a uma entidade de primeira ordem, mas a uma entidade de ordem superior, a correspondência entre os argumentos do nome e os do verbo input, deve estar representada na estrutura subjacente de ambas as classes de palavras. Muito raramente nomes deverbais se referem a entidades de primeira ordem, especialmente quando representarem nominais de ação, como em (11a). A única situação em que é possível esse tipo de referência é aquela em que os deverbais indicam estados de coisas resultantes de ação, como em (11b).

(11) a. A construção da casa (por José) demorou dois anos. b. Aquela construção do alto da colina é muito sólida

O nome destacado em (11b) se deriva do verbo construir, mas não é dotado de estrutura argumental, por não se referir a um estado de coisas, mas ao resultado de um estado de coisas, que constitui uma entidade de primeira ordem; nesse caso, a função do SP do alto da colina é localizar a entidade referida. Já o mesmo nome deverbal em (11a) representa uma predicação encaixada na posição de sujeito e a função do SP da casa é indicar o argumento paciente de construção. Em vista dessa diferença, é possível aplicar os rótulos categoriais de (12) para as duas expressões possíveis do nome em comparação ao verbo: (12) construir > construção1 > construção2

[+ V – N] [+V + N] [-V + N]

Na escala de desverbalização (MALCHUKOV, 2004), a nominalização só perde a

condição de referência a um estado de coisas quando se transforma realmente num nome representando uma entidade de primeira ordem. As categorias mais externas e respectivas camadas são mais prontamente afetadas pelas operações transcategoriais do que as mais internas. Desse modo, a valência é, na visão do autor, a categoria semanticamente mais próxima do lexema verbal e, portanto, a camada mais preservada. Considerando os processos

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complementares de desverbalização e de nominalização, Malchukov (2004) propõe o modelo em (13), que ele chama Modelo Escalar Generalizado:

(13) Modelo Escalar Generalizado34

[[[[[N] CL ] NUM ] POS ] DET] CAS]

<---------------------------------------------- [[[ [[[V] VAL] ASP] TEM] MOD] CONC] FI]

nominalização <-----------------------------------

desverbalização

(MALCHUKOV 2004: 27)

O que ocorre com o nome construção2 no esquema em (12) é que além de

descategorizar-se a partir de um lexema verbal, ele continua o processo, recategorizando-se como termo referente a uma entidade de primeira ordem. Nesse caso, perde valência e recebe, todas as marcas possíveis de um membro prototípico da classe dos subtantivos. Já o que ocorre com construção1 é que apenas sofre processo de descategorização, o que implica preservação da referência a uma entidade de ordem superior e, consequentemente, da estrutura argumental do predicado verbal correspondente.

Da categoria verbal para a categoria nominal não ocorre de fato redução de valência; o que se altera é apenas o mecanismo formal de marcação dos argumentos. O uso de preposições como de e por constitui um mecanismo formal das nominalizações para visibilizar as mesmas relações gramaticais de sujeito e de objeto, que, em português, pelo menos, são geralmente marcadas por outros mecanismos, tais como ordem de palavras, posição pré e pós-verbal respectivamente, e concordância verbal.

Em (11b), a preposição de estabelece uma relação de modificador com o núcleo nominal, devendo ser analisada como preposição lexical e a relação que estabelece especifica a localização da construção, enquanto em (11a), estabelece uma relação argumental, consistindo, portanto, numa preposição gramatical. Palavras finais

Vimos que há uma possibilidade exploratória potencialmente relevante de aproximação entre classes de palavras e processos de descategorização e recategorização, o que me levou a fixar como objetivo mostrar que a nominalização tem uma natureza complexa em um continuum categorial. Ela figura entre duas classes potencialmente universais por atuar na constituição do ato locutório de formulação de uma sentença, a do nome, mediante um ato de referenciação, e a do verbo, mediante um ato de predicação (cf. HENGEVELD; MACKENZIE, 2008).

A continuidade categorial parece uma propriedade indiscutível da linguagem, pelo menos na tradição funcionalista, onde é tratada como um verdadeiro universal, evidenciada nos diferentes pontos de corte que caracterizam tipos regulares de línguas naturais. Além de mostrar evidências para esse axioma, este trabalho se debruçou também sobre a estrutura

34 As abreviaturas têm o seguinte significado: no polo nominal, N representa nome; CL, classificador; NUM, número; POS, possuidor; DET, determinante e CAS, caso. Já no polo verbal, V representa verbo; VAL, valência; ASP, aspecto; TEM, tempo; MOD, modo; CONC, concordância; FI, força ilocucionária.

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argumental da nominalização, num esforço concentrado por demonstrar que esse mesmo princípio universal é metodologicamente útil e teoricamente válido para postular relações intralinguísticas de continuidade categorial mesmo entre classes aparentemente discretas como nome e verbo.

A existência de estrutura argumental, que sinaliza a denotação de entidades de ordem superior, permite aproximar a nominalização - um membro não-prototípico da categoria dos nomes - de membros não-prototípicos da categoria dos verbos, como formas não-finitas. Por outro lado, a ausência de estrutura argumental, que sinaliza um nome de primeira ordem, permite incluir a nominalização entre os membros prototípicos da categoria dos nomes.

As nominalizações ocupam justamente essa região amorfa, indistinta, a meio caminho entre membros prototípicos dos nomes e membros prototípicos do verbo. Na posição em que se situa na gramática, a nominalização não se identifica com um indivíduo solitário, dado que desfruta da companhia de outras categorias igualmente híbridas, como as formas não-finitas, enquadramento que a tradição gramatical vem reconhecendo sistematicamente ao denominar infinitivos, gerúndios e particípios como formas nominais do verbo. Essas formas híbridas comprovam um traço relevante da linguagem, amplamente reconhecido pelas teorias funcionalistas, a de que as classes constituem categorias contínuas.

THE CONTINUOUS NATURE OF PARTS OF SPEECH ABSTRACT: Category continuity is an undisputable language property for the functionalist tradition, which treats this principle as a true axiom. Besides seeking systematic evidence for confirming this principle, the main objective of this study is to analyze the argument structure of nominalization as an effort to demonstrate that this very principle is both methodologically useful and theoretically valid to postulate intralinguistic relations of category continuity even between such apparently discrete word classes as nouns and verbs. The path for giving support to the category continuity hypothesis necessarily involves confirming a secondary one, that is, the valence preservation hypothesis, as postulated by Dik (1985, 1997), in which the argument structure is a constituent part of nominalization. However, that search would not be so successful if the path did not pass by a necessary shortcut, represented by the prototypical theory of categorization. The existence of argument structure, which indicates the representation of higher-order entities, allows inserting the nominalization into such non-prototypical members of verbs as non-finite forms, while the absence of argument structure, which indicates the representation of a first-order entity, allows inserting it into the prototypical members of nouns.

KEYWORDS: Prototypicality; parts of speech; nominalization. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CASTILHO, A. T.; PRETI, D. (Org.) A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz. 1986. V. 1: materiais para seu estudo DIK, S. C. Formal and semantic adjustment of derived constructions. In: BOLKSTEIN et al. (Ed.) Predicates and terms in Functional Grammar. Dordrecht: Foris, 1985. p. 1-28. ______. The theory of Functional Grammar. Dordrecht: Foris, 1989. (Part I: The structure of the clause). ______. The theory of Functional Grammar. Edited by Kees Hengeveld. Berlin: Mouton de Gruyter, 1997. (Part II: Complex and Derived Constructions). GIVON, T. On understanding grammar. New York: Academic Press, 1979. HENGEVELD, K. Non-verbal predication: theory, typology, diachrony. Berlin: Mouton de Gruyter, 1992. HOPPER, P.; S. A. THOMPSON. The discourse basis for lexical categories in universal grammar. Language. V. 60, n. 4, p. 251-229, 1984.

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LYONS, J. Semantics. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. MALCHUKOV, A. L. Nominalization/verbalization: constraining a typology of transcategorial operations. Lincom: Lincom Europa, 2004. TAYLOR, J. R. Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. Oxford: Oxford University Press, 1989.

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49

A influência dos fatores sociais na alternância dos pronomes tu/você na fala manauara

Leandro BABILÔNIA35

Silvana Andrade MARTINS36

RESUMO: Apresenta-se uma análise do uso dos pronomes tu/você no falar urbano manauara, com o objetivo de descrever os fatores sociais que condicionam a variação em situações discursivas de elocuções formais (EF), dialógicas (D2) e entrevistas (DID). Os corpora analisados pertencem ao banco digital do Projeto Fala Manauara Culta (FAMAC) e constituem-se de 30 gravações. São consideradas como variáveis sociais: gênero, faixa etária (20-35 anos, 36-55 e 56 em diante), escolaridade (ensino superior completo) e ser nascido e residente em Manaus há pelo menos vinte anos. Convergindo os princípios da Sociolinguística Variacionista e do Funcionalismo, a partir da proposta dicotômica do uso T/V e suas díades sociais de Brown e Gilman (1960), investigou-se a alternância tu e você, mensurando essas ocorrências, analisando os critérios de escolha entre as formas disponíveis para se dirigir a segunda pessoa e verificando os fatores sociais e ideológicos condicionadores destas escolhas. Em termos absolutos, os resultados obtidos apontam o predomínio da forma inovadora você (cerca de 65%); contudo, quanto mais informal for o contexto de elocução, mais provável será o uso de tu (70,5% nos D2 e 70% nas díades “amigos”).

PALAVRAS-CHAVE: Formas de tratamento. Variação pronominal. Fala culta manauara.

Introdução

Embora o uso das formas de tratamento no Brasil venha sendo objeto de inúmeros estudos na atualidade, subsiste ainda a crença generalizada de que, em quase todo nosso território, o pronome você substituiu o tu, restringindo o uso deste “ao extremo Sul do País e a alguns pontos da região Norte, ainda não suficientemente demarcados” (CUNHA & CINTRA, 2001, p. 292 apud MOTA, p. 18, 2008). A assertiva não é totalmente verdadeira, pois diversos trabalhos atestam o uso de ambos os pronomes nas regiões Sudeste (MODESTO, 2007; MOTA, 2008; PAREDES SILVA, 2008), Centro Oeste (DIAS, 2007; LUCCA, 2005) e Nordeste (SOARES, 1980). Neste texto, entretanto, objetivamos corroborar a afirmação apresentando resultados preliminares sobre a variação desses pronomes na fala urbana manauara, mais especificamente, no âmbito da variedade manauara socialmente privilegiada.

Buscamos convergir os princípios da Sociolinguística Variacionista e a abordagem funcionalista porque ambas compreendem o objeto língua como um fato social que não pode ser entendido quando considerado isoladamente, abstraído de suas influências políticas, econômicas, culturais etc. Logo, tem-se uma visão dinâmica desse objeto, o qual é construído e reconstruído por seus e para seus falantes, pois atende às suas necessidades de interlocução. Assim, entendemos que a existência de dois pronomes para se dirigir a segunda pessoa implica na agregação de valores a cada um. A escolha, portanto, feita pelo falante é condicionada por fatores sociais e ideológicos; além disso, ao selecionar uma dessas formas, ele revela sua atitude quanto aos valores sociais do grupo em que está inserido.

A hipótese norteadora deste texto fundamenta-se no estudo de Brown e Gilman (1960) denominado The pronouns of the power and solidarity, em que os autores discorrem sobre as mudanças no uso das formas de tratamento a partir do latim e como essas mudanças se cristalizaram de modo diferente nas línguas, mas ainda preservaram elementos comuns. Para 35 UEA – Universidade do Estado do Amazonas. Escola Normal Superior – Coordenação de Letras. Manaus – AM – Brasil. 69050-010 – [email protected]. 36 UEA – Universidade do Estado do Amazonas. Escola Normal Superior – Coordenação de Letras. Manaus – AM – Brasil. 69050-010 – [email protected].

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eles, essas mudanças podem ser analisadas na oposição entre poder e solidariedade, normalmente vinculada à oposição distanciamento e proximidade, respectivamente. Também sugerem a criação dos símbolos T/V, em que T (proveniente do tu latino) é o pronome da solidariedade, da familiaridade, e V (originário do vos) é o do poder, da formalidade. Partindo disso, inquirimos se, na variedade pesquisada, a alternância entre tu e você forma um par do tipo T/V. Além disso, almejamos mensurar e analisar a variação descrevendo os fatores sociais que a condicionam e os contextos em que ocorrem.

Para tanto, empregaremos nesta pesquisa os dados coletados pelo Projeto Fala Manauara Culta (FAMAC)37, o qual está constituído de 30 gravações. Seu procedimento metodológico considera como variáveis: gênero (masculino e feminino), faixa etária (20 a 35 anos, 36 a 55 e 56 em diante), escolaridade (ensino superior completo) e ser nascido e/ou residente em Manaus há pelo menos vinte anos. Ainda, os registros estão divididos em três situações de fala, a saber: elocuções formais (EF), dialógicas (D2) e entrevistas (DID).

Por este Projeto estar em desenvolvimento e ainda não preencher equitativamente todas as variáveis definidas, advertimos que os resultados e as análises aqui apresentados apontam tendências e têm caráter preliminar, podendo ou não serem confirmados com a expansão dos dados.

Revisitando conceitos e formulando hipóteses

Em Sociolinguística – os níveis de fala, Dino Preti (2003) afirma que, quando a variação se dá nos níveis estrutural (morfossintático) e lexical, os processos de estratificação da língua tornam-se mais claros, pois tais níveis são mais representativos da estratificação social. Segundo ele, “a mensagem apresentaria variações de escolha, embora essa diversidade possa sofrer a ação de uma força contrária, repressiva, constituída pela norma da mesma comunidade em que o diálogo ocorre” (p. 16-17). Tal escolha obedeceria a fatores extralinguísticos como a posição do falante e do ouvinte na comunidade e o tipo de relação que os une. Assim, se numa comunidade em que coexistem dois ou mais pronomes de tratamento, optarmos pelo emprego de uma forma quando se espera a outra, podem ser acionados processos reparadores por qualquer dos interlocutores.

É nesse sentido que Brown e Gilman (1960) compreendem o uso dos pronomes de tratamento e formulam sua proposta de estudo. Conforme dissemos, eles sugerem os símbolos T/V38 para designar os pronomes de segunda pessoa nas diversas línguas e afirmam que tal complexidade gera-se ainda na língua latina quando o sistema pronominal começa a refletir valores sociais.

Esse sistema possuía originalmente tu, para a segunda pessoa do singular, e vos, para a do plural. Entretanto, como uma marca de poder e distanciamento social, o vos tornou-se a forma dirigida somente ao imperador. Com o tempo, seu uso foi estendido a outras pessoas que, de alguma forma, também detinham o poder. Evidenciavam-no com o tratamento não recíproco e assimétrico: ao receberem V de seus inferiores, respondiam-lhes utilizando T. Segundo os autores, esse fato caracteriza a semântica do poder que, apesar de originária do âmbito político, generalizou-se e passou a vir de outras esferas: força física, idade, sexo, riqueza, igreja, exército, posição dentro da família.

Eles também criaram um par binário em que opõem a semântica do poder à da solidariedade. Nesta, os interlocutores tratam-se igualmente, isto é, dizem e recebem T, e seu 37 Coordenado pela profª Drª Silvana Martins e em desenvolvimento desde 2009, o Projeto FAMAC possui um acervo de dados digitalizados, incluindo documentação sonora, cuja finalidade principal é subsidiar análises linguísticas. 38 “As a convenience we propose to use the symbols T and V (from the Latin tu and vos) is a generic designators for a familiar and a polite pronoun in any language” (Brown e Gilman, p. 157, 1960)

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uso é mais provável quanto mais semelhantes forem os comportamentos e as atitudes dos indivíduos.

Prosseguem afirmando que, durante o século XIX, a semântica do poder perdeu espaço e o sistema passou a ter somente uma dimensão na qual os dois pronomes são usados mutuamente: T entre iguais solidários e V entre iguais não solidários. Contudo, perda de espaço não significa apagamento, por esse motivo alguns resquícios daqueles tipos de relações fazem-se presentes ainda hoje nas relações hierárquicas, por exemplo.

Conforme vimos acima em Preti (2003), a seleção de um pronome obedeceria a fatores extralinguísticos como a posição social dos interlocutores. Fundamentados nesse pressuposto linguístico, Brown e Gilman (1960) estabelecem díades para suas análises, isto é, identificam os interlocutores a partir das posições sociais que ocupam no momento do registro. Nessas díades, o pronome parte do primeiro elemento e é dirigido ao segundo.

No Brasil, podemos citar Mota (2008), que, baseada nessa sugestão, estabeleceu dezoito díades para seus estudos realizados no município de São João da Ponte (MG), a saber: pai/filho, filho/pai, mãe/filha; filha/mãe; esposa/marido; marido/esposa; colegas de escola; colegas de trabalho; vizinhos; amigos; aluno/professor; professor/aluno; vendedor/comprador; comprador/vendedor; chefe/subordinado; subordinado/chefe; entrevistador/entrevistado; entrevistado/entrevistador.

Consideramos fundamental estabelecer díades para as análises deste estudo, principalmente, porque trabalhamos com pessoas de níveis sociais semelhantes, além de todos possuírem formação escolar superior. As diferenças de uso, portanto, deverão ser favorecidas pelo grau de intimidade entre os falantes, grau de monitoramento estilístico e contexto conversacional.

Artaxerxes Modesto (2007), por exemplo, para estudar a alternância na fala santista (SP) formulou cinco hipóteses, das quais destacamos três:

a) a alternância das formas de tratamento não seria um caso de variação aleatória, mas sim condicionada por fatores linguísticos, discursivo-pragmáticos e sociais; a correlação entre as formas de tratamento tu e você está ligada à configuração do contexto conversacional. O contexto conversacional envolve o propósito do evento da fala, os falantes e o contexto discursivo como um todo; b) o uso da forma tu é desencadeado por situações de [+envolvimento], [-monitoramento] e [+expressividade]; c) o uso de você é desencadeado por situações de [-envolvimento], [+monitoramento] e [-expressividade]. (p. 01)

Também é relevante destacar que, no cruzamento dos fatores escolaridade e monitoramento, Modesto constatou que, em situações de maior monitoramento, os falantes de ensino superior utilizaram o tu em somente 19% dos casos, mas o índice salta para 42% quando o monitoramento é menor. A explicação do autor se fundamenta em Cunha e Cintra (1985, p. 284 apud MODESTO, 2007, p. 21-22) quando afirmam que “[o pronome tu] é empregado como forma própria da intimidade, usado entre pais e filhos, amigos, entre outros, com tendência a ultrapassar os limites da intimidade propriamente dita, em consonância com uma intenção igualitária ou, simplesmente, aproximativa”.

Podemos, a partir dessas observações, formular a hipótese de que o pronome você é a forma de tratamento utilizada no primeiro contato e quando há limitações sociais para um trato mais íntimo entre os interlocutores? A nosso ver, parece possível. Além disso, se seguirmos os resultados desses estudos, esperamos encontrar o uso mais abrangente de tu nos diálogos e o de você nas elocuções formais, restando às entrevistas o entremeio.

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Metodologia da pesquisa

A obtenção de gravações que favoreçam a naturalidade da fala ou a registrem fidedignamente é questão discutida há bastante tempo pela Sociolinguística. Em seus postulados, Labov (2008) afirma que no modelo tradicional de coleta, isto é, através de entrevistas, o pesquisador tenta minimizar os efeitos negativos de sua presença na fala dos entrevistados objetivando analisá-la tal qual não estivesse em observação. Do mesmo modo, o falante tenta minimizar os efeitos de uma possível marcação social na sua variedade linguística, atentando mais para a própria fala. A esse fenômeno sociolinguístico, Labov nomeou paradoxo do observador (2008, p. 244).

Ao empregarmos neste estudo os corpora coligidos pelo Projeto FAMAC, tencionamos averiguar como se dá a alternância em função de fatores sociais, mas também discursivo-pragmáticos, pois fundamentam sua coleta nos dois domínios. Seu procedimento teórico-metodológico delimita a população de referência atendendo a dois critérios: i) grau de escolaridade, no mínimo, nível superior completo; ii) ter nascido em Manaus e residir nela há pelo menos 20 anos e ser preferencialmente filho de amazonenses. Os corpora também se estabelecem considerando como variáveis a idade e o gênero dos falantes. Por fim, são três as situações de registro: Elocuções Formais (EF), Diálogos entre Informante e Documentador (DID) e Diálogos entre Dois Informantes (D2).

Os corpora somam trinta gravações e, aproximadamente, doze horas. Apesar de termos totalizado 40 informantes no Quadro 1, informamos que o número real de falantes é 37, pois três informantes participaram de dois registros cada. Obtemos, assim, o seguinte quadro com a distribuição dos falantes:

Quadro 01 – Perfil dos Informantes

Situação de registro

Gênero 1ª faixa etária

2ª faixa etária

3ª faixa etária

Nº de informantes

D2 Masculino Feminino

03 05

02 08

02 -

07 13

DID Masculino Feminino

03 03

01 04

02 01

06 08

EF Masculino Feminino

01 01

02 02

- -

03 03

Nº de Informantes 16 19 05 40

Análise dos dados

A existência (ou coexistência) de várias formas de tratamento numa comunidade torna complexa a seleção pelos falantes, principalmente quando essas formas não possuem regras e domínios bem definidos. Adequação ao contexto conversacional talvez seja a atitude mais ajustada para a resolução dessas questões.

Ao analisarmos a fala manauara, encontramos, por exemplo, a utilização da forma senhor (e variações morfológicas) em contextos muito formais: uma reunião entre chefe e assessor ou entre professor e aluno. Ainda, numa fala relatada, em que a informante dirigia-se à diretora da escola em que o filho estuda. Todavia, esse pode ser o trato com os mais velhos, pois, nesses casos, L2 pertence à primeira faixa etária e seu interlocutor, à terceira. Vejamos abaixo os excertos:

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(1) L2: [...] o: Argemiro falô que o senhô teria que indicar uma pessoa senhor lembra? L2: já já tá terminando ali pra trazê pro senhor já (D2-Inq. 10) L2: [...] inclusive o senhor escreveu sobre isso [...] (D2-Inq. 09) L2: faça uma coisa cancele a matrícula do meu filho ela não você tem que se adaptá eu

não senhora quem tem que se adaptá é a senhora (D2-Inq. 05) Também foi possível notar o uso do sujeito nulo, sobretudo nos marcadores

conversacionais, como: sabe, tá entendendo, entendeu etc. Alguns, muito poucos, ocorreram em contextos não estudados por nós, como nos exemplos retirados do D2-Inq. 01:

(2) L1: pois é falando de cinema... já assistiu Ensaio sobre a cegueira?

L1: pra ti teres uma ideia quando eu me aproximei [...] L2: tá dando aula de Forense também? L2: [...] talvez a gente desenvolva aí uma parceria sabe [...] a gente como né como supervisora desse grupo entendeu (est: hum hum)

Assentimos ao entendimento de Dias (2007) quando afirma que a não marcação do

sujeito pode não ser uma simples omissão do pronome escolhido mentalmente e que se optou por não pronunciar; ela compreende que “a referência nula obedece a condicionamentos distintos em relação às demais opções de referência a segunda pessoa” (p. 63). Leão, Altenhofen e Klassmann (2003) supõem que o sujeito nulo surge “como uma espécie de ‘solução intermediária’ entre duas variantes (tu e você) em confronto, a primeira (estigmatizada?) [...], e a segunda mais inovadora (e provavelmente mais prestigiada) [...]” (p. 04); desse modo, os falantes neutralizariam uma possível marcação social.

Com essas constatações, surge a necessidade de estudos mais aprofundados sobre o uso dessas outras formas na fala manauara. Neste trabalho, contudo, nos limitamos a investigar o uso dos pronomes tu e você.

É importante informar que cogitamos a exclusão dos casos em que o pronome não vem seguido por verbo, seja provocado por pausas, interrupções, seja por constituir um objeto ou um predicativo. No entanto, concluímos que o emprego de determinada forma, mesmo sem a conclusão do enunciado, revela a atitude do falante em relação aos valores sociais da comunidade:

(3) L2: mas eu eu anotei as tuas ideias as tuas cores que tu... (D2-Inq.03)

L2: e tu Alice? (D2-Inq. 05) INF: faz com que você deixa de executar OU execute mal uma atribuição dada a você através de uma Obrigação jurídica ta bom? (EF-Inq. 01)

Fator situação discursiva

Em nosso corpus, verificamos que, estatisticamente, a forma você é a mais frequente,

pois apresentou percentual de 65%, enquanto a forma tu, apenas 35%, conforme exposto na Tabela 1:

Pronomes Quantidade Tu 174

Você 318 Total 492

Tabela 1: Valores absolutos dos pronomes de tratamento

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Embora exista o predomínio da forma você, nota-se que a diferença estatística não é tão grande quando verificamos os resultados encontrados noutras investigações. Mota (2008), por exemplo, registrou somente 47 ocorrências da forma tu, o que representava apenas 10% do total do corpus. Dias (2007) encontrou somente 113 casos de tu contra 814 de cê e você. A investigação cujos resultados mais se aproximam do nosso foi feita por Modesto (2007), na qual ele encontrou percentuais de 67% para você e 32% para tu.

Entretanto, quando consideramos somente o fator situação discursiva para a distribuição dos dados, o predomínio de você permanece apenas em elocuções formais e entrevistas, porque nos diálogos seus índices são superados pelos da forma tu.

Registro Tu Você

D2 161/228 = 70,5% 65/228 = 29,5%

DID 9/223 = 4% 214/223 = 96%

EF 4/43 = 9,3% 39/43 = 90,7%

Total 174/492 = 35% 318/492 = 65%

Tabela 2: Distribuição dos dados em função do fator situação discursiva Desse modo, podemos responder ao nosso questionamento confirmando o uso mais

abrangente de tu nos diálogos. O pronome você foi percentualmente mais utilizado nas entrevistas (94%), embora seus resultados estejam muito próximos aos encontrados nas elocuções formais (90,5%).

Essas duas situações discursivas se assemelham quanto ao grau de monitoramento empregado pelos falantes: nas EF, registramos aulas em curso superior de diversas áreas, palestras; nos DID, coletamos entrevistas. Em ambos os casos, o falante tende a manter um distanciamento do seu interlocutor; apesar disso, encontramos catorze ocorrências da forma tu nesses contextos. Ainda, os D2 registram conversas entre pessoas que possuem certo grau de intimidade anterior à investigação (são casais, amigos, colegas de trabalho) propiciando uma elocução mais fluida e espontânea. Mesmo assim, o pronome você corresponde a 29,5% do total nesse tipo de registro.

Assim, nossa indagação muda e passa a inquirir o que propicia a ocorrência de uma forma no contexto em que esperávamos encontrar outra.

Não obstante possamos retomar a proposta de Brown e Gilman (1960) e compreender os D2 como a situação discursiva mais favorecedora para a ocorrência do pronome da familiaridade, percebe-se a não existência na fala manauara de um par de oposições extremas.

Com base nos resultados da Tabela 2, fez-se necessário o emprego do parâmetro díades para situarmos em quais contextos se deram seus usos. Advertimos que a díade “entrevistador/entrevistado” não foi computada na somatória final, porque os inquiridores do FAMAC não são manauaras e/ou não possuem ensino superior. Ainda assim, elas foram consideradas durante a análise qualitativa, pois podem influenciar a fala dos interlocutores.

Díade Tu Você 1. Esposa/marido 18 00 2. Marido/esposa 04 00 3. Colegas de trabalho 66 38 4. Professor/aluno 11 40 5. Aluno/professor 00 00

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6. Chefe/subordinado 03 03 7. Subordinado/chefe 00 01 8. Amigos 57 25 9. Entrevistado/entrevistador 09 156

Tabela 3: Distribuição dos dados em díades Verifica-se que é categórico o uso da forma tu nas díades 01 e 02. Esse fato vem

corroborar a afirmação de Brown e Gilman (1960) quando qualificam esse pronome como o da familiaridade. Os falantes participam do D2-Inquérito 03, ambos são da primeira faixa etária e os temas da conversa são a reforma da casa e a abertura de um negócio próprio. Além disso, o diálogo foi gravado no quarto do casal. Observa-se também que as formas possessivas relacionam-se canonicamente com a forma subjetiva, mas a concordância verbal se faz de modo inovador, como no excerto abaixo:

(4) L2: mas eu eu anotei as tuas ideias as tuas cores que tu...

L1: quando tu anotô? L2: no dia que decidimos reformar (est.: hum:)... eu anotei que é pra não esquecer e pra mim sabê o que tu qué (est.: hum hum) aí:... quem sabe a gente não pode mesclá com aquilo que eu escolhê L1: mas tu vai vim com o teu verde e azul?

É importante ressaltar que a forma tu não foi utilizada quando era esperada para

confirmar a ideia de familiaridade. No D2-Inquérito 06, L2 relata à L1 uma conversa que teve com os filhos, primeiro com o mais novo, depois com o mais velho. Logo, na fala relatada, L2 assume outra posição social: a de mãe. Ainda assim, fez parte da computação na díade “amigos”.

(5) L2: desliga ou você estuda porque você passa a tarde e a noite porque eu chego à noite

Dani e ele ainda tá no computador Podemos observar que a imposição está marcada inclusive no modo do primeiro verbo

empregado com o uso do imperativo. Todavia, é interessante notar que a concordância se faz com o tu. É como se o verbo nesse modo ganhasse independência em relação ao pronome, pois raramente se usa construções como desliga tu, a não ser quando se pretende enfatizar algo ao interlocutor.

(6) L2: tanto é que tira até pelo Maico tipo assim Maico pra fazê a faculdade a gente tá

bancando o Maico agora eh num quis estudá parô terminô num vi ninguém obrigando o Maico disse seu caso é diferente meu filho em você eu podia metê a porrada porque você é meu filho o Maico ainda meti duas vezes não ainda dei no Maico L1: mas não deu jeito né? L2: eu não podia fazê isso o Maico não é meu filho L1: ele é teu irmão né? L2: é chato até batê nele às vezes (inint.) minha mãe né porque você não você saiu de dentro de mim bato mesmo (risos)

Em seu estudo, Dias (2007) informa que necessitou considerar as repreensões como

um fator separado porque “observamos empiricamente que os falantes tendem a usar a forma

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plena você quando desejam expressar reprovação ou crítica” (p. 66). E cita um caso similar ao nosso: uma mulher de 36 anos, AN, repreendendo a filha de um ano.

(7) AN: Imagina quando cê tiver grande, grandinha, fazendo isso na mesa do restaurante,

hein? Quando você começar a falar, você vai apanhar tanto! Ó! A forma você, nessas ocasiões, serve para marcar a distância existente entre os

interlocutores – nesses casos, mães e filhos; as mães não utilizam tu, porque, sendo o pronome da familiaridade, não conseguiriam enfatizar o distanciamento pretendido. Ao que parece, a intenção de repreender é princípio favorecedor para a seleção do pronome você.

Fator Gênero

Conforme exposto no Quadro 1, a composição da amostra não é uniforme; dos quarenta participantes, 24 são mulheres e dezesseis homens.

Faz-se necessário considerar esse fator, pois nossas leituras preliminares apresentaram resultados muito distintos quanto ao seu favorecimento pelo uso de uma ou outra forma, ainda que seja comum encontrarmos pesquisas afirmando que as mulheres são mais propensas a utilizar as formas socialmente prestigiadas:

Quando se trata de implementar na língua uma forma considerada prestigiada, as mulheres tendem a liderar o processo de mudança. Quando, ao contrário, se trata da implementação de uma forma desprestigiada, as mulheres assumem uma atitude conservadora e os homens tomam a ponta do processo de mudança. Esta tendência, bastante consistente, pode ser exemplificada pelo estudo de diversos fenômenos de mudança linguística (PAIVA, 1992, p. 71)

Na pesquisa de Nívia Lucca (2005) sobre a variação na fala brasiliense, por exemplo,

foram obtidos os seguintes resultados: na faixa etária de 15 a 19 anos, há frequência de 78% de uso do pronome tu entre os homens, enquanto entre mulheres foram encontrados apenas 23%. Já Edilene Dias (2007), que também estudou o tu na fala brasiliense, deparou-se com índices menores: “a frequência de uso de tu entre os falantes do sexo masculino é de 14,9%. As mulheres, por sua vez, o usam com frequência de 10,8%” (p. 75). No estudo de Artaxerxes Modesto (2008), essa variável foi descartada pelo programa GoldVarb, pois “os coeficientes de probabilidade que o programa atribuiu para esta variável são muito próximos: 0,49 para homens e 0,51 para mulheres, o que os tornam estatisticamente não relevantes” (p. 21).

Gênero Tu Você Total

Masculino 66 139 205

Feminino 100 146 246

Total 166 285 451

Tabela 4: distribuição das ocorrências em função do fator gênero Na Tabela 4, nota-se que, apesar da diferença entre a quantidade de homens e

mulheres da amostra, houve uma quase neutralização do fator gênero em relação ao uso do pronome você: numa leitura vertical, eles o utilizaram em 49% dos casos; elas, em 51%. Com o pronome tu, o mesmo não se deu: os homens o empregaram em 40% dos casos e as mulheres em 60%.

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Numa leitura horizontal, os falantes do sexo masculino apresentaram frequência de 32,2% para a forma tu, enquanto as mulheres 40,7%. Para a forma você, os índices são de 68,8% entre homens e 59,3% entre mulheres.

Diferentemente das pesquisas supracitadas, em Manaus, são as mulheres que tendem ao uso do pronome tu. As afirmações de Paiva (1992) não seriam verdadeiras se retomássemos a assertiva de Leão, Altenhofen e Klassmann (2003) quando declaram existir “duas variantes (tu e você) em confronto, a primeira (estigmatizada?) [...], e a segunda mais inovadora (e provavelmente mais prestigiada) [...]” (p. 04). Devemos, contudo, perceber como se dão as relações sociais na comunidade de estudo.

Nossa hipótese para a resolução dessa questão é de que não há entre os manauaras cultos uma negativização social para o pronome tu, talvez por compreenderem (mesmo que inconscientemente) a existência de contextos de uso.

Cientificamos na Metodologia que três informantes haviam participado de dois registros cada. Tais informantes atuaram nos diálogos e nas entrevistas, contextos que favorecem uma ou outra variante, conforme vimos. Há duas mulheres cujos registros são D2-Inq. 01, DID-Inq. 11 e DID-Inq. 13; o outro informante, homem, está nas gravações D2-Inq. 09 e DID-Inq. 12.

No contexto dos diálogos, L1 utilizou o pronome tu oito vezes e você nove (sem levarmos em consideração se a referência é genérica ou específica); na entrevista (DID-Inq. 13), ela fez uso de você 19 vezes. Por sua vez, L2 emprega a forma tu 18 vezes no diálogo e uma vez na entrevista; a forma você é utilizada três vezes em cada registro. O informante masculino usa o tu seis vezes nos diálogos, e a forma você apenas duas. Já na entrevista, utiliza apenas você e por onze vezes.

Todos esses números servem para mostrar que não há implicação de valores sociais negativos quanto ao uso do pronome tu e, talvez por isso, as mulheres não o recriminem.

Fator Faixa Etária

O fator faixa etária é um importante mecanismo de análise nos estudos variacionistas, especialmente, porque os resultados podem indicar estabilidade da variável ou mudança em curso. Isto é, comparando-se os índices obtidos em função desse fator poderemos verificar se a concorrência entre os pronomes é recente na comunidade, se há reinserção ou resistência de um pronome mais antigo, se há um direcionamento para a supressão de uma das formas ou um convívio estável entre elas, etc.

No artigo intitulado “O sujeito pronominal de 2ª pessoa na fala carioca: variação e mudança”, Paredes Silva (2008) traça um panorama das pesquisas que realiza sobre o assunto desde a década de 1980. Ela afirma que, no Rio de Janeiro, “desde a metade do século passado [século XX] prevalece a forma você para o tratamento íntimo do ouvinte” (PAREDES SILVA, 2008, p. 97); por esse motivo, havia “um fato aparentemente novo: o ressurgimento de tu como pronome sujeito na fala carioca, agora com a flexão verbal não padrão” (idem, p. 98). Desse modo, a pesquisadora sugere que, durante um período, o pronome tu caiu em desuso, momento em que vigorou o pronome você. Ela conjectura que o ressurgimento da forma tu foi favorecida pelo processo de cliticização do você (tornando-se cê), fato que gerou a necessidade de um pronome mais forte “principalmente, [para] interpelar o ouvinte de forma mais incisiva” (idem, p. 100). Assim, a recuperação do tu não foi proporcionada somente fatores pragmáticos, mas também puramente linguísticos, como a saliência fônica.

Na variedade manauara, a cliticização do você não pode ser usada como argumento para a existência do tu, porque, das 318 ocorrências daquele pronome, apenas 17 se realizaram como cê (o que representa apenas 5% da amostra). Pelo contrário, parece-nos que

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esse processo está iniciando, mas afeta as três faixas etárias estudadas: são cinco ocorrências na primeira faixa, nove na segunda e três na terceira.

No estudo que realizou em São João da Ponte (MG), Maria Alice Mota (2008) verificou que o tu estava presente em todas as faixas etárias com as quais trabalhou, embora fosse predominante na faixa dos jovens. Ela entende o pronome tu como uma marca de ruralidade, que destoa da urbanidade do Norte mineiro: “O fato de SJP ter mantido o tratamento por ‘tu’, enquanto os municípios vizinhos, mais urbanizados e desenvolvidos o perderam, permite-nos concluir que essa variante linguística seria um vestígio de um modo de falar rural” (MOTA, 2008, p. 83). Assim, a existência desse pronome pode ser considerada como uma resistência. Segundo a pesquisadora, nessa comunidade, os jovens utilizam o pronome tu em um nível de intimidade, sendo uma estratégia linguística para a construção de uma identidade do grupo, ideia que comunga com Lucca (2005).

Tal ideia não parece fundamental em nossas análises. A Tabela 5 mostra que, do mesmo modo que acontece com o fator gênero, o que importa são os contextos de utilização do pronome: tu mais utilizado nos diálogos e você nas entrevistas e elocuções formais.

Faixa etária Pronome D2 DID EF

1ª (20-35 anos)

Tu Você

56 18

05 48

00 07

2ª (36-55 anos)

Tu Você

88 32

04 92

04 28

3ª (56 anos em diante)

Tu Você

08 06

01 54

_

Tabela 5: distribuição das ocorrências em função dos fatores faixa etária e situação discursiva Pode-se notar certa estabilidade quanto aos usos em função de ambos os fatores. O que

nos chama a atenção é o equilíbrio dos pronomes nos diálogos da terceira faixa etária. Vale ressaltar que nessa situação de registro gravamos apenas dois informantes, ambos do sexo masculino. Esse fato pode ter provocado um enviesamento nos resultados, o que pode ser mais bem estudado com a ampliação do acervo.

Se há uma mudança em andamento, não diz respeito à variação entre os pronomes, mas quanto ao acordo verbo-sujeito. Em termos percentuais, a terceira faixa etária apresenta alto índice de concordância canônica com o pronome tu, enquanto a primeira oferece um índice irrelevante, como se pode observar na seguinte Tabela 6:

Faixa etária Concordância Canônica

Concordância Inovadora

1ª (20-35 anos) 1/63 (1,6%) 62/63 (98,4%) 2ª (36-55 anos) 30/96 (31,3%) 66/96 (68,7%)

3ª (56 anos em diante) 8/9 (89%) 1/9 (11%)

Tabela 6: concordância verbal com o pronome tu em função do fator faixa etária Considerações finais

As análises expostas no decorrer do texto apontam para uma não pertinência das variáveis gênero e faixa etária como fatores sociais que influenciam a alternância entre

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pronomes tu e você. Conclui-se, portanto, que a variação é determinada pelo contexto conversacional, pelos tipos de registro.

Retomando a sugestão de Brown e Gilman (1960), em se estabelecer a dicotomia T/V, pronomes de familiaridade e formalidade, de intimidade e distanciamento, verificamos que a forma tu mostrou-se mais frequente como indicador de +envolvimento, -monitoramento e +expressividade, enquanto a forma você assinala a direção contrária. O você, com sua variável cliticizada cê, marca distanciamento social na variedade manauara.

Quanto ao acordo verbo-sujeito (tu), constatamos que a concordância canônica vem sendo suprimida. Apesar de muito utilizada pela terceira faixa etária, seu uso decresce à medida que a idade dos informantes diminui, apresentando na primeira faixa etária um índice irrelevante. Assim, tal fato sugere a existência de uma mudança em progresso.

Há a necessidade de estudos mais detalhados em relação à referenciação do pronome, se genérica ou específica, pois, em determinados registros, o amplo uso de uma forma com referência genérica exige que a outra faça a referência específica.

Também é observável a utilização dos dois pronomes no mesmo enunciado. Esse fato demonstra que não são apenas os fatores sociais que implicam a variação, mas outros mais não estudados aqui por nós.

Como nos restringimos ao estudo da variação na fala culta, sugerimos que se averigúe o comportamento desses pronomes na variedade popular e também em interações de falantes com e sem formação escolar superior. Além disso, lembramos que há na comunidade duas outras formas de se dirigir a segunda pessoa que são o pronome senhor (e variações morfológicas) e sujeito nulo.

Todas essas considerações demandam pesquisas sobre a realidade linguística do Amazonas e do Norte brasileiro como um todo. THE SOCIAL FACTORS’ INFLUENCE IN SHIFTING BETWEEN TU AND VOCÊ PRONOUNS IN

THE MANAUARA SPEECH ABSTRACT: Abstract: This work introduces an analysis of the use of the pronouns tu/você in the Manauara urban speech, with the objective of describing the social factors which influence the variation in discursive situations of formal utterances (EF), dialogical utterances (D2) and interviews (DID). The analyzed corpora belong to the digital data bank of the Projeto Fala Manauara Culta (FAMAC) and are made from a total of 30 recordings. It is considered as social variables: genre, age group, schooling, and be born and be living in Manaus for at least twenty years. Converging the principles of the Variationist Sociolinguistics and of the Functionalism, from the dichotomic proposal of the use of T/V and its social dyads of Brown and Gilman (1960), it was investigated the shifting between tu and você, measuring these occurrences, analyzing the criteria of choices between the available forms to refer to a second person and verifying the social factors and ideological conditioners of these choices. In absolute terms, the results obtained point to the predomination of the innovating form você; nevertheless, the more informal the elocution context is, the more probable is the use of tu.

KEYWORDS: Pronouns of address; Pronoun variation; Manauara cult speech.39 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROWN, R.; GILMAN, A. 2003. The pronouns of power and solidarity. In: Sociolinguistics: the essencial readings. PAULSTON, C. Brat; TRUCKER, G. R. (org.) DIAS, E. P. O uso de tu no português brasiliense falado. 104 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Letras, UnB, Brasília, 2007. 39 Agradecemos à prof. Ms. Maristela Barbosa Silveira por ter traduzido para o inglês título, resumo e palavras-chave.

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FAMAC. Corpora. Disponível em: www.famac-uea.com.br/corpora LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. Trad. Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre e Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. LEÃO, Paula; ALTENHOFEN, Cléo; KLASSMANN, Mário. A variação de “tu” e “você” no português falado no Sul do Brasil. Disponível em: http://www.ufrgs.br/propesq/livro2/artigo_paula.htm Acessado em: 15/02/2011. LUCCA, N. N. G. A variação tu/você na fala brasiliense. 2005. 126 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Letras, UnB, Brasília, 2005. MODESTO, Artaxerxes. Formas de tratamento no Português Brasileiro: a alternância tu/você na cidade de Santos-SP. Revista Letra Magna. n. 07, p. 1-27, 2º semestre, 2007. Disponível em: http://www.letramagna.com/xerxesartigo.pdf. Acessado em: 22/09/2010 MOTA, Maria Alice. A variação dos pronomes ‘tu’ e ‘você’ no português oral de São João da Ponte (MG). 2008. 125 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte, 2008. PAIVA, Maria da Conceição. Sexo. In: Introdução à sociolinguística variacionista. Rio de Janeiro: Cadernos Didáticos UFRJ, 1992. PAREDES SILVA, Vera Lúcia. O sujeito pronominal de 2ª pessoa na fala carioca: variação e mudança. Diacrítica, Minho, n.22, p.93-106, 2008. PRETI, Dino. Sociolinguística: os níveis de fala. 9 ed. São Paulo: Edusp, 2003. SOARES, Maria Elias. As formas de tratamento nas interações comunicativas: uma pesquisa sobre o português falado em Fortaleza. 1980. Dissertação (Mestrado em Letras) – PUC, Rio de Janeiro, 1980.

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A ordem SV/VS no português em aquisição como L2 na fronteira Brasil/Paraguai: uma investigação sociofuncionalista na interface

aquisição/variação

Sebastião Carlos Leite GONÇALVES40 (UNESP/CNPq) Juliana Daher SABATIN41 (UNESP)

Sandra Denise GASPARINI-BASTOS42 (UNESP) RESUMO: Sob perspectiva sociofuncionalista, apresentamos, neste artigo, resultados da investigação da ordem SV/VS em dados de aquisição do português brasileiro (PB) como segunda língua (L2) por crianças paraguaias residentes na fronteira Brasil/Paraguai, as quais têm como língua materna (L1), até idade escolar, o espanhol paraguaio (EP) e/ou o guarani paraguaio (GP). Apesar de se tratar de línguas tipologicamente semelhantes, o EP e o GP apresentam mais padrões de variação na ordem de constituintes sentenciais do que o PB. A hipótese central do trabalho é a de que parâmetros de ordenação de constituintes sentenciais de L1 interferem na aquisição de L2. Os dados foram coletados na escola brasileira frequentada pelas crianças por meio da gravação de interações espontâneas e por meio de entrevistas com pais e professores das crianças. Apoiados no método da Sociolinguística Quantitativa, os resultados apontam para uma confirmação apenas parcial da hipótese de que a ordem VS presente no PB em aquisição como L2 é resultante de transferência de regras das línguas previamente adquiridas pelas crianças.

PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística. Aquisição de L2. Ordem SV/VS. Línguas em contato. Introdução

Desde o trabalho pioneiro de Greenberg (1963) sobre a ordem de Sujeito, Verbo e Objeto (daqui em diante, S, V e O, respectivamente) na oração, é consenso que, numa perspectiva translinguística, o modo como esses constituintes se arranjam no interior da sentença é variável. Dos seis padrões de ordenação possíveis de S, V e O, as línguas naturais distribuem-se em três padrões dominantes e três padrões mais raros. É de Greenberg o quadro abaixo, que sintetiza os padrões tipológicos de ordenação de constituintes sentencias.

Tipo I VSO (p. ex. árabe)

� dominantes Tipo II SVO (p. ex. português, espanhol) Tipo III SOV (p. ex. japonês) VOS, OVS, OSV � raros

Quadro 1: Padrões tipológicos de ordenação de S, V e O (GREENBERG, 1963, p. 61)

Em termos interlinguísticos, no entanto, há, por um lado, línguas de ordenação de constituintes mais rígida, como o japonês, que, apesar de ser língua de caso morfológico, categoricamente posiciona V ao final da sentença (KUNO, 1990), e, por outro, línguas de caso morfológico que apresentam ordenação livre, como o latim, para as quais não parece tarefa fácil estipular uma ordem básica (MITHUN, 1992).

Entre esses dois extremos, há ainda línguas sem marcação morfológica de caso e com

40 CNPq/UNESP – Universidade Estadual Paulista. Departamento de Estudos Linguísticos e Literários. São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. 15054-000 – [email protected] 41 UNESP – Universidade Estadual Paulista. Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos. São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. 15054-000 – [email protected] 42 UNESP – Universidade Estadual Paulista. Departamento de Letras Modernas. São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. 15054-000 – [email protected]

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ordenação flexível, as quais, a depender do contexto sintático, semântico e pragmático, permitem variação em relação a sua ordem não-marcada, como é o caso do português e do espanhol, este com padrões de ordenação mais variável do que aquele, em relação a suas ordenações básicas SVO (OLIVEIRA, 1989; BRAGA & BENTIVOGLIO, 1988; BENTIVOGLIO & WEBER, 1986).

Apesar da diversidade de abordagens e do grande número de investigações sobre a variação na ordem de constituintes oracionais em diferentes línguas, incluindo o português brasileiro (BITTENCOURT, 1980; LIRA, 1982; BERLINCK, 1988; OLIVEIRA, 1989; PEZATTI & CAMACHO, 1997), são raros na literatura estudos que tratem desse tema considerando contextos de aquisição de uma segunda língua (L2) em uma abordagem variacionista, como a que aqui pretendemos desenvolver. Na interface variação/aquisição de L2, outros temas, no entanto, já foram investigados (cf. EMMERICH & PAIVA, 2009; GOMES, 2009; LUCCHESI & MACEDO, 1997).

O resultado da pesquisa que aqui apresentamos centra-se na investigação da ordem de S e V no português brasileiro (PB) em aquisição como L2 (doravante PBAL2) por crianças paraguaias, as quais têm o espanhol paraguaio (doravante EP) e/ou o guarani paraguaio (doravante GP) como língua materna (L1). Para tanto, controlamos um conjunto de variáveis para investigação da ordem de S em relação a V, nos moldes da Sociolinguística Variacionista (LABOV, 1972), pressupondo que resultados quantitativos para variáveis linguísticas podem ser reveladores das regras de L1 que interferem na aquisição de L2. Nossa hipótese principal é a de que, no caso das crianças da fronteira Brasil/Paraguai, parâmetros de L1 influenciem o PBAL2, sendo esses parâmetros não só de natureza intralinguística, mas também de natureza extralinguística.

Além de buscar evidências para a sustentação dessa hipótese, neste trabalho propomos traçar um paralelo entre o PBAL2 por crianças e o PB falado como L2 por adultos da mesma comunidade de fala, tomando por base os resultados da pesquisa sociolinguística realizada por Chaves (1989), sob a hipótese de que a ordem VS, dada a interferência da gramática do EP, é mais frequente na fala das crianças do que na dos adultos.

Este trabalho segue apresentado da seguinte forma: expomos, inicialmente, como metodologia da pesquisa, breve caracterização da situação sociolinguística da fronteira e dos sujeitos selecionados e as variáveis controladas na investigação do fenômeno; em seguida, encontram-se teorizados aspectos da ordem de S e V no PB, no EP e no GP e a noção de transferência (transfer) no processo de aquisição de L2; a esses aspectos teóricos, seguem os resultados para as variáveis selecionadas pelo programa estatístico GOLDVARB. A última seção é reservada às nossas conclusões. Aspectos metodológicos da pesquisa

A comunidade de fala de onde provêm as crianças sujeitos desta pesquisa situa-se na fronteira Brasil/Paraguai, tendo, em território brasileiro, a cidade de Bela Vista (MS), e, em território paraguaio, a cidade de Bella Vista Norte. O intenso contato linguístico nessa área deve-se não somente ao fato de se tratar de região fronteiriça, mas também ao livre acesso entre os dois países. O bilinguismo já estabilizado em terras paraguaias é o que propicia o contato de três diferentes línguas na fronteira: o EP, o GP e o PB.

Em razão das condições socioeconômicas da cidade de Bella Vista (PY) e do livre acesso permitido aos moradores da fronteira, os paraguaios, diariamente, migram para Bela Vista (MS) em busca dos serviços públicos ali oferecidos, principalmente serviços de saúde e de educação, garantidos apenas aos que nascem em território brasileiro. Assim, é comum encontrar nessa região filhos de paraguaios de nacionalidade brasileira, mas que não são falantes do PB, ao menos até a idade normal de escolarização. Por outro lado, é raro encontrar

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brasileiros proficientes em duas e/ou em três línguas, pela exposição a elas, embora sejam ausentes pesquisas nessa direção.

A peculiaridade ocorre no desenrolar do processo de escolarização das crianças paraguaias, que, em sua maioria bilíngue, chegam às escolas brasileiras sem falar o PB. Mesmo diante dessa realidade, na comunicação diária em ambiente escolar, é “vedado” pelos professores e funcionários da escola o uso de qualquer outra língua que não seja o PB. Dessa forma, diferentemente da instanciação de bilinguismo simultâneo na aquisição do EP e do GP, as crianças, coercitivamente, acabam por adquirir uma segunda e/ou terceira língua, conforme o caso, ainda dentro do período crítico de aquisição da linguagem (ELLIOT, 1982), vindo a constituir, assim, na cidade paraguaia da fronteira, uma situação de multilinguismo e multiculturalismo.

Foram seis as crianças paraguaias selecionadas para a pesquisa, as quais, residentes em Bella Vista Norte (PY), encontravam-se, à época da coleta de dados, entre os anos de 2009 e 2010, frequentando a Escola Municipal “Nossa Senhora do Perpétuo Socorro”, de Bela Vista (MS).

Diante da impossibilidade de realização de um estudo longitudinal sobre aquisição de L2, nessas situações, o ambiente escolar não preparado para o acolhimento de crianças falantes de outras línguas nativas, como afirma Gonçalves (1997), é local propício para um estudo transversal, que pode ser realizado escolhendo-se crianças de diferentes séries escolares. Esse procedimento permite prever que o tempo de contato das crianças com a língua falada na escola seja coincidente com o ano/série em que elas se encontram matriculadas.

Em vista desse procedimento se mostrar adequado à investigação aqui relatada, foram selecionadas, então, duas crianças do 1º ano do Ensino Fundamental, duas do 2º ano e duas do 3º ano, por não ser exequível, no período de tempo de realização da pesquisa, o empreendimento de um estudo de natureza longitudinal, o que seria possível somente por meio de acompanhamento das diferentes fases do desenvolvimento linguístico dessas crianças. Adotando-se esse procedimento e seguindo Gonçalves (1997), investigamos a hipótese de que possíveis interferências de padrões de L1 diminuem à medida que aumenta o tempo de contato da criança com L2. O quadro 2 apresenta informações das crianças selecionadas.43

Criança Idade

(anos;meses)

Série do EF

Uso das línguas de contato PB EP GP

Família Escola Família Escola Família Escola B. 6;7 1ª + + + - + - P. 6;3 1ª + + + - - - R. 7;2 2ª + + + - - - G. 7;8 2ª - + + - + - F. 8;1 3ª - +/- + + + - C. 8;3 3ª + + + - - -

Quadro 02: Dados das crianças selecionadas A primeira criança, B., de 6 anos e 7 meses, é a mais falante pelo uso que faz das três

línguas: o PB, na escola e na família, o EP e o GP, na família. As crianças C., de 8 anos e 3 meses, e R., de 7 anos e 2 meses, irmãs, bilíngues, usam

o PB na escola e na família, e o EP apenas na família; têm irmãos e primos brasileiros com os

43 Como garantia de anonimato, as crianças são referidas aqui apenas pelas iniciais do primeiro nome.

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quais convivem nos finais de semana, o que explica suas fluências no PB; ambas não dominam o GP.

A criança P., de 6 anos e 3 meses, é a mais nova e sua família é toda paraguaia; entretanto, seus irmãos mais velhos estudaram no Brasil, e ela, durante as gravações, ressaltou o fato de eles ajudarem-na com as tarefas escolares; também não domina o GP.

A criança F., de 8 anos e 1 mês, foi a menos disposta a interagir durante as gravações, talvez pela pouca fluência em PB; de família paraguaia, ela utiliza tanto o GP quanto o EP em contexto familiar e social; faz uso restrito do PB, mesmo na escola, onde é a única das crianças a usar o EP.

Por fim, a criança G., de 7 anos e 8 meses, tem forte influência do EP, visto que toda sua família fala esse idioma, além do GP; seu contato com o PB se restringe ao tempo que passa no ambiente escolar.

Quanto ao uso das línguas em contato, aspecto preliminarmente investigado por meio de entrevista com os profissionais da escola e com as famílias das crianças, verificamos que todas elas falam o PB mais como meio de comunicação em ambiente escolar. O EP é falado por todas elas de maneira superior ao PB, enquanto o GP, de uso restrito ao convívio familiar, é utilizado somente na interação com pais e com avós monolíngues, que dominam apenas o GP. O uso do EP é predominante no ambiente familiar. Observe-se, ainda, que, em ambiente familiar, as tradições e os costumes no uso do EP e do GP não se alteram.

Para a obtenção de amostras do PBAL2, as crianças foram entrevistadas individualmente e em grupo na biblioteca da escola, durante aproximadamente duas horas, perfazendo cerca de 12 horas de gravação. As entrevistas foram transcritas integralmente e, posteriormente, foram selecionadas unidades sentenciais mínimas, eliminando-se ocorrências de sentenças sem V, sem S ou sem combinação mínima de S e V, independentemente da ordem na sentença. O critério utilizado para se detectar a interferência sintática de L1 sobre L2 foi a verificação de fatores linguísticos, em sua maioria, identificados na literatura e que podem condicionar a inversão da ordem de S e V, conforme mostrado no quadro 03 a seguir.

Variável dependente: ordens SV e VS 1. Fatores de natureza sintático-semântica a) grau de transitividade da construção (HOPPER & THOMPSON, 1980); b) flexão do verbo (CHAVES, 1989); c) estrutura do SN-sujeito (RUBIO, 2008); d) tipo de estado-de-coisas (DIK, 1997); e) advérbio no início da sentença (CHAVES, 1989); f) modalidade de frase (TORREGO, 1984) 2. Fatores de natureza semântica a) tipo de verbo (HALLIDAY, 1994); b) animacidade do sujeito (CHAVES, 1989)

3. Fatores de ordem pragmática a) status informacional do sujeito (BENTIVOGLIO & WEBER, 1986) 4. Variáveis extralingüísticas a) informante; b) sexo/gênero; c) tempo de contato com o PB; d) fluência nas línguas em contato; e) grau de exposição ao português.

Quadro 03: Variáveis controladas nos dados da pesquisa

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Dentre os fatores verificados na análise, são explicitados e exemplificados, neste artigo, apenas os fatores selecionados pelo programa estatístico GOLDVARB, os quais são apresentados de acordo com a ordem de relevância indicada pelo programa, a saber: status informacional do sujeito, tipo de estado-de-coisas, presença de advérbio inicial, animacidade do sujeito, fluência nas línguas de contato.44

Para a implementação do fator de natureza pragmática status informacional do sujeito, serviu-nos de base a taxonomia de Prince (1981), que nos permitiu verificar se se tratava de sujeito portador de informação nova (01a) ou de informação dada (01b).45 (1) a. P: Você estuda aqui faz tempo?

B: Da primera série. P: Essa aqui é sua professora? B: Não, a Miraci é minha professora. [B. 6;7]

b. P: E você gosta da sua professora? B: Gosto. Mas ela não deixa a gente subi na árvore. [B. 6;7]

Seguindo parcialmente a proposta de Prince (1981), consideramos como informação

dada e nova referentes mencionados e não mencionados, respectivamente, em porção anterior do discurso. Alternativamente à proposta de Prince, a de Chafe (1976), de base mais cognitiva, caracteriza o status informacional da seguinte maneira: quando um referente é informação dada, o falante assume que ele esteja disponível na consciência do destinatário no momento da interação, e quando informação nova, que não esteja disponível ao ouvinte. Adotamos em nossa análise a proposta de Prince, por considerarmos que, por se tratar de proposta de base textual, apresenta critérios de mais fácil implementação por parte do analista, diferentemente da proposta de Chafe, a qual requer que se lide com inferências que muitas vezes não são acessíveis ao analista no contexto de interação.

Entre os fatores de natureza sintático-semântica investigados, uma proposta semântica para fazer referência ao evento transitivo codificado na sentença pode ser buscada na tipologia de estado-de-coisas (doravante EsCo), de Dik (1997).

Um EsCo, conceituado como algo que pode ocorrer em algum mundo (real ou mental), localiza-se no espaço e no tempo, tem certa duração, pode ser visto, ouvido ou percebido, e, portanto, ser avaliado em termos de sua realização. A natureza semântica de toda predicação pode ser codeterminada pelos argumentos e adjuntos com os quais um predicado se combina. O EsCo é então uma função composicional de propriedades tanto de predicados quanto de termos.

Os mais importantes parâmetros para uma tipologia de EsCo são, segundo Dik (1997), [+/- dinamicidade], [+/- controle] e [+/- telicidade].

EsCo [+din], ou Evento, envolve algum tipo de mudança de uma entidade, após a ocorrência do evento. No EsCo [-din], ou Situação, as entidades envolvidas são apresentadas como estando ou permanecendo as mesmas durante o intervalo de tempo em que o EsCo ocorre.

