Revisão judicial contatual abusiva

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LETÍCIA MENDES FERREIRA REVISÃO JUDICIAL CONTRATUAL ABUSIVA PELA UTILIZAÇÃO INDEVIDA DA TEORIA DA IMPREVISÃO GOIÂNIA 2014

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Trabalho de Conclusão de Curso

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LETÍCIA MENDES FERREIRA

REVISÃO JUDICIAL CONTRATUAL ABUSIVA PELA UTILIZAÇÃO

INDEVIDA DA TEORIA DA IMPREVISÃO

GOIÂNIA 2014

LETÍCIA MENDES FERREIRA

REVISÃO JUDICIAL CONTRATUAL ABUSIVA PELA UTILIZAÇÃO

INDEVIDA DA TEORIA DA IMPREVISÃO

Monografia Jurídica apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, sob a orientação do Professor Doutor Luiz Carlos Falconi.

GOIÂNIA 2014

FICHA CATALOGRÁFICA FERREIRA, Letícia Mendes.

Revisão judicial contratual abusiva pela utilização indevida da teoria da imprevisão / Letícia Mendes Ferreira. Goiânia, 2014. 67 f. Orientador: Luiz Carlos Falconi. Monografia (Graduação) – Universidade Federal de Goiás. 1. Direito Contratual. 2. Revisão judicial dos contratos. 3. Teoria da imprevisão. 4. Litigância de má-fé. 1. Droit des Contrats. 2. Contrôle judiciaire des contrats. 3. Théorie de l’imprévision. 4. Mauvaise foi dans les procédures judiciaires.

Área do conhecimento (CNPQ): 6.01.03.01-9 (Direito Civil)

Letícia Mendes Ferreira

REVISÃO JUDICIAL CONTRATUAL ABUSIVA PELA UTILIZAÇÃO INDEVIDA DA TEORIA DA IMPREVISÃO

BANCA EXAMINADORA: _________________________________________ Avaliação: _______ Prof. Dr. Luiz Carlos Falconi Presidente da Banca _________________________________________ Avaliação: _______ Profa. Ms. Carolina Chaves Soares Membro da banca _________________________________________ Avaliação: _______ Prof. Dr. Álvaro Augusto Camilo Mariano Membro da banca

Avaliação final: _______

Goiânia, ______ de ______________ de 2014.

Dedico este trabalho a todos aqueles que se

dedicam a fazer com que o direito seja mais

justo e mais humano, e com que as relações

sociais sejam cada vez mais pautadas na boa-

fé e na confiança.

Agradeço aos meus pais, Gustavo e Cíntia,

pelo constante incentivo e apoio aos meus

estudos e por me proporcionarem os bens

materiais e morais que me fizeram chegar até o

fim de uma graduação. Ainda, pelo amor dado

diuturnamente.

Aos meus amigos, pela colaboração jurídica,

pela paciência e pela amizade verdadeira.

Ao meu namorado, Artur, por ter me apoiado

neste trabalho em todos os momentos, mesmo

sem qualquer tipo de conhecimento jurídico, e,

especialmente, pelo carinho e compreensão.

Aos meus professores do curso de Direito da

UFG, que oportunizaram meus conhecimentos

jurídicos. Em especial, ao Professor Doutor

Luiz Carlos Falconi, orientador desta pesquisa,

pelo apoio durante toda a graduação e neste

trabalho, com sugestões valiosas para o

desenvolvimento do tema.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía.

Luiz Vaz de Camões

RESUMO

Na formação de um negócio jurídico, há a necessidade de as partes afirmarem suas condições

de cumprirem com as obrigações nele firmadas. Tem havido, todavia, no direito brasileiro,

diversas situações em que as condições do contratante são ocultadas, maliciosamente, para

fazer a outra parte no negócio jurídico acreditar em sua possibilidade de cumprir o contrato e,

em momento posterior, solicitar revisão judicial do contrato, alegando impossibilidade no

adimplemento da prestação. Nesse contexto, para que a ação revisional de contrato seja aceita

judicialmente, tem-se a argumentação da ocorrência da teoria da imprevisão, a qual afirma

que, em havendo alterações nas condições nas quais o contrato foi pactuado, causando

extrema onerosidade a uma das partes e benefício à outra, o contrato poderá ser revisto. Este

trabalho intenta mostrar que a fundamentação das ações revisionais na teoria da imprevisão

devem preencher, obrigatoriamente, todos os requisitos dessa teoria, a fim de que a parte não

incorra em litigância de má-fé pela propositura de injustificada e indevida da revisão judicial

do contrato e, caso isso ocorra, sejam aplicadas as sanções legais para defender a boa-fé

processual.

Palavras-chave: 1. Direito Contratual. 2. Revisão judicial dos contratos. 3. Teoria da

imprevisão. 4. Litigância de má-fé.

ABSTRACT

À la formation d'une transaction juridique, il faut que les parties affirment leur position pour

se conformer aux obligations contractées en elle. Il ya eu, cependant, au droit brésilien,

différentes situations dans lesquelles les conditions du contractant sont cachés,

malicieusement, à l'autre partie de la transaction juridique pour la faire croire en leur capacité

à remplir le contrat et, après, cette partie demande le contrôle judiciaire du contrat, affirmant

l’impossibilité de l’exécution des dispositions. Dans ce contexte, pour que l’action revisional

du contrat soit acceptée au judiciaire, il ya l'argument de l'occurrence de la théorie de

l'imprévision, qui stipule que, sur les changements dans les conditions dans lesquelles le

contrat a été convenu, provoquant extrême charge à une partie et avantage à l'autre, le contrat

peut être révisé. Cet article essaye montrer que la motivation des actions revisionalles à la

théorie de l’imprévision doit répondre obligatoirement à toutes les exigences de cette théorie,

de sorte que la partie ne encourt pas de mauvaise foi par l'introduction d'un contrôle judiciaire

injustifiée du contrat et, si cela se produit, les sanctions juridiques pour défendre la bonne foi

procédurale soient appliquées.

Mots-clés: 1. Droit des Contrats. 2. Contrôle judiciaire des contrats. 3. Théorie de

l’imprévision. 4. Mauvaise foi dans les procédures judiciaires.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9

1 REVISÃO CONTRATUAL .................................................................................................. 11

1.1 Formação da relação contratual ................................................................................. 11 1.2 Extinção dos contratos ............................................................................................... 17 1.3 Revisão contratual em juízo ....................................................................................... 23

2 TEORIA DA IMPREVISÃO ................................................................................................ 29

2.1 Conceito e histórico da cláusula rebus sic stantibus .................................................. 29 2.2 Fundamentos teóricos da imprevisão ......................................................................... 32 2.3 Aplicação da teoria da imprevisão ............................................................................. 37

2.3.1 No direito comparado ............................................................................................. 37 2.3.2 No ordenamento jurídico brasileiro........................................................................ 39

3 PRÁTICAS ABUSIVAS MATERIAIS E PROCESSUAIS ................................................. 46

3.1 Comportamentos contraditórios no Direito Privado .................................................. 46 3.2 Abuso do direito e abuso do processo ....................................................................... 52 3.3 Litigância de má-fé e consequências jurídicas .......................................................... 57

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 64

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 66

INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro defende, muito fortemente, os princípios da

equidade e da boa-fé. No direito contratual, essa posição não se difere. Os Códigos Civil,

Processual Civil e de Defesa do Consumidor estão cobertos de dispositivos que buscam a

defesa da boa-fé e a repressão às atitudes maliciosas dos contratantes e litigantes.

A ação revisional tem o escopo de revisar contratos que se encontrem em uma

situação de impossibilidade de se manter as condições em que foram inicialmente contratados

e de tornar possível a adimplência de suas cláusulas pelas partes.

Um dos fundamentos mais frequentes da propositura da ação revisional é a teoria

da imprevisão, que consiste na possibilidade de se alterar um contrato caso as circunstâncias

em que ele foi pactuado se modifiquem. A obrigatoriedade de se manter um contrato

permanece enquanto a conjuntura que envolveu sua formação seja a mesma. À medida que há

uma alteração nas circunstâncias iniciais, torna-se possível que as partes queiram a alteração

do contrato.

Ocorre que, atualmente, o Judiciário tem sido abarrotado de ações revisionais que,

alegando a teoria da imprevisão, não passam de métodos de burlar a boa-fé objetiva e de

realizar contratos que, inicialmente, são impossíveis de serem adimplidos pela parte, contando

com a futura alteração judicial. Essa prática tem se tornado recorrente e este estudo busca

demonstrar como ela tem ocorrido, quais são suas consequências para o Poder Judiciário e

como essa prática deve ser evitada.

Para tornar essa análise possível, far-se-á um estudo bibliográfico com exame e

coleta de dados de publicações diversas a respeito do tema, utilizando o método de

investigação analítico-bibliográfico das fontes e dos autores relevantes para a pesquisa.

O trabalho se divide em três capítulos. No primeiro capítulo, será demonstrado

como os contratos são formados, explicando em que consistem suas fases pré-contratual,

contratual e pós-contratual. Após a noção da formação contratual, far-se-á uma análise dos

modos de extinção dos contratos, mostrando a peculiaridade de cada um dele e a

aplicabilidade de cada um desses modos às situações diversas ao se findar um negócio

1 REVISÃO CONTRATUAL

1.1 Formação da relação contratual

O contrato, também conhecido por relação contratual, é uma modalidade de

negócio jurídico, de natureza bilateral ou plurilateral, que depende, para a sua formação, do

encontro da vontade das partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações

jurídicas de natureza patrimonial1.

