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     udith evel

    MI HELFOU ULT

     ON EITOS ESSEN I lS

     

    l r luz

    E ITOR

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    Juclith Revel

    MI HELFOU ULT

     ON EITOS ESSEN I IS

    Tradução arlos Piovezani Filho e Nilton Milanez

    Revisão Técnica Maria do Ro ário Gregolin

     

    claraluz

    E ITOR

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    Título original:

      Vocabulaire de Foucault

    © Ellipses Édition Marketing S.A., 2002

    32, rue Bargue 75740 Paris cedex 15

    ISBN 2-7298-1088-9

    Diagramação

    Malra Valencise

    Capa

      ez e ez Mu timeios

    Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca do ICMC/USP

    R449m Revel, Judith.

    Michel Foucault: conceitos essenciais / Judith Revel ;

    tradução Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez,

    Carlo Piovesani. - São Carlos : Claraluz, 2005.

    96 p 21 cm

    ISBN 85-88638-09-6

    I. Teoria de Foucault. 2. Linguagem - Filosofia.

    3. Análise do discurso. L Gregolin, Maria do Rosário, trad.

    11.Milanez, Nilton, trad. 1II. Piovesani, Carlos, trad. IV. Título.

    EDITORA CLARALUZ

    Rua Rafael de A. Sampaio Vidal, 1217

    CEP 13560-390 - Centro / São Carlos - SP

    FonelFax: 16 3374 8332

    Site: www.editoraclaraluz.com.br

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou

    transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em banco de

    dados sem permissão da Editora Claraluz Ltda.

    ©

    Editora Claraluz, São Carlos, 2005

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     onceitos ssenciais

    Acontecimento 13

    Arqueologia 16

    Arquivo  

    Atualidade 20

    Aufklarung 22

    Autor 24

    Biopolitica 26

    Controle 29

    Corpos investimento politico dos 31

    Cuidado de si / Técnicas de si 33

    Disciplina 35

    Discurso 37

    Dispositivo 39

    Episteme 41

    E tética da existência .43

    tica 45

    Expêriencia 47

    Exterior 50

    Genealogia 52

    Governamentalidade 54

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    Guerra 56

    História 58

    Loucura 62

    Norma 65

    Poder 67

    Problematização 70

    Razão / Racionalidade 72

    Resistência /  r n gressão 74

    Saber / Saberes 77

    Sexualidade 80

    Subjetivação processo de 82

    Sujeito / Subjetividade 84

    Verdade / Jogos de verdade 86

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     present ção

    A obra de Miche l Foucault é complexa: nela

    freqüentem ente sublinhou-se a grande variedade dos campos

    de investigação, a espanto a escritura barroca, os empréstimos

    de outras disciplinas, as voltas e reviravoltas, as mudanças de

    terminologia, a vocação simultaneamente f.tlosófica e jornali tica

    - numa palavra, nada que possa parecer com aquilo que a

    tradição nos habituou a conceber como um sistema filosófico.

    Um

    voc bulário

    de Foucault que apresenta seus

    conceitos essenci is

    se inscreve ne sa mesma diferença, visto que ele apresenta,

    absolutamente ao mesmo tempo, a retomada de conceitos

    filosóficos herdados de outros pensamentos - e, por vezes,

    largamente desviados de seu sentido inicial -, a criação de

    conceitos inéditos e a elevação de termos emprestados da

    linguagem comum à dignidade f.tlosófica; por outro lado, é um

    voc bulário que emerge freqüentem ente a partir de práticas e que

    se propõe como gerador de práticas: isso ocorre porque um

      rsen l conceitu l

    é, literalmente gostava de lembrar Foucault),

    uma caixa de ferramentas . Enfim, antes de ser fixado

      T its et écrits foi publicado, no França, pela Gallimard 1994, 04 volumes),

    sob a direção de Oaniel Oefert e François Ewald com a colaboração de Jacques

    Lagrange. A edição brasileira de   itos e Escritos organizada por Manoel Barros da

    Morta, foi publicada, em 05 volumes, pela Forense Universitária, entre 2002 e

    2004.

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    definitivamente no livros o vocabulário se forja e e modela no

    laboratório da obra: o enorme

    corpus

    de textos esparsos reunidos

    sob o título de Ditos e escritos fornece desse ponto de vista um

    resumo formidável do trabalho de produção de conceitos que

    implica o exercício do pensamento; essa é a razão pela qual na

    maior parte dos casos se encontrará aqui neste livro referências

    aos textos de Ditos e escritos preciso igualmente sublinhar que

    esse laboratório do pensamento não é somente o lugar onde se

    criam conceitos mas freqüentemente também o lugar onde

    num movimento de reviravolta que está sempre presente em

    Foucault eles passaram num segundo tempo pelo crivo de uma

    crítica interna: os termos são portanto produzidos fixados

    depois reexaminados e abandonados modificados ou ampliados

    num movimento contínuo de retomada e de deslocamento.

    Este livro no qual proponho a definição de conceitos

    essenciais

    de Foucault sob a forma de um vocabulário em ordem

    alfabética precisou considerar tudo is o ao mesmo tempo. Tarefa

    árdua certamente já que procurei não estancar esse movimento

    e ao mesmo tempo pretendi tornar compreensível a coerência

    fundamental da reflexão foucaultiana. Foi necessário portanto

    operar escolhas freqüentemente difíceis a fim de tornar

    visíveis as passagens essenciais des a problematização contínua;

    e na medida do possível tentei tecer sistematicamente por

    meio de um jogo de remissões a trama a partir da qual o percurso

    filosófico de Foucault podia ser visualizado na complexidade

    de suas ramificações e de suas reviravoltas. o final de sua vida

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    Foucault gostava de falar de problematização e não entendia,

    nessa idéia, a representação de um objeto pré-existente nem a

    criação, por meio do discurso, de um objeto que não existe, mas

     o conjunto de práticas di cursivas ou não-discursivas que faz

    entrar alguma coi a no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui

    como objeto para o pensamento quer isso seja sob a forma da

    reflexão moral, do conhecimento cientifico, da análise política

    etc.) . Ele assim definia, portanto, um exercício crítico do

    pensamento que se opõe à idéia de uma pesquisa metódica da

     solução , porque a tarefa da filosofia não é resolver - aí

    compreendida a ação de substituir uma solução por outra - mas

     problematizar , não reformar, mas instaurar uma distância

    crítica, fazer jogar o desprendimento .

    A maior homenagem que podemos prestar, hoje, a

    Foucault é preci amente restituir ao seu pensamento sua

    dimensão problemática. Este livro, ao organizar um vocabulário

    com os  on eitos essen i is de Foucault muito mais do que um

    simples conjunto de termos enumerados segundo a ordem

    alfabética) é uma tentativa de reconstituir a diversidade dessas

    problematizações - sucessivas ou superpo tas - que fazem a

    extraordinária riqueza das análi es foucaultiana .

    Judith Revel

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     rg niz ção do livro

    Este livro apresenta  on eitos essen i is de Michel

    Foucault em forma de verbetes com três níveis assinalados por

    asteriscos

    definição de base

      definição particularizada que apresenta o desenvolvimentos

    do conceito na obra foucaultiana

      definição mais ampla que insere o conceito e o relaciona

    com outros no interior da obra de Foucault

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     ON EITOS ESSEN I IS

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    13

      contecimento

     

    Por acontecimento, Foucault entende, antes de tudo de maneira

    negativa, um fato para o qual algumas análises históricas se contentam

    em fornecer a descrição. O método arqueológico foucaultiano busca,

    ao contrário, reconstituir atrás do

     oto

    toda uma rede de discursos, de

    poderes, de estratégias e de práticas.

    É,

    por exemplo, o caso do trabalho

    realizado sobre o dossiê   ierre Rioiêre reconstituindo es e crime do

    exterior [...], como e fosse um acontecimento, e nada além de um

    acontecimento criminal, eu creio que nos falta o essencial . Entretanto,

    num segundo momento, o termo acontecimento começa a aparecer

    em Foucault de maneira positiva, como uma cristalização de

    determinações históricas complexas gue ele opõe   idéia de estrutura:

     Admite-se que o e truturali mo tenha sido o esforço mais sistemático

    para eliminar, não apenas da etnologia mas de uma série de outras

    ciências e até mesmo da história, o conceito de acontecimento. Eu

    não vejo guem pode ser mais anti-estrururalista do que eu . O

    programa de Foucault torna-se, portanto, a análise de diferentes redes

    e níveis aos quais alguns acontecimentos pertencem. E sa nova

    concepção aparece, por exemplo, quando ele define o discurso como

    uma érie de acontecimentos, colocando-se o problema da relação

    entre os acontecimentos discursivos e os acontecimentos de uma

    outra natureza (econômicos, sociais, políticos, institucionais).

    2

    Entretien avec Michel Foucault. Cahiers  u Cinéma n° 271 novembro de 1976.

    3

    Entrevista com Michel Foucault. In : Fontana A. e Pasquino P.Microfisica dei

    Potere: interventi politici Turin : Einaudi 1977. [Tradução brasileira: Verdade e

    poder.

    ln icrofisic

    do poder Rio de Janeiro: Graal 1985 p.5 .

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    /4

    Judith Revel

      a partir dessa inserção do acontecimento no centro de sua

    análises gue Foucault reivindica o estatuto de historiador - talvez,

    também porgue, como ele mesmo o observa, o acontecimento não

    tenha sido uma categoria filosófica, salvo, talvez, nos estóicos: O

    fato de eu considerar o discurso como uma

    sér

    de acontecimentos

    nos situa automaticamente na dimensão da história

    f

    ão sou

    historiador no sentido estrito do termo; mas os historiadores e eu

    temos em comum um interesse pelo acontecimento [...