EsCo [+con] permite reconhecer o papel que uma entidade tem de determinar a realização ou não do EsCo; a não realização caracteriza o EsCo [-cont].

O EsCo [+tel], ou realização, refere-se a ações totalmente efetuadas que alcançam um ponto terminal natural, enquanto processos [-tel] têm duração não limitada.

44 Para detalhamento das demais variáveis, ver Sabatin (2010). 45 Na interação dialógica, a letra P marca o início do turno da pesquisadora (deslocado à esquerda); as letras iniciais do turno deslocado à direita identificam a fala das crianças (apresentadas no quadro 1).

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Adotando-se, nesta pesquisa, apenas os parâmetros [dinamicidade] e [controle], no quadro 4, a seguir, é apresentada a tipologia básica de EsCo, de que as ocorrências em (02) são exemplos.

Dinamicidade

Controle + Din - Din

+ cont Ação (02ª) Posição (02b) - cont Processo (02c) Estado (02d)

Quadro 04: Tipos de estados-de-coisas (DIK, 1997) (2) a. Daí eu vai tomar banho. [P. 6;3] b. De pé eles ficam. [B. 6;7] c. Transbordô o rio. [G. 7;8] d. Parece um vulto o carro. [G. 7;8]

Essa tipologia de EsCo, embora não adotada em nenhum trabalho que fundamenta

nossa pesquisa, nos pareceu bastante interessante, uma vez que permite verificar se o tipo de EsCo interfere na ordem dos constituintes da sentença.

Em relação ao contexto precedente da sentença, consideramos a presença de advérbio (03a) ou não (03b), fator que, segundo Silva Corvalán (1982), correlaciona-se fortemente com a ordem VS em espanhol, por se tratar de posição usada como mecanismo apresentacional. (3) a. Lá em casa a gente só fala português. [R. 7;2] b. Eu não sei a música do sítio. [R. 7;2]

Em relação à animacidade do sujeito, fator de natureza semântica, Berlinck (1988)

afirma que a verificação dessa variável é importante para o fenômeno da ordem SV/VS. Em vários estudos, a correlação a que se chega é a de que a ordem VS é favorecida pela presença de referente sujeito com traço [- animado]. Esse também é o resultado dos estudos de Chaves (1989), para o PB da fronteira, de Pontes (1987), para a variedade mineira do PB, de Givón (1976), para o hebraico falado em Israel, de Hatcher (1956, apud Chaves 1987), para o espanhol, inglês e alemão, e os de Silva Corvalán (1982), para o espanhol. Em relação a esse critério, realizamos a análise dos dados classificando os sujeitos apenas em [+humano] (04a), e [-animado] (04b). (4) a. Eu num sei como ele feiz isso. [B. 6;7] b. Era lindo o cabelo dela. [P. 6;3]

Como variável extralinguística, investigamos a fluência das crianças nas línguas de

contato, variável que, conforme dados do quadro 1, ficou restrita às variantes fluência no PB e no EP e fluência no PB, no EP e no GP, com três crianças em cada uma delas. Essa variável não leva em conta o nível de fluência em cada uma das línguas nem a equiparação entre cada nível, mas apenas a capacidade de se comunicar nas línguas em contato. Nossa hipótese com essa formulação é a de que quanto maior o número de línguas usadas pelas crianças, maior a possibilidade de interferência de padrões de ordenação de L1 no PBAL2.

Para a realização da análise quantitativa, o processamento dos dados foi feito eletronicamente, empregando-se o “pacote” estatístico GOLDVARB, criado com a finalidade específica de tratamento de fenômenos variáveis. Além da apuração de frequência, o GOLDVARB permite a extração de pesos relativos, que expressam a probabilidade de

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ocorrência do fenômeno variável em análise, frente à consideração dos diferentes contextos variáveis que compõem o envelope de variação.46 A ordem de constituintes sentenciais e a aquisição de L2

Como já deve ter ficado claro até este momento, a ordem do S é um aspecto variável nas línguas em contato na fronteira.

Segundo Dietrich (2009), o GP, língua que provém do tronco tupi-guarani, é uma língua que se caracteriza por mais de quatrocentos anos de influência espanhola. A ordem não-marcada dos constituintes sentenciais do guarani é o padrão OV, com a posição de S relativamente livre. Entretanto, o GP moderno tem se modificado ao longo do tempo, em razão do contato intenso com outras línguas, como o PB e o EP. Segundo Dietrich, no GP moderno a ordem OV não é impossível, porém é pouco frequente. As ordens SVO ou OVS são dominantes, não só na linguagem coloquial como também em textos literários.

Por influência do EP, a ordem dos constituintes no GP tem se tornado bastante flexível, sendo rígida em alguns contextos, como o EP. Dietrich acrescenta que a possibilidade de ambiguidade nas orações com objeto direto favorece a permanência da ordem SVO, como acontece no PB e no espanhol, em geral.

O espanhol caracteriza-se como uma língua de ordem de constituintes flexível, em razão, principalmente, da mobilidade de seus sujeitos e complementos. Em termos tipológicos, como afirma Martínez Caro (2006), o espanhol pode ser considerado como uma língua de ordem dominante SVO, à semelhança da maioria das línguas românicas. Apesar dessa característica predominante, a ordem de constituintes em espanhol admite considerável variação na posição dos constituintes da sentença, em especial do sujeito.

Uma característica típica do espanhol é a possibilidade de se omitir o sujeito quando este representa informação dada ou quando a desinência verbal torna sua presença desnecessária, fato que parece divergir do português (especialmente o português falado), idioma em que a função de sujeito aparece quase sempre preenchida em razão de a desinência verbal nem sempre permitir identificação inequívoca do sujeito gramatical.

Como mostra Martínez Caro (2006), embora a ordem SVO seja típica nas construções transitivas, outras ordens são possíveis sob certas condições. Uma típica exceção, segundo a autora, são construções que trazem, principalmente por razões pragmáticas, argumentos não sujeitos para a posição inicial, tais como deslocamentos e topicalizações. Nesses casos, há uma tendência geral de posposição do sujeito. A ordem OVS é preferida ou mesmo requerida nos predicados que contenham um objeto experienciador (como em Me (experienciador) gusta mucho la ciudad (S)). Essa ordem, baseada numa combinação de fatores sintáticos, semânticos e pragmáticos, apoia-se também na natureza semântica do verbo (nesse caso, gustar) e na tendência universal de se colocar o elemento experienciador na primeira posição.

Há que se considerar, também, a possibilidade de ordem VS não marcada com verbos intransitivos, sendo os do tipo existenciais os que mais favorecem essa ordenação, conforme também atestam Bentivoglio & Weber (1986) para o espanhol falado. E, ainda, algumas orações podem apresentar uma ordem VS por especiais razões pragmáticas, como topicalização e focalização.

Importantes estudos sobre o PB apontam a ordem SVO como a não-marcada (OLIVEIRA, 1989; PONTES, 1987; BRAGA & BENTIVOGLIO, 1988; BERLINCK, 1988; CASTILHO, 1987; BITTENCOURT, 1980; PEZATTI, 1992; PEZATTI & CAMACHO, 1997), estando a ordem VS restrita a alguns contextos linguísticos.

46 Peso relativo acima de 0.5 favorece a atuação de uma variante sobre o fenômeno variável e abaixo, desfavorece tal atuação.

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Apesar da possibilidade de inversão dos constituintes S, V e O em alguns casos, o PB é uma língua em que a ordem dos constituintes tem um valor gramatical, pois, em construções transitivas, por exemplo, mudando-se de posição S e V, corre-se o risco de mudar o significado expresso no enunciado.

No PB, é consensual que o verbo intransitivo é o fator principal da ordem VS (PONTES, 1987; LIRA, 1982, dentre outros). Segundo Pontes (1987, p. 149), a generalização a que se pode chegar para a ordem VS, no PB, ocorre em “ambientes em que não seja necessário recorrer à ordem SVO para distinguir sujeito de objeto [...]. Daí ela ser mais encontrada com verbos intransitivos”. Conforme Pezatti & Camacho (1997), fica na obscuridade a ordem em construções com argumento único, já que a classificação de Greenberg não esclarece se as sequências VS e SV já estariam implícitas nas estruturas básicas depreendidas. O que se pode supor é que essas sequências, nas línguas naturais, têm comportamento semelhante ao dos verbos de dois argumentos.

Tratar a ordem VS como uma forma variante de SV, dentro do modelo laboviano de variação linguística, tem sido alvo de críticas por parte de alguns pesquisadores, por considerarem que elas se encontram em distribuição complementar, não constituindo regra variável. Assim como Berlinck (1988), entendemos que o estudo da regra variável, em tal situação, deve ser empreendido como procedimento de descoberta e como recurso capaz de verificar a ausência de variação.

No tocante à ordem de constituintes sentenciais nas fases de aquisição da linguagem, segundo Bloom (1994), esse parece ser um dos primeiros aspectos a ser dominado pela criança, que elege um padrão de ordenação fixo para marcar relações gramaticais, mesmo em casos em que a ela é fornecida evidência de ordenação de constituintes livre, como, por exemplo, em línguas de marcação morfológica de caso. Até que adquira a morfologia de caso, a criança expressará relações gramaticais recorrendo-se a uma ordem fixa.

Na aquisição de uma L2, entretanto, se L1 e L2 apresentam parâmetros diferentes de ordenação, a criança tende a recorrer aos padrões de ordenação de sua L1. Gonçalves (1997), investigando o PBL2 de crianças que, até idade escolar, falavam unicamente o japonês como L1, mostra que essas crianças transferem o padrão OV do japonês para o PBL2. Reforça essa sua evidência a transferência também de padrões de ordenação interna do SN do japonês para o PBL2, resultando SNs em que o léxico é do português, mas a estrutura é a do japonês.47

Ao tentar formular uma teoria que explicasse a interiorização e aquisição de L2, muitos estudiosos dedicaram-se à análise da transferência, da interferência ou da interlíngua e da fossilização. Nos anos 50, os estudos sobre a transferência remetem à ideia de que essa tem papel fundamental na aquisição de L2 (ORTIZ ALVAREZ, 2002).

Essa teoria de transferência postula ainda que, na aquisição de uma L2, dificuldades ou facilidades são consequências de diferenças e/ou semelhanças que existam entre L1 e L2 (ODLIN, 1989). A transferência de regras semelhantes parece ser aspecto facilitador da aquisição de L2, enquanto a de regras diferentes exige que a criança vá aos poucos eliminando de sua produção em L2 diferenças de padrões entre o que ela ouve e o que ela produz. Em nosso caso, é o que parece ocorrer no PBAL2. Análise quantitativa dos resultados

Das 440 ocorrências analisadas em nosso trabalho, 380 (86,4%) apresentaram a ordem SV e 60 (13,6%), a ordem VS. O fato de prevalecer nos dados a ordem SV, entretanto, não torna menos relevante os resultados para o PBAL2, quando se compara esse resultado aos

47 São exemplos do autor (i) de ordem OV: “Eu churrasco comeu”, “Eu casa dela vai não”; (ii) de ordem complemento-Nome no SN: “Haru de papai” (= papai de Haru), “rei leão do irmão” (= irmão do rei leão).

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obtidos por Chaves (1987), para o PB falado como L2 por paraguaios adultos na mesma área de fronteira. A comparação dos resultados segue na Tab. 1.48

Ordem

Indivíduos SV VS

Crianças 380/440 86,4% 60/440 13,6% Adultos (CHAVES, 1987) 1.230/1.306 94,2% 76/1.306 5,8%

Tab. 1: Frequência de ordem SV e VS no PB da fronteira

Ao compararmos os índices apresentados, verificamos um percentual bem diferente de ordem VS no PBAL2. Enquanto na fala das crianças o percentual é de 13,6% de ordem VS, na dos adultos da mesma comunidade é de apenas 5,8%, diferença bastante significativa. Esse percentual de ordem VS na fala das crianças pode ser explicado não só pela influência do EP, mas também pelo postulado de Givón (1995), sobre o processo de sintaticização da fala da criança e da fala do adulto de modo geral: enquanto esta é marcada por uma maior rigidez dos padrões sintáticos, aquela, estruturada pragmaticamente, apresenta uma sintaxe mais “frouxa”, diferenças que também se verificam entre escrita e fala, entre estilo formal e informal e entre crioulos e pidgins.

Na consideração do postulado givoniano, concluímos que, nos estágios mais iniciais da aquisição do PB como L2, a ordem de palavras é mais livre, também por razões pragmáticas, e nos estágios finais, se torna mais fixa, mais sintaticizada, portanto.

Dos fatores sociais e linguísticos propostos, alguns se mostraram relevantes, em maior ou menor nível, conforme apresentados em (05), respeitando-se a ordem de significância indicada pelo GOLDVARB. (5) Ordem de significância das variáveis selecionadas

1ª) status informacional do sujeito 2ª) tipo de estado-de-coisas 3ª) presença do advérbio inicial 4ª) animacidade do sujeito 5ª) fluência nas línguas de contato

Como se observa, das cinco variáveis selecionadas, uma é de natureza pragmática (1ª),

duas são de natureza sintático-semântica (2ª e 3ª), uma é de natureza semântica (4ª) e uma de natureza social (5ª).

O status informacional do sujeito, único critério pragmático selecionado, foi proposto por ser amplamente aceita a ideia de que S portador de informação nova tende a se pospor a V. Os resultados desse fator discursivo são semelhantes quando comparamos a produção de informantes adultos à de crianças. Expomos na Tab. 2 o percentual e os pesos relativos (PR, daqui em diante) das variantes.

Ordem

Status Inf. VS SV

% PR % PR Dado 21/60=35% .38 274/380=72,1% .62 Novo 39/60=65% .72 106/380=27,9% .28

Tab. 2: Ordem SV/VS, segundo o status informacional do sujeito

48 Sempre que houver similaridade com as variáveis por nós estabelecidas, nossos resultados serão comparados ao trabalho de Chaves (1987) e ao de outros autores, quando pertinente.

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Verificamos, na Tab. 2, que a ordem SV é favorecida por sujeito dado, ou seja, mencionado em discurso anterior. Em relação à ordem VS, o percentual eleva-se consideravelmente quando se trata de sujeito novo, ou seja, introduzido pela primeira vez no discurso. Ao compararmos, na Tab. 3, os resultados apresentados em nosso trabalho aos apresentados por outras três pesquisas, evidencia-se um comportamento regular da atuação do fator status informacional do sujeito sobre a ordem VS.

Ordem

Pesquisas SV VS

Dado Novo Dado Novo PBL2 de crianças da fronteira 72,1% 27,9% 35,0% 65,0% PBL2 de adultos da fronteira (CHAVES, 1987) 96,0% 4,0% 43,4% 56,5% PB adulto do Rio de Janeiro (LIRA, 1982) - - 37,0% 63,0% Espanhol adulto falado nos EUA (SILVA CORVALÁN, 1982)

61,0% 39,0% 39,0% 61,0%

Tab. 3: Ordem SV/VS, segundo o status informacional do sujeito entre diferentes pesquisas49

É possível notar, na Tab. 3, que as porcentagens confirmam a forte tendência de S portador de informação nova favorecer a ordem VS, e S portador de informação dada, a ordem SV, independentemente de se tratar de L2 já adquirida ou em fase de aquisição, como revelam nossos resultados comparados aos de Chaves (1989), ou de PB falado como L1 ou como L2, como mostram nossos resultados e os de Chaves (1989) comparados aos de Lira (1982). Aliás, a convergência desses resultados com os de Silva Corvalán (1982) parece apontar para a atuação do fluxo de informação na ordenação SV e VS como princípio universal, como atestam outras pesquisas envolvendo línguas diferentes (BRAGA & BENTIVOGLIO, 1988; BENTIVOGLIO & ASHBY, 1993).

O grupo de fatores tipo de EsCo, segundo em ordem de relevância, traz como diferencial o fato de não ter sido adotado em nenhuma das pesquisas que serviram como referência ao presente estudo. Os resultados permitem destacar dois tipos de EsCos relevantes para correlação segura com a ordem: Ação e Posição, tendo em vista que os dois outros (Processo e Estado), em princípio, apresentam problemas de distribuição dos dados, com baixo número de ocorrências em uma das variantes de ordem, conforme se verifica na Tab. 4, resultado que exige cautela na sua interpretação.

Ordem

EsCo SV VS

% PR % PR Ação [+din, +cont] 186/380=48,9% .39 33/60=55,0% .61

Processo [+din, -cont] 2/380=0,5% .05 5/60=8,3% .95 Posição [-din, +cont] 182/380=47,8% .63 19/60=31,6% .37 Estado [-din, -cont] 10/380=2,63% .59 3/60=5,0% .41

Tab. 4: Frequência e PR de ordem SV/VS, segundo o tipo de estado-de-coisas

Recorrendo-se aos PRs, verifica-se que o EsCo Ação favorece a manutenção da ordem VS (PR .61), enquanto o EsCo Posição favorece a ordem SV (PR .63). Quanto aos EsCos Estado e Processo, embora apresentem PR acima de .50, os resultados não são plenamente confiáveis, pois no primeiro caso há menos de cinco ocorrências para a ordem VS, e, no segundo, há cinco ou menos ocorrências para ambas as variantes, razão forte para

49 Algumas comparações com outras pesquisas serão feitas apenas por meio de frequência, em razão de os resultados estarem expressos somente em porcentagem.

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desconsiderar os resultados para esses dois tipos de EsCos, apesar de a variável ter sido selecionada como relevante pelo programa estatístico.

Desses resultados, o que se verifica é que a atuação da variável tipo de EsCo está polarizada entre os fatores Ação e Posição, este na manutenção da ordem SV e aquele na da ordem VS. Observe-se, no entanto, que, em razão de esses dois tipos de EsCos serem equivalentes quanto ao traço [controle], é, em última instância, a dinamicidade interna do EsCo que responde pela ordenação de S e V. Assim, pode-se concluir que eventos dinâmicos favorecem a ordem VS, enquanto eventos não dinâmicos favorecem a ordem SV, conclusão que permite reincorporar à análise os EsCos Processo e Estado.

Para o grupo de fatores presença de advérbio inicial, a expectativa era a de que esse fator se mostrasse favorável à ordem VS, tendo em vista que, em tal contexto sintático em espanhol, a regra de inversão é facultativa (TORREGO, 1984). Dessa maneira, em se tratando do PBAL2 na fronteira, é de se esperar que advérbios iniciais favoreçam a ordem VS. Os resultados são os que seguem na Tab. 5.

Ordem

Advérbio inicial

SV VS

% PR % PR

Presença 11/380=2,9% .15 9/60=15,0% .85

Ausência 369/380=97,1% .53 51/60=85,0% .47 Tab. 5: Frequência e PR de ordem SV/VS, segundo a presença de advérbio inicial

Os resultados da Tab. 5 de fato confirmam nossa expectativa inicial de que o advérbio no início da sentença é fator bastante favorável à ordem VS, conforme se pode constatar pelos PRs, que colocam, de um lado, a presença de advérbio inicial com a ordem VS (PR .85) e, do outro, a sua ausência com a ordem SV (PR .53), embora, este último caso possa até ser considerado caso de neutralidade quanto à ordenação de SV.

Por meio da comparação dos nossos resultados aos de Chaves (1987), para a variável presença de advérbio inicial, é possível observar que advérbio no início da sentença é fator que favorece a ordem VS também no PB falado como L2 pelos adultos, muito mais até do que no caso das crianças, como revela a comparação na Tab. 6.

PBL2/Ordem

Adv. inicial Crianças Adultos (CHAVES, 1987)

SV VS SV VS Presença 11/380=2,9% 9/60=15,0% 229/1230=18,6% 44/76=57,9% Ausência 369/380=97,1% 51/60=85,0% 1001/1230=81,38% 32/76=42,1%

Tab. 6: Ordem SV/VS no PB da fronteira, segundo a presença de advérbio inicial

Os resultados de Chaves (1987) demonstram que a presença de advérbio inicial é bastante favorável à ordem VS (57,9% dos casos), fato que pode ser explicado com base no argumento de Silva Corvalán (1982), que considera o advérbio inicial um mecanismo apresentacional introdutório. Nossos resultados em porcentagem não são tão expressivos quanto os de Chaves (1987), mas demonstram claramente que diante de advérbio inicial é maior a frequência de ordem VS (15%) do que de SV (2,9%).

Para a variável animacidade do sujeito, verifica-se na literatura que a ordem VS é favorecida com sujeito não-humano (GIVÓN, 1976; LIRA, 1982). Assim, a expectativa era de que haveria maior percentual de ordem SV com sujeitos [+ humano] e VS com sujeitos [-animado]. Os resultados obtidos para essa variável seguem na Tab. 7.

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Ordem

Sujeito

SV VS

% PR % PR

[+ humano] 348/380=91,5% .54 40/60=66,6`% .46

[- animado] 32/380=8,5% .20 20/60=33,4% .80 Tab. 7: Frequência e PR de ordem SV/VS, segundo a animacidade do sujeito

Convergindo com resultados de outras pesquisas, a hipótese aqui também se confirma

para a atuação da variável animacidade do sujeito: a ordem SV é levemente favorecida por sujeito [+ humano] (PR .54), enquanto a presença de sujeito [- animado] favorece fortemente a ordem VS. A relevância da atuação dessa variável mostra conformidade tanto com os dados do PBAL2, como também com os do PB falado como L2 por adultos da mesma região, segundo mostram os resultados de Chaves (1987), expostos na Tab. 8.

PBL2

Sujeito Crianças da fronteira Adultos da fronteira (CHAVES, 1987) SV VS SV VS

[+ humano] 348/380=91,5% 40/60=66,6% 1175/1230=95,5% 63/76=82,9%

[- animado] 32/380=8,5% 20/60=33,4% 55/1230=4,5% 13/76=17,1%

Tab. 8: Ordem SV/VS no PB da fronteira, segundo a animacidade do sujeito

Na tabela anterior, verificamos que no PBAL2, o percentual de ordem VS com referente sujeito [- animado] é praticamente o dobro (33,4%) do percentual do PB falado como L2 pelos adultos, que apresenta 17,1% de ordem VS. Esse resultado demonstra que a criança parece ser mais sensível a essa regra semântica do que o adulto.

Por fim, o único fator extralinguístico selecionado foi fluência nas línguas de contato. A hipótese para esse grupo era a de que quanto maior o número de línguas de uso pela criança, maior seria a ocorrência de ordem VS, pelo fato de ela recorrer à sintaxe de L1 no uso de L2.50 Dessa maneira, ocorreria que, tendo a criança fluência no PB, no EP e no GP, consequentemente, ela recorreria à sintaxe do EP e do GP, podendo, nesse caso, haver maior ocorrência de ordem VS, do que no caso de crianças fluentes somente em PB e em EP. Os resultados seguem na Tab. 9.

Ordem

Língua de uso SV VS

% PR % PR

PB e EP 303/380=79,7% .55 42/60=70,0% .45

PB, EP e GP 77/380=20,3% .35 18/60=30,0% .65

Tab. 9: Frequência e PR de ordem SV/VS, segundo a fluência nas línguas de contato

Observa-se, nos resultados da Tab. 9, que o PR de .65 para fluência nas três línguas de contato leva à confirmação da hipótese de que a fluência em mais línguas favorece a ordem VS, resultado que ratifica a ideia de que, no momento de adquirir o PB, as crianças se valem de regras sintáticas das línguas a que têm acesso.

50 No caso de aquisição simultânea de duas línguas desde o início do processo de aquisição da linguagem, não há como decidir em favor de uma ou outra língua como L1. Na literatura especializada sobre bilinguismo, considera-se, nesse caso, que a criança tem duas línguas maternas (DE HEREDIA, 1989).

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Conclusão

Na proposição desta pesquisa, quatro hipóteses movimentaram a investigação do PBAL2 na fronteira. Como hipótese principal, postulamos que a ordem VS seria resultado de transferências de regras da(s) língua(s) previamente adquiridas pelas crianças, o EP e o GP, línguas tipologicamente semelhantes quanto à ordenação de seus constituintes oracionais. Como hipóteses secundárias, postulamos que (i) a frequência de ordem VS seria maior na produção dessas crianças do que na dos adultos da mesma região fronteiriça que usam o PB como L2; (ii) quanto maior o número de línguas usadas pelas crianças (= fluência), maior a possibilidade de interferência da(s) língua(s) previamente adquiridas na aquisição do PB como L2; (iii) com o aumento de tempo de contato das crianças com o PB, diminuem as interferências da(s) língua(s) previamente adquirida(s).

Relativamente à hipótese principal, ela se confirma parcialmente na correlação com as outras hipóteses, uma vez que fatores que seriam determinantes para comprovar a interferência de L1 em L2 (como tipo semântico de verbo, modalidade de frase, grau de transitividade da construção) não foram selecionados pelo programa estatístico.

Iniciando essa discussão pelas variáveis linguísticas selecionadas, constatamos que status informacional do sujeito, presença do advérbio inicial e animacidade do sujeito correlacionam-se com a ordem VS, independentemente de línguas, de dialetos de uma mesma língua ou de fases do PB como L2, como mostramos na revisão de literatura e nos resultados comparativos. Podendo ser essas variáveis de caráter universal na ordenação de S e V, não podemos concluir que sejam elas atuantes na transferência da ordem VS para o PBAL2. A variável tipo de EsCo, pelo seu caráter inovador na postulação dos contextos variáveis e pela sua ausência em estudos sobre ordem de constituintes oracionais, impede-nos de estabelecer comparações que possam assegurá-la como variável linguística que, de fato, leva à interferência de L1 na L2 em aquisição. Parece-nos mais sensato, seguindo tendência das demais variáveis linguísticas selecionadas, não atribuir peso aos resultados alcançados em torno dos fatores dessa variável para confirmar a hipótese principal.

Relativamente à hipótese auxiliar (i), na comparação da frequência de ordem VS na produção das crianças e dos adultos da fronteira, mostramos que, de fato, um processo de fixação da ordem toma lugar no PB usado como L2 pelos adultos, uma vez que a frequência de ordem VS no PBAL2 é um pouco mais do que o dobro (13,6%) em relação ao PB usado pelos adultos. Esse resultado auxilia na confirmação da hipótese principal, uma vez que se espera que as crianças cheguem à fase adulta usando o PB como L2 de modo mais livre de interferências da(s) língua(s) que adquiriram previamente.

Em relação às variáveis linguísticas propostas e não selecionadas na análise quantitativa (cf. quadro 3), para modalidade da frase a expectativa era a de que esta seria uma das mais relevantes para a comprovação da hipótese (i), uma vez que a língua espanhola apresenta regras rígidas de inversão de S em sentenças interrogativas (TORREGO, 1984), mas não o PB. Embora não tenha sido selecionada, a frequência de ordem VS em contextos de interrogativas (26%) é o dobro da de contextos de declarativas (13%), resultado que apenas indicia a interferência de padrões sintáticos de L1 em L2, uma das razões de considerarmos a comprovação da hipótese (i) apenas parcialmente.

Para a verificação da hipótese (ii), a única variável extralinguística selecionada, fluência nas línguas de contato, nos termos por nós postulados, constitui inovação desta pesquisa. A expectativa subjacente a ela pode ser confirmada, uma vez que, quanto maior a fluência da criança nas línguas de contato da região, maior a ocorrência da ordem VS, resultado que constitui também explicação auxiliar para a confirmação parcial da hipótese (i).

Das variáveis extralinguísticas não selecionadas, tempo de contato com o PB permitiu confirmar a hipótese (iii). Os resultados mostraram que, à medida que aumentam os

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anos de contato com o PB, diminui a frequência da ordem VS (49%, 35% e 17%, para crianças no primeiro, no segundo e no terceiro ano de contato, respectivamente), embora não se possa afirmar o contrário para a ordem SV (42%, 28% e 30%, para crianças no primeiro, no segundo e no terceiro ano de contato, respectivamente). Esse resultado mostra que à medida que aumenta o tempo de exposição da criança à língua alvo, ela vai eliminando de L2 as interferências da(s) língua(s) previamente adquirida(s). Assim, também essa variável, apesar de não selecionada, contribui para a confirmação parcial da hipótese principal.

Em termos concludentes, podemos afirmar que a ordem VS no PB inicial das crianças da fronteira encontra sustentação mais em fatores linguísticos de ordem universal do que em fatores que possam justificar a influência de regras específicas de L1 sobre a L2 em aquisição. Quando regras específicas são atuantes, essas podem constituir apenas explicações “ad hoc” da interferência de L1 na L2 em aquisição.

SV/VS ORDER IN ACQUISITION OF PORTUGUESE AS L2 IN BRAZIL/PARAGUAY BORDER: A SOCIOFUNCTIONALIST INVESTIGATION ON ACQUISITION/VARIATION INTERFACE

ABSTRACT: Under sociofunctionalist approach, in this paper we analyze SV/VS order in acquisition of Brazilian Portuguese as a second language by paraguayan children who lives in Brazil/Paraguay border. These children speak paraguayan Spanish and/or Guarani until scholar age. The data were collected in the Brazilian school where children study, in a natural interaction context. Based on Sociolinguistic Quantitative method, the results indicate that the VS order in Brazilian Portuguese in acquisition as a second language is a result of transfer of rules from languages acquired early by children.

KEYWORDS: Sociolinguistics. L2 acquisition; SV/VS order; Linguistic contact. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENTIVOGLIO, P.; WEBER, E. G. A functional approach to subject word order in spoken Spanish. In: JAEGGLI, O.; SILVA CORVALÁN, C. Studies in Romance linguistics. Dordrecht: Foris, 1986. p. 23-40. BENTIVOGLIO, P.; ASHBY, W. J. Estrategias para introducir información nueva en el discurso: un análisis comparativo español francés. Anuario de lingüística hispánica, v. 11, p. 43-55, 1995. BERLINCK, R. de A. A ordem V SN no português do Brasil: sincronia e diacronia. 288f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1988. BITTENCOURT, V. O. Considerações sobre as condições sintáticas da posposição do sujeito em português. Ensaios de linguística, v. 3, p. 72-86, 1980. BLOOM, P. (ed.) Language acquisition: core readings. Cambridge: The MIT Press, 1994. BRAGA, M. L.; BENTIVOGLIO, P. Espanhol, português e ordem de palavras. D.E.L.T.A., v. 4, n. 2, p. 163-182, 1988. CASTILHO, A. T. (org.). A ordem do sujeito nominal no português culto falado em São

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Interpretação de padrões de covariação

Livia OUSHIRO51

RESUMO: A metodologia de análises quantitativas dos estudos sociolinguísticos (Sankoff, 1980; Guy, 2007 [1993]; Bayley, 2002), com auxílio de programas como GoldVarbX e Rbrul, constitui uma valiosa ferramenta para a investigação da língua em uso, pois permite entrever padrões de covariação que podem não ser aparentes de outro modo. Entretanto, a simples identificação de correlações não conduz automaticamente à interpretação de seu significado; verificada uma correlação entre duas variáveis A e B, cabe interpretar se A motiva B, se B motiva A ou, ainda, se A e B são motivadas por uma terceira variável C. Com esse pano de fundo, este trabalho discute resultados de análises quantitativas sobre o emprego variável de formas interrogativas, definidas pela posição do constituinte interrogativo: (a) pré-verbal (“Onde (que/é que) você mora?”); e (b) pós-verbal/in-situ (“Você mora onde?”). A discussão desses resultados concerne a uma teoria da língua em uso na medida em que visa ao exame dos mecanismos de seu funcionamento e das razões pelas quais não se observa a categoricidade de uma única forma linguística.

PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística; Análises quantitativas; Interpretação de resultados; Interrogativas-Q. Introdução

Este artigo discute a questão da interpretação de resultados de análises quantitativas, dentro do arcabouço teórico e metodológico da Sociolinguística Variacionista (Labov, 1972; 2006 [1966]). Essa linha de estudos, como é de conhecimento corrente, assume que a variação linguística verificada na língua em uso, longe de ser assistemática, é estruturada, forma padrões e exibe heterogeneidade ordenada (Weinreich et al, 1968). Assim, os casos de alternância entre “nós vamos”/“nós vai” (Cf. p.ex. Rodrigues, 1987), entre a realização média alta ou alta de vogais pré-tônicas em palavras como “menino”/“minino” (Cf. p.ex. Celia, 2004), entre a presença e a ausência de morfema de plural em sintagmas nominais como “as pessoas”/“as pessoa” (Cf. p.ex. Scherre, 1997) não são aleatórios ou caóticos, mas correlacionam-se a outras variáveis, linguísticas ou não-linguísticas. Esses padrões de covariação podem ser investigados e descritos através de análises quantitativas, mais comumente com o auxílio dos programas GoldVarb X e Rbrul, que constituem valiosas ferramentas no estudo da variação e da mudança linguística.

Contudo, a simples identificação de correlações não conduz automaticamente à interpretação de seu significado. É certo que o sociolinguista, ao levantar hipóteses de correlação sobre a variação nos usos linguísticos e ao operacionalizar tais hipóteses em grupos de fatores, está em busca de explicações para a alternância. No entanto, correlação não é sinônimo de motivação: a observação de que determinado grupo de fatores se correlaciona ao emprego variável de formas linguísticas não implica, necessariamente, que tal grupo seja o causador da heterogeneidade e da instabilidade na relação forma-função dentro do sistema linguístico.

Desse modo, verificada uma correlação entre duas variáveis A e B, cabe interpretar se A motiva B, se B motiva A ou, ainda, se A e B são motivadas por uma terceira variável C (ver Fig.1); em todos esses casos, deve-se buscar uma explicação plausível para que os dados se organizem do modo como se observou. Para ilustrar essa problemática, tome-se como exemplo uma conhecida variável social dos estudos variacionistas: o sexo/gênero dos falantes. Frequentemente se verifica, em diversas comunidades e em diferentes fenômenos linguísticos

51 USP – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de Linguística. São Paulo – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

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em variação, que mulheres apresentam a tendência de empregar formas consideradas “mais corretas” ou “de prestígio” e, inversamente, que homens tendem a empregar as formas “não-padrão” ou “estigmatizadas” naquela comunidade (Chambers, 1995; Labov, 2001; Cheshire, 2002; Paiva, 2004). A recorrência dessa correlação certamente é digna de nota. Contudo, a explicação para esse fenômeno é menos consensual; para dar conta dessa correlação, já se sugeriu que as mulheres tendem a empregar formas de prestígio como maneira de tentar superar sua posição desprevilegiada na sociedade (Fasold, 1990), de não se identificar simbolicamente com a promiscuidade (Gordon, 1997), de manter a face em interações nas quais não detêm o poder (Deuchar, 1988), de adquirir status social indiretamente, enquanto os homens podem fazê-lo através de sua ocupação e renda (Trudgill, 1972). Também já se postulou que as mulheres teriam uma maior capacidade neurobiológica para a linguagem, de modo que uma expectativa é que elas tenderiam a um domínio de uma gama maior de variantes na comunidade (Chambers, 1995). Explicações alternativas argumentam que não são as mulheres que favorecem as formas de prestígio, mas sim que são as formas por elas empregadas que tendem a ser vistas como “mais corretas” (Milroy et al., 1994), ou ainda que não são as mulheres que favorecem as formas de prestígio, mas sim que são os homens que se orientariam a formas de prestígio encoberto, em geral identificadas com classes sociais mais baixas, cujo trabalho mais frequentemente braçal se relaciona simbolicamente com ideais de virilidade (Cheshire, 2002). Independentemente da interpretação que se prefere adotar, fica claro que a explicação é sempre mais complexa do que a descrição dos fatos linguísticos, fornecida através da análise de correlações.

(i) A → B

Variável A motiva variável B.

(ii) A ← B Variável A é motivada por variável B. (iii) A ← C → B

Variáveis A e B são motivadas por variável C.

Figura 1: Possibilidades de interpretação para a correlação entre duas variáveis A e B.

Neste trabalho, objetiva-se discutir duas questões relacionadas à interpretação de

resultados de análises quantitativas, a saber, o direcionamento da correlação e os fatores desencadeadores da variação, com base em um estudo do emprego variável de interrogativas de constituinte no português paulistano contemporâneo (Oushiro, 2011).

Interrogativas de constituinte referem-se a sentenças que contêm um pronome, advérbio ou adjetivo interrogativo: (o) que, que + NP, qual(-is), qual(-is) + NP, quanto(-a, -os, -as), quanto(-a, -os, -as) + NP, quem, como, quando, onde e por que. Na variedade paulistana falada, há pelo menos quatro possibilidades de estruturação sintática dessas interrogativas, como mostram os exemplos em (1):52

(1) a. Interrogativas-qu: Quando você vem?

b. Interrogativas qu-que: Quando que você vem? c. Interrogativas é-que: Quando é que você vem? d. Interrogativas qu-in-situ: Você vem quando?

52 Ainda é possível citar duas outras estruturas de interrogativas de constituinte atestadas no PB: Q que é que – p.ex., “O que que é que você está querendo?” (Mioto, 1997), e É Q que – p.ex. “É o que que ele quer?” (Lessa de Oliveira, 2005), em que “Q” corresponde ao constituinte interrogativo. Como essas formas não são produtivas no português paulistano atual, elas não serão discutidas aqui.

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Essas estruturas foram estudadas em um corpus composto de 53 entrevistas sociolinguísticas com informantes paulistanos,53 gravadas entre os anos de 2003 e 2008 por alunos do curso de Sociolinguística da USP, alguns dos quais também paulistanos; dado o fenômeno linguístico investigado e dada a variabilidade do corpus quanto aos documentadores, decidiu-se incluir as ocorrências de interrogativas de constituinte não apenas da fala de informantes, mas também da fala de 19 alunos-documentadores.54

Antes de discutir possíveis interpretações para as correlações observadas, no entanto, é necessário fazer uma distinção conceitual entre “interrogativas” e “perguntas”. Ambos os termos muitas vezes são tomados como sinônimos na linguagem cotidiana e mesmo em textos especializados. No entanto, dentro de uma perspectiva que se preocupa em descrever os usos linguísticos, faz-se necessário discriminar, ainda que brevemente, aquilo que se entende como formas em alternância daquilo que é definido por funções dessas mesmas formas. Aqui, entende-se “pergunta” como expressões que desempenham funções discursivas, enquanto o termo “interrogativa” é usado para se referir a estruturas sintáticas. Embora muitas vezes uma expressão possa ser, ao mesmo tempo, uma interrogativa e uma pergunta, esta relação forma-função nem sempre coincide: uma mesma forma pode exercer mais de uma função, e uma mesma função pode ser expressa de diversas formas. De fato, é exatamente tal relação assimétrica que caracteriza a variação linguística. Conforme lembram Milroy & Gordon (2003, p. 170): “(...) uma vez que não há relação isomórfica entre função e forma, perguntas nem sempre são realizadas sintaticamente como interrogativas e formas interrogativas podem realizar muitas funções discursivas.”55

Neste artigo, o conjunto de dados analisados se define, de modo amplo, pela intersecção de forma e função: formas interrogativas que têm a função de perguntas, sejam elas perguntas que de fato buscam uma informação (abaixo denominadas “perguntas pragmaticamente sinceras”), retóricas (cuja resposta é óbvia dado um certo contexto discursivo) ou de estruturação do discurso (cuja resposta é fornecida pelo próprio falante corrente). Apresentam-se análises que enfocam a posição do constituinte interrogativo: pré-verbal, como em (1a-c), ou pós-verbal, como em (1d). Oushiro 2011 constatou uma correlação entre a variável Posição do Constituinte Interrogativo e diversas variáveis linguísticas e não linguísticas, dentre as quais se encontram a extensão da sentença interrogativa, o grau de “espontaneidade” da pergunta, o grau de ativação do fundo comum entre os interlocutores e o grau de relação entre documentador e informante.

A discussão que segue se organiza com base nas questões (i) da direção da correlação e (ii) de possíveis fatores subjacentes às variáveis investigadas. O artigo se encerra com um resumo dos resultados e suas consequências para uma teoria da língua em uso.

A direção da correlação

Na análise qualitativa do emprego variável de interrogativas de constituinte, percebeu-se que interrogativas qu-in-situ pareciam ser mais curtas (“Você nasceu onde?”; “Você faz o 53 Essa amostra é estratificada de acordo com o sexo/gênero, a faixa etária e a escolaridade do falante. Para uma análise dessas variáveis sociais, cf. Oushiro (2010, 2011). 54 Os 53 documentadores foram contatados através de seus endereços eletrônicos e a eles foi enviado um questionário que teve o duplo objetivo de obter a sua autorização para o uso/análise dos dados de sua fala, assim como maiores informações a respeito de seu perfil sociolinguístico (idade, cidade de nascimento, bairros/locais em que já morou, ocupação, escolaridade e profissão dos pais) e da situação da entrevista sociolinguística (grau de relação com o informante, local da gravação). Dos documentadores que responderam ao questionário, 19 eram paulistanos. 55 Tradução própria do seguinte texto original: “(...) since there is no isomorphic relationship between function and form, questions are not always realized syntactically as interrogatives and interrogative forms may realize many different functions.”

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quê?”). Levantou-se então a hipótese de que isso poderia ocorrer a fim de facilitar a entonação de pergunta. Observe-se a ocorrência 2a abaixo, realizada como uma interrogativa com constituinte interrogativo pré-verbal:

(2) a. Cecília: por que você vai ser contra a transformação de uma língua que é algo tão...

tão... enraizado no indivíduo né? (F2S-INF)56 b. você vai ser contra a transformação de uma língua que é algo tão... tão... enraizado no indivíduo por quê?

A realização alternativa em (2b), com constituinte interrogativo pós-verbal ou in situ, é

perfeitamente gramatical na língua. No entanto, pode-se prever que, quanto mais longa a sentença, mais inviável ela se torna com a estrutura de uma interrogativa qu-in-situ – tanto por questões prosódicas quanto de facilidade de processamento cognitivo da sentença, por parte do falante ou do ouvinte.

As ocorrências foram codificadas de acordo com o número de palavras na sentença em que se encontra o constituinte interrogativo a partir dos seguintes critérios: (a) a variante interrogativa conta como uma palavra, i.e. “por que”, “por que que” e “por que é que” contam igualmente como uma palavra; (b) expressões lexicalizadas/gramaticalizadas (“a gente”, “o(a) senhor(a), “a respeito de” etc.) contam como uma palavra; (c) excluem-se marcadores discursivos (“né”, “assim”, “então”, “daí” etc.), hesitações (é:::... ahn...) e vocativos. Os 19 fatores iniciais, de 2, 3, 4... até 20 palavras, foram posteriormente reagrupados em dois: de 2 a 6 palavras e de 7 a 20 palavras. Os resultados da análise quantitativa de covariação se encontram na Tabela 1:

P.R. % N in-situ N total Número de palavras na oração De 2 a 6 palavras .54 27,3 183 670 De 7 a 20 palavras .42 13,4 44 329

range: 12 22,7 227 999 Tabela 1: Correlação entre interrogativas qu-in-situ e Número de Palavras na Oração. Input: 0,115; p < 0,05. Rodada com 7 outros grupos de fatores.57

O grupo de fatores Número de Palavras na Oração é selecionado como significativo (p

< 0,05, range: 12) para a variação na posição do constituinte interrogativo: sentenças mais curtas, com 2 até 6 palavras, favorecem o emprego de interrogativas qu-in-situ, com peso relativo de 0,54, enquanto sentenças mais longas, com 7 até 20 palavras, desfavorecem a estrutura, com peso relativo de 0,42. Esse resultado, em princípio, parece confirmar a hipótese inicial.

No entanto, é possível questionar essa interpretação e sugerir uma explicação alternativa: em vez de a extensão da sentença influenciar a estrutura da interrogativa, não seria a estrutura interrogativa que influencia a estrutura da sentença? Em uma análise que inverte o

56 Todas as ocorrências do corpus são apresentadas e itálico, seguidas do perfil sociolinguístico do falante: seu sexo/gênero (M; F), sua faixa etária (1 – de 20 a 30 anos; 2 – de 25 a 35 anos; 3 – mais de 50 anos), sua escolaridade (G – até Ensino Fundamental II; S – Ensino superior completo ou incompleto) e seu papel na entrevista sociolinguística (DOC – documentador; INF – informante). 57 Faixa Etária, Espontaneidade da Pergunta, Grau de Relação entre Documentador e Informante, Grau de Ativação do Fundo Comum, Ocorre outro Elemento antes da Oração Principal?, Conjunto de Respostas Previstas, Função Sintática do Constituinte Interrogativo.

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direcionamento da correlação – Número de palavras como variável dependente e Posição do constituinte interrogativo como variável independente (ver Tabela 2) – o efeito parece ser mais significativo (p < 0,001; range: 21), visto que há um forte desfavorecimento de sentenças mais extensas com as interrogativas qu-in-situ (P.R. 0,34).

P.R. % N sentenças longas

N total

Posição do constituinte interrogativo Q pré-verbal .55 36,9 285 772 Q in situ .34 19,4 44 227

range: 21 32,9 329 999 Tabela 2: Correlação entre sentenças longas e Posição do Constituinte Interrogativo. Input: 0,323; p < 0,001. Rodada one-level.

É necessário, claro, tomar cuidado com os resultados quantitativos e não tomá-los

prima facie como evidência de direcionamento da correlação. A análise da Tabela 2 refere-se a uma rodada one-level, sem a inclusão de outros grupos de fatores, uma vez que não faria sentido incluir outras hipóteses de correlação, levantadas em princípio para a Posição do Constituinte Interrogativo (in situ ou não), em uma análise que incluía a extensão da sentença como variável dependente. Seria mais adequado comparar os resultados da Tabela 2 com uma rodada igualmente one-level de Número de Palavras na Oração como variável independente (ver Tabela 3).

P.R. % N in-situ N total

Número de palavras na oração De 2 a 6 palavras .57 27,3 183 670 De 7 a 20 palavras .35 13,4 44 329

range: 22 22,7 227 999 Tabela 3: Correlação entre interrogativas qu-in-situ e Número de Palavras na Oração. Input: 0,227; p < 0,001. Rodada one-level.

Nesta rodada, Número de Palavras na Oração é novamente selecionado, mas desta vez

com range de 22 e p < 0,001. Esses resultados são bastante semelhantes àqueles em que o direcionamento da correlação foi invertido (Cf. Tabela 2), de modo que é difícil determinar, somente a partir desses parâmetros, a interpretação mais plausível para a correlação verificada.

Esquematicamente, a questão se coloca do seguinte modo:

A → B

A ← B

Sentenças mais curtas ↔ qu-in-situ Sentenças mais longas ↔ Q pré-verbal

Figura 2: Direção da correlação.

São sentenças mais curtas que favorecem o emprego de interrogativas qu-in-situ, ou é

a estrutura de qu-in-situ que privilegia um “encurtamento” da sentença? Ou, ainda, são

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sentenças mais longas que favorecem o emprego de interrogativas com constituinte interrogativo pré-verbal, ou é o emprego de um Q-pré-verbal que favorece um “alongamento” da sentença?

Parece fazer mais sentido imaginar que é a estrutura da sentença interrogativa que tem uma influência em sua extensão do que o contrário; ao empregar uma interrogativa com constituinte pré-verbal (“Onde (que/é que) você mora?”), o falante teria a opção de continuar elaborando-a (“Onde (que/é que) você mora aqui na cidade de São Paulo...”). Ademais, é possível que, por questões de cooperação comunicativa, um falante, ao iniciar uma sentença sem constituinte interrogativo (“Você mora...” ) – que em princípio também poderia se tornar uma pergunta total (“Você mora aqui?”), uma afirmação (“Você mora em São Paulo.”), um pedido de confirmação (“Você mora em São Paulo, né?”) etc. –, tende a empregar o constituinte interrogativo tão logo quanto possível, a fim de esclarecer suas intenções comunicativas naquele momento.58 Embora possa haver diferenças prosódicas entre uma pergunta total, uma pergunta parcial e uma afirmação, tais distinções muitas vezes se diluem na comunicação face-a-face, já que o processamento em linha costuma gerar pausas, hesitações e truncamentos. Nesse sentido, a análise mais plausível parece ser aquela que entrevê a Posição do Constituinte Interrogativo como variável independente, que influencia a extensão da sentença interrogativa (Tabela 2).

Um denominador comum?

A segunda questão interpretativa diz respeito a fatores que possivelmente desencadeiam e condicionam a variação linguística. Na análise das interrogativas de constituinte, levantaram-se hipóteses de correlação entre a posição do constituinte interrogativo e grupos de fatores relacionados ao contexto discursivo-pragmático.

Visto que a análise incluiu dados de fala dos documentadores, que se pautaram por um roteiro de entrevista, o grupo de fatores Grau de Espontaneidade da Pergunta buscou verificar se a pré-formulação de perguntas em um roteiro tinha influência no emprego variável de interrogativas, já que todas elas apresentavam-se como interrogativas com constituinte interrogativo pré-verbal (p.ex., “Em que bairro de São Paulo você mora?”, “Até que série você estudou?”). Essa variável se restringe, portanto, apenas aos dados dos documentadores. No roteiro, havia um grupo de perguntas sobre percepções linguísticas, chamadas de obrigatórias, que deveriam ser feitas compulsoriamente ao fim da entrevista e em uma determinada ordem, sem alterações (3-a); outras partes da entrevista foram divididas em temas, com algumas perguntas sugeridas, mas não obrigatórias (3-b); outras perguntas feitas pelos documentadores podem ser consideradas temáticas, já que se enquadram em temas arrolados no roteiro (3-c); além dessas perguntas, os alunos deveriam preencher uma ficha com dados pessoais do informante (nome completo, idade, data de nascimento etc.), que poderiam ser obtidos ou não durante a gravação (3-d); por fim, há perguntas que surgem da própria interação, a partir de informações dadas pelos informantes durante a entrevista e que, assume-se, não foram formuladas previamente (3-e). Assim, esses fatores se organizam em um contínuo de espontaneidade, desde as perguntas obrigatórias, para as quais os alunos foram explicitamente instruídos a seguir tal e qual, até perguntas que não eram previstas no roteiro. A expectativa era a de que perguntas espontâneas apresentariam uma maior tendência a serem empregadas com a estrutura de interrogativas qu-in-situ. Alguns exemplos de cada tipo de pergunta são fornecidos abaixo:

58 Não se pretende sugerir, no entanto, que o falante faça isso de modo consciente.

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(3) Espontaneidade da pergunta a. Obrigatória

(i) Ligia: tá... e quando você tá conversando com alguém... qual que você fala mais... “nós” ou “a gente”? (F1S-DOC) (ii) Carlos: entendi... é... quando você está falando sobre você junto com mais alguém... você usa mais que palavra “nós”... ou “a gente”? (M3S-DOC)

b. Sugerida (i) Helena: pensando em São Paulo... na cidade... qual que é o maior problema que cê acha que é [hes.] tem... a cidade de São Paulo? segurança... roubo trânsito? (F1S-DOC) (ii) Amanda: cê pensa que tem que ser mais importante o quê? segurança transporte educação... (F1S-DOC)

c. Temática (i) Mariana: e o que que você acha que seria uma solução... pro transporte? (F1S-DOC) (ii) Rafael: aqui perto tem quantas escolas aqui... na região... assim? (M1S-DOC)

d. De dados pessoais (i) Renata: que escola você estudou? que faculdade você fez? (F1S-DOC) (ii) Rafael: e:: o senhor estudou em que escolas? (M1S-DOC)

e. Espontânea (i) Fernanda: e como que é esse curso? explica um pouquinho (F1S-DOC) (ii) Regina: você aluga mais ou menos quantos filmes assim por... por mês? (F1S-DOC)

Weiner & Labov (1983 [1977]), em seu estudo sobre a alternância entre voz ativa e

voz passiva sem agente no inglês, investigaram se a ativação de referentes no discurso têm uma influência no emprego das diferentes estruturas sintáticas. De modo semelhante, o grupo de fatores Grau de Ativação do Fundo Comum tem o objetivo de verificar se pressuposições e referentes recentemente ativados no discurso influenciam o emprego da estrutura com constituinte pré-verbal ou in situ. Os fatores exemplificados abaixo (4) organizam-se em diferentes graus de ativação, desde a sentença anterior (máximo grau de ativação) até a não menção até aquele momento da entrevista (mínimo grau de ativação). Nesse grupo de fatores, excluem-se as ocorrências de perguntas retóricas, dado que nelas a pressuposição sempre está ativada; a hipótese aplica-se, portanto, a perguntas pragmaticamente sinceras e de estruturação do discurso. Os números entre parênteses no interior dos exemplos abaixo indicam a contagem de sentenças anteriores. (4) Grau de ativação do fundo comum

a. Pressuposição ativada na sentença anterior (i) Pedro: eu acho horrível... (1) acho horrível

Carla: por que você acha horrível? (F1S-DOC) (ii) Aline: assim... (1) eles tão falando muito da saúde...

Marcio: é né? Aline: mas tão falando da saúde por quê? (F1G-INF)

b. Pressuposição ativada na 2ª sentença anterior (i) Mariana: (2) tem o caso das pessoas que têm dinheiro demais... e aí... (1) que que você acha? como- como que elas vivem com tanto dinheiro né? (F1S-DOC) (ii) Paulo: e (2) você sabia que hoje em dia “a gente” é considerado um pronome pessoal do mesmo jeito que “eu você tu eles”?

Lucia: (1) não sabia

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Paulo: quando você... Lucia: mas é considerado aonde? (F3G-INF)

c. Pressuposição ativada na 3ª, 4ª ou 5ª sentença anterior (i) Beatriz: “eu sou bandido tô cumprindo prisão perpétua e (4) hoje eu resolvi por minha bola e minha corrente no pé” aí (3) eu falei assim (2) “não mas eu achei interessante... (1) eu não vim criticar... por que que o senhor tá usando isso?” (F3S-INF) (ii) Valter: ele morreu dentro d/ (3) esse meu irmão que morreu morreu dentro da da casa dele dentro do banheiro... (2) ele falava que nunca tinha problema de saúde nenhuma... e (1) ele não ia no médico

Rafael: morreu com quantos anos? (M1S-DOC) d. Pressuposição mencionada na conversa, mas não nas últimas 5 sentenças

(i) Carolina: aonde que é o colégio que cê dá aula mesmo? (F1SDOC) (ii) Rafael: agora tem que idade mesmo? (M1S-DOC)

e. Referente ativado em uma das últimas 5 sentenças (i) Carla: eu já tinha esquecido o nome da sua irmã... quantos anos ela tem? (F1S-DOC) (ii) Amanda: não sabe ainda mas ele gosta de computador...

Joaquim: ele tá com quantos anos? tá com dezoito ou dez-...? (M3G-INF) f. Pressuposição não ativada previamente na conversa

(i) Carlos: que que cê faz como lazer assim? (M3S-DOC) (ii) Marina: você vem de que canto pra cá? (F1G-INF)

O grupo de fatores Grau de Relação entre Documentador e Informante teve o objetivo

de testar se o grau de proximidade ou distância entre interlocutores tem influência no emprego variável de interrogativas de constituinte. Para testar essa hipótese, o formulário enviado aos documentadores incluiu uma pergunta sobre a relação que ele tinha com o informante à época da entrevista: o documentador deveria assinalar uma de cinco opções em um contínuo de proximidade-distância de relação (5); assumiu-se que o grau assinalado pelo documentador era o mesmo para o seu informante. Para dados de entrevistas feitas por alunos que não responderam ao questionário, criou-se um sexto fator, “informação não disponível”. (5) Grau de relação entre Documentador e Informante

1 – Bastante próximo. O entrevistado fazia parte documentador e informante do meu círculo imediato de amigos/familiares e conversávamos frequentemente. 2 – Próximo. Conversávamos frequentemente, mas o entrevistado não fazia parte de meu círculo imediato de amigos/familiares. 3 – Próximo, mas não conversávamos frequentemente. 4 – Neutro. Ele era meu conhecido, mas não nos falávamos com frequência. 5 – Distante. Não o conhecia anteriormente e só conversamos na ocasião da entrevista. ? – Informação não disponível.

A Tabela 4 apresenta os resultados da análise multivariada. Para Grau de

Espontaneidade da Pergunta, foram amalgamadas as perguntas obrigatórias e sugeridas (χ2 =

0,63(1), p > 0,30) no novo fator “perguntas do roteiro”. As perguntas espontâneas, como se esperava, favorecem o emprego de interrogativas qu-in-situ (P.R. 0,56), enquanto perguntas relacionadas ao roteiro as desfavorecem consideralmente (P.R.s abaixo de 0,30). Em princípio, esse resultado pode sugerir que o emprego variável de interrogativas é condicionado pelo grau de monitoramento ou planejamento da fala. No entanto, verifica-se que as perguntas de dados pessoais (“Você mora onde?”, “Você faz o quê?”) são aquelas que

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mais favorecem o emprego de interrogativas qu-in-situ (P.R. 0,80). Se se tratasse de uma questão de monitoramento ou planejamento da fala, era de se esperar que perguntas de dados pessoais também desfavorecessem o emprego de qu-in-situ, pois a obtenção desses dados também era prevista no roteiro utilizado para proceder às entrevistas. Uma interpretação alternativa se faz necessária, ponto ao qual se retornará adiante.

P.R. % N in-situ N total

Grau de espontaneidade da pergunta De dados pessoais .80 52,6 51 97 Espontânea .56 22,6 47 208 Do roteiro .30 6,8 8 117 Temática .22 5,9 4 68

range: 58 22,4 110 490 Grau de ativação do fundo comum Pressup. ou referente ativado na 1ª ou 2ª sentença anterior

.63 34,0 89 262

Pressup. ou referente ativado na 3ª sentença anterior ou antes

.51 21,2 29 137

Pressuposição não ativada .38 18,0 62 345 range: 25 24,2 180 744

Grau de relação entre documentador e informante Distante .54 24,1 186 771 Próximo .36 18,0 41 228

range: 18 22,7 227 999 Tabela 4: Correlação entre interrogativas qu-in-situ e grupos de fatores discursivos. Input: 0,115; p < 0,05.

No grupo de fatores Grau de Ativação do Fundo Comum, amalgamaram-se os dois

graus em que a pressuposição da interrogativa está maximamente ativada (na última ou penúltima sentença) e os dois graus de ativação intermediária (na 3ª, 4ª, 5ª sentença anterior e ativada anteriormente na conversa mas não nas últimas 5 sentenças) (χ

2 = 0,77(2), p > 0,50). Os resultados se alinham com a hipótese inicial, que previa maior tendência ao emprego de interrogativas qu-in-situ quando a pressuposição ou um dos referentes havia sido recentemente ativado (P.R. 0,63). Os demais fatores se conformam à hierarquia de ativação, pois pressuposições ativadas a partir da terceira sentença anterior apresentam um peso relativo menor para o emprego de qu-in-situ, próximo ao ponto neutro (P.R. 0,51), enquanto pressuposições não ativadas anteriormente desfavorecem a estrutura ainda mais (P.R. 0,38). Aqui, nota-se a importância do aqui-e-agora na conversa para o emprego de interrogativas qu-in-situ: há uma diferença relevante para a ativação de pressuposições e referentes em uma das últimas duas sentenças. Isso sugere que o “gerenciamento” da conversação (nos termos de Sacks et al. 1974) ocorre localmente e que os falantes são bastante sensíveis ao fluxo de informações, fato que reflete na escolha que os falantes fazem de diferentes estruturas sintáticas. Os resultados de Grau de Ativação do Fundo Comum apontam para o papel de informações compartilhadas entre os interlocutores no emprego variável de interrogativas de constituinte: as interrogativas qu-in-situ são mais favorecidas quanto mais ativado está o fundo comum.