A constituição de um contrato depende de três planos: o da existência, o da

validade e o da eficácia. No plano da existência, é necessário que o contrato contenha

manifestação da vontade. A vontade negocial consiste na vontade externa, que é a declaração

da vontade propriamente dita, e na vontade interna, que é o elemento psíquico, devendo este

ser exteriorizado para que ganhe efeitos jurídicos2. Necessita, ainda, de um objeto sobre o

qual deverá versar e uma forma para se exteriorizar.

Para o contrato ser válido, alguns requisitos devem ser preenchidos. Os requisitos

subjetivos consistem na declaração de vontade livre das partes com capacidade, aptidão

específica para contratar e consentimento. Já os requisitos objetivos dizem respeito ao objeto

do contrato e são eles a licitude, a possibilidade física e jurídica, e a determinação do objeto.

Quanto ao requisito formal do contrato, tem-se o respeito à forma prevista ou não defesa em

lei.

O negócio jurídico, para ter validade, deve ser realizado apenas pelas pessoas

capazes, que são aquelas com aptidão para exercício de direitos e contração de obrigações

civis. Se realizado por absolutamente incapaz, este necessita de representação e, caso

praticado por relativamente incapaz, este precisa de assistência. O ato do absolutamente

incapaz sem a devida representação é nulo e do relativamente incapaz sem assistência é

anulável, desde que a incapacidade relativa não seja arguida para benefício indevido da parte.

1 Cf. Maria Helena Diniz. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 2006, p. 8-9. 2 Cf. Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil, 2012, p. 505.

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jurídico. Por fim, será explanado como ocorre a revisão dos contratos em juízo, quais são os

requisitos da ação revisional e quais são as previsões legais dessa ação.

No segundo capítulo, analisar-se-á a teoria da imprevisão, também conhecida

como cláusula rebus sic stantibus, mostrando seu conceito e seu desenvolvimento durante a

história do direito. Ainda serão abordados os fundamentos teóricos da teoria da imprevisão e

serão aprofundadas as questões da aplicabilidade da teoria da imprevisão, a partir de uma

análise do direito comparado e das disposições legais no direito positivo brasileiro acerca do

tema.

No capítulo final, apresentar-se-á, primeiramente, os comportamentos no direito

privado, sua utilização no direito contratual brasileiro e qual o enquadramento, dentre os

comportamentos apresentados, da utilização indevida da teoria da imprevisão. Outrossim,

serão apresentados os conceitos de abuso do direito e abuso do processo, explicando a

diferença entre os dois institutos e como verificar a sua ocorrência na via judicial. Por

derradeiro, far-se-á uma análise da litigância de má-fé, com sua previsão no Código de

Processo Civil, demonstrando quando ela ocorre e quais as sanções previstas pelo

ordenamento jurídico positivo brasileiro para essa situação, a fim de evitar que a má-fé

prevaleça nas relações jurídicas processuais.

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1 REVISÃO CONTRATUAL

1.1 Formação da relação contratual

O contrato, também conhecido por relação contratual, é uma modalidade de

negócio jurídico, de natureza bilateral ou plurilateral, que depende, para a sua formação, do

encontro da vontade das partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações

jurídicas de natureza patrimonial1.

A constituição de um contrato depende de três planos: o da existência, o da

validade e o da eficácia. No plano da existência, é necessário que o contrato contenha

manifestação da vontade. A vontade negocial consiste na vontade externa, que é a declaração

da vontade propriamente dita, e na vontade interna, que é o elemento psíquico, devendo este

ser exteriorizado para que ganhe efeitos jurídicos2. Necessita, ainda, de um objeto sobre o

qual deverá versar e uma forma para se exteriorizar.

Para o contrato ser válido, alguns requisitos devem ser preenchidos. Os requisitos

subjetivos consistem na declaração de vontade livre das partes com capacidade, aptidão

específica para contratar e consentimento. Já os requisitos objetivos dizem respeito ao objeto

do contrato e são eles a licitude, a possibilidade física e jurídica, e a determinação do objeto.

Quanto ao requisito formal do contrato, tem-se o respeito à forma prevista ou não defesa em

lei.

O negócio jurídico, para ter validade, deve ser realizado apenas pelas pessoas

capazes, que são aquelas com aptidão para exercício de direitos e contração de obrigações

civis. Se realizado por absolutamente incapaz, este necessita de representação e, caso

praticado por relativamente incapaz, este precisa de assistência. O ato do absolutamente

incapaz sem a devida representação é nulo e do relativamente incapaz sem assistência é

anulável, desde que a incapacidade relativa não seja arguida para benefício indevido da parte.

1 Cf. Maria Helena Diniz. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 2006, p. 8-9. 2 Cf. Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil, 2012, p. 505.

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A capacidade das partes para contratar não depende exclusivamente do conceito

de capacidade civil, disposto nos artigos 3º e 4º do Código Civil3. Depende, também, da

inexistência de restrições para contratar:

Restringe-se a liberdade de contratar em termos gerais, ou em termos especiais, quando uma pessoa não pode celebrá-los de modo geral ou não pode concluir um em particular. Não se trata de incapacidade no sentido ordinário, pois que o contratante guarda o poder genérico para participar dos atos da vida civil. É mesmo restrição ou inaptidão confinada ao campo específico do poder de contratar. Nos seus efeitos, assemelham-se às incapacidades, e, como estas, geram a ineficácia do negócio, ora absoluta, como no caso do art. 497 do Código Civil, que proíbe a compra e venda entre tutor e tutelado, mandante e mandatário etc., ora relativa, como na hipótese do art. 496, que dispõe ser anulável o mesmo contrato entre ascendentes e descendentes sem que os demais e o cônjuge (salvo no caso de regime de separação obrigatória de bens) expressamente o consintam, limitado o direito de atacar o ato aos descendentes interessados e ao cônjuge.4 [grifos no original]

O consentimento é também necessário para a validade do contrato, haja vista ser o

acordo entre a vontade dos contratantes. Deve ser um acordo sobre a existência e natureza do

contrato, sobre seu objeto e sobre as cláusulas que o compõem5. A declaração de vontade

deve ser livre e de boa-fé. Além disso, não pode haver nenhum tipo de vício do consentimento

ou sociais, tais como erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão, simulação e fraude contra

credores.

Como manifestação de vontade, o silêncio costuma nada significar. No entanto, o

atual Código Civil contempla a situação em que as circunstâncias ou os usos podem autorizar

concluir que o silêncio importa em aceitação tácita, pois dispõe em seu artigo 111: “O silêncio

importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a

3 Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.

4 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, 2012, p. 26-27. 5 Cf. Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, 2012, p. 27.

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declaração de vontade expressa”. Ademais, pode-se convencionar em um pré-contrato que o

silêncio implica em consentimento da parte6.

Objeto lícito é aquele que não é contrário à lei, aos bons costumes e à moral.

“Objeto jurídico, objeto imediato ou conteúdo do negócio é sempre uma conduta humana e se

denomina prestação: dar, fazer ou não fazer. Objeto material ou mediato são os bens ou

prestações sobre os quais incide a relação jurídica obrigacional”7.

Caso o negócio jurídico tenha objeto física ou materialmente impossível, o

contrato será inválido. A possibilidade física consiste em obedecer as leis físicas e naturais.

Há impossibilidade física absoluta quando alcança a todas as pessoas, como, por exemplo, o

objeto de um contrato ser colocar toda a água do oceano em um copo8. A impossibilidade

física relativa ocorre quando atinge apenas o devedor, não atingindo as demais pessoas, e, por

isso, não é obstáculo ao negócio jurídico. Por sua vez, a impossibilidade jurídica ocorre

quando há proibição expressa de negócio jurídico a respeito de certos bens. A licitude acaba

por se confundir com a possibilidade jurídica, pois um objeto ilícito é também juridicamente

impossível. Contratos baseados em dívidas de jogo, por exemplo, não são válidos, visto que

os jogos de azar são considerados contravenção penal pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Ademais, o objeto do contrato deve ser determinado ou, pelo menos determinável,

visto que existe a necessidade dele conter os elementos mínimos de individualização que

permitam caracterizá-lo e diferenciá-lo no mundo jurídico. Determinado é o objeto que tem

todas as suas características definidas e claras, sendo que determinável é aquele especificado

apenas pelo gênero e quantidade, sem determinar a espécie. Não havendo determinação de, no

mínimo, gênero e quantidade, tem-se negócio jurídico inválido.

Por fim, o requisito formal de validade dos contratos é a forma prevista ou não

defesa em lei. O atual Código, em sua essência, não trouxe o rigor de forma, sendo ela livre

para que os contratantes realizem o negócio jurídico. Os contratos podem ser orais ou escritos,

por instrumento público ou particular. A regra geral do Direito Civil brasileiro é a da

liberdade das formas, em que os contratos podem trazer a manifestação da vontade da forma

que bem entenderem, desde que seja clara e não seja proibida pela lei.

6 Cf. Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2010, p. 351. 7 Ibidem, p. 358. 8 Cf. Ibidem, p. 359.

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Entretanto, há certos casos em que a lei define expressamente qual a forma que o

ato deve ser realizado para que seja válido. A formalidade prevista em lei existe para os

negócios nos quais há uma maior necessidade de se imprimir respeito e garantia de validade9.

São chamados de formais ou solenes. Como exemplo, há o contrato de compra e venda de

imóvel com valor acima de trinta salários mínimos, que exige a escritura pública para sua

validade.