     

    em a lógica

    do sentido, nem a lógica da estrutura são pertinentes para esse tipo de

    pesquisa? . É portanto, por ocasião de uma discussão com os

    historiadores gue Foucault dá a definição de acontecimentalização :

    não uma história aconteci mental, mas a tomada de consciência das

    rupturas da evidência induzidas por certos fatos. O gue se trata então

    de mostrar é a irrupção de uma singularidade não necessária: o

    acontecimento gue representa o enclausuramento, o acontecimento

    da aparição da categoria de doenças mentais etc,

      A partir da definição de acontecimento como irrupção de uma

    singularidade histórica, Foucault vai desenvolver dois discursos. O

    primeiro consiste em dizer gue nós repetimos sem o saber os

    acontecimentos, nós os repetimos na nossa atualidade, e eu tento

    apreender gual é o acontecimento sob cujo signo nós nascemos, e

    gual é o acontecimento gue continua ainda a nos atravessar . A

    acontecimentalização da história deve, portanto, se prolongar de

    maneira genealógica por uma acontecimentalização de nossa própria

    4 Dialogue sur le pouvoir. In: Wade, S. Che; Foucault . Los Angeles: Circabook,

    1978. [Tradução brasi leira: Diálogo sobre o poder. In: Ditos e Escritos vol. IV,p.

    258].

    5 La poussiêre et le nuage. In: M. Perrot (ed.) L impossible

    pr son

    Paris: Seuil,

    1980. [Tradução brasileira: A poeira e a nuvem. In: Ditos e Escritos vol. IV, p. 323-

    334 .

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

     

    atualidade. O segundo discurso c nsiste precisamente em buscar na

    nossa atualidade os traços de uma ruptura acontecimental - traço

    que Foucault localiza já no texto kantiano consagrado às Luzes, e que

    ele crê reencontrar por ocasião da revolução iraniana, em 1979 -

    porque está aí, sem dúvida, o valor de ruptura de todas as revoluções:

     A revolução [... ] corre o risco de banalizar-se, mas como

    acontecimento cujo próprio conteúdo é importante, sua existência

    atesta uma virtualidade permanente e que não pode ser esquecida .

     

    What s is Enlightenment ? In P. Rabinow (êd.). The Foucault Reader New York:

    Pantheon Books, 1984, e Qu est-ce que les lumiêres? In: Magazine Littéraire na

    207, maio de 1984. [Tradução brasileira: O que são as Luzes? In: Ditos e Escritos,

    vol. lI, p. 335-351).

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    udith evel

     rqueologi

    *0

    termo argueologia aparece três vezes nos título da obra de

    Foucault -

    ascimento da clínica Uma arqueologia do olhar médico

     1963),

    As

    palavras e as coisas Uma arqueologia das ciênciashumanas

     1966) e

    Arqueologia

    do saber

     1969) - e caracteriza até o final dos anos 70 o método de

    pesguisa do fJ.iósofo.Uma argueologia não é uma história na medida

    em que, como se trata de construir um campo histórico, Foucault opera

    com diferentes dimensões filosófica, econômica, científica, politica

    etc.) a fim de obter as condiçõe de emergência dos discursos de saber

    de uma dada época. Ao invés de estudar a história das idéias em sua

    evolução, ele e concentra sobre recortes históricos precisos - em

    particular, a idade clássica e o início do século XIX -, a fim de descrever

    não somente a maneira pela gual os diferentes saberes locais se

    determinam a partir da constituição de novos objetos gue emergiram

    num certo momento, mas como eles se relacionam entre si e desenham

    de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente.

    ** e o termo arqueologia nutriu, em dúvida, a identificação de

    Foucault com a corrente estruturali ta - na medida em gue ele parecia

    evidenciar uma verdadeira estrutura epistêmica da qual os diferentes

    saberes não teriam sido enão variantes -, sua interpretação é, na

    verdade, bem outra. Como lembra o subtítulo de

    As palavras e as

    coisas

    não se trata de fazer

    a arqueologia

    mas

    Nma arqueologia

    da ciência

    humanas: mais do que uma descrição paradigmática geral, trata-se de

    um corte horizontal de mecanismos gue articulam diferentes

    acontecimentos discursivos - o aberes locais - ao poder. Essa

    articulação, claro, é inteiramente histórica: ela possui uma data de

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

     

    nascimento - e o grande desafio consiste em encarar igualmente a

    possibilidade de seu desaparecimento, como na orla do mar um

    rosto de areia .

     

    a arqueologia , reencontra-se, ao mesmo tempo, a idéia da

      rcbê isto é, do começo, do princípio, da emergência dos objetos de

    conhecimento, e a idéia de arquivo - o registro desses objetos. Mas,

    da mesma maneira que o arquivo não é o traço morto do passado, a

    arqueologia visa, na verdade, ao presente: Se eu faço isso, é com o

    objetivo de saber o que nós somos hoje . Colocar a que tão da

    historicidade dos objeto de saber é, de fato, problematizar nosso

    próprio pertencimento, ao mesmo tempo, a um regime de

    discursividade dado e a uma configuração do poder. O abandono do

    termo arqueologia em proveito do conceito de genealogia , logo

    no começo dos anos 70, insistirá obre a necessidade de dirigir a leitura

     horizontal das discursividades para uma análise vertical- orientada

    para o presente - das determinações históricas de nosso próprio regime

    de discurso.

      es mO S et les choses Une archéologie des sciences humaines Pari: GaJlimard

    1966 [Tradução bra ileira: As palavras e as coisas Uma arqueologia das ciências

    humanas São Paulo: Martins Fonte 2000 p 536]

    8

    Dialogue ur le pouvoir op cit nota 4

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    Judith Revel

     rqu vo

    * Chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram

    conservados por uma civilização, nem o conjunto de traços que

    puderam ser salvos de seu desastre, mas o jogo das regras que, numa

    cultura, determinam o aparecimento e o desaparecimento de

    enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência

    paradoxal de

    acontecimentos

    e de

    coisas.

    Analisar o fatos de di curso no

    elemento geral do arquivo é considerá-Ios não ab olutamente como

    documentos

     de uma significação escondida ou de uma regra de

    construção), mas como monumentos: é - fora de qualquer metáfora

    geológica, em nenhum assinalamento de origem, sem o menor gesto

    na direção do começo de uma arcbê - fazer o que poderíamo chamar,

    conforme os direitos lúdicos da etimologia, de alguma coisa como

    uma arq/ICologia

    9

    **Da Historia da Loucura

     

    Arqueologia do Saber o arquivo representa,

    portanto, o conjunto dos discursos efetivamente pronunciados numa

    época dada e que continuam a existir através da história. Fazer a

    arqueologia dessa massa documentária é buscar compreender as uas

    regras, suas práticas, suas condições e seu funcionamento. Para Foucault,

    isso implica, antes de tudo, um trabalho de recuperação do arquivo

    geral da época escolhida, isto é, de todos os traço discur ivos

    susceptívei de permitir a reconstituição do conjunto das regras que,

    num momento dado, definem ao mesmo tempo os limite e as formas

    9 Sur I archéologie des cience. Réponse au Cercle d épistérnologie. ln:   ahiers

    pour I analyse n 9, 1968. [Tradução brasileira: Sobre a Arqueologia da Ciência.

    Resposta ao Círculo de Epi temologia. ln: Ditos e Escritos vol. l p. 95].

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

     

    da dizibilidade, da conservação, da memória, da reativação e da

    apropriação. O arquivo permite a Foucault, portanto, distinguir-se dos

    estruturalistas - pois se trata de trabalhar obre os discursos

    considerados como acontecimentos e não sobre o sistema da língua

    em geral -, e dos historiadores - uma vez que e esses acontecimentos

    não fazem, literalmente, parte de nosso presente, eles subsistem e

    exercem, nessa mesma substância no interior da história, um certo

    número de funções manifestas ou secretas . Enfim, se o arquivo é o

    corpo da arqueologia, a idéia de constituir um arquivo geral, isto é, de

    encerrar num lugar todo os traços produzidos, é, por sua vez,

    arqueologicamente datável: o museu e a biblioteca são, certamente,

    fenômenos próprios à cultura ocidental do século XIX.

     

    A partir do inicio dos anos 70, parece que o arquivo muda de

    estatuto em Foucault: em favor de um trabalho direto com os

    historiadores (em Pierre Riviere, de 1973; em L i1JtfJossib/e

    prison,

    sob a

    direção de Michelle Perrot, de 1978; ou com Arlette Farge, em

    Le

    désordre des fa JIi/Ies, de 1982), ele reivindica cada vez mais a dimensão

    subjetiva de seu trabalho ( E te não é um livro de história. A escolha

    que nele se encontrará não seguiu outra regra mais importante do que

    meu gosto, meu prazer, uma emoção ? ) e se entrega a uma leitura

    frequentemente muito literária do que ele chama, às vezes, de estranhos

    poemas . O arquivo funciona, a partir de então, mais como traço de

    existência do que como produção discursiva: sem dúvida, porque, na

    realidade, Foucault reintroduz nesse momento a noção de subjetividade

    em sua reflexão. O paradoxo de uma utilização não histórica das fontes

    históricas lhe foi muitas vezes abertamente censurado.

      La vie des hommes infâmcs In: Les cahiers du chemim n? 29 1977 [Tradução

    brasileira: A vida dos homens infames

    ln:

    Ditos e Escritos vol IV p 203]

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    Judith Revel

     tu lid de

     

    A noção de atualidade aparece de dua maneiras diferentes em

    Foucault. A primeira consiste em destacar como um acontecimento-

    por exemplo, a cisão entre loucura e não-loucura - não omente

    engendra uma série de discursos, de prática , de comportamentos e

    de instituições, mas se estende até nós. Todo es es acontecimento,

    parece-me que os repetimos. ós os repetimos em nossa atualidade e

    eu tento compreender qual é o acontecimento que pre idiu nosso

    nascimento e qual é o acontecimento que continua, ainda, a nos

    atravessar '. A passagem da arqueologia

    à

    genealogia será, para

    Foucault, a ocasião de acentuar ainda mais essa dimensão de

    prolongamento da história no presente. A segunda concepção de

    atua idade está estritamente ligada a um comentário que Foucault faz

    do texto de Kant, O

    que é o J u1JIinis1Jlo?

    em 1984

      2

    A análise insi te,

    então, sobre o fato de que colocar filosoficamente a questão de sua

    própria atualidade - o que faz Kant pela primeira vez - marca, na

    realidade, a passagem para a modernidade.