Em Grau de Relação entre Documentador e Informante, foram amalgamados os graus de relação mais próximos (1, 2 e 3), por um lado, e os graus de relação mais distante (4 e 5), por outro (χ2= 6,04(3), p > 0,10). Dos 31 documentadores que responderam ao questionário, 20 indicaram ter uma relação distante com o entrevistado. Decidiu-se também amalgamar os

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dados daqueles para os quais essa informação não estava disponível juntamente com os dados de relação distante (em vez de descartá-los), já que era mais provável que, se os documentadores houvessem respondido ao questionário, tais seriam os graus de relação assinalados. O teste de qui-quadrado (χ

2 = 0,66(1), p > 0,30) confirma que essa amalgamação é plausível. A Tabela 4 indica o desfavorecimento de interrogativas qu-in-situ (P.R. 0,36) para graus mais próximos e pequeno favorecimento (P.R. 0,54) para graus mais distantes. Um olhar mais detalhado aos dados e à situação discursiva podem elucidar essa correlação: quando os interlocutores têm um grau de relação mais distante, o fundo comum entre eles depende mais diretamente da situação interacional em que se encontram, diferentemente do que pode ocorrer em interações conversacionais entre pessoas mais próximas, cujo fundo comum engloba outras conversações prévias. Nesse sentido, os resultados deste grupo de fatores se aproximam daqueles para Grau de Ativação do Fundo Comum: o fluxo de informações no aqui-e-agora da conversa parece ter papel crucial na variação entre diferentes estruturas interrogativas.

Com esses dados, é possível retornar à interpretação do grupo de fatores Grau de Espontaneidade da Pergunta, em que as interrogativas qu-in-situ se revelaram mais favorecidas por perguntas de dados pessoais e espontâneas. Esses dois tipos de perguntas têm em comum o fato de serem mais previsíveis ou esperadas: em situação de entrevista é natural que se pergunte sobre a profissão, local de residência, família. Aliás, mesmo que não se tratasse de uma entrevista gravada, esses seriam tópicos bastante propícios para a condução de uma conversa “natural”. De modo semelhante, as perguntas espontâneas, que surgem da interação conversacional, estão mais diretamente ancoradas no fluxo de informações da conversação e, portanto, também podem ser consideradas mais esperadas. Assim, o grupo de fatores Espontaneidade da Pergunta, cujo objetivo inicial era testar a influência do grau de planejamento da fala, acaba revelando mais propriamente o papel da previsibilidade da pergunta: quanto mais previsível ou ancorada na situação discursiva, maior a tendência de se empregar qu-in-situ.

Desse modo, a relação entre os três grupos de fatores podem ser assim resumidos:

A ← C → B

Previsibilidade

← Fluxo de informações → Ativação de pressuposições

Figura 3: Motivação da correlação. Aqui se interpreta que essas variáveis, embora independentes entre si, podem

manifestar um efeito mais geral que se relaciona com o fluxo de informações no aqui-e-agora da conversa. Por fim, entretanto, cabe ainda questionar a natureza desse fluxo de informações: trata-se de princípios de cooperação comunicativa, através dos quais os falantes mantém a interação? Ou trata-se de princípios de processamento cognitivo ou ainda de paralelismo linguístico (Scherre, 1998), em que o emprego de determinadas estruturas produz um efeito de coerção sobre as próximas? Novas questões se apresentam para testes de hipóteses futuros.

Considerações finais

O estudo da língua em uso deve abarcar aspectos vários da comunicação humana: extralinguísticos, discursivo-pragmáticos, sintáticos, morfológicos, prosódicos, fonético-fonológicos, cognitivos. As análises quantitativas de covariação, como instrumentalizadas na Sociolinguística, permitem uma investigação desse caráter multifacetado da linguagem.

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Neste artigo, procurou-se discutir duas problemáticas relacionadas à interpretação de resultados quantitativos de análises de covariação: o direcionamento da correlação e a motivação da correlação. A análise do grupo de fatores Número de Palavras na Oração buscava verificar se a posição do constituinte interrogativo se correlaciona com a extensão da oração; aqui se interpreta que não é a extensão da oração que influencia a alternância entre as formas interrogativas, mas o oposto, ou seja, que o emprego de uma determinada estrutura de interrogativa de constituinte tem consequências para a extensão do enunciado. A análise dos grupos de fatores Grau de Espontaneidade da Pergunta, Grau de Ativação do Fundo Comum e Grau de Relação entre Documentador e Informante, que examinam o contexto discursivo-pragmático, verificou que todos eles se correlacionam ao emprego variável de interrogativas; neste caso, é possível que todos os efeitos verificados decorram de um aspecto mais geral da conversação face-a-face, que diz respeito ao fluxo de informações no aqui-e-agora da conversa.

Tais interpretações, no entanto, ainda levantam novas questões a serem investigadas a respeito da natureza desse fluxo de informações. Nas palavras de Guy (2007 [1993], p.42), “os números não são a resposta a nenhuma de nossa perguntas; eles são apenas estatísticas inferenciais adicionais que podemos usar como indicadores empíricos na nossa busca por respostas.” Em poucas palavras, a explicação não se encontra no método, e sim na teoria. Essas questões, portanto, devem ser tratadas na elaboração de uma teoria da língua em uso, da variação e da mudança.

INTERPRETATION OF PATTERNS OF VARIATION ABSTRACT: The methodology of quantitative analyses in sociolinguistic studies (Sankoff, 1980; Guy, 1993; Bayley, 2002) with softwares such as GoldVarbX and Rbrul is a valuable tool for investigating language in use, as it allows for the analysis of patterns of covariation that may not be apparent otherwise. Nevertheless, mere identification of correlations does not automatically lead to its interpretation. Whenever two variables A and B are correlated, one must interpret if A motivates B, if B motivates A or yet if A and B are motivated bu a third variable C. With this question in mind, this work discusses the results of quantitative analyses of the variable use of wh-interrogatives, defined by the position of the wh-word: (a) preverbal (Onde (que/é que) você mora? ‘Where (that/ is-it that) you live?’); and (b) posverbal/in-situ (Você mora onde? ‘You live where?’). This concerns a theory of language in use insofar as it aims at examining its mechanism and the reasons why the linguistic system does not present categorical rules.

KEYWORDS: Sociolinguistics; Quantitative Analyses; Interpretation of results; Wh-interrogatives. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAYLEY, Robert. The quantitative paradigm. In: Chambers, J.K.; Trudgill, P.; Schilling-Estes, N. The Handbook of Language Variation and Change. Malden, MA: Blackwell, 2002. p.117-141. CELIA, Gianni Fontes. As vogais médias pretônicas na fala culta de Nova Venecia – ES. Dissertação (Mestrado em Linguística). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2004. CHAMBERS, J.K. Sociolinguistic theory: linguistic variation and its social significance. Oxford: Blackwell. CHESHIRE, Jenny. Sex and Gender in Variationist Research. In: Chambers, J.K.; Trudgill, P.; Schilling-Estes, N. The Handbook of Language Variation and Change. Malden, MA: Blackwell, 2002. p. 423-443.

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Da forma para função ou da função para forma?

Raquel Meister Ko. FREITAG59 Sebastião Carlos Leite GONÇALVES60

RESUMO: Neste artigo, lidamos com duas diretivas para estudos da mudança linguística, via gramaticalização: da forma para a função e da função para a forma. Tais opções teórico-metodológicas requerem que se reconheçam atuantes na gramaticalização dois princípios, por meio dos quais tornam viáveis estudos na interface gramaticalização e variação: o principio da estratificação, que prediz que formas que se gramaticalizam passam a coexistir, num mesmo domínio funcional, com formas antigas funcionalmente equivalentes, e o princípio da divergência, que postula que uma forma pode desenvolver múltiplas funções no curso de sua gramaticalização, uma das quais revestida de estatuto mais gramatical do que sua congênere lexical (HOPPER, 1991). Na investigação da gramaticalização de formas e de funções, torna-se fundamental a apuração das frequências token (forma) e type (função) (BYBEE, 2003). Para mostrar a viabilidade da conjugação desses diferentes critérios, reinterpretamos, neste artigo, resultados de três estudos de casos envolvendo gramaticalização de Tempo, Aspecto e Modo/Modalidade, em duas variedades do português brasileiro. Na direção forma � função, apresentamos resultados do estudo da gramaticalização da perífrase ir+infinitivo (FONSECA, 2010) e, na direção função � forma, resultados da gramaticalização no domínio funcional de aspecto (FERNANDES, 2010) e no domínio funcional de tempo passado (FREITAG, 2007; COAN, 1997). Os resultados mostram que a opção por uma das diretivas pode determinar a adoção de critérios mais seguros para a proposição de trajetórias de gramaticalização.

PALAVRAS-CHAVE: Gramaticalização. Variação. Forma. Função. TAM. Introdução

O ressurgimento do interesse pela gramaticalização no cenário mundial data do início da década de 1980 e, no Brasil, a temática só tomou fôlego quase dez anos mais tarde. Desde então, os estudos de gramaticalização no português do Brasil tornaram-se campo fértil de investigação. A análise empírica de fenômenos de mudança, em diferentes níveis gramaticais, tem promovido reflexões sobre o quadro teórico (ou teorias) de gramaticalização, apontando os limites e limitações do modelo e a busca de abordagens de interface. Se num primeiro momento, os estudos de gramaticalização focavam o delineamento da trajetória de mudança de um item/construção (forma), atualmente, o domínio funcional (função) tem sido elevado também a objeto de análise. O fator frequência de uso, amparado seja nas noções de token e type (BYBEE, 2003), seja nas noções de variável e variantes da abordagem variacionista (LABOV, 1972), também vem sendo incorporado de modo produtivo ao quadro da gramaticalização, conferindo-lhe maior poder explanatório.

Os estudos de gramaticalização têm evidenciado que as trajetórias de mudança pressupõem estágios de menor estabilidade do sistema, na medida em que ocorre a sobreposição de funções para uma mesma forma e/ou a sobreposição de formas para o desempenho de uma mesma função, constatações que têm propiciado interessantes correlações com a Teoria da Variação e Mudança Linguística, vertente que vem se denominando Sociofuncionalista (NARO & BRAGA, 2001; TAVARES, 2003; GORSKI & TAVARES, 2009). É sob tal vertente que, neste artigo, focamos nosso olhar para fenômenos de gramaticalização no domínio das categorias verbais do português e, considerando o fator frequência de uso, discutimos as implicações e os limites da análise de trajetórias de

59 UFS – Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas – Departamento de Letras Vernáculas. São Cristóvão/SE, 49100-000 – [email protected] /CNPq 60 UNESP – Universidade Estadual Paulista. Câmpus de São José do Rio Preto – Departamento de Estudos Linguísticos e Literários – Rua Cristóvão Colombo, 2265, Jardim Nazareth, São José do Rio Preto/SP, 15054-000 – [email protected] / CNPq

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gramaticalização em duas direções: da forma para a função e da função para a forma. Nosso objetivo é mostrar que os dois direcionais de abordagens não são excludentes e permitem, quando conjugados, maior confiabilidade de resultados, de modo a se delinear o escopo do fenômeno, especialmente em amostras sincrônicas de língua, como as de que nos valemos nesta exposição.

Para a sustentação dessa proposição, reinterpretamos, nesse artigo, resultados de três casos de mudança, os quais envolvem a gramaticalização das categorias verbais do complexo TAM (Tempo, Aspecto e Modo/Modalidade), em duas variedades do português do Brasil (PB, daqui em diante). Na direção forma � função, apresentamos resultados do estudo da gramaticalização da perífrase ir+infinitivo (FONSECA, 2010) e, na direção função � forma, resultados da gramaticalização no domínio funcional de aspecto (FERNANDES, 2010) e no domínio funcional de tempo passado (FREITAG, 2007; COAN, 1997). Os dados empíricos que subsidiam esses estudos de caso são provenientes de amostras de fala de dois bancos de dados constituídos nos moldes da Sociolinguística Variacionista: a amostra de Florianópolis do banco de dados do Projeto “Variação Linguística Urbana na Região Sul do Brasil” (VARSUL) e a amostra censo do banco de dados IBORUNA do Projeto “Amostra Linguística do Interior Paulista” (ALIP).

O banco de dados VARSUL, disponível em <http://varsul.cce.ufsc.br>, é resultado do projeto “Variação Linguística Urbana na Região Sul do Brasil”, cujos objetivos são o armazenamento, a disponibilização e a realização de estudos descritivos de amostras de fala de habitantes das áreas urbanas representativas de cada um dos três estados da região sul do Brasil. O VARSUL vem, desde a década de 1990, promovendo a realização de estudos sociofuncionalistas em diferentes níveis de análise (TAVARES, 1999; GIBBON, 2000; VALLE, 2001; ROST, 2002; FREITAG, 2003, 2007, entre outros). O banco de dados IBORUNA, disponível em <http://www.iboruna.ibilce.unesp.br> e constituído entre os anos de 2004 e 2007 no interior do Projeto ALIP, teve por objetivo primeiro registrar a variedade falada na região noroeste do Estado de São Paulo, nucleada pela cidade de São José do Rio Preto, de modo a também promover estudos de descrição da variedade falada no interior paulista, por recurso a amostras do censo linguístico da região e a amostras de interação social livre, gravadas secretamente. Desde então, o Projeto ALIP tem também propiciado a realização de estudos na interface variação/gramaticalização (GONÇALVES & RUBIO, 2011, FERNANDES, 2010; FONSECA, 2010; FORTILLI, 2009, dentre outros).

Para a consecução de nossos objetivos, o presente artigo está estruturado em cinco seções. Nas duas primeiras seções, explicitamos as bases teóricas que embasam nossa proposição, procurando articular as perspectivas da Gramaticalização e da Variação (seção 1), para, em seguida, discutir a inter-relação entre forma e função e as implicações decorrentes do recorte da trajetória: se a partir da forma ou a partir da função (seção 2). Com base neste arcabouço, nas duas seções que se seguem, apresentamos o domínio das categorias verbais do PB, focando a gramaticalização de formas perifrásticas (seção 3) e a gramaticalização no domínio tempo passado (seção 4). Por fim, reservamos a última seção às nossas considerações acerca das abordagens pautadas em diferentes pontos de partida, fazendo um balanço dos resultados obtidos e ressaltando a importância do fator frequência de uso. A interface gramaticalização/variação

Basilares na definição de fenômenos em variação são os conceitos de variável e de variante linguística. Duas ou mais formas distintas em variação que transmitam um mesmo conteúdo informativo constituem uma variável linguística ou identifica um fenômeno variável. Formas alternantes de se dizer a mesma coisa constituem formas variantes. Para que se reconheça um fenômeno variável é necessário, portanto, que duas ou mais variantes tenham

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o mesmo significado referencial ou denotativo (LABOV, 1972). Essa premissa básica dos estudos variacionistas se aplica sem grandes controvérsias a variáveis fonológicas, contudo a situação parece não ser a mesma para além desse nível de análise, como já fez sugerir o intenso debate, no interior da Sociolinguística, entre Beatriz Lavandera e William Labov, ao final dos anos de 1970, início dos 80 (LABOV, 1978; LAVANDERA, 1978, 1984; WEINER & LABOV, 1983), desencadeado a partir de uma série de trabalhos variacionistas que, já na década de 1970, passaram a dispensar mais atenção à variação de nível sintático, com o sacrifício, por vezes, de variáveis sociais. Exemplar desse tipo de abordagem variacionista é o trabalho de Weiner e Labov (1983), que, na investigação da alternância entre construções de voz ativa e construções de voz passiva sem agente, no inglês, desconsideraram em suas análises o componente social.

A questão norteadora do debate diz respeito a se, para além do nível morfofonológico, permaneceria válida a premissa variacionista de manutenção do significado referencial para formas consideradas alternantes. Contrárias à consideração de que, para se definir variável não-fonológica, bastaria a manutenção do significado referencial, independentemente de sua forma de expressão, colocaram-se os trabalhos de três representativas linguistas: E. Garcia (1985), B. Lavandera (1978, 1984) e S. Romaine (1981, 1984). Acerca dessa questão, assim se pronuncia criticamente Lavandera, por exemplo:

as unidades para além do [nível] fonológico, digamos, um morfema, um item lexical, ou uma construção sintática, têm cada uma por definição um significado. [...] as afirmações quantitativas devem ser tratadas [nesse caso] como dados que necessitam de interpretação, e as regras probabilísticas constituem apenas recursos heurísticos. (LAVANDERA, 1984, p. 42; 46)

A respeito dessas críticas, Labov (1978) considera que, inicialmente, a preocupação da

Sociolinguística era investigar a motivação social de algumas mudanças linguísticas e demonstrar sua distribuição na escala social. Todavia, a Sociolinguística evoluiu e não pode se confinar apenas a estudos de fenômenos variáveis que estejam atrelados aos fatores sociais.

Sem aprofundar o mérito dessa discussão, o certo é que muito já se avançou nos estudos sociolinguísticos na comprovação da pertinência de se considerar todos os níveis de análise da língua como sujeitos à variação. Assim, a dimensão variável da língua inclui não somente aspectos dos níveis morfofonológicos, mas também do sintático, do semântico e do pragmático, como bem demonstram estudos sobre a mudança linguística que se desenvolvem na interface gramaticalização/variação, recorrendo-se, sobretudo, ao afrouxamento da noção estrita de variável/variante, e adotando-se, como princípio, a comparabilidade funcional, tal como postulou por Lavandera (1978) ao final do debate.

Para o reconhecimento da viabilidade de aproximações entre estudos de gramaticalização e de variação, é preciso que se tenha claro a concepção de mudança linguística que cada vertente esposa. Como bem argumentam Gorski e Tavares (2009), a mudança, na perspectiva laboviana, só ocorre quando há a disseminação da inovação ao longo da comunidade de fala; não é, portanto, inovação em si. Diferentemente, em Gramaticalização, a mudança refere-se tanto ao surgimento de formas inovadoras quanto a sua propagação social; uma mudança bem sucedida contém essas duas etapas. Essas diferenças de abordagem se devem às preocupações centrais de cada teoria: no caso da Teoria da Variação e Mudança, a preocupação com o significado e as diferentes formas que o codificam e, no da gramaticalização, com uma forma que desempenha diferentes funções. Argumento relevante das autoras, ainda para justificar um estudo na interface Sociolinguística/Gramaticalização, é o de que, enquanto na teoria Sociolinguística, a mudança decorre da variação, na perspectiva da Gramaticalização, a variação é que decorre da

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mudança, porque é sob tal concepção que se averigua o percurso evolutivo de um dado item/construção, que, no decorrer de sua trajetória, adquire múltiplas funções. Se uma ou mais dessas funções já estiverem sendo desempenhadas por outro item, ocorre uma situação de variação. Assim, a variação é consequência da multifuncionalidade de um item em processo de gramaticalização. São palavras de Gorski e Tavares, a esse respeito:

Ao estudar variação, estamos analisando uma etapa da mudança em que convergem os percursos de gramaticalização; ao estudar gramaticalização estamos averiguando diferentes etapas de variação ao longo do tempo (GORSKI & TAVARES, 2009, p.13).

Independentemente de estarmos lidando, neste artigo, com casos de variação strictu

sensu, optamos por apresentar análises sociofuncionalistas, "afrouxando" os conceitos de variável e variante, para incluir tanto a variação de forma quanto a de função. Forma e função

A relação entre forma e função no âmbito das teorias da linguagem tem sido, desde sempre, conflituosa: formalistas e funcionalistas defendem, cada qual, sua perspectiva como a primordial para os estudos da linguagem. Em nossa abordagem, não nos envolvemos nesta polêmica; limitamo-nos a tecer reflexões acerca das implicações para o delineamento do fenômeno de gramaticalização a partir de dois direcionais, da forma para a função e da função para a forma, e como a articulação entre ele, aliada ao fator frequência de uso, permite melhor captar os matizes da gramaticalização de fenômenos em níveis gramaticais mais altos e domínios funcionais complexos, como o são o das categorias verbais.

Como ponto de partida, assumimos a premissa funcionalista de que a estrutura da língua reflete a estrutura da experiência, instaurando uma relação natural entre forma e função, denominada iconicidade (cf. BOLINGER, 1977; GIVÓN, 1995). Em sua versão forte, a iconicidade prevê uma relação ideal de um-para-um entre forma e função. Em uma versão mais branda, admite que possa haver opacização entre a forma de codificação e a função por ela desempenhada, perda de transparência que abre a possibilidade para interpretação de casos à luz da variação. É nessa perspectiva que se inserem os direcionais de análise da gramaticalização em discussão.

Givón (1995) defende que a correlação ideal um-para-um entre forma e função é superestimada. Em uma situação real de uso linguístico é preciso admitir a arbitrariedade na codificação linguística, uma vez que a iconicidade do código linguístico está sujeita às pressões que atuam tanto na forma, afetando o código/estrutura, quanto na função, afetando a mensagem: o código sofre constante erosão decorrente de atrito fonológico, e a mensagem sofre alterações em virtude da elaboração criativa do falante. Tais pressões geram ambiguidade de código (polissemia), com uma forma e várias funções, e de mensagem, várias formas e uma função (variação).

Para lidar com essas implicações decorrentes da superestimação da iconicidade em estudos da mudança, tem-se articulado a abordagem variacionista e a abordagem da gramaticalização, cujo foco são as relações entre funções e formas, decorrentes de pressões linguísticas e sociais, com destaque para a história e a coexistência de diferentes formas, configurando-se como uma situação de estratificação/variação (HOPPER, 1991). Essa interface sociofuncionalista lida com estágios de gramaticalização, pressupondo que a estratificação/variação decorre da trajetória de gramaticalização.

Nessa perspectiva, os direcionais propostos configuram duas possibilidades de abordagem de trajetória de gramaticalização: a primeira, da forma para a função, é uma abordagem que parte da forma, com o mapeamento de suas diferentes funções/domínios

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funcionais por que perpassa em sua trajetória; a segunda, da função para a forma, é uma abordagem que parte da função/domínio funcional e busca o mapeamento das diferentes formas que o codificam. Para distinguir essas duas possibilidades, chamaremos a abordagem da forma para a função de gramaticalização de itens/construções e a abordagem de função para a forma, de gramaticalização de funções/domínios funcionais.

A gramaticalização de itens/construções refere-se ao processo, conforme Bybee (2003), pelo qual uma sequência de morfemas ou palavra frequentemente utilizada torna-se automatizada como uma única unidade no processamento e passa a desempenhar novas funções, ampliando seu escopo de atuação para outros domínios funcionais. A automatização do processo incrementa a frequência de uso, tanto a frequência type, como a frequência token. Frequência token é um método de quantificação que requer a contagem de uma forma (construção, palavra ou morfema), independentemente da função que assume no contexto em que ocorre, critério que admite a abordagem da gramaticalização de itens/construções, à medida que o aumento de frequência de uso é um dos primeiros indícios, não causa, que permite reconhecer processos de gramaticalização de itens/construções (BYBEE, 2003). Já frequência type é a contagem da frequência de um padrão particular (ou função) de dicionário que uma dada forma (construção, palavra ou morfema) assume no contexto em que ocorre, como, por exemplo, funções de tempo, aspecto, modo/modalidade etc, o que requer que se adote, para o acionamento desse critério, uma abordagem mais próxima a da gramaticalização de funções/domínios funcionais. Em grande parte de estudos casos de gramaticalização, um critério de apuração de frequência nem sempre exclui o outro, aliás, o desejável é que, na medida do possível, sejam conjugados (BYBEE, 2003).

Em termos metodológicos, o levantamento de frequência token e type constitui importante ferramenta que se associa aos princípios propostos por Hopper (1991), para diferenciar processos de gramaticalização de outros processos de mudança linguística: estratificação (“layering”), divergência, especialização, persistência e decategorização. De aplicação mais direta ao presente estudo, interessa-nos detalhar os princípios de estratificação e de divergência, que podem ser considerados à luz da noção de variável, em sentido mais lato, uma vez que o primeiro diz respeito à variação de formas dentro de um mesmo domínio funcional, enquanto o segundo refere-se à variação de funções para uma mesma forma.

Domínio funcional é o escopo de atuação de uma dada função desempenhada por uma ou mais formas da língua (cf. GIVÓN 1984). A complexidade dos domínios funcionais decorre do fato de as fronteiras entre cada um de seus subcomponentes nem sempre serem claras e precisas, impossibilitando a dissociação, na prática, de um componente do outro. Mais detalhadamente, o princípio da estratificação de Hopper sugere que, com o surgimento de novas camadas dentro de um domínio funcional, as camadas (ou formas) velhas não são necessariamente descartadas, podem coexistir e interagir com as camadas novas, que podem reter vestígios de seu sentido lexical antigo (persistência). Em decorrência dos estágios de polissemia que um item/construção experimenta num processo de gramaticalização, é forçoso que se reconheçam nuanças de sentido diferentes associadas à forma desencadeadora do processo, variância que é captada pelo princípio de divergência. A forma lexical original permanece autônoma no sistema, podendo se submeter a outros processos de mudanças que afetam os itens lexicais em geral. É, principalmente, na atuação conjunta desses dois princípios, que o item/construção sofre gramaticalização, na medida em que se submete a um rebaixamento categorial (decategorização), distanciando-se, assim, de seu congênere lexical (ou menos gramatical) para assumir função gramatical (ou mais gramatical ainda).

Nos estudos de gramaticalização, o foco da análise é captar as nuanças do processo pelo qual passam as construções e os domínios funcionais, evidenciando-se o caráter gradual da mudança, uma vez que há uma quebra na correlação prototípica entre a forma e a função. Esta quebra propicia situações de usos linguísticos variáveis em função da dinamização da

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trajetória dos itens/construções. Para Torres Cacoullos (2001), o termo “layering” pode ser visto em duas perspectivas nos estudos de gramaticalização. Na perspectiva de Hopper (1991), o princípio das camadas é explorado em termos da sua diversidade formal dentro de um dado domínio funcional. Torres Cacoullos sugere que esse princípio pode ser explorado em termos de divergência de forma e de sentido, ou seja, a coexistência de diferentes usos linguísticos em um mesmo recorte temporal, decorrente da trajetória de gramaticalização do item/construção. Sob tal perspectiva, o princípio de divergência de Hopper (1991) passa a ser apreciado também como um tipo especial de estratificação, como mostrado na fig. 1.

“layering”

diversidade formal (variação sincrônica entre diferentes formas no mesmo domínio funcional) polissemia (variação sincrônica entre diferentes usos linguísticos da mesma forma)

Fig. 1: “Layering” como diversidade formal e polissemia (TORRES CACOULLOS, 2001, p. 463)

Variação em categorias verbais do português

Nas línguas naturais, a categoria verbal permite a expressão de funções sintático-semânticas variadas, codificadas morfologicamente, tais como valência, voz, aspecto, tempo e modo/modalidade e concordância. Uma análise minuciosa da categoria verbal nas línguas do mundo permite verificar a existência de um continuum de relevância entre tais expressões morfológicas na alteração do significado lexical codificado na raiz verbal, como mostra Bybee (1985) em pesquisa tipológica envolvendo cinquenta línguas. A autora mostra que a grande maioria das línguas (72%) traz expressa na base verbal a categoria aspecto, ao passo que concordância de número e pessoa ocorre em menor número de línguas (56%). Diante dessas evidências, é possível se chegar a uma escala, em que as categorias modificadoras da base verbal são dispostas de acordo com seu grau de relevância para a mudança do radical, como mostrado na fig. 2. maior Grau de

relevância Menor

Valência > Voz > Aspecto > Tempo > Modo /modalidade> Concordância (número > pessoa > gênero) Fig. 2: Ordem de relevância de categorias verbais (adaptada de BYBEE, 1985)

Sob tal hierarquização icônica, quanto mais contribui para a alteração semântica do

radical, mais próximo dele uma dada categoria se coloca. Assim, categorias morfêmicas que ocupam posição mais à esquerda do continuum contribuem mais significativamente para a modificação do conteúdo da base verbal do que as posicionadas mais à direita.

No presente trabalho, interessam-nos destacar dessa escala as categorias do complexo TAM para verbo (aspecto>tempo>modo/modalidade), que mostram que, na composição do sentido global da expressão verbal, aspecto é mais relevante do que tempo, que, por sua vez, é mais relevante do que a modo/modalidade, permitindo, assim, inferir dessa relação que, entre tais categorias, existe um continuum de gramaticalização de sentidos, que vai de menos abstrato > mais abstrato. Tal disposição pode encontrar seus reflexos nos correlatos gramaticais de codificação dessas categorias semânticas, seja por meio de perífrases verbais seja por meio de sufixos flexionais, uma vez que universais de base semântica encontra

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amparo tanto nas codificações morfológicas, caso de afixos, quanto nas codificações morfossintáticas, caso de perífrases verbais (HENGEVELD, 2004).

De acordo com Bybee (1985), a categoria aspecto refere-se à temporalidade interna do evento descrito pela predicação verbal, a qual aciona noções como duração, momentaneidade, fases de desenvolvimento do evento, resultatividade, iteratividade etc. Isso significa dizer que significados aspectuais não afetam participantes de um evento, como as categorias valência e voz afetam, nem fazem referência à temporalidade externa ao evento de fala (tempo dêitico), como é função da categoria tempo, que deixa inalterado o evento em si, independentemente de ele estar situado em momento anterior, concomitante ou posterior ao evento de fala. Como a mais abstrata, a categoria modo/modalidade é acionada para a expressão da atitude do falante, não tendo relação direta nem com o evento descrito pela predicação verbal nem com sua localização temporal, propriedade semântica que torna essa categoria menos relevante para o significado do verbo do que aspecto e tempo.

Diferentemente das línguas que serviram de base para pesquisa tipológica de Bybee (1985), em português, as categorias do complexo TAM não são codificadas exclusivamente por afixos verbais; podem ser expressas também por formas de expressão variadas, como as perífrases constituídas de Verbo auxiliar (V1) + Verbo principal (V2), em uma de suas formas nominais (particípio, gerúndio e infinitivo), pela própria predicação, por complexos oracionais ou ainda por partes maiores do discurso.

Para tratar empiricamente dos direcionais envolvendo forma e função, voltamos nossa atenção para resultados de três estudos de caso de mudança: a) a gramaticalização de ir+infinitivo (FONSECA, 2010) e a de perífrases constituídas por V1 + V2-ndo, com V1 = andar, continuar, ficar, viver (FERNANDES, 2010); e b) a gramaticalização no domínio do pretérito. É de que passamos a tratar nas duas próximas seções.

Gramaticalização de perífrases verbais

Não há consenso na literatura linguística acerca da definição de propriedades claras que permitam distinguir verbos plenos de verbos auxiliares. Como mostram Fonseca (2010) e Fernandes (2010), a depender da posição teórica do investigador e dos critérios por ele adotados, haverá um diferente conceito de auxiliar e diferentes tipos de verbos que podem integrar essa classe. Recorrendo então a diferentes estudos (LOBATO, 1975; LONGO, 1990; HEINE, 1993, LONGO & CAMPOS, 2002), as autoras levantam 25 critérios diferentes para testar a auxiliaridade em construções perifrásticas, os quais transcrevemos no quadro 1, a seguir, com o intuito de mostrar a falta de consenso em torno desses critérios.

Autor Critérios de Auxiliaridade

Lobato (1975)

Longo (1990)

Heine (1993)

Longo e Campos (2002)

1. Inseparabilidade (prosódica, sintática e semântica) √ √ √ √ 2. Detematização (sem propriedade de predicação) √ √ √ 3. Incidência da negação sobre a perífrase √ √ √ 4. Restrição paradigmática (defectividade) √ √ 5. Frequência alta (auxiliar + v. na forma nominal) √ √ 6. Incidência de circunstante de tempo sobre a perífrase √ √ 7. Impossibilidade de desdobramento da oração √ √ 8. Critério da apassivização √ √ 9. Recursividade (coocorrência com mesma raiz) √ √ 10. Oposição a uma forma simples correspondente √ 11. Impossibilidade se substituição por pronome √ √

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12. Sujeito único √ √ 13. Posição fixa na perífrase √ √ 14. Participação do complexo TAM √ 15. Categoria fluida entre pleno e auxiliar √ 16. Formas variantes (plena e reduzida foneticamente) √ 17. Impossibilidade de receber contraste enfático √ 18. Tendência a se tornar clítico/afixo √ 19. Flexão em pessoa, número, concordância, TAM etc √ 20. Não-regência por outros auxiliares √ 21. Sinsemânticos e sincategoremáticos √ 22. Categoria separada do verbo principal √ 23. Acepção egocêntrica √ 24. Impossibilidade de ser complementado por oração √ 25. Sem restrições semânticas sobre sujeito e auxiliado √ Quadro 1: Critérios de auxiliaridade (LOBATO, 1975; LONGO, 1990; HEINE, 1993; LONGO & CAMPOS, 2002)

Mesmo diante da tentativa de se estabelecerem critérios para a distinção de auxiliares,

Heine (1993), de posição moderada, advoga não haver limites claros entre verbos plenos e auxiliares, os quais se sujeitam a um continuum ou a uma gradiência de gramaticalidade, vista sempre como resultante de processos de gramaticalização que tornam, em certos contextos, verbos plenos em auxiliares. Assumindo, aqui, essa posição para a análise de construções perifrásticas, a questão que permanece diz respeito a quais parâmetros adotar para a identificação de um gradiente verbal do tipo pleno > pleno/auxiliar > auxiliar, visto que, num recorte temporal da língua, um mesmo elemento pode assumir funcionamento prototipicamente ora de verbo pleno ora de auxiliar, havendo contextos de sobreposição entre essas duas funções. Assim, a verificação da aplicação de critérios de auxiliaridade no estudo da gramaticalização de perífrase verbal constitui ferramenta útil para aferir o seu grau de gramaticalidade, pois, por meio desses critérios, torna possível verificar o grau de conexão entre V1 e V2 na construção perifrástica, que pode variar de simples justaposição a fusão, conforme Lehmann (2002 [1982]).

Tratemos então dos dois estudos de casos que, envolvendo construções perifrásticas, contemplam os direcionais enfocados neste trabalho. O primeiro estudo, partindo da forma de construções perifrásticas constituída de ir+infinitivo , procura detectar, na multifuncionalidade da construção, a função mais gramaticalizada na atualização das categorias TAM (FONSECA, 2010), enquanto o segundo, partindo do domínio funcional do aspecto imperfectivo cursivo, considera a variação de construções perifrásticas, nesse domínio, implementada pelos verbos andar, continuar, ficar e viver (V1), seguidos de gerúndio (V2), para verificar quais, dentre elas, encontram-se em estágio mais avançado de gramaticalização (FERNANDES, 2010). Está na base desses dois estudos de caso a consideração dos princípios de divergência e de estratificação, tal como discutidos na seção anterior.

Para testar a gramaticalização dessas perífrases, elegemos, para cada tipo, um conjunto de 10 critérios de auxiliaridade, dos 25 expostos no quadro 1, associados à apuração da frequência de uso, considerada não como resultado da gramaticalização, mas como “força ativa na investigação das mudanças que ocorrem em gramaticalização” (BYBEE, 2003, p. 602). A adoção desses dois critérios permite verificar, respectivamente, as seguintes hipóteses: a) quanto maior o número de critérios de auxiliaridade atualizados na perífrase, mais coesa, mais conectada e mais gramaticalizada ela estará; b) formas/funções mais

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gramaticalizadas são mais frequentes no discurso. Os dados empíricos que sustentam as análises das perífrases são provenientes do banco de dados IBORUNA do Projeto ALIP.

Analisemos inicialmente o caso de ir + infinitivo , sob a expectativa de que sua gramaticalização acompanha a gramaticalidade das categorias verbais (aspecto > tempo > modo/modalidade), como anteriormente discutida (BYBEE, 1985). As diferentes funções de TAM identificadas nos usos de ir+infinitivo são ilustradas no quadro 2.

Funções de ir+infinitivo Ocorrências Prototípicas

T1 Aspecto Imperfectivo Iterativo

as mulheres às vezes vão passeá(r) pra lá ... elas ficam bem assustada quando chega e vê aquilo lá (AC-093; DE ; L. 146)

T2 Aspecto Imperfectivo Semelfactivo

ela disse que sem::pre amô(u) ele que sempre vai amá(r)... apesar da mor::te dele né?... (AC-038; NR; L.139)

T3 Aspecto Perfectivo Semelfactivo

uma amiga minha foi viajá(r) pra Laranjais e ela achô(u) o hotel de lá muito bonito... (AC-004; NR; L.62)

T4 Tempo Futuro Próximo depois de amanhã na sexta-fe(i)ra a gente vai:: vai voltá(r) pra lá:: (AC-046; NE; L.115)

T5 Tempo Futuro Remoto eu ficava sempre falan(d)o –“um dia eu vô(u) passá(r) de lá vô(u) conhecê(r) ela”– (AC-067; NE; L.07)

T6 Tempo Futuro do Pretérito um moleque maior falô(u) que ia batê(r) nele na hora do recreio... (AC-067; NR; L.170)

T7 Modalidade orientada para o Falante

“ vamo(s) fazê(r) uma macumba?... nós temo(s) que fazê(r) uma macumba pa matá(r) essa mulher” (AC-100; NR; L.114)

T8 Modalidade Orientada para o Agente

então você vai lê(r) a embalagem... você vai pegá(r) a forminha... você já vai passá(r)... não é fácil não viu? (AC-106; RP; L.548)

T9 Modalidade Epistêmica (Possibilidade)

às vez nunca dá certo porque se eles tivé(r) a carta... eles vai sabê(r) que é sinal falso... é a única coisa que tem (AC-059; RP; L.190)

T10 Marcador discursivo vamos supor mente vazia é a oficina do diabo né? então:: lá é um lugar que cê num fica de mente vazia (AC 029-RO; L.205)

T11 Função Ambígua nós ligamo(s) pra mãe da M.... e pra minha mãe daÍ elas foram lá na praça achá(r) essa meNIna... (AC-010; NE; L.68)

Quadro 2: Ocorrências prototípicas das funções de ir+infinitivo Na tabela 1, apresentamos a frequência das funções (T1,..., Tn) de ir + infinitivo .

Tabela 1: Multifuncionalidade (T1...Tn) e frequência de uso de ir + infinitivo Types (funções) Tokens

ASPECTO (03) 280 tokens

19% da amostra

T1. Imperfectivo Iterativo 99/1492 = 6,6%

T2. Imperfectivo Semelfactivo 93/1492 = 6,2%

T3. Perfectivo Semelfactivo 88/1492 = 5,9%

TEMPO (03) 631 tokens

43% da amostra

T4. Futuro Próximo 532/1492 = 35,6%

T5. Futuro Remoto 18/1492 = 1,2%

T6. Futuro do Pretérito 81/1492 = 5,4%

MODALIDADE (03) 469 tokens

31% da amostra

T7. Orientada para Falante 52/1492 = 3,5%

T8. Orientada para Agente 98/1492 = 6,6%

T9. Epistêmica (Possibilidade) 319/1492 = 21,4%

OUTRAS (02) 112 tokens

7% da amostra

T10. Marcador Discursivo 65/1492 = 4,4% T11. Função Ambígua

47/1492 = 3,2%

TOTAL 1492 = 100%

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Pelo critério frequência, a função temporal seria a mais gramaticalizada, a função ambígua a menos gramaticalizada e as funções aspectuais e modais teriam grau de gramaticalização intermediário, disposição categorial que não atestaria a hipótese de que a gramaticalização de ir+infinitivo ocorreria em um processo maior de gramaticalização das categorias verbais flexionais (aspecto > tempo > modo/modalidade). Vejamos, a seguir, no quadro 3, os resultados da análise da atualização dos critérios de auxiliaridade para aprofundarmos essa discussão. A verificação da atualização dos critérios selecionados é feita atribuindo-se 1, se um dado critério se aplica, e 0, se não se aplica. Considerando-se o direcional forma � função, cada critério é aplicado mediante a análise de construções de ir+infinitivo , prototípicas de cada uma das funções do complexo TAM (FONSECA, 2010).

Funções Critérios

Aspecto Tempo Modo/Modalidade Ambígua

T1 T2 T3 T4 T5 T6 T7 T8 T9 T10 1. Inseparabilidade na perífrase 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0 2. Detematização 0 0 0 0 0 1 1 1 1 0 3. Incidência de negação 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0 4. Restrição paradigmática 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 5. Frequência alta 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0 6. Incidência de circunstante de tempo 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0 7. não desdobramento em orações 0 0 0 1 1 1 1 1 1 0 8. Apassivização 0 0 0 0 0 0 1 1 1 1 9. Recursividade 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 10. Oposição a forma simples 1 0 1 1 1 1 0 1 1 0 Grau de Gramaticalidade 6 5 6 8 7 8 8 9 9 2 Quadro 3: Multifuncionalidade (T1...Tn) e auxiliaridade de ir+infinitivo (FONSECA, 2010)

Pelos resultados do quadro 3, observa-se que ir+infinitivo encontra-se em estágio

avançado de gramaticalização. Não há grandes discrepâncias entre os graus de gramaticalidade de cada função, e inexistem graus baixos, com exceção da função ambígua (Grau 2), para a qual a maioria das ocorrências (63%) não tem ainda o grupo verbal formado.

Outro dado que confirma um estágio avançado de gramaticalização dessa construção é a atualização do critério Recursividade, exemplificado pela ocorrência em (01).

(1) “eu/ eu quero eu quero uma arma?” ... “ah num tem/ num tem jeito de comprá(r)?”... é

inlegal eu vô(u) í(r) num algum lugar aí eu conSIgo” (AC-062; RO; L.444) O grau de gramaticalidade da função ambígua destoa das demais funções porque se trata de construções que, na maioria dos casos, ainda preservam a estrutura de deslocamento e de finalidade. Funções aspectuais, pela baixa frequência, estariam em estágio intermediário de gramaticalização (Graus 5 e 6), constatação decorrente do fato de ocorrências prototípicas ainda estarem ligadas à estrutura argumental do verbo ir e, portanto, não totalmente detematizadas; combinadas, frequentemente, com locativos expressos, essas ocorrências também podem ser desdobradas em estruturas de deslocamento e finalidade. Funções temporais, com grau 7 ou 8, estariam mais gramaticalizadas que as aspectuais. Embora alguns types temporais ainda não estejam totalmente detematizados (futuro próximo e remoto), já não é mais possível seu desdobramento oracional. Observe-se que o critério da Recursividade só foi atualizado na função de futuro próximo, o que indicia que essa função estaria um pouco mais gramaticalizada que as demais temporais. Por fim, as funções modais são as mais gramaticalizadas, com graus 8 e 9; só não atualizam o critério da Recursividade, e, no caso da Modalidade Orientada para o Falante, o critério da Oposição a uma forma simples correspondente, já que a perífrase, sob valor de exortação, não é variante de futuro.

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A partir desses resultados, confrontemos na fig. 3, os clines de gramaticalidade de ir+infinitivo , considerando os critérios de frequência e de auxiliaridade.

Fig. 3: Clines de gramaticalidade de ir+infinitivo (FONSECA, 2010) No confronto dos dois clines de gramaticalidade de ir+infinitivo , pelo critério frequência, modo/modalidade gramaticaliza-se em tempo, portanto tempo seria a categoria mais gramaticalizada; pelos critérios de auxiliaridade, tempo gramaticaliza-se em modo/modalidade, portanto modo/modalidade seria a categoria mais gramaticalizada. Diante dessa divergência, advogamos que o cline mais confiável é o que obedece aos critérios de auxiliaridade, porque permite ratificar o postulado universal de Bybee (1985) sobre a ordem de gramaticalização das categorias verbais: aspecto seria a menos gramatical, tempo, uma categoria intermediária, e modo/modalidade, a mais gramatical. Analisemos, agora, o estudo de caso das perífrases constituídas por andar, continuar, ficar e viver + V-ndo (FERNANDES, 2010), o qual assume a diretiva função � forma. No quadro 4, seguem ocorrências exemplificativas das diferentes funções de cada uma delas. Funções Ocorrências prototípicas Imperfectivo cursivo semelfactivo

ficar +V_ndo eu a:: minha cunhada e a minha mãe fico(u) conversan(d)o nas: ... na:: sacada (AC-013; NE: L.09)

continuar +V_ndo a gente ia continuá(r) namoran(d)o (AC-022; NE: L. 60)

andar +V_ndo as polícia ... nu/ num anda fazen(d)o muita coisa não (AC-030; RO: L. 355)

Imperfectivo cursivo iterativo

ficar +V_ndo aí com a mão aqui ((mostra com a mão)) e ficava falan/ repitin(d)o isso toda hora...(AC-001;NE:L.12)

continuar +V_ndo aí lá a gente assim continuô(u) mantendo contato

andar +V_ndo há vários dias já... que ela... anda me contan(d)o que os dois num tavam in(d)o muito BEM (AC-022; NR: L. 230)

viver +V_ndo meu pai só vivia brigan(d)o com o patrão (AC-048; NR: L. 200)

Imperfectivo cursivo progressivo

ficar +V_ndo o buraco na Camada de Ozônio fica aumentando a água no mar (AC-076; RO: L. 413)

continuar +V_ndo e vai continuá(r) aumentan(d)o as vagas... tá nítido isso... o governo já... além de tudo... o governo... acabô(u) de... a universidade em si acabô(u) de acampá(r)... o campus da FAMERP... (AC-080; RO: L.279)

Perfectivo pontual

ficar +V_ndo e os moleque também fica contan(d)o assim ... hoje eu fiquei sabendo que... a C. gosta do E.... nossa maior frescura lá na classe (AC-014-NR L.120)

Quadro 4: Ocorrências prototípicas das funções de andar, continuar, ficar e viver + _ndo

Critério frequência token Função Ambígua Função Aspectual Função Modal Função Temporal ___________________________________________________________________________ menos frequente mais frequente menos gramaticalizada mais gramaticalizada

Critérios de auxiliaridade Função Ambígua Função Aspectual Função Temporal Função Modal _________________________________________________________________________ atualização de menos critérios atualização de mais critérios menos gramaticalizada mais gramaticalizada

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Da análise do quadro 4 e dos resultados de frequência token e type, na tab.2, a seguir, depreende-se que construções com V1 continuar são as que apresentam maior variedade de função aspectual, ao passo que as formadas por andar realizam os aspectos imperfectivo cursivo semelfactivo e iterativo. Por fim, perífrases constituídas por viver+_ndo não apresentam variabilidade funcional, expressando apenas aspecto imperfectivo cursivo iterativo. Construções com V1 ficar são as mais frequentes (86%), seguidas das com V1 continuar (11%) e, com mesma frequência, as com andar+_ndo e viver+_ndo (1,5%).

V1 (frequência type) Funções

ficar (4)

continuar (3)

andar (2)

viver (1)

Total

Imperfectivo cursivo semelfactivo

199/593= 33,4%

47/74= 64,8%

2/12= 16%

- 249/691=

36% Imperfectivo cursivo iterativo

289/593= 48,7%

25/75=33,7% 10/12= 84%

12/12= 100%

335/691= 48,5%

Imperfectivo cursivo progressivo

2/593= 0,5% 2/74= 1,5% - -

4/691= 0,5%

Perfectivo pontual 103/593= 17,4%

- - - 103/691=

15% TOTAL (tokens) 593/691=

86% 74/691=

11% 12/691=

1,5% 12/691=

1,5% 691

Tabela 2: Frequência de uso das perífrases V1+V-ndo (FERNANDES, 2010) Por fim, no quadro 5, a seguir, apresentamos os resultados para a aplicação dos

critérios de auxiliaridade às perífrases em questão. Nesse estudo de caso, a aplicação dos critérios às diferentes perífrases considera que se há atualização de um critério em alguma ocorrência de uma dada perífrases analisada, então deve-se considerar que ele se aplica àquele tipo de perífrase, independentemente da frequência com que o critério se aplica.

V1 + V2-ndo Critérios

Andar Continuar Ficar Viver

1. Inseparabilidade na perífrase 0 0 0 0 2. Detematização 0 0 0 1 3. Incidência de negação 0 0 0 1 4. Sujeito único 1 1 1 1 5. Irreversibilidade 1 1 1 1 6. Incidência de circunstante de tempo 0 0 0 1 7. não desdobramento em orações 0 0 0 1 8. Apassivação 1 1 1 1 9. Recursividade 0 0 0 0 10. Oposição a forma simples 1 1 1 1 Grau de gramaticalidade 4 4 4 8 Quadro 5: Multifuncionalidade e auxiliaridade em perífrases de V1 + V2-ndo (FERNANDES, 2010)

Os resultados do quadro 5 evidenciam que construções com V1 viver estariam mais gramaticalizadas (grau 8) em relação às demais, que apresentam, todas, o mesmo grau médio de gramaticalidade (grau 4).61 Vejamos, a seguir, a análise de ocorrências ilustrativas da aplicação dos critérios, para uma melhor discussão sobre o resultado obtido no quadro 5. Consideremos inicialmente a ocorrência em (02). 61 Grau baixo: 0-3 pontos; grau médio: 4-7 pontos; grau alto: 8-10 pontos.

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(2) eu andava ali direto... procuran(d)o aquelas abelhinha jataí (AC-063; RO: L. 1347) Da análise de (02), podemos apreender que V1 atribui papel temático a seus argumentos e que V1 ocorre separado de V2 pelo locativo ali. Por essa razão, há possibilidade de desdobramento da oração em duas outras: uma principal e uma reduzida de gerúndio.

Os critérios “incidência de negação sobre a perífrase” e “incidência de circunstante de tempo sobre a perífrase” podem ser averiguados por meio de testes, em que se altera a posição da negação ou do advérbio temporal, para verificar se, a depender da posição, o circunstante continua incidindo sobre a perífrase. Em (03) e (04), mostramos como funciona o teste. (3) do dia que eu casei até hoje eu continuo na minha casa e cuidan(d)o do meus filhos

(AC-110; NE: L. 81) a. até hoje eu não continuo na minha casa e cuidan(d)o do meus filhos b. até hoje eu continuo na minha casa e não cuidan(d)o do meus filhos

(4) a gente vai:: compra sorvete e fica na praci::nha conversan::(d)o (AC-001; DE: L. 197) a. a gente vai:: compra sorvete e não fica na praci::nha conversan::(d)o... b. a gente vai:: compra sorvete e fica na praci::nha não conversan::(d)o...

É evidente que a razão da não atualização desses critérios nesses exemplos é a

formação ambígua das perífrases, e não a alteração de seu escopo, a depender da posição do circunstante, já que em qualquer outro tipo de perífrase a atualização dos critérios é clara, como mostrado em (05). (5) minha filha é muito alegre muito brincalhona vivia saindo com as amigas (AC-148; NR:

L. 60) a. (não) vivia (não) saindo com as amigas... b. (sempre) vivia (sempre) saindo com as amigas...

Lobato (1975) afirma que testes como esses são pouco confiáveis, já que resultam

construções por vezes estranhas ou agramaticais. Também o critério da apassivação é isento de críticas, já que é impossível passivar verbos intransitivos, como é o caso dos quatro tipos de V1 aqui tratados. Nesse sentido, todas as ocorrências atualizam esse critério. O critério “sujeito único” se atualiza em todas as ocorrências coletadas, assim como o critério “irreversibilidade” e “oposição a forma simples correspondente”. Os dados demonstram que, assim como a base verbal determina os traços e o papel temático do sujeito, não há casos em que V1 e V2 ocorram invertidos. No caso das “oposições”, qualquer construção pode ser expressa por uma conjugação simples, e não por uma perífrase, como em (07). (7) eu nunca fiquei saben(d)o o que é aquilo lá (AC-015; DE: L. 487) a. eu nunca soube o que é aquilo lá

As perífrases formadas por V1 viver diferenciam-se das demais, por apresentarem apenas inserção de material não relevante para a modificação do estatuto de auxiliar das construções, como pronomes. Ocorre, então, que há detematização de V1, incidência de negação e de circunstante temporal sempre sobre a perífrase, e não há possibilidade de desdobramento em duas orações, como demonstrado em (08). (8) meu vizinho vive me chaman(d)o pra ajudá(r) ele ... (AC-010; RO: L. 339)

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No caso do critério da “recursividade”, não há ocorrência de V1 com mesma raiz em forma gerundiva. De fato, com os tipos de V1 analisados, causa bastante estranheza uma perífrase constituída de V1 e V2 de mesma raiz, como hipotetizamos nos exemplos abaixo. (9) * Gostaria de emagrecer, então ando andando na esteira. (10) * Continuo continuando comendo muito. (11) * Desde aquele dia fico ficando com dores nas costas. (12) * Vivo vivendo triste

Diante da oposição de apenas dois níveis de gramaticalização de auxiliares apurados, uma alternativa para maior diferenciação dessas perífrases seria a inclusão gradativa de outros critérios, além dos adotados, o que permitiria checar em que aspectos uma perífrase vai se diferenciando de outra.

Confrontando os resultados do quadro 5 aos da tabela 2, os clines de gramaticalidade seriam os dados na fig. 4, cuja análise permite observar uma aparente contradição na apuração da gramaticalidade das perífrases analisadas, uma vez que os critérios de auxiliaridade não permitem recompor os mesmos clines de gramaticalidade alcançados pela apuração da frequência token/type. Enquanto, pelos critérios de auxiliaridade, a perífrase com V1 viver é a mais gramaticalizada (grau 8), pela frequência token, ao lado de V1 andar, ela é a menos frequente.

Critério de frequência type viver+_ndo andar+_ndo continuar+_ndo ficar+_ndo ___________________________________________________________________________ menos frequente mais frequente menos gramaticalizada mais gramaticalizada Critério de frequência token andar/viver+_ndo continuar+_ndo ficar+_ndo ___________________________________________________________________________ menos frequente mais frequente menos gramaticalizada mais gramaticalizada

Critérios de auxiliaridade andar/continuar/ficar+_ndo viver+_ndo ___________________________________________________________________________ atualização de menos critérios atualização de mais critérios menos gramaticalizada mais gramaticalizada

Figura 4: Clines de gramaticalidade andar, continuar, ficar e viver+_ndo

O impasse gerado entre os dois critérios empregados parece apontar como problemáticos os critérios de auxiliaridade adotados, em razão de que a baixa frequência token (apenas 12, para viver) restringe a verificação de uma maior estratificação funcional (apenas 1 type para viver), o que, por consequência, reduz a possibilidade de atualização de um número maior de critérios de auxiliaridade, ao contrário do que se verifica para os casos de ficar e continuar, cuja maior variabilidade funcional é reflexo das altas frequências tokens.

Para o estudo de caso em questão, uma formulação mais geral, então, que considera também a baixa frequência token e type de V1 andar (12 e 2, respectivamente) é a de que quanto maior a frequência de uma dada forma, maior a possibilidade de, numa escala de gramaticalidade, ela representar a forma mais gramaticalizada, e quanto menor a frequência, maior a possibilidade de, na escala de gramaticalidade, ela representar a forma menos

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gramaticalizada, formulação que confirma a importância da frequência na gramaticalização (BYBEE, 2003). Portanto, o cline mais seguro para afirmar a gramaticalização das perífrases aspectuais é o estabelecido com base no critério de frequência, diferentemente do que se apurou para a investigação da gramaticalização de ir+infinitivo . Gramaticalização no domínio do tempo passado

Como mostramos, as categorias verbais, no português, abarcam diferentes domínios funcionais que articulam valores de tempo, aspecto e modalidade. Estudos de orientação variacionista e/ou sociofuncionalista têm mostrado que as categorias verbais do PB se apresentam em camadas, tanto quanto à diversidade formal, como quanto à polissemia. Para ilustrar a importância da confluência das abordagens de itens/construções e de funções/domínios funcionais, recortamos, nesse outro estudo caso, o macrodomínio funcional da expressão do tempo passado em português, circunscrito, no escopo desta análise, à amostra relativa à cidade de Florianópolis do banco de dados do Projeto VARSUL.

O macrodomínio da expressão verbal do tempo passado refere-se aos recursos linguísticos de base verbal para a expressão de situações que ocorreram em momento anterior ao momento de fala. Os tempos verbais que expressam passado no português podem ser definidos em função do arranjo temporal específico, como sugere Côroa (2005), que, baseada em Reichenbach (1947), define-os em função da articulação do momento do evento (ME), momento da fala (MF) e momento da referência (MR), como explicitado em (13) a (16). (13) ME – MR – MF: o ME é anterior ao MR, que, por sua vez, é anterior ao MF, valor

temporal prototipicamente associado ao pretérito mais-que-perfeito; (14) ME, MR – MF: o ME é simultâneo ao MR e ambos são anteriores ao MF, valor

temporal prototipicamente associado ao pretérito imperfeito; (15) ME – MF, MR: o ME é anterior ao MF e este simultâneo ao MR, valor temporal

prototipicamente associado ao pretérito perfeito; (16) MR – ME – MF: o MR é anterior ao MF, que é anterior ao ME, valor temporal

prototipicamente associado ao passado condicional.

Os arranjos temporais elencados acima têm em comum o fato de se referirem a situações que ocorreram (ou poderiam ter ocorrido) no passado, ou seja, as formas prototípicas associadas a cada um dos arranjos (microdomínios) podem ser consideradas como equivalentes se levarmos em consideração a função semântico-discursiva ampla (macrodomínio) de expressão do tempo passado; porém, essas variantes carregam consigo matizes de significado muito mais salientes do que a expressão de tempo passado. Assim, embora as formas prototípicas virtualmente possam ser consideradas variantes, os matizes de significado mais salientes barram essa possibilidade, o que não impede, no entanto, que as formas permeiem pelos diferentes microdomínios da expressão verbal do tempo passado no português. Vejamos. No domínio funcional da expressão do passando anterior (anterioridade a um ponto de referência passado) ilustrado em (13), Coan (1997) identificou duas formas que podem desempenhar essa função: a forma de pretérito mais-que-perfeito composto (18) e a forma de pretérito perfeito simples (17). (17) Aí eu peguei, telefonei pra Macarronada e descobri que aconteceu um acidente (FLP 03,

l. 867, Banco de dados VARSUL) (COAN, 1997, p. 53) (18) Aí eu peguei, telefonei pra Macarronada e descobri que tinha acontecido um acidente.

(COAN, 1997, p. 53)

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Dos 576 contextos de passado anterior encontrados na amostra de Florianópolis (type), encontram-se apenas duas ocorrências da forma de pretérito mais-que-perfeito simples (token), especificamente em contextos com valor de projeção futura em expressões cristalizadas, como “tomara que eu esteja enganado!” (SC FLP 21, l.666), e apenas 141 ocorrências da forma de pretérito mais-que-perfeito composto. Canonicamente, costumamos associar a forma de pretérito perfeito simples à expressão de passado anterior à fala, e não ao valor de passado anterior a outra situação passada (a essa função, associamos as formas de pretérito mais-que-perfeito). No domínio funcional da expressão de passado anterior, tanto em termos de layering como diversidade formal, coexistem duas formas, a de pretérito perfeito simples e a de pretérito mais-que-perfeito composto, embora Coan (1997) sugira que, assumindo uma noção ampla para o domínio do passado anterior, a forma de pretérito imperfeito também possa atuar, como em (19), em que a situação de “chegávamos em casa” ocorre antes da situação “apanhávamos uma surra”, e poderia ser indicada pela forma de pretérito mais-que-perfeito composto. (19) Então chegávamos em casa, apanhávamos uma surra do pai... (FLP 18, L1123) (COAN,

1997, p. 17) A forma de pretérito perfeito simples, por sua vez, pode ser enquadrada em termos de layering como polissemia, já que, em uma mesma fatia temporal, a forma assume valores do domínio funcional do passado anterior (passado anterior a uma situação anterior), do passado simples (passado anterior ao momento de fala) (cf. COAN, 1997). Em suma, para expressar o valor de passado anterior, em PB, a forma mais frequente é a forma de pretérito perfeito, mas as formas de pretérito mais que perfeito composto e de pretérito imperfeito do indicativo também atuam neste domínio funcional. O critério de produtividade de uso (frequência) aponta para uma mudança na forma prototípica da correlação icônica um-para-um: não mais a forma de pretérito mais que perfeito composto, mas a forma de pretérito perfeito. Ainda no domínio das categorias verbais, o valor de passado imperfectivo (passado concomitante a outra situação passada), arranjo temporal ilustrado em (14), no PB pode ser expresso pelas formas de pretérito imperfeito do indicativo (20) e pela construção perifrástica constituída por estar + gerúndio (21) (cf. FREITAG, 2007). (20) Na época que eu mais precisei dele, que eu mais precisava de um apoio, foi quando a

minha mãe morreu. (FLP 03) (FREITAG, 2007, p. 20) (21) Aí também foi na época que a gente voltou, a gente estava precisando economizar pra

começar nossa vida. (FLP 01) (FREITAG, 2007, p.20) Foram identificados 882 contextos de passado imperfectivo (type) na amostra de Florianópolis, dos quais 546 se referem à forma de pretérito imperfeito (token). Na perspectiva de layering como diversidade formal, na expressão do passado imperfectivo, as formas de pretérito imperfeito e forma perifrástica coexistem no mesmo domínio funcional.62 Na perspectiva de layering como polissemia, a forma de pretérito imperfeito assume outros valores, que são coexistentes ao de passado imperfectivo, adentrando em outros domínios funcionais, como é o caso do domínio do passado anterior, visto acima, e do passado

62 Embora ambas as formas coexistam no macrodomínio da expressão do passado em curso, a análise empreendida aponta para a especialização das formas em subfunções específicas, relacionadas a matizes da expressão do aspecto imperfectivo: a análise quantitativa mostra evidência para a polarização entre formas e funções, encaminhando-se para a prototipicidade. Assim, a forma perifrástica está fortemente associada à expressão do aspecto imperfectivo progressivo, e a forma de pretérito imperfeito, à expressão dos aspectos imperfectivo iterativo e habitual (FREITAG, 2007).