Embora haja proximidade de conceitos, não se deve confundir forma e prova dos

atos jurídicos. A forma reveste a manifestação de vontade, enquanto que a prova demonstra

legalmente a terceiros a existência do negócio jurídico, o que gera efeitos erga omnes, ou seja,

contra todos, e comprova processualmente os termos em que o contrato foi firmado.

Preenchendo esses requisitos, o contrato será existente e válido. No plano da

eficácia, ocorre a produção dos efeitos dos contratos.

De fato, existente e válido um negócio jurídico, o ordinário e habitual é que passe a produzir efeitos imediatamente. Todavia, em certos contratos, é possível, eventualmente, inserirem-se elementos acidentais que limitam a produção imediata de efeitos ou fazem cessá-los, se ocorridos determinados fatos preestabelecidos. Esses três elementos acidentais são os seguintes: a) Termo – evento futuro e certo, que protrai o começo da produção de efeitos (termo inicial) ou faz cessá-los (termo final). b) Condição – evento futuro e incerto que, se ocorrente, poderá dar início à produção de efeitos (condição suspensiva) ou fazer cessá-los (condição resolutiva). c) Modo/Encargo – determinação acessória acidental de negócios jurídicos gratuitos, que impõe ao beneficiário da liberalidade um ônus a ser cumprido, em prol de uma liberalidade maior.10

A formação do contrato depende de três fases, as fases pré-contratual, contratual e

pós-contratual.

A fase pré-contratual consiste nas negociações preliminares, na proposta ou oferta

e na aceitação. As negociações preliminares, também chamadas de fase de pontuação, são

sondagens, conversas sobre os interesses dos contratantes quanto ao negócio jurídico a ser

realizado, porém, sem haver nenhum tipo de vinculação jurídica entre os interessados11. Essa

9 Cf. Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil, 2012, p. 438. 10 Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 22. 11 Cf. Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro, 2009, p. 89.

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fase não cria direitos nem gera obrigações às partes, apenas serve de base para preparar o

consentimento das partes para que se conclua o contrato ou não.

A proposta consiste “na oferta de contratar que uma parte faz à outra, com vistas à

celebração de determinado negócio. Trata-se de uma declaração receptícia de vontade que,

para valer e ter força vinculante, deverá ser séria e concreta”12.

Nem toda manifestação de vontade em direção a um contrato é uma oferta. A

oferta traz uma vontade definitiva de contratar nas bases sugeridas, sem intuito de discussões

sobre o assunto e dirigindo-se à outra parte para que a aceite ou não.

A proposta deve conter todos os elementos essenciais do negócio proposto, como preço, quantidade, tempo de entrega, forma de pagamento, etc. Deve também ser séria e consciente, pois vincula o proponente (CC, art. 427). Deve ser, ainda, clara, completa e inequívoca, ou seja, há de ser formulada em linguagem simples, compreensível ao oblato, mencionando todos os elementos e dados do negócio necessários ao esclarecimento do destinatário e representando a vontade inquestionável do proponente.13 [grifo no original]

No Código Civil, a proposta vincula o proponente se séria e consciente, tendo ele

o ônus de mantê-la por certo período de tempo e de responder pelas consequências da

expectativa do negócio jurídico14. Há, no entanto, exceções à vinculação da proposta, quais

sejam a existência de cláusula expressa informando que a proposta não vincula, quando a

natureza jurídica do negócio não obriga (como nas propostas limitadas ao estoque existente,

reguladas no art. 429, CC), e em razão das circunstâncias em que foi realizada (nos casos do

art. 428, CC15).

Já no Código de Defesa do Consumidor, da recusa indevida de cumprimento à

proposta clara, precisa e séria, cabe execução específica dos artigos 35, I e 84, podendo o

consumidor exigir seu cumprimento nos termos apresentados ou até mesmo convertê-la em

perdas e danos, com direito à restituição de valores pagos, com atualização monetária. Nesse

12 Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 92. 13 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2012, p. 75-76. 14 Ibidem, p. 76-77. 15 Art. 428. Deixa de ser obrigatória a proposta:

I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante; II - se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo suficiente para chegar a resposta ao conhecimento do proponente; III - se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro do prazo dado; IV - se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente.

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caso, o fornecedor tem o dever de assegurar não apenas o preço e a característica do produto

ou serviço, mas ainda as quantidades em estoque disponíveis. Outrossim, há a possibilidade

do consumidor optar pela troca por outro produto ou prestação de serviço que seja equivalente

A aceitação é “o ato de aderência à proposta feita”16, a manifestação de vontade

concordante à proposta formulada. Em sendo uma manifestação de vontade, deverá ser

externada livre de vícios de consentimento, sob pena de anulabilidade do negócio jurídico. Se

a aceitação for feita com alterações ou fora do prazo, será considerada contraproposta, e não

uma aceitação, devendo os termos do contrato serem novamente analisados17.

O Código Civil prevê tanto a aceitação expressa quanto tácita. A aceitação

expressa ocorre quando o aceitante exprime claramente a sua vontade em pactuar nos termos

previstos na proposta. Ocorre aceitação tácita nos casos em que a aceitação expressa não

costuma ser usual, e quando é dispensada a aceitação expressa. A aceitação tácita é percebida

por meio de atos que demonstrem a vontade do aceitante em cumprir o contrato proposto,

podendo, ainda, ser percebida por meio do silêncio convencionado, como tratado

anteriormente.

O momento pós-contratual é aquele no qual as obrigações já foram executadas

pelas partes. Nele, devem ser preservados os princípios de probidade e boa-fé, assim como

nos demais fases contratuais, conforme preceitua o art. 422 do CC/02: “Art. 422. Os

contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução,

os princípios de probidade e boa-fé”. O desrespeito a esses princípios acarreta a

responsabilidade civil extracontratual: “A boa-fé determina, portanto, a existência de deveres

que subsistem numa fase pós-contratual e o descumprimento de tais deveres acessórios vai

acarretar uma responsabilidade pós-contratual, a chamada culpa post factum finitum”.18

Os contratos foco deste estudo são aqueles que se encontram na fase contratual,

aquela em que a obrigação está (e deve continuar) sendo cumprida, até que chegue à sua

extinção.

16 Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil, 2012, p. 514. 17 Cf. Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 98-99. 18 Ademir de Oliveira Costa Júnior. A responsabilidade “post factum finitum” no direito civil e do consumidor, 2007, p. 1.

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1.2 Extinção dos contratos

A extinção contratual é o momento em que o contrato se finda, seja pelo

adimplemento completo da obrigação, seja pela vontade de uma ou todas as partes em

encerrar a relação jurídica, seja por motivos alheios à vontade das partes.

A extinção natural do contrato ocorre com o cumprimento completo do contrato,

também chamado de adimplemento do contrato. Assim que se realiza a prestação, na forma

como foi pactuada, encerra-se a relação contratual. A execução do contrato pode ser

instantânea, continuada ou diferida. O cumprimento da prestação satisfaz o credor e libera o

devedor, comprovando-se o pagamento por meio da quitação19. Não havendo cumprimento do

contrato, ele pode ser extinto, de forma posterior à sua formação, tratada no item anterior,

através da resilição, da rescisão e da resolução contratual.

A resilição é a extinção do contrato por iniciativa de uma ou ambas as partes.

Frequentemente, utiliza-se o termo rescisão para tratar da resilição, porém esta é reservada

para tratar do desfazimento voluntário do contrato20. Essa extinção se dá sem operação

retroativa, não se restituindo as parcelas já executadas, no caso de contratos de trato

sucessivo, a não ser que seja estabelecido dessa maneira21.

A regra, no direito brasileiro, é que a resolução seja bilateral, também conhecida

por distrato, mas aceita-se a manifestação unilateral de vontade, nos casos permitidos em lei,

de forma explícita ou até mesmo implícita.

O distrato é trazido pela legislação no art. 472 do Código Civil: “Art. 472. O

distrato faz-se pela mesma forma que o contrato”. Pelo princípio da autonomia da vontade, as

partes podem tanto contratar como desfazer o negócio jurídico na forma como foi pactuado

inicialmente, tratando das consequências jurídicas do novo negócio, agora extintivo.

Como o artigo trata da forma, o distrato somente pode se realizar pela mesma

solenidade que foi celebrado para que seja válido. No entanto, se a forma pela qual o negócio

19 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2012, p. 178. 20 Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil, 2012, p. 493. 21 Cf. Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 238.

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jurídico foi realizado não era imposta pela lei, e sim determinada pela vontade das partes, não

é necessário que o distrato siga essa formalidade para que extinga o negócio.

Orlando Gomes22 traz uma observação pertinente:

Todos os contratos podem ser resilidos, por distrato. Necessário, porém, que os efeitos não estejam exauridos, uma vez que a execução é via normal da extinção. Contrato extinto não precisa ser dissolvido. Se já produziram alguns efeitos, o acordo para eliminá-los não é distrato mas outro contrato que modifica a relação. Geralmente o distrato é utilizado nos contratos de execução continuada para desatar o vínculo antes do advento de seu termo extintivo, mas pode ser convencionado para pôr termo a contrato por tempo indeterminado. Claro é que se o contrato cessa por se ter expirado o prazo estipulado, não há que se falar em distrato, pois, nesse caso, dá-se a extinção normal, por execução.

A quitação na resilição bilateral deve seguir os requisitos gerais da quitação do

art. 320 do CC23, devendo ser idônea e apresentar materialidade suficiente. Em análise geral

do ordenamento jurídico, o antigo art. 1.093 do CC/1916 dispunha o mesmo que o atual art.