     

    Foucault desenvolve duas linhas de discurso a partir de Kant.

    Para Kant, colocar a questão do pertencimento a sua própria atualidade,

    é - comenta Foucault - interrogá-Ia como um acontecimento do qual

    se poderia falar em termos de sentido e singularidade, e colocar a

    questão do pertencimento a um nós que corresponde a essa

      Sexualité et pouvoir. Conferência na Universidade de Tókio 1978). Retomado

    em

    Dits et Écrits

    Paris: Gallimard,

     

    994, vol. 3., texte n. 233. [Tradução brasileira:

    Sexualidade e poder. Ln:  itos e Escritos vol. V, p. 56]

      2

    Ver: What s is Enlightenment ? op. cit. nota 6.

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

    21

    atualidade, isto é, formular o problema da comunidade da qual fazemos

    parte. Mas é preciso igualmente compreender que se retomamos hoje

    a idéia kantiana de uma ontologia crítica do presente, não é somente

    para compreender o que funda o espaço de nosso discurso, mas para

    desenhar os seus limites. Da mesma maneira que Kant busca uma

    diferença: qual a diferença que o hoje introduz em relação a ontem? ',

    devemos, de nossa parte, fazer emergir da contingência histórica, que

    nos faz ser o que somos, possibilidades de ruptura e de mudança.

    Colocar a questão da atualidade retoma, portanto, a definição do

    projeto de uma crítica prática sob a forma da ultrapassagem

    possível ,

      Atualidade e presente são, inicialmente, sinônimos. o

    entanto, uma diferença vai se acentuar cada vez mais entre o que, de

    um lado, nos precede mas continua, ape ar de tudo, a nos atravessar e

    o que, de outro lado, sobrevém, ao contrário, como uma ruptura da

    grade epistêmica a que pertencemos e da periodização que ela engendra.

    Essa irrupção do novo , que tanto Focault quanto Deleuze chamam

    igualmente de acontecimento , torna-se, assim, o que caracteriza a

    atualidade. O presente, definido por sua continuidade histórica, não é,

    ao contrário, interrompido por nenhum acontecimento: ele pode

    somente oscilar e se romper dando lugar à instalação de um novo

    presente. Se elas representaram um grande problema - particularmente

    no momento de publicação de  s p l vr s e s cois s (1966) - nos anos

    80, o conceito de atualidade permite a Foucault encontrar, enfim, o

    meio para integrar as rupturas epistêrnicas.

     

    What's is Enlightenrnent ? op. cito nota 6.

    14

    What's is Enlightenment

     

    op. cit. nota 6.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    22/93

     

    Judith Revel

     u klãrung

    *0 tema do

    Alijkltinl11g

    aparece na obra de Foucault de maneira cada

    vez mais insistente a partir de 1978: ele remete sempre ao texto de

    Kant,

    Was ist AuJklàmng? 1784

    15.

    A abordagem é complexa: e, de imediato, Foucault consigna

    à

    questão

    kantiana o privilégio de ter colocado pela primeira vez o problema

    filosófico ou, como o diz Foucault, do jornalismo filosófico ) da

    atualidade, o que interessa ao filósofo parece ser, antes de tudo, o

    de tino dessa questão na França, na Alemanha e nos países anglo-

    saxões.

     

    somente num segundo momento que Foucault transformará

    a referência ao texto kantiano numa definição dessa ontologia critica

    do presente , com a qual ele fará seu próprio programa de pesquisa.

    **Foucault de envolve, na verdade, três níveis de análise diferentes.

    O primeiro busca reconstituir de maneira arqueológica o momento

    em que o Ocidente tornou, ao mesmo tempo, sua razão autônoma e

    soberana: nesse sentido, a referência às Luzes se insere numa descrição

    que a precede a reforma luterana, a revolução copernicana, a

    matematização galileniana da natureza, o pensamento cartesiano, a física

    newtoniana etc.) e na qual ela representa o momento da realização

    cabal; mas, essa descrição arqueológica está sempre genealogicamente

    inclinada para um presente do qual nós participamos ainda: é preciso,

    portanto, compreender o que p de ser seu balanço atual, qual relação

    é preciso estabelecer com esse gesto fundador 16. O segundo tenta

    os Was ist Aufklãrung? In: Berlinische Monatsschrift dezembro 1784. Tradução

    brasileira: KANT, I.

    Que

     

    Esclarecimento ?

    In:

    Immanuel Kant: Textos Seletos

    Petrópolis: Vozes, 19851.

     

    Introdução a Canguilhem, G.

    On lhe Normal and lhe Pathological

    Boston: D.

    Reidel, 1978. Retomado em

    Dits et Écrits

    voI. 3, Paris: Gallimard, 1994, texto n

    219.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    23/93

    Michel Foucault: conceitos essenciais

     3

    compreender a evolução da posteridade do  ti kliinmg nos cliferentes

    países e a maneira pela qual ela foi investida em campos cliversos: em

    particular, na Alemanha, numa reflexão histórica e politica da sociedade

    ( dos hegelianos à Escola de Frankfurt e a Lukács, Feuerbach, Marx,

    ietzsche e Max Weber I~; na França, por meio da história das ciências

    e da problematização da cliferença entre saber/crença, conhecimento/

    religião, científico/pré-científico (Comte e o positivismo, Duhem,

    Poincaré, Koyré, Bachelard, Canguilhem). Enfim, o terceiro coloca a

    questão de nosso próprio presente: Kant não busca compreender o

    presente a partir de uma totalidade ou de uma realização futura. Ele

    busca uma cliferença: qual a cliferença que ele introduz hoje em relação

    ao ontem 18?   essa busca da cliferença que caracteriza não somente

     a atitude da modernidade , mas o  t os que nos é próprio.

    ***0 comentário de Kant esteve no centro de um debate com

    Habermas, infelizmente interrompido pela morte de Foucault, As

    leituras que os dois filósofos dão à questão das Luzes são

    diametralmente opostas, em particular, porque Habermas busca, na

    verdade, definir, a partir da referência kantiana, as conclições requeridas

    para uma comunidade lingüistica ideal, isto é, a unidade da razão crítica

    e do projeto social. Em Foucault, o problema da comunidade não é

    condição de possibilidade de um novo universalismo, mas a

    conseqüência direta da ontologia do presente: para o filósofo, colocar

    a questão do pertencimento a esse presente, não será mais,

    absolutamente, colocar a questão de seu pertencimento a uma doutrina

    ou a uma traclição; não será mais, simplesmente, colocar a questão de

    seu pertencimento a uma comunidade humana em geral, mas aquela

    de seu pertencimento a um certo nós , a um nós que se relaciona

    com um conjunto cultural característico de sua própria atualidade ? .

     7 Introdução a Canguilhem, G.

      lhe

      ormal

    nnd lhe

    Pathological op.cit. nota 16.

      What is Enlightenrnent? op. cit. nota 6.

     9 What s enlightenment?, op. cit. nota 6.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    24/93

     

    Judith Revel

     ut r

    *Em 1969, Foucault faz uma conferência sobre a noção de autor que

    se abre com essas palavras: Que importa quem fala? essa

    indiferença se afirma o principio ético, talvez o mais fundamental, da

    escrita contemporânea F . Essa critica radical da idéia de autor - e

    mai geralmente do par autor/obra - vale ao mesmo tempo como

    diagnóstico sobre a literatura (em particular, na tripla esteira de

    Blanchot, do novo romance e da nova crítica), e como método

    foucaultiano de leitura arqueológica: com efeito, e reencontramos

    frequentemente a teorização desse lugar vazio em alguns escritores

    gue Foucault comenta na época, é igualmente verdadeiro que a análise

    a que se dedica o filósofo em As Palavras e as Coisas procura, por sua

    vez, aplicar ao arquivo, isto é, à historia, o princípio de uma leitura das

     massas de enunciados ou planos discursivos , que não estavam

     bem acentuados pelas unidades habituais do livro, da obra e do

    autor ? . Desse ponto de vista, o início de A Ordem do Discurso dá

    continuidade à reflexão sobre um fluxo de fala que seria ao mesmo

    tempo historicamente determinado e não-individualizado, e que ditaria

    as condições de fala do próprio Foucault na sua aula inaugural no

    Col egede France

    Gostaria de perceber que no momento de falar uma

    voz sem nome me precedia há muito tempo 22.

    **Do ponto-de-vista do método, Foucault está aparentemente

    bastante próximo do que fez Barthes na mesma época, porque a análise

    estrutural da narrativa não se refere à psicologia, à biografia pessoal

      Qu est-ce qu un auteur? In: Bulletin de Ia Société Française de Philosophie junho-

    setembro 1969. [Tradução brasileira: O que é um autor? In: Ditos e Escritos vol. 111

    ~. 2641·

      Qu est-ce qu un auteur? op. cit. nota 20.

      L ordre du discours. Paris: Gallimard 1971. [Tradução brasileira: A ordem do

    discurso. São Paulo: Loyola 1996 p. 5] .

     

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    25/93

    Michel Foucaul(· conceitos essenciais  

    ou às características subjetivas do autor, mas às estruturas internas do

    texto e ao jogo de sua articulação.   provavelmente a partir da

    constatação dessa vizinhança metodológica (que o aproxima

    igualmente de Althusser, de Lévy- trauss ou de Durnézil) que se tem

    geralmente associado Foucault à corrente estruturalista. Em Foucault,

    entretanto, a busca de estrutura lógicas e tá marcada por uma veia

    blanchotiana particular ( a obra comporta sempre, por assim dizer, a

    morte do autor: no mesmo momento em que se escreve, se

    desaparece P ) que, além da simples referência à caducidade histórica

    de uma categoria que se havia acreditado até então incontornável, leva

    Foucault a uma análise das relações que envolvem a linguagem e a

    morte.