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condicional (cf. COSTA, 1997), prototipicamente associado à forma de futuro do pretérito, em (22). (22) Aí eu perdi ser miss do Pólo I, ganhava biquínis, sandálias, e depois davam um

cartãozinho, eu tinha crédito, qualquer loja, sabe? (Inf. 40 – Amostra Censo/ PEUL) (COSTA, 2005, 940)

Na definição do microdomínio do passado condicional, em (16), o ME é anterior ao MF, e a situação é vista como futuro a partir de uma perspectiva passada; como essa possibilidade é contemplada a partir de um sistema de referência que se coloca antes da situação, o MR é anterior ao ME. A forma de pretérito imperfeito permeia também este domínio funcional.63

O entrelaçamento dos microdomínios funcionais do escopo da expressão verbal do tempo passado e a sobreposição de formas que transitam por estes microdomínios são reflexos dos efeitos de layering, tanto como diversidade formal (as diferentes formas que coexistem em um dado domínio funcional, como o passado anterior, o passado condicional ou o passado imperfectivo), como de polissemia (os diferentes valores que o pretérito imperfeito assume), como ilustrado na fig. 5.

Pretérito mais que perfeito Futuro do pretérito

Pretérito imperfeito Pretérito

imperfeito

PASSADO ANTERIOR PASSADO CONDICIONAL Perífrase

de imperfeito

PASSADO

IMPERFECTIVO

Fig. 5: Interface entre as abordagens de itens/construções e de funções/domínios funcionais na gramaticalização de passado verbais no PB

Na esquematização da fig. 5, podemos observar que a forma de pretérito imperfeito do indicativo configura-se como um item/construção multifuncional, transitando por diferentes matizes do macrodomínio da expressão verbal do tempo passado. A coexistência de camadas no domínio funcional da expressão do tempo verbal passado em PB leva a uma situação de quebra da correlação icônica ideal um-para-um, fazendo com que o sistema de codificação se reacomode para voltar a instaurar o equilíbrio cognitivo. Neste processo, outras motivações convergentes atuam, especialmente a marcação, princípio cognitivo-comunicativo (GIVÓN, 1984; 2001) que atua sobre os padrões de distribuições das formas verbais (tokens) relativos a cada subfunção assumida (types).

A atuação do princípio da marcação impõe restrições de uso às formas, o que pode levar aos direcionais de mudança. Formas que coexistem no mesmo domínio funcional são analisadas/implementadas na gramática dos falantes como mais ou menos complexas,

63 A variação entre as formas de futuro do pretérito e pretérito imperfeito foi objeto de um estudo variacionista na fala de Florianópolis do banco de dados do Projeto VARSUL (SILVA, 1998). No entanto, o microdomínio da condicionalidade não foi controlado, não permitindo que se teçam considerações acerca da frequência.

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resultando em distribuições diferenciadas: o fato de uma forma ser menos ou mais marcada correlaciona-se à probabilidade maior ou menor de sua ocorrência em certos contextos, em detrimento de outras formas que desempenham a mesma função. Diversos estudos vêm constatando a existência de correlação entre o grau de marcação de formas de categorias gramaticais variadas e o uso que se dá a elas nas situações de comunicação do dia-a-dia (cf. GIVÓN, 2001; GÖRSKI & FREITAG, 2006; GÖRSKI, TAVARES & FREITAG, 2008). Esse princípio costuma exercer ação regularizadora sobre fenômenos variáveis: variantes menos marcadas tendem a ser favorecidas em contextos de menor complexidade, ao passo que variantes mais marcadas tendem a predominar em contextos de maior complexidade.

Assim, tanto as situações de multifuncionalidade de itens/construções (polissemia) como as situações de diversidade formal em um dado domínio funcional são resultados da dinâmica do uso linguístico, sujeitas às pressões comunicativo-cognitivas reguladoras. Uma abordagem que considere apenas um direcional de análise, seja da forma para a função, seja da função para a forma, não consegue captar todos os matizes do processo. Considerações finais

Neste artigo, considerados dois direcionais para o estudo da mudança linguística que se implementa por meio de processos de gramaticalização, o direcional forma � função e o função � forma, tentamos argumentar em favor da clareza necessária, aos estudiosos da gramaticalização, na adoção desses direcionais. Por meio de diferentes estudos de casos de gramaticalização em variedades diferentes do PB, mostramos que a conjugação desses direcionais ao critério de frequência de uso proporciona resultados mais confiáveis na análise de fenômenos de mudança.

Considerando-se os mesmos critérios aplicados ao estudo da gramaticalização de ir + infinitivo e ao das perífrases aspectuais, como se explicaria a aparente divergência dos efeitos desses critérios na obtenção dos clines de gramaticalidade em cada estudo de caso? A resposta para essa questão parece-nos mesmo residir na diretiva que se assume num trabalho de investigação. Para um estudo de gramaticalização de perífrases que assuma a diretiva função � formas (abordagem de domínio funcional), o critério frequência é o mais adequado para aferir o grau de gramaticalidade das formas pertencentes àquele dado domínio funcional, caso típico da atuação do princípio de estratificação de Hopper (1991). Na investigação das perífrases aspectuais, os critérios de auxiliaridade não parecem necessários nem suficientes para determinar seus graus de gramaticalidade, “já que um dos critérios – o da inseparabilidade – pode determinar todos os outros” (FERNANDES, 2010, p. 62). Para estudo de gramaticalização de perífrases que assuma a diretiva forma � funções (abordagem da gramaticalização da forma, que passa a atuar em domínios funcionais diferenciados), critérios de auxiliaridade mostram-se ferramentas mais confiáveis do que o critério frequência. É o que se verifica na apuração da frequência das funções de ir+infinitivo , uma única forma que integra diferentes domínios funcionais (Tempo, Aspecto, Modo/Modalidade), caso típico da atuação do princípio de divergência, de Hopper (1991). Sob tais considerações, a aparente contradição se desfaz, não havendo incoerência entre os resultados alcançados na aferição do grau de gramaticalização de perífrases.

A análise da gramaticalização no domínio funcional da expressão verbal do tempo passado em PB permitiu ver que a complementariedade das abordagens promove uma descrição mais acurada e dinâmica do processo.

Respondendo à pergunta do título deste artigo, concluímos que no domínio das categorias de TAM para verbo, no PB, faz-se necessário testar as duas possibilidades de análise, que, cotejadas ao critério frequência de uso, garantem resultados mais confiáveis para a descrição do fenômeno.

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FROM FORM TO FUNCTION OR FROM FUNCTION TO FORM? ABSTRACT: In this article, we address two directions for studies of language change whereby grammaticalization: from form to function and from function to form. These theoretical and methodological options are associated to two principles of grammaticalization by which studies in the interface variation and grammaticalization are feasible: layering principle, which predicts that grammaticalized forms coexist in the same functional domain with old forms, and divergence principle, which postulates that a form in grammaticalization can developed multiples functions, one of which covered more grammatical status than its lexical counterpart (HOPPER, 1991, 1996). In the investigation of grammaticalization, it is essencial to determine type and token frequency (BYBEE, 2003). Combining these different criteria, we reinterpreted, in this paper, results of three case studies involving grammaticalization of tense, aspect and mode/modality in two varieties of Brazilian Portuguese. In the form � function way, we present results of the study of grammaticalization of ir (´go´)+infinitive (FONSECA, 2010); in the function � form way, we present results from grammaticalization in functional domains of aspect (FERNANDES, 2010) and past time (FREITAG, 2007, COAN, 1997). The results show that choosing one of the directives can determine adoption of criteria for safer proposition of grammaticalization paths.

KEYWORDS: Grammaticalization. Variation. Form. Function. TAM.

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A origem latina dos advérbios em -mente: um processo de gramaticalização

Júlia Langer de CAMPOS64

RESUMO: O presente artigo propõe uma análise da construção adjetivo + mente (ex: profunda mente) em textos da língua latina a fim de buscar a origem do sufixo -mente, formador de advérbios na maioria das línguas românicas, e demonstrar a trajetória de mudança do substantivo mente, categoria lexical, para o sufixo -mente, categoria gramatical, caracterizando este processo como mudança por gramaticalização. (Hopper e Traugott: 2003; Traugott e Dasher: 2005; Heine e Kuteva: 2007). Ou seja, um sintagma de formação relativamente livre, sofre univerbação passando um de seus elementos formadores a assumir uma função gramatical e uma vez gramaticalizado, pode assumir funções ainda mais gramaticais. No caso da construção estudada, o sintagma adjetivo + substantivo mente, ambos no caso ablativo, feminino, singular e com função adverbial, tornam-se um único vocábulo e mente para de uma categoria lexical para uma categoria gramatical (sufixo). Com a pesquisa, conseguimos chegar a algumas evidências da gramaticalização do item mente, como: o seu contexto inicial de uso, a extensão para novos contextos, o aumento da frequência e a regularização da ordenação adjetivo + mente.

PALAVRA-CHAVE : Advérbio; Mudança; Gramaticalização. Introdução

Este trabalho propõe uma análise da construção qualitativa na língua latina, formada por um adjetivo mais o substantivo mente, ambos no caso ablativo, feminino, singular (tranquila mente). Mais especificamente este trabalho busca a origem do sufixo -mente, formador de advérbios na maioria das línguas românicas, a fim de detectar o conjunto de processos que caracterizam o desenvolvimento dessa construção como uma mudança por gramaticalização.

Este estudo se justifica pelo fato de algumas gramáticas históricas apontarem para esta estrutura como originária na língua latina, argumentando que esse mecanismo de derivar advérbios de adjetivos surgiu em substituição aos processos formadores de advérbios no latim clássico. Nesta fase do latim, os advérbios derivavam de adjetivos por meio das desinências -e e -o para os adjetivos de tema em -u/-o e também pelo sufixo -ter para os adjetivos de tema em -e. Porém, este trabalho irá mostrar que a construção estudada, adjetivo + mente, já se encontra em textos do latim clássico, com uma significação ainda literal do substantivo mente, mas já com traços semânticos de valor qualitativo, ou seja, um valor de advérbio de modo. A freqüência desta construção se elevará nos textos de latim medieval, período posterior à língua clássica.

De acordo com a lingüística funcionalista, esta estrutura parece estar ligada a alguns pressupostos da teoria da Gramaticalização (Hopper e Traugott: 2003; Traugott e Dasher: 2005; Heine e Kuteva: 2007). Ou seja, um sintagma de formação relativamente livre, sofre univerbação passando a assumir uma função gramatical e uma vez gramaticalizado, assume funções mais gramaticais. No caso da construção estudada, o sintagma adjetivo + substantivo mente, ambos no caso ablativo, feminino, singular e com função adverbial, tornam-se um único vocábulo e -mente assume função sufixal, ou seja, uma função gramatical.

Corpus

O corpus deste trabalho é dividido em duas partes, uma referente ao período clássico da língua latina, que vai do século I a.C. ao século I d.C., e a outra referente ao período do

64 UFRJ. Faculdade de Letras – Departamento de Linguística e Filologia. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Cep: 21941- 917 – e-mail: [email protected]

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latim medieval, que corresponde basicamente ao período da língua latina após a queda do Império romano. Em ambos os períodos, o corpus é formado por textos de língua escrita.

A parte referente ao latim clássico é composta dos seguintes textos: De Bello Gallico: Constans, 1926; As Catilinárias: CICÉRON. Discours. Tome X: Catilinaires. Texte établi par H. Bornecque et traduit par E. Bailly. Paris: Les Belles Lettres, 2007; O livro de Catulo: Carmina. São Paulo: EDUSP, 1996 ; As Bucólicas: VIRGILE. Bucoliques. Texte établi et traduit par Eugène de Saint-Denis. Paris: Les Belles Lettres, 2008; Amor: OVIDE. Les Amours. Texte ét. et traduit par H. Bornecque. Paris: Les Belles Lettres, 2009; A Breve História de Roma (livros I, II e III) : EUTROPE. Abrégé d'histoire romaine. Texte établi et traduit par J. Hellegouarch. Paris: Les Belles Lettres, 1978. São textos de características diferentes, sendo o primeiro um relato de guerra, no formato de um diário; o segundo, um discurso; As Bucólicas e Carmina são textos poéticos e o último é um texto historiográfico. São textos que refletem a realidade da língua clássica, pois são representativos deste período.

Referentes ao latim medieval foram utilizados os textos: Anticlaudianus, Historia Hierosolymitanae Expeditionis, De amore et dilectione Dei et proximi et aliarum rerum et de forma vitae, De rebus Gestis Aelfredi, Nouus Esopus, Dantes Alagherii Epistolae, Declaratio Arbroathis, Disticha Catonis, Explicit Líber Quintus, Gesta Roberti Wiscardi, Gesta Frederici Imperatoris, Disciplina Clericalis, Líber ad honorem Augusti Sive de rebus Siculis, Richeri Historiarum, Vita Caroli, Manus fortis e Historia rerum in partibus transmarinis gestarum. São textos de cunho basicamente religioso e historiográfico, de diversos autores, alguns conhecidos e renomados, outros não. São textos disponíveis na biblioteca de latim medieval. Lembrando que consideramos importante para esta pesquisa a quantidade de textos, tendo em vista a dificuldade para encontrar dados e lidar com eles.

Considerando o número de palavras de cada fase, verifica-se um total de 85.432 palavras para o latim clássico, constando 19 ocorrências do substantivo mente, sendo que 11 dessas ocorrências se deram na locução adverbial estudada. Por outro lado, o latim medieval totaliza 188.024 palavras com 46 ocorrências do substantivo mente, sendo que 40 se deram dentro da locução adverbial estudada. É relevante dizer que em dois textos do latim clássico, As Bucólicas e A Breve História de Roma, não foi encontrada nenhuma ocorrência, tanto do substantivo mente, quanto deste na construção analisada. Estas informações são importantes para esta pesquisa, visto que foi feita uma análise quantitativa, então quanto maior fosse o número de textos, significaria mais dados para a pesquisa.

Em relação ao número de palavras em cada fase é importante porque, muitas vezes, os textos de latim clássico são maiores que os textos da fase medieval e isso poderia afetar nos resultados da pesquisa, ou seja, na quantidade de dados encontrados em cada fase. Então decidimos contar o número de palavras de todos os textos de cada fase. A quantidade de palavras da fase medieval foi superior à fase clássica, mas não consideramos isso algo prejudicial aos resultados, pois a diferença em termos de dados de acordo com a construção estudada, a fase medieval foi notoriamente superior à fase clássica desde o início da análise de dados. O que corrobora essa informação é o fato de em dois textos do latim clássico não encontrarmos um dado com o substantivo mente.

Objetivos e hipóteses

Esta pesquisa tem como objetivos: a) Confirmar a origem dos advérbios em -mente do português. Motivados pelo o que

dizem as gramáticas históricas, de que o sufixo -mente surgiu no latim, decidimos confirmar cientificamente a origem latina deste sufixo.

b) Observar os tipos de sujeito que se relacionam com o verbo modificado pela construção. Para esta pesquisa é de grande importância sabermos quais tipos de sujeito se

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relacionam à construção adj. + mente, pois partimos da hipótese de que inicialmente, o sujeito tenderia a ser +humano, +individuado e +singular, comprovando o caráter ainda literal do substantivo 2mente, como no exemplo:

“quam primum cernens ut laeta gaudia mente agnoscam, cum te reducem aetas prospera sistet.” (Tradução) Porque eu, assim que te olhar, perceba alegremente o gáudio ao te trazer de volta o tempo próspero. (Catulo 64). Este seria, portanto um exemplo prototípico de sujeito com os traços +humano, +individuado e +singular.

c) Observar os tipos de adjetivos que modificam o substantivo mente nas construções analisadas. Uma vez que os adjetivos fazem parte da construção analisada, devemos avaliar quais tipos de adjetivos ela privilegia.

d) Analisar o grau de fixidez da construção através da observação da ordem dos seus constituintes. A questão da ordenação é de grande importância nos estudos de gramaticalização, principalmente neste caso em que se trata da trajetória de um substantivo para um sufixo: tranqüila mente (adj. + mente) > tranqüilamente (adj. -mente), pois a medida que o substantivo mente começa a se fixar logo após o adjetivo, verificamos uma das características de um sufixo, logo, do processo de gramaticalização desta estrutura.

e) Observar o valor semântico da construção adverbial. Visto que inicialmente, o sufixo -mente se tornou produtivo na formação de advérbios qualitativos, logo, queremos verificar nesta pesquisa se o valor semântico desta construção adverbial também resultava em um valor qualitativo ou em outros valores.

f) Observar os tipos de verbo que ocorrem na construção analisada. Uma vez que estamos lidando com uma construção adverbial, devemos observar os tipos de verbo que ocorrem nestes enunciados modificando a construção analisada.

A cada um desses objetivos estão associadas às hipóteses apresentadas abaixo: a) A origem dos advérbios em -mente, que existem em quase todas as línguas

românicas, se encontra nas locuções adjetivo + mente, que começaram a sofrer o processo de gramaticalização durante o latim medieval.

b) Os sujeitos relacionados à construção tenderiam, inicialmente, a ter os traços +humano, +singular, + individuado, pois estaria compatível com o sentido original do substantivo mente, uma vez que este também possui os traços +humano, +singular e +individuado. Partimos da hipótese de que os sujeitos que se relacionam a esta construção adverbial, apresentariam, a princípio, estes traços.

c) Os adjetivos avaliativos refletem uma visão mais subjetiva do falante, ou seja, aquilo que depende da opinião individual de quem fala, o que também é compatível com o sentido literal da palavra mente. Por isso acreditamos que a maioria dos adjetivos analisados se enquadraria nesta classificação.

d) O substantivo mente tende a ser posposto ao adjetivo na maioria das construções, visto que este se tornará um sufixo. A construção adjetivo + mente começa a se fixar nesta posição a partir do latim medieval, em que o processo de gramaticalização começa a atuar sobre estes elementos. A ordenação, neste caso, é um indício importante para o processo de gramaticalização, pois uma vez que o substantivo mente se torna um item gramatical, assumindo uma função sufixal, este precisa necessariamente ser posposto ao adjetivo que ele modifica.

e) Espera-se que toda a construção resulte num valor semântico qualitativo, pois, inicialmente, a formação de advérbios em -mente tornou-se produtiva para advérbios de valor qualitativo. Hoje, com o resultado de algumas pesquisas recentes (Martelotta: 2006; Moraes Pinto: 2008), sabemos que estes advérbios continuam se gramaticalizando, assumindo valores não apenas modais, mas também aspectuais, oracionais, intensificadores e outros.

f) A maioria das construções com valor qualitativo se relaciona a verbos materiais, pois estes dão conta do mundo sócio-cognitivo do falante.

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Variáveis analisadas

Analisamos as seguintes variáveis neste trabalho:

Associadas ao sujeito

As variáveis associadas ao sujeito relacionam-se com os traços semânticos que ele pode apresentar, sendo relevantes os traços: ±humano; ±individuado e ±singular, por motivos citados anteriormente neste trabalho no item 1.2, objetivos e hipóteses. Chamamos de sujeito +humano todo sujeito que pertença à espécie humana e –humano um sujeito que não seja um substantivo relativo espécie humana; o traço +individuado está relacionado à idéia de indivíduo, no sentido de ser específico, de distinguir-se num grupo, individualizar-se. Quando não há no sujeito essas características, recebe o traço –individuado. Receberá o traço +singular quando não estiver flexionado quanto ao número, ou seja, não estiver no plural, no sentido de “mais de um”, caso contrário, receberá o traço –singular.

Exemplos:

(1) +humano: Latim: “sede o diuinius ipsa sompniat archana rerum celique profunda mente

Plato, sensumque Dei perquirere templat.” (Anticlaudianus) Tradução: mas Platão imagina as próprias coisas celestes com a mente mais profunda que ele (Aristóteles), e tenta procurar o sentimento de Deus. (2) -humano: Latim: “Haec autem apostolicus mente voluntária et intenta ut accepit, in

omnibus se promisit mandatis parere sanctorum precibus.” (Historia Hierosolymitanae Expeditionis)

Tradução: Assim, visto que o ato apostólico retomou estas coisas voluntária e atentamente, e prometeu que estaria presente nos mandamentos de todos os santos. (3) +individuado: Latim: “terrarum motus, ogitum fulminis, iras occeani, uentorum mente

fideli conspicit et certa solers indagine claudit temporis excursus” (Anticlaudianus) Tradução: Ele observa a movimentação das terras, o barulho do raio, a ira do oceano e a luta dos ventos com a mente fiel. (4) -individuado: Latim: Procedunt portis Siculi, non star eferentes, Egressique foras

audaci mente repugnant” (Gesta Roberti Wiscardi) Tradução: Os Siculos saem pelas portas, postos para fora e recriminam audaciosamente. (5) +singular: Latim: “Mente tibi laeta studuit parere poeta.” (Explicit Líber Quintus) Tradução: O poeta aplicou-se em obedecer-te com a mente alegre. (6) -singular: Latim: ”Quam etiam reges sereníssima mente excipientes, papae et

episcoporum mandatis in nullo tunc refragati sunt” (Richeri Historiarum)

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Tradução: Os reis que vieram depois se opuseram com a mente sereníssima aos pedidos dos papas e dos bispos.

Associadas à posição do substantivo mente na construção

Foram consideradas as seguintes posições dos adjetivos e do substantivo mente a fim de observar a ordenação dos elementos e grau de fixidez destes na construção. A ordenação destes elementos é um fator importante nesta pesquisa, visto que este se tornará um sufixo formador de advérbios. Dividimos este posicionamento entre estruturas simples e estrutura composta. A estrutura simples que se caracteriza apenas pela presença do adjetivo e do vocábulo mente, exemplificado abaixo nas letras a e b, enquanto que a composta apresenta estruturas mais complexas do que a simples ocorrência do adjetivo e do substantivo mente, podendo, inclusive, aparecer um elemento “x” entre o adjetivo e o substantivo. Consideramos este elemento “x” qualquer classe de palavra que não seja a conjunção e, em latim et, visto que esta conjunção é aceita no processo de formação de advérbios em -mente. Vejamos.

Exemplos:

a) mente + adjetivo: (7) Latim “In celo mente beata viuat et in terris peregrinet corpore solo”. Tradução: Depositado na terra, que viva no céu com a mente feliz e que só o corpo peregrine nas terras b) adjetivo + mente: (8) Latim: “Hec autem Sanctissimi Patres et Predecessores vestri sollicita mente pensantes

ipsum Regnum et populum” Tradução: Desse modo os Santíssimos padres e seus predecessores que examinam com a mente solicita o próprio reino e o povo. c) mente + X + adjetivo: (9) Latim: “Mente tibi laeta studuit parere poeta.” Tradução: O poeta aplicou-se em obedecer-te com a mente alegre. d) adjetivo + X + mente: (10) Latim: “Quale sid id, quod amas, celeri circumpisce mente”. (Historia Hierosolymitanae

Expeditions) Tradução: Que seja assim, observa aquilo que tu amas com a mente pronta. e) mente + adjetivo + adjetivo: (11) Latim: “Haec autem apostolicus mente voluntaria et intenta ut accepit”. (Historia

Hierosolymitanae Expeditionis) Tradução: Assim, visto que o ato apostólico retomou estas coisas com a mente voluntária e atenta.

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f) adjetivo + mente+ adjetivo: (12) Latim: “et eum in caelo et in terra regnantem recta mente et fide credidossent” (Gesta

Francorum) Tradução: se eles acreditassem que ele reina no céu e na terra com a mente reta e fiel.

Tipos de adjetivos

Consideramos relevante para a pesquisa observar os tipos de adjetivos avaliativos e descritivos, a fim de avaliar o nível de subjetividade do falante. Os adjetivos avaliativos são mais subjetivos, ou seja, dependem da opinião do falante, enquanto que os descritivos são menos subjetivos pois descrevem as características dos substantivos a que se referem e por isso não dependem da opinião de quem fala.

Exemplos: a) Adjetivo avaliativo (13) Latim: “Theseu, toto animo, tota pendebat perdita mente.” (Catulo 64) Tradução: Teseu pensava em ti com a mente perdida, com o peito inteiro, a alma inteira. b) Adjetivo descritivo (14) Latim: “Cum ergo uterque exercitus dúbio esset statu, et de Victoria altrinsecus tota

mente quaereretur” (Richeri Historiarum) Tradução: Algum exército que fosse não apenas perigoso e determinado, mas também que tivesse buscado a vitória completamente.

Tipos de advérbios

Procuramos observar o valor semântico da construção adverbial estudada, podendo resultar em valores como de modo, tempo, intensidade, lugar e outros. Porém, o mais esperado seria o valor qualitativo, o que foi correspondido pelos dados da pesquisa. No entanto, encontramos alguns dados cujo valor semântico é aspectual, ou seja, abarca ao mesmo tempo traços qualitativos e traços temporais.

Exemplos: a) Qualitativo (15) Latim: “mora tarda mente cedat: simul ite, sequimini Phrygiam ad domum Cybeles” Tradução: Não tarde com a mente lenta, segui-me à frigia casa de Cibele. (Catulo63) (16) Latim: “Expediunt dubia mente laboris iter”

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Tradução: Eles desimpediram o caminho do trabalho com a mente arriscada . (Líber ad honorem Augusti Sive de rebus Siculis) b) Aspectual (17) Latim: “haec mandata prius constanti mente tenentem Thesea céu pulsae uentorum flâmine nubes Aereum niuei montis liquere cacumen” Tradução: Teseu, assim, disseminada a nuvem negra na mente, demitiu as ordens do peito imêmore, às quais constantemente seguira. (Catulo 64) (18) Latim: “Nam decem numero juvenes quibus constanti mente fixum erat omne

periculum subire” Tradução: Com efeito, sustentar um número de dez jovens que constantemente tinha fincado todo o perigo. (Richeri Historiarum) Tipos de verbos

Procuramos observar os tipos de verbos a que compõem a construção. Nesse sentido, utilizamos a classificação de verbos apresentada em Scheibman (2001). A autora, tomando como base classificações propostas em Halliday (1994) e Dixon (1991), apresenta uma lista de dez classes semânticas de verbos. Vejamos os tipos de verbos propostos por Scheibman (2001), ilustrados com exemplos do corpus desta pesquisa:

a) Verbos de cognição- indicam atividade cognitiva (saber, pensar, lembrar, etc.). (19) Latim: “sede o diuinius ipsa sompniat archana rerum celique profunda mente Plato” Tradução: Platão imagina as mesmas arquiteturas do céu mais profundamente. (Anticlaudianus) b) Verbos de sentimento- indicam emoção e desejo (gostar, querer, amar, sentir, precisar, etc.). (20) Latim: “Diliges dominum deum tuum ex toto corde tuo, et ex totamente tua, et ex tota

anima tua” Tradução: Ama teu Deus de todo teu coração, de toda sua mente e de toda sua alma. (De amore et dilectione Dei et proximi et aliarum rerum et de forma vitae) c) Verbos materiais- indicam ocorrência e ações concretas e abstratas (fazer, ir, ensinar, trabalhar, usar, brincar, etc.) (21) Latim: “campisque ducentos agricolas captos furibunda mente trucidat.” Tradução: Trucida duzentos escravos agrícolas nos campos com a mente furiosa. (Gesta Roberti Wiscardi)

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d) Verbos de percepção- indicam sensações, atenção (olhar, ver, escutar, encontrar, notar, etc.). (22) Latim: “Terrarum motus, mugitumfulminis, iras occeani, uentorum mente fideli

conspicit” Tradução: Observa a movimentação das terras, o barulho do raio, a ira do oceano, a luta dos ventos com a mente fiel. (Anticlaudianus) e) Verbos relacionais- indicam processo de ser (ser, tornar-se, parecer, etc.). (23) Latim: “Si deus est animus, nobis ut carmina dicunt, hic tibi praecipue sit pura mente

colendus.” Tradução: Se Deus é espírito, este deve ser cultuado primeiramente com a mente pura, recitam poesias para nós. (Disticha Catonis) f) Verbos de crença: eles expressam a crença do sujeito em relação a algo do mundo real. (24) Latim: “eum in caelo et in terra regnantem recta mente et fide credidissent.”

Tradução: eles acreditassem reta e fielmente que ele reina no céu e na terra. (Gesta Francorum) Referencial teórico

Esta pesquisa tem como base alguns pressupostos da teoria da Gramaticalização (Hopper e Traugott: 2003; Traugott e Dasher: 2005; Heine e Kuteva: 2007). Em linhas gerais, esta teoria diz que um sintagma relativamente livre passa a assumir função gramatical dentro de um determinado contexto e uma vez já gramatical, assume uma função ainda mais gramatical. Para que se conceba melhor essa proposta, é necessária a compreensão do aspecto não-estático da gramática, que está sempre se reestruturando. Levando em conta as diferentes possibilidades de arranjos e criações na estrutura lingüística em diferentes eventos de fala, pode-se concluir o caráter relativamente instável da gramática, o que permite uma constante mudança nas línguas.

A chamada gramática centrada no uso (Barlow e Kemmer: 2000) acredita que o discurso é organizado de acordo com intenções comunicativas dos usuários da língua, ou seja, por fatores de ordem cognitiva e comunicativa. Devido a este fato, dizemos que a gramática é feita no discurso, a depender das diferentes situações comunicativas. Segundo Givón (1979), a sintaxe evoluiu do discurso e a linguagem humana se fez do modo pragmático para o sintático, de maneira que as formas lingüísticas e sua estrutura sintática seriam um reflexo de processos cognitivos e das intenções comunicativas que o falante organiza no momento da interação discursiva. Quando um fenômeno lingüístico passa ter uma maior freqüência de uso, ocorrendo de forma previsível e estável, podemos dizer que se regularizou como norma de uma língua, ou seja, saiu do discurso e entrou para a gramática.

O processo de gramaticalização é um dentre outros processos de mudança lingüística, que se associam a aspectos semântico-pragmáticos. Um determinado uso é estendido para outros contextos numa trajetória unidirecional e regular. Esta trajetória pode se dar em dois sentidos: de elementos lexicais para elementos gramaticais (ex: adjetivo mente > sufixo -

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mente), que é o caso da presente pesquisa, ou também entre elementos gramaticais para outros mais gramaticais (ex: aí anafórico > aí conclusivo).

Esta pesquisa se enquadra na primeira forma, ou seja, um item lexical, substantivo, migra para uma categoria gramatical, sufixo. O substantivo mente (ablativo, feminino, singular) aumenta sua freqüência de uso num determinado contexto lingüístico, ocorrendo, na maioria das vezes, logo após os adjetivos modificadores deste substantivo e indicando a noção de modo, com isso seu uso torna-se regular e previsível, os itens lexicais sofrem univerbação naquele contexto, resultando num mecanismo de formação de advérbios a partir de adjetivos (processo gramatical). Sendo assim, podemos dizer que esta estrutura se gramaticalizou.

A mudança por gramaticalização implica alguns parâmetros (Heine e Kuteva: 2007). O primeiro deles é o da extensão ou generalização de contextos. Isto acontece quando uma construção linguística é usada em um contexto restrito e determinado, e tem seu uso estendido a novos contextos. Isso acontece por fatores de ordem cognitiva e pela necessidade comunicativa dos usuários de uma língua, que se utilizam de processos criativos para dar conta dessas necessidades. Nesta pesquisa podemos observar a atuação deste parâmetro quando pensamos na palavra mente como um substantivo e na restrição de seu uso em contextos específicos e determinados, em que o falante refere-se a alguma atividade psíquica e mental. Como sabemos, a classe dos adjetivos pode modificar o valor de um substantivo, sendo assim, a construção analisada neste trabalho sempre terá um adjetivo modificando o substantivo mente. Isto é o início, melhor dizendo, a origem da formação de advérbios em -mente a partir de adjetivos.

Este uso inicial que, por sua vez, não desapareceu da nossa língua, começou a ser estendido a novos contextos, em que o falante utiliza essa construção adjetivo + mente com um valor qualitativo. A construção passa a aceitar não só sujeitos +humanos, +individuados e +singulares, mas também sujeitos que, a princípio, não corresponderiam ao significado literal do substantivo mente, ou seja, sujeitos –humanos, –individuados e –singulares.

Outro parâmetro proposto pela teoria da gramaticalização é o da dessemantização (bleaching, redução semântica), é a perda de conteúdo semântico. De acordo com os objetivos desta pesquisa, podemos dizer que há um esvaziamento semântico da palavra mente quando esta passa a desenvolver função gramatical de afixo, ou seja, deixa de ter a significação “intelecto, pensamento, entendimento, alma, espírito” para ser apenas um sufixo adverbial, indicador de advérbio.

O parâmetro da decategorização refere-se à perda de propriedades características das formas fonte, incluindo perda de status de forma independente, que é o caso de clitização e afixação, por exemplo. O substantivo mente, quando este se torna um sufixo, ele perde o status de forma independente, pois sua estrutura não se sustenta mais sozinha, sendo necessário algum elemento para que o sufixo se apóie, neste caso dos advérbios em -mente, este suporte sempre será um adjetivo. O último parâmetro proposto por esta teoria é o da erosão ou redução fonética, que nada mais é que a perda de substância fonética. No caso dos advérbios em -mente não há propriamente uma perda de substância fonética, o que ocorre é a redução de dois vocábulos fonológicos para apenas um, acompanhado da uma perda de tonicidade típica de vocábulo livre.

Estes são os fatores mais importantes dentro da teoria da Gramaticalização para dar conta do fenômeno estudado neste trabalho. Análise dos dados Latim clássico

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Vejamos agora as características da construção analisada no latim clássico, levando em conta as variáveis analisadas. As características do sujeito

Observamos as características do sujeito do verbo modificado pela construção adverbial adjetivo + mente. A tabela abaixo apresenta esses resultados:

Sujeito Traço ±Hum Traço ±Indiv Traço ±Sing

+Hum -Hum +Ind -ind +sing -sing 11 0 11 0 8 3

Total 11 Ocorrências Tabela 1: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de sujeito do Latim clássico

O que merece ser destacado nesta tabela, é o fato de, na fase clássica, só ocorrerem

sujeitos com os traços +humano e +individuado, associados aos verbos que são modificados pela construção adjetivo + substantivo mente. Isso está de acordo com as hipóteses desta pesquisa (item 1.2). Cabe também registrar que a maior parte dos dados apresenta o traço +singular, e mesmo os três dados que apresentam o traço -singular, são todos +humanos e +individuados. Posição do vocábulo mente

Passemos agora a analisar a posição do vocábulo mente dentro da construção observada, a começar pelo que estamos caracterizando aqui como estrutura simples, ou seja, aquela que se caracteriza apenas pela presença do adjetivo e do vocábulo mente. A tabelas abaixo apresenta os resultados:

Posição mente + adjetivo adjetivo + mente 9

Tabela 2: Distribuição dos dados pelas diferentes posições nas construções de estrutura simples Podemos notar na tabela que em todas as ocorrências encontradas com estruturas

simples, a ordem dos elementos foi adjetivo seguido do vocábulo mente. Isso demonstra o alto grau fixação dos elementos, condição básica para a gramaticalização que ocorrerá mais tarde com a construção.

Vejamos agora o que ocorre com o que estamos chamando aqui de construções de estrutura composta, ou seja, aquelas que apresentam estruturas mais complexas do que a simples ocorrência do adjetivo e do substantivo mente. Eis a tabela referente a esses dados:

Posição mente + adjetivo + adjetivo 1 adjetivo + mente + adjetivo adjetivo + adjetivo + mente mente + X + adjetivo adjetivo + X + mente 1

Tabela 3: Distribuição dos dados pelas diferentes posições nas construções de estrutura composta

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Podemos notar, na tabela acima, a ocorrência apenas de dois dados no que chamamos de estrutura composta, comprovando, mais uma vez, maior fixidez do substantivo mente após o adjetivo, visto que a produtividade apresentada na tabela 2 foi superior a da tabela 3. Tipo de adjetivo

Outra variável observada em nossa análise foi o tipo de adjetivo que compõe a construção. Vejamos a tabela abaixo:

Adjetivo Avaliativo 9 Descritivo 2

Tabela 4: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de adjetivos O que merece ser observado nesta tabela é a quantidade de adjetivos avaliativos em

relação aos descritivos, pois de acordo com as hipóteses apresentadas nesta pesquisa, os adjetivos que se relacionam à construção analisada tenderiam a ser avaliativos em sua maioria, correspondendo ao grau de subjetividade do substantivo mente, o qual o adjetivo está modificando. Tipos de advérbios

A variável tipo de advérbio diz respeito à função adverbial que a construção desempenha na sentença em que ocorre. A tabela abaixo apresenta os resultados:

Advérbios modo 10 aspectual 1

Tabela 5: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de advérbios Como podemos ver, na tabela acima, o valor semântico da construção teve em 90%

dos dados um valor qualitativo, ou seja, o valor inicial mais produtivo dos advérbios em -mente. Então, ainda na fase embrionária dos advérbios em -mente, a construção resultava em valores modais, por isso o primeiro valor assumido na formação de advérbios em -mente, foi o valor qualitativo. Somente em fases posteriores, com os mecanismos de extensão e dessamntização, típico do processo de gramaticalização (Heine e Kuteva: 2007), a construção desenvolveu outras funções que hoje caracterizam os usos dos advérbios em -mente. A tabela também nos mostra um dado com valor aspectual, ou seja, um caso em que a construção apresente um valor temporal e qualitativo ao mesmo tempo, como por exemplo constanti mente> constantemente. Este valor é muito comum hoje tendo em vista a gramaticalização destes advérbios. Tipos de verbos

Verbos Cognitivo 3 De crença Material 7 De percepção 1

Tabela 6: Distribuição dos dados pelos diferentes tios de verbos

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Esta tabela é interessante, pois há dois fatos que merecem ser comentados. O primeiro deles é que antes de iniciar a presente pesquisa, pensávamos que encontraríamos na fase clássica mais verbos cognitivos que materiais, pois de acordo com a classificação dos verbos utilizada neste trabalho (Scheibman: 2001), os verbos de cognição estariam mais compatíveis com o significado literal do substantivo mente. No entanto, sabemos que construções de valor qualitativo tendem a se relacionar a verbos materiais, pois são verbos que dão conta do mundo sócio-cognitivo do falante. E é por esse motivo que o número de verbos materiais superou o número de verbos de cognição, pois 90% dos dados do latim clássico apresentaram valor qualitativo.

Latim Medieval

Passemos agora a observar as características da construção analisada no latim medieval, levando em conta as variáveis analisadas.

As características do sujeito

Assim como fizemos com o Latim Clássico, observamos as características do sujeito do verbo modificado pela construção adverbial adjetivo + mente. A tabela abaixo apresenta esses resultados:

Sujeito Traço ±Hum Traço ±Indiv Traço ±Sing +Hum -Hum +Ind -ind +sing -sing 34 2 30 6 22 14 Total 36 Ocorrências

Tabela 7: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de sujeito no Latim Medieval Observando a tabela acima, vemos que dos 36 dados, 34 receberam o traço +humano e

2 receberam o traço -humano, diferentemente do que ocorreu no latim clássico, em que só temos sujeitos +humanos. Acreditamos que o aparecimento de dois dados -humano, assim como o aparecimento dos traços -individuado e -singular, seja um pequeno indício de gramaticalização quando pensamos no parâmetro da extensão, ou seja, um uso é estendido para novos contextos (item 3 desta pesquisa), pois no contexto clássico o uso do substantivo mente se restringiu a contextos em que o sujeito fosse +humano, +individuado e +singular, em sua maioria, o que está de acordo com o significado literal deste substantivo. Enquanto que no período medieval vemos uma pequena mudança no uso deste substantivo no que desrespeita aos sujeitos envolvidos na construção estudada, pois nesta fase, observando os dados, vemos que houve uma extensão do uso desta construção para contextos em que permitem sujeitos -humanos, -individuados e -singulares.

Posição do vocábulo mente

Vejamos agora a posição do vocábulo mente dentro da construção observada, a começar pelo que estamos caracterizando aqui como estrutura simples. As tabelas abaixo apresentam os resultados referentes a essa variável:

Posição mente + adjetivo 7 adjetivo + mente 25

Tabela 8: Distribuição dos dados pelas diferentes posições nas construções de estrutura simples no Latim Medieval

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O que merece ser comentado em relação à tabela acima, é a predominância da posição adjetivo + mente, como nós esperávamos ser em ambos os períodos analisados. É interessante notar que no latim medieval a maioria dos dados se limitou à estrutura simples, sendo 25 casos dentro do esperado, ou seja, o substantivo mente imediatamente posposto ao adjetivo modificador e 7 casos com os mesmos componentes na ordem inversa. Acreditamos que estes 7 casos nesta posição ocorreram no latim medieval enquanto que no clássico não encontramos nenhum, pelo fato de possuirmos mais dados na fase medieval que na fase clássica, estando, portanto, mais suscetível à alternâncias entre os elementos principais envolvidos na construção, ou seja, um adjetivo e o substantivo mente.

Posição mente + adjetivo + adjetivo 1 adjetivo + mente + adjetivo 1 adjetivo + adjetivo + mente mente + X + adjetivo 1 adjetivo + X + mente 1

Tabela 9: Distribuição dos dados pelas diferentes posições nas construções de estrutura composta no Latim Medieval

Na tabela acima, podemos observar que apenas 4 dos 36 casos ocorreram no que

chamamos de estrutura composta, o que corrobora a fixidez dos elementos principais envolvidos na estrutura, sendo muito superior a ordenação adjetivo + mente, como estava previsto nas hipóteses desta pesquisa. Com isso, vemos a maior produtividade da tabela 8 em relação à tabela 9. Tipo de adjetivo

Vejamos os resultados apresentados em relação aos tipos de adjetivos envolvidos na construção com base nos dados da fase medieval:

Adjetivo Avaliativo 34 Descritivo 2

Tabela 10: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de adjetivos no Latim Medieval Como já foi dito na análise dos dados no período clássico, da mesma forma temos

nestes dados o resultado esperado, que é a predominância de adjetivos avaliativos, como nos mostra a tabela acima.

Tipos de advérbios

Advérbios modo 34 aspectual 2

Tabela 11: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de advérbios no Latim Medieval Em relação ao valor semântico da construção adverbial, houve da mesma forma que na

fase clássica a sobreposição do valor qualitativo aos outros valores possíveis. Na amostra medieval encontramos dois casos com valor aspectual, enquanto que no latim clássico este

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valor semântico já havia aparecido em um dos dados. É importante lembrar que os advérbios com valor aspectual, não deixa de ter em algum grau um valor qualitativo, juntamente com o temporal.

Tipos de verbos

Verbos Cognitivo 1 De crença 1 Material 27 Relacional 2 De percepção 4 De sentimento 1

Tabela 12: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de verbos no Latim Medieval. Como podemos ver nos resultados da tabela acima, a grande maioria dos verbos que

modificam a construção são verbos materiais; o que está de acordo com a nossa hipótese. Vemos nesta amostra quatro verbos de percepção, que são verbos de atividade mais cognitiva, o que também é esperado que se relacione a este tipo de construção.

Conclusão

De acordo com os dados coletados e analisados nesta pesquisa, podemos chegar a algumas conclusões acerca da origem dos advérbios em -mente:

a) Perante a dificuldade de encontrar textos disponíveis, a pesquisa não obteve muito sucesso em relação à quantidade de dados que se esperava. No entanto, conseguimos desenvolver um trabalho com resultados interessantes no ponto de vista diacrônico referentes a esta formação adverbial (adjetivo+ -mente). Verificamos que realmente esta construção já existia na língua latina, não ainda com a produtividade alta, mas que seu uso foi se intensificando com o passar do tempo. Afirmamos isso observando a quantidade de dados encontrados na fase clássica, apenas 11, e 36 na fase medieval.

b) Com o aumento da freqüência desta construção e analisando as variáveis, chegamos a conclusão de que a construção adverbial adjetivo + mente, começa a sofrer o processo de gramaticalização a partir da fase medieval da língua latina, por motivos já ditos na análise dos dados (item 4).

c) Ao final desta pesquisa não conseguimos traçar objetivamente a trajetória do processo de gramaticalização mente > -mente, visto a dificuldade para lidar e encontrar textos. Porém este é um desejo para pesquisas futuras.

THE LATIN ORIGIN OF ADVERBS IN -MENTE: A PROCESS OF GRAMMATICALIZATION

ABSTRACT: This article proposes an analysis of the junction adjective + mente (eg,profunda mente) in the Latin language texts in order to find out the origin of the suffix-mente, which is responsible for creating adverbs in the most of Romance languages, and demonstrate the changes trajectory of the noun mente, lexical category, into the the suffix-mente, grammatical category, characterizing this process as a change in grammaticalization. (Hopper and Traugott, 2003, Traugott and Dasher, 2005; Heine and Kuteva, 2007). In other words, it´s a relative free combination of words turning into an univerbazation, that makes one of its former elements to assume a grammatical function and once it´s gramaticalizated, can take much more grammatical functions. In this construction research, the phrase adjective + mente, both in the ablative case, feminine, singular and adverbial function, become a single word and mente turns to a lexical category into a grammatical category

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(suffix). Therefore, we deduce some evidence from mente grammaticalization item, such as: its initial usage context, its extension to new contexts, the frequency increase, and the regulation of the order adjective + mente.

KEYWORDS: Adverbs; Ghanging; Grammaticalization. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALI, Said. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. 7ª ed, vol. 19, Melhoramentos, 1971. BARLOW, Michael e KEMMER, Suzanne (eds.). Usage based models of language. Stanfornd, California: CSLI Publications, 2000. BIBLIOTECA LATINA MEDIEVAL : www.thelatinlibrary.com/medieval.html. Último acesso em 6/ 3/ 2010. COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica: linguística e filologia. 7a ed. Rio de Janeiro: ao livro técnico S/A- Indústria e comércio, 1976. CUNHA, Maria Angélica F. da, Oliveira, Mariângela R. de e MARTELOTTA, Mário E. Lingüística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. EDITORA LES BELLES LETTRES : www.lesbelleslettres.com . Último acesso em 6/3/2010. ERNOUT, Alfred e THOMAS, François. Syntaxe latine. Paris: Klincksieck, 1993. GIVÓN, Talmy. 1979. On Understanding Grammar. New York: Academic Press. HEINE, Bernd e KUTEVA, Tânia. The genesis of grammar: a reconstruction. Oxford: University Press, 2007. HOPPER, Paul J. & TRAUGOTT, Elizabeth-Closs. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. MARTELOTTA, Mário E. Ordenação dos advérbios bem e mal no português escrito: uma abordagem histórica. Rio de Janeiro: UFRJ (Relatório final apresentado ao CNPq), 2004. MARTELOTTA, Mário E. Ordenação de advérbios qualitativos: reflexões sobre a unidirecionalidade na gramaticalização. In: FIGUEIREDO, Célia Assunção et al. (orgs). Língua(gem): reflexões e perspectivas. Uberlândia: EDUFU, 2003. MARTELOTTA, Mário E. Ordenação dos advérbios qualitativos em -mente no português escrito no Brasil nos séculos XVIII e XIX. In: Gragoatá: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFF. Niterói: EdUFF, segundo semestre de 2006. MORAES PINTO, Deise Cristina. Gramaticalização e Ordenação nos Advérbios Qualitativos e Modalizadores em -mente. Tese de Doutorado em Lingüística. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. TRAUGOTT, Elizabeth C. e DASHER, Richard B. Regularity in semantic change. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. TROUGOTT, Elizabeth C. e BRINTON, Laurel J. Lexicalization and language change. Cambrige: Cambridge University Press, 2005.

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Revisitando a liaison do francês pela via da análise da frequência de uso

Ricardo Araujo Ferreira SOARES65 Mônica Maria Rio NOBRE66

RESUMO: Nosso trabalho volta-se para o (re-)exame de fenômenos de fala conectada em francês, entre os quais inclui-se aquele conhecido como liaison. Tal fenômeno, conhecido como truncamento, ou, de modo mais genérico, como sândi externo, requer, para sua implementação, informação de mais de um componente da gramática. Para que se possa ter uma melhor compreensão da complexidade do fenômeno da liaison do francês, procuramos, além de fazer uma breve revisão de textos de base gerativa, enfocar a abordagem não-gerativista específica preconizada por Joan Bybee (2001). Segundo a autora, os papéis da morfologia, sintaxe e léxico são fundamentais no tocante ao fenômeno da liaison, contudo, cada uma dessas contribuições tem gerado controvérsias ao longo da literatura linguística. Assim é que realizamos uma revisão no tratamento dado a esse fenômeno considerando textos fundadores tais como: Schane (1967), Selkirk (1972), Rotenberg (1978) e Kaisse (1985), além de tecermos no presente artigo algumas considerações críticas sobre Bybee (2001) comparando os resultados da autora com os obtidos em Soares (2005, 2010).

PALAVRAS-CHAVE: Interface fonologia/sintaxe; Liaison; Sândi externo; Fala conectada.

Introdução

O presente trabalho propõe um re-(exame) de “Constructions as processing units: The rise and fall of French Liaison”, de Joan Bybee (2001). Nesse artigo, a autora faz considerações sobre o fenômeno da liaison da língua francesa, também conhecido, de forma mais genérica, como sândi externo ou, mais modernamente, como fala conectada.

Em francês, os ajustes feitos entre uma palavra e outra são conhecidos como elision e liaison, os quais podem ser expressos, de modo informal, da seguinte maneira: o primeiro é definido pela supressão ou queda de vogal final de palavra antes de outra que inicie por vogal (ex: le ami - [lami] ‘o amigo’), e o último é a “ligação” de uma palavra terminada por consoante com outra iniciada por vogal, sendo a consoante final da primeira palavra, muda (ex: les amis - [lezami] ‘os amigos’).

Numa ótica tradicional, Grevisse & Goose (1995:23-24) também fornecem definição dos fenômenos, a saber: “... a liaison é o fato de que uma consoante final, muda em uma palavra isolada, articula-se com um sintagma quando a palavra seguinte inicia por vogal”. Sobre a elision, os autores a definem como “... o desaparecimento de uma vogal final diante de outra palavra iniciada também por vogal.”

Além da apreciação do artigo de Bybee (2001) e de considerações críticas a respeito do que tem a dizer a autora a sobre o fenômeno em causa, será feita, também, uma breve explanação de textos referentes ao fenômeno em questão – considerados pela literatura linguística como fundadores -, para um melhor debate entre os diversos pontos de vista presentes defendidos por todos esses autores. Algumas palavras sobre textos fundadores

Schane (1967) trouxe a primeira grande contribuição: não só tratou os fenômenos da

liaison e elision de forma unificada – truncamento –, como também confirmou, ainda que timidamente, o papel que tem a sintaxe para sua implementação. Tal visão reconhece que a representação subjacente de palavras que podem vir a se submeter à liaison (isto é, palavras 65 UFRJ, Depto. de Linguística, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 21941-917 [email protected] 66 UFRJ, Depto. de Letras Vernáculas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 21941-917 [email protected]

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que terminam por consoante) deve incluir a consoante final, e que esta consoante não é pronunciada quando não se opera o fenômeno da liaison. Deste modo, Schane assume que tanto a elision para as vogais como a ausência de liaison para as consoantes podem ser consideradas um mesmo processo – apagamento de um segmento em posição final de palavra –, sendo que uma vogal só será apagada antes de outra palavra também iniciada por vogal (elision) e uma consoante final será igualmente apagada antes de palavra iniciada por consoante (não-liaison). Assim, a elision e a ausência de liaison são – nos termos de Schane (1967) – denominadas como processos de truncamento em língua francesa.

Em francês, uma palavra pode ser também finalizada por uma consoante líquida ou 'glide'. Schane (1967) considera que as consoantes líquidas são um tipo de consoante e que os glides são subclasses de vogais. Contudo, as líquidas em final de palavra não se comportam como consoantes, da mesma forma que glides, em final de palavra, não se comportam como vogais, razão pela qual o autor trata líquidas e glides separadamente.

Tendo-se uma palavra que termine por consoante, vogal, líquida ou glide contígua a outra que tenha quaisquer destas quatro classes de sons, obtêm-se dezesseis possibilidades exemplificadas a seguir em (1), através dos itens lexicais camarade 'camarada', ami 'amigo', rabbin 'rabino', oiseau 'pássaro' – precedidos, cada um deles, dos adjetivos petit 'pequeno', admirable 'admirável', cher 'querido' e pareil 'parecido': Quadro 1

Consoante Vogal Líquida Glide Consoante peti(t) camarade petit ami peti(t) rabbin petit oiseau Vogal admirable camarade admirable ami admirable rabbin admirabl(e) oiseau Líquida cher camarade cher ami cher rabbin cher oiseau Glide pareil camarade pareil ami pareil rabbin pareil oiseau

Nos termos de Schane, estão indicados, entre parênteses, os segmentos que não têm realização fonética.

A partir do quadro acima, podem-se formular as seguintes generalizações descritivas:

Em posição final de palavra: i) consoantes sofrem truncamento antes de consoantes e líquidas ii) vogais são truncadas antes de vogais e glides iii) líquidas e glides não sofrem truncamento

Em termos do sistema de traços distintivos tal como proposto por Chomsky & Halle (1968), as quatro classes de segmentos acima referidos podem se diferenciar umas das outras pela utilização de apenas dois traços, a saber: [consonantal] e [vocálico], atribuindo-se, para cada traço, os valores positivo ou negativo, como se vê no Quadro 2: Quadro 2 Consoante Líquida Vogal Glide + cons + cons - cons - cons - voc + voc + voc - voc

Desta forma, pode-se chegar a um refinamento do que é generalização descritiva.

Assim: i) consoantes sofrem truncamento antes de segmentos [+cons] ii) vogais sofrem truncamento antes de segmentos [-cons] iii) líquidas e glides não sofrem truncamento, ou ainda:

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SEGMENTOS iv) [+cons; -voc] sofrem truncamento antes de segmentos [+cons] v) [-cons; +voc] sofrem truncamento antes de segmentos [-cons]

Por convenção, α pode possuir valor positivo ou negativo, sendo que -α possuirá

necessariamente valor contrário àquele assumido por α. Com isso, Schane chega discursivamente à regra geral do truncamento entre palavras 1(a), que pode ser representada em termos formais em 1(b): (1) a. Em posição final de palavra: Segmentos [α cons,- α voc] sofrem truncamento antes de segmentos [α cons].

b. α cons -α voc º # [α cons]

A utilização da notação a para a língua francesa permite que se separe a classe das vogais e das consoantes (que podem sofrer truncamento) da classe dos glides e líquidas, que não se submetem a truncamento.

Para Schane (1967), a liaison não ocorre entre duas palavras contíguas quaisquer, uma vez que há configurações sintáticas em jogo. Um bom exemplo disto é a ocorrência do fenômeno entre adjetivo e o nome seguinte em contraposição à sua não ocorrência entre um nome e um adjetivo seguinte, como se vê em (2): (2) a. 'un savant Anglais’ - [A‡savA‡tA‡glE] - HÁ LIAISON (adj) (nome) 'um Inglês sabichão' b. 'un savant anglais' - [A‡savA‡A‡glE] - NÃO HÁ LIAISON (nome) (adj) 'um sábio inglês'

Considerando-se as duas regras de apagamento até aqui enunciadas (a regra de truncamento entre palavras e o apagamento de consoante em final de frase), Schane (1967) levanta a seguinte hipótese: as regras de truncamento não preveem o apagamento do segmento [t] de 'savant' em (2b) acima. Para este segmento ser apagado, seria necessária a presença de um segmento contíguo do tipo consoante ou líquida, fato que não ocorre no exemplo em questão, pois 'anglais' é palavra iniciada por vogal. Isto significa dizer que o apagamento ou não de tal segmento não depende do ambiente fonológico.

Alguns aspectos relativos à posição de Schane (1967) são fudamentais. Para ele, não há distinção entre os fenômenos da liaison e da elision, sendo ambos tratados como truncamento – o que constitui, aparentemente, um avanço, já que os dois fenômenos são unificados como um único processo. São importantes, para a ocorrência do truncamento, tanto a fonologia, quanto os aspectos sintáticos ainda que estes últimos não tenham sido plenamente explorados por esse autor.

Selkirk (1972), avançando bastante em relação à visão de Schane, reiterou que não apenas aspectos prosódicos e fonológicos estariam envolvidos na liaison.

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De acordo com Selkirk (1972), há uma tendência, em língua francesa, de se apagar consoantes finais de palavras, a menos que se encontrem estas em contexto de liaison, a qual ocorrerá se a palavra seguinte for iniciada por vogal e se as palavras envolvidas apresentarem-se em determinados contextos sintáticos. Para exemplificar o contexto de liaison, a autora fornece o seguinte exemplo: (3) Lorenzo est° un petit °67enfant [EtA‡p´titA‡fœ‡] 'Lorenzo é uma criança'

Segundo Selkirk, as análises tradicionais relativas ao fenômeno têm dividido os contextos sintáticos em três categorias, a saber: a liaison pode ser obrigatória, opcional, ou proibida, categorias essas que não são aproveitadas pela autora. Eis o que diz Selkirk (1972) a respeito de sua classificação:

Abordagens tradicionais têm dividido os contextos sintáticos de liaison em três categorias, dependendo de ser a liaison obrigatória, opcional ou proibida. Tais distinções não serão utilizadas nesse estudo. (...) Ao invés de utilizar esses termos, introduzirei os termos ‘básico’ e ‘estilístico’ para descrever o fenômeno. Os contextos de liaison são ‘básicos’ quando aparecem em qualquer estilo de fala, e ‘estilísticos’ se seu aparecimento é determinado por fatores estilísticos. (SELKIRK, 1972, p. 188)

Seguindo Fouché (1959), seu estudo encontra-se dividido em “estilos de discurso”: a

conversação corrente (conversation familière), a conversação cuidada (conversation soignée) e finalmente o estilo culto (lecture ou discours), denominados por Selkirk como estilos I, II e III, respectivamente. Ressalte-se ainda que, à medida em que o estilo se torna mais culto, maior a probabilidade de existência de ambiente para que ocorra a liaison.

A teoria defendida em Selkirk (1972) é a de que o fenômeno fonológico característico da liaison ocorre quando apenas uma fronteira de palavra (#) separa uma palavra de outra. Mais especificamente, as palavras P e Q estão em contexto de liaison quando houver a seguinte estrutura: ...P] [# Q... Selkirk (1972) baseia sua proposta para o fenômeno da liaison em língua francesa na Teoria de Fronteiras desenvolvida por Chomsky & Halle (1968). Segundo essa teoria, a sintaxe produz sequências de nódulos terminais constituídos de segmentos e pelas junturas (fronteiras) que separam esses segmentos.

Aplicando a Teoria de Fronteiras a uma sequência determinante–nome, teríamos um contexto básico de liaison - nos termos de Selkirk (1972) -, uma vez que o artigo não possui fronteira própria, como se vê no esquema: [# [art] [# [nome] # ]. Desta forma, então, sempre serão pronunciadas consoantes finais de estruturas como em (4): (4) a. 'son° ennemi' [sonenemi] (seu inimigo) b. 'cet °aspect' [setaspE] (este aspecto) c. 'les° atrocités' [lezatRosite] (as atrocidades)

Ainda, Selkirk ressalta o fato que, em francês, ocorrem, sobretudo no estilo culto (estilo III), regras de reajustamento, de forma a converter sequências como P # ] [ # Q em sequências do tipo P ] [ # Q, fato que não aconteceria nos demais estilos.

No estilo corrente (estilo I), então, estariam os contextos "básicos" de liaison, isto é, o fenômeno dar-se-ia entre itens lexicais e itens não-lexicais (por exemplo, preposições, 67 O símbolo ° indica, neste trabalho, que houve liaison.