472, todavia com o acréscimo de que “a quitação vale, qualquer que seja a sua forma”, o que

faz a doutrina entender que, mesmo com a atual omissão da expressão, foi mantida a

concepção de liberdade de forma24, tendo em vista que a quitação tem relação apenas com a

prova, liberando os contratantes a dá-la na forma que lhes convier.

Já a resilição unilateral apenas pode ocorrer nos casos previstos em lei25, como

preconiza o art. 473 do CC/2002:

Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.

22 Orlando Gomes apud Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 239. 23 Art. 320. A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante.

Parágrafo único. Ainda sem os requisitos estabelecidos neste artigo valerá a quitação, se de seus termos ou das circunstâncias resultar haver sido paga a dívida. 24 Cf. Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho, op. cit., p. 240-241. 25 Cf. Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2012, p. 205.

19

A extinção unilateral do contrato, pelo princípio da força obrigatória dos

contratos, não é bem vista pelo direito, mas é aceita para que as partes não fiquem presas a

uma obrigação que não querem mais cumprir, respondendo pela consequência do fim do

contrato, comunicando previamente a parte contrária e respeitando a disposição legal quanto à

sua admissão26.

Nos contratos de execução continuada, de trato sucessivo, que sejam por prazo

indeterminado, contra a sua continuação ou renovação, ocorre a denúncia, que deve ser prévia

para não acarretar danos ao outro contratante. Até o fim do decurso do prazo da denúncia,

todas as obrigações do contrato continuam sendo exigíveis27. Entretanto, considerando o

parágrafo único do art. 473, a denúncia deve ter prazo que seja compatível com a natureza e o

vulto dos investimentos do negócio jurídico.

Em contratos baseados na confiança recíproca, como no mandato e depósito, a

própria natureza do negócio jurídico permite que sejam extintos por vontade exclusiva de uma

das partes. Nesses casos, a resilição é conhecida por revogação, caso o mandante ou

depositante decidam findar o contrato; já no caso de o mandatário ou depositário – aqueles

que cumprem o objeto do contrato – extinguirem o negócio, a resilição é chamada de

renúncia.

Para produzir efeitos, a resilição independe de pronunciamento judicial e é ex

nunc, isto é, sem ter efeitos retroativos. Para ser válida, é necessária a notificação da outra

parte, momento no qual começa a produção dos seus efeitos. A justificativa não é necessária,

exceto nos casos em que o contrato exija a obediência à justa causa. “Nestas hipóteses a

inexistência de justa causa não impede a resilição do contrato, mas a parte que o resiliu

injustamente fica obrigada a pagar, à outra, perdas e danos.”28

A rescisão, por sua vez, é forma de dissolução de contratos quando ocorre lesão

ou estado de perigo na celebração do negócio jurídico. Está diretamente ligada à culpa como

acarretadora da extinção da relação contratual.

A lesão é defeito do negócio jurídico que se configura quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação

26 Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 241. 27 Cf. Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil, 2012, p. 496. 28 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2012, p. 206.

2 TEORIA DA IMPREVISÃO

2.1 Conceito e histórico da cláusula rebus sic stantibus

Para estudar a cláusula rebus sic stantibus, é necessário fazer uma análise

histórica do nascimento da teoria da imprevisão. Em termos gerais, a teoria da imprevisão,

cuja definição será melhor desenvolvida a seguir, é a teoria que prevê que o juiz tem o dever

de restabelecer o equilíbrio dos contratos em que as condições de sua execução, imprevisíveis

ao tempo em que o contrato foi firmado, tenham sido alteradas ao ponto de se tornarem

inviáveis à continuidade da prestação47.

O surgimento da teoria da imprevisão se deu com a necessidade de alterações

contratuais que não poderiam ser realizadas em virtude da existência da cláusula pacta sunt

servanda, que considerava que os pactos deveriam ser cumpridos a qualquer custo.

A cláusula pacta sunt servanda é atualmente conhecida como princípio da

obrigatoriedade dos contratos. Ele representa a força vinculante dos contratos, significando a

irreversibilidade da palavra empenhada48. Tem como fundamentos a necessidade de segurança

jurídica dos negócios e a intangibilidade do contrato, focando no cumprimento da vontade

acertada e na convicção de que o acerto de vontades faz lei entre os contratantes49. Portanto, o

inadimplemento contratual proporcionaria à parte prejudicada o direito de obrigar a outra

parte a cumpri-lo, tendo como sanção a execução.

No entanto, com o passar do tempo, percebeu-se a necessidade de serem alteradas

certas cláusulas de contratos que tinham se tornado extremamente onerosos a uma das partes,

tendo em vista a ocorrência de fatos supervenientes e imprevisíveis à época da contratação.

Assim surgiu a cláusula rebus sic stantibus. Em tradução livre, o termo rebus sic stantibus

significa “as coisas como elas são”. Destarte, se as condições tivessem se mantido inalteradas,

47 Márcio Klang apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 94. 48 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, 2012, p. 14-15. 49 Cf. Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2012, p. 49.

21

Os fatores de extinção do contrato não imputáveis às partes ocorrem com a morte,

o caso fortuito e a força maior. No caso da morte, as obrigações pactuadas pelo de cujus

podem ser exigidas de seus herdeiros, no limite de sua herança. O caso fortuito é “o evento

imprevisível devido à atuação humana alheia que poderia até ter sido evitado,

ordinariamente”33 e a força maior é evento inevitável, podendo ou não ser imprevisível. Em

ambos os casos, o devedor da obrigação não responde, exceto se houver previsão expressa de

sua responsabilidade.

Involuntariamente, o contrato se extingue, ainda, pela prescrição, pela decadência

e por impossibilidade superveniente física ou jurídica do cumprimento da prestação. A

prescrição é a perda da pretensão à ação judicial quanto ao fato ocorrido; e a decadência é a

extinção da obrigação em decorrência do fim do prazo de exercício de um direito potestativo.

Já a impossibilidade do cumprimento do contrato:

Há de ser objetiva, isto é, não concernir à própria pessoa do devedor, pois deixa de ser involuntária se de alguma forma este concorre para que a prestação se torne impossível. A impossibilidade deve ser, também, total, pois se a inexecução for parcial e de pequena proporção, o credor pode ter interesse em que, mesmo assim, o contrato seja cumprido. Há de ser, ainda, definitiva. Em geral, a impossibilidade temporária acarreta apenas a suspensão do contrato. Somente se justifica a resolução, neste caso, se a impossibilidade persistir por tanto tempo que o cumprimento da obrigação deixa de interessar ao credor. Mera dificuldade, ainda que de ordem econômica, não se confunde com impossibilidade de cumprimento da avença, exceto se caracterizar onerosidade excessiva.34

A inexecução voluntária do contrato se dá a partir de comportamento de um dos

contraentes, causando prejuízo ao outro. Ao resolver o contrato nessa situação, os efeitos são

ex tunc e a retroação acarreta a extinção do que foi anteriormente executado e na obrigação de

restituição das prestações cumpridas, condenando, outrossim, o inadimplente ao pagamento

de perdas e danos. Todavia, em caso de contratos duradouros, de trato sucessivo, a resolução

opera efeitos ex nunc e não se restituem as parcelas já executadas.

Há a possibilidade de existência de cláusula resolutiva explícita, o que facilita a

resolução contratual pela parte. O art. 474 do Código Civil afirma que “A cláusula resolutiva

expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial”. A cláusula pode ser

33 Roberto Senise Lisboa. Manual de Direito Civil, 2002, p. 237. 34 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2012, p. 192.

22

conceituada pela estipulação de que qualquer das partes pode optar pela resolução contratual

no caso do outro contratante não cumprir aquilo que lhe compete35.

Destarte, há necessidade de ajuizamento de ação para que se resolva o contrato,

tendo em vista o descumprimento na forma e termo ajustado. O inadimplente fica sujeito

ainda ao pagamento de perdas e danos, que serão cobrados pela via judicial, com a devida

liquidação do débito. “A provocação do Estado-Juiz somente se faz necessária para assegurar

uma certeza jurídica, o que é, em essência, a finalidade de qualquer postulação declaratória”36.

As demais resoluções se operam devido à cláusula resolutiva implícita, a qual se

presume presente em todos os contratos. Assim, a resolução deve ser requerida judicialmente

para a desconstituição do vínculo contratual, como assevera a parte final do art. 474 do

CC/02. A finalidade da interpelação judicial é, especialmente, a de dar ciência ao outro

contratante sobre a intenção de resolver o contrato, podendo ser substituída por outra

modalidade de cientificação, tal como o protesto extrajudicial.

Segundo o art. 475 do atual Código Civil, a parte lesada pode tanto pedir a

resolução do contrato, como exigir seu cumprimento e indenização por perdas e danos. A

doutrina tem entendido que a resolução contratual por inadimplemento deve ceder diante do

cumprimento quase completo das obrigações contratadas, não devendo o contrato ser extinto,

como forma de preservação e respeito à função social do contrato37.

Percebe-se, portanto, que a extinção do contrato deve ser motivada e que, em não

havendo motivo, a parte deve ser responsabilizada pelos prejuízos do inadimplemento

contratual e pelas perdas e danos causados à contraparte, devendo o juiz arbitrar os valores em

ação judicial.

35 Cf. Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil, 2012, p. 497. 36 Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 251. 37 Cf. Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2012, p. 181.