    À

    descrição do apagamento de uma noção da qual ele descreve

    historicamente a constituição e os rnecani mos, depois a dissolução (e,

    por i so, a noção de autor recebe o mesmo tratamento que aquela de

     sujeito ); Foucault acrescenta, assim, ao mesmo tempo a identificação

    de seu próprio estatuto de fala e a problematização de uma experiência

    da escritura concebida como passagem ao limite.

     

    Essa influência blanchotiana o levará, ao longo dos anos 60, e à

    margem dos grandes livros, a e deter sobre um certo número de

     casos literários que p ssuem todos um parentesco com a loucura (e

    estamos ainda bem longe das propo tas da

    História da LoIfCllra

    ou

    com a morte. Foucault comentará, então, Hôlderlin e erval, Roussel

    e Artaud, Flaubert e Klossowski, e até mesmo alguns escritores

    próximos do grupo

    Te Que ,

    sublinhando-lhes o valor exemplar: A

    linguagem, entâ , tomou sua e tatura soberana: ela surge como vinda

    de alhures, de lá onde ninguém fala; mas só existe obra se, remontando

    seu próprio discur o, ela fala na direção dessa ausência ? .

      3 Interview avec Michel Foucault,

      onniers Liuerãre Magasin

    Stockholrn, n 3,

    março de 1968. Retomado em Dits e Écrits vol.l, texto n 54.

    24.Le non du pére. In :

      ritique

    n 178, março de 1962. [Tradução bra ileira: O

    não do pai. In: Ditos e Escritos vol. I, p. 200].

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    26/93

     

    Judith Revel

      iopolítica

    *0 termo biopolítica designa a maneira pela qual o poder tende a

    se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do século

    XlX

    a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um

    certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos

    viventes constituidos em população: a biopolítica - por meio dos

    biopoderes locais - se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da

    higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida

    em que elas se tornaram preocupações políticas.

    ** A noção de biopolítica implica uma aruilise histórica do quadro

    de racionalidade política no qual ela aparece, isto é, o nascimento do

    liberalismo. Por liberalismo é preciso entender um exercício do governo

    que não somente tende a maximizar seus efeitos, reduzindo ao máximo

    seus custos, sobre o modelo da produção industrial, mas que afirma

    arriscar-se empre a governar demais. Mesmo que a razão do Estado

    tivesse buscado desenvolver seu poder por meio do crescimento do

    Estado, a reflexão liberal não parte da existência do Estado,

    encontrando no governo um meio de atingir essa finalidade que ele

    seria para si mesmo; mas da sociedade que vem a estar numa relação

    complexa de exterioridade e de interioridade em relação ao Estado 25.

    Esse novo tipo de governamentalidade, que não é redutível nem a

    uma análise jurídica nem a uma leitura econômica ainda que uma e

    25

    Naissance de Ia biopolitique.

    ln

    nnuaire du Collêge de France 79 année.

    Chaire d histoire des systêrns de pensée année 1978-1979 1979. [Tradução

    brasileira: Nascimento da biopolítica. 1n: Resumo dos Cursos do College de France

     /970-1982 . Rio de Janeiro: Jorge Zahar 1997 p. 911-

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    27/93

    Michel Foucault: conceitos essenciais

    27

    outra aí estejam ligadas , se apresenta, por conseqüência, como uma

    tecnologia do p der que se dá um novo objeto: a população . A

    população é um conjunto de seres vivos e coexistentes que apresentam

    traços biológicos e patológicos particulares e cuja própria vida é

    suscetível de ser controlada a fim de assegurar uma melhor gestão da

    força de trabalho:   A descoberta da população é, ao mesmo tempo

    que a descoberta do indivíduo e do corpo modelável, o outro grande

    nó tecnológico ao redor do qual os procedimentos políticos do

    Ocidente são transformados. Inventou-se, nesse momento, o que eu

    chamarei, por oposição à anátomo-política que acabei de mencionar,

    de biopolítica . Enquanto a disciplina se dá como anátomo-política

    dos corpos e se aplica essencialmente aos indivíduos, a biopolítica

    representa uma grande medicina social que se aplica à população a

    fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do campo do

    poder.

     

    A noção de biopolítica levanta dois problemas. O primeiro está

    ligado a uma contradição que se encontra no próprio Foucault: nos

    primeiros textos onde aparece o termo, ele parece estar ligado ao que

    os alemães chamaram no século XIX de PolizeiwissC schaft isto é, a

    manutenção da ordem e da disciplina por meio do crescimento do

    Estado. Mas, em eguida, a biopolítica parece, ao contrário, assinalar

    o momento de ultrapassagem da tradicional dicotornia Estado/

    sociedade, em proveito de uma economia política da vida em geral.

      dessa segunda formulação que nasce o outro problema: trata-se de

    pensar a biopolítica como um conjunto de biopoderes ou, antes, na

    medida em que dizer que o poder investiu a vida significa igualmente

      Les mailles  u pouvoir, conferência na Universidade da Bahia, 1976. Ln:

      arbárie

    n° 4 e n?5, 1981. Retomado em

    Dits et Écrits

    vol.   texto n° 297.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    28/93

     

    Judith Revel

    que a vida é um poder, pode-se localizar na própria vida - isto é,

    certamente, no trabalho e na linguagem, mas também no corpo, nos

    afetos, nos desejos e na sexualidade - o lugar de emergência de um

    contra-poder, o lugar de uma produção de ubjetividade que se daria

    como momento de desassujeitamento? esse ca o, o tema da

    biopolítica seria fundamental para a reformulação ética da relação

    com o político que caracteriza as últimas análises de Foucault; mais

    ainda: a biopolitica representaria exatamente o momento de passagem

    do político ao ético. Como o admite Foucault, em 1982, a análise, a

    elaboração, a retomada da questão das relações de poder e do

     agonismo entre relações de poder e intransitividade da liberdade,

    são uma tarefa política incessante [...] é exatamente esta a tarefa política

    inerente a toda existência social? .

     

    Le sujet et le pouvoir. In: Dreyfus H. e Rabinow. P. Michel Foucault: Beyond

    Structuralism and

      ermeutics

    Chicago: The University of Chicago Pres 1982.

     Tradução bra ileira: Michel Foucault uma trajetória filosófica: para além do

    estruturalismo e da hermenêutica Rio de Janeiro: Foren e Univer itária 1995].

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    29/93

    Miche Foucault: conceitos essenciais 29

     ontrol

    *0 termo controle aparece no vocabulário de Foucault de maneira

    cada vez mais fregüente a partir de 1971-72. Designa, num primeiro

    momento, uma série de mecanismos de vigilância gue aparecem entre

    os séculos XVIII e XIX e gue têm como função não tanto punir o

    desvio, mas corrigi-lo, e, sobretudo, preveni-lo: Toda a penalidade

    do século XIX transforma-se em controle, não apenas sobre aquilo

    gue fazem os indivíduos - está ou não em conformidade com a lei? -

    mas sobre aquilo gue eles podem fazer, gue eles são capazes de fazer,

    daquilo gue eles estão sujeitos a fazer, daquilo gue eles estão na irninência

    de fazer 28. Essa extensão do controle social corresponde a uma nova

    distribuição espacial e social da rigueza industrial e agrícola 29: é a

    formação da sociedade capitalista, isto é, a necessidade de controlar

    os fluxos e a repartição espacial da mão de obra, levando em

    consideração necessidades da produção e do mercado de trabalho,

    gue torna nece sária uma verdadeira ortopedi soci l para a gual o

    desenvolvimento da policia e da vigilância das populações são os

    instrumentos essenciais.

    **0 controle social passa não somente pela justiça, mas por uma

    série de outros poderes laterais (as instituições psicológicas, psiguiátricas,

    criminológicas, médicas, pedagógicas; a gestão dos corpos e a

    instituição de uma politica da saúde; os mecanismos de assistência, as

    associações filantrópicas e os patrocinadores etc.) gue se articulam em

    dois tempos: trata-se, de um lado, de constituir

    popul ções

    nas quais os

    28

    La vérité et les formes juridiques. Conferência na universidade do Rio de Janeiro,

    maio, 1973. Retomado em:   its etÉ rits vol.2, texto n° 139.[Tradução brasileira:

    A verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999].

     

    La vérité et les forme juridique , op. cit. nota 28.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    30/93

    30

    Judith Revel

    indivíduos serão inseridos - o controle é essencialmente uma economia

    do poder que gerencia a sociedade em função de modelos normativos

    globais integrados num aparelho de Estado centralizado - ; mas, de

    outro, trata-se igualmente de tornar o poder capilar, isto é, de instalar

    um sistema de individualizacão que se destina a modelar cada individuo

    e a gerir sua existência. Esse duplo aspecto do controle social governo

    das populações/governo pela individualização) foi particularmente

    estudado por Foucault no caso do funcionamento das instituições de

    saúde e do discurso médico do século XIX, mas também na análise

    das relações entre a sexualidade e a repressão no primeiro volume da

    História da Sexualidade A vontade de saber .

     

    ~Toda a ambigüidade do termo controle deve-se ao fato de

    que, a partir dos anos 80, Foucault deixa subentender que ele o entende

    como um mecanismo de aplicação do poder diferente da disciplina.

     

    em parte sobre esse ponto que se efetua a reviravolta programática

    da Histôria da Sexualidade, entre a publicação do primeiro volume 1976)

    e aquele dos dois últimos 1984): o controle do comportamento

    sexual tem uma forma completamente diferente da forma disciplinar

    que se encontra, por exemplo, nas escolas. ão se trata de modo

    algum do mesmo assunto ? A interiorização da norma, patente na

    gestão da sexualidade, corresponde ao mesmo tempo a uma

    penetração extremamente fina do poder nas malhas da vida e   sua

    subjetivação. A noção de controle, uma vez tomada independentemente

    das análises disciplinares, conduz então Foucault ao mesmo tempo

    em direção a uma ontologia critica da atualidade e a uma análise

    dos modos de subjetivação que estarão no centro de seu trabalho nos

    anos 80.