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determinantes e clíticos). Na conversação cuidada (estilo II), ocorrem novas possibilidades de contextos para haver liaison, como, por exemplo, especificadores de verbos e sintagmas adjetivos expandidos, de forma que categorias lexicais que precedem cabeças de sintagmas podem reter sua consoante final. Por fim, no estilo culto (estilo III), nomes, verbos e adjetivos e elementos que os complementam estão em contexto de liaison. Cada um destes estilos estaria sujeito a regras de reajustamento, de maneira a haver apenas uma fronteira de palavra nos três casos em questão.68

Em Selkirk (1972) é visível o recurso a regras de reajustamento, quer para fortalecer fronteiras e impedir a liaison, quer para enfraquecer fronteiras e, assim, representar formalmente os contextos favorecedores da liaison. Se, por um lado, há utilização de regras de reajustamento como um recurso formal - válido, na época - para que a fonologia pudesse operar a partir de um output sintático, por outro lado, vê-se em Selkirk (1972) uma exploração muito maior do que aquela encontrada em Schane (1967). Assim, Selkirk já registra a importância dos itens não-lexicais (categorias funcionais na terminologia mais atual) para os contextos básicos de liaison.

Rotenberg (1978) atribuiu igualmente importância à configuração sintática, tendo traduzido os contextos de liaison levantados por Selkirk (1972) - com quem, aliás, afirmou concordar - em termos de c-comando imediato.

Para um mesmo contexto, então, Rotenberg (1978) afirma poder ser a liaison tanto obrigatória quanto opcional, ou mesmo não ocorrer. Segundo Rotenberg (1978), se a liaison é permitida em um contexto sintático, haverá, então, a obrigatoriedade da ocorrência deste fenômeno no 'estilo culto', ao mesmo tempo em que pode não ocorrer no mesmo contexto, em conversação corrente. Daí, a conclusão de que o fenômeno em questão terá maior opcionalidade quando se trata do estilo corrente, sendo obrigatório na linguagem culta. Isto ocorreria porque, entre outros fatores, o falante está consciente de uma pressão social para que realize liaison em contextos referentes ao uso culto da língua francesa, havendo, segundo Rotenberg, uma certa absorção por parte de instituições normativas de ideias relativas à “ liaison correta” em estilos formais. Ao falante de francês “educado”, por exemplo, é explicitamente ensinado que, para ler e recitar poesia, a liaison é obrigatória antes de um adjetivo pós-nominal, como se vê em 'des° idées °absurdes' [dezidezabYRd´] ‘ ideias absurdas”.

Ainda que exista a tendência à maior ocorrência de liaison nos estilos mais formais, não existe, segundo Rotenberg (1978), uma norma para a ocorrência deste fenômeno pelo fato de não haver regras produtivas. O que se verifica é, simplesmente, uma tendência, por parte do falante, a realizar o fenômeno na medida em que é maior a situação de formalidade linguística. Isto posto, o que dizer, então, da ocorrência do fenômeno em situações menos formais? Se existe artificialidade em relação a tais regras na norma culta, então ela ocorrerá em proporções ainda maiores na linguagem corrente, que é, em última análise, o lugar em que deve ocorrer por excelência o fenômeno linguístico.

Para chegar à melhor formalização do fenômeno, Rotenberg (1978) recorre a algumas definições, tais como a de Selkirk (1972:208): "o fenômeno fonológico característico da liaison opera quando justo uma fronteira de palavra, #, separa uma palavra da seguinte."

Assim como em Selkirk (1972), nota-se também em Rotenberg (1978) o recurso a regras de reajustamento, uma vez que a liaison só será possível se houver apenas uma fronteira de palavra separando dois itens (lexicais ou não-lexicais) que poderão assim entrar em liaison. Também Rotenberg (1978) atribui importância à configuração sintática, mas com um passo à frente: traduz em termos de c-comando imediato os contextos básicos para liaison identificados por Selkirk e por ela tratados pela via de regras de reajustamento (introdução/eliminação de fronteiras).

68 Os exemplos de cada um dos contextos citados estão tanto em Selkirk (1972) quanto em XXX (2005, 2010)

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Ainda, dando forma explicitamente ao que é fonético/fonológico e ao que é sintático, Rotenberg (1978) postula dois níveis para a ocorrência de liaison, preocupando-se com o tipo de condicionamento que há nas regras referentes ao fenômeno: condicionamento fonético ou condicionamento sensível à configuração sintática. À primeira ele chama de regra dependente de adjacência prosódica, e à segunda, de regra sensível à configuração sintática. A formulação do que cabe à prosódia e do que compete à sintaxe constitui, para a época, um rumo promissor.

Por fim, para dar maior peso a essa visão em prol da relevância da configuração sintática, temos Kaisse (1985) que, além de ter adotado a condição de ramificação à direita, traduziu também, em seus próprios termos, os ambientes propícios ou não para a ocorrência da liaison (complemento-núcleo e núcleo-complemento).69

Primeiramente, convém mencionar que o trabalho de Kaisse já se insere num modelo de gramática gerativa mais moderno, proposto nos anos 80.

Em relação ao trabalho de Selkirk (1972), Kaisse (1985) reconhece que a teoria de fronteiras, defendida pela primeira como condição básica para que o fenômeno da liaison ocorra, não corresponde à realidade no tocante ao fenômeno da liaison.

Kaisse (1985) aproveita parte da proposta de Rotenberg (1978), e avança no que diz respeito à proposta desse autor. Em primeiro lugar, é importante ressaltar o papel que tem, para Kaisse, a simetria relativa às relações núcleo-complemento e complemento-núcleo. A proposta de Kaisse constitui um avanço na medida em que propõe uma parametrização para o fenômeno de sândi externo nas línguas naturais partindo do comportamento interlinguístico de dois parâmetros importantes para a realização desse fenômeno: c-comando e condição de margem. No fenômeno da liaison, por exemplo, a relação de c-comando estabelece que duas palavras a e b estão em relação de c-comando se b c-comanda a, sendo que a condição de margem completa essa relação exigindo que b esteja na margem direita. Vale ressaltar que outro avanço de Kaisse (1985) é o de fixar a noção de margem de constituinte como parâmetro combinável a c-comando - o que amplia as possibilidades de se lidar formalmente com diferentes fenômenos de fala conectada em várias línguas naturais. Algumas palavras de Bybee (2001)

Em seu texto intitulado “Constructions as processing units: the rise and fall of French

liaison” (2001), Joan Bybee utiliza a liaison do francês para ilustrar o fato de que a construção ou a frequência de determinada estrutura condiciona o desenvolvimento de alternâncias entre variantes da mesma palavra, e que a frequência também faz com que tais variantes sejam resistentes à regularização. Bybee até prevê, no caso da liaison do francês, que o fenômeno seja sensível ao componente sintático: a informação contida no limite das palavras seria insuficiente, e as restrições de natureza sintática seriam relevantes para as regras de sândi externo. A autora também admite, ainda que com ressalvas, uma argumentação pela via da fonologia - segundo tal hipótese, o fenômeno estaria também ligado a aspectos suprassegmentais, incluindo-se aí o fato de constituírem a pausa e/ou a velocidade da fala70 um aspecto relevante para a realização dos fenômenos de liaison.

De acordo com Bybee (2001), então, liaison “é o nome para a emergência de uma consoante de final de palavra antes de uma vogal que inicie palavra seguinte em palavras que, em outros contextos, terminam por vogal.”71 . Assim sendo, a terceira pessoa do singular do verbo cópula est ‘é’ é pronunciada [Et] no exemplo (5) e [E] no exemplo (6), como se vê a seguir:

69 Cf. Kaisse (1985) 70 Nesse ponto, Bybee (2001) mostra-se claramente de acordo com a proposta de Selkirk (1972), cujo resumo encontra-se em seção anterior. 71 Cf. 2001:167

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(5) a. le climat est °°également très différent72 [EtegalmA‡] ‘O clima é igualmente muito diferente’ b. c’est ° encore un refuge de notables [sEtA)kOR] ‘É ainda um refúgio de notáveis’

(6) a. c’est le meurtre ‘É o assassinato’ b. le Conseil Regional qui est donc son assemblée délibérante ‘O conselho Regional que é a sua assembléia deliberativa’

Bybee (2001) indica-nos que a condição fonológica para o aparecimento de liaison é

que haja, “após palavra terminada por consoante, outra iniciada por vogal, mas isto apenas sob certas condições sintáticas”. (Cf. 2001: 168). É nítido, então, o peso que a sintaxe possui para a implementação do fenômeno. A própria autora fornece um exemplo: o morfema indicador de plural do SN pode variar diante de um adjetivo iniciado por vogal, ao passo que em (7), a presença de [z] no final do mesmo SN não é possível, uma vez que tal construção envolve seu verbo.

(7) le[z] enfants ([z])73 intelligents ‘crianças inteligentes’ [lezA‡fœ‡zœ‡teliZA‡] le[z] enfants arrivent ‘as crianças chegam’ [lezA‡fœ‡aRiv´]

Ainda que admita que o fenômeno focalizado seja sensível tanto ao componente

sintático quanto ao componente fonológico, Bybee (2001) argumenta, principalmente, que os contextos morfossintáticos e lexicais nos quais a liaison ocorria com maior frequência de forma categórica foram armazenados pela memória do falante. Com a perda do fenômeno, ao longo do tempo, o que vemos é, na realidade, a manifestação do fenômeno em contextos em que ocorriam com maior frequência.

Para provar sua tese, a autora recorre ao histórico do apagamento das consoantes em posição final de palavra, o que, para Bybee, “é um fenômeno foneticamente condicionado”. (Cf. 2001:168). O resultado desta mudança fonética foi que muitas palavras, nomes e adjetivos perderam sua consoante final completamente, como por exemplo, bois ‘madeira’, goût ‘gosto’ ou tabac ‘tabaco’. Tais palavras, no entanto, se sucedidas por outra iniciada por vogal, deverão fazer liaison. A seguir, contextos para a ocorrência do fenômeno segundo Bybee (2001). Em (8) e 9) a liaison é considerada obrigatória.

(8) determinantes a. vos° enfants [vozA‡fœ‡] ‘seus filhos’

b. les° autres [lezotR´] ‘os outros’ (9) pronomes clíticos a. nous° avons [nuzavo‡] ‘nós temos’ b. ils° ont [ilzo‡] ‘eles têm’

72 O símbolo ° indica que houve liaison 73 A notação ([x]) é da própria autora

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(10) plural /-z/ em construções nome-adjetivo des découvertes° inquietantes ‘descobertas inquietantes’ [dekuvERtzA‡kietA‡t´] (11) desinências número-pessoais a. nous vivons° à Paris [vivo‡zapaRi] ‘nós vivemos em Paris’ b. ils chantent ° en choeur [SA‡tA‡S{R] ‘eles cantam em coro’ (12) um pequeno grupo de adjetivos pré-nominais (masculino singular) a. um petit° écureil [p´tit´kuREy] ‘um pequeno esquilo’ b. un gros° amiral [gRozamiRal] ‘um almirante gordo’ c. un long° été [lo‡gete] ‘um longo verão’ (13) plural de alguns adjetivos a. deux petites° histoires [p´tit´zistwah] ‘duas histórias curtas’ (14) preposições, advérbios a. pendant° un mois [pA‡dA‡tA‡mwa] ‘durante um mês’ (15) frases fixas

a. c’est° à dire [sEtadih] ‘quer dizer’ b. pas °encore [pazA‡kOh] ‘não ainda’

Segundo Bybee (2001), os papéis da morfologia, sintaxe e léxico são inegáveis no

tocante ao fenômeno da liaison, contudo cada uma dessas contribuições é que tem sido assunto para controvérsias ao longo da literatura linguística. Ainda, segundo a autora, trabalhos fundamentais para avanços significativos no que diz respeito ao fenômeno da liaison teriam sido os de Selkirk (1974)74 e Chomsky & Halle (1968) - a primeira porque prevê contextos de liaison através de estabelecimento de fronteiras75 e a segunda porque, nos termos de Bybee, estabelece fronteiras para categorias lexicais, mas não para categorias gramaticais. Por fim, Bybee cita o trabalho de Kaisse (1985), cuja proposta admite maior peso da configuração sintática para a ocorrência de liaison.

Outros autores (Baxter, 1975; Green & Hintze, 1988; Morin & Kaye, 1982; Tranel, 1981) oferecem, segundo Bybee (2001), uma análise que se refere não apenas a fatores morfossintáticos mas também a fatores lexicais, o que vai ao encontro da visão da própria autora:

eu argumento que o uso de estruturas que fazem liaison é que as mantêm vivas, preservadas. Mais especificamente, argumentarei que o grau de coesão sintática que é sempre mencionado em estudos sobre liaison é um resultado direto da frequência com a qual os dois itens envolvidos na liaison ocorrem na sentença. (BYBEE, 2001,p.172)

Esta proposta abarca a totalidade da construção envolvida pela liaison (exemplo: cher°

ami ‘querido amigo’) como uma unidade básica. Segundo tal visão, construções linguísticas têm diferentes graus de ‘convencionalização’, uma vez que só se estabilizam na língua a partir de uso repetitivo. Os mecanismos para a estabilização de construções linguísticas seriam:

74 Tal referência aparece na bibliografia com a data de 1972, data da defesa de Tese de Elisabeth Selkirk. A publicação de obra só se deu em 1974. 75 Cf. seção anterior deste trabalho

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(i) o fato de ficarem automáticos para o falante os chunks de material linguístico repetidos; (ii) categorização de itens que ocorrem em posições particulares nesses chunks.

Para ilustrar a discussão, Bybee (2001) utiliza uma construção bastante discutida na literatura linguística, a saber: o plural de nomes seguidos de adjetivos iniciados por vogal. Segundo a autora, em alguns casos ocorre [z] entre o nome e o adjetivo, como se vê em (16):

(16) a. des enfants [z] intelligents76 ‘crianças inteligentes’ b. des découvertes [z] inquiétantes ‘descobertas inquietantes’

Os dados acima sugerem duas construções para as expressões nome-adjetivo, assim:

(17) les ] [des NOME ADJETIVO Plural ces, etc. (18) les ] [des NOME -z- [vogal] - ADJETIVO Plural ces, etc.

Ainda, nos termos de Bybee (2001), haveria um terceiro esquema - este para adjetivos

iniciados por vogais, como seria o caso de anglais ou américain:

(19) les ] [des NOME -z- anglais Plural ces, etc.

Por fim, Bybee aponta construções que ela chama de ‘falsa liaison’77 e que consistem

de numerais cardinais adicionados de fonema [z] e de nome iniciado por vogal. Os exemplos estão em (20):

(20) a. quatre enfants [katRza)fa)] ‘quatro crianças’ b. huit épreuves [ÁizepR{v] ‘oito provas’

Para a solução dos casos acima, Bybee recorre aos trabalhos de Morin & Kaye (1982)

e Klausenburger (1984). Ao invés de inserir ou apagar qualquer material fônico, a solução consiste em introduzir uma consoante default, no caso [z], que poderia, inclusive, dar conta de pausa causada por hesitação, como se vê em (21): (21) quatre euh... [z] obligations [katRPzobligasio‡] ‘quatro hum... obrigações’

Todos os exemplos acima mostram, segundo Bybee, que os morfemas gramaticais

estão extremamente imbricados com as construções em que aparecem, não apenas em língua francesa, mas em qualquer idioma.

Ainda, a autora aponta uma nítida tendência em direção à perda da liaison em inúmeros contextos, o que só não ocorreria ‘em casos de coesão sintática firme’, nos termos da própria Bybee (Cf. 2001:177). O problema é que nenhum autor jamais teria conseguido 76 As transcrições fonéticas desses itens encontram-se acima, nesta mesma seção. 77 Neste ponto, a autora argumenta haver a ‘intromissão de um [z] ‘não etimológico’. (Cf. 2001:176). A partir de tal ‘intromissão’ haveria, então, o que ela chama de ‘falsa liaison’.

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predizer que contextos sintáticos seriam esses, uma vez que numerosas construções estão envolvidas na liaison.

Assim sendo, a proposta de Bybee é que a liaison, ainda que ocorra entre palavras e não no interior de palavras, é muito similar às alternâncias condicionadas morfologicamente e lexicalmente que ocorrem internamente nas palavras. A partir de motivação fonética original, alternâncias gradualmente associaram-se a contextos morfossintáticos e lexicais. Nesse sentido, segundo Bybee, a frequência de determinada construção está diretamente ligada à sua produtividade.

Além da produtividade e frequência, a liaison, para ocorrer, dependeria das condições sintáticas envolvidas - no caso destas serem ‘firmes’, na terminologia de Bybee, a tendência seria a que a liaison ocorresse. Isto explicaria a ocorrência do fenômeno em (8) e em (9). Em contextos ‘sintaticamente mais frouxos’, como seriam, por exemplo, aqueles envolvendo adjetivos pré-nominais, Bybee argumenta que a frequência de uso desses adjetivos acabaria por resultar na ‘coesão sintática’ necessária para a ocorrência do fenômeno. Assim sendo, a autora fornece uma lista de adjetivos que, segundo ela, condicionam liaison. Ei-los: (22) Adjetivos pré-nominais que condicionam liaison

‘bon’ (bom), ‘long’ (longo), ‘nouveau’ (novo), ‘mauvais’ (ruim), ‘grand’ (grande), ‘gros’ (gordo), ‘petit’ (pequeno)

Para corroborar sua tese, Bybee utiliza ainda o corpus de Agren (1973). Tal estudo,

que levava em consideração as flexões do verbo être (ser), indicou que a presença de liaison era diretamente proporcional ao uso das formas em questão. Assim sendo, por exemplo, uma forma como soit (seja), menos frequente na língua, tenderia a entrar menos em liaison com palavra seguinte iniciada por vogal.

A frequência - ela e somente ela - do primeiro elemento de uma locução verbal (exemplos: aller (ir), devoir (dever), pouvoir (poder), vouloir (querer)) igualmente, não determina se haverá liaison da locução com um termo seguinte iniciado por vogal. A ocorrência da locução como um todo é que predirá se haverá ou não liaison.

Para ilustrar este fato, Bybee recorre aos seguintes exemplos, ambos retirados de Agren (1973):

(23) Marie-Claire, est-ce que vous pensez que l’homme et la femme doivent [t] être placés

sur le même plan intellectuel et social? (...)] [dwavtEtR´] ‘Maria Clara, você pensa que o homem e a mulher devem estar colocados no mesmo plano intelectual e social?’

(24) Ça doit bien t-être bien cuit, maintenant [byA‡tEtR´]

‘Isto deve estar bem cozido, agora’

A seguir, o esquema que representa a generalização proposta pela autora para os casos envolvendo locuções verbais:

(25) a. [ [dwa] INFINITIVO ] b. [ [dwa] -t- [vogal] INFINITIVO ]

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Finalmente, após apresentar todos os dados acima78, a autora finaliza por perguntar-se se o fenômeno em questão pode ser condicionado a partir de fronteira de palavras. Em sua opinião, isto até pode acontecer, isto é, liaison pode ser foneticamentre condicionada. Entretanto, Bybee (2001) argumenta que é importante distinguir o que é foneticamente condicionado e que opera através de fronteiras de palavras daquilo que ocorre em ‘instâncias lexicalizadas’ - usando seus próprios termos - dentro de frases fixas ou determinadas construções.

Algumas palavras sobre Bybee (2001)

Primeiramente, valeria a pena voltar à definição que a autora nos fornece acerca da

liaison. Diz ela: “é o nome para a emergência de uma consoante de final de palavra antes de uma vogal que inicie palavra seguinte em palavras que, em outros contextos, terminam por vogal.” A seguir, para ilustrar sua definição, a autora fornece os exemplos que se encontram em (5) e (6) deste artigo.

Ora, se observarmos bem os exemplos que estão em (6), perceberemos que tal definição não se aplicaria nesses casos, pois a consoante em questão não tem materialização fonética.

Ocorre que, tradicionalmente, há uma distinção entre o que se vê em (5) e (6). Respectivamente, são o que se conhece, na literatura linguística, por liaison e elision. Schane (1967), por exemplo, opta por denominar ambos os processos como truncamento - assumindo que os dois nada mais são do que apagamento de um segmento em posição final de palavra.

Outro ponto interessante para discussão é, sem dúvida, o fato de haver, no artigo de Bybee, uma crítica aos autores que assumem que a liaison é um fenômeno sensível ao componente sintático. A mesma autora afirma que a condição fonológica para o aparecimento de liaison é que haja, “após palavra terminada por consoante, outra iniciada por vogal, mas isto apenas sob certas condições sintáticas”. (Cf. 2001: 168). Além disso, propõe que, nos contextos em que a liaison é categórica, haja uma ‘condição sintática firme’.

Vimos anteriormente que Schane (1967) enfatiza o peso que a sintaxe exerce no tocante ao fenômeno aqui descrito . O autor é bastante claro ao revelar a importância que o componente sintático pode(ria) ter na implementação do fenômeno. No decorrer dos anos, outros autores79 confirmaram a tese a favor do argumento sintático. Por que, então, Bybee insiste em negar algo que parece consenso?

Se observarmos os exemplos utilizados por Schane (1967) - 2 (a) e 2 (b) - , perceberemos que o que está em jogo é, na realidade a natureza do sintagma. Só haverá liaison se o adjetivo vier antes do nome. Este último - o adjetivo - também é discutível em Bybee (2001). Em (22), percebemos que a autora propõe uma lista de adjetivos que, segundo ela, condicionam liaison.

A questão subjacente a esta é: por que os adjetivos listados por Bybee (2001) condicionam liaison? Não há, ao longo da exposição da autora, qualquer explicação para tal fato. Além disso, listar adjetivos com os quais determinadas palavras poderiam entrar em liaison parece uma solução custosa do ponto de vista da linguística.

Ainda, parte do corpus analisado por Bybee (2001) e já referido no exemplo (21) deste artigo encontra-se reproduzido abaixo:

(21) quatre euh... [z] obligations ‘quatro hum... obrigações’

78 Cabe salientar aqui que, em Bybee (2001), os dados linguísticos não são primários. 79 Selkirk (1972), Rotenberg(1978), Kaisse (1985)

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Segundo a autora, a consoante [z] seria aqui inserida em virtude de haver pausa ou hesitação por parte do falante. Tal fato causa estranheza pelos seguintes motivos:

(i) não há, em XXX (2005, 2010)80 qualquer dado que se assemelhe à descrição acima;

(ii) mesmo que isto fosse possível, de onde o falante teria tirado tal consoante uma vez que ela não existe na representação subjacente? As alternativas de solução possíveis, nesse caso, seriam: [z] carregar o traço [+ PLURAL] sempre que estivessem envolvidos números a partir de ‘dois’ em francês - o que necessitaria de comprovação em base empírica ampliada; [z] entraria por inserção default - caso em que teríamos que explicar a escolha entre [z] e outro segmento possível de realizar liaison em seu lugar.

Um outro fato curioso: Bybee (2001), ao fazer generalizações acerca do fenômeno,

utiliza sempre ou quase sempre dados de fontes não primárias - recorre, mais especificamente, aos dados de Morin & Kaye (1982) e Agren (1973). A pergunta que ora se coloca é a seguinte: como explicar, em termos do uso atual da língua francesa, o fenômeno em questão pela via da lexicalização levando em conta dados coletados há 27 anos? Se objeto de estudo é um fenômeno de língua em curso - como é o caso da liaison do francês - então é fundamental que haja também dados recentes e preferencialmente primários para análise.

Por fim, no que se refere aos dados linguísticos de Bybee (2001) - ou melhor, aos dados linguísticos aos quais a autora faz referência - pode-se dizer que em XXX (2005, 2010) há dados que contrariam aqueles presentes em Bybee (2001). Um bom exemplo disso é o caso das locuções verbais. A seguir, alguns exemplos de ambientes em que não se verificou liaison ( / ), ao contrário do que era esperado pela autora:

(26) on avait /été deprimé parce qu’on n’était pas content’ [o‡navE\ete] ‘nós tínhamos estado deprimidos porque não estávamos contentes’ (27) on° a reconnu que la décision avait \ été prise bien° avant l’aval ... [avE / ete] ‘Nós reconhecemos que a decisão tinha sido tomada bem antes do aval...’

No tocante ao verbo être, ambiente em que, para Bybee, há casos em que a liaison é praticamente categórica81, os dados linguísticos contidos em XXX (2005, 2010) absolutamente não confirmam a tendência apontada pela autora, como se vê abaixo: (28) je trouve que les espaces sont/ immenses.. [so‡/imA‡s] ‘eu acho que os espaços são imensos’ 80 Em XXX (2010), os dados linguísticos encontram-se distribuídos sob a forma de anexos com características específicas. No anexo 1, estão reunidas seis entrevistas que, totalizando cerca de uma hora de material gravado, foram realizadas com falantes nativos de língua francesa, a saber: entrevista 1 (Marie), entrevista 2 (Pierre), entrevista 3 (Laurence), entrevista 4 (Xavier), entrevista 5 (Welfran) e, finalmente, entrevista 6 (Leopoldine). No anexo 2, encontram-se fragmentos de texto, sendo que 10 pertencem a uma coletânea de textos retirados de jornais franceses, e outros 10 pertencem ao romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. 81 Cf. Bybee, 2001:180. No quadro 7.1, a autora afirma haver tendência de se fazer liaison em 97 % das vezes quando a forma do verbo être é ‘est’ (3ª pessoa do sg. do presente do indicativo), 86% quando a forma é ‘sont’ (3ª pessoa do plural do presente do indicativo) e 75 % quando a forma do verbo é ‘était’ (3ª pessoa do sg. do imperfeito do indicativo).

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(29) on voit/ à quel point la ville est/ aussi penetrée par, enfin, ... [vwåakEl] [E\osi] ‘a gente vê a que ponto a cidade é penetrada por, enfim...’

Conclusão

Para uma melhor compreensão da complexidade do fenômeno da liaison do francês,

procuramos, além de fazer uma breve revisão de textos de base gerativa, enfocar uma abordagem não-gerativista específica: Bybee (2001). A autora utiliza a liaison do francês para ilustrar o fato de que a construção ou a frequência de derminada estrutura condiciona o desenvolvimento de alternâncias entre variantes da mesma palavra, e que a frequência também faz com que tais variantes sejam resistentes à regularização. Bybee até prevê, no caso do francês, que o fenômeno seja sensível ao componente sintático: a informação contida no limite de palavras seria insuficiente e as restrições de natureza sintática seriam relevantes para as regras de sândi externo.

Contudo, explicar a liaison seja pela frequência do uso, seja pela via do peso que a sintaxe poderia possuir para a implementação do fenômeno pareceu-nos uma visão parcimoniosa tendo em vista (i) a complexidade do fenômeno em si e (ii) o fato de que muitos dos dados apresentados em Bybee (2001) não estão em concordância com os dados de fonte primária obtidos em XXX (2005, 2010).

Uma vez que nem a frequência do uso pareceu apontar uma saída satisfatória para a implementação da liaison do francês, resta-nos investigar outras opções teóricas que forneçam subsídios para uma descrição desejável do fenômeno em causa.

REVISITING THE FRENCH LIAISON THROUGH THE ANALYSIS OF FREQUENCY OF USE ABSTRACT: Our work deals with the (re-) examination of the connected speech phenomenon in French, known as “liaison”. This phenomenon, also known as truncation, or, more generally, such as external sandi, requires for its implementation, information from more than one component of the grammar. In order to have a better understanding of the complexity of the phenomenon of French liaison, we make a brief review of basic generative texts, focusing on a non-generative specific approach advocated by Joan Bybee (2001). According to the author, the roles of morphology, syntax and vocabulary are essential to the understanding of the phenomenon in terms of liaison. However, each of these contributions has generated controversies over the linguistic literature. So, we make a review of the treatment of this phenomenon considering the founding texts such as Schane (1967), Selkirk (1972), Rotemberg (1978) and Kaisse (1985). In this article we try to make critical observations on Bybee (2001) comparing the results with those obtained by Soares (2005, 2010).

KEYWORDS: Phonology/ syntax interface; Liaison; External sandi; Connected speech.

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A locução conjuntiva temporal ((n)a) hora que: aspectos inovadores e renovadores

Gisele Cássia de SOUSA82

Nicole Regina RENCK83 RESUMO: O objetivo deste trabalho é comparar o comportamento de orações temporais introduzidas pela conjunção quando e pela locução conjuntiva ((n)a) hora que, a partir de dados representativos do português falado no interior paulista. Com base na distinção proposta por Meillet (1948a, b) entre renovação, entendida como mudança “conservadora”, e gramaticalização, concebida como mudança “inovadora”, investiga-se, especificamente, em que medida o comportamento da locução conjuntiva (n(a)) hora que se distancia e se aproxima do comportamento da conjunção temporal prototípica quando. Com a comparação entre o comportamento desses dois conectivos temporais, busca-se evidenciar aspectos “conservadores” e “inovadores” subjacentes ao desenvolvimento de ((n)a) hora que como conectivo temporal. As análises revelam que, na variedade investigada, a forma ((n)a) hora que mantém a função de localizar temporalmente um evento em relação a outro (expresso na oração principal), também desempenhada por quando, mas indica tendência de especialização de ((n)a) hora que na expressão de eventos pontuais, localizados no passado. De modo geral, os resultados apontam a relevância desse tipo de análise para a compreensão das causas subjacentes à gramaticalização, em especial, de formas conjuncionais.

PALAVRAS-CHAVE: Gramaticalização; Oração adverbial temporal; Locução conjuntiva. Introdução

No âmbito dos estudos descritivos, especialmente os de base funcionalista, várias pesquisas já se voltaram ao funcionamento das orações adverbiais no português brasileiro. Trata-se, em especial, de identificar a variedade de formas em que se apresentam e as funções pragmático-discursivas que cumprem na interação verbal (DECAT, 1993, 1999; NEVES, 1999a, b, c, 2000, 2001; BRAGA, 1995, 1999a, b, 2001a, b; NEVES, BRAGA e DALL’AGLIO-HATTNHER, 2008). Trata-se também, sob essa mesma perspectiva, de analisar as adverbiais quanto ao estatuto gramatical que exibem na combinação com outra oração, em outras palavras, quanto ao seu grau de gramaticalização, em comparação a outros modos de combinação oracional (NEVES e BRAGA, 1998; BRAGA, 2001b; NEVES, 2001, 2008).

Esses estudos têm evidenciado, entre outras coisas, uma ampla variedade de formas conjuncionais introdutoras de orações adverbais em português. No que tange às adverbiais temporais, foco deste trabalho, identificam-se, ao lado da conjunção prototípica quando, locuções conjuntivas de base adverbial (antes que, depois que, logo que, assim que, sempre que), de base preposicional (até que, desde que) e locuções formadas a partir de um numeral ordinal (primeiro que) ou de um sintagma nominal com valor habitual/frequentativo (todas as vezes que, cada vez que) (NEVES, 2000).

Além dessas formas, encontram-se, especialmente na modalidade falada do português, conectores temporais constituídos de estruturas relativas, encabeçados por um substantivo 82 UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Departamento de Estudos Linguísticos e Literários. São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. 15054-000 – [email protected]. 83 UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. 15054-000 – [email protected]. Graduanda do curso de Licenciatura em Letras. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP – IC – processo no. 2010/09567-5).

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referente a tempo (dia, hora, época) seguido do pronome relativo que. Lima-Hernandes (2000) identifica, em córpus representativo do português popular falado na cidade de São Paulo, cinco dessas “expressões relativas” introdutoras de orações temporais em português, quais sejam: a hora que, no dia que, um dia que, na época que, depois de X anos que.

Dentre essas formas, o português falado no interior paulista emprega, com notável 139reqüência, a expressão ((n)a) hora que, por vezes iniciada pela preposição em, como em (01ª), por vezes, apenas pelo determinante a, como em (01b), ou, em alguns casos, marcada apenas pelo substantivo seguido do pronome relativo, sem expressão de um determinante antecedente, como em (01c):

(1) a. meu filho estudava em escola longe e eu todo dia ia buscá(r) ele né?... no mesmo

horário... e eu c’a cha::ve c’a bolsi::nha... de guardá(r) moeda eu tô subin(d)o::... sossegada sem olhá(r) pa trás... de repente... eu vi uma a/ sabe? senti uma MÃO... puxan(d)o com TU-DO... minha mão/ eu assusTEI quase caí até no chão só num caí porque eu:: encostei na parede assim na hora que ele puxô(u)... e ele correu... um BAIta d’um negão cumPRIdo assim... é NOvo mas aqueles mulecão ALto...

b. aí:: aguarda o avião pouSANdo... o avião pousá(r) o avião pousan(d)o a gente já...

tem po/ os passageiros que desembarcam a gente leva pra uma outra sala... pra eles tá pegan(d)o a bagagem... só que é tudo... éh:: muito rápido... muito sincronizado porque nós temos... quinze minutos de porta aberta... então a hora que o avião... pousa... no aeroporto de São José do Rio Preto... a gente tem que:: é quinze minutos... se DÉ(R) dezesseis a gente tem que justificá(r) o porQUÊ que foi esse:: um minuto a mais...

c. ...tem um pouco de tudo lá TEM a tranquilida::de... de cidade TÍpica do interior

peQUEna... e à noite tem as FEStas né? que toca forró:: assim... forró:: todo tipo de música... e é uma coisa gostosa porque não é que num/ hora que você TEM a tranquilida::de... você an::da um pouco assim você tem agitação... e por sê(r) um local turístico assim... é preserVAdo né? porque hoje em dia o turismo no Brasil cê... é aquele turismo de MAssa...

O principal objetivo deste trabalho é investigar se há, nessa variedade do português,

contextos indicativos de especialização (HOPPER, 1991) do uso de ((n)a) hora que em comparação ao emprego da conjunção quando, forma prototípica para introduzir orações temporais (NEVES, 2000; BRAGA, 1999a, DECAT, 1993). Com esse objetivo, retoma-se a distinção proposta por Meillet (1948a [1912]) entre renovação e inovação, essa última entendida pelo autor como mecanismo associado à gramaticalização de uma forma linguística. Pretende-se, assim, averiguar se, na sincronia e na variedade investigadas, o comportamento sintático-funcional de ((n)a) hora que distingue-se do comportamento da conjunção quando e, se sim, em quais aspectos se traduzem essa diferença. Em outras palavras, investiga-se em que medida o comportamento de ((n)a) hora que é semelhante (e, assim, apenas renovador) ou diverso (e, portanto, inovador) do funcionamento da forma quando.

O texto encontra-se dividido em quatro seções. Primeiramente, apresentam-se os conceitos de “inovação” e “renovação” conforme propostos por Meillet (1948a, b) e discute-se a relevância de adotá-los para a análise de formas em processo de gramaticalização, em especial, formas conjuncionais como as que constituem objeto de estudo deste trabalho. Na segunda seção, expõem-se os aspectos metodológicos da pesquisa, tais como o córpus investigado e os fatores analisados; na terceira, apresentam-se os resultados obtidos, e, ao final, expõem-se as conclusões.

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Inovação e renovação na gramaticalização de conjunções

A coexistência de formas conjuncionais para expressão de uma mesma relação entre orações não é fenômeno incomum em português, nem em outras línguas. Meillet (1948b [1912]), precursor dos estudos modernos em gramaticalização, já indicava o domínio das conjunções como um dos mais propensos a inovações, impulsionadas pela necessidade de manter-se sempre renovada a expressividade das construções. Ele afirma que: “A primeira e a mais importante dessas causas [da mudança das conjunções] consiste na necessidade que o sujeito falante tem de ser expressivo, de bem expressar seu pensamento e de agir sobre seu interlocutor” (MEILLET, 1948b, p.163).84

Meillet considera que, em função de seu uso frequente e, ainda, da velocidade com que são pronunciadas, as conjunções, assim como outros instrumentos gramaticais ou “palavras acessórias” (mots accessoires), tendem a enfraquecer-se e a reduzir-se, tornando menos expressivo o significado das orações em que ocorrem, o que conduz à constante necessidade de renovação dessas formas. Nas palavras do autor:

As conjunções podem assim se renovar muito facilmente, já que toda partícula, ou mesmo toda palavra empregada como acessório de frase, tende a perder seu sentido próprio... No momento em que ocorre a renovação, obtém-se uma expressão relativamente viva e intensa; assim que o processo termina, não resta mais nada dessa força que é, afinal, transitória. A história das conjunções se limita quase toda a um esforço sempre repetido e, por natureza, perpetuamente inútil para obter formas expressivas de frase. 85 (MEILLET, 1948b, p. 171)

Para ilustrar essas suas considerações, Meillet apresenta vários casos de mudança de formas conjuncionais, aos quais atribui uma mesma motivação: a necessidade de renovação da força expressiva das construções. A maioria dos casos de mudança descritos por Meillet ocorre pelo acréscimo de uma palavra ou elemento gramatical a uma conjunção ou partícula considerada pouco expressiva. Disso resulta uma nova forma que, quando criada, é considerada mais expressiva do que a forma antiga de que deriva. É o que ocorreu, segundo Meillet, com a criação, no francês, das locuções concessivas quand même, quand bien même, quand même que e malgré que, ao lado das antigas formas bien que e quoique. Nas palavras de Meillet, “a criação é constante aqui, devido à necessidade que se tem de exprimir a concessão com uma força sempre renovada” (MEILLET, 1948b, p.173).86

Um ponto da discussão de Meillet ao qual, conforme aponta Lehmann (2002), pouca atenção tem sido dada nos estudos contemporâneos de gramaticalização diz respeito à distinção entre esse processo de mudança e a simples “renovação analógica”.

Meillet (1948b) considera que há dois processos pelos quais novas formas gramaticais se constituem nas línguas: a analogia, que “consiste em criar uma forma segundo o modelo de outra”, e a gramaticalização, que “consiste na passagem de uma palavra autônoma ao papel de

84 La première et la plus importante de ces causes consiste dans le besoin qu’éprouve le sujet parlant d’être expressif, de bien faire sentir sa pensée et d’agir sur son interlocuteur (Meillet, 1948b, p.163). 85 Les conjonctions peuvent ainsi se renouveler très aisément, puisque toute particule, ou même toute mot employé comme accessoire de phrase, tend à perdre son sens propre... Au moment oú a lieu le renouvellement, on obtient une expression relativement fraîche et intense ; dès que le procès est terminé, il ne rest plus rien de cette force que est chose toute transitoire. L’histoire des conjonctions se ramène presque tout entière à un effort toujours répété et, par nature, perpétuellement inutile pour obtenir des tours de phrase expressifs (Meillet, 1948b:171). 86 La création est constante ici, par suite du besoin qu’on a d’exprimer la concession avec une force toujours renouvelée (MEILLET, 1948b, p.173).

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um elemento gramatical” (p. 130 e 131).87 Meillet demonstra que, embora a analogia possa por vezes estar associada à criação de novas funções gramaticais, de um modo geral, ela apenas introduz no sistema gramatical novas formas para funções gramaticais já existentes. A gramaticalização, diferentemente, altera todo o sistema gramatical de uma língua, ao criar funções gramaticais para as quais, antes, não havia expressão linguística. Há assim, em Meillet (1948b), uma associação entre analogia e renovação de funções gramaticais, e entre gramaticalização e criação de funções gramaticais. Afirma Meillet que:

Enquanto a analogia pode renovar os detalhes das formas, mas, mais frequentemente, mantém intacto o plano de conjunto do sistema existente, a “gramaticalização” de certas palavras cria as novas formas, introduz categorias que não tinham expressão linguística, transforma o conjunto do sistema.88 (MEILLET, 1948a, p.133; ênfases acrescentadas).

Conforme aponta Lehmann (2002), teoricamente, a distinção entre inovação e

renovação é inteiramente clara. “A inovação é revolucionária; ela cria categorias que não existiam na língua anteriormente. A renovação é conservadora; ela somente introduz novas formas para velhas categorias.” (LEHMANN, 2002, p. 19)89. Como o autor reconhece, entretanto, na prática, observam-se muitos casos limítrofes entre renovação e inovação, e esse, aliás, parece ser o caso da locução conjuntiva (n(a)) hora que, objeto deste estudo, conforme será demonstrado adiante.

A substituição das flexões de caso do latim por construções preposicionais nas línguas românicas, por exemplo, como Lehmann aponta, é conservadora apenas na medida em que nenhuma nova categoria gramatical é criada, mas as construções preposicionais das línguas românicas não são funcionalmente idênticas aos sufixos de caso do latim. Por um lado, as preposições fazem menos do que os sufixos, e a ordem de palavras nas línguas românicas supre as funções que as preposições não são capazes de cumprir, como marcar os papéis sintáticos de sujeito e objeto. Por outro lado, as preposições podem expressar distinções semânticas mais finas porque são em maior número do que os sufixos. É sabido que, conforme apontam Hopper e Traugott (1993), à época da publicação do trabalho de Meillet, prevalecia, nos estudos linguísticos, uma concepção restrita de analogia, entendida como processo por meio do qual irregularidades na gramática, particularmente no nível morfológico, são regularizadas. Uma vez que o resultado dessa “regularização” também pode ser a gramaticalização de uma forma ou construção, torna-se pouco produtiva a associação de gramaticalização apenas aos casos de inovação no sentido de Meillet, razão pela qual, modernamente, são objetos de estudos em gramaticalização tanto casos de inovação quanto de renovação, e à analogia atribui-se o papel de mecanismo subjacente ao processo, ao lado da reanálise (HOPPER e TRAUGOTT, 1993).

Defende-se, neste trabalho, a relevância de se reavivar, para o estudo de formas conjuncionais, a distinção proposta por Meillet entre inovação e renovação, não como forma de associar a ocorrência de gramaticalização apenas a casos de inovação, de surgimento de categorias antes inexistentes no sistema linguístico, como propunha o autor, mas como recurso analítico capaz de evidenciar motivações possíveis para a ocorrência de

87 ...consiste à faire une forme sur le modèle d’une autre (MEILLET, 1948a, p. 130). ...consiste dans le passage d’un mot autonome au rôle d’élément grammatical (MEILLET, idem, p. 131). 88 Tandis que l’analogie peut renouveler le détail des formes, mais laisse le plus souvent intact le plan d’ensemble du système existant, la «grammaticalisation» de certains mots crée des formes neuves, introduit des catégories que n’avaient pas d’expression linguistique, transforme l’ensemble du système (MEILLET, 1948a, p.133). 89 “Innovation is revolutionary; it creates grammatical categories that had not been in the language before. Renovation is conservative; it only introduces new forms for old categories.” (LEHMANN, 2002, p. 19).

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gramaticalização de uma forma. Isso porque, com o reconhecimento de aspectos inovadores e/ou renovadores da forma em estudo, pode-se explicar em que medida a mudança se instaura em razão do surgimento de alguma função gramatical previamente inexistente (ou não fixada gramaticalmente) na língua e em que medida essa mudança é motivada pela necessidade comunicativa de se renovar a força expressiva de uma função. De modo mais geral, a principal contribuição desse tipo de análise, fundamentada em Meillet, encontra-se no fato de que ela permite que se incluam nos estudos explicações, de natureza pragmático-discursiva mais ampla, para a ocorrência da gramaticalização de uma forma. Material e metodologia de análise Os dados da pesquisa, representativos de orações iniciadas tanto por quando quanto ((n)a) hora que, foram extraídos de inquéritos que integram o banco de dados IBORUNA, constituído no âmbito do projeto “Amostra Linguística do Interior Paulista (ALIP)”, sediado na Universidade Estadual Paulista, câmpus de São José do Rio Preto. O banco de dados é composto de dois tipos de amostras de fala: “Amostra Comunidade” (ou “Amostra Censo” - AC), que reúne amostras de fala controladas sociolinguisticamente, divididas em cinco tipos de texto (narrativa de experiência, narrativa recontada, descrição, relato de procedimento e relato de opinião); e “Amostra de Interação Dialógica” (AI), composta por amostras coletadas secretamente, em situações de interação social livre.

A fim de se investigarem os aspectos inovadores e renovadores de ((n)a) hora que, em comparação a quando, as ocorrências, extraídas de inquéritos integrantes dos dois tipos de amostra, foram analisadas segundo os fatores: (i) posição da oração temporal; (ii) aspecto do verbo na oração temporal; (iii) correlação modo-temporal nas construções; (iv) correferencialidade dos sujeitos na oração principal e na temporal; e (v) tipo de texto a que a ocorrência pertence.

Para a compilação dos dados e a obtenção das frequências de ocorrência, utilizou-se o pacote estatístico Goldvarb X (SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH, 2005), empregado, neste estudo, apenas para análise unidimensional dos dados. Quando vs. ((n)a) hora que: aspectos inovadores e renovadores

Para este trabalho, foram analisadas 219 ocorrências de orações iniciadas por quando e por ((n)a) hora que. A distribuição dessas ocorrências pela forma do conectivo empregado é mostrada no quadro 1.

Tipo de conectivo

quando

na hora que

a hora que

hora que

Número de ocorrências

173

10

30

06

Quadro 1: Número de ocorrências das formas de conectivo investigadas

Conforme se observa, entre os dados coletados, o número de ocorrências de orações temporais introduzidas por quando se mostra bem maior do que o de orações com ((n)a) hora que, o que ratifica o caráter mais gramaticalizado de quando, e o estatuto “inovador”, menos gramaticalizado, de ((n)a) hora que no português falado no interior paulista. Conforme atestam Bybee (2005) e Bybee e Hopper (2001), há uma estreita relação entre frequência de ocorrência e gramaticalização de estruturas linguísticas. Bybee (2005), por exemplo, afirma:

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[o aumento da frequência de ocorrência] surge como resultado de um aumento do número e dos tipos de contextos em que os morfemas gramaticais são apropriados. A frequência não é apenas um resultado de gramaticalização, é também um contribuinte primário ao processo, uma força ativa que instiga as mudanças que ocorrem em gramaticalização (BYBEE, 2005).

Para esses autores, a frequência de ocorrência de uma forma em processo de gramaticalização pode ser atestada de duas maneiras: observando-se sua frequência em diferentes tipos de contextos, o que Bybee (2005) chama de “frequência type”, e observando-se a frequência com que a forma aparece independentemente de seus contextos de ocorrência, ou seja, sua frequência token (“de sinal”), ou frequência textual. Segundo Bybee (2005), o aumento da frequência token de uma forma indica o aumento dos contextos em que ela passa a ocorrer, o que aponta para um estágio mais avançado de gramaticalização da forma.

A maior frequência de ocorrência atestada para a conjunção quando pode ser explicada pelo maior número de types, de contextos de ocorrência em que ela aparece no português atual, em comparação a ((n)a) hora que. Conforme atesta Neves (2000), a orações iniciadas por quando do português podem estar associadas nuances adicionais ao significado temporal indicado pela conjunção, o que aparentemente não ocorre com ((n)a) hora que. As construções em (02) abaixo, extraídas de Neves (2000), exemplificam, respectivamente, a ocorrência de orações iniciadas por quando com nuance causal, condicional e concessiva.

(2) a. “Mudou de conversa QUANDO alguém perguntou pelas dicas.” b. “Como é possível dizer tal coisa QUANDO se sabe universalmente que as drogas

são depressivas, viciantes e causam distúrbios físicos e mentais?” c. “Essa mulher procura um trabalho QUANDO centenas de outros abandonam seus

trabalhos.” (NEVES, 2000, p. 798-800) Os resultados obtidos com a análise do fator posição da oração temporal, iniciada por

quando e por ((n)a) hora que, encontram-se na Tabela 1, a seguir.90

Conectivo Posição

Quando nº. %

((n)a) hora que nº. %

anteposta 121

70% 39

85%

posposta 51 29,5% 06 13%

intercalada 01 0,5% 01

2%

Total 173 100% 46 100% Tabela 1: Posição da oração temporal introduzida por quando e por ((n)a) hora que

Os resultados evidenciam que a anteposição é preferida para orações iniciadas por ambos os conectivos, conforme também atestam Braga (1999a, b), Decat (1993) e Neves (2000) para as orações temporais do português.

Ao se comparar o comportamento das orações introduzidas por quando e por ((n)a) hora que, verifica-se tendência à anteposição maior para as orações iniciadas pela locução conjuntiva do que para as que se iniciam por quando, já que, conforme os resultados

90 Para a exposição dos resultados, considera-se o total geral de ocorrências da locução na hora que, em suas formas na hora que, a hora que e hora que.

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mostrados na tabela, 70% do total de orações com quando ocorrem antepostas à principal, ao passo que, para as orações com ((n)a) hora que, esse percentual é de 85% do total de dados. Essa maior tendência à anteposição para as orações iniciadas pela locução conjuntiva pode ser vista como indício de sua especialização na expressão de tempo, ficando reservada a orações com quando a expressão de tempo associado a outras nuances circunstanciais, como causa, condição e concessão.

Com relação à posposição, menos típica à expressão de tempo, os resultados revelam predomínio das orações com quando, o que também se pode explicar pelo estágio mais avançado de gramaticalização da conjunção quando, se comparado ao da locução conjuntiva na hora que. Quanto à intercalação, não se atestam diferenças entre as orações, e, para os dois tipos, o número de ocorrências é baixo. Entre os dados, há apenas uma ocorrência com a conjunção quando e uma com ((n)a) hora que, mostradas em (03) e (04):

(3) tinha que pegá(r) ela por trás assim e í(r) descen(d)o seguran(d)o no corrimão da escada

e descen(d)o deva::gar-zi::nho...porque ela num andava mas ela su/ sabe trocá(r) os passinho...e descia com ela devagarzinho...subi::a...na hora que tinha que subí(r)...meio empurran(d)o ela assim c’a barriga...deva::garzi::nho...(IB-AC-062-RP, L361)

(4) Inf.2.: (eu lembro) (inint.)... a filha dele quando viu blufe ((imita o som da pessoa caindo)) [caiu] (IB-AI-007-FER, L75)

A Tabela 2, a seguir, mostra os resultados obtidos com a análise do aspecto codificado no

verbo da oração temporal.

Conectivo Aspecto

quando no. %

((n)a) hora que no. %

perfectivo 51

29,5% 21

46%

imperfectivo 122 70,5% 25 54%

Total 173 100% 46 100% Tabela 2: Aspecto verbal nas orações com quando e ((n)a) hora que

Os resultados demonstram que orações temporais com quando expressam predominantemente aspecto imperfectivo (70,5%), comportamento que, mais uma vez, explica-se pela possibilidade que tem essa conjunção de introduzir orações com outras nuances circunstanciais, além da temporal. Observe-se que, nas construções em (02b) e (02c) que exemplificam orações introduzidas por quando com nuance de condição e de concessão, o aspecto codificado pelo verbo da oração temporal é o imperfectivo.

As orações com ((n)a) hora que, por outro lado, embora também veiculem predominantemente aspecto imperfectivo (54%), apresentam maior tendência do que as orações com quando para a expressão de aspecto perfectivo (46% para ((n)a) hora que, e apenas 29,5% para quando). A esse comportamento pode estar associada uma espécie de “compensação”: reserva-se quando à expressão de tempo não pontual, da qual, inclusive podem decorrer outras nuances de sentido, e emprega-se ((n)a) hora que para indicar localização temporal pontual de eventos. Favorece essa explicação o fato de que a pontualidade temporal de eventos perfectivos marcada por ((n)a) hora que mostra-se mais precisa do que quando essa pontualidade é marcada pela conjunção quando, conforme revela a comparação entre as construções em (05) e (06) abaixo.

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(5) e::... todos ficaram surpreendidos né?... na hora que ele::... entregô(u) o carrinho né?... na véspera de Natal... (IB-AC-011-NE, L35)

(6) aí quando chegô(u) o dia... eu a/ eu acordei escovei meus den::tes... arrumei as minhas

coisas... e fui... esperá(r) eles chegá(r)... (IB-AC-008-NE, L9)

A maior tendência de ((n)a) hora que à ocorrência com verbos que codificam aspecto perfectivo é ratificada pela análise do tempo verbal presente nos dois tipos de oração. Os resultados relativos a esse fator encontram-se na Tabela 3.91

Conectivo Correlação modo-temporal

quando nº. %

((n)a) hora que nº. %

pretérito perfeito-pretérito perfeito

34

20,5% 14

32%

presente do indicativo-presente do indicativo

77 46% 07 16%

pretérito imperfeito-pretérito perfeito

14 8,5% 06 14%

presente do indicativo- futuro do subjuntivo

06 4% 07 16%

futuro do indicativo-futuro do subjuntivo

02 1% 01 2%

pretérito perfeito-pretérito imperfeito

09 5,5% 02 4%

pretérito imperfeito-pretérito imperfeito

23 14% 06 14%

futuro do indicativo-futuro do indicativo

01 0,5% 01 2%

Total 166 100% 44 100% Tabela 3: Correlação modo-temporal nas construções com quando e ((n)a) hora que 92

Conforme se observa, os resultados revelam a existência de uma ampla variedade de

correlações modo-temporais possíveis. Nas ocorrências com a conjunção quando, entretanto, a correlação “presente do indicativo - presente do indicativo” mostra-se claramente mais frequente (46%) do que nas ocorrências com ((n)a) hora que, o que também pode estar relacionado às diferentes nuances de sentido possíveis de serem expressas nas orações com quando, já que, conforme demonstra Neves (2000), tanto a leitura condicional quanto a leitura concessiva das adverbiais temporais com quando apresentam o presente como tempo verbal característico.

Por outro lado, nas orações com a locução conjuntiva ((n)a) hora que, verifica-se o predomínio da correlação “pretérito perfeito do indicativo - pretérito perfeito do indicativo” 91 Não estão contempladas na tabela combinações que ocorreram uma única vez e/ou apenas em um dos tipos de construção (ou com quando ou com na hora que), não permitindo, assim, a comparação entre o comportamento dos dois conectores. São elas: afirmativo – futuro do subjuntivo, futuro do indicativo – pretérito perfeito, presente – pretérito perfeito, futuro do pretérito – pretérito perfeito, presente do indicativo – futuro do indicativo, pretérito imperfeito – presente e presente – futuro do indicativo. Isso explica o fato de os resultados para esse fator se basearem em apenas 210 das 219 ocorrências. 92 Nas correlações listadas, o primeiro elemento diz respeito ao tempo-modo do verbo da oração principal, e o segundo, ao do verbo da oração temporal.

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(32%). Esse comportamento se torna ainda mais significativo se somadas todas as correlações com a locução conjuntiva em que o pretérito perfeito aparece na oração subordinada (46%), fato que confirma a preferência, na variedade investigada, ao emprego de ((n)a) hora que, em vez de quando, para a localização temporal de eventos passados, marcados pontualmente. Em (07a) e (07b) abaixo, encontram-se ocorrências representativas das correlações modo-temporais mais frequentes nas construções com quando e com ((n)a) hora que.

(7) a. ele joga bo::la comigo também::... quando ele vem aqui... (IBORUNA, AC-007-RO, L177) b. . ....a hora que eu voltei no aeroporto o F. falô(u) assim –“146E... éh:: vai lá na

Loja... à TARde que a I. qué(r) falá(r) com você... eu num o sei que que É mas eu acho que ela vai te contratá(r)” (IBORUNA, AC-051-NE, L78)

Os resultados relativos à análise do fator “correferencialidade dos sujeitos” nas construções encontram-se na Tabela 4.

Conectivo Identidade dos sujeitos

quando nº. %

((n)a) hora que nº. %

idênticos 70 40% 15 30% não-idênticos 103 60% 31 70% Total 173 100% 46 100%

Tabela 4: Correferencialidade dos sujeitos nas construções com quando e ((n)a) hora que Com relação a esse fator, a análise dos resultados permite destacar a maior tendência a

sujeitos idênticos em construções com quando do que em construções com ((n)a) hora que. Se se considerar que, conforme propõem Hopper e Traugott (1993) e Lehmann (1988), a identidade dos sujeitos em orações combinadas é indicativo de grau de integração e, assim, de gramaticalização entre oração matriz e oração dependente, pode-se afirmar que também em relação a esse fator a conjunção quando se mostra mais gramaticalizada, já que introduz orações mais integradas à matriz com que elas ocorrem, do que a locução conjuntiva ((n)a) hora que.

As construções em (08a) e (08b), abaixo, são ilustrativas da ocorrência de sujeitos correferenciais, nas construções com quando, e de sujeitos não-correferenciais, nas construções com ((n)a) hora que.

(08) a. aí quando eu vejo que começa a ficá(r) tarde assim... daí eu VÔ(u)... tomo um banho

né? (IBORUNA, AC- AC-010-RP, L291) b. eu tava falan(d)o com a C. ... nessa hora... daÍ a hora que eu vi que a M. tava

apanhan(d)o a gente foi LÁ::.. (IBORUNA, AC-011-NE, L63)

Na Tabela 5 abaixo, encontram-se os resultados obtidos com a análise do tipo de texto de onde foram extraídas as ocorrências de orações com quando e com ((n)a) hora que. Os dados para este fator não incluem as ocorrências extraídas dos inquéritos integrantes da “Amostra de Interação Dialógica”, cuja composição não envolve controle do tipo de texto produzido.

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Conectivo Tipo de texto

quando nº. %

((n)a) hora que nº. %

Narrativa de experiência

38

29% 15

44%

Relato de opinião 22 17% 01 3%

Descrição 28 21%

04 12%

Relato de procedimento

26 20% 09 26%

Narrativa recontada

17 13% 05 15%

Total 131 100% 34 100% Tabela 5: Oração com quando e com ((n)a) hora que vs. tipo de texto Os resultados para este fator indicam predomínio de orações iniciadas por ((n)a) hora

que em narrativas (especialmente se somados os resultados para as recontadas e as de experiência (59%)) e em relatos de procedimento (26%), comportamento que também se justifica em razão da marcação de tempo pontual propiciada pela locução conjuntiva.

Orações introduzidas por quando, por outro lado, apresentam percentuais mais altos do que ((n)a) hora que em relatos de opinião e textos descritivos, tipos textuais que podem ser considerados mais “atemporais”, em que prevalecem marcas de tempos presente e futuro. Relatos de procedimento, em que predominam orações com ((n)a) hora que, também podem ser considerados mais “atemporais” nesse sentido, entretanto, nesse tipo de texto, é relevante a marcação pontual de um evento como referência, ponto de partida para o prosseguimento de novas ações/eventos, função que pode ser cumprida por ((n)a) hora que, conforme exemplifica o trecho em (09).

(9) corto um monte de pedacinho de tomate... e coloco num prato... pra pra comê(r) junto

com o miojo... daí::... hora que acaba eu ti::ro... vô(u) lá:: na pia porque eu gosto de deixá(r) um po(u)quinho de água... aí eu ti::ro um po(u)co só de água de(i)xo ele... tipo uma SOpa sabe? que eu de(i)xo bastante água... aí:: eu:: já já coloco o molhinho de::le... espero esfriá(r) mexo espero esfriá(r) um pouco jogo lá no prato cheio de toma::te... daí:: acabô(u)... aí eu como (IB-AC-010-RP, L281)

Conclusões

A partir de dados representativos do português falado no interior paulista, buscou-se, com este estudo, investigar a existência de contextos linguísticos indicativos de possível especialização de uso da locução conjuntiva ((n)a) hora que, em comparação ao emprego da conjunção temporal prototípica quando, na marcação de orações adverbiais temporais. Retomando-se a clássica distinção proposta por Meillet (1948a [1912]) entre renovação, entendida como mudança “conservadora”, e gramaticalização, concebida como mudança “inovadora”, o principal objetivo foi averiguar em que medida o comportamento da locução ((n)a) hora que se distancia e se aproxima do comportamento da conjunção quando, buscando-se, assim, a partir da comparação entre as duas formas conjuncionais, evidenciar aspectos conservadores e inovadores subjacentes ao desenvolvimento do valor de conector temporal para ((n)a) hora que.

Conforme reconhece Lehmann (2002), em grande parte dos casos de gramaticalização são observados tanto aspectos inovadores quanto aspectos renovadores. Esse parece ser

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também o caso de ((n)a) hora que. A análise do funcionamento da locução conjuntiva evidenciou que são associados a essa forma conjuncional aspectos indicativos de renovação, mas também de inovação.