23

1.3 Revisão contratual em juízo

Após terem sido analisadas as formas de extinção dos contratos, resta entrar na

seara da revisão contratual sem que haja a necessidade de findar o negócio jurídico. Como

tratado anteriormente, Flávio Tartuce entende que a revisão contratual que não acarreta

extinção, mas é baseada na teoria da imprevisão, é aquela disposta no art. 317 do atual Código

Civil, supratranscrito, que, em síntese, preconiza que, ocorrendo a desproporção fundada na

imprevisão, a parte pode solicitar ao juiz a correção do valor da prestação para assegurar o

valor real da obrigação.

Nos casos em análise neste estudo, o escopo do inadimplente é exclusivamente a

revisão contratual, sem qualquer intuito de findar o negócio jurídico, tendo em vista a sua

necessidade de arguir uma onerosidade excessiva sem que tenha havido a alteração das

situações do momento da contratação, mas que surgiu devido à ocultação ou à deturpação de

informações maliciosamente à outra parte contratante.

Há um questionamento doutrinário acerca da dispensabilidade da intervenção

judicial para aplicação da teoria da imprevisão. Os artigos 478, 479, 480 do Código Civil, que

tratam da resolução ou modificação do contrato, e o artigo 317 do mesmo diploma legal, que

trata da modificação ou correção do valor da prestação, pressupõem uma intervenção judicial

para essas alterações, especialmente porque há previsão de que a sentença tem efeitos

retroativos à data da citação38, o que só pode ser determinado judicialmente.

Entende-se, porém, que não há a obrigatoriedade em acionar o juízo para extinguir

o vínculo contratual, segundo a previsão do artigo 473 do atual Código Civil: “Art. 473. A

resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera

mediante denúncia notificada à outra parte.” Se a outra parte contratante aceita os termos da

declaração de resilição, ou mesmo de algum tipo de alteração contratual, por onerosidade

excessiva e fato superveniente, sem opor nenhum tipo de resistência, não há que se falar em

interpelação judicial. No entanto, a probabilidade maior é de que haja uma relutância da

contraparte, o que pode acarretar consequências ao solicitante da modificação do negócio:

38 Cf. Paulo Roberto Roque Antônio Khouri. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente, 2006, p. 120.

24

Diante de uma resistência do contratante contra quem é dirigido o pleito, seja no sentido de resolver o contrato, seja no sentido de modificá-lo, é evidente que não haveria como fugir da intervenção judicial, sob pena de a parte pretensamente lesada ser considerada em mora quanto ao não-cumprimento da prestação que lhe compete. É que nenhuma parte está obrigada a aceitar nem a resolução nem a modificação nos termos propostos. A solução extrajudicial da questão passa evidentemente pela dependência da vontade das partes em aceitá-la ou não.39

Assim, em havendo propositura de ação judicial para modificação do contrato, o

juiz poderá analisar cada um dos requisitos da teoria da imprevisão, da onerosidade excessiva

superveniente, para decretar uma solução ao problema das partes ou julgar a demanda

improcedente. Se houver acordo entre as partes, elas podem alterar o que foi inicialmente

contratado ou encerrar o negócio jurídico, com base no princípio da autonomia da vontade,

sem a necessidade de intervenção judicial.

Ao acionar o juízo, não há uma ordem de preferência entre a resolução contratual

e a modificação do contrato. Logo, pode a parte solicitar aquilo que melhor lhe atenda na

necessidade de corrigir a onerosidade excessiva superveniente.

À partida, consoante uma interpretação literal do disposto nos artigos 478 e 479 do CCB, o lesado deveria primeiramente pleitear a resolução por onerosidade excessiva. Daí se passaria à hipótese do artigo 479: se o outro contratante, contra quem a resolução é pleiteada, pretendesse a continuidade do vínculo contratual, ele poderia pleitear a modificação equitativa das “condições do contrato”. Não parece que haja uma ordem de pleitos que necessariamente deva ser seguida: inicialmente, o devedor ou o credor só podem pedir a resolução e, posteriormente, se a parte contra quem for dirigida a resolução quiser a modificação, o contrato poderá ser, então, modificado. Se a outra parte não se oferecer para “modificar equitativamente as condições do contrato”, este será, então, resolvido.40

No caso de alegação da teoria da imprevisão, a parte prejudicada pode pleitear a

modificação com base nos artigos 317 do Código Civil. Todavia, para encerrar a dúvida sobre

a obrigatoriedade da resolução ou a possibilidade de modificação dos contratos eivados pela

teoria da imprevisão, foi elaborado o Enunciado nº 176 do Centro de Estudos Judiciários da

Justiça Federal, que dispõe: “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos,

39 Paulo Roberto Roque Antônio Khouri. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente, 2006, p. 121. 40 Ibidem, p. 122.

25

o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial

dos contratos e não à resolução contratual.”

O pedido de revisão judicial deve ser realizado antes mesmo que ocorra a

inexecução contratual culposa ou voluntária de uma das partes, pois a revisão em juízo deve

ser anterior às condutas que causem extinção anormal do contrato, tais como aquelas citadas

no item anterior (resolução, rescisão ou resilição). Para arguir a teoria de imprevisão e a

revisão judicial com base nela, o ônus da prova incumbe a quem o alega, que deve demonstrar

a onerosidade excessiva que foi a ele causada, não sendo a ele lícito que tire ilações gerais e

utilize-as em proveito próprio41.

Questiona-se, ainda, sobre a nova cláusula que será aplicada pelo julgador para

reger a relação jurídica modificada. A continuidade contratual “importa o restabelecimento do

equilíbrio econômico-financeiro da cláusula atingida pela onerosidade excessiva

superveniente”42, devendo o magistrado fixar o valor mais adequado à prestação.

Ocorre que, no entanto, essa alteração feita pelo juiz não pode tornar aquele

prejudicado pela teoria da imprevisão como o novo beneficiado, tendo vantagens e gerando

prejuízo ao seu credor no contrato. Ainda, deve o juiz garantir a segurança jurídica das partes

contratantes. Por isso, a solução para a determinação das cláusulas a serem modificadas

costuma ser dada pela equidade.

Aqui, ao contrário do que ocorre com relação à resolução, o legislador não indica parâmetros mais definidos para que se proceda à modificação. O texto legal do artigo 479 do CCB limita-se a determinar que “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”. O que se vê aqui é uma clara referência do legislador à equidade.43

Não há, portanto, um critério estabelecido na legislação para que seja realizada a

modificação da cláusula onerosa pelo magistrado. O art. 317 do Código Civil é aquele que

mais se aproxima da determinação de um parâmetro seguro para que se modifique o contrato,

pois afirma que deverá ser aplicado o “valor real da prestação”, o que delimita a intervenção

41 Cf. Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 123. 42 Paulo Roberto Roque Antônio Khouri. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente, 2006, p. 127. 43 Ibidem, p. 128.

26

judicial para se ater à necessidade de findar com a onerosidade excessiva superveniente que

atingiu o negócio jurídico.

Não há possibilidade de o juiz modificar o objeto da prestação, pois existe a

previsão do art. 313 do Código Civil que determina que “O credor não é obrigado a receber

prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa.” Se a parte, porém, solicitar a

alteração no modo de execução da prestação, é lícito ao magistrado intervir para modificar a

forma da execução, como, por exemplo, aumentar o número de parcelas em que seria paga a

prestação, reduzindo o ônus do devedor. Todavia, deverá ser avaliado se tal alteração não

acarretará onerosidade excessiva ao credor, pois a este pode ser imprescindível o recebimento

das parcelas na data inicialmente estipulada no contrato. Ademais, a forma de execução da

obrigação também deve se manter útil ao credor, mesmo se alterada.44

Vladimir Mucury Cardoso aborda o tema da revisão contratual nos casos em que

ocorre lesão no contrato:

O beneficiado detém, por força da lei, o poder de conservação do contrato. O negócio, afinal, não é censurado por ser imoral, logo, nulo. A avença, ao revés, é apenas impugnável pelo prejudicado, todavia o lesionário pode impedir a sua dissolução, desde que ofereça a sua condução à equidade. E o poder do explorador de manter o contrato modificado, prossegue, prevalece sobre o poder do lesado de promover a sua anulação, de forma que ao primeiro é dado impor ao segundo um contrato reduzido à equidade. Ao lesionário, portanto, restará sempre a possibilidade de manutenção da avença, desde que restaurada a equidade, o que [...] figura-se irrazoável, porque incentiva o ilícito. Sabendo o contraente mais forte de que poderá obstar uma eventual ação rescisória oferecendo o reequilíbrio da avença, tenderá a explorar a inferioridade alheia. Ademais, a norma legal dá origem a um novo abuso de parte do beneficiado, o qual, mais uma vez, imporá a sua vontade sobre o outro contratante.45 [grifos no original]

Destarte, percebe-se que, nos casos de lesão, há uma necessidade de revisão

contratual, ainda que a lei preveja a possibilidade de manutenção do negócio jurídico caso a

parte o aceite, visto que a manutenção do contrato é uma forma de incentivar o ilícito

praticado pela parte lesionária. Deve, portanto, nessas situações, ser incentivada a prática de

revisão do contrato até que seja atingida a equidade, como forma de manter o negócio jurídico

válido e ainda cessar a onerosidade descabida das prestações.

44 Paulo Roberto Roque Antônio Khouri. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente, 2006, p. 129-130. 45 Vladimir Mucury Cardoso. Revisão contratual e lesão à luz do Código Civil de 2002 e da Constituição da República, 2008, p. 366.