    30 Interview de Michel Foucault. In : Krisis rnars 1984. [Tradução brasileira:

    Entrevista com Michel Foucault. In : Di os e Escritos vol. I p. 338].

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    31/93

    Mjchel Foucault: conceitos essenciais

    Corpos investimento político dos

    * Houve, no curso da idade clássica, toda uma descoberta do corpo

    como objeto e alvo do poder ? : as análises de Foucault nos anos 70

    buscam antes de tudo compreender como se passou de uma

    concepção do poder em que se tratava o corpo como uma superfície

    de inscrição de suplícios e de penas a uma outra que buscava, ao

    contrário, formar, corrigir e reformar o corpo. Até o final do século

    XVIII, o controle social do corpo passa pelo castigo e pelo

    enclausuramento: Com os príncipes, o suplício legitimava o poder

    absoluto, sua atrocidade se desdobrava sobre os corpos, porque o

    corpo era a única riqueza

    acessivel P ;

    em contra partida, nas instâncias

    de controle que aparecem desde o início do século XIX, trata-se, antes

    de tudo, de gerir a racionalização e a rentabilidade do trabalho industrial

    pela vigilância do corpo da força de trabalho: Para que um certo

    liberali mo burguês tenha sido possível no nível das instituições, foi

    preciso, no nível do que eu chamo de micro-poderes, um investimento

    muito mais forte dos indivíduos, foi preciso organizar o

    esquadrinhamento dos corpos e dos comportamentos= .

    ** Foi um problema de corpo e de materialidade - uma questão de

    física - que proporcionou a grande renovação da época: nova forma

    de materialidade tomada pelo aparelho de produção, novo tipo de

    contato entre esse aparelho e o que o fez funcionar; novas exigências

    impostas aos indivíduos como forças produtivas [...] é um capítulo na

     

    Surveiller e/ Punir. Pari: Gallimard, 1975, p. 138. [Tradução brasileira: Vigiar e

    punir. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987J.

     

    La prision vue par un philosophc (rançais. In: L Europeo n° 1515, abril de 1975.

    [Tradução brasileira: A prisão vista por um filósofo francês. In :

    Di/os e Escritos

    vol.

    [V, p. 154J.

      Sur Ia sellette. In : Les Nouvelles Littéraires n? 2477, março de 1975. Retomado em

    D its e É crits vol. 2, texto n° 152.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    32/93

     

    Judith Revel

    história do

    corpo ? .

    Sobre essa base, Foucault vai desenvolver sua

    análise em duas direções: a primeira corresponde a uma verdadeira

     física do poder

    u

    como a designará mais tarde o filósofo, uma

    anátomo politica

    uma

    ortopedia social

    isto é, um estudo das estratégias e

    das práticas por meio das quais o poder modela cada indivíduo desde

    a escola até a usina; a segunda corresponde, por sua vez, a uma biopo/ítico

    isto é,

    à

    gestão política da vida: não se trata mais de redomesticar e de

    vigiar os corpos dos indivíduo, mas de gerir as populações ,

    instituindo verdadeiros programas de administração da saúde, da higiene

    etc.

    ***Quando Foucault começa a pesquisar a sexualidade, ele toma,

    entretanto, consciência de duas coisa : de uma parte, é a partir de uma

    rede de somato poderque nasce a sexualidade como fenômeno histórico

    e cultural no qual nós nos reconhecemos J , e não a partir de uma

    penetração moral das consciências: é preciso, portanto, fazer sua história;

    de outra parte, a atualidade da questão das relações entre o poder e os

    corpos é essencial: pode-se recuperar seu próprio corpo? A questão é

    ainda mais pertinente na medida em que Foucault participa, na mesma

    época, das discussõe sobre o movimento homossexual e que é essa

    luta pelos corpos que faz com que a sexualidade seja um problema

    polftico P . O corpo representa desde então um foco da resistência ao

    poder, uma outra vertente dessa biopolítica que se torna o centro

    da análises do filó ofo no final dos anos 70.

     

    La societé punitive. In :  nnuaire du Collêge de

      rance

    1972-1973. [Tradução

    brasileira: A sociedade punitiva. Resumo dos Cursos do College de France  1970-

    1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 41].

     5

    Les rapports de pouvoir passent à   intérieur des corps. In: La Quinzaine Littéraire

    n° 247, janeiro de 1977. Retomado em Dits et Écrits vol. 3, texto n? 197.

     6 Sexualité et politique. In :

    Combat

    n 9274, abril de 1974. [Tradução bra ileira:

    Sexualidade e política. ln: Ditos e Escritos vol. V, p. 26-36].

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    33/93

    Michel Foucault· conceitos essenciais

    33

      uidado de si Técnicas de si

     

    o início dos anos 80, o tema do cuidado de S1 aparece no

    vocabulário de Foucault no prolongamento da idéia de

    governamentalidade.   análise do governo dos outros segue, com

    efeito, aquela do governo de si, isto é, a maneira pela qual os sujeito

    se relacionam consigo mesmos e tornam possível a relação com o

    outro. A expressão cuidado de si , que é uma retomada do

    epimeleia

    heauto« que se encontra, em particular, no Primeiro A cebíades de Pia tão,

    indica, na verdade, o conjunto das experiências e das técnicas que o

    sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se a si mesmo. o período

    helenístico e romano sobre o qual se concentra rapidamente o interesse

    de Foucault, o cuidado de si inclui a máxima délfica

    gf1âtbi seautou

    mas

    a ela não se reduz: o epime eia beauto« corresponde antes a um ideal

    ético fazer de sua vida um objeto de

    tekhnê

    uma obra de arte) que a

    um projeto de conhecimento em sentido estrito.

      A análi e do cuidado de si permite, na verdade, estudar dois

    problemas. O primeiro consiste em compreender, em particular, como

    o nascimento de um certo número de técnicas ascéticas a partir do

    conceito clás ico de cuidado de si foi, posteriormente, atribuído ao

    cristianismo. enhuma habilidade técnica ou profissional pode ser

    adquirida, em exercício; nem se pode aprender a arte de viver, a technê

    to« biou

    em uma ascese que deve ser tomada como um treinamento

    de si por si r. Qual é, então, o elemento que diferencia a ética greco-

    17   propos de Ia génealogie de I éthique : un aperçu du travail em cours. In: Rabinow

    P. e Dreyfu H. Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeutics Chicago:

    The University of Chicago Press 1982. [Tradução brasileira: A propósito da genealogia

    da ética: uma revisão do trabalho. In: Rabinow. P. e Dreyfus H. Michel Foucault 1111

    trajetôria filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica Rio de Janeiro:

    Foren e niversitária. 1995. p. 2721.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    34/93

     

    udith Revel

    romana da moral pastoral cristã; e não é precisamente na articulação

    do cuidado de si com os  p rodisi que se pode compreender essa

    passagem da ética greco-romana   moral pastoral cristã? O segundo

    problema concerne, na verdade,

     

    história desses  phrodisi como campo

    de investigação específico da relação com o si: trata- e de buscar

    apreender como os indivíduos foram levados a exercer sobre si

    mesmos e sobre os outros uma hermenêutica do desejo na qual seu

    comportamento sexual esteve, sem dúvida, envolvido, mas não,

    certamente, como domínio exclusivo , e de analisar os diferentes jogos

    de verdade utilizados no movimento de constituição do si como sujeito

    do desejo.

      Na Antigüidade clássica, o cuidado de si não está em oposição

    ao cuidado dos outros: ele implica, ao contrário, relações complexas

    com os outros porque é importante, para o homem livre, incluir na

    sua boa conduta uma justa maneira de governar sua mulher, suas

    crianças ou sua casa. O

    ethos

    do cuidado de si é, portanto, igualmente

    uma arte de governar os outros e, por

    isso

    é essencial saber tomar

    cuidado de si para poder bem governar a cidade.

     

    sobre esse ponto,

    e não sobre a dimensão ascética da relação consigo, que se efetua a

    ruptura da pastoral cristã: o

     mor si

    torna-se a raiz de diferentes

    falhas morais e o cuidado dos outros implica, doravante, uma renúncia

    de si no transcurso da vida terrena.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    35/93

    Michel Foucault: conceilos essenciais 35

     isciplin

    * Iodalidade de aplicação do poder que aparece entre o final do

    século XVIII e o início do éculo XIX. O regime disciplinar

    caracteriza-se por um certo número de técnicas de coerção que exercem

    um esquadrinhamento sistemático do tempo, do espaço e do

    movimento do indivíduos e que atingem particularmente as atitudes,

    os gestos, os corpos: Técnicas de individualização do poder. Como

    vigiar alguém, como controlar sua conduta, seu comportamento, suas

    atitudes, como intensificar sua performance, multiplicar suas

    capacidades, como colocá-Io no lugar onde ele será mais útil 38. O

    discurso da disciplina é estranho à lei ou à regra jurídica derivada da

    soberania: ela produz um discurso sobre a regra natural, isto é, . obre

    a norma.

    **Os procedimentos disciplinares se exercem mais sobre o. processos

    da atividade do que sobre seus resultados e a sujeição constante de

    suas força. [...] impõe uma relação de docilidade-utilidade P , As

     disciplinas não nascem, com certeza, verdadeiramente no século

    XVIII - elas se encontram desde há muito tempo nos conventos, nas

    forças armada , nas oficina -, mas Foucault procura compreender

    de que maneira elas tornaram-se, num determinado momento,

    fórmulas gerais de dominação. O momento histórico das disciplinas

    é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que não visa

    somente ao crescimento de suas habilidades, nem ao incremento de

    sua sujeição, mas   formação de uma relação que no mesmo mecanismo

    o torna tanto mais obediente quanto mais útil ele for, e inversamente t ,

     Lc mailles du pouvoir. op. cit. nota 26.