De fato, não há qualquer inovação ligada a ((n)a) hora que no que diz respeito à função de marcar orações temporais em português, isto é, de iniciar uma oração que contém um evento em referência ao qual outro evento (expresso na oração principal) é localizado temporalmente. Essa função gramatical existe e é desempenhada por formas conjuncionais desde os mais antigos textos em português (MATTOS e SILVA, 2001). Nesse sentido, o comportamento da locução conjuntiva seria apenas “renovador”.

As análises aqui descritas, entretanto, evidenciaram que ((n)a) hora que indica nuances não marcadas, ou marcadas de modo menos direto, pela conjunção quando, o que permite reconhecer para a forma comportamentos de mudança “inovadora”, em vez de simples renovação analógica. Uma dessas nuances diz respeito ao aspecto pontual ligado ao evento introduzido por ((n)a) hora que, propriedade que, aliás, como adjunto adverbial, a forma na hora atribui ao evento que ele modifica.

Além disso, nota-se que, embora também localize um evento em relação a outro no tempo, ((n)a) hora que o faz sem “ambiguidades”, diferentemente de quando, que, conforme se mostrou, pode ligar construções temporais que propiciam também uma leitura causal, condicional ou concessiva (NEVES, 2000).

Outro aspecto inovador de ((n)a) hora que diz respeito ao fato de a forma estar, a que tudo indica, especializando-se na expressão de tempo passado, divergindo, nesse sentido, da conjunção prototípica quando, que, conforme atestado nas análises, vem sendo mais frequentemente empregada para a expressão de tempo presente (genérico) e de aspecto habitual.

A relevância de se reconhecerem aspectos renovadores e inovadores de uma forma envolvida em um processo de mudança encontra-se, conforme se propõe aqui, na possibilidade que a análise permite de se identificarem razões, de natureza pragmático-discursiva, subjacentes ao desenvolvimento de uma forma, em um sistema linguístico que já dispõe de outras formas para o cumprimento da mesma função. Essas razões se localizam nos aspectos inovadores da forma em comparação à forma previamente existente com a qual a forma gramaticalizada passa a conviver. Conforme se buscou demonstrar, no caso de ((n)a) hora que, esses aspectos inovadores, que justificariam o desenvolvimento da forma na variedade do português investigada, dizem respeito à expressão de aspecto pontual do evento introduzido pela locução conjuntiva e à especialização de uso do conectivo na expressão de tempo passado. Os aspectos renovadores e inovadores da locução conjuntiva ((n)a) hora que identificados neste estudo são sintetizados no quadro a seguir.

Aspectos renovadores Aspectos inovadores

• Localização temporal de um evento

em relação a outro.

• Expressão de aspecto pontual;

• expressão de tempo passado.

Quadro 2: Aspectos renovadores e inovadores de ((n)a) hora que Ressalte-se, por fim, que o predomínio de ((n)a) hora que em narrativas, também

atestado com análise dos resultados, pode ser interpretado como reflexo direto da inovação propiciada pelo desenvolvimento de ((n)a) hora que como parte do paradigma dos conectivos temporais do português, ou seja, de sua especialização na expressão de eventos pontuais, ocorridos em um tempo passado.

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THE TEMPORAL CONJUNCTIVE PHRASE “((N)A) HORA QUE” IN PORTUGUESE: INNOVATIVE AND RENOVATIVE ASPECTS

ABSTRACT: The aim of this paper is to compare the behavior of temporal clauses introduced by conjunction quando (“when”) and by conjunctive phrase ((n)a) hora que (“in the time that”) based on data from the Portuguese spoken in in the northwestern of São Paulo. Following the distinction proposed by Meillet (1912) between renewal, change understood as "conservative" and grammaticalization, conceived as a change "innovative", this study investigates, specifically, to what extent the behavior of the conjunctive phrase ((n)a) hora que is different or similar to the behavior of prototypical temporal conjunction quando. From this comparison, we seek to highlight the "conservative" and "innovative" aspects underlying the development of ((n)a) hora que as a temporal connective. The analysis reveals that, in the dialect under investigation, the form ((n)a) hora que keeping function to locate an event in temporal relation to another (expressed in the main clause), also fulfilled for quando, but indicates a trend of specialization for ((n)a) hora que to express pontual events, located in the past. The results also indicate the relevance of this type of analysis for understanding the causes underlying to grammaticalization of conjunctions.

KEYWORDS: Grammaticalization; Temporal adverbial clause; Conjunctive phrase. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAGA, M. L. As Orações de Tempo no Discurso Oral. Cadernos de Estudos Lingüísticos (UNICAMP), vol. 28, Campinas, 1995. p. 85-97. ______. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista. In: RODRIGUES, A. C. S.; ALVES, I. M.; GOLDSTEIN, N. S. (Org.). I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa. São Paulo: Humanitas, 1999a, p. 97-108. ______. Os Enunciados de Tempo no Português Falado no Brasil. In: NEVES, M. H. M. (Org.). Gramática do Português Falado (vol. VII: Novos Estudos). São Paulo: Editora da UNICAMP, 1999b. p. 443-459. BRAGA, M. L. Os Enunciados de Tempo no Português de Contato. Letras de Hoje (PUC-RS), v. 3, p. 7-18, 2001a. ______. Processos de combinação de orações: enfoques Funcionalistas e Gramaticalização. Scripta (PUC-MG), v. 5, n. 9. Belo Horizonte, 2001b. p. 23-34. BYBEE, J. & HOPPER, P. (Ed.). Frequency and the emergence of linguistic structure. Philadelphia: John Benjamins, 2001. BYBEE, J. Mechanisms of change in grammaticalization: the role of frequency. In: JANDA, R; BRIAN, J. (eds.). Handbook of Historical Linguistics. Oxford: Blackwell, 2005. p. 602-623. DECAT, M. B. N. Leite com manga, morre! Da hipotaxe adverbial no português em uso. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas) – Pontíficia Universidade Católica, São Paulo, 1993. ______. Uma abordagem funcionalista da hipotaxe adverbial em português. In: CAMPOS, O. G. L. A. S. (Org.) Descrição do Português: abordagens funcionalistas. Araraquara: FCL / Laboratório Editorial / UNESP, 1999. p. 299-318. HOPPER, P. J. & TRAUGOTT, E. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. HOPPER, P. J. On some principles of grammaticalization. In: TRAUGOTT, E. & HEINE, B. (Ed.). Approaches to grammaticalization. Vol. I (Focus on theoretical and methodological issues). Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing, 1991, p. 17-35. LEHMANN, C. Towards a Tipology of Clause Linkage. In: HAIMAN, J.; THOMPSON, S. A. (Ed.). Clause combinning in grammar and discourse. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1988. p. 275-330.

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(Inter)subjetivização no domínio da modalidade: o processo de gramaticalização das construções modais ter que + V2 e dever + V2

Patrícia Fabiane Amaral da CUNHA LACERDA93

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar a gramaticalização das construções modais ter que + V2 e dever + V2, buscando determinar em que medida revelariam um processo de expansão semântico-pragmática no qual se observa a instanciação de significados epistêmicos a partir de uma significação primariamente deôntica. Assumimos aqui a gramaticalização enquanto processo de (inter)subjetivização, já que defendemos um modelo de mudança que nos explique como os interlocutores interagem, construindo seus argumentos e demonstrando sua avaliação acerca das proposições que produzem (TRAUGOTT, 1995, 2010; TRAUGOTT E DASHER, 2005). Também adotamos a perspectiva da “gramaticalização de construções” (TRAUGOTT, 2003, 2009), uma vez que partimos do princípio de que a gramaticalização envolveria a mudança construção > gramática. E, considerando que a análise da frequência de uso é um subsídio importante para atestar processos de gramaticalização (VITRAL, 2006; BYBEE, 2003), realizamos uma pesquisa pancrônica, que considerou a distribuição das construções analisadas desde o século XIII até o português contemporâneo. Como pudemos comprovar em relação à construção ter que + V2, houve o desenvolvimento de usos mais subjetivos e epistêmicos a partir de um uso menos subjetivo. Já no processo de mudança da construção dever + V2, chegou-se também a um uso [+ intersubjetivo].

PALAVRAS-CHAVE: Gramaticalização; (Inter)subjetivização; Gramaticalização de construções; Modalização.

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar a gramaticalização das construções

modais ter que + V2 e dever + V2 na língua portuguesa, procurando delimitar em que medida revelariam um processo de expansão semântico-pragmática no qual se observa a instanciação de significados epistêmicos a partir de uma significação primariamente deôntica, caracterizada pela noção de obrigatoriedade.

Assumimos aqui a gramaticalização enquanto processo de (inter)subjetivização, já que defendemos um modelo de mudança que nos explique como os interlocutores interagem, construindo seus argumentos e demonstrando sua avaliação acerca das proposições que produzem (TRAUGOTT, 1995, 2010; TRAUGOTT E DASHER, 2005). Também adotamos a perspectiva da “gramaticalização de construções” (TRAUGOTT, 2003, 2009), uma vez que partimos do princípio de que a gramaticalização envolveria a mudança construção > gramática. Portanto, consideramos que é a construção inteira – e não apenas o significado lexical de um item – que é precursor do sentido gramatical. No caso das construções analisadas, trabalhamos com a hipótese de que os significados modais, que inicialmente estariam relacionados a um valor deôntico, caminhariam em uma direção crescente de orientação para os falantes.

Considerando que a análise da frequência de uso é um subsídio importante para atestar processos de gramaticalização (VITRAL, 2006; BYBEE, 2003), realizamos uma pesquisa pancrônica, que considerou a distribuição das construções analisadas desde o século XIII até o português contemporâneo. Os dados sincrônicos foram coletados em dois corpora, a saber: o corpus do projeto “Mineirês: a construção de um dialeto”, constituído pela Profa. Jânia Martins Ramos, na Universidade Federal de Minas Gerais, e o corpus do projeto “PEUL - Programa de Estudos sobre o Uso da Língua”. Já os dados diacrônicos foram retirados do corpus do projeto “CIPM – Corpus Informatizado do Português Medieval” e do “Corpus Histórico do Português Tycho Brahe”.

93 UFJF/Faculdade de Letras. Professora do Programa de Pós-graduação em Linguística. Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. CEP: 36036-900. [email protected]

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Conforme demonstraremos, a análise da frequência permite estabelecer quais são os diferentes usos das construções modais ter que + V2 e dever + V2 e delimitar pontualmente de que maneira o cline94 de mudança [deôntico] > [epistêmico] seria instanciado. A partir da realização de uma pesquisa pancrônica, que considerou a distribuição das construções modais ter que + V2 e dever + V2 desde o século XIII até o português contemporâneo, buscamos comprovar, então, que seus diferentes usos revelariam o cline de gramaticalização [- subjetivo] > [+ subjetivo].

A fim de cumprir os objetivos apontados acima, primeiramente discutiremos o aporte teórico que fundamenta este trabalho. Posteriormente, trataremos pontualmente da noção de modalização, procurando estabelecer em que consistem a modalização deôntica e a modalização epistêmica. Em um terceiro momento, discutiremos os métodos e os procedimentos que subsidiaram a análise dos dados e promoveremos a descrição dos corpora sincrônicos e diacrônicos que foram levantados nesta pesquisa. Por fim, nos deteremos na análise dos dados a fim de comprovar de que maneira se observa, nas construções modais ter que+V2 e dever+V2, a instanciação de significados epistêmicos a partir de uma significação primariamente deôntica, caracterizada pela noção de obrigatoriedade.

Gramaticalização: algumas discussões acerca do enquadramento teórico adotado A noção de gramaticalização foi formalmente estabelecida a partir do trabalho

fundador de Meillet (1912), o qual estabelece que a mudança se daria a partir do cline [lexical] > [gramatical], já que haveria a passagem de uma palavra autônoma para um elemento com conteúdo gramatical. A partir do trabalho de Heine et al. (1991), a gramaticalização passou a ser concebida também como sendo a mudança em que um item gramatical poderia se tornar ainda mais [+ gramatical] ao longo do tempo. A partir dessa perspectiva centrada na forma – e não no uso –, foram estabelecidas várias propostas de cline que se preocupam primordialmente em compreender de que maneira os itens linguísticos passariam por processos de mudança. Um dos clines de unidirecionalidade mais clássicos é o proposto por Hopper e Traugott (1993, p. 7): item lexical > item gramatical > clítico > afixo.

Por outro lado, adotando uma perspectiva nitidamente centrada no uso, Traugott (1995) propõe que a gramaticalização seja concebida como um processo de subjetivização, segundo o qual ocorreriam processos de mudança semântico-pragmáticos através dos quais os significados se tornariam cada vez mais baseados nas crenças e atitudes dos falantes acerca da proposição. A autora considera que a subjetivização seria um processo gradiente a partir do qual as construções – que primeiro expressam significados concretos/lexicais/objetivos – passariam, a partir da reiteração de seu padrão de uso, a indicar funções abstratas/pragmáticas/interpessoais baseadas na crença dos falantes. Sob essa perspectiva, a gramaticalização poderia ser compreendida como um processo de “reanálise pragmática” (TRAUGOTT, 1995, p. 36). Ainda segundo a autora, a subjetivização estaria presente, até mesmo, em estágios iniciais do processo de gramaticalização e seria decorrente da necessidade que têm os falantes de expor sua perspectiva acerca do que é dito.

Em trabalhos posteriores, Traugott e Dasher (2005) e Traugott (2010) assumem que, além da subjetivização, a gramaticalização também pode se estabelecer a partir de um processo de intersubjetivização. Segundo essa perspectiva, os significados seriam codificados

94 Como destacam Hopper & Traugott (1993, p. 6-7), no processo de gramaticalização, as formas não mudam abruptamente de uma categoria para outra. Na verdade, o processo se realizaria em série (em camadas) e gradualmente. Os clines seriam, portanto, as camadas que marcam o processo de gramaticalização, indicando suas transições.

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pelo falante de acordo com a imagem ou self do interlocutor. Portanto, a intersubjetivização, que é – por sua própria natureza, interpessoal – envolve a atenção do locutor em relação ao interlocutor, considerando-o um participante do evento de fala. Vemos, portanto, que a gramaticalização compreendida como um processo de intersubjetivização envolve a noção de face95, uma vez que o falante, ao construir os enunciados em sua elocução, acabaria por proteger a sua “imagem social” e a dos interlocutores durante o evento de fala, evitando que algo possa ser tomado como invasivo ou comprometedor. Considerando que a gramaticalização pode se estabelecer a partir de um processo de (inter)subjetivização, Traugott (2010) propõe o seguinte cline de mudança linguística: [- subjetivo] > [+ subjetivo] > [intersubjetivo].

Neste trabalho, também nos pautamos na perspectiva da “gramaticalização de construções”, tal como defendida por Traugott (2003, 2009). A autora, nesse sentido, assume uma interface com a gramática das construções (CROFT, 2001; CROFT & CRUISE, 2004; GOLDBERG, 1995, 2006), destacando, entretanto, que, enquanto a gramaticalização tem sido estudada primordialmente do ponto de vista diacrônico, a gramática das construções tem se dedicado fundamentalmente a pesquisas de caráter sincrônico. Com base na interface com a gramática das construções, Traugott (2003, 2009) considera que a unidade básica de análise é a construção, formada pelo par forma/sentido. Além disso, ao se basear no “princípio da fraca composicionalidade”, parte do princípio de o que significado de uma construção não pode ser depreendido pela soma de suas partes individualmente. Portanto, a “gramaticalização de construções” compreenderia “a mudança pela qual, em certos contextos linguísticos, os falantes usam (partes de) uma construção com uma função gramatical ou designam uma nova função gramatical para uma construção gramatical já existente” (TRAUGOTT, 2009, p. 91). Ainda segundo a autora, a perspectiva da “gramaticalização de construções” pode trazer as seguintes contribuições: a) mudança entendida como um processo dinâmico, uma vez que a emergência de novos padrões construcionais se dá através do tempo e dos falantes, ou seja, o uso reiterado de padrões construcionais levaria à sua gramaticalização); b) alinhamento entre padrões de uso e padrões gramaticais via significado → forma; c) incorporação das micro-construções em uma rede, o que levaria a pensar em redes construcionais estabelecidas a partir de processos de gramaticalização integrados e interligados (TRAUGOTT, 2009, p. 99).

Com base no aporte teórico discutido acima, consideramos que, nas construções modais ter que + V2 e dever + V2, os significados modais, que inicialmente estariam relacionados a um valor deôntico, caminhariam em uma direção crescente de orientação para os falantes, passando a expressar sentidos relacionados a um valor epistêmico. E, nesse processo de mudança, estaria envolvido o cline de gramaticalização [- subjetivo] > [+ subjetivo] > [intersubjetivo].

A modalização epistêmica e a noção de (inter)subjetivização

A argumentação e a persuasão são elementos que carregam, mesmo que

implicitamente, a intencionalidade do indivíduo envolvido no processo de comunicação, sendo, por isso, importante destacar que o ato de argumentar representa a orientação planejada de um discurso, no sentido de conduzir a uma determinada conclusão, uma vez que “a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia” (KOCH, 1987, p. 19) Assim, podemos observar que

95 O falante buscaria resguardar a imagem dos interlocutores, evitando aquilo que possa ser tomado como invasivo ou comprometedor. A essa imagem atribui-se o nome de face (GOFFMAN, 1970). O conceito de face foi caracterizado por Goffman (1970) de acordo com as necessidades e desejos de cada interactante de uma conversação. Para o autor, quando se entra em contato com o outro, tem-se a preocupação de preservar a auto-imagem pública que cada interlocutor possui.

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as manifestações linguísticas são iniciativas que se baseiam na intenção de persuadir, uma vez que, por trás de todos os discursos, existe sempre uma intencionalidade determinada.

Nesse sentido, a modalização discursiva está relacionada diretamente a essa elaboração das ideias, constituindo um processo de seleção de recursos linguísticos a serem utilizados na construção de um texto oral ou escrito, a fim de que o mesmo transmita a ideologia de quem o elabora e, além disso, alcance o objetivo de persuadir o leitor ou ouvinte da referida mensagem. Esses pressupostos vão ao encontro do que afirma Koch (1987, p. 138):

“[...] consideram-se modalizadores todos os elementos linguísticos diretamente ligados ao evento de produção do enunciado e que funcionam como indicadores das intenções, sentimentos e atitudes do locutor com relação ao seu discurso. Estes elementos caracterizam os tipos de atos de fala que deseja desempenhar, revelam maior ou menor grau de engajamento do falante com relação ao conteúdo proposicional veiculado, apontam as conclusões para as quais os diversos enunciados podem servir de argumento, selecionam os encadeamentos capazes de continuá-los, dão vida, enfim, aos diversos personagens cujas vozes se fazem ouvir no interior de cada discurso” (KOCH, 1987, p. 138).

Como destaca Neves (2000, p. 159-162), “necessidade” e “possibilidade” são as

noções que se colocam tradicionalmente na subcategorização da modalização. E, sob essa perspectiva, a autora diferencia cinco diferentes tipos de modalidade, a saber:

a) modalidade alética ou lógica, que está relacionada às condições de verdade que envolvem a proposição (ex.: A água pode ser encontrada em estado sólido, líquido ou gasoso); b) modalidade bulomaica ou volitiva, que diz respeito à necessidade ou à possibilidade relacionadas aos desejos do falante (ex.: Desta vez, o titulo deve ser nosso); c) modalidade disposicional ou habilitativa, que se refere à disposição, à habilitação ou à capacitação para que algo aconteça (ex.: A cirurgia foi realizada. O paciente, agora, pode andar); d) modalidade deôntica, que está relacionada à instanciação de obrigações e permissões (ex.: Você não deve viajar agora. Esta é a minha decisão!); e) modalidade epistêmica, que indica o julgamento do falante diante do mundo, tendo como característica o seu (des)comprometimento pessoal em relação à verdade da proposição (ex.: É provável que haja funcionários bem treinados no escalão inferior da gestão).

Segundo Finegan (1995), haveria uma relação estrita entre a noção de subjetividade e modalização epistêmica. A respeito dessa relação, o autor reforça que a modalização epistêmica seria talvez a ocorrência mais explorada na manifestação da subjetividade do falante. Quando falamos em modalidade epistêmica, estaríamos falando, portanto, da atitude do falante em relação ao que ele diz.

Portanto, como defendemos neste trabalho, a (inter)subjetivização na gramaticalização consistiria no desenvolvimento de expressão gramaticalmente identificável que indicaria as crenças dos falantes. A noção de (inter)subjetivização estaria, nesse sentido, intimamente relacionada à modalização epistêmica, uma vez que haveria a emergência de novos padrões construcionais – e sua consequente reiteração ao longo do tempo – a partir da perspectiva dos participantes em situações reais de uso da língua.

Métodos e procedimentos de análise

Neste trabalho, assumimos a importância do levantamento da frequência de uso para

atestar/elucidar processos de gramaticalização (cf. BYBEE, 2003; VITRAL, 2006).

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Segundo Vitral (2006, p. 149), é necessário o “desenvolvimento de uma metodologia quantitativa específica que permita identificar processos de gramaticalização”. Para o autor, se o item em análise estiver passando por um processo de gramaticalização, a tendência é: a) que sua frequência de uso aumente; b) que a sua frequência quando em função gramatical aumente; c) que a sua frequência quando em função lexical diminua. É importante destacar aqui a postura formalista de Vitral (2006) em comparação à postura construcionista adotada por Bybee (2003). Mesmo com esse enfoque formalista, Vitral (2006) consegue chamar a atenção para o papel da frequência de uso nos estudos sobre gramaticalização.

Também de acordo com Bybee (2003), o aumento na frequência de uso seria um fator que contribui para atestar a ocorrência de processos de gramaticalização. Em suas postulações acerca do papel da frequência na gramaticalização, a autora adota uma perspectiva construcionista. Ao ir de encontro à visão tradicional, que é representada pelos clines [lexical] > [gramatical] e [gramatical] > [+ gramatical], Bybee (2003) defende que é uma construção com itens lexicais que se torna gramaticalizada, e não apenas itens lexicais ou gramaticais.

Ao considerar a preponderância da frequência na análise de processos de gramaticalização, a autora se baseia em Haiman (1994), para quem o processo de gramaticalização é concebido como um processo de ritualização baseado na repetição e constituído pelas seguintes fases: (i) a habituação, (ii) a automatização, (iii) a redução da forma e (iv) a emancipação. O primeiro aspecto resultaria da repetição e da redução do sentido que estaria relacionada a aspectos culturais, caracterizando, portanto, o desbotamento semântico96. Já o segundo aspecto, envolveria a reanálise97 de uma sequência de unidades como sendo uma única unidade, isto é, cada unidade particular perderia seu sentido individual, caracterizando, portanto, a visão construcional baseada na teoria da fraca composicionalidade. Já a redução da forma ocorreria devido à repetição, e tal processo estaria relacionado à reanálise de uma sequência de unidades como sendo uma única unidade. E, finalmente, a emancipação envolveria o reconhecimento da gramaticalização, em que os itens envolvidos seriam considerados unidades construcionais.

Partindo das postulações de Haiman (1994) sobre ritualização, Bybee (2003, p.604) advoga que a repetição frequente desempenharia um papel crucial no processo de gramaticalização e conclui que: (a) a frequência de uso leva ao enfraquecimento da força semântica dos itens pela habituação; (b) as mudanças fonológicas de redução e fusão nas construções gramaticalizadas são condicionadas por sua alta frequência de uso; (c) o aumento da frequência leva à interpretação dos itens que coocorrem como uma unidade construcional, e não mais como itens isolados; (d) a perda da transparência semântica faz com que a construção gramaticalizada apresente uma expansão funcional, ocorrendo em novos contextos a partir de novas associações pragmáticas, o que, para a autora, advém da autonomia de construções em gramaticalização e da opacidade crescente de estruturas internas.

Neste trabalho, também assumimos a relevância do levantamento da frequência de uso no estudo dos processos de gramaticalização. É nossa intenção, portanto, comprovar que teria havido, ao longo do tempo, um aumento na frequência dos usos [+ (inter)subjetivos] das construções modais ter que+V2 e dever+V2.

96 Segundo Bybee (2003, p. 604-605), um dos mais evidentes processos de mudança semântica em gramaticalização é o bleaching ou generalização do sentido, já que ocorreria perda de traços específicos de significado. Tal fato implicaria a ampliação do contexto no qual uma dada construção pode ocorrer. Dessa forma, a autora percebe essa generalização como um continuum, uma vez que os itens gramaticalizados sempre se tornariam mais gerais e mais abstratos em relação ao seu significado, passando a atuar em novos contextos e tendo sua frequência consideravelmente aumentada. 97 A reanálise se dá em um estágio mais avançado da gramaticalização. Se certas formas encontram-se em processo de gramaticalização, elas são passíveis de serem reanalisadas, podendo haver mudança de categoria, sem que, necessariamente, ocorra mudança de forma.

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A fim de confirmar esse percurso de mudança, realizamos uma pesquisa pancrônica, que considerou o levantamento de dados tanto em corpora sincrônicos como em corpora diacrônicos. A fim de atestar os usos contemporâneos das construções modais ter que + V2 e dever + V2, trabalhamos com dois corpora sincrônicos, a saber: a) o corpus do “Projeto Mineirês: a construção de um dialeto”, constituído pela Profa. Jânia Martins Ramos, na Universidade Federal de Minas Gerais 98; b) o corpus do PEUL/RJ (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua)99. Como critério para a comparação entre esses dois corpora, baseamo-nos no mesmo gênero discursivo: entrevista. Desse modo, procuramos minimizar possíveis enviesamentos no levantamento da frequência. Ainda com a preocupação de manter a uniformidade no tratamento dos dados, foram analisadas 120.000 palavras em cada corpus. Já em relação à análise diacrônica, tomamos como base textos produzidos entre os séculos XIII e XIX, os quais se encontram publicados no CIPM – Corpus Informatizado do Português Medieval100 – e no corpus eletrônico do projeto Tycho Brahe101. A fim de também manter uma uniformidade na análise dos dados, optamos por analisar 100.000 palavras em cada século. Apresentamos, no quadro a seguir, a distribuição dos corpora diacrônicos analisados:

Século analisado Composição do corpus por século Número de

palavras analisado por corpus em cada século

Século XIII

- Notícia do Torto (1214) - Textos Notariais (entre 1243 e 1274) - Foros de Garvão (entre 1267 e 1280) - Foro Real (1280) - Dos Costumes de Santarém (1294)

100.000 palavras

Século XIV

- Crónica de Afonso X in Crónica Geral de Espanha de 1344 - Dos Costumes de Santarém (1340/1360) - Foros de Garvão (século XIV - sd) - Textos Notariais (entre 1304 e 1397)

100.000 palavras

Século XV

- Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela (século XV - sd) - Castelo Perigoso (século XV - sd) - Orto do Esposo (século XV - sd) - Crónica do Conde D. Pedro de Meneses (século XV - sd)

100.000 palavras

Século XVI

- Monarchia Lusitana (1584) - Da Monarquia Lusitana (1569) -Poesia e Pintura (1597) - Gazeta (1541) - A vida de Frei Bertolameu dos Mártires (1556)

100.000 palavras

Século XVII

- Nova Floresta (1644) - Cartas de Alexandre de Gusmão (1695) - Cartas de Antonio Vieira (1608) - Tácito Português (1608) - Cartas Familiares (1608)

100.000 palavras

98 Disponível em http://www.letras.ufmg.br/mineires/. 99 Disponível em http://www.letras.ufrj.br/peul/. 100 O Corpus Informatizado do Português Medieval disponibiliza textos produzidos entre os séculos XII e XVI e pode ser acessado em http://cipm.fcsh.unl.pt/. 101 O Corpus Histórico do Português Tycho Brahe é um corpus eletrônico anotado, composto de textos em português escritos por autores nascidos entre 1380 e 1845. Este corpus pode ser acessado eletronicamente em http://www.tycho.iel.unicamp.br/t~tycho/.

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Século XVIII

- Cartas, Cavaleiro de Oliveira (1702) - Cartas de Garrett (1799) - Verdadeiro Método de Estudar (1713) - Cartas do Abade Antonio da Costa (1714) - Obras Completas de Correia Garção (1724)

100.000 palavras

Século XIX

- Cartas de Eça de Queirós e Oliveira Martins (1845) - Atas dos Brasileiros (1830) - Cartas a Emília (1836) - Memórias do Marquês da Fronteira e d'Alorna (1802) - Maria Moisés (1826)

100.000 palavras

Quadro 1 – Corpora diacrônicos analisados por século

Tanto nos corpora sincrônicos como nos corpora diacrônicos, foi encontrado um número bastante significativo das construções modais ter que+V2 e dever+V2. Como podemos observar na tabela abaixo, enquanto houve um aumento na frequência de uso da construção dever+V2, houve, por outro lado, um decréscimo na frequência de uso da construção ter que+V2 ao longo do tempo.

Construção ter que + V2

Construção dever + V2 Total

N.º % N.º % Corpora sincrônicos

380 89.62% 102 3.96%

482

Corpora diacrônicos

44 10.38% 2477 96.04% 2527

Total 424

2579 3003

Tabela 1 – Levantamento geral da frequência de uso das construções modais ter que + V2 e dever + V2 nos corpora analisados

Nas duas próximas seções, nos deteremos pontualmente na análise dos dados. Será

nossa intenção identificar os diferentes usos de cada uma das construções modais aqui estudadas, levantando sua frequência de uso século a século. Procuraremos, portanto, evidenciar em que medida as construções ter que+V2 e dever + V2 teriam desenvolvido usos [+ (inter)subjetivos] ao longo do tempo. A gramaticalização da construção modal ter que + V2 Em relação à construção modal ter que + V2, identificamos a existência de três diferentes usos nos corpora sincrônicos, os quais intitulamos de: a) marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo; b) marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo; c) marcador epistêmico de avaliação. A seguir, descreveremos e exemplificaremos cada um desses usos: I - Marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo → uso [- subjetivo] Neste caso, a construção ter que + V2 apresentaria sentido deôntico, indicando uma obrigação instanciada por um agente externo. Através desse padrão construcional, o falante reportaria alguma norma e/ou regra que foi imposta para si ou para outrem em determinada situação. Como veremos, em comparação com os demais usos apresentados adiante, este uso teria um caráter [- subjetivo]. Vejamos dois exemplos de obrigação instanciada por agente externo:

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(1) Ficava no bar bebendo direto. Com isso, o tempo, a gente foi vendo que aquilo ali era uma bagunça, entendeu? E eu quis saí logo, o dono do edifício não deixou eu saí. E: Mas, por quê? F: Falou que eu tinha que pagá uma multa contratual de quase cinco mil reais [caramba!]. Eu falei, como? Eu fui assaltada (Corpus do Grupo PEUL)

Em (1), o falante indica que o dono do edifício em que morava – que seria, nesse caso, o agente externo – teria estabelecido como obrigação o pagamento de uma multa contratual.

II - Marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo → uso [+ subjetivo]

Este uso seria [+ subjetivo] em relação ao anterior: embora também tenhamos aqui

presente a noção de obrigatoriedade, o próprio falante é o responsável por instanciar para si mesmo aquilo que considera importante. O exemplo (2) exemplifica esse uso:

(2) E eu comecei a trabalhá e eu percebi que eu tinha que fazer de tudo pra mi enturmá.

Entendeu? Tanto com a sociedade, na loja, eu tinha que me abrir, eu tinha que seu uma pessoa mais... entendeu? (Corpus do Projeto Mineirês)

Em (2), o falante indica que ele mesmo julgou necessário se “enturmar” um pouco

mais em seu ambiente de trabalho, ou seja, o próprio falante, diante de uma avaliação da realidade, expressa suas crenças e atitudes.

III - Marcador epistêmico de avaliação subjetiva → uso [+ subjetivo]

Já neste caso, a noção de obrigatoridade/necessidade não se encontra presente. O que

vemos aqui é o caráter avaliativo do discurso do falante diante da realidade que percebe. Observamos, portanto, que este uso é mais subjetivo ainda em relação aos dois usos apresentados anteriormente, uma vez que o falante empregaria a construção ter que + V2 para indicar sua avaliação subjetiva acerca da importância da situação envolvida na proposição, baseando-se, desse modo, em evidência subjetiva. Vejamos um exemplo:

(3) Eu então... eh... eu acho que isso é meio imaturo da parte das empresas, acho isso

errado. Tem que estabelecê um limite, senão o pessoal, se você dexá, o pessoal vai chegá... vai ficá um dia sem trabalhá e o outro dia, trabalhá vinte e quatro horas, num é isso, entendeu? (Corpus do Grupo PEUL)

Em (3), o falante emprega a construção ter que + V2 para indicar que, na sua opinião,

as empresas precisam ser mais rígidas em relação aos funcionários. Portanto, o falante, com base na realidade observada, avalia subjetivamente a situação manifestada na proposição.

Após descrever cada um dos três usos encontrados nos corpora sincrônicos analisados, apresentamos abaixo o levantamento de frequência. Como podemos observar, das 380 ocorrências da construção ter que + V2 atestadas, apenas 58 representam o marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo. Em segundo lugar no levantamento de frequência, se encontra o uso da construção como marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo. E, com uma nítida representatividade – 57,63% do total –, a construção ter que + V2 foi encontrada como marcador epistêmico de avaliação subjetiva. Esse resultado indica que a gramaticalização dos usos [+ subjetivos] está bastante avançada, uma vez que os falantes tendem a empregar, reiteradamente, a construção modal ter que + V2 em contextos que envolvem suas crenças e julgamentos pessoais.

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Marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo

Marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo

Marcador epistêmico de avaliação subjetiva

Total

N.º % N.º % N.º % Corpus do Projeto “Mineirês

22

18.03%

44

36.07%

56

45.90%

122

Corpus do Grupo PEUL

36

13.95%

59

22.87%

163

63.18%

258

Total 58 15.26%

103 27.11%

219 57.63%

380

Tabela 2 – Levantamento dos usos da construção modal “ter que + V2” nos corpora sincrônicos

A fim de comprovar como o cline de mudança [- subjetivo] > [+ subjetivo] estaria presente na gramaticalização da construção ter que + V2, apresentamos, a seguir, os resultados obtidos na análise dos corpora diacrônicos que foram analisados.

Marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo

Marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo

Marcador epistêmico de avaliação subjetiva

Total

N.º % N.º % N.º % Século XIII

0

0

0

0

0

0

0

Século XIV

2

100%

0

0

0

0

2

Século XV

3

42.86%

0

0

4

57.14%

7

Século XVI

0

0

0

0

1

100%

1

Século XVII

3

16.67%

13

72.22%

2

11.11%

18

Século XVIII

1

9.09%

7

63.64%

3

27.27%

11

Século XIX

1

20%

0

0

4

80%

5

Total 10 22.73%

20 45.45%

14 31.82%

44

Tabela 3 – Levantamento dos usos da construção modal “ter que + V2” nos corpora diacrônicos É importante ressaltar aqui que o corpus diacrônico analisado é apenas um recorte

bastante parcial do uso da língua nos séculos anteriores. Portanto, temos consciência de que a análise diacrônica realizada não pode trazer conclusões definitivas acerca das construções estudadas neste trabalho. A nossa intenção é somente buscar, no passado, indícios que possam esclarecer, um pouco mais, os usos sincrônicos que foram atestados. Curiosamente, no século XIV, já encontramos 04 ocorrências da construção como marcador epistêmico de avaliação subjetiva. Já em relação ao uso da construção ter que + V2 como marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo, as primeiras ocorrências foram encontradas apenas no século XVII. Como dissemos anteriormente, estes resultados não são conclusivos, e servem apenas para comprovar que os usos mais subjetivos da construção modal analisada não teriam sido instanciados tardiamente na língua.

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A gramaticalização da construção modal dever + V2 Em relação à construção modal dever + V2, foram identificados quatro diferentes usos

nos corpora sincrônicos, os quais intitulamos aqui de: a) marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo; b) marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo; c) marcador epistêmico de avaliação subjetiva; d) marcador epistêmico de suposição. A seguir, descreveremos e exemplificaremos cada um desses usos:

I - Marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo → uso [- subjetivo]

Assim como ocorre com a construção ter que + V2, a construção dever + V2 também

apresenta valor deôntico e é empregada pelo falante para sinalizar uma obrigação instanciada por um agente externo. Também aqui, em comparação com os demais usos apresentados abaixo, haveria um caráter [- subjetivo]. Vejamos um exemplo:

(4) “a Zulmira num pode mais fazer isso, você deve terminá, eu já disse.” – aí eu respondo : “a Zulmira faz porque ela quer... porque eu já disse à Zulmira que ela era a melhor tesoureira e que ela ficaria só como tesoureira... porque na festa do fim do ano ... (Corpus do Grupo PEUL)

Em (4), o falante está reportando uma situação que teria ocorrido no passado. Através

do discurso direto, ele indica uma obrigação que teria sido instanciada por um agente externo para uma pessoa cujo nome é Zulmira. Ou seja, através da construção modal dever + V2, o falante destaca que seria obrigação de Zulmira fazer aquilo que lhe está sendo solicitado.

II - Marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo → uso [+ subjetivo]

Também aqui este uso seria [+ subjetivo] em relação ao anterior, uma vez que o

próprio falante julga, com base em suas crenças pessoais, aquilo que considera ser ou não sua obrigação. O exemplo (5) ilustra esse uso:

(5) A filha do meu primo me chama de tio, né? Tem dezessete, dezoito anos, “Por que tio

Vasquinho?” Falei: “Porque eu não participei da... do presente, então eu acho que não devo assinar.” “Ah, mas não tem nada a ver!” Eu falei: “Tem sim, eu não vou assiná.” (Corpus do Grupo PEUL)

Neste enunciado, o falante emprega a construção modal dever + V2 com a intenção de

sinalizar, com base em sua percepção da realidade, que não seria sua obrigação assinar algo que lhe foi exigido por outrem.

III - Marcador epistêmico de avaliação subjetiva → uso [+ subjetivo]

Este uso da construção modal dever + V2 – assim como ocorre com a construção ter

que + V2 – apresenta a avaliação subjetiva que o falante realiza em relação ao conteúdo proposicional. Este uso seria também [+ subjetivo], uma vez que se baseia nas crenças e atitudes do falante acerca da realidade. Observemos como a avaliação subjetiva do falante se encontra claramente expressa no enunciado (6):

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(6) Acho que a NP fez muito bem, que ela mostrô ser uma filha de Arceburgo de verdade, por que se todas as pessoas que forem embora, que ainda vivem com seus setenta, setenta e cinco, oitenta anos, que possa se lembrar. Que possa fazer alguma coisa pra cidade, devia fazer. (Corpus do Projeto Mineirês)

Neste exemplo, fica claro que o falante avalia subjetivamente a realidade. Ao

empregar a construção modal dever + V2, ele expressa a opinião de que os moradores da cidade de Arceburgo, sempre que possível e mesmo tendo se mudado, devem fazer algo para melhorar o município. Temos, portanto, aqui um julgamento bastante particular e pessoal que é emitido pelo falante em uma situação de interação.

IV - Marcador epistêmico de suposição → uso [+ intersubjetivo]

Neste caso, os falantes empregariam a construção modal dever + V2 com a intenção

de não se comprometerem com a verdade daquilo que está sendo dito e protegerem sua face diante do(s) interlocutor(es): em vez de afirmar categoricamente determinada informação, o falante opta por apresentá-la como uma suposição, que é passível, portanto, de confirmação ou não. Vejamos um exemplo deste uso:

(7) E já estava mais ou menos com catorze quinze anos. A NP deve ter onze meses

menos que eu. Então a gente ficava sempre juntas. (Corpus do Projeto Mineirês) Em (7), o falante, em vez de afirmar a idade que NP possui, opta por tratar a

informação como uma suposição. Desse modo, visando a proteger sua face diante de seus interlocutores e, consequentemente, a manter a imagem social que detém, o falante projeta a informação no campo da incerteza.

Também aqui, após descrever cada um dos usos encontrados nos corpora sincrônicos analisados, apresentamos o levantamento de frequência. Como podemos verificar abaixo, o uso da construção dever + V2 como marcador epistêmico de suposição é o que apresenta maior número de ocorrências – 54 ocorrências das 102 que foram atestadas no total. Esse resultado aponta que o uso [+ intersubjetivo] da construção modal em questão já se encontra em avançado processo de gramaticalização. O uso da construção como marcador epistêmico de avaliação subjetiva, que seria [+ subjetivo], também apresentou uma alta frequência, já que foram atestadas 39 ocorrências. Já para os usos como marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo e marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo foram encontradas, respectivamente, 06 e 03 ocorrências.

Marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo

Marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo

Marcador epistêmico de avaliação subjetiva

Marcador epistêmico de suposição

Total

N.º % N.º % N.º % N.º % Corpus do Projeto “Mineirês

0

0

0

0

19

48.72%

20

51.28%

39

Corpus do Grupo PEUL

3

4.76%

6

9.52%

20

31.75%

34

53.97%

63

Total

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162

3 2.94%

6 5.88%

39 38.24%

54 52.94%

102

Tabela 4 – Levantamento dos usos da construção modal “dever + V2” nos corpora sincrônicos

Com a intenção de comprovar que o cline de mudança [- subjetivo] > [+ (inter)subjetivo] estaria presente na gramaticalização da construção dever + V2, apresentamos, a seguir, os resultados obtidos na análise dos corpora diacrônicos.

Marcador deôntico

com obrigação instanciada por agente externo

Marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo

Marcador epistêmico de avaliação subjetiva

Marcador epistêmico de suposição

Total

N.º % N.º % N.º % N.º % Século XIII

385

100%

0

0

0

0

0

0

385

Século XIV

519

100%

0

0

0

0

0

0

519

Século XV

577

100%

0

0

0

0

0

0

577

Século XVI

111

100%

0

0

0

0

0

0

111

Século XVII

191

100%

0

0

0

0

0

0

191

Século XVIII

477

85.79%

4

0.72%

75

13.49%

0

0

556

Século XIX

50

36.23%

13

9.42%

73

52.90%

2

1.45%

138

Total 2310 93.26%

17 0.69%

148 5.97%

2 0.08%

2477

Tabela 5 – Levantamento dos usos da construção modal “dever + V2” nos corpora diacrônicos

Os resultados encontrados revelam que o uso da construção modal dever + V2 como marcador epistêmico de suposição – embora em avançado processo de gramaticalização – seria recente, uma vez que as primeiras ocorrências foram atestadas somente a partir do século XIX. Também seriam recentes os usos da construção como marcador epistêmico de avaliação subjetiva e marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo, uma vez que não foram encontradas ocorrências antes do século XVIII. Por outro lado, o uso menos subjetivo da construção modal dever + V2 seria bastante antigo, visto que foram encontradas 385 ocorrências já no século XIII. Conforme já apontado anteriormente, é fundamental destacar que o corpus diacrônico analisado é somente um recorte bastante parcial do uso da língua no passado. Entretanto, no caso da construção dever + V2, os resultados se mostraram bastante conclusivos, permitindo atestar o cline de mudança [- subjetivo] > [+ subjetivo] > [+ intersubjetivo] no processo de gramaticalização.

Considerações finais

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O presente trabalho buscou analisar a gramaticalização das construções modais ter que

+ V2 e dever + V2 na língua portuguesa, procurando verificar se revelariam o cline de mudança [- subjetivo] > [+ subjetivo] > [+ intersubjetivo]. Como pudemos observar em relação à construção ter que + V2, houve o desenvolvimento de usos mais subjetivos e epistêmicos a partir de um uso menos subjetivo, caracterizado pela obrigatoriedade instanciada por um agente externo. Já no processo de mudança da construção dever + V2, chegou-se também a um uso [+ intersubjetivo]. Portanto, conforme verificamos, os significados modais, que inicialmente estariam relacionados a um valor deôntico, caminhariam em uma direção crescente de orientação para os falantes, passando a expressar sentidos relacionados a um valor epistêmico.

Com base na análise empreendida neste trabalho, esperamos contribuir para demonstrar que a gramaticalização, quando concebida a partir da perspectiva da (inter)subjetivização, permite explicar como novas construções emergem a partir da perspectiva que têm os falantes de codificar suas crenças e atitudes durante o processo de interação (TRAUGOTT, 1995, 2010; TRAUGOTT E DASHER, 2005). Também assumiu um papel importante neste trabalho a perspectiva da “gramaticalização de construções”. Quando consideramos que a gramaticalização envolveria a mudança construção > gramática, partimos do princípio de é a construção inteira, e não apenas o significado lexical de um item, que é precursor do sentido gramatical.

(INTER)SUBJECTIFICATION IN THE DOMAIN OF MODALITY: THE PROCESS OF GRAMMATICALIZATION OF THE MODAL CONSTRUCTIONS ‘TER QUE + V2’ E ‘DEVER + V2’ ABSTRACT: This work intends to analyse the grammaticalization of the modal constructions ter que + V2 and dever + V2, seeking to determine how they reveal a process of semantic-pragmatic expansion, in which we observe the emergence of epistemic meanings from an initial deontic meaning. In this work, we assume grammaticalization as a process of (inter)subjectification since we are based on a model of language change that can explain how speakers interact, constructing their arguments and demonstrating their evaluation of the statements that they produce (TRAUGOTT, 1995, 2010; TRAUGOTT E DASHER, 2005). We are also based on the perspective of grammaticalization of constructions (TRAUGOTT, 2003, 2009), since we consider that grammaticalization involves the following change: construction > grammar. Considering the role of frequency to explain processes of grammaticalization (VITRAL, 2006; BYBEE, 2003), we developed a panchronic analysis that considered corpora between the 13th century and the contemporary Portuguese language. As we could observe in the case of the construction ter que + V2, some subjective usages were developed from a less subjective usage. And in the case of the construction dever + V2, we also found a [+ intersubjective] usage.

KEYWORDS: Grammaticalization; (Inter)subjectification; Grammaticalization of constructions; Modalization. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BYBEE, J. Mechanisms of change in grammaticization: the role of frequency. In: BRIAN, J. & JANDA, R. D. (eds.) The Handbook of Historical Linguistics. Oxford: Blackwell, 2003. CROFT, W. Radical construction grammar. Syntactic theory in typological perspective. New York: Oxford University Press, 2001. CROFT, W. & CRUSE, A. D. Cognitive Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. FINEGAN, E. Subjectivity and Subjectification. In: DIETER, S. & WRIGHT, S. (eds.) Subjectivity and Subjectivization: Linguistic Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. GOFFMAN, E. Ritual de la interacción. Buenos Aires: Tiempo Contemporâneo, 1970.

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GOLDBERG, A. E. Constructions: A construction grammar approach to argument structure. Chicago: University of Chicago Press, 1995. ______. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006. HAIMAN, J. Ritualization and the development of language. In: PAGLIUCA, W. (ed.) Perspectives on Grammaticalization. Amsterdam: Benjamins, 1994. HEINE, B.; CLAUDI, U.; HUNNEMEYER, F. Grammaticalization: a conceptual framework. Chicago: the University of Chicago Press, 1991. HOPPER, P. J. & TRAUGOTT, E. C. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. 2ª ed. . São Paulo: Cortez, 1987. MEILLET, A. Linguistique historique et linguistique générale. Paris: Champion, 1948 [1912]. NEVES, M. H. M. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da UNESP, 2000. TRAUGOTT, E. C. Subjectification in grammaticalisation. In: DIETER, S. & WRIGHT, S. (eds.) Subjectivity and Subjectivization: Linguistic Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. ______. Constructions in grammaticalization. In: BRIAN, J. & JANDA, R. D. (eds.) The Handbook of Historical Linguistics. Oxford: Blackwell, 2003. ______. Grammaticalization and Construction Grammar. In: CASTILHO, A. T. (org) História do Português Paulista. Vol. 1. Campinas: Unicamp/Publicações IEL, 2009. ______. (Inter)subjectivity and (inter)subjectification: a reassessment. In: DAVIDSE, K. et al. Subjectification, Intersubjectification and grammaticalization. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2010. TRAUGOTT, E. C. & DASHER, R. Regularity in semantic change. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. VITRAL, L. O papel da frequência na identificação de processos de gramaticalização. Scripta, vol. 9, n. 18, Belo Horizonte, 2006.

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165

A natureza fluida da língua e o estudo do português: aproximações entre gramaticalização e ensino

André Luiz RAUBER102

RESUMO: O caráter fluido da língua, marcado pelo processo natural de variação e mudança das formas e funções de construções linguísticas, e sua repercussão no ensino da língua portuguesa constituem o tema deste estudo. Apresentam-se propostas teórico-didáticas que consideram a língua em uso na modalidade escrita e em contextos marcadamente formais. A base teórica segue princípios do funcionalismo europeu (HALLIDAY, 1978) e holandês (DIK, 1989), bem como trabalhos de funcionalistas brasileiros (CUNHA & TAVARES, 2007; NEVES, 2001 [1990]). Dá-se ênfase a determinados fenômenos de variação categorial, vistos a partir do viés da gramaticalização (HEINE, CLAUDI, HÜNNEMEYER, 1991; LIMA-HERNANDES, 2009), como, por exemplo, a função textual assumida pelo item daí, a variação semântica e transitiva do verbo visar e a função pronominal da expressão a gente. Objetiva-se, assim, apresentar sequências didáticas que tratem de fenômenos de variação e mudança categorial, segundo a perspectiva de uma gramática emergente (HOPPER, 1991). As propostas citadas sinalizam para a possibilidade de um tratamento pedagógico às questões que envolvem o estudo da gramática da língua em uso, sem, com isso, desconsiderar as descrições da gramática padrão, mas ampliando-as.

PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo; Gramaticalização; Ensino de língua portuguesa. Introdução

A noção de língua adotada neste estudo ancora-se em pressupostos funcionalistas, segundo os quais a linguagem é uma atividade de interação social (DIK, 1989) para suprir determinados propósitos comunicativos. Nesse sentido, pressupõe-se uma dinâmica baseada em princípios que consideram o contexto, os interlocutores, os fatores pragmáticos e discursivos, determinantes das expressões verbais.

Ao observar situações reais do uso da língua, constatam-se variações categoriais de um mesmo elemento linguístico que assume diferentes funções gramaticais a depender do uso e do contexto em que é empregado, para cumprir determinada função comunicativa. Assim, uma construção de valor mais lexical pode passar a desempenhar uma função mais gramatical, ou mesmo uma construção de natureza já gramatical passa a desempenhar funções mais gramaticais ainda (cf. BRINTON, TRAUGOTT, 2005).

Diante dessa concepção, cabe perguntar: em que medida o reconhecimento de que uma mesma forma linguística pode desempenhar diferentes funções gramaticais é ativado dentro dos domínios do ensino de língua portuguesa (doravante LP)? Se o que se espera, em qualquer estágio de estudo da LP no contexto escolar, é o desenvolvimento de competências e habilidades ligadas ao domínio da língua padrão, como aproximar variação e padrão? Enfim, até que ponto as descobertas em torno dos fenômenos de variação e mudança da língua chegam ao contexto de ensino na educação básica? Como chegam e de que maneira contribuem ou interferem nesse processo de ensino?

São essas as questões que permearão as discussões neste artigo, que objetiva discorrer sobre o alcance e a necessidade do estudo gramatical no contexto educacional, sem, contudo, desconsiderar os dois extremos perigosos envolvidos nessa questão: o reducionismo teórico desse estudo, marcado pela superficialidade conceitual, e a hipervalorização de uma

102 Professor efetivo do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Groso. Atualmente afastado para realizar doutorado no Departamento de Filologia e Língua Portuguesa FFLCH/USP. São Paulo, SP, Brasil, Cep 05406-040. E-mail: [email protected].

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metalinguagem de padrões internos (forma), isolada de padrões externos (contexto) (cf. HALLIDAY, McINTOSH, STREVENS, 1974). Para a exemplificação deste estudo, foram selecionadas três sequências didáticas, fundamentadas em princípios funcionalistas, que representam o resultado de um curso lato sensu, intitulado “Princípios funcionalistas e perspectiva para o ensino”, realizado na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), campus de Rondonópolis, em janeiro de 2011, e destinado a professores de LP. As propostas foram elaboradas como atividade final desse curso e representam a transposição de alguns pressupostos funcionalistas e de gramaticalização ao contexto de ensino de LP. São elas: 1) a função textual de daí; 2) a semântica de visar e sua transitividade; e 3) a função pronominal de a gente.

Equilibrar uma perspectiva teórica que reconhece a multifuncionalidade da língua, portanto, sua fluidez, com outra abordagem, que leva em conta a estabilidade dessa mesma língua e serve à padronização de usos, como se percebe em uma gramática da norma, é algo que suscita questionamentos e muita atenção. De certo modo, este é o desafio proposto aqui. A mudança categorial e o ensino de LP A consideração da natureza fluida da língua, evidenciada nos fenômenos de variação e mudança, entendidos aqui na dimensão das mudanças categoriais, em que as unidades e construções da língua sofrem alteração em relação à forma e à função que desempenham no sistema linguístico, não é algo novo. A constatação de Vossler (1943 [1923]) é um exemplo disso. Segundo esse autor,

pero lástima que la lógica gramatical no quiera coincidir jamás con la verdadera lógica. Lástima que la lengua no quiera renunciar a la mala costumbre de usar el representante del concepto de sustancia, el sustantivo, para expresar significaciones modales, relativas y hasta irreales; de elevar el adjetivo al plano de la sustancia; de poner la sustancia en comparativo; de cambiar la multiplicidad en cualidad; de trasponer la actualidad en el futuro; y de petrificar lo verosímil en lo absoluto; en suma, de entrever revueltamente todas las categorías103. (VOSSLER, 1943 [1923], p.29-30)

O reconhecimento desse vislumbre “revoltoso” de todas as categorias, como sugere

Vossler (1943 [1923]), de fato, não é algo negativo, mas deriva da percepção de que a gramática não tem suas bases fixadas em pressupostos inalteráveis. E isso já vem sendo considerado nos trabalhos de cunho funcionalista publicados no Brasil. Neves (2001 [1990]), por exemplo, já na década de noventa, defendia uma gramática do texto, inspirada, principalmente, nas macrofunções da linguagem propostas por Halliday (1978); e Silva (1997), numa perspectiva mais sócio-histórica, há algum tempo tem discutido as contradições no ensino de português e o papel da escola diante da norma padrão e das normas sociais. Tais casos são exemplos relevantes em razão da língua em uso oferecer complicadores no nível semântico e no nível pragmático-discursivo que merecem ser estudados no contexto escolar (NEVES, 2001 [1990], p.49).

103

Tradução livre: mas é uma lástima que a lógica gramatical não queira coincidir jamais com a verdadeira lógica. É uma pena que a língua não queira renunciar ao mau costume de usar o representante do conceito de substância, o substantivo, para expressar significações modais, relativas e até irreais; de elevar o adjetivo ao plano da substância; de colocar a substância em comparação; de trocar a multiplicidade em qualidade; de transpor a atualidade no futuro; e de petrificar o verossímil no absoluto; em resumo, de vislumbrar, revoltosamente, todas as categorias.

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Recentemente, questionamentos que vão muito além da gramática são apresentados por Antunes (2003, 2007) em sua discussão sobre “as normas do uso”. Defende a autora a relevância de um debruçar-se sobre

a realidade dos fatos linguísticos (fatos e, não, suposições), para ver e ouvir a língua acontecendo, tal e qual (sem tirar nem pôr, como diz o povo). E, consequentemente, dar crédito ao que se vê e ao que se ouve, para não delegar aos manuais apenas toda a legitimidade ou a adequação de um uso ou de uma norma. (ANTUNES, 2007, p.115).

Em texto intitulado Livro didático e ensino de gramática: para um estudo reflexivo das classes de palavras, Rauber et alii (2010) analisam, em corpus constituído de livros didáticos de LP, a ocorrência ou não de alterações em relação ao tratamento dado aos conteúdos gramaticais, em especial às classes de palavras. Trabalho semelhante, publicado em Portugal, foi desenvolvido por Defendi et alii (2011), com a observação de incongruências entre o ensino escolar brasileiro e a realidade dos usos.

Além dos muros da academia, as instâncias que regulamentam o ensino público brasileiro também já reconheceram que a língua é um sistema em variação. Como exemplo disso, merecem citação os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1999) que legitimaram aquilo que algumas das pesquisas linguísticas, principalmente de cunho funcionalista, já defendem como premissa, ou seja: os usos da língua estão condicionados ao contexto, aos sujeitos envolvidos e à modalidade oral e/ou escrita que, juntos, determinam o “como” dizer. Com isso, contudo, tais parâmetros não rebaixaram o estatuto da norma padrão, como sugeriu o gramático Evanildo Bechara (2011) em entrevista à Folha de São Paulo no dia 16 de maio de 2011. Para contrapor-se a essa preocupação de Bechara, é importante recuperar aqui as principais competências a serem desenvolvidas pelo ensino de LP, segundo as orientações legais. São elas:

1) considerar a Língua Portuguesa como fonte de legitimação104 de acordos e condutas sociais e como representação simbólica de experiências humanas manifestas nas formas de sentir, pensar e agir na vida social;

2) analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, relacionando

textos/contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura, de acordo com as condições de produção/recepção (intenção, época, local, interlocutores participantes da criação e propagação de idéias e escolhas);

3) compreender e usar a Língua Portuguesa como língua materna, geradora de

significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade (BRASIL, 1999, p.142-144)

As competências que devem ser desenvolvidas no aluno da educação básica, segundo as orientações acima, levam em conta as situações de uso específico, considerando, também, o valor da língua enquanto legitimadora de acordos e de condutas e de “representação simbólica de experiências humanas” (BRASIL, 1999, p.142). Ou seja, reconhece-se o papel social da língua e de seu estudo sistemático, sem, com isso, representar um “erro de visão”, conforme julgou Bechara.

Contudo, cabe ainda reconhecer que o texto dos PCNs apresenta lacunas conceituais e metodológicas que geram compreensões as mais diversas possíveis e colocam em risco o real objeto e objetivo do ensino de LP no Brasil. Exemplo disso é a própria leitura feita por um 104 Grifo meu.

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gramático reconhecidamente competente acerca dos parâmetros em questão. Se para ele, tais parâmetros apresentaram um “erro de visão”, há elementos textuais inscritos nesse documento que permitiram essa interpretação. O questionamento de Bechara (2011) tem sua razão de ser quando se percebe o reducionismo teórico-metodológico por que tem passado o estudo sistematizado da gramática, seja da norma padrão ou de outras normas, no ensino brasileiro. O que fora promulgado, pelos parâmetros e as diretrizes curriculares oficiais, como o estudo mais reflexivo da língua, passou a ser entendido, em muitos casos, como estudo do texto, mas não de sua gramática, no que se refere à sua organização linguística interna. Ou, por outro lado, como estudo do texto isolado, e a manutenção de uma gramática fragmentada, desvinculada da situação comunicativa. Em outras palavras, o reconhecimento de uma gramática da língua em uso, materializada no nível do texto, quando transposto para o nível pedagógico, tem recebido, em muitos casos, uma interpretação destituída de embasamento teórico e reflexivo adequados, causando sérios equívocos, principalmente aos professores do ensino básico, pertinentes à concepção do objeto e do objetivo do ensino de LP.

Nesse terreno de poucas certezas teórico-metodológicas, a constatação da natureza variável das categorias linguísticas pode surgir como algo polêmico ou como fenômeno, visto de uma perspectiva teoricamente embasada, auxiliar para um ensino mais reflexivo da língua.

A fluidez linguística e o ensino de LP: a gramaticalização como conteúdo Nesse estudo sobre a movimentação do sistema linguístico e seu tratamento na aula de LP, os fenômenos de variação e mudança linguísticas serão entendidos sobre uma dimensão que considera o continuum entre léxico e gramática e a não rigidez entre as fronteiras dessas categorias da língua. Assim, variação e mudança serão aqui compreendidas como processos naturais que, de acordo com Hopper (1991), denotam a emergência da gramática, que está em constante (re)fazer-se. Diante disso, os pressupostos da gramaticalização podem servir como uma perspectiva viável para observação de tais fenômenos.