27

Para que o contrato seja modificado judicialmente, em geral, há a propositura da

ação revisional pelo devedor, aquele que considera ter sido atingido pela teoria da imprevisão.

É cabível nas situações previstas no artigo 471 do Código de Processo Civil, que prevê que

“nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I -

se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de

direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença” e, no

inciso II prevê a revisão nos demais casos prescritos em lei.

A ação revisional é baseada na necessidade de compatibilizar o valor das

prestações com o valor de mercado, por exemplo:

O princípio que move a ação revisional de aluguel é a necessidade de adequação de um valor de aluguel defasado ao preço de mercado, restabelecendo o equilíbrio contratual que havia no momento da celebração do acordo, mas que se dissipou com o tempo e as oscilações da moeda e dos índices de correção. Reflete, na verdade, a tendência de relativizar o princípio do pacta sunt servanda em prol do equilíbrio contratual – consagrada, hoje, inclusive, com o Código Civil. [...] O princípio pacta sunt servanda deve ser interpretado de acordo com a realidade socioeconômica. A interpretação literal da lei cede espaço à realização do justo. O magistrado deve ser crítico da lei e do fato social. A cláusula rebus sic stantibus cumpre ser considerada para o preço não acarretar prejuízo para um dos contratantes.46

Nos casos tratados neste estudo, não há uma sentença prévia que deverá ser

modificada, e sim, a execução das prestações determinadas em contrato, solicitando ao

magistrado a alteração da onerosidade que foi acarretada a uma das partes. Quando essas

situações ocorrem, costuma-se apelidar a ação de revisional, pois ela revê condições

anteriores de um contrato e dá uma solução para corrigir o dano que foi acarretado pela

imprevisão.

O que tem ocorrido no direito brasileiro é uma das partes realizar o contrato de

prestações sucessivas, acertando um valor que, no momento da aceitação da proposta, já se

apresenta maior do que aquele que poderia ele arcar e, vencido o termo de pagamento de

algumas das prestações, solicita a revisão do contrato, afirmando a ocorrência da onerosidade

excessiva quanto ao pagamento daquele valor mensalmente.

46 Paulo Eduardo Alves Silva. Ação revisional de aluguel. In: Fernando da Fonseca Gajardoni; Márcio Henrique Mendes da Silva. Manual dos procedimentos especiais cíveis de legislação extravagante, 2009, p. 284.

28

O entendimento jurisprudencial tem sido no sentido de julgar improcedentes, de

plano, as ações que são ajuizadas com esses argumentos, isto é, com essa causa de pedir, e,

ainda, de considerar essa prática como abuso do processo, condenando os requerentes em

litigância de má-fé – cujas definições serão abordadas no último capítulo deste estudo.

29

2 TEORIA DA IMPREVISÃO

2.1 Conceito e histórico da cláusula rebus sic stantibus

Para estudar a cláusula rebus sic stantibus, é necessário fazer uma análise

histórica do nascimento da teoria da imprevisão. Em termos gerais, a teoria da imprevisão,

cuja definição será melhor desenvolvida a seguir, é a teoria que prevê que o juiz tem o dever

de restabelecer o equilíbrio dos contratos em que as condições de sua execução, imprevisíveis

ao tempo em que o contrato foi firmado, tenham sido alteradas ao ponto de se tornarem

inviáveis à continuidade da prestação47.

O surgimento da teoria da imprevisão se deu com a necessidade de alterações

contratuais que não poderiam ser realizadas em virtude da existência da cláusula pacta sunt

servanda, que considerava que os pactos deveriam ser cumpridos a qualquer custo.

A cláusula pacta sunt servanda é atualmente conhecida como princípio da

obrigatoriedade dos contratos. Ele representa a força vinculante dos contratos, significando a

irreversibilidade da palavra empenhada48. Tem como fundamentos a necessidade de segurança

jurídica dos negócios e a intangibilidade do contrato, focando no cumprimento da vontade

acertada e na convicção de que o acerto de vontades faz lei entre os contratantes49. Portanto, o

inadimplemento contratual proporcionaria à parte prejudicada o direito de obrigar a outra

parte a cumpri-lo, tendo como sanção a execução.

No entanto, com o passar do tempo, percebeu-se a necessidade de serem alteradas

certas cláusulas de contratos que tinham se tornado extremamente onerosos a uma das partes,

tendo em vista a ocorrência de fatos supervenientes e imprevisíveis à época da contratação.

Assim surgiu a cláusula rebus sic stantibus. Em tradução livre, o termo rebus sic stantibus

significa “as coisas como elas são”. Destarte, se as condições tivessem se mantido inalteradas,

47 Márcio Klang apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 94. 48 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, 2012, p. 14-15. 49 Cf. Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2012, p. 49.

30

o contrato deveria ser cumprido; porém, caso tivesse ocorrido alguma modificação fática

extraordinária que impossibilitasse a execução da obrigação, o contrato poderia ser revisto.

O brocardo latino que deu origem à cláusula, em completo, é expresso por

conctractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus

intelliguntur, que significa “os contratos que têm trato sucessivo ou a termo ficam

subordinados, a todo tempo, ao mesmo estado de subsistência das coisas”50. Numa

interpretação gramatical, tem-se que os contratos dependem da manutenção da situação das

coisas. Por isso, em sendo as condições alteradas, faz jus o pactuante à revisão do acordado.

Antônio Jeová Santos traz uma definição da utilização da cláusula51:

Havendo modificação decorrente de instabilidade e de insegurança, principalmente no plano econômico, a técnica da “cláusula rebus sic stantibus” consiste em aplacar o rigor estrito do pacta sunt servanda, porque a imprevisibilidade e a extraordinariedade do fato que incidem no contrato e a manutenção do contrato na forma como celebrado acometem elementares sentimentos de justiça e de equidade, valores que permeiam o contrato desde a sua formação até a execução. A técnica jurídica encontrada para resolver circunstâncias desse jaez é a resolução do contrato ou a revisão que coloque o contrato em situação que permita seu cumprimento pela parte afetada. Há, nessa última hipótese, o restabelecimento do equilíbrio, normal e natural, que deve se manifestar em todos os contratos.

O início do uso da cláusula se deu em alguns fragmentos do Digesto, embora não

tenha sido ela expressa no Direito Romano como o supracitado brocardo latino. Seu emprego

“se baseava na assertiva de Paulo, segundo a qual in stipulatione, id tempo spectatu quae

contrahimus (nos contratos, interessa o momento em que se celebram e não o da

execução).”52 A teoria da época considerava que, para alguém cumprir o prometido, o estado

das coisas deveria ser o mesmo do momento da formulação da promessa.

Após o período romano, houve o estudo da matéria pelos canonistas, no início da

Idade Média, tendo como principais expoentes Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.

Havia uma profunda carga teológica sobre o tema, afirmando que o prometido não poderia ser

alterado – alteração de vontade caracterizaria uma anterior mentira, que era um pecado –,

50 Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 28. 51 Antonio Jeová Santos. Função Social do Contrato: Lesão e Imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2004, p. 213. 52 Ibidem, p. 215.

31

exceto se o pactuado fosse manifestamente ilícito ou se as condições do negócio houvessem

modificado.

De forma sistemática, como conhecida atualmente, a cláusula rebus sic stantibus

foi elaborada pelos pós-glosadores. A Escola dos Pós-Glosadores utilizou-se da dialética

escolástica – que consiste em conciliar a fé com a razão – para analisar os textos romanos,

tendo como conclusão a expressão contractus qui habent tractum successivum et

dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur. Nessa época, foi bastante expandido

o uso da cláusula, empregando-a também para revisão de disposições de última vontade,

promessas e juramentos. A utilização ampla e indiscriminada desse preceito acabou por

enfraquecê-lo, visto que chegou a causar insegurança jurídica às manifestações de vontade em

contratar.

Com o início dos ideais liberalistas, houve um período de ocaso da teoria, no fim

do século XVIII e começo do século XIX, por considerarem-na uma grande intervenção

judicial nos contratos, que, segundo seus princípios, deveriam ser autônomos e

autorreguláveis. A cláusula foi tão desconsiderada que nem mesmo foi inserida no Code

Civile francês, de Napoleão Bonaparte, uma das mais importantes bases do Direito Civil

moderno.53

O ressurgimento da teoria da imprevisão se deu com o fim da Primeira Guerra

Mundial, devido à necessidade de adaptação à nova realidade econômica que o mundo

experimentava. Assim, o direito começou a ser mais solidário, ético e social e voltou a

positivar a cláusula rebus sic stantibus nos ordenamentos jurídicos e, consequentemente, nos

contratos firmados.

O marco decisivo da volta do intervencionismo legal na seara dos contratos foi a

elaboração da Lei Failliot , lei francesa de 1918, que, criada no período de guerra, possibilitou

a resolução dos contratos de fornecimento de alimentos e mercadorias e que tivessem

obrigações diferidas, pactuados antes do início da guerra54. Nos demais países europeus, o

clima de tensão causado pela destruição das guerras fez com que as legislações passassem a

também reconhecer a teoria da imprevisão.

53 Antonio Jeová Santos. Função Social do Contrato: Lesão e Imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2004, p. 218-219. 54 Cf. Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 29-31.