    19

    Surveiller et unir op.

    cit nor

    3

    10 Surveiller et   unir op. cit. nota

    3

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    36/93

    36

     udirh evel

    Essa anatomia politica investe então sobre as escolas, os hospitais,

    os lugares de produção, e mais geralmente sobre todo espaço fechado

    que possa permitir a gestão dos indivíduos no espaço, sua repartição

    e sua identificação. O modelo de uma gestão disciplinar perfeita está

    proposto por meio da formulação benthaminiana do panóptico ,

    lugar de enclausuramento onde os princípios de visibilidade total, de

    decomposição das massas em unidades e de sua reordenação complexa

    segundo uma hierarquia rigorosa permitem submeter cada indivíduo

    a uma verdadeira economia do poder: numerosas instituições

    disciplinares - prisões, escolas, asilos - possuem ainda hoje uma

    arquitetura panóptica, isto é, um espaço caracterizado, de uma parte,

    pelo enclausuramento e pela repressão dos indivíduos, e, de outra,

    por um abrandamento do funcionamento do poder.

    ***0 modelo disciplinar foi, sem dúvida, em parte con truído em

    torno da experiência que Foucault teve, a partir de 1971-72, no interior

    do GIP Grupo de Informação sobre as Prisões).   somente entre a

    publicação de

     zgi r e pnnir

     1975) e os cursos do

    Collêge

    de France,

    de 1978-79, que Foucault começa a trabalhar num outro modelo de

    aplicação do poder, o controle, que trabalha ao mesmo tempo a

    descrição da interiorização da norma e da estrutura reticular das técnicas

    de assujeitamento, a gestão das populações e as técnicas de si. Essa

    passagem de uma leitura disciplinar da história moderna para uma

    leitura contemporânea do controle social correspondeu, no final

    dos anos

    7

    a um nítido engajamento naquilo que Foucault chamou

    de antologia da atualidade .

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    37/93

    Michel oucault conceitos es enciai

    37

     is urso

    *0 discurso designa, em geral, para Foucault, um conjunto de

    enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que

    obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns. Essas

    regras não são omente lingüísticas ou formais, mas reproduzem um

    certo número de cisões historicamente determinada (por exemplo, a

    grande separação entre razão/ desrazão): a ordem do discur o

    própria a um período particular possui, portanto, uma função

    normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de

    organização do real por meio da pr dução de saberes, de estratégias

    e de práticas.

    **0 interes e de Foucault pelos planos discursivos foi

    imediatamente duplo. De um lado, tratava-se de analisar as marcas

    di cursivas, procurando isolar as leis de funcionamento independente

    da natureza e das condições de enunciação, o que explica o interesse

    de Foucault, na mesma época, pela gramática, pela lingüística e pelo

    formalismo: foi original e importante a descoberta de que aquilo

    que se faz com a linguagem - poesia, literatura, filosofia, discurso em

    geral- obedece a um certo número de leis e de regularidades internas:

    as leis e as regularidades da linguagem. O caráter lingüístico dos fato

    de linguagem foi uma de coberta muito importante : ; mas, de outro,

    tratava- e de descrever a transformação dos tipo de discurso nos

    séculos À VII e XVIII, isto é, de historicizar o procedimentos de

    identificação e de classificação próprios de se período: nesse sentido,

      La vérité et les forme juridique op cit nota 28

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    38/93

    38

    Judith Revel

    a arqueologia foucaultiana dos discursos não é apenas uma análise

    lingüistica, mas uma interrogação sobre as condições de emergência

    de dispositivos discursivos que sustentam práticas (como em

    História

    da Loucllt 1

    ou as engendram (como em

    As Palavras e as Coisas

    ou em

    A arq/leologia do Saber . esse sentido, Foucault substitui o par

    saussureano língua/fala por duas oposições que ele faz funcionar

    alternativamente: o par discurso/linguagem, no qual o discurso é,

    paradoxalmente, o que é renitente   ordem da linguagem em geral (é,

    por exemplo, o caso do esoterismo estrutural de Raymond Roussel)

    - e é preciso notar que o próprio Foucault anulará essa oposição,

    intitulando sua aula inaugural no Collêge de France como A Ordem do

    Discurso,

    em 1971; e o par discurso/ fala, no qual () discurso se torna o

    eco lingüístico da articulação entre saber e poder, e no qual a fala,

    como instância subjetiva, encarna, ao contrário, uma prática de

    resistência   objetivação discur iva .

    ***0 aparente abandono do tema do discurso depois de 1971, em

    proveito de uma análise das práticas e das estratégias, corresponde ao

    que Foucault descreve como a passagem de uma arqueologia a uma

     dinastia do saber : não mais somente a descrição de um regime de

    discursividade e de sua eventual transgressão, mas a análise da relação

    que existe entre esses grandes tipos de discurso e as condições históricas,

    as condições econômicas, a condições politicas de seu aparecimento

    e de sua

    forrnação t .

    Ora, esse deslocamento, que embasa a passagem

    metodológica da arqueologia

     

    genealogia, permite problematizar as

    condições do

    desaparecimento

    do discurso : () tema das práticas de

    resistência, onipresente em Foucault a partir dos anos 70, possui, na

    realidade, uma origem discursiva .

    • De I archéologie à Ia dynastique. Entretien avec S.   asurni scpiernbre 1972.

    Retomado em

      its et

    Écrits, vol. 3, texto n 119. [Tradução brasileira: Da arqueologia

     

    dinástica. In:

      itos e Escritos

    vol. IV, p.

    49

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    39/93

    Michel Foucault: conceitos essenciais 39

      spos t vo

    *0 termo dispositivos aparece em Foucault nos anos   e designa

    inicialmente os operadores materiais do poder, isto é, as técnicas, as

    estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder. A partir

    do momento em que a análise foucaultiana se concentra na questão

    do poder, o filósofo insiste sobre a importância de se ocupar não

     do edifício jurídico da soberan.ia, dos aparelhos do Estado, das

    ideologias que o

    acornpanham r ,

    mas dos mecanismos de dominação:

    é essa escolha metodológica que engendra a utilização da noção de

     dispositivos . Eles são, por definição, de natureza heterogênea: trata-

    se tanto de discursos quanto de práticas, de instituições quanto de

    táticas moventes: é assim que Foucault chega a falar, segundo o caso,

    de dispositivos de poder , de dispositivos de saber , de

     dispositivos disciplinares , de dispositivos de sexualidade etc.

    **0 aparecimento do termo dispositivo no vocabulário conceitual

    de Foucault está provavelmente ligado à ua utilização por Deleuze e

    Guattari no  Anti Édipo (1972): é, pelo menos, o que deixa entender o

    prefácio que Foucault escreveu em 1977 para a edição americana do

    livro, visto que ele aí ob erva a noções em aparência abstratas de

    multiplicidades, de fluxos, de dispositivos e de rarnificaçõe

     44

    Posteriormente, o termo receberá uma acepção cada vez mais ampla

    (mesmo que, no começo, Foucault somente utilize a expressão

     

    ll faut défendre Ia société

    Paris: Seuil, 1997. [Tradução brasileira:

    Em defesa da

    sociedade. Curso no College de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

    1999].

    44 Prefácio a Deleuze, G. e Guauari, F.

    Anti Oedipus: Capitalism and Schizophrenia.

    New York: Viking Press, 1977. Retomado em

    Dits et Écrits

    vol. 3, texto n 189.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    40/93

     

    Judith Revel

     dispositivo de poder ) e cada vez mais precisa, até ser objeto de

    uma reflexão completa após   uontade de saber  1976), em que a

    expressão dispositivo de sexualidade é central: um dispositivo é

     um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,

    instituições, organizações arquitetõnicas, decisões regulamentares, leis,

    medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,

    morais, filantrópicas. ~m suma: o   to e o não-dito l ] O dispositivo

    é a rede que se pode estabelecer entre esses

    elementos r .

    O problema

    é, então, para Foucault, o de interrogar tanto a natureza dos diferentes

    dispositivos que ele encontra quanto sua função estratégica.

     

    a verdade, a noção de dispositivo substitui pouco a pouco

    aquela de

    episteme

    empregada por Foucault, de um modo absolutamente

    particular, em   s palavras e as coisas e até o final dos anos 60. Com

    efeito, a episteme é um dispositivo especificamente discursivo, enquanto

    o dispositivo , no sentido que Foucault explorará dez anos mais

    tarde, contém igualmente instituições e práticas, isto é, todo o social

    não-discursivo

     4 6

    4j Le jeu de Michel Foucault. Ornicar Bulletin périodique du champ

    [reudien

    n

    10, julho de 1977. Tradução brasileira: Sobre a história da sexualidade. In:

      icroftsica

    do Poder Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 244).