A gramaticalização é aqui entendida como um processo, dentro de uma perspectiva funcional da linguagem, que objetiva estudar a evolução de construções da língua a partir da movimentação do léxico rumo à gramática ou de palavras gramaticais que passam a desempenhar, em contextos determinados, função mais gramatical ainda, conforme Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991). É claro que fatores externos também estão envolvidos no processo de variação e mudança linguísticas, e podem ser vistos a partir de uma abordagem sociolinguística. Contudo, neste estudo, propomos investigar a polissemia funcional observando apenas os aspectos ligados ao processo de gramaticalização. Segundo Lima-Hernandes (2008, p.5), ao trabalhar a gramaticalização como um processo, “o pesquisador guia-se pelo comportamento individualizado do item, pelas minúcias e propriedades que permitem o contraste entre elementos de mesma categoria (padrões funcionais)”, cada vez mais abstratos em relação à sua forma-fonte.

O emprego mais antigo do termo Gramaticalização é atribuído a Meillet (1912), que o empregou para definir a atribuição de uma característica gramatical a uma palavra anteriormente autônoma.

Como afirmam Casseb-Galvão e Lima-Hernandes (2007, p.159-160), “esse tipo de mudança implica alterações morfológicas (mudança de classe de palavras), semânticas (mudança de sentido) e sintáticas (mudança de contextos e funções nas relações entre palavras)”, e até mesmo mudança fonológica. Logo, trata-se de uma mudança global que afeta todos os níveis de organização sistêmica da língua.

Em linguística diacrônica, para Dubois et alii (2007 [1973], p.318), a gramaticalização ocorre quando “um morfema lexical, durante a evolução de uma língua em outra, tornou-se

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um morfema gramatical”. Essa noção está vinculada à gênese das línguas e é, por assim dizer, uma visão macro da gramaticalização (Casseb-Galvão, Lima-Hernandes, 2007).

A literatura recente parece concordar que não é suficiente afirmar que um único item se gramaticaliza. Na verdade, é mais preciso afirmar, de acordo com Bybee (2003), que uma construção com itens lexicais é que se torna gramaticalizada. Neste artigo, essa é a perspectiva adotada.

Os estudos sobre gramaticalização vêm recebendo maior destaque nas discussões sobre variação e mudança categorial da língua e consideram, como mecanismos que estão em ação nesse processo, fatores como contexto pragmático, intenção comunicativa, sentido, valor discursivo, elaboração cognitiva, todos determinantes para o “surgimento” de (novas) funções gramaticais. Explicar por que um termo varia e observar como varia até desempenhar outra (ou outras) função (ou funções) têm sido um dos pontos de investigação daqueles que se dedicam aos estudos de gramaticalização. Para contextualizar tal teoria na dinâmica de uma aula de LP, basta simular uma situação em que um aluno pergunta ao seu professor se nas frases (1) João chegou aqui cedo e (2) João chega chora de raiva o verbo chegar exerce a mesma função (e seria muito bom se os alunos fizessem perguntas desse tipo!). Diante desses exemplos, não é difícil perceber que o sentido de chegar não é o mesmo em (1) e (2). Em João chegou aqui cedo, o verbo chegar indica movimento/deslocamento no espaço físico e no tempo do argumento externo “João”, tendo como escopo um adjunto adverbial. Nesse caso, chegar é verbo pleno e exerce a função de núcleo da predicação. Em (2) João chega chora de raiva, não é possível entender que João chega de algum lugar e começa a chorar. Em (2), a forma chegar parece funcionar como um operador argumentativo que assinala o argumento mais forte de uma escala orientada no sentido de determinada conclusão. Ele poderia ser parafraseado por "até", "até mesmo", "inclusive". Há evidências semânticas e pragmáticas que demonstram um caso de mudança morfossintática de uma forma verbal para uma forma adverbial (nesse contexto, chegar fica invariável - uma das características do advérbio -, mantendo-se sempre na 3ª pessoa do singular, no presente do indicativo: chega dói, chega chora)105, na função de operador argumentativo. Para citar Hopper (1991), tem-se um exemplo de estratificação e recategorização106, uma vez que, num domínio funcional, novas “camadas” continuamente emergem e convivem com as antigas. Tudo isso para mostrar que, diante de uma pergunta sobre o estatuto categorial de um verbo, o professor de LP terá de lançar mão de seu conhecimento linguístico a fim de considerar que as formas e funções dos elementos da língua estão em constante processo de “mutação”, alguns mais, outros menos. Reconhecer que esse dinamismo pode ser explicado pelo viés da gramaticalização é uma ferramenta poderosa que auxiliará o professor em seu modo de refletir sobre a linguagem, tendo reflexos no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que o aluno terá a chance de compreender os fenômenos que acontecem em sua língua. Esse foi o motivo que desencadeou as propostas que serão apresentadas na próxima seção.

105 Em pesquisa desenvolvida por Rauber e Ribeiro (2010), são apresentados alguns padrões funcionais da forma chegar, a partir de análise de amostras do português falado na cidade de São Paulo e na cidade de Goiás. 106 Hopper (1991) apresenta cinco princípios de gramaticalização: a estratificação, quando dentro de um domínio funcional, novas camadas estão constantemente emergindo; a divergência, quando convivem formas gramaticalizadas e a forma fonte (lexical); a especialização, quando algumas formas assumem sentidos gramaticais mais gerais, com redução de variantes e estreitamente de possibilidade combinatória; a persistência, quando uma forma sofre gramaticalização, alguns traços de sua forma lexical fonte podem ser refletidas na sua forma gramatical; e a decategorização, quando a forma gramaticalizada tende a perder ou neutralizar as características morfológicas e sintáticas desempenhadas pela forma fonte.

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Gramaticalização e propostas de aplicação Inicialmente, cabe perguntar:

• Se, numa perspectiva funcionalista da linguagem, a língua em uso deve ser o foco de estudo nas aulas de LP, como fazer para, efetivamente, operacionalizar isso?

• Do que se tem discutido teoricamente acerca da gramaticalização, o que é possível “transpor” para o ensino de LP?

As propostas teórico-didáticas que serão apresentadas a seguir indicam possíveis respostas a essas duas questões. Contextualização da proposta

Como foi dito no início deste texto, este estudo tem como propósito relatar uma experiência de aplicação de pressupostos funcionalistas e de gramaticalização em atividades didáticas destinadas a alunos da educação básica. Para isso, é imprescindível situar o contexto em que se deu esse trabalho. Trata-se do resultado de um curso, com carga horária de 45 horas-aula, intitulado “Princípios funcionalistas e perspectiva para o ensino”, ministrado em uma especialização (lato sensu) em LP, organizada pelo Departamento de Letras, do campus universitário de Rondonópolis/UFMT, e destinado a professores da cidade de Rondonópolis e região, no período de 2010 a 2011. O curso se concentrou basicamente no estudo da relação entre teoria e prática no ensino da gramática do português e sua interface com a produção de texto e atividades de leitura, uma vez que a língua se manifesta em enunciados concretos produzidos em situações de interação efetiva. Para isso, foi bastante útil a noção de gênero discursivo de Bakhtin (1997), e, aliado a tudo isso, reflexões em torno do tratamento da multifuncionalidade da língua e sua repercussão no estudo do conteúdo metalinguístico na aula de LP. Assim, fora apresentada, como atividade de avaliação desse curso, a seguinte proposta:

• Selecione texto(s) de qualquer gênero e, a partir dele(s), monte uma sequência didática, considerando, para isso, o que foi discutido teoricamente (a partir de um viés funcionalista). Essa atividade deverá conter uma sequência de aula que contemple: atividades de leitura, de produção textual e de análise gramatical. Para tanto, também deverá trazer reflexões teórico-práticas que fundamentem as atividades propostas e as habilidades linguísticas a serem desenvolvidas.

Ainda que as propostas divulgadas a seguir tratem de temas aparentemente distintos,

todas estão vinculadas a um olhar sobre a língua em uso efetivo, que considera a instabilidade natural entre forma e função das construções linguísticas, motivadas por fatores pragmáticos, cognitivos e comunicativos. Essa perspectiva direciona as três propostas de reflexão metalinguística apresentadas nas seções seguintes, com o intuito de tornar mais evidente, no contexto escolar, alguns dos princípios da gramaticalização. São elas: os usos de “daí” como operador textual; de “visar” como auxiliar aspectual e de “a gente” assumindo, em contextos determinados, a função de pronome pessoal.

Proposta 1: a função textual de “daí”

Esta atividade, apresentada por Santos, Ortiz e Melo (2011), teve como objeto de estudo uma redação de vestibular, publicada pela Fuvest (Fundação Universitária para o

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Vestibular), exame 2010, e considerada uma das dez melhores redações desse ano. A partir desse texto, foram tratadas questões sobre o gênero argumentativo, sua leitura e produção, e, no que se refere à análise gramatical, observaram-se os usos de daí, que, de construção formada pela contração da preposição de com o dêitico locativo aí (cf. TAVARES, 2002), com sentido mais espacial, como em (3), passou a usos mais textuais, como marcador coesivo, organizando a sequência informativa. Com valor de operador argumentativo, parece introduzir sequências conclusivas, como se verifica na redação do vestibulando em (4). (3) Daí onde você está é possível ver algo? (4) As imagens, segundo os estudos do psicanalista austríaco, são uma das fontes mais

poderosas de compensação psicológica e de prazer. Daí a facilidade com que o olhar se deixa enganar por simulacros publicitários, daí se acreditar tanto nas proposições que as imagens do consumo engendram e vendem, daí os fatos serem possíveis das mais bizarras reinvenções, como a de ser uma estrela de cinema pelo simples uso de um sabonete, desde que tal imagem promova a fantasia e o deleite do olhar. (Redação Fuvest, 2010)

O fato de ser uma redação que recebeu nota máxima pelos corretores da Fuvest indica

que um uso pouco recomendado por autores de manuais de redação e, até mesmo, por professores de LP, parece receber certo “licenciamento” em contextos mais formais. Eis um exemplo de um termo que, de marcador de lugar, passa a assumir características de um operador textual, que, apesar de ser muito empregado com essa função na modalidade oral, ainda é pouco reconhecido na modalidade escrita de registro formal, principalmente se consideradas as prescrições apontadas por gramáticas normativas.

Fazer desse caso tema de estudo na aula de LP é oportunizar reflexões acerca da ocorrência de daí em usos variados, seja na modalidade oral, seja na escrita. Tal atividade poderá suscitar vários questionamentos, tais como: quais as condições de produção do texto em epígrafe? Em que contexto é empregado o daí? Que função marca? Trata-se de um uso considerado padrão ou não-padrão? Por quê? Em que suporte e gênero ele mais aparece? Atividade semelhante já foi sugerida por Tavares (2007) em um estudo sobre os conectores e, aí e então.

Além disso, um simples cotejo entre o daí visto em (3) com o que se apresenta em (4) já conduz a uma reflexão acerca da fluidez categoria das entidades linguísticas. Ora daí funciona como marcador espacial - como em (3) -, situando algo no mundo sócio-físico; ora, opera no nível do texto - como em (4) -, assumindo funções como a de um marcador conclusivo em relação à informação que o antecede. O simples fato de fazer com que os alunos percebam tais distinções de uso, certamente, é uma forma de mostrar-lhes uma gramática em processo. O mesmo pode ser visto no estudo da semântica de visar e os reflexos em sua transitividade. Proposta 2: a semântica de “visar” Esta proposta, de autoria de Calicchio, Moura e Maia (2011), teve como foco a análise de alguns usos de visar em textos da esfera jornalística. Para isso, as professoras selecionaram notícias, veiculadas na mídia on-line, sobre a polêmica, ocorrida em 2010, em torno de algumas das obras de Monteiro Lobato, que, para certos críticos, manifestariam preconceito de raça. Com essa proposta, foi possível dinamizar o estudo da transitividade verbal e, por conseguinte, um de seus subdomínios, a regência verbal. Para tanto, considerou-se a variação do valor transitivo de alguns verbos com complemento preposicionado, que apresentam, não

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só na fala, como também na escrita, seu argumento interno introduzido sem preposição. Esse é o caso dos verbos assistir, já bastante estudado linguisticamente, e de visar, um verbo ainda pouco estudado, mas que tem se mostrado frequente em construções como visa passar, visa ganhar, visa aumentar, por exemplo, sem a preposição “a”, com o sentido, conforme Houaiss e Villar (2004, p.763), de “ter como objetivo; mirar, propor-se”. Para a atividade em questão, as professoras citaram os seguintes casos encontrados em notícias da mídia nacional:

(5) Em suma: “em vez de proteger a miscigenação a qualquer custo”, necessário “examinar

como as relações desiguais e hierárquicas foram reproduzidas dentro de um sistema que não visa à separação de raças como na América do Norte, mas uma suposta tendência à integração e à cordialidade.” (http://www.cartacapital.com.br/politica/monteiro-lobato-racismo-e-cne)

(6) Toda a pesquisa de linguagem realizada pelo autor visa reforçar os modos de expressão

no Mississipi à época da narrativa. (http://g1.globo.com/platb/fimdeexpediente/2011/01/11/queimem-os-livros/)

Como visto em Cunha e Tavares (2007, p.27), “para a gramática tradicional, a

transitividade é uma propriedade do verbo, e não da oração.” Contudo, casos como os evidenciados com a forma visar são indícios de que a transitividade vai além do verbo uma vez que afeta e é afetada por todos os constituintes oracionais e, no nível, extralinguístico, pelas intenções comunicativas. Por essa razão, Hopper e Thompson (1980 apud CUNHA e TAVARES, 2007) propõem uma noção de transitividade contínua e não categórica. Eles associam a transitividade a uma função discursivo-comunicativa, e é o falante que organiza essa transitividade (alta ou baixa), baseando-se em objetivos comunicativos e na percepção das necessidades informativas de seu interlocutor.

Sobre a transitividade do verbo visar, os gramáticos Cunha e Cintra (1989, p.536-537) afirmam que, no sentido de “ter em vista”, “ter por objetivo”, “pretender”, pode organizar-se com objeto indireto, introduzido pela preposição a, como visto em (5), ou com objeto direto, emprego, segundo os autores, “condenado por alguns gramáticos”. Várias são as ocorrências desse segundo caso:

(7) A estratégia visa pressionar o governo federal. (8) A medida visa abrir caminho para o debate do orçamento do período 2011/2012 em um

Parlamento dividido. (9) Secretaria da Saúde promete que não haverá diferença nos tempos de atendimento e que

a medida visa remunerar as unidades pela procura que já existe de pessoas com planos. (<http://g1.globo.com>)

Interessante observar a definição de visar, bem como sua transitividade, apresentada

em Houaiss e Villar (2004, p.763): “Visar 1. V t.d. pôr sinal de visto em [ORIGEM: do fr. Viser ‘examinar documento para validá-lo’] Visar 2. t.d. 1 dirigir a vista para; olhar 2 dirigir-se (projétil, tiro) para; t.d. e t.i. fig. 3 (prep. a) ter como objetivo; mirar, propor-se [ORIGEM: do fr. Viser ‘dirigir o olhar para’]”. Diante dessa classificação, a hipótese aqui levantada é a de que visar pode ter passado (ou está passando) por três padrões semântico-pragmáticos de uso. No primeiro, visar tem sentido [+ concreto], sujeito [+ animado] e [+ humano], complemento afetado, ausência de

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preposição entre verbo e complemento, como em (10). Em outro contexto de uso, visar manifesta estatuto semântico [- concreto], sujeito [+ animado] e [+ humano], complemento alvo/meta, presença de preposição entre verbo e objeto, como em (11). Já em usos como os evidenciados em (7), (8) e (9), visar mostra-se [+ abstrato], sujeito [- animado] e [- humano], complemento alvo e presença (ou não) de preposição entre verbo e objeto. (10) Ele visou o documento. (11) Ele visa ao sucesso.

No padrão visto, por exemplo, em (7), A estratégia visa pressionar o governo federal, verifica-se a construção de uma perífrase formada por VISAR (geralmente na 3ª pessoa do singular, no presente do indicativo) + Verbo principal (forma infinita). Parece haver uma elaboração cognitiva no sentido de uma informação mais concreta, como “dirigir o olhar para”, codificar a manifestação de um desejo ou o cumprimento de uma meta. Nesse contexto, a construção com visar parece prescindir de material interveniente, como uma preposição, por exemplo. Contudo, essa constatação não é categórica, porque, em contextos mais formais de uso da língua, como o acadêmico, a preposição eventualmente aparece, como em (12):

(12) Este artigo visa a sintetizar os principais resultados de pesquisas da gramaticalização de

a gente no português do Brasil (...) (http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/viewFile/2408/1882)

Surpreendente foi encontrar em um livro didático de LP para o Ensino Médio uma

nota, intitulada “Quando o uso muda a regra” (CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.296), com a seguinte informação acerca da transitividade de visar:

Quando o uso muda a regra

Há alguns verbos, como aspirar, atender, visar, que, embora apresentem, tradicionalmente, diferentes

regências para sentidos diferentes, na linguagem usual e na linguagem jornalística costumam ser empregados, indiferentemente, como transitivos diretos. Assim, tradicionalmente, o verbo visar, no sentido de “ter em vista, pretender”, exige a preposição a, como se vê nesta frase, por exemplo:

A reunião com representantes estrangeiros visava à ampliação das exportações de soja. Entretanto, é possível também encontrar esse verbo empregado assim: A reunião com representantes estrangeiros visava a ampliação das exportações de soja. (CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.296) Ao lado dessa nota, dizem os autores desse manual didático: “Professor: O uso desses

verbos com essa regência já consta do Dicionário Houaiss da língua portuguesa e é estudado no Guia de uso do português: confrontando regras e usos, de Maria Helena de Moura Neves (Editora Unesp).” (CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.296). Eis um exemplo de como o material pedagógico em questão tenta, de algum modo, apresentar conceitos ligados à gramática padrão da LP, sem, contudo, desconsiderar os condicionamentos causados pelo uso efetivo.

Diante dos casos encontrados, exemplificados em (7), (8) e (9), a maior incidência sem preposição sinaliza que a regência de visar está caminhando em direção a usos quase exclusivos com complemento direto, mesmo em contextos que tradicionalmente exigiriam

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complemento preposicionado. Essa mudança pode estar condicionada ao valor semântico que visar parece assumir em alguns contextos de uso, como o marcado em (7), em que já não funcionaria como verbo pleno, mas um auxiliar aspectual de meta ou de finalidade: “visa pressionar”. Saber se essa variação tem sua motivação apenas no emprego (ou não) da preposição ou se está relacionada a algumas mudanças semânticas pelas quais vêm passando o verbo visar, como citado acima nas acepções dessa palavra, e se tais mudanças estão afetando seu estatuto categorial, evidenciando um processo de gramaticalização, é algo a ser pesquisado. Essa discussão deixa claro que o estudo da regência verbal no contexto escolar não deve prescindir da análise da língua em uso, considerando que esta pode apresentar novas relações estabelecidas pelos falantes a verbos e nomes, por exemplo. Perceber e explicar essas variações é algo possível e viável numa aula de LP, como sugere outra proposta: o uso de a gente em função pronominal. Proposta 3: a função pronominal de a gente

A proposta apresentada por Souza e Lima (2011) centrou-se no estudo do uso discursivo e pragmático da expressão a gente em textos escritos em contextos formais de uso da língua. O texto selecionado foi a crônica “Crucificar Monteiro Lobato?”, de Lya Luft, publicada na revista Veja, no dia 10 de dezembro de 2010. Nessa crônica, observou-se a ocorrência da expressão a gente, na função de pronome pessoal, como se vê em (13): (13) No curso de uma vida somos submetidos a muita insensatez e muita tolice. Nem tudo é

Mozart ou Leonardo da Vinci, carinho de amigos e filhos, abraço da pessoa amada. Então, a gente vai ficando calejado, para não expor demais a alma como alguém a quem retiram a pele (...)

Vários são os estudos sobre a expressão a gente, em função verificada em (13), que

demonstram que tal expressão já não pode ser entendida como um substantivo precedido de artigo, mas como uma construção de valor pronominal. No exemplo em questão, essa expressão assume a função de sujeito, papel este que, segundo Borges (2004), é favorecedor do uso de a gente em concorrência com o pronome nós; além de o gênero do predicativo desse sujeito passar a assumir o gênero do referente (cf. ZILLES, 2007), como verificado em (13): Então, a gente vai ficando calejado (...). Isso é um indício de que nem mesmo a marca de gênero feminino da expressão a gente é mantida (LOPES, 2003, apud ZILLES, 2007), evidenciando o grau de abstratização dessa construção.

Sobre o estatuto gramatical de a gente, em consulta a algumas gramáticas do português, foram encontradas observações que merecem atenção. Na gramática de Cunha e Cintra (2007, p.296), como fórmulas de representação da primeira pessoa, encontra-se a seguinte afirmação: “no colóquio normal107, emprega-se a gente por nós e, também, por eu”. Já em Bechara (2006, p.166), tem-se a nota: “o substantivo gente, precedido do artigo a e em referência a um grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha, passa a pronome e se emprega fora da linguagem cerimoniosa108”. Mesmo na “Gramática de Usos do Português”, Neves (2000, p. 469) afirma que “na linguagem coloquial109 o sintagma nominal A GENTE110 é empregado como um pronome pessoal111”. 107 Grifo meu. 108 Grifo meu. 109 Grifo meu. 110 Grifo do autor. 111 Grifo do autor.

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É unânime, entre as gramáticas acima citadas, que a expressão a gente, com valor de pronome pessoal de primeira pessoa, é de uso exclusivo da linguagem coloquial. De fato, a maioria dos usos de a gente com valor pronominal ocorre nessa variedade, com sentido de nós ou até mesmo de eu. Nesse contexto de uso, a gente indica generalização, como afirma Neves (2000). Apesar da característica de indeterminação do sujeito, a forma a gente sempre indica o envolvimento da primeira pessoa no conjunto (cf. NEVES, 2000). Verifica-se que, mesmo em gêneros de registro mais flexível, como a crônica, o uso de a gente parece co-ocorrer com o pronome nós. No caso do texto de Lya Luft, tem-se o emprego de a gente, como indicado em (13), convivendo com o nós, como em (14):

(14) Que não comece entre nós, banindo um livro infantil de Monteiro Lobato, o mais

brasileiro dos nossos escritores: será uma onda do mal, uma nova caça às bruxas, marca de vergonha para nós.

Certamente, a avaliação valorativa social, que ainda recai sobre a expressão a gente, e o natural conservadorismo da escrita servem como mecanismos de contenção do emprego dessa construção na modalidade escrita formal do português do Brasil. No entanto, esse uso aparece licenciado em gêneros da esfera literária. Sobre isso, vale consultar o trabalho de Zilles112 (2007). Em pesquisa a um material didático, foi encontrado apenas um exercício envolvendo o uso de a gente. Nesse caso, afirma-se, também, que “na variedade padrão da língua, é comum o emprego da expressão a gente” (CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.91), e pede-se ao aluno para que substitua esse uso pelo pronome equivalente empregado na variedade padrão formal. Segue o exercício:

(CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.91)

Voltando à proposta de Souza e Lima (2011), cinco questões por elas elaboradas merecem atenção, porque conduzem a uma reflexão que pretende aproximar, e não excluir, duas concepções de língua: uma normativa, da gramática do português padrão, que considera os usos regulares de uma determinada variante linguística, e outra mais descritiva, que considera os usos efetivos que os sujeitos fazem no momento da interação verbal, recrutando, para isso, formas já existentes no sistema para desempenhar outras funções, a fim de atender a variados propósitos comunicativos. As questões são:

112 Zilles (2007), em “O que a fala e a escrita nos dizem sobre a avaliação social do uso de a gente?”.

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1. De acordo com a norma culta da língua, o pronome “nós” é utilizado para marcar a 1ª pessoa do plural. No entanto, existem variantes de uso. Identifique no 1º parágrafo um pronome que foi utilizado para substituir o pronome “nós”. (Identificar as funções gramaticais em uso) 2. Após identificar o pronome na questão 1, explique qual o provável motivo do uso desse pronome pela autora. Levante hipóteses sobre isso. (Identificar os elementos que demonstrem os argumentos defendidos pela autora, bem como reconhecer as estratégias discursiva) 3. Por que, em outros momentos do texto, a autora utiliza o pronome “nós” ao invés do pronome “a gente”? (Observar as possibilidades de uso da língua e a variação de registro a depender dos interesses comunicativos do autor/narrador/falante/escritor) 4. Sabendo que Lya Luft, além de romancista, é cronista da Revista Veja, meio de comunicação que possui um elevado número de leitores no Brasil, pressupõe-se que tenha domínio da norma culta da língua portuguesa. Por que ela utiliza em seu texto o “a gente”? (Perceber a adequação linguística de acordo com o contexto) 5. Sabendo que existe a classe gramatical denominada pronome, nos resta saber o que é e que funções essa classe pode exercer num determinado contexto de comunicação. Pesquise no livro didático e/ou numa gramática como são conceituados os pronomes e quais as possibilidades de usos, fazendo relação com os aspectos já estudados no texto em questão. (Conhecer e reconhecer a classe gramatical abordada nos seus diversos usos e como se dá sua categorização nas gramáticas e livros didáticos)

Para efetivar esse estudo que tem como objetivo garantir o uso e o conhecimento das estruturas gramaticais e lexicais da LP a serviço da interação verbal, as professoras Souza e Lima (2011) sugerem a seguinte proposta de produção textual:

6. Após ter feito uma leitura do texto de Lya Luft, você também deve ter formado sua opinião sobre o assunto. Produza um texto, do gênero carta do leitor, para que seja enviada para o editor da Revista Veja, deixando claro o seu ponto de vista sobre o assunto em questão. (Refletir sobre a língua, as idéias e seu espaço de interação, como também, desenvolver a capacidade de argumentação)

Considerações finais

Para concluir esta exposição, faz-se necessário voltar ao tema central deste estudo, que

teve como pretensão reconhecer a contribuição de um paradigma funcionalista ao ensino de LP no Brasil e observar em que medida o estudo reflexivo de uma gramática emergente pode ser ativado nesse contexto.

Reconhece-se que as discussões levantadas conduzem, obrigatoriamente, a uma reflexão que vai muito além do alcance deste trabalho. Contudo, os casos aqui citados e que procuraram analisar a língua em contexto efetivo de uso, com ênfase na modalidade escrita e na variedade padrão, sinalizam a aplicabilidade de pressupostos funcionalistas aos conteúdos ensinados nas aulas de LP. As atividades metalinguísticas e textuais elaboradas por Souza e Lima (2011) são exemplos empíricos disso.

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Maior contribuição, talvez, verifica-se na reflexão que uma visão funcional da língua é capaz de suscitar quando se coloca em questão a natureza fluida do sistema linguístico, logo, de sua gramática em contínua emergência, como considera Hopper (1991). Neste estudo, foram observados três casos: os usos de daí, que pode assumir funções adverbiais e textuais; de visar, que de verbo pleno parece assumir função auxiliar e sofrer alteração de regência motivada pelo sentido que assume em certos contextos; e, finalmente, do emprego de a gente com valor de pronome pessoal. Todos foram analisados com base em textos da modalidade escrita, produzidos em contextos formais de uso da língua. Portanto, trata-se de um estudo perfeitamente compatível com a gramática da língua padrão. Isso é uma evidência da possibilidade de conciliar à prática metalinguística pressupostos teóricos que consideram a multifuncionalidade das construções que compõem a gramática de uma língua natural.

Não significa, contudo, que a gramaticalização tenha de ser conteúdo ensinado na escola. Temos clareza de que esse conhecimento não deve ser tema de conteúdo didático, mas, antes, deve servir como arcabouço teórico ao professor para compreensão de fenômenos de mudança e variação linguística, a fim de auxiliá-lo nas explicações sobre os usos e as funções que nós, usuários da LP, fazemos em nossas interações comunicativas, seja na modalidade oral, seja na escrita.

Além disso, tais resultados das pesquisas em linguística estão se aproximando dos manuais e livros didáticos de LP, como visto em Cereja e Magalhães (2005) sobre a regência de visar, ou a respeito do emprego informal de a gente com valor de pronome de primeira pessoa. Logo, o professor tem de estar preparado para saber como lidar com isso em suas aulas.

Entretanto, nada disso será válido se o professor que está em sala de aula não assumir de maneira clara a determinação, via documentos legais e pressupostos teórico-metodológicos, acerca da real função do ensino de LP no contexto brasileiro. De acordo com tais determinações, a norma padrão deve ser o foco de estudo - afinal, como garantir o acesso a ela a quem não a vivencia em outros contextos? -, sem, contudo, desconsiderar um olhar reflexivo sobre as demais variedades linguísticas. Para tanto, a influências dos usos que fazemos da língua e a repercussão destes sobre sua organização interna é fator a considerar. Enfim, não se deve perder de vista que um estudo metalinguístico só tem seu valor teórico-prático quando entendido como complementador do propósito maior do ensino de uma língua: o desenvolvimento das competências de compreensão, interação e produção, materializadas nas atividades de leitura, fala, audição e escrita.

THE FLUID NATURE OF THE LANGUAGE AND STUDY OF PORTUGUESE: SIMILARITIES BETWEEN GRAMMATICALIZATION AND TEACHING

ABSTRACT: The fluid nature of language, marked by the natural variation and change of forms and functions of linguistic items and their impact on the teaching of Portuguese are the subject of this study. We present theoretical and didactic proposals that consider the language used in the written form and in markedly formal contexts. The theory follows the principles of European (HALLIDAY, 1978) and Dutch functionalism (DIK, 1989), as well as works by Brazilian functionalists (Cunha & TAVARES, 2007, NEVES 2001 [1990]). Emphasis is given to certain phenomena of language variation and change, viewed from the bias of grammaticalization (HEINE, CLAUDE, HÜNNEMEYER, 1991; LIMA-HERNANDES, 2009), for example, the function assumed by the textual item daí, the transitive verb variation of visar and the functional expression of pronominal a gente. This study aims to present didactic sequences dealing with phenomena of variation and change categories, from the perspective of an emerging grammar. The above mentioned proposals signal the possibility of a pedagogical treatment of the issues involved the study of grammar of the language in use, without, however, disregard the descriptions of standard grammar, but expanding them.

KEYWORDS: Functionalism; Grammaticalization; Teaching portuguese.

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Motivações sociointeracionais de fenômenos linguísticos e ensino de língua portuguesa: algumas contribuições

Edvaldo Balduino BISPO113

Maria Angélica FURTADO DA CUNHA114 RESUMO: Discutimos, neste trabalho, motivações de natureza sociocomunicativa e cognitiva implicadas na manifestação de alguns fenômenos linguísticos em diversas situações de uso. Objetivamos elucidar de que modo a consideração dessas motivações pode contribuir para o ensino de língua portuguesa na educação básica. Particularmente, focalizamos as estratégias de relativização e a transitividade. Consideramos a abordagem da gramática tradicional sobre esses fenômenos e mostramos que essa perspectiva não explica satisfatoriamente as diferentes formas de manifestação das orações relativas ou da transitividade oracional. Diante disso, analisamos fatores discursivo-pragmáticos envolvidos na codificação morfossintática dos aspectos gramaticais em foco. Para tanto, tomamos como referência os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e, como aporte teórico, o funcionalismo da vertente norte-americana, com base, sobretudo, em Givón (1990, 1995, 2001), Hopper e Traugott (1993, 2003), Furtado da Cunha, Oliveira e Martelotta (2003) e autores como Tomasello (1998, 2003) and Langacker (1987, 1998). Com isso, pudemos verificar que a consideração de diferentes motivações sociointeracionais e cognitivas podem contribuir para melhor compreensão e explicação de diversos fenômenos linguísticos, servindo, assim, de apoio/suporte ao processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE: Estratégias de relativização; Transitividade; Funcionalismo; Ensino de língua portuguesa. Introdução

A investigação de fenômenos linguísticos não é fato novo, como também não representam novidade os diversos usos que se fazem, na prática comunicativa cotidiana, de itens e construções gramaticais que fogem aos preceitos dos compêndios gramaticais mais conservadores. Esses usos emergem, entre outras razões, pela dinamicidade da língua, uma vez que ela é entendida, conforme postula a Linguística Funcional, como uma estrutura maleável, adaptada às situações de uso relacionadas às necessidades de expressão de seus usuários (FURTADO DA CUNHA, 2001).

Devemos considerar também que o emprego de termos, estruturas e construções em desacordo com o que se admite como padrão, muitas vezes, ocorre com certa regularidade, representando, assim, motivo de estudo. Nesse sentido, os fatos linguísticos podem ser explicados em termos das funções a que se prestam na interação comunicativa, daí, pois, a importância de se adotar uma perspectiva teórica que leve em conta o estudo da língua em uso.

A Linguística Funcional, em sua vertente norte-americana, defende uma investigação da língua sob o ponto de vista do contexto linguístico e da situação extralinguística. Assenta-se na premissa básica de que a língua é usada, sobretudo, para atender a necessidades comunicativas. Desse modo, a explicação para as estruturas gramaticais deve ser buscada no uso a que elas servem na interação social. Em outros termos, trabalha-se com a hipótese de que a forma da língua, de algum modo, reflete a função que desempenha nas interações sociocomunicativas diárias (FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007).

Essa maneira de se olhar o fenômeno linguístico muito tem a contribuir para melhor analisá-lo, apontando caminhos para a compreensão de diversas questões de análise linguística das quais os estudos gramaticais mais convencionais não têm dado conta ou para

113 Universidade Federal de Rio Grande do Norte. Email: [email protected] 114 Universidade Federal de Rio Grande do Norte. Email: [email protected]

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as quais não têm dispensado a devida atenção. Nessa linha, destacamos contribuições dos estudos funcionalistas no campo do ensino de língua portuguesa no sentido de subsidiar docentes em suas práticas pedagógicas. Esse subsídio pode dar-se tanto por meio do conhecimento acadêmico produzido pelos trabalhos desenvolvidos em que se pode fundamentar a atuação docente quanto pelas implicações práticas deles emanadas em termos de proposições e encaminhamentos para o trabalho em sala de aula propriamente dito.

E é sob essa ótica que discutimos, neste artigo, algumas motivações discursivo-pragmáticas e cognitivas implicadas na gênese de diversos fenômenos linguísticos, com o objetivo de apontar contribuições que o exame dessas motivações pode oferecer ao ensino de língua materna na educação básica. Consideramos orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais e fundamentamo-nos em pressupostos teórico-metodológicos do funcionalismo norte-americano, de inspiração em Givón (1990, 1995, 2001), Hopper e Traugott (1993, 2003), Furtado da Cunha, Oliveira e Martelotta (2003). Apresentamos considerações sobre o tratamento de dois tópicos gramaticais, a saber, as orações relativas e a transitividade, levando em conta seus contextos reais de uso e uma perspectiva escalar em termos de categorização/classificação desses elementos.

Aspectos teóricos

Adotamos, neste trabalho, a proposta defendida por autores como Tomasello (1998) e

Langacker (1987, 1998) de conjugação da Linguística Funcional à Linguística Cognitiva, resultando na abordagem denominada cognitivo-funcional. Essa perspectiva congrega os pressupostos do funcionalismo norte-americano, bem como os da agenda cognitivista, baseada em estudos de autores como Langacker (1987, 1991, 1998), Lakoff (1987), Johnson (1987), Lakoff e Johnson (1980), Talmy (1988), entre outros. Aplicamos, em especial, algumas das categorias centrais do funcionalismo, a saber, os princípios de marcação, iconicidade, expressividade, prototipicidade, informatividade e plano discursivo.

Em linhas gerais, o funcionalismo contemporâneo caracteriza-se por conceber a linguagem como um instrumento de interação social e por seu interesse de investigação linguística ir além da estrutura gramatical, buscando no contexto discursivo a motivação para os fatos da língua. Assim, um dos pressupostos básicos do funcionalismo, conforme defendem os autores referidos, é que o contexto de uso motiva as diferentes construções sintáticas, ou seja, a estrutura que as formas linguísticas assumem decorre da função comunicativa que desempenham na interação discursiva. Assim, a estrutura da língua será mais bem explicada se levarmos em conta a comunicação na situação social (FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007). Ancorados na Linguística Cognitiva, consideramos ainda o fato de que a expressão linguística também está estreitamente relacionada a motivações cognitivas, no sentido de que é por meio da língua que captamos, categorizamos, estocamos e transmitimos os dados da experiência humana.

Neste trabalho, utilizamos alguns pressupostos teórico-metodológicos da abordagem cognitivo-funcional, dentre os quais se destacam: a rejeição à autonomia da sintaxe; a ideia de que léxico e gramática não são níveis estanques, mas formam um continuum; a concepção de língua como um complexo mosaico de atividades cognitivas e sociocomunicativas; a visão de que uma língua consiste de um inventário de símbolos e construções e suas generalizações categóricas, usados para fins de comunicação; a asserção de que habilidades linguísticas, inclusive as sintáticas, podem ser explicadas nos mesmos termos que outras habilidades cognitivas complexas; a ideia de cada entidade linguística poder ser definida com relação à função a que ela serve nos processos reais de comunicação; a visão de que a semântica e a pragmática da comunicação são essenciais para se entender como as línguas evoluíram historicamente para atender a necessidades comunicativas.

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Assumimos, desse modo, que existe um paralelismo entre a categorização conceptual e a categorização linguística, ou seja, conhecimento do mundo e conhecimento linguístico não são separados (TAYLOR, 1998; FURTADO DA CUNHA et al., 2003). De acordo com essa visão, as línguas são moldadas pela interação complexa de princípios cognitivos e funcionais que desempenham um papel na mudança linguística, na aquisição e no uso da língua.

É nessa perspectiva que discutimos aqui motivações sociointeracionais e cognitivas que subjazem aos fenômenos linguísticos, mais particularmente ao emprego de estratégias de relativização e à transitividade, com a finalidade de demonstrar como essas motivações podem ser exploradas/utilizadas no ensino de língua portuguesa. Princípios de iconicidade, marcação e expressividade

Uma das categorias de análise centrais para o funcionalismo é o princípio de

iconicidade, segundo o qual há um isomorfismo entre estruturas morfossintáticas e suas funções semânticas e/ou pragmáticas correspondentes (GIVÓN, 1990). Ele compreende três subprincípios, a saber: quantidade de informação (segundo o qual quanto maior a quantidade de informação, maior a quantidade de forma linguística); proximidade entre os constituintes (o qual preceitua que os conceitos mais integrados no plano cognitivo se apresentam com maior grau de ligação morfossintática); e ordenação linear (que estabelece que os constituintes se ordenam, no tempo e no espaço, conforme pressões cognitivas). Desse modo, a iconicidade é estimulada por questões de clareza e transparência, de modo a reduzir a opacidade entre a forma linguística e seu correlato semântico e/ou pragmático.

Em direção oposta à do princípio de iconicidade está a tendência em economizar esforço. Zipf (1935, p. 29, apud HAIMAN, 1985, p. 167) observa que “alta frequência é a causa de pequeno tamanho”, e isso equivale a dizer que o que é familiar, nas línguas, recebe expressão reduzida. Nesse sentido, a dinâmica da gramática de uma língua natural está sujeita a pressões competidoras, oscilando entre motivações que ora concorrem para maior clareza, expressividade, ora atendem a necessidades de praticidade e economia.

Já o princípio de marcação diz respeito “à presença vs ausência de uma propriedade nos membros de um par contrastante de categorias lingüísticas” (FURTADO DA CUNHA, 2001, p. 60). Segundo Givón (1990), existem três critérios principais que podem ser usados para distinguir uma categoria marcada de uma não marcada, num contraste binário. São eles:

a) Complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais complexa – ou

maior – que a não-marcada correspondente; b) Distribuição de frequência: a categoria marcada tende a ser menos frequente,

portanto mais saliente cognitivamente, que a não-marcada; c) Complexidade cognitiva: a estrutura marcada normalmente é mais complexa

cognitivamente (em termos de atenção, esforço mental ou duração de processamento) que a correspondente não-marcada.

Por fim, também nos valeremos neste trabalho de um princípio proposto por Dubois e Votre (1994), o da marcação expressiva, cuja atuação serve, entre outras coisas, para equilibrar o esforço de codificação que provocam certos aspectos de um fenômeno discursivo. De acordo com os autores, esse princípio é cognitivamente motivado em termos da expressividade e da eficácia. Desse modo, diferentemente do que acontece com a marcação tal como é tratada pela tradição linguística, um procedimento discursivo marcado expressivamente pode: (a) ser menos elaborado e menos longo; (b) ser mais frequente; e (c) reduzir ou anular o esforço de codificação.

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Plano discursivo, prototipicidade e informatividade

A noção de plano discursivo refere-se à organização estrutural do texto e compreende as dimensões de figura e fundo, cuja formulação original se deve à Gestalt115. Essas dimensões relacionam-se à percepção e à cognição: as entidades que aparecem em primeiro plano (ou seja, as mais salientes) são percebidas com mais nitidez e facilidade, enquanto as que se encontram fora de destaque são menos aparentes e perceptíveis. Em termos de discurso, essa distinção equivale à oposição entre central e periférico.

Na Linguística Funcional, a categoria plano discursivo foi inicialmente aplicada ao estudo de narrativas. No texto narrativo, constitui figura a porção que contém a comunicação central e apresenta a sequência temporal de eventos concluídos, pontuais, afirmativos, realis, sob a responsabilidade de um agente. Já a parte que corresponde à descrição de ações e eventos simultâneos à cadeia da figura, incluindo a descrição de estados, a localização dos participantes da narrativa e os comentários avaliativos, representa fundo. Às porções figura e fundo de um texto associa-se um conjunto de propriedades, traduzidas pelos parâmetros do complexo de transitividade que apresentaremos na seção seguinte. Dito de outro modo, os componentes da transitividade desempenham funções discursivas comuns, que são as de assinalar as partes centrais e periféricas de um dado texto.

Já a prototipicidade tem sua origem na teoria da categorização, associada à psicologia cognitiva. Ela é, segundo Rosch (1973), possivelmente uma consequência de propriedades inerentes da percepção humana, como a saliência cognitiva. O representante prototípico de uma categoria reúne os traços recorrentes de que se compõe essa categoria. Dessa forma, a classificação dá-se por meio do elemento que exemplifica o protótipo, enquanto os outros elementos são classificados considerando as características mais próximas e as mais distantes em relação ao exemplar prototípico. Essa perspectiva não linear/categórica e não discreta permite o tratamento escalar e contínuo de aspectos gramaticais, como é o caso da transitividade, que discutimos neste trabalho.

Quanto à informatividade, ela tem a ver com o conhecimento que os interlocutores compartilham, ou supõem que compartilham, na interação verbal. De modo geral, a aplicação desse princípio se tem voltado para o exame do status informacional dos referentes nominais, de sorte que um Sintagma Nominal pode ser classificado como dado, novo, disponível e inferível.

Um referente será considerado dado, ou velho, se já tiver ocorrido no texto (referente textualmente dado) ou se estiver disponível na situação de fala (referente situacionalmente dado), como os próprios participantes do discurso. Quando for introduzido no discurso pela primeira vez, o referente será considerado novo. Se já estiver na mente do ouvinte por se tratar de um referente único (num dado contexto), será classificado como disponível, conforme se dá com “a lua”, “o sol”, “Florianópolis”. Será inferível o referente cuja identificação se der por um processo de inferência a partir de outras informações dadas, como ocorre com o termo “motorista” num texto que se refira ou trate de automóveis, por exemplo. Estratégias de relativização e transitividade: entre a norma e o uso

Nesta seção, apresentamos, de forma sucinta, o que registram compêndios gramaticais

mais conservadores sobre as estratégias de relativização e sobre a transitividade e o que

115 Gestalt ou psicologia da forma: doutrina filosófica de origem alemã que surgiu por volta de 1870. Esta doutrina traz em si a concepção de que não se pode conhecer o todo através das partes, e sim as partes por meio do conjunto.

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discutem os estudos linguísticos mais recentes, sobretudo os de orientação funcionalista, a respeito desses fenômenos.

Tratamento das estratégias de relativização

Via de regra, as gramáticas tradicionais não discutem os processos de construção da

cláusula relativa. Limitam-se a conceituar/definir as orações relativas e a apresentar sua classificação prototípica em restritivas e explicativas (ver CUNHA; CINTRA, 1985; ROCHA LIMA, 1994; BECHARA, 2009, entre outros). Além disso, na definição que apresentam, esses manuais não utilizam uma abordagem unificada, confundindo, muitas vezes, critérios de naturezas distintas: ora sintáticos, ora semânticos e/ou pragmáticos, ora os três simultaneamente, conforme discutido em Bispo (2007).

Em termos estruturais, os exemplares de orações relativas de que se ocupam os compêndios gramaticais correspondem ao modelo padrão, conforme descrito por Perini (1998) e caracterizado por apresentar:

a) um pronome relativo; b) estrutura oracional aparentemente incompleta, logo após o relativo; c) articulação de um elemento nominal + relativo + estrutura oracional aparentemente

incompleta. Pode ilustrar essa estrutura a oração destacada em (1), na qual há: i) pronome relativo

(que); ii) estrutura oracional aparentemente incompleta (procurou você), pois falta-lhe o sujeito (a pessoa); e iii) articulação de um elemento nominal + relativo + estrutura oracional aparentemente incompleta (A pessoa que procurou você), tudo isso representando o sujeito de estava nervosa.

(1) A pessoa que procurou você estava nervosa.

Também serve de ilustração o exemplo (2), em que, além da estrutura supracitada,

ocorre uma preposição antes do relativo (de), exigida pelo verbo (precisar), conforme assinala a tradição gramatical, caracterizando a relativa padrão preposicionada (RPP, na denominação de Bispo, 2009).

(2) O material de que eu preciso não está disponível.

Ocorre, porém, que, ao lado de construções relativas canônicas conforme

exemplificadas em (1) e (2), o Português Brasileiro (PB) também exibe estruturas não-padrão, como as ilustradas em (1a), (2a) e (2b).

(1a) A pessoa que ela procurou você estava nervosa. (2a) O material que eu preciso não está disponível. (2b) O material que eu preciso dele não está disponível.

Em (1a) e (2b), as relativas divergem do padrão porque o antecedente do pronome

relativo é copiado na oração subordinada, por meio dos anafóricos ela e ele, ao passo que, em (2a), ocorre a supressão (corte) da preposição de, regida pela forma verbal preciso. Essas relativas são denominadas, na literatura linguística, copiadora e cortadora, respectivamente.

Essas estratégias são tratadas, pela maioria dos manuais de gramática tradicional, como meros desvios da forma canônica e, por isso, devem ser evitadas. Entretanto, diversos estudos de orientação sociolinguística, como os de Mollica (1977), Tarallo (1983), Correa (1998), Pinheiro (1998), Barros (2000), Varejão (2006) e as pesquisas de cunho funcionalista

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empreendidas por Bispo (2003, 2007 e 2009) atestam que as relativas não-padrão são largamente empregadas por usuários da língua de diferentes níveis de escolaridade e em diferentes contextos comunicativos, inclusive alguns que envolvem maior formalidade.

Esses trabalhos apontam a predominância da ocorrência de estratégias de relativização não-padrão em contextos preposicionados, mais especificamente da relativa cortadora, que chega a apresentar uma média percentual acima dos 70%. Mesmo entre informantes com maior grau de escolaridade (pelo menos em alguns corpora analisados), o uso dessa estratégia superou a recorrência às demais, conforme constatou Bispo (2009) em sua pesquisa de doutoramento.

Diante dessa realidade, parece-nos clara a importância de se investigarem motivações para o emprego das estratégias não-padrão de construção relativa, além da necessidade de se reconsiderar o tratamento dado a essas formas no ambiente escolar, que, via de regra, segue orientações de tradição normativa, assumindo a cortadora e a copiadora como desvios do modelo padrão, sendo assim consideradas “erro”.

Transitividade: entre o verbo e a oração

A transitividade é tratada, pela maior parte dos compêndios gramaticais, como uma

propriedade do verbo, e não da oração. São transitivos aqueles verbos cujo processo se transmite a outros elementos, que lhes completam o sentido. Em contrapartida, nos verbos intransitivos, “a ação não vai além do verbo” (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 132). Em outras palavras, a classificação de um verbo como transitivo ou intransitivo ancora-se em critérios sintático-semânticos: presença ou não de um sintagma nominal (SN) objeto (complemento verbal), exigido pelo significado do verbo.

Embora faça uma distinção formal rígida entre verbos transitivos e intransitivos, a tradição gramatical reconhece o fato de que essa classificação nem sempre pode ser tão rigorosa. A esse respeito, Bechara (2009, p. 415) faz notar que “um mesmo verbo pode ser usado transitiva ou intransitivamente, principalmente quando o processo verbal tem aplicação muito vaga”, e apresenta os seguintes exemplos:

(3) Eles comeram maçãs (transitivo). (4) Eles não comeram (intransitivo).

Com isso, o autor chega à conclusão de que “a oposição entre transitivo e intransitivo

não é absoluta, e mais pertence ao léxico do que à gramática” (p. 415). Cunha e Cintra (1985, p. 134) registram a importância do contexto na definição da

transitividade do verbo: “a análise da transitividade verbal é feita de acordo com o texto e não isoladamente. O mesmo verbo pode estar empregado ora intransitivamente, ora transitivamente”. Isso mostra, portanto, que a transitividade não é uma propriedade intrínseca do verbo, mas depende de fatores que extrapolam o âmbito do sintagma verbal (SV).

Num estudo sobre a transitividade e seus contextos de uso, Furtado da Cunha e Souza (2007) assinalam que a conceituação desse fenômeno, tal como delineado pela gramática tradicional, apresenta pontos problemáticos. Segundo as autoras, “a transitividade não é uma propriedade inerente de um dado verbo”, visto que, conforme o contexto de uso, um mesmo verbo pode oscilar entre uma classificação transitiva ou intransitiva. Além disso, postulam que “o SN que é sintaticamente analisado como objeto direto pela gramática tradicional nem sempre funciona semanticamente como paciente da ação verbal, afastando-se do caso característico, ou prototípico”. Por fim, elas destacam que, para a definição da transitividade, “interagem elementos tanto de natureza sintática (presença/ausência de SN complemento), quanto semântica (papel semântico do objeto) e pragmática (uso textual do verbo)” (p. 28).

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As pesquisadoras observam que para a linguística funcional norte-americana, a transitividade é “uma propriedade contínua, escalar (ou gradiente), da oração como um todo. É na oração que se podem observar as relações entre o verbo e seu(s) argumento(s) – a gramática oração” (p. 29).

Segundo esse modelo teórico, o fenômeno da transitividade envolve um componente sintático e um componente semântico. Sintaticamente, uma oração transitiva descreve um evento que potencialmente implica, no mínimo, dois participantes: um agente (responsável pela ação), codificado como sujeito, e um paciente que é afetado por essa ação, codificado como objeto direto. Da perspectiva semântica, o evento transitivo prototípico é definido pelas propriedades do agente, do paciente e do verbo envolvidos na oração que codifica esse evento, quais sejam: agentividade (ter agente intencional, ativo), afetamento (ter um paciente concreto, afetado) e perfectividade (envolver um evento concluído, pontual), conforme destaca Givón (2001). Em princípio, a delimitação das propriedades desses três elementos, segundo enfatiza mesmo autor, é uma questão de grau.

Outra proposta funcionalista de abordagem da transitividade foi desenvolvida por Hopper e Thompson (1980), que, estudando a estrutura da narrativa e o modo pelo qual ela se identifica com determinadas formas gramaticais, formularam a transitividade como uma noção contínua, escalar, não categórica. Segundo esses autores, para que uma oração seja transitiva, não é necessária a ocorrência dos três elementos – sujeito, verbo, objeto. Para eles, a transitividade consiste de um complexo de dez parâmetros sintático-semânticos independentes, que focalizam diferentes ângulos da transferência da ação em uma porção distinta da oração.

Esses traços, conquanto sejam independentes, atuam em conjunto e articulados na língua, o que implica que nenhum deles isoladamente mostra-se suficiente para determinar a transitividade de uma oração. Os dez parâmetros dizem respeito à quantidade de participantes (um vs mais de um), à cinese (ação vs não ação), ao aspecto (perfectivo vs não perfectivo) e à pontualidade do verbo (pontual vs não pontual), à intencionalidade (intencional vs não intencional) e à agentividade do sujeito (agentivo vs não agentivo), à polaridade (afirmativa vs negativa) e à modalidade da oração (modo realis vs modo irrealis), ao afetamento (afetado vs não afetado) e à individuação do objeto (individuado vs não individuado). Quanto mais positivamente for marcada a oração (considerando-se os pares contrastivos de traços), mais alta ela se posicionará na escala da transitividade. Para melhor compreensão, apresentamos a seguir ocorrências extraídas do Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998):

(5) “aí eu não podia dizer que tinha sido eu que tinha trancado ele... né... que foi que eu

fiz... joguei a chave no lixo... e saí feito uma louca... na escola... procurando o diretor...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 51)

(6) “... num era aquele momento de ficar em Porto Alegre... então eu cheguei no aeroporto... peguei... pela primeira vez eu vi minhas malas...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 101)

(7) “... eu tava com muita fome porque eu num tinha comido muito bem no avião... então a Rodoviária de Porto Alegre tem umas lanchonetes assim super apetitosas... umas tangerinas... uns... uns bolos super transados...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 101)

A oração destacada em (5) localiza-se no ponto mais alto da escala de transitividade

(grau 10), pois apresenta todos os traços de alta transitividade, ou seja, é marcada positivamente quanto aos parâmetros de cinese, perfectividade e pontualidade do verbo, polaridade e modalidade da oração, agentividade e intencionalidade do sujeito, afetamento e individuação do objeto, além de conter dois participantes (eu e a chave). Representa, pois,

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conforme a perspectiva givoniana, um evento transitivo prototípico. Em (6), a oração em destaque apresenta grau 9 na escala da transitividade, sendo marcada negativamente apenas para o traço afetamento do objeto. Por fim, a oração destacada em (6) possui grau 3 de transitividade, pois só apresenta os traços de polaridade afirmativa e modalidade realis da oração, além de dois participantes (a Rodoviária de Porto Alegre e umas lanchonetes).

Considerando-se a abordagem do fenônemo feita pela gramática tradicional, os verbos das orações destacadas de (5) a (7) teriam a seguinte classificação: jogar e ter seriam tomados como transitivos, ao passo que chegar seria classificado como intransitivo.

Como se pode ver, a transitividade é concebida, sob a ótica da linguística funcional norte-americana, como uma noção gradiente, escalar, diferentemente da visão dicotômica em que se baseia a gramática tradicional. Admite-se, naquela perspectiva, a existência de uma oração transitiva prototípica, que reflete o afetamento total do objeto ou a transferência completa da ação de um participante para outro, e a partir da qual são analisados outros exemplares de orações com maior ou menor grau de transitividade, conforme se aproximem ou se distanciem do protótipo.

Assim, a abordagem funcional do fenômeno da transitividade apresenta outra dimensão para o estudo da oração e pode fornecer contribuições para o ensino de língua portuguesa no tocante à análise sintática, conforme discutiremos na próxima seção. Aspectos sociocognitivos, relativização, transitividade e ensino

Discutimos, nesta seção, motivações sociointeracionais e cognitivas no uso das

estratégias de relativização não-padrão do PB e na manifestação do fenômeno da transitividade, além de possíveis implicações para o ensino de língua portuguesa.

Conforme expusemos anteriormente, os trabalhos sobre a variação no uso das estratégias de relativização no PB revelaram a predominância da ocorrência das relativas não-padrão em detrimento da estratégia padrão, pelo menos em ambiente preposicionado, nos quais preponderou o emprego das cortadoras com percentuais acima de 70% (TARALLO, 1983; CORREA, 1998; BARROS, 2000; VAREJÃO, 2006; BISPO, 2007 e 2009).

Em sua pesquisa de doutoramento, Bispo (2009) constatou o uso quase categórico da cortadora, na modalidade falada: ela representou um percentual médio de 90% para as relativas em ambiente preposicionado, ao passo que a estratégia padrão teve apenas 6% de ocorrência. Mesmo na escrita (modalidade que comumente implica maior monitoramento no uso da língua), os dados mostraram que os percentuais das estratégias não-padrão quase se igualam aos números da relativa padrão: as primeiras ficaram com 47%, ao passo que esta última respondeu por 53% dos casos.

Diante dessa realidade, há que se indagar, entre outras coisas, as razões pelas quais um usuário da língua portuguesa, por exemplo, emprega(ria) (8) ou (9), em vez de (8a) e (9a). Ou mesmo, em outra situação, o que leva alguém a utilizar (10) em vez de (10a) ou (10b)? Em outros termos, que fator(es) motiva(m) a recorrência à cortadora ou à copiadora em detrimento da RPP ou o contrário?

(8) “não ... da pena de morte não ... só assassino ... assassinato eu sou ... porque isso é um

crime que não ... que eu não me conformo ... sabe?” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 250)

(8a) ... porque isso é um crime com que não me conformo. (9) “... então quando o cara chegou simplesmente botou chave em todos os corredores ...

todas as portas ... fechou ... depois das sete e quinze ninguém entrava mais ... só saía de dez e quinze ... então nós tínhamos um professor que nós não gostávamos dele ... era

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um professor de mecanografia e ele era louco ... o professor era simplesmente louco ...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 51)

(9a) ... então nós tínhamos um professor de quem nós não gostávamos ... (10) “No chão tem um tapete todo desenhado (estampado) no qual adoro deitar para relaxar

a coluna. Acho que é ‘só’!”(Corpus D&G Rio de Janeiro, língua escrita, informante 5) (10a) No chão tem um tapete todo desenhado (estampado) o qual adoro deitar para relaxar a

coluna. (10b) No chão tem um tapete todo desenhado (estampado) o qual adoro deitar nele para

relaxar a coluna.

Em busca de resposta(s) a essas questões, propomos primeiramente observar o emprego de cada uma das estratégias à luz de alguns princípios funcionalistas para melhor compreensão da(s) escolha(s) feita(s) pelos usuários da língua.

Do ponto de vista estrutural, a RPP é mais complexa que a cortadora por ser mais extensa que esta, envolvendo, pelo menos, um elemento fonológico a mais, no caso a preposição. Comparadas à copiadora, essas estratégias são menos complexas do ponto de vista da estrutura, em virtude da presença da cópia do referente do relativo.

Cognitivamente, a RPP também é mais complexa que a cortadora, justamente por envolver a articulação, por parte do falante, e o processamento, por parte do ouvinte, de um vocábulo a mais. Acrescenta-se a isso o fato de que a presença desse termo a mais demanda maior esforço por envolver a noção de regência, o que implica trabalho duplo: reconhecer que o termo regente requer preposição e identificar qual será empregada. A relativa em (8) e sua versão padrão em (8a) ilustram o que afirmamos.

Como é possível notar, a oração destacada em (8a) demanda maior esforço cognitivo tanto na produção quanto no processamento em comparação com a relativa presente em (8), pois, além de envolver a presença de uma sequência fonológica a mais em relação a esta, implica o conhecimento de que, conforme prevê a norma padrão da língua, o verbo conformar-se exige a preposição com, que, no contexto, antecederia o nome.

Para o caso da copiadora, conforme registrado por Bispo (2003 e 2007), à maior extensão na estrutura não corresponde maior grau de complexidade cognitiva. Isso significa dizer, por exemplo, que a oração destacada em (9), embora mais extensa que sua correlata padrão presente em (9a) demanda menor esforço cognitivo em seu processamento, sobretudo porque a presença do elemento correferente do antecedente do relativo (ele) deixa mais transparente/clara a relação verbo-complemento, não apenas pela maior proximidade entre eles, como também pela manutenção da linearidade da oração (dado que se conserva a ordenação SVO), o que não acontece no caso da oração destacada em (9a).

Essa incompatibilidade entre complexidade estrutural e cognitiva pode explicar-se pelo princípio da expressividade retórica ou da marcação expressiva, proposto por Dubois e Votre (1994). Dado que esse princípio acarreta um equilíbrio nas tarefas de codificação, no caso da estratégia copiadora, a repetição do antecedente do relativo facilita o processamento pelo interlocutor, tanto pela proximidade entre termos da cadeia sintática quanto pela linearidade da estrutura oracional. Desse modo, a maior complexidade estrutural da oração seria compensada pela sua maior expressividade.

É preciso reforçar que a mudança na posição de termos da oração relativa também contribui para a complexidade cognitiva na produção e processamento da RPP em relação à cortadora. Uma vez que, na ordem direta, a preposição sempre sucede o verbo, sua anteposição implica um custo cognitivo. Para constatar isso, basta tomar, então, grosso modo, as etapas para a estrutura padrão: seleção do verbo, identificação da regência, anteposição da preposição. Para a cortadora, teríamos: seleção do elemento que e seleção do verbo.