32

No direito brasileiro, a influência da construção de um direito mais social e ético

chegou, ainda que tardia, para fundamentar o projeto de lei do atual Código Civil vigente:

A dimensão ética que impregna nosso Código Civil, como tanto acentua o mestre Miguel Reale, foi uma das forças motrizes que fizeram com que a doutrina rompesse com os pressupostos do individualismo. Regras de moral, de boa-fé, do abuso do direito, sentido marcante da justiça e da equidade, orientação que o direito napoleônico fez questão de desconhecer, porque inspirado em uma filosofia social e numa política liberal acachapante, além de individualista, [...], obrigaram os doutrinadores a melhor estudar a questão e adaptar o princípio à nova ordem mundial. O terreno foi amanhado para a recepção da teoria da imprevisão sem nenhuma restrição.55

2.2 Fundamentos teóricos da imprevisão

Diversas teorias embasam o desenvolvimento da imprevisão. Segundo

nomenclatura de Rodrigues Júnior56, que aborda o tema de maneira clara, porém complexa,

tais teorias podem ser divididas em: a) teorias internas ao contrato com base na vontade; b)

teorias internas ao contrato com base na prestação; e c) teorias externas ou extrínsecas ao

contrato.

Analisar-se-á separadamente cada fundamento teórico da imprevisão. A princípio,

as teorias internas com base na vontade, no entendimento de José Anísio de Oliveira, devem

ser afastadas, pois remetem aos vícios de consentimento, o que poderia levar à necessidade de

anulação ou resolução dos contratos, tornando desnecessária a revisão contratual por meio da

imprevisão.57

Dentre as teorias internas ao contrato com base na vontade, há cinco análises

definidas pelo autor supracitado. Em primeiro lugar, tem-se a teoria da pressuposição, criada

por Bernard Windscheid, a qual preconiza que, ao manifestar sua vontade em um contrato, o

55 Antonio Jeová Santos. Função Social do Contrato: Lesão e Imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2004, p. 220. 56 Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 81-93. 57 José Anísio de Oliveira apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior, op. cit., p. 81.

33

contratante a manifesta baseado em pressuposições que, se modificadas, o exoneram da

obrigação58.

A pressuposição é qualquer expectativa que o contratante cria, sem a qual aquele

que emitiu a declaração de vontade não a haveria emitido. O autor definiu a pressuposição

como uma condição não desenvolvida, uma limitação da vontade que, no momento da criação

do ato jurídico, não se desenvolveu o suficiente para ser considerada uma condição. “Se esta

pressuposição não se realiza, as consequências jurídicas corresponderão à vontade efetiva,

porém não à vontade verdadeira” 59.

Há, também, a teoria da base subjetiva do negócio, de Oertmann, sustentando que

o contrato fica adstrito às circunstâncias do momento em que foi firmado60. Em sendo as

circunstâncias alteradas, ou seja, modificada a base subjetiva do negócio, a parte devedora

pode ser desonerada do cumprimento.

Por outro lado, Karl Larenz reformulou a teoria da base do negócio jurídico,

dando origem à chamada por Rodrigues Júnior de teoria da base objetiva do negócio61.

Afirma que a base objetiva do negócio jurídico está intimamente relacionada com a

possibilidade de obtenção da finalidade do contrato e a intenção das partes contratantes. Desta

feita, se “o conjunto de circunstâncias cuja existência ou persistência pressupõe devidamente

o contrato”62, a alteração desse conjunto acarretaria na alteração da finalidade do contrato, o

que enseja em sua revisão.

Há, ainda, a teoria da vontade marginal, desenvolvida por Giuseppe Osti, a qual

sugere que seja estabelecida uma distinção entre vontade contratual, que ocorre no nascimento

do contrato, e vontade marginal, que surge apenas no momento em que a obrigação será

cumprida63, não sendo definitiva, pois as condições das duas vontades podem ser diversas ao

serem efetivadas.

58 Bernard Windscheid apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 82. 59 Cf. Antonio Jeová Santos. Função Social do Contrato: Lesão e Imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2004, op. cit., p. 227. 60 Oertmann apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior, op. cit., p. 83. 61 Karl Larenz apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior, op. cit., p. 83. 62 Paulo Carneiro Maia apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior, op. cit., p. 83. 63 Giuseppe Osti apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior, op. cit., p. 82.

34

Por fim, Achille Giovène criou a teoria do erro, na qual, utilizando-se em parte

dos conceitos da teoria anterior, preconiza que há uma vontade que é manifestada ao firmar o

contrato, conhecendo a realidade naquele momento, e, em havendo discrepância entre a

vontade inicialmente expressa e a vontade quando do cumprimento da obrigação, devido a

fatos supervenientes, concretiza-se o erro64.

O erro, entretanto, na aplicabilidade atual, quando caracterizado, enseja a

anulabilidade do negócio jurídico, o que remete diretamente à extinção contratual. A

imprevisão, por sua vez, intenta buscar meios de revisão, dando continuidade ao negócio

jurídico existente, porém sem a onerosidade superveniente.

As teorias internas com base na prestação baseiam-se na possibilidade de

execução do contato após a manifestação de vontade.

São espécies dessas teorias:

a) a teoria do dever de esforço, de R. Hartmann, segundo a qual o devedor, ao prestar suas obrigações, prende-se a determinado esforço. “Assim, não obstante o devedor se dedicar com empenho para realizar o comportamento prometido, e não for bem sucedido, por causa de um obstáculo superveniente, então o devedor ficará liberado da obrigação”. b) a teoria da ruína ou da impossibilidade econômica, de M. Volkmar, (...) defendendo que a inexecução do contrato possa ser considerada admissível em casos de alterações das circunstâncias econômicas objetivas, numa aplicação reflexa da boa-fé e da equidade.65

Quanto às teorias externas ou extrínsecas ao contrato, os fundamentos

contrapõem a execução dos contratos com questões metafísicas, tais como a boa-fé, a

equidade, a regra moral e a onerosidade excessiva.

A teoria da boa-fé é uma das teorias mais conhecidas no direito civil, tendo sido

usada como base dos Códigos Civil e de Processo Civil brasileiros. Na conceituação do

princípio, costuma-se dividi-lo em boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva. Esta se refere à

constatação da correta conduta dos contratantes, uma regra de conduta, enquanto aquela

significa o estado de consciência sobre uma situação, contrapondo-se à ideia de má-fé.66

64 Achille Giovène apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 82. 65 Otavio Luiz Rodrigues Júnior, op. cit., p. 85. 66 Cf. Renata Domingues Balbino Munhoz Soares. A boa-fé objetiva e o inadimplemento do contrato: doutrina e jurisprudência, 2008, p. 82.

35

A boa-fé subjetiva é o comportamento que consiste na ignorância de estar lesando

um interesse pertencente a outrem e tutelado pelo ordenamento jurídico. Serve de base para a

teoria da aparência, que protege terceiro que confia na aparência de uma situação jurídica

criada pela outra parte. É “a concepção na qual o sujeito ignora o caráter ilícito do seu ato. É

mais comum no Direito das Coisas, em temas como usucapião e aquisição de frutos, mas

encontra-se, também, em dispositivos do Direito de Família, como no casamento putativo”67.

É a boa-fé objetiva aquela usada para fundamentar a teoria da imprevisão.

Consiste em um conceito que está presente em todos os sistemas jurídicos ocidentais desde os

tempos primórdios, derivando, ainda, do direito natural, com base nos parâmetros da lealdade

e da honestidade. Foi desenvolvida, no modo como se a conhece hoje, pelo direito germânico,

tendo relação íntima com a ideia de conduta honesta.68

O princípio da boa-fé, além de servir como elemento interpretativo dos contratos,

também serve para a limitação de direitos. Ele impede que o sujeito aja contra sua conduta

anterior, barrando o venire contra factum proprium e outros institutos que representam

comportamentos contraditórios no direito privado, que serão melhor explicados no próximo

capítulo.

Outro fundamento extrínseco ao contrato é a teoria da equidade. O direito romano

defendia que o direito sem equidade é o mesmo que injustiça e que o excesso de direito gera

excesso de injustiça (summum ius, summa iniuria)69. A própria noção de justiça emana da

equidade, pois deve haver uma igualdade no tratamento para que este seja considerado justo.

Desta forma, a teoria da imprevisão tem como efeito o impedimento de que alguém pactue

para sofrer danos, visto que os contratos devem ser justos.

Nesse sentido, a lei não pode ser excessivamente rígida, sem levar em conta a

situação em que será aplicada, como forma de evitar a injustiça nas relações contratuais. A

equidade é, ainda, “a atuação do direito natural como complemento da positividade, que não

viola a lei dada, mas que a melhora e a aperfeiçoa”70.

67 Renata Domingues Balbino Munhoz Soares. A boa-fé objetiva e o inadimplemento do contrato: doutrina e jurisprudência, 2008, p. 81. 68 Ibidem, p. 98. 69 Cf. Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 87. 70 Antonio Jeová Santos. Função Social do Contrato: Lesão e Imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2004, p. 226.

A teoria da regra moral das obrigações sustenta que a moral é suporte da força

obrigatória do direito71. Numa ideia kantiana, as regras morais se configuram como

imperativos categóricos que descrevem aquilo que deve ser feito, ainda que não seja a vontade

da pessoa fazê-lo72. Assim, ainda que não seja do interesse da parte beneficiada rever o

contrato, a obrigação moral se superpõe à necessidade de cumprimento da obrigação, como

meio de impedir a injustiça ao contratante prejudicado com a situação superveniente e

imprevista.

Por derradeiro, há a teoria da onerosidade excessiva73, que é aplicável aos

contratos comutativos, nos quais ocorre um aumento da onerosidade com relação ao valor

informado em sua pactuação, devido a acontecimentos fortuitos, independentes da

voluntariedade do devedor. Para tanto, não será alterado apenas por aquele que considera a

prestação difícil de ser paga; pode ocorrer tanto pelo endividamento do devedor e sua

impossibilidade em cumprir com o valor acertado quanto pela desvalorização do preço

cobrado pelo credor, que se sente afetado pela margem de lucros irrisória em relação à

esperada. Por isso, a parte lesada tem o direito de pedir o reajuste do contrato para que fique

acertado à nova condição existente.

Com a devida vênia, adiciona-se ao entendimento doutrinário de Rodrigues Júnior

a teoria da função social do contrato, pois se entende que ela tem ligação direta com a teoria

da imprevisão. A função social do contrato consiste na análise da liberdade contratual, não

apenas quanto às partes pactuantes, mas em seus reflexos na sociedade. A atual ordem

constitucional tenta evitar a ingerência no exercício da vontade das partes, mas não se alheia

aos abusos da iniciativa contratual no meio social, pois “não pode permitir em nome da

liberdade negocial [que] a força econômica privada seja desviada para empreendimentos

abusivos, incompatíveis com o bem estar social e com os valores éticos cultivados pela

comunidade”74. O contrato, portanto, poderá ser relativizado se o prejuízo social for maior do

que o benefício inter partes.

71 Cf. Gustav Radbruch apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 86. 72 Elliott Sober. A teoria moral de Kant, 2006, p. 1. 73 Otavio Luiz Rodrigues Júnior, op. cit., p. 88-93. 74 Humberto Theodoro Júnior. O contrato e sua função social, 2008, p. 34.

37

Em suma, essas são as principais teorias que fundamentam a imprevisão nos

contratos. Para complementação do estudo, faz-se necessária, portanto, a análise desta no

ordenamento jurídico brasileiro e mundial.

2.3 Aplicação da teoria da imprevisão

2.3.1 No Direito comparado

Após a análise dos fundamentos teóricos da imprevisão, tem-se a necessidade de

definir a utilização dessa teoria. No Direito estrangeiro, diversos países positivaram a cláusula

em seus ordenamentos jurídicos, sendo os citados abaixo apenas alguns de vários exemplos.

Na Alemanha, a doutrina sobre o tema sempre foi muito desenvolvida, tendo em

vista os estudos de Windscheid, porém, não foi muito aplicada até o fim da Primeira Guerra

Mundial, pois o foco maior do Direito das Obrigações naquele país era a liberdade contratual.

O Código Civil alemão, mais conhecido como BGB (Bürgerliches Gesetzbuch) de 1896,

utilizava-se da interpretação dos contratos pela boa-fé. No entanto, com a Lei de

Modernização do Direito das Obrigações, que entrou em vigor em 2002, houve uma junção

do Direito do Consumidor no Direito Civil, ampliando a aplicação da teoria da base do

negócio jurídico e criando um direito geral de resolução dos contratos de execução diferida,

que permite a ruptura antecipada do vínculo caso esse não seja razoável a uma das partes75.

No direito italiano, o Código Civil de 1865 teve base napoleônica e repudiou a

imprevisão, focando no cumprimento do pacta sunt servanda. Em 1915, todavia, o Decreto-

lei nº 739 contemplou a possibilidade de revisão contratual em razão da guerra, comparando-a

à força maior76. O Código Civil atualmente em vigor, datado de 1942, assevera a força de lei

que os contratos possuem, mas trata também da imprevisão e onerosidade excessiva

superveniente como causas possíveis para justificar sua revisão.

75 Claudia Lima Marques apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 49-50. 76 Otavio Luiz Rodrigues Júnior, op. cit., p. 52.

38

A lei polonesa, por sua vez, em seu Código de Obrigações de 1933, estabelece

requisitos um pouco distintos para a revisão dos contratos:

(a) a obrigação a ser revista será necessariamente contratual, não se exigindo o caráter de reciprocidade das prestações; (b) o acontecimento, além de ser extraordinário, deve atingir uma parte considerável da população polonesa; (c) a modificação das circunstâncias deve acarretar dificuldades excessivas para a execução da prestação ou de perdas exorbitantes para o devedor ou credor.77

Em Portugal, a atual legislação vigente – Código Civil de 1966 – incorporou a

teoria da imprevisão em seus artigos 437º a 439º, admitindo a resolução dos contratos quando

as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar forem alteradas

anormalmente, desde que a exigência dessa obrigação imposta seja contrária à boa-fé e não

esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.

Na França, o Código Civil de 1804, conforme exposto anteriormente, negou toda

e qualquer forma de alteração judicial dos contratos como forma de assegurar o liberalismo.

Contudo, com a Lei Failliot , de 1918, a relativização dos negócios jurídicos foi novamente

possibilitada e, a partir da década de 1970, a boa-fé objetiva passou a contornar a realidade

jurídica do país, admitindo de forma mais aberta a revisão contratual.

No direito inglês, de doutrina do Common Law, não há positivação acerca de

contratos e obrigações, o que exige um estudo de teorias e precedentes. Uma teoria que se

assemelha à imprevisão é a da frustration of adventure, que considera que a frustração com o

fim do negócio jurídico enseja a resolução das situações nas quais houve alterações

substanciais nas circunstâncias da celebração do contrato78.

Por sua vez, os Estados Unidos da América regulamentam o direito civil no

chamado Restatement of the Law, que “procura, nas matérias onde as intervenções do

legislador não foram muito numerosas, expor de modo tão exato quanto possível, as soluções

que estão em maior harmonia com o sistema da common law americana”79, consolidando nele

77 Arnoldo Medeiros Fonseca apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 54. 78 Cf. Antonio Jeová Santos. Função Social do Contrato: Lesão e Imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2004, p. 229. 79 René David apud Otavio Luiz Rodrigues Júnior, op. cit., p. 64.

39

princípios, leis e precedentes sobre direito privado para basear as decisões dos tribunais

americanos. Nessa consolidação, há previsão de revisão contratual:

§ 454. Definição de impossibilidade – (...) impossibilidade significa não apenas a impossibilidade estrita, mas também a impraticabilidade em virtude de dificuldade extrema não razoável, gastos, danos, ou perdas envolvidas. § 455. Impossibilidade superveniente. (...) depois da formação de um contrato, ocorrem fatos que um dos contratantes não tinha motivo para prever e para a ocorrência do qual o mesmo contratante não contribuiu, no sentido de tornar a execução da promessa impossível, a obrigação do contratante é afastada, a menos que uma intenção contrária haja sido manifestada e embora já tenha ocorrido o inadimplemento por recusa anterior.80

A Argentina não tinha previsão da teoria revisionista até 1964, quando alterou o

seu Código Civil e estipulou a utilização da revisão para contratos de execução continuada,

quando houvesse grave desequilíbrio nas prestações pactuadas, dificultando o seu

adimplemento, tendo havido, ainda, um acontecimento adverso ao habitual e à previsibilidade

dos contratantes.

2.3.2 No ordenamento jurídico brasileiro

Após a análise da aplicabilidade da teoria no direito comparado, cabe demonstrar

como a temática é tratada no Brasil. Carlos Roberto Gonçalves trata sobre as particularidades

do assunto no ordenamento jurídico pátrio:

Entre nós, a teoria em tela foi adaptada e difundida por Arnoldo Medeiros da Fonseca, com o nome de teoria da imprevisão, em sua obra Caso fortuito e teoria da imprevisão. Em razão da forte resistência oposta à teoria revisionista, o referido autor incluiu o requisito da imprevisibilidade, para possibilitar a sua adoção. Assim, não era mais suficiente a ocorrência de um fato extraordinário, para justificar a alteração contratual. Passou a ser exigido que fosse também imprevisível.81

O Direito Brasileiro positivou a cláusula em Códigos e leis esparsas, não apenas

no âmbito do direito privado, mas até mesmo em áreas do direito público, tais como na Lei de

80 Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 64. 81 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, 2012, p. 51.

40

Licitações (Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993) e na Lei de Concessões (Lei nº 8.987, de 13

de fevereiro de 1995), além das leis intervencionistas no direito econômico. O foco deste

trabalho, todavia, é quanto ao direito privado e, por isso, tratar-se-á da positivação da teoria da

imprevisão nos Códigos Civil e do Consumidor brasileiros.

O Código Civil de 1916 nada previu sobre a resolução e revisão de contratos em

razão da onerosidade excessiva superveniente. Caio Mário da Silva Pereira discorre sobre a

inserção da cláusula rebus sic stantibus no direito brasileiro:

A primeira palavra francamente favorável à tese, entre nós, foi de Jair Lins, como desenvolvimento da teoria da vontade no negócio jurídico. Mas, a princípio, a resistência de nossos tribunais foi total. Em 1930 veio a lume famoso julgado de Nélson Hungria, abrindo a porta do pretório às novas tendências do pensamento jurídico. E, depois deste, diversos outros surgiram, ora admitindo em casos especiais a sua aplicação, ora aceitando-a em linhas estruturais generalizadas.82

Sílvio de Salvo Venosa aduz que o Código Civil de 1916 não possui regras sobre

a onerosidade excessiva, uma vez que foi orientado por princípios individualistas, mas que, há

muito, a teoria havia sido acolhida pelos tribunais, como mostra o excerto acima. Entretanto,

havia a necessidade de um texto legal expresso que tratasse sobre o tema.83

O atual Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) positivou a teoria

da imprevisão em sua Parte