    46 Le jeu de Michel Foucault, op. cit. nota 45.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    41/93

    Mjchel Foucault: conceitos essenciais

    41

     pist m

    *0 termo episterne está no centro das análises de   s Palavras e as

    Coisas

     1966) e deu lugar a numerosos debates na medida em que a

    noção é, ao mesmo tempo, diferente da de sistema - que Foucault

    praticamente nunca utiliza antes que sua cadeira no Collêge de France

    fosse, a seu pedido, rebatizada, em 1971, como cadeira de história

    dos sistemas de pensamento - e da de estrutura . Por episteme

    Foucault designa, na realidade, um conjunto de relações que liga tipos

    de discursos e que corresponde a uma dada época histórica: são

    todos esses fenômenos de relações entre as ciências ou entre os

    diferentes discursos científicos que constituem aquilo que eu denomino

    a

    episteme

    de uma

    época :

    **Os mal-entendidos engendrados nos anos 60 pelo u o da noção

    devem-se a dois motivos: de um lado, interpreta-se a episteme como

    um sistema unitário, coerente e fechado, isto é como uma coerção

    hi tórica, que implica uma sobredeterminação rígida dos discursos; e,

    de outro lado, acusa-se Foucault de um certo relativismo histórico,

    isto é,

    ele

    foi instado a explicar a ruptura epistêrnica e a descontinuidade

    gue a pa sagem de uma

    episteme

    a outra necessariamente implica. obre

    o primeiro ponto, Foucault responde que a episteme de uma época não

    é a soma de seus conhecimentos ou o estilo geral de suas pe guisas,

    mas o desvio, as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de

    seus múltiplos discur os científicos: a

    episteme

    não é

    tona

    espécie de gratlde

    4? Le problêrnes de Ia culture. Un débat Foucault-Preli. In:   Bimestre n? 22-23

    setembro-dezembro. 1972. Retomado em Dits et É rits vol. 2 texto n? 109.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    42/93

    42

    Judith Revel

    teoria subiacente é um espaço de dispersão é um campo aberto

    l

    a episteme

    nào é lima cobertura de história comum a todas as ciências; é um jogo

    simultâneo de remanêndas especificas 48. [ais do que uma forma geral da

    consciência, Foucault descreve, portanto, um feixe de relações e de

    deslocamentos; não um sistema, mas a proliferação e a articulação de

    múltiplos sistemas que remetem uns aos outros. Sobre o segundo

    ponto, Foucault reivindica, por meio do uso da noção, a substituição

    da questão abstrata da mudança particularmente viva, na época, para

    os historiadores) por aquela dos diferentes tipos de transformação :

     substituir, enfim, o tema do devir forma geral, elemento abstrato,

    causa primeira e efeito universal, mistura confusa do idêntico e do

    novo) pela análise das transformações em sua especificidade : .

    ***0 abandono da noção de

    episteme

    corresponde ao de locamento

    do interesse de Foucault, de objetos estritamente discursivos a realidades

    não-discursivas - práticas, estratégias, instituições etc: Em As Palaoras

    e as Coisas querendo fazer uma história da epistelJle permanecia num

    impasse. Agora, gostaria de mostrar que o c1ue chamo de dispositivo

    é algo muito mais geral que compreende a episteme. Ou melhor, que a

    episteme é um dispositivo especificam nte discursivo, diferentemente

    do dispositivo, que é discursivo e não-discursivo, sendo seus elementos

    muito mais heterogêneos : .

     

    Réponse

    à

    une questiono ln:

    Esprit

    na 371, maio 1968. Retomado em

      its

    et Écrits vol. I, texto N° 58.

    49  épons une question, op. cit. nota 48.

    50 Le jeu de Michel Foucault. op. cit. nota 45.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    43/93

    Michel Foucaull: conceitos essenciais

    43

    Estética da existência

    *0 tema de uma estética da existência aparece muito nitidamente

    em Foucault no momento da aparição dos dois últimos volumes da

    História da Sexualidade, em 1984. Foucault faz, com efeito, a descrição

    de dois tipos de moral radicalmente diferentes, uma moral greco-

    romana dirigida para a ética e por meio da qual se trata de

    Jazer de SIIa

    vida lima obra de arte, e uma moral cristã no interior da qual se trata, ao

    contrário, essencialmente, de obedecer a um código: Se me interessei

    pela Antigüidade, foi porque, por toda uma série de razões, a idéia de

    uma moral como obediência a um código de regras está

    desaparecendo, já desapareceu. E a esta ausência de moral corresponde,

    deve corresponder uma busca que é aquela de uma estética da

    existência ? . Os temas da ética e da estética da existência estão portanto

    estreitamente ligados.

     

    A estética da existência ligada à moral antiga marca em Foucault

    o retorno ao tema da invenção de si  Jàzer de sua vida lima obra de alte :

    uma problematização a que ele já havia chegado em filigrana num

    certo número de textos literários nos anos 60 (por exemplo, no

    H.aYfJ/ond Roussel, mas igualmente nas análises consagradas a Brisset e a

    Wolfson), e que ele retoma vinte anos mais tarde por meio de uma

    dupla série de discursos. A primeira, no interior da História da

    Sexualidade, está essencialmente ligada   problematização da ruptura

    que representa a pastoral cristã em relação

     

    ética grega; a segunda

    passa, em contrapartida, pela análise da atitude da rnodernidade

    Une esthétique de I existence. In:

      e Monde

    15-16 de julho de 1984. [Tradução

    bra ilera: Uma estética da existência. In:   itos e Escritos vol V, p. 290].

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    44/93

     

    udith evel

    (por meio da retomada do texto kantiano sobre as Luzes) e faz da

    invenção de si uma das características dessa atitude: a modernidade

    não é somente a relação com o presente, mas a relação consigo mesmo,

    na medida em que ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como

    se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar a si mesmo como

    objeto de uma elaboração complexa e dura: o que Baudelaire chama,

    de acordo com o vocabulário da época, de dandismo t F, A estética

    da existência é, ao mesmo tempo, o que Foucault localiza fora da

    influência da pastoral cristã (temporalmente: o retorno aos Gregos;

    espacialmente: o interesse contemporâneo de Foucault pelo zen e pela

    cultura japonesa) e o que deve, de novo, caracterizar a relação que nó

    mantemos com a nossa própria atualidade.

    ***0 tema da estética da existência como produção inventiva de si

    não marca, entretanto, um retorno

    à

    figura do sujeito soberano,

    fundador e universal, nem a um abandono do campo político: penso,

    pelo contrário, que o sujeito se constitui através das práticas de sujeição

    ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação t . A

    estética da existência, na medida em que ela é uma prática ética de

    produção de subjetividade, é, ao mesmo tempo, assujeitada e resistente:

    é, portanto, um gesto eminentemente político.

    ~2

    What s enlightenment? op. cit. nota 6.

    S3

    Une e thétique de l exi tence op.

    eu

    nota 51.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    45/93

    Michel Foucaull: conceitos essenciais

      5

     

    tic

    os últimos volume da História da sexualidade Foucault distingue

    claramente entre o que é preciso entender por moral e o que significa

     ética . A moral é, em sentido amplo, um conjunto de valores e de

    regras de ação que são propostas ao indivíduos e aos grupos por

    meio de diferentes aparelhos prescritivos (a família, as instituições

    educativas, as Igrejas etc.); essa moral engendra uma moralidade dos

    comportamentos , isto é, uma variação individual mais ou menos

    consciente em relação ao sistema de prescrições do código moral.

    Por outro lado, a ética concerne à maneira pela qual cada um constitui

    a si mesmo como sujeito moral do código: Dado um código de

    condutas [...], há diferentes maneiras de o indivíduo conduzir-se

    moralmente, diferentes maneiras para o indivíduo, ao agir, não operar

    simplesmente como agente, mas im como sujeito moral dessa ação ? .

     

    A toda ética corresponde a determinação de uma substância

    ética , isto é, a maneira pela qual um indivíduo faz de si mesmo a

    matéria principal de sua conduta moral; da mesma maneira, ela implica

    necessariamente um modo de sujeição, isto é, a maneira pela qual um

    individuo se relaciona com uma regra ou com um sistema de regras e

    experimenta a obrigação de colocá-Ias em ação. A ética greco-romana

    que descreve Foucault, em particular no segundo volume da

    História

    da Sexualidade

    (O

    uso dosprazeres

    tem por substância ética os

    apbrodisia

    e seu modo de sujeição é uma e colha pessoal estético-politica (não se

    trata tanto de respeitar um código quanto de fazer da sua vida uma

    54 Usage des plaisirs et techniques de sai. ln: Le ébat n? 27, novembro 1983.

    [Tradução brasileira: O Uso dos Prazere e a Técnicas de Si. In itos e Escritos

    vol, V.

    p

    211-212).

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    46/93

     

    Judith Revel

    obra de arte ). Em contrapartida, a moral cristã funciona não sobre a

    escolha mas sobre a obediência, não sobre os   pbrodisi (que são ao

    mesmo tempo o prazer, o desejo e os atos), mas sobre a carne (que

    coloca entre parênteses tanto o prazer quanto o desejo): com o

    cristianismo, o modo de sujeição é, então, a lei divina. E creio que até

    mesmo a substância ética mudou, porque ela não é mais constituida

    pela   pbrodisi mas pelo desejo, pela concupiscência, pela carne etc.? .

    ***0

    termo ética aparece pela primeira vez de maneira realmente

    significativa em 1977, em um texto obre O .Anti Édipo de Deleuze e

    Guatarri: Eu diria que O

    Anti Édipo

    (perdoem-me os autores) é um

    livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França

    depois de muito tempo? . E é interessante constatar que Foucault

    caracteriza da mesma maneira, alguns anos mais tarde, sua própria

    História da Sexllalidade:  se, por ética entender-se a relação que o

    indivíduo estabelece consigo mesmo, eu diria que tende a ser uma

    ética, ou, pelo menos, tentarei mostrar o que poderia ser uma ética do

    comportamento sexual ? .

    E

    para além da sexualidade, o projeto de

    uma ontologia crítica da atualidade recebe, às vezes, a formulação

    de uma política como uma ética : isso quer dizer que o interesse

    foucaultiano pela ética, nos ano 80 longe de ser o fim da

    problematização filosófica e histórica das estratégias do poder e de

    sua aplicação aos indivíduos, re-propõe a análise do campo político a

    partir da constituição ética dos sujeitos, a partir da produção da

    subjetividade.

    55

    A propos de Ia généalogie de l éthique : un aperçu du travail cn cours, op. cit.

    nota

    37.

    56

    Prefácio a Deleuze, G. e Guartari, F.

    Anti Oedipus

    op. cit. nota 44.

    57

    Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins.  n Ethos vol.

     

    n° 2.

    1983. Retomado em Dits et Écrits. vol 4, texto n° 336.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

    47/93

    Michel Foucault: conceitos essenciais

    47

     xpêrienci

    A noção de experiência e tá presente ao longo de todo o percurso

    filosófico de Foucault, mas ela passa por importantes modificações

    no decorrer dos anos. e é verdade que, de maneira geral, a

    experiência é alguma coisa da qual saímos transforrnados t , Foucault

    refere-se, inicialmente, a uma experiência que deve muito, ao mesmo

    tempo, a Bataille e a Blanchot: no cruzamento de uma experiência do

    limite e de uma experiência da linguagem considerada como

     experiência do exterior , ele procura, com efeito, definir - em

    particular no domínio da literatura - uma experiência do ilimitado, do

    intransponível, do impossivel, isto é, daquilo que afronta, na realidade,

    a loucura, a morte, a noite ou a sexualidade, ao aprofundar, na espessura

    da linguagem, seu próprio espaço de fala. um segundo momento,

    muito diferentemente, a experiência se torna para Foucault a única

    maneira de distinguir a genealogia ao mesmo tempo de uma

    abordagem empírica ou positivista e de uma análise teórica: se algumas

    problematizacõe nascem de uma experiência (por exemplo, a e critura

    de

    Vigiar e Punir

    depois da experiência do Grupo de Informação

    sobre as Prisões e, mais amplamente, depois de 1968), é no sentido de .

    que o pensamento filosófico de Foucault é verdadeiramente uma

    experiment ção

    ele dá, com efeito, a ver o movimento da constituição

    histórica dos discursos, das práticas, das relações de poder e das

    subjetividades, e é devido a essa relação com a genealogia que a

     N Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori, Paris, 1978). In:

     

    ontributo 4 année, n. I. Retomado em Dits et Écrits vol. 4, 1994, texte n. 281.

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    udith evel

    experiência sai dela mesma modificada: Meu problema é o de fazer

    eu mesmo - e de convidar os outros a fazerem comigo, por meio de

    um conteúdo histórico determinado - uma experiência daquilo que

    nós somos, daquilo que é não omente o nosso passado mas também

    o nosso presente, uma experiência de nossa modernidade de tal

    maneira que dela saiamos transformados. ?

    **Enquanto a experiência fenomenológica   qual Foucault se refere

    ainda, em parte, nos seus textos dos anos 50) procura, na realidade,

     retomar a significação da experiência cotidiana para compreender

    de que maneira o sujeito que eu sou é realmente fundador, em suas

    funções transcendentais, daquela experiência e de suas significações t ,

    a referência a ietzsche, a Bataille e a Blanchot permite, ao contrário,

    definir a idéia de uma experiência-limite que arranca o sujeito dele

    mesmo e lhe impõe sua fragmentação ou sua dissolução. Assim, torna-

    se evidente que a referência a Bataille seja essencial e que Foucault

    censure os surrealistas, mesmo reconhecendo que Breton tenha tentado

    percorrer experiência limites, por tê-Ias mantido em um espaço da

    psique. O fato de construir-se a partir do apagamento do sujeito faz

    com que essa idéia da

    experiência

    como passagem ao

    limite

    não esteja, na

    realidade, tão distante das outras análi es de Foucault nos anos 60: ele

    atualiza nela o horizonte desenhado pelo final de

     s Palatras e as oisas

      possível desaparecimento do homem ao mesmo tempo como

    consciência autônoma e como objeto de conhecimento privilegiado:

     uma experiência está prestes a nascer onde o que está em jogo é o

    59 Entretien avec Michel Foucault avec Ducio Trombadori , op. cit. nota 58.

    60 Entretien avec Michel Foucault avec Ducio Trombadori , op. cit. nota 58.

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    Michel Foucault: conceitos essenciaj; 49

    nosso pensamento; sua iminência já visível, mas absolutamente vazia,

    não pode ainda ser nomeada ? .

    ***Se é verdade que a maior parte das análises de Foucault na ce de

    uma experiência pe soal - como ele mesmo reconhece - elas não

    podem, de maneira alguma, serem reduzidas a isso. Ao contrário,

    Foucault coloca-se como tarefa a reformulação da noção de

    experiência, ampliando-a para além do si (um i já maltratado pela

    crítica dos filósofos do sujeito): a experiência é algo que se dá

    solitariamente, mas que é plena somente na medida em (lue escapa

     

    pura subjetividade, isto é, que outros podem cruzá-Ia ou atravessá-Ia.

    A partir dos anos 70, é, pois, sobre o terreno de uma prática coletiva

    - i to é, no campo político - que Foucault procura situar o problema

    da experiência como momento de transformação: o termo passará,

    então, a ser associado ao mesmo tempo à resistência aos dispositivos

    de poder (experiência revolucionária, experiência de lutas, exp riência

    de sublevação) e aos processos de subjetivaçâo.

    61

    La folie, l absence d ceuvre La Table Ronde, n° 196 : Situation de Iapsychiatrie

    1964, retomado em   its et Écrits vol. I, texto n° 25. [Tradução brasileira: A

    loucura, a ausência da obra.  n itos e Escritos vol. I,

    p.

    219].

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    Judith Revel

     xt rior

    *Em 1966, num texto consagrado a Maurice

    Blanchot

    Foucault

    define a experiência do exterior corno a dissociação do eu penso

    e do eu falo : a linguagem deve enfrentar o desaparecimento do

    sujeito que fala e inscrever seu lugar vazio corno fonte de sua própria

    expansão indefinida. A linguagem escapa, então, ao modo de ser do

    discurso - ou seja, à dinastia da representação - e o discurso literário

    se desenvolve a partir dele mesmo, formando urna rede em que cada

    ponto, distinto dos outros,

     

    distância mesmo dos mais próximos,

    está situado em relação a todos num espaço que ao mesmo tempo os

    abriga e os

    separa r .

     

    Essa passagem ao exterior como desaparecimento do sujeito que

    fala e, contemporaneamente, como aparição do próprio ser da

    linguagem, caracteriza para Foucault uma espécie de linhagem marginal

    da cultura ocidental, cujo pensamento será necessário um dia tentar

    definir as formas e as categorias fundamentais . De Sade a Hôlderlin,

    de ietzche a Mallarmé, de Artaud a Bataille e a Klossowski, trata-se

    sempre de considerar essa passagem ao exterior, isto é, ao mesmo

    tempo a fragmentação da experiência da interioridade e o

    descentramento da linguagem em direção ao seu próprio limite: nesse

    sentido, segundo Foucault, Blanchot parece ter conseguido tirar da

    linguagem a reflexividade da consciência e transformado a ficção em

    uma dissolução da narração que valoriza o interstício das imagens .

    O paradoxo dessa palavra sem raiz e sem fundações, que se revela

    62

    La pensée du dehors. In:   ritique n. 229, 1966. [Tradução brasileira: O

    pensamento do exterior. ln: Ditos e Escritos vol. Hl, p. 219-242).

    63

    La pensée du dehors, op. cit. nota 62.

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    Michel Foucaull: conceitos essenciais 5/

    como deslizamento e como murmúrio, como divisão e como

    dispersão, é que ela representa um avanço em direção ao que nunca

    recebeu linguagem - a própria linguagem, que não é nem reflexão

    nem ficção, mas jorro infinito - ou seja, oscilação indefinida entre a

    origem e a morte.

    ***0 tema do exterior é interessante, ao mesmo tempo, porque

    interliga o autores do quai Foucault se ocupa no mesmo período -

    a linhagem do exterior , da qual Blanchot seria a encarnação mais

    evidente - e porque forma um contra ponto radical com aquilo que o

    filósofo se aplica a de crever, no mesmo momento, em seus livros.

    Com efeito, quando Foucault sublinha o risco de reconduzir a

    experiência do exterior

     

    dimensão da interioridade e a dificuldade de

    dotá-Ia de uma linguagem que lhe seja fiel, ele se refere   fragilidade

    desse exterior : não há exterior possível numa descrição arqueológica

    dos dispositivos discursivos tal como apresentada em As pala Iras e as

    Coisas Será somente bem mais tarde que Foucault deixará de pensar o

     exterior como uma passagem ao limite ou como uma pura

    exterioridade, e que ele lhe dará um lugar no seio mesmo da ordem

    do discurso: a oposição não será, portanto, mais entre o de dentro e o

    de fora, entre o reino do sujeito e o murmúrio anônimo, mas entre a

    linguagem objetivada e a palavra de resistência, entre o sujeito e a

    subjetividade, isto é, aquilo que Deleuze chamará a dobra . dobra

    - e o termo já fora., estranhamente, utilizado por Foucault em 1966 -

    , é o fim da opo ição dentro/fora, porque é o exterior do dentro. E

    Foucault conclui:

     l

    estarnos sempre no interior. A margem é um

    mito. A fala do exterior   um sonho que não paramos de repetir ? .

    64 L extension sociale de Ia norme. In:

    Politique

      ebdo nO212, março de 1976.

    Retomado em   its et Écrits vol. 3. texto n° 173.

  • 8/20/2019 REVEL Conceitos Essenciais

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    Judirh Reve

    ene logi

    *Desde a publicação

    de s Palavras

     

    as oisas

    (1966), Foucault qualifica

    seu projeto de arqueologia das ciências humanas mais como uma

     genealogia nietzschiana do que como uma obra estruturalista. Esse

    conceit é retomado e precisado, em 1971, em um texto sobre

    ietzsche: a genealogia é uma pesquisa histórica que se opõe ao

     desdobramento meta-histórico das significações ideais e das

    indefinidas teologias , que se opõe

    à

    unicidade da narrativa histórica e

    à

    busca da origem, e que procura, ao contrário, a singularidade dos

    acontecimentos fora de qualquer finalidade monótona ? . A genealogia

    trabalha, portanto, a partir da diversidade e da dispersão, do acaso

    dos começos e dos acidentes: ela não pretende voltar ao tempo para

    restabelecer a continuidade da história, mas procura, ao contrário,

    restituir os acontecimentos na sua singularidade.

    **0 enfoque genealógico não é, no entanto, um simples ernpirismo,

     nem tampouco um positivisrno, no sentido habitual do termo . Trata-

    se, de fato, de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não

    legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-

    los, hierarquizá-Ios, ordená-Ios em nome de um conhecimento

    verdadeiro [...]. As genealogias não são, portanto, retornos positivistas

    a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata; as genealogi