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A questão da regência, na verdade, desempenha papel fundamental nesse contexto. Uma vez que o falante constrói o enunciado em que será utilizada uma relativa sem saber possivelmente que verbo empregará (e muito menos sua regência), o uso do que no início da subordinada assegura o vínculo entre a oração anterior e a relativa, independentemente do verbo a ser empregado. Assim, o que, a priori, atua como elemento que permite a conexão entre as orações, fazendo com que a preposição acabe por não ser utilizada. Observemos, para melhor compreensão, a situação do exemplo (8): ao dizer “é um crime que não ...”, o informante já estabelece, por meio do uso do pronome relativo, a conexão entre a oração “isso é um crime” e sua subordinada (no caso, “que eu não me conformo”), sem que seja necessário saber previamente que verbo será empregado (e, por consequência, se ele requer ou não a presença de preposição). Garantida a conexão, o informante poderia utilizar qualquer verbo (aceitar, tolerar, perdoar, acostumar-se, etc.).

Por ser mais complexa estrutural e cognitivamente, a RPP é menos frequente que a cortadora, conforme atestam os trabalhos sobre as relativas aqui referidos. Assim, na perspectiva givoniana de marcação, a primeira estratégia é marcada em oposição ao caráter não-marcado desta última. Do ponto de vista da expressividade, porém, a situação se inverte: por se tratar de uma estrutura menos longa e, principalmente, por reduzir o esforço de codificação/decodificação, em nome da eficácia, a cortadora é mais expressiva que a sua correlata padrão, ou melhor, é marcada expressivamente.

Considerando as três estratégias à luz desses princípios (de marcação e de expressividade), é possível estabelecer uma gradação entre a estrutura relativa mais marcada e a não-marcada. Assim, a cortadora e a copiadora ocupariam os extremos de um continuum, respectivamente, como a estratégia não-marcada e a mais marcada, estando a RPP na posição intermediária. Em contrapartida, considerando o princípio da expressividade, teríamos a copiadora como a mais expressiva, a RPP como menos expressiva ou não-marcada expressivamente, enquanto a cortadora ocuparia a posição intermediária.

Com relação à iconicidade, a expectativa é que ela coincida com o princípio de marcação, no sentido de que estruturas marcadas sejam mais motivadas iconicamente em relação às correspondentes não-marcadas. Em se tratando das estratégias de relativização, é preciso fazer algumas ponderações.

Conforme registramos em sessão anterior, as formas e estruturas da língua resultam de fatores e pressões diversos, que envolvem, ao mesmo tempo, motivação e arbitrariedade. Além disso, reiteramos que a dinâmica da gramática de qualquer língua natural subordina-se a motivações competidoras, ora concorrendo para maior clareza, expressividade, ora atendendo a necessidades de eficiência e economia.

Desse modo, para o caso da copiadora, assumimos com Bispo (2003), que o aumento na estrutura da relativa em comparação à forma padrão justifica-se, no plano do discurso, como uma necessidade expressiva, estando a relação icônica forma/função associada à facilidade de produção/processamento, conforme discutimos para os casos de (9) e (9a).

Quanto à cortadora, à semelhança do que disse Bispo (2007), a motivação que leva o usuário da língua a empregar essa estratégia em detrimento da RPP parece ser de natureza oposta à da iconicidade, no caso o princípio da economia de esforço. Isso se dá pelo fato de que a cortadora elimina um elemento da cláusula relativa: a preposição.

Assim, do ponto de vista cognitivo, a relativa cortadora implica uma redução de esforço, tanto na produção (por parte do falante/escritor) quanto no processamento (por parte do ouvinte/leitor) em comparação com sua correspondente padrão, já que esta envolve não apenas um elemento linguístico a mais, mas também o conhecimento sobre regência e, em particular, o regime de cada verbo ou nome utilizado.

Além disso, a distância existente entre o termo regente e o termo regido, na oração relativa, bem como a alteração da linearidade da oração, de SVO para OSV ou OVS, contribuem

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para o enfraquecimento da relação icônica, ou melhor, para uma maior opacidade na relação de regência, o que acaba favorecendo o uso da cortadora ou o emprego de uma preposição diferente daquela prescrita pela norma padrão, conforme já é possível ver em (11), a seguir.

(11) “A parte da minha casa em que mais gosto é a sala-de-estar, pois é nela que se tem um

cantinho e uma luminária que é ideal para se ler um livro, assistir um filme etc.” (Corpus D&G Rio de Janeiro, língua escrita, informante 1) Por outro lado, caso a oração aparecesse na ordem direta, o usuário da língua

provavelmente não teria dificuldade de escolher a preposição a ser empregada, como é possível constatar em (11a).

(11a) Eu gosto mais da sala-de-estar (parte de minha casa).

Diante disso e voltando às questões postas no início desta seção, parece-nos claro que a

recorrência às relativas não-padrão em detrimento da RPP, em ambiente preposicionado, se deve a motivações de natureza sociointeracional (tais como necessidade de maior clareza, expressividade, propósitos pragmáticos, situação comunicativa) e cognitiva (em termos de redução/economia de esforço e atenção).

A consideração dessas motivações pode ter contribuição significativa para o ensino de língua portuguesa. Em primeiro lugar, permite ao professor admitir que, paralelamente à forma padrão de estruturação da oração relativa, existem outros modelos de organização, dos quais a cortadora e a copiadora são exemplares. Em segundo lugar, proporciona uma perspectiva diferente acerca das estratégias não-padrão de relativização, considerando-se que a recorrência a elas não representa mero desvio à norma padrão, mas se deve a fatores sociocomunicativos e cognitivos conforme já expusemos. Por fim, cria espaço para o trabalho com a variação linguística, por meio do qual o professor pode associar as ocorrências das relativas não-padrão e as da RPP às situações reais de uso, vislumbrando sempre a adequação da forma linguística ao contexto comunicativo em que ela será empregada. Com isso, o docente pode orientar os alunos a perceber, por exemplo, que, num texto escrito formal, deva-se dar preferência ao modelo padrão, ao passo que, em situações de informalidade ou até mesmo na fala formal, o emprego da cortadora e até da copiadora seja comum e perfeitamente aceitável. Tanto é assim que, mesmo em contextos formais de língua escrita, encontramos a ocorrência da relativa cortadora, como no exemplo abaixo, extraído da página virtual da Universidade Federal de Viçosa:

(12) Cursos a distância da UFV: educação de qualidade na hora e no lugar que você

precisa116. Quanto à transitividade, conforme mostramos em sessão anterior, a classificação

dicotômica dos verbos como transitivos e intransitivos parece não corresponder à (ou não dar conta da) diversidade de situações de usos dos verbos em variados contextos comunicativos. Casos há em que o verbo tradicionalmente classificado como transitivo difere consideravelmente do exemplar prototípico, como acontece em (13).

(13) “... já no último dia ... Eu fiquei sabendo que a gente tava concorrendo com três igrejas

só ... [...] e aí começou a ficar mais animado e tudo porque eu queria esse prêmio de todo jeito pra ela ... Lá pra igreja ... Né ...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 178)”

116 Disponível em: www.ufv.br. Acesso em: 23 jun. 2011.

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O verbo querer, à semelhança dos verbos de cognição e sensação, está semanticamente mais próximo de um estado do que de uma ação, pois tem sujeito experiencial e seu objeto (esse prêmio) não representa um paciente afetado, embora seja codificado como objeto direto prototípico.

De outro modo, o verbo da oração destacada em (14), embora seja tido pela gramática tradicional como intransitivo, participa da codificação de um evento que está mais próximo daqueles codificados por uma oração transitiva prototípica: envolve dois participantes, ação, perfectividade e pontualidade do verbo, agentividade e intencionalidade do sujeito, polaridade e modo realis da oração, individuação do objeto, situando-se, pois, no grau 9 da escala de transitividade.

(14) “fui à alfândega... peguei minhas malas e tomei um táxi e fui pra... rodoviária ... em

Porto Alegre... no centro de Porto Alegre...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 101)” O que justifica, então, diferentes formas de manifestação da transitividade, conforme

exemplificam as amostras (13) e (15)? Ou: o que faz com que verbos semanticamente distintos tenham a mesma codificação sintática? Ou ainda: por que os argumentos do verbo podem ou não vir expressos na oração? Que relação se pode estabelecer entre transitividade e organização textual? Que motivações estão aí implicadas?

(15) “... o pessoal lá da polícia... eles ofereceram um dinheiro né... como uma oferta pra

ajudar lá no... pra ajudar no convento né... e nas obras lá de caridade deles... então o padre... o padre não... o chefe lá da freira sabe?... que eu esqueci o nome... mas aí ele falou com ela e disse que tinham que aceitar né...tendo e vista que eles estavam oferecendo tanto dinheiro pra eles...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p.277)

Para cada questão, é preciso considerar diversos fatores envolvidos no fenômeno da

transitividade, bem como é necessário destacar com que acepção ele é aqui entendido. Primeiramente, reiteramos que, diferentemente dos estudos gramaticais tradicionais,

consideramos a transitividade como uma propriedade da oração, e não do verbo. Além disso, entendemos que ela consiste em um fenômeno que não pode ser visto como discreto, mas, sim, como gradiente, escalar e é numa perspectiva gradual que ela pode ser melhor estudada.

Quanto às questões elencadas anteriormente, assumimos com Furtado da Cunha e Souza (2007), a existência de uma oração transitiva prototípica, aquela que reflete o afetamento total do objeto ou a transferência completa da ação de um participante para outro, conforme se dá com a oração destacada em (5). A partir desse protótipo, são analisados outros exemplares de orações com maior ou menor grau de transitividade, conforme se aproximem ou se distanciem do modelo.

Nesse sentido, para o caso de (13), embora sujeito, verbo e complemento não apresentem as características do modelo transitivo (agentividade, ação e afetamento total do objeto, respectivamente), a oração é codificada do mesmo modo que a transitiva prototípica, como ilustrado em (5), por meio de um processo de extensão metafórica. Ou seja: semelhanças com o protótipo, como o envolvimento de um sujeito humano (eu) e de um objeto inanimado (esse prêmio), licenciam a codificação morfossintática de uma oração com baixo grau de transitividade. O uso do mesmo padrão sintático para representar cenas diferentes, mas relacionadas – dadas as propriedades do sujeito (humano) e do objeto (inanimado) – resulta em economia linguística.

É preciso considerar ainda que a análise da transitividade não se deve concentrar nos verbos de orações isoladas. Ao contrário, o contexto discursivo-pragmático é essencial

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quando se avalia a transitividade oracional porque é no funcionamento textual que um verbo potencialmente classificado como transitivo pode ou não ser usado com complemento, conforme se dá com o verbo aceitar, presente em (15). Embora seja classificado como transitivo, o verbo aceitar foi empregado sem o complemento, pois o termo que desempenharia esse papel constitui informação velha, fornecida no trecho anterior (dinheiro). Nesse caso, a omissão do objeto direto foi motivada pelo contexto comunicativo/discursivo, mais particularmente em virtude do status informacional desse argumento.

No que diz respeito à relação entre transitividade e organização textual, consideramos, com Hopper e Thompson (1980), que o grau de transitividade de uma oração reflete sua função discursiva característica, de modo que orações com alta transitividade assinalam porções centrais do texto, correspondentes à figura, enquanto orações com baixa transitividade marcam as porções periféricas, correspondentes ao fundo. Há, portanto, uma correlação forte entre a marcação gramatical dos parâmetros da transitividade e a distinção figura e fundo.

Levando essa questão para a sala de aula, percebemos que a abordagem funcionalista pode fornecer ao professor elementos que lhe permitem explicar mais satisfatoriamente ou, pelo menos, de forma mais consistente, os casos de orações classificadas como transitivas em que os verbos não codificam um evento transitivo prototípico. Isso implica, naturalmente, o entendimento de que a transitividade, à semelhança de muitos outros fenômenos da língua, não consiste de uma categoria estanque, mas é melhor estudada/analisada numa perspectiva gradual, escalar.

Desse modo, o professor pode mostrar aos alunos que a classificação dos verbos deve ser feita a partir de um item que exemplifica o protótipo, enquanto os outros elementos são classificados considerando suas características que mais se aproximam ou distanciam em relação ao exemplar prototípico. Com isso, os alunos podem ser levados a identificar, por exemplo, a ocorrência de verbos que figuram em orações mais prototipicamente transitivas e outros presentes em orações menos transitivas.

Além disso, o professor deve mostrar aos alunos o papel do contexto discursivo-pragmático, ressaltando como ele é fundamental na aferição da transitividade oracional, pois, embora um verbo possa ser potencialmente classificado como transitivo, é no seu funcionamento textual que essa potencialidade se concretiza ou não. Segundo afirma Furtado da Cunha (2010, p. 14):

É a recorrência de uso de um verbo nos contextos cotidianos de interação que fixa ou regulariza sua estrutura argumental. Logo, o estudo da transitividade deve ser baseado em textos de gêneros variados, orais e escritos, formais e informais, para que o aluno possa refletir sobre a utilização de um dado verbo e que contribuições ele traz para o texto em termos de efeitos semântico-pragmáticos e morfossintáticos.

É possível, portanto, oferecer aos alunos diferentes possibilidades de manifestação do

fenômeno da transitividade, procurando correlacioná-las aos mais variados propósitos comunicativos dos usuários da língua. Também é possível ao professor fazer o contraponto com o que expressam muitos compêndios gramaticais, de modo a proporcionar aos alunos uma reflexão sobre a língua, percebendo que a combinação de um dado verbo com um ou dois participantes não se trata de uma propriedade inerente ao léxico, e sim um fato altamente variável em dados reais de fala e de escrita.

Um trabalho assim conduzido, a nosso ver, pode obter mais êxito quanto à aprendizagem do conteúdo ministrado, uma vez que permite ao aluno refletir sobre o funcionamento da língua a partir da investigação de um fenômeno em particular. Também se

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mostra mais significativo porque toma como objeto de análise dados reais de uso da língua, o que aproxima o trabalho feito no ambiente escolar da realidade vivida pelo aluno.

Palavras finais

Por entender que a língua, como elemento dinâmico que é, permite ao usuário uma

gama de possibilidades de construções morfossintáticas e que, para melhor compreendê-las, é preciso observar suas manifestações em situações reais de interação verbal, procuramos, neste trabalho, fornecer contribuições advindas da investigação das motivações sociointeracionais e cognitivas de fenômenos linguísticos para o ensino de língua portuguesa na educação básica. Para tanto, examinamos dois aspectos em particular: as orações relativas e a transitividade.

Conforme aqui expusemos, o tratamento dispensado pelos compêndios gramaticais mais conservadores a esses dois fenômenos não dá conta das variadas possibilidades de usos que se fazem das estratégias de relativização ou das diferentes manifestações da transitividade oracional nas mais diversas situações de comunicação. Isso porque é no uso que se forjam os distintos arranjos morfossintáticos com vistas a expressar determinados sentidos e a atender a propósitos comunicativos específicos.

Nesse sentido, discutimos a importância da análise linguística numa perspectiva funcional como forma de melhor compreender os diversos usos a que servem as estruturas linguísticas bem como garantir ao usuário (educando) o acesso a uma variedade de recursos que o sistema linguístico lhe disponibiliza.

Sabemos que a abordagem aqui exposta não esgota a questão das relativas (padrão ou não-padrão) e da transitividade, tanto do ponto de vista teórico quanto do metodológico. No entanto, tendo em conta o tratamento desses temas em sala de aula, sugerimos que a língua, tal como ela é usada por falantes reais, envolvidos em interações comunicativas cotidianas, seja objeto de reflexão tanto por parte do professor quanto dos alunos. As considerações que aqui fizemos tiveram o intuito de contribuir para o processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa.

SOCIAL AND INTERACTIONAL MOTIVATIONS FOR LINGUISTIC PHENOMENA AND PORTUGUESE LANGUAGE TEACHING: SOME CONTRIBUTIONS

ABSTRACT: This paper addresses some contributions of functional linguistics to Portuguese language teaching in elementary and high school levels in terms of social and interactional motivations present in language usage. The analysis is specifically focused on relative clauses strategies and transitivity. We discuss the traditional grammar point of view on those issues and show that this approach cannot provide a fully satisfactory explanation for the current usage of relative strategies and transitive clauses process. The theoretical framework is mainly based on North American functionalism, as stated by Givón (1990, 1995, 2001), Hopper and Traugott (1993, 2003), Furtado da Cunha, Oliveira and Martelotta (2003) and other authors as Tomasello (1998, 2003) and Langacker (1987, 1998). We show that social, interactional and cognitive motivations for various linguistic phenomena may be helpful tools to improve mother language teaching to Brazilian students in those school levels.

KEYWORDS: Relative strategies; Transitivity; Functionalism. Portuguese language teaching. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, A. L. de. O uso da relativa cortadora na fala pessoense. 2000. 99f. Dissertação (Mestrado em Linguística), Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa - PB, 2000. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna/Nova Fronteira, 2009.

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Orkut: Linguagem oral em suporte escrito117

Viviane Yamane da CUNHA118

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo maior analisar o sistema de escrita utilizado na internet, mediante exame de textos retirados de fóruns do orkut. Para isso, o estudo baseou-se na teoria da gramática funcional (HALLIDAY, 1994; DIK, 1997; GIVON, 1990; explicitados em NEVES, 1997;2000), uma teoria que considera a variedade das funções linguísticas e seus modos de realização, o que exige um suporte teórico metodológico que veja a língua como um instrumento de comunicação. Os textos selecionados foram retirados fóruns do orkut que abordam temas polêmicos. Foram estabelecidos oito critérios para a análise do corpus: alternância de turnos, entonação, gírias, reparações e correções, mal-entendidos, repetição de palavras, marcadores conversacionais e emoticons. A análise desses critérios baseou-se em MARCUSCHI (2006, 2001, 1996), PRETI (2006), HILGERT (2005), URBANO (2003) e BARROS (2006). Com base nesse estudo, a linguagem das comunidades do orkut foi classificada segundo quatro características: as características específicas do orkut; as características do orkut que se aproximam muito da linguagem falada; as características da linguagem falada que se aproximam das do orkut, porém com regras um pouco diferentes; e as características da linguagem falada que foram adaptadas para o orkut.

PALAVRAS-CHAVE: Linguagem da internet; linguagem falada; linguagem escrita; orkut. Introdução

Ao estudar uma língua, deve-se levar em consideração a variedade das funções lingüísticas e seus modos de realização, o que exige um suporte teórico-metodológico que veja a língua como um instrumento de comunicação, assentando que ela não pode ser considerada um objeto autônomo. Essa é a noção de linguagem da Gramática Funcional, que analisa a estrutura gramatical com base na situação comunicativa inteira: a finalidade do ato da fala, o receptor, o interlocutor e o contexto.

Trata-se de uma teoria que tem como objetivo verificar a obtenção da comunicação por meio da língua, com centro na competência comunicativa de seus usuários.

Como diz Neves (1997), para que tal análise seja realizada devidamente, é necessário deixar de lado certas garantias de rigor (teorias sintáticas), uma vez que o foco é a língua em uso, com as determinações pragmáticas que a põem em função e com as interpretações semânticas a que chegam os enunciados.

O trabalho baseia-se em usos. No estabelecimento do corpus de análise, procurarou-se estabelecer um critério padrão (ou aquilo que seria padrão), pela média de usos. Busca-se alguma regularidade, levando-se em conta que o usuário da língua é ativo, ou seja, que suas produções de linguagem estão ligadas a um gênero específico de produção linguística e de situação de interação.

Dentro desse enfoque teórico, o estudo aqui apresentado tem como objetivo uma análise da linguagem do orkut, mediante análise de corpus. Para a análise, os textos foram delimitados àqueles que possuem uma elaboração mais complexa e que têm uma certa extensão, dispensando-se os que se fazem com apenas com algumas palavras, como ocorre em certas ocasiões nesse meio. Os textos foram retirados dos fóruns de comunidade do orkut, pois nele a escrita se encontra muito próxima da fala, podendo evidenciar como a língua portuguesa está sendo usada no Brasil e justificando a visão funcionalista. O trabalho se

117 Este trabalho foi realizado com apoio do Fundo Mackenzie de Pesquisa - MACKPESQUISA 118 UPM – Universidade Presbietriana Mackenzie. Programa de Pós-Graduação em Letras. São Paulo – SP – Brasil. 01302-907 – [email protected]

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enquadra, pois, na visão da Gramática de usos do português, de base funcionalista, na qual a autora (Neves, 2000, p. 13) afirma que a obra

parte dos próprios itens lexicais e gramaticais da língua e, explicando o seu uso em textos reais, vai compondo a ‘gramática’ desses itens, isto é, vai mostrando as regras que regem o seu funcionamento em todos os níveis, desde o sintagma até o texto.

A autora busca, em seu exame de usos,

buscar os resultados de sentido, partindo do princípio de que é no uso que os diferentes itens assumem seu significado e definem sua função, e de que as entidades da língua têm de ser avaliadas em conformidade com o nível em que ocorrem, definindo-se, afinal, na sua relação com o texto.

Como diz Neves (1997, p. 3), citando Gebruers (1987), a concepção funcionalista da

linguagem “é funcional porque não separa o sistema linguístico e suas peças das funções que têm de preencher, e é dinâmica porque reconhece, na instabilidade da relação entre estrutura e função, a força dinâmica que está por detrás do constante desenvolvimento da linguagem”.

O objetivo é responder esta pergunta: O orkut tende para a linguagem oral ou para a linguagem escrita? Metodologia

Foram selecionados textos contidos nos fóruns dessa rede social. Esses fóruns representam debates pelos usuários do programa e são encontrados nas Comunidades. Os textos selecionados foram escritos tanto por homens quanto por mulheres, de diferentes idades e regiões, e foram retirados de fóruns com temas propícios a discussões, como aborto, problemas com água, homossexualismo, criminalidade, etc.

Existem outros temas mais banais, como: preferências (eu gosto de chocolate); características físicas (eu tenho olhos azuis); características que determinam como a pessoa é psicologicamente ou o que faz (eu estudo administração). Esses temas não propiciam comentários mais elaborados, entretanto os tipos de comentários feitos nessas comunidades não podem ser descartados para uma pesquisa futura.

Para concretizar a análise, primeiramente se buscaram os textos na internet (fóruns do orkut), os quais foram selecionados de acordo com o tema. Foram estabelecidos oito critérios para análise: alternância de turnos, entonação, gírias, reparações e correções, mal-entendidos, repetição de palavras, marcadores conversacionais e emoticons. Com isso feito, os textos selecionados foram comparados com a conversação face a face. O resultado esperado é que o orkut esteja muito próximo da linguagem oral, apesar de ele ser realizado em suporte escrito. O orkut

O orkut foi criado em 24 de janeiro de 2004 pelo engenheiro da Google, Orkut Buyukkokten, e está disponível em mais de quarenta idiomas. O público alvo inicial eram os EUA, porém a maioria dos usuários atualmente é brasileira (mais de 50%, em maio de 2011, segundo dados demográficos do orkut119). O programa foi inspirado na teoria dos seis graus de separação. Tal teoria afirma que, no mundo, são necessários no máximo seis laços de

119 Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll. Acesso em 09 mai. 2011.

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amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas, ou seja, uma pessoa pode estar conectada a outra por uma rede de no máx

Observem-se as relações em destaque: para o individuo “E” estar ligado ao indivíduo “L”, são necessários três laços de amizade“G”, são necessários também três laços de amizade. No início, o cinco amigos intermediários quando um usuário (E) visitava a página pessoal de outro (G), isto é, uma trilha era exibida para ele por meio de links, como exemplifica o fluxogramE>F>C>L>D>H>G, indicando o caminho a ser percorrido para o encontro entre os usuário E e G. Entretanto o orkut não disponibiliza mais essa trilha.

O orkut é uma rede social com a finalidade de criar novas amizades e manter relacionamentos (antigos e novdessa rede, e, uma vez ingressado, o indivíduo podia enviar convites também. A partir de outubro de 2006, não era mais necessário ter um convite para participar. O cadastro poderia ser feito pelo e-mail pessoal.

Dentre os recursos utilizados no são fóruns que foram estruturalmente modificadocomunidades são oferecidos três recursos: o fórum, no qual se enconteúdo e é possível discutir e propor novos assuntos; a enquete, usuários; e a parte de eventos, na qual são divulgados encontros fora da rede. Em toda comunidade há um dono, e ele pode escolher até dez mediadministração. As comunidades mais comuns são sobre celebridades, as quais envolvem discussões, notícias, etc referentes ao tema da comunidade. Outro tipo de comunidade é de pessoas agrupadas segundo características que têm em comou “Somos de libra”. Por fim, há comunidades de pessoas que se definem em relação a pessoas anônimas, como por exemplo “eu conheço beltrano” ou “eu amo fulano”.

Marcuschi (2004, p. rápida e eficaz, “uma espécie de agreespecíficos. Seriam pessoas com interesses comuns ou que agem com interesses comuns num dado momento, formando uma rede de relações virtuais”. O autortecnologias não são antissociais, uma vez que se criam redes de interesses.

amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas, ou seja, uma pessoa pode estar conectada a outra por uma rede de no máximo cinco amigos intermediários.

Fluxograma de uma rede social

se as relações em destaque: para o individuo “E” estar ligado ao indivíduo “L”, são necessários três laços de amizade; para o indivíduo “L” estar li

ssários também três laços de amizade. No início, o orkutcinco amigos intermediários quando um usuário (E) visitava a página pessoal de outro (G), isto é, uma trilha era exibida para ele por meio de links, como exemplifica o fluxogramE>F>C>L>D>H>G, indicando o caminho a ser percorrido para o encontro entre os usuário E

não disponibiliza mais essa trilha. é uma rede social com a finalidade de criar novas amizades e manter

relacionamentos (antigos e novos). No início era necessário receber um convite para participar uma vez ingressado, o indivíduo podia enviar convites também. A partir de

outubro de 2006, não era mais necessário ter um convite para participar. O cadastro poderia mail pessoal.

Dentre os recursos utilizados no orkut destacam-se as “comunidades”. Comunidades foram estruturalmente modificados com a finalidade de facilitar o uso. Nas

comunidades são oferecidos três recursos: o fórum, no qual se encontra a maior parte do conteúdo e é possível discutir e propor novos assuntos; a enquete, queusuários; e a parte de eventos, na qual são divulgados encontros fora da rede. Em toda comunidade há um dono, e ele pode escolher até dez mediadores para auxiliáadministração. As comunidades mais comuns são sobre celebridades, as quais envolvem discussões, notícias, etc referentes ao tema da comunidade. Outro tipo de comunidade é de pessoas agrupadas segundo características que têm em comum, como “meus olhos são azuis” ou “Somos de libra”. Por fim, há comunidades de pessoas que se definem em relação a pessoas anônimas, como por exemplo “eu conheço beltrano” ou “eu amo fulano”.

Marcuschi (2004, p. 21) define comunidade virtual como uma formrápida e eficaz, “uma espécie de agregado social que emerge da rede iespecíficos. Seriam pessoas com interesses comuns ou que agem com interesses comuns num dado momento, formando uma rede de relações virtuais”. O autor afirma que essas novas tecnologias não são antissociais, uma vez que se criam redes de interesses.

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amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas, ou seja, uma pessoa pode estar imo cinco amigos intermediários.

se as relações em destaque: para o individuo “E” estar ligado ao indivíduo ; para o indivíduo “L” estar ligado ao indivíduo

orkut disponibilizava esses cinco amigos intermediários quando um usuário (E) visitava a página pessoal de outro (G), isto é, uma trilha era exibida para ele por meio de links, como exemplifica o fluxograma: E>F>C>L>D>H>G, indicando o caminho a ser percorrido para o encontro entre os usuário E

é uma rede social com a finalidade de criar novas amizades e manter os). No início era necessário receber um convite para participar

uma vez ingressado, o indivíduo podia enviar convites também. A partir de outubro de 2006, não era mais necessário ter um convite para participar. O cadastro poderia

se as “comunidades”. Comunidades s com a finalidade de facilitar o uso. Nas

contra a maior parte do que colhe opiniões dos

usuários; e a parte de eventos, na qual são divulgados encontros fora da rede. Em toda adores para auxiliá-lo na

administração. As comunidades mais comuns são sobre celebridades, as quais envolvem discussões, notícias, etc referentes ao tema da comunidade. Outro tipo de comunidade é de

um, como “meus olhos são azuis” ou “Somos de libra”. Por fim, há comunidades de pessoas que se definem em relação a pessoas anônimas, como por exemplo “eu conheço beltrano” ou “eu amo fulano”.

21) define comunidade virtual como uma forma de interação gado social que emerge da rede internetiana para fins

específicos. Seriam pessoas com interesses comuns ou que agem com interesses comuns num afirma que essas novas

tecnologias não são antissociais, uma vez que se criam redes de interesses.

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Análise da linguagem do orkut I. Características que refletem a linguagem geral

a) Alternância de turnos A conversação, prática social do dia a dia, realiza-se por meio de perguntas e

respostas, ou de asserções e réplicas. Cada uma dessas ações é chamada de turno, e os turnos se organizam pela regra básica “fala um de cada vez”, que é válida para a maioria das línguas, culturas e situações. (MARCUSCHI, 2001)

Marcuschi (2001, p. 89) define turno como uma

produção de um falante enquanto ele está com a palavra, incluindo a possibilidade do silêncio, que é significativo e notado. A expressão ter o turno equivaleria então a estar na vez, ter a palavra e estar de fato usando-a. Daí não se considerar como um turno a produção do ouvinte durante a fala de alguém, embora isso tenha repercussão sobre o que fala.

De acordo com Sacks, Schegloff e Jefferson (1974, apud MARCUSCHI, 2001, p. 20) há duas técnicas para esse mecanismo: a primeira é quando o “falante corrente escolhe o próximo falante, e este toma a palavra iniciando o próximo turno"; e a segunda é quando o “falante corrente para e o próximo falante obtém o turno pela autoescolha”.

E são duas as regras que fazem com que essas técnicas funcionem. A primeira é divida em três partes, que são:

a) o falante corrente escolhe o próximo falante, pela técnica I; b) o falante corrente não usa a técnica I de escolher o próximo, então qualquer

participante da conversação pode autoescolher-se como próximo pela técnica II; c) caso o falante corrente não escolha o próximo a falar, e nenhum outro se manifeste

pela autoescolha, aquele pode prosseguir falando. A segunda regra trata do caso (c), em que o falante prossegue falando, e as sub-regras

(a), (b) e (c) “reaplicam-se no próximo primeiro lugar relevante para a transição, e, se esta não ocorrer, assim se procederá, recursivamente, até que se opere a transição” (MARCUSCHI, 2001, p. 21).

No caso em que o número de participantes de uma conversação ultrapassar de três, poderá ocorrer o que Sacks, Schegloff e Jefferson (1974, MARCUSCHI, 2001, p. 22) chamam de cisma, que gera conversas paralelas.

Quando o falante deve iniciar o seu turno? Quais são os sinais que o falante corrente expressa para dizer que o seu turno acabou? Segundo Marcuschi (2001, p. 22), isso se realiza na “conclusão de um enunciado, a entonação baixa, o olhar fixo por alguns instantes, a pausa, uma hesitação”, porém, em alguns momentos, isso não é suficiente, pois pode ocorrer sobreposição de vozes.

Pode-se observar nos exemplos abaixo extraídos de fóruns do orkut como ocorre a troca de turnos entre os usuários:

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Exemplo 1

Nesse caso, o tópico do fórum são cotas em universidades. A conversação se passa

primeiramente entre Nívea Rock e Cotista, depois há a interferência de estel Shikorita, e apenas Nívea Rock interage com ela. Nota-se que Nívea Rock mantém o turno por mais tempo que os outros interlocutores, como ocorre em uma conversação face a face. Nívea Rock se manifesta mais entendida sobre o assunto discutido, impondo, assim, certa autoridade sobre os demais.

Exemplo 2

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No segundo exemplo, o tópico é o caso Isabela Nardoni, e a conversação se desenvolve entre duas pessoas, Ana e Psiquê. Suas mensagens são direcionadas, pois no início de cada mensagem há o nome da pessoa para quem a mensagem se destina.

No orkut verifica-se que existem turnos, porém, nele, as regras, apenas parcialmente as regras da conversação face a face. As mensagens podem ser direcionadas, como ocorre no exemplo 2 mas, não necessariamente será a pessoa selecionada que fará o comentário seguinte.

Em uma conversação face a face há a possibilidade de silêncio e o problema de sobreposição de vozes. No orkut isso não existe, pois os membros da comunidade podem não responder mais simplesmente por ter abandonado o fórum. Também não há a possibilidade de falarem dois ao mesmo tempo, uma vez que os textos são mostrados em sequência de chegada.

Com base no estudo realizado, observou-se que há intervalos de tempo entre os textos. No exemplo 1, o diálogo tem início no dia 29 de março, e a manifestação seguinte se faz no dia 3 de abril. Esse intervalo de tempo é comum entre diálogos que se passam em fóruns, pois o autor não é informado quando há um comentário novo, para isso, ele tem que visitar a página novamente.

Há casos em que o período de tempo é mais curto. A diferença pode ser de cinco, dez, trinta minutos, por exemplo. Apesar de, nesses casos, o tempo de resposta ser menor, considerando uma conversação face a face, o período é muito longo.

b) Entonação

A entonação pode ser registrada de várias maneiras, como:

Exemplo 3

Aqui, nota-se o alongamento da palavra “absurdo”. O alongamento ocorre na letra “o”.

Há também letras maiúsculas, como em MORREM POR NÃO QUERER COMER!. A usuária Bruna expõe sua inconformidade perante a fome no mundo por intermédio desses recursos.

Exemplo 4

Nesse exemplo há sinais de pontuação em grande quantidade, acompanhados de letras

maiúsculas: VAI PORQUE QUER!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!. O usuário Marcos Shinoda demonstra sua indignação e não aceita justificativas perante um erro que a sociedade condena, a criminalidade.

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202

As entonações não são feitas apenas no sentido negativo (criminalidade, fome, homicídios, etc.). Esse recurso é usado também para demonstrar animação, agitação, enfim, dar mais vivacidade ao comentário, e pode ser encontrado em comunidades que tratem de assuntos mais triviais como mangás120, ou algum seriado de televisão etc.

c) Gírias A gíria, que é tipicamente oral, é uma linguagem especial usada por certos grupos

sociais. Esses grupos criam um código que permite a seus membros comunicarem-se entre si. Falantes que não pertencem a tal grupo não compreendem a comunicação por completo. Em alguns casos, esse vocabulário pode ser conhecido por pessoas fora do grupo, tornando-se, assim, gíria comum, e perdendo seu caráter de signo de um grupo específico. (PRETI, 2006b)

Quando surge na escrita, a gíria reflete um recurso linguístico, ou seja, serve para dar maior realidade ao texto. Há a ocorrência em textos jornalísticos, porém os termos são transcritos entre aspas. A ausência de gírias em textos escritos reforçou a idéia de baixo prestígio social de quem faz uso delas (PRETI, 2006a).

A seguir encontram-se alguns exemplos retidos do orkut:

Exemplo 5

Exemplo 6

Exemplo 7

Nesses exemplos encontram-se as gírias: tá louco (exemplo 5); fala sério (exemplo 6);

homo, bichinha (exemplo 7). Além desses foram encontrados no corpus Afe ou aff, armar o barraco, patricinha, dar nomes aos bois, nossa (interjeição), cara (vocativo), sacou? (no sentido de entendeu), ixi (interjeição de espanto), mão de vaca, mixaria, jogar na cara, rachar (dividir despesa), fazer arte (fazer algo que não se deve), na real, Zé povinho, etc.

Foram ressaltadas aqui gírias comuns, ou seja, aquelas que não pertencem a um grupo específico de pessoas. Há comunidades no orkut que têm membros desses grupos sociais, como “No fundo eu sou gay” e “Servidores Linux121”, porém estes não fazem parte do corpus analisado.

120 Histórias em quadrinhos feitas em estilo japonês 121 Sistema operacional de computador

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203

d) Reparações e correções Os recursos de correções são bastante usados nas conversações, pois estas são

planejadas em tempo real, e tudo o que se realiza é em definitivo. Na escrita há correções, também, todavia nessa modalidade dispõe-se de mais tempo para a elaboração, podendo-se assim rever e corrigir os equívocos. (MARCUSCHI, 2001)

Em Sacks, Schegloff e Jefferson (1997, apud MARCUSCHI, 2001, p. 29), foi estabelecida a seguinte tipologia geral para o mecanismo de correção:

i. “autocorreção autoiniciada: é a correção feita pelo próprio falante após a falha”. Esse tipo de correção pode aparecer no primeiro turno, no final deste ou logo quando surge a falha; pode aparecer também no terceiro turno;

ii. “autocorreção iniciada pelo outro: é a correção feita pelo falante, mas estimulada pelo seu parceiro ou por outro”. A correção ocorre geralmente no terceiro turno;

iii. “correção pelo outro e autoiniciada: o falante inicia a correção, mas quem faz é o parceiro”. A correção é feita no turno seguinte ao turno que ocorreu a falha;

iv. “correção pelo outro e iniciada pelo outro: o falante comete a falha e que corrige é o parceiro”. Além desses tipos de correção, há aquelas que são feitas sem o estímulo do parceiro,

como ocorre nos exemplos abaixo:

Exemplo 8

O usuário Henry fez uma autocorreção. A falha foi um erro de ortografia. Em seu

primeiro comentário ele escreveu impecilhos, e depois, fez outro comentário apenas para corrigir seu erro, e escreveu empecilhos. Entre os comentários de Henry há um comentário de outra pessoa, que não diz nada a respeito do erro ortográfico cometido.

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Exemplo 9

Nesse exemplo, há outro caso de autocorreção. A usuária Luiza cometeu um erro de

digitação. Ao querer escrever que ela é contra as cotas, acabou digitando Eu sou cotas. Em um comentário posterior ela faz a correção. Entre o comentário do erro cometido pela usuária e a sua correção, existem três outros comentários de outros membros e um da própria Luiza.

Pelo fato de essas correções não terem sido espontâneas (por haver outros comentários entre o erro e a correção), pode-se concluir que os membros releram seus textos depois de algum tempo e verificaram suas falhas.

Exemplo 10

Nesse exemplo há uma situação diferente das anteriores. O usuário Rafael cometeu

dois erros, um relativo à quantidade de água gasta e outro referente ao tempo. O usuário Mapkoc questiona os dados fornecidos por Rafael e faz uma sugestão para o erro. Ao visitar o fórum novamente, Rafael se depara com seu erro apontado por outro usuário e faz as devidas correções. Esse é um caso de autocorreção iniciada pelo outro.

No orkut, a correção pode ser feita apenas após o autor postar seu comentário, não há a possibilidade de ele se autocorrigir no primeiro parágrafo. Nesse caso, há a tendência para a escrita, quando ele revê o seu texto, faz as devidas correções e o edita antes de enviá-lo. Apesar disso, existem as correções, e elas podem ser como em (b) e (d), ou seja, a correção nunca é realizada no mesmo “turno”.

e) Mal-entendidos Mal-entendidos ocorrem por questões de compreensão, eles se manifestam na

verbalização do texto, e tal problema não acontece devido à significação das palavras, mas sim devido ao sentido que elas assumem no enunciado (BAZZELA e DAMIANO, 1999, apud

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HILGERT, 2005). Tanto o falante quanto o ouvinte são responsáveis pela compreensão. O falante tem a função de produzir o enunciado, construir sentidos, e o ouvinte, de interpretá-los.

Os problemas de compreensão surgem num mesmo contexto cultural, por motivos variados, que são, segundo Hilgert (2005):

as interações entre usuários de variedades de uma mesma língua; os papéis sociais distintos, cultural e historicamente determinados, de homens e mulheres numa dada sociedade; as práticas sociais específicas de especialistas e leigos as quais, em boa parte, determinam suas rotinas discursivas; os valores socioculturais emergentes desses papéis e dessas práticas, os quais dão identidade aos sujeitos e configuram sua visão de mundo; o grau de conhecimento diverso que os interlocutores têm um do outro e do tema que abordam; o enfoque particular dado ao tema em pauta na interação. (p. 127-128)

Para ocorrer um mal-entendido, a compreensão (total ou parcial) tem que ser desviante

em relação à expectativa do outro. Isso pode ser esquematizado da seguinte maneira: o falante tem o seu turno, o ouvinte responde, e o falante considera sua resposta um mal-entendido, por isso reformula a sua fala, dando-lhe um enfoque mais preciso. O ouvinte não tem consciência de seu mal-entendido. Esse caso é denominado como “caso standard” por Weigand (1996, apud HILGERT, 2005)

No exame feito neste estudo, foram observados alguns casos de mal-entendidos:

Exemplo 11

O usuário Reynaldo Sombra faz um comentário sobre um post de Anônimo, que deu

seu ponto de vista (o qual não está explícito no exemplo em questão) sobre o filme Donnie Darko. Em seu comentário, Reynaldo Sombra assume não ter lido o que Anônimo escreveu por completo, pelo motivo de que ele já conhece a teoria apresentada (informação declarada apenas no seu segundo comentário). Além disso, Reynaldo Sombra faz uma crítica à teoria de Anônimo. Esse, por sua vez, questiona a atitude de Reynaldo Sombra não ter lido a teoria toda e mesmo assim fazer críticas. O usuário Reynaldo Sombra esclarece que já tem conhecimento da teoria, que ao começar a ler já sabia do que se tratava, e que por isso não leu até o final.

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No exemplo 12 a seguir, Luiza interpretou o que Ana Laura disse – pelo menos eu sou eu desocupado mas adimito, vocês inventam motivos bonitos para ficar de bobeira por aí - como se pertencer à comunidade de que ambas fazem parte fosse uma perda de tempo. Ana Laura, em seu outro comentário, desfez esse mal-entendido, de uma maneira mais agressiva, ao escrever: Se eu não me engano eu não disse que a comunidade era uma perda de tempo, e sim que vocês estão perdendo seu tempo aqui. Ela também apresenta hipóteses para ter ocorrido o mal-entendido, quando escreve que digitou errado, ou houve erro de interpretação por parte da leitora.

Exemplo 12

Exemplo 13

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Nesse exemplo, Diego expõe a sua opinião sobre um assunto polêmico, a pena de morte. A enquete do fórum era o favorecimento ou não desse tipo de punição, e Diego argumenta a favor, com uma visão radical. O usuário Marcos Shinoda, ao ler o comentário de Diego, questiona o motivo de tanto radicalismo, escrevendo: Isso tudo que você disse... Foi por puro ódio, revolta... ou apenas para intimidar os bandidos, fazer com que eles pensem bem antes de matar alguém?

Uma das características dos fóruns do orkut é que nem sempre os membros que participam da comunidade voltam ao fórum, ou seja, em algumas ocasiões o usuário deixa o seu ponto de vista sobre o tema e não retorna mais para fazer mais comentários ou responder perguntas (direcionadas a ele ou não). O usuário Marcos Shinoda, ao questionar o motivo de sua revolta, tenta desfazer um problema de compreensão. Entretanto, ele tem consciência dessa característica do orkut, por isso segue adiante concluindo (antes mesmo de Diego responder) que é por ódio e revolta – Eu tenho impressão que você disse isso apenas com sentimento de vingança. Em seu segundo comentário, Diego explica que sua opinião não é formada pelo sentimento de vingança, mas, sim, que ele acredita que intimidar os bandidos, impor-lhes o medo é um meio de diminuir a criminalidade.

Quando Marcos Shinoda faz a sua conclusão, ele tem chances de estar certo ou errado. Por ele fazer uma conclusão errônea, há uma situação de mal-entendido, que apenas é consolidada quando Diego escreve Vingança não exatamente (...) E sim ta mais pro lado de intimidação.

Se essa situação ocorresse em uma interação face a face, ou até mesmo por recursos de mensagens instantâneas, como o MSN, Marcos Shinoda faria a pergunta, Diego responderia e o primeiro daria continuidade à sua opinião, não havendo problemas de mal-entendido.

f) Repetições de palavras Encontram-se também no orkut casos de repetição de palavras. A definição dada por

Marcuschi (1996, p. 97) é a seguinte: “repetição é a produção de segmentos discursivos idênticos ou semelhantes duas ou mais vezes no âmbito de um mesmo evento comunicativo”

Essa característica da língua falada é uma das estratégias de formulação textual que assume um conjunto variado de funções: “contribui para a organização discursiva e a monitoração da coerência textual; favorece a coesão e a geração de sequências mais compreensíveis; dá continuidade à organização tópica e auxilia nas atividades interativas” (IMARCUSCHI, 1996, p. 95).

A diferença das repetições na fala e na escrita, segundo Marcuschi (2001), é que na escrita há a possibilidade de revisão e editoração, diminuindo as repetições. Na fala, nada se apaga e a repetição faz parte do processo de edição. O índice de repetição em um texto falado é alto, verifica-se, que a cada cinco palavras, uma é repetida.

As repetições podem ser categorizadas como fonológicas, de morfemas, de itens lexicais, de construções suboracionais e de orações. Elas podem ser próximas umas das outras ou estar distantes (após vários tópicos), e, em sua maioria, ocorrem em verbos e nomes, sendo raros os casos com adjetivos e advérbios. (MARCUSCHI, 2001)

Em textos do orkut, a frequência de repetições não é alta como na fala (de cinco palavras, uma é repetida), porém notou-se que existe essa característica.

No exemplo que segue verifica-se a repetição da oração não me incomodo que me chamem de.

Exemplo 14

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Esse tipo de recurso é utilizado para promover o envolvimento e para contra-argumentar (MARCUSCHI, 2001). O usuário Ricardo respondeu a seguinte pergunta proposta no fórum: Você se incomoda ser chamado de GAY por quem??, e ele argumenta que não se incomoda de ser chamado de gay, pois é uma característica dele, que equivale a ser chamado de carioca, estudante etc.

Exemplo 15

Nesse caso, verifica-se a repetição da palavra ela, que se refere a água. A função

básica desse recurso é de argumentatividade, reafirmação de que a água, de fato, não irá acabar. A maioria das orações elaboradas com a palavra ela conseguem ter a mesma força da oração elaborada com a palavra água: a água não (vai) acabar = vai sempre manter-se no planeta = não tem pra onde ir = não some.

Exemplo 16

Nesse caso, há repetições de dois termos: estudos e experiência, e na maioria dos

casos eles aparecem a cada cinco palavras. O usuário Rafael argumentou com a palavra estudos para mostrar o contraste entre os estudos dos quais a Shayene fala, porém sem demonstrar nada; depois contrasta os estudos que ele não mencionou, pois deu preferência para mencionar experiências; por fim, contrasta os estudos “furados”, com os estudos sobre Citotec.

A repetição da palavra experiência tem a função de facilitar a compreensão. O usuário Rafael intensifica o uso desse termo para se fazer claro sobre o assunto, ou seja, ele esclarece que os dados apresentados foram obtidos pela experiência pessoal de conhecidos.

g) Marcadores conversacionais Os marcadores conversacionais expressam alinhamento entre os interlocutores em um

discurso. Apesar de sua aparência supérflua, são de indiscutível significado e importância, pois são eles que ajudam na coerência e coesão do texto (URBANO, 2003).

Esse tipo de recurso, segundo Marcuschi (2001), pode ser dividido em três modalidades: o primeiro são os recursos verbais, que são representados pelas classes de palavras ou expressões estereotipadas; o segundo são os recursos não verbais, que são representados pelo olhar, pelos risos, pela gesticulação etc.; por fim, os recursos suprassegmentais, que são representados pelas pausas, pelo tom de voz, pela entonação, pela cadência, pela velocidade etc.

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Observem-se alguns exemplos de marcadores conversacionais retirados do orkut:

Exemplo 17

Exemplo 18

Nesses exemplos, observam-se os termos Eu também acho e eu acho,

respectivamente nos exemplos 17 e 18. Eles são marcadores de modalização e fazem parte dos recursos verbais.

Exemplo 19

Exemplo 20

Nesses casos, observam-se marcadores conversacionais que expressam entendimento:

né? (exemplo 19), concorda? e certo? (exemplo 20). Numa conversação face a face, eles servem para sintonizar os falantes, se eles estão envolvidos na conversa (RODRIGUES, 2003). Urbano (2003, p. 110) define esses marcadores como de teste/busca, que servem “de apoio para a progressão conversacional ou ‘busca de aprovação discursiva’”.

Os marcadores do exemplo 20 podem construir também sinais de saída ou entrega de turno (Marcuschi, 2001). Nota-se que esses termos aparecem por último em cada comentário, reforçando essa ideia.

Apesar de os recursos de marcadores conversacionais mais utilizados no orkut serem os verbais, há recursos não verbais também (risos), como se verifica nos exemplos 21 e 22:

Exemplo 21

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Os risos aqui são demonstrados de duas formas. A primeira é o registro gráfico de uma série de letras k, que são postas em sequência. A segunda é o registro gráfico do coletras h, u e a, em duas ordens diferentes (verbais, como gesticulação e olhares, não podem ser expressos pelo recursos suprassegmentais. Tal impossibilidade devevozes, apenas texto escrito, e esses recursos serem peculiares da fala. II - Características especificas do

Emoticon é uma palavra derivada dos termos ingleses ícone). Esse recurso se realiza por uma sequência de caracteres como: :) (sorriso) e :(

(tristeza). Outra maneira é a utilização de ícones ilustrativos como: (tristeza).

Esse recurso é utilizado para aproximar a escrita do comunicação demonstra sentimentos que não podem ser expressos em palavras, e muitas vezes nem ficam subentendidos no texto.

Em uma conversação face a face, há a presença de sujeitos envolvidos, podendoutilizar outros recursos para a expressão, como gestos e exprmesmo espaço e situação. Em um texto escrito não há essa centralização de espaço e situação, o que faz que o autor utilize outros recursos no lugar da linguagem não verbal, ou seja, que ele a represente de forma transcrita: “risque “nesses casos da internetimagem das ‘caretas’.”

Há duas maneiras de criar os

O recurso utilizado para criar um que formam “=D”, o que significa um sorriso grande.

Exemplo 22

Os risos aqui são demonstrados de duas formas. A primeira é o registro gráfico de uma , que são postas em sequência. A segunda é o registro gráfico do co

, em duas ordens diferentes (hua e hau), repetidamente. Os outros recursos não verbais, como gesticulação e olhares, não podem ser expressos pelo recursos suprassegmentais. Tal impossibilidade deve-se ao fato de o vozes, apenas texto escrito, e esses recursos serem peculiares da fala.

Características especificas do orkut: os emoticons

é uma palavra derivada dos termos ingleses emotionrealiza por uma sequência de caracteres como: :) (sorriso) e :(

(tristeza). Outra maneira é a utilização de ícones ilustrativos como:

Esse recurso é utilizado para aproximar a escrita do orkut à fala. Essa forma de demonstra sentimentos que não podem ser expressos em palavras, e muitas

vezes nem ficam subentendidos no texto. Em uma conversação face a face, há a presença de sujeitos envolvidos, podendo

utilizar outros recursos para a expressão, como gestos e expressões faciais centrados no mesmo espaço e situação. Em um texto escrito não há essa centralização de espaço e situação, o que faz que o autor utilize outros recursos no lugar da linguagem não verbal, ou seja, que ele a represente de forma transcrita: “risos”, “voz alegre”, etc. Barros (2006

internet, há uma presença relativa ou parcial dos interlocutores pela

Há duas maneiras de criar os emoticons:

Exemplo 23

O recurso utilizado para criar um emoticon no exemplo 23 são os caracteres do teclado que formam “=D”, o que significa um sorriso grande.

Exemplo 24

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Os risos aqui são demonstrados de duas formas. A primeira é o registro gráfico de uma

, que são postas em sequência. A segunda é o registro gráfico do conjunto de ), repetidamente. Os outros recursos não

verbais, como gesticulação e olhares, não podem ser expressos pelo orkut, assim como os e o orkut não reproduzir

emotion e icon (emoção e realiza por uma sequência de caracteres como: :) (sorriso) e :(

(tristeza). Outra maneira é a utilização de ícones ilustrativos como: (sorriso) e

à fala. Essa forma de demonstra sentimentos que não podem ser expressos em palavras, e muitas

Em uma conversação face a face, há a presença de sujeitos envolvidos, podendo-se essões faciais centrados no

mesmo espaço e situação. Em um texto escrito não há essa centralização de espaço e situação, o que faz que o autor utilize outros recursos no lugar da linguagem não verbal, ou seja, que

“voz alegre”, etc. Barros (2006, p. 65) conclui , há uma presença relativa ou parcial dos interlocutores pela

são os caracteres do teclado

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No exemplo 24, a usuária utilizou um recurso fornecido pelo orkut: um comando é digitado e, quando se envia a mensagem, aparece a imagem, que no caso é um emoticon com a língua de fora, demonstrando sua conformidade com um fato não desejado, o de não se casar.

Considerações finais

Observou-se que algumas características do orkut se aproximam muito da linguagem oral, como por exemplo o uso de gírias e de uma linguagem mais coloquial, o uso de marcadores conversacionais, as repetições de palavras com o objetivo de envolvimento, reafirmação, argumentação, etc.

Existem características do orkut semelhantes às da linguagem com regras um pouco diferentes. Isso acontece devido às limitações de meio eletrônico. É o que ocorre nas alternâncias de turnos. No orkut existem os turnos, mas eles não se realizam da mesma maneira que em uma conversação face a face. O mesmo ocorre com os mal-entendidos. Verificou-se que pode haver mal-entendidos devidos às limitações do orkut, pois, pelo fato de não se saber se certos membros voltam ao fórum para dar continuidade à discussão, pode-se fazer conclusões errôneas sobre o que fora dito.

Por outro lado, há características da linguagem oral que foram adaptadas pelo orkut. É o que se observa no caso da entonação. Em uma conversação face a face isso é realizado pela voz, mas, na adaptação ao orkut, são usados recursos como caixa alta, alongamento de letras e uso de sinais de pontuação em grande quantidade.

As reparações e correções também são típicas da linguagem oral e são adaptadas para esse meio eletrônico. Como se trata de textos escritos, que podem ser elaborados com maior precisão, além de também serem editados antes do envio, esse recurso ocorre com menos frequência no orkut.

Encontraram-se reparações e correções em relação a erros de ortografia, erros de digitação etc., correções que, obviamente, foram feitas em turnos posteriores aos dos erros cometidos. Além disso, notou-se que as correções realizadas no orkut não são imediatas, e se feitas pelo próprio autor (autocorreção), vêm em um comentário, nunca no mesmo (pelo fato de ele poder rever o texto antes de enviá-lo).

Notou-se também que, quando o erro é de digitação ou ortografia, a correção não é iniciada pelo leitor, mas sim pelo autor. Isso ocorre, talvez, por esse erro ser uma característica de textos digitais, portanto considerado pouco relevante, e também por ele não atrapalhar na compreensão do comentário. No caso do exemplo 10, houve o problema de compreensão, e, por isso, outro membro interveio e questionou os dados fornecidos. Nesse caso trata-se de uma correção iniciada pelo outro.

Por fim, há a característica específica do orkut, os emoticons. Sua função é colocar sentimentos naquilo que foi dito, que podem ser sentimentos de alegria, tristeza, raiva etc.

Vale lembrar a indicação de Chafe (1982, apud BARROS, 2006) de que a fala é fragmentada, pois é delimitada por pausas e se realiza por jatos de ideias, e de que na escrita há unidades mais longas, há tempo para formulação e o texto pode ser relido pelo leitor. Em suma, o que ele diz é que “o tempo da escrita é contínuo, aspectualizado pela duração, e o da fala, descontínuo, determinado pela pontualidade” (BARROS, 2006, p. 60). De acordo com essa indicação fica evidenciado que o orkut tem características que tendem para a escrita, embora não se possa ignorar as outras características como repetições, gírias, de que já se tratou.

Pelo fato de o orkut ter características que tendem para a linguagem escrita e características que tendem para a linguagem oral, nesse tipo de texto se encontram, como define Marcuschi (2004, p. 18), “falas por escrito”. Essas características não são importações

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de propriedades da fala, pois, segundo ele, “as novas tecnologias não mudam os objetos, mas as nossas relações com eles”. Crystal (2001, apud MARCUSCHI, 2004, p. 19) completa que a linguagem da internet consiste em uma pontuação minimalista, uma ortografia bizarra, uso exagerado de siglas, abreviaturas incomuns, e uma escrita semialfabética. Termina afirmando que “a internet transmuta de maneira complexa gêneros existentes, desenvolve alguns novos e mescla vários outros”.

Por fim, Barros (2006) conclui sua pesquisa afirmando que:

Os diferentes fatores apontados na caracterização da fala e da escrita mostram a existência, na realidade, de um bom número de posições intermediárias. Assim, as modalidades de língua aproximam-se ora da fala ora da escrita, conforme o critério considerado (p. 76).

De acordo com a autora, portanto, o orkut é um exemplo de texto em posição

intermediária. De fato, a conclusão dessa pesquisa é que dependendo do critério adotado, o orkut ora tendendo para a escrita (troca de turnos, reparações e correções, etc.) ora tendendo para a linguagem oral (gírias, marcadores conversacionais, etc.).

ORKUT: ORAL LANGUAGEM IN WRITTEN SUPPORT

ABSTRACT: The aim of this essay is to analyze the written system used on the internet, by examination of texts from orkut forums. For this, the study was based on the theory of functional grammar (HALLIDAY, 1994; DIK, 1997, GIVON, 1990; explained in NEVES, 1997, 2000) a theory that considers the variety of language functions and their modes of realization, that requires a methodological theoretical support which studies the language as a communication tool. The selected texts were removed from orkut forums that discuss controversial issues. We established eight criteria for the analysis of the corpus: turn-taking, intonation, slang, repairs and corrections, misunderstandings, repetition of words, conversational markers and emoticons. The analysis of these criteria was based on MARCUSCHI (2006, 2001, 1996), PRETI (2006) and HILGERT (2005), URBANO (2003) and BARROS (2006). Based on this study, the language of the orkut was classified according to four characteristics: the specific characteristics of orkut, orkut characteristics that are very close to spoken language, the characteristics of spoken language that are close to orkut, but with rules a little different, and the characteristics of spoken language that have been adapted to orkut.

KEYWORDS: Internet language; spoken language; written language; orkut. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, Diana Luz Pessoa de. Entre Fala e a Escrita: Algumas reflexões sobre as Posições Intermediárias. In: PRETI, Dino (Org.). Fala e Escrita em Questão. São Paulo: Humanitas, 2006. p. 57-77. HILGERT, José Gaston. Entendendo Mal-entendidos em Diálogos. In Preti, Dino (Org.). Diálogos na Fala e na Escrita. São Paulo: Humanitas, 2005 p. 119-153. MARCUSCHI, Luiz Antônio. A Repetição na Língua Falada como estratégia de Formulação Textual. In: KOCH, Ingedore G. Villaça (Org.). Gramática do Português Falado V. VI: Desenvolvimentos. São Paulo: Unicamp/FAPESP, 1996 p. 95-129. ______. Análise da Conversação. São Paulo: Ática, 2001. ______. Gêneros Textuais Emergentes no Contexto da Tecnologia Digital. In: _______ (Org.). Hipertextos e Gêneros Digitais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004 p. 13-67. NEVES, Maria Helena Moura. A Gramática Funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. Gramática de Usos do Português. São Paulo: Editora da UNESP, 2000.

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ORKUT, dados demográficos. Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll. Acesso em 09 mai. 2011. PRETI, Dino. A Gíria na Língua Falada e na Escrita: uma longa história de preconceito social. In: _______. Fala e Escrita em Questão. São Paulo: Humanitas, 2006a p. 241-257. ______. Variedade Lexical em Discursos Marginais: A Gíria de Grupo. In ______. Oralidade em Diferentes Discursos. São Paulo: Humanitas, 2006b p. 243-160. RODRIGUES, Ângela C. Souza. Língua Falada e Língua Escrita. In: PRETI, Dino (Org.). Análise de Textos Orais. São Paulo; Humanitas, 2003 p. 15-37. URBANO, Hudinilson. Marcadores Conversacionais. In PRETI, Dino (Org.). Análise de Textos Orais. São Paulo: Humanitas, 2003 p. 93-116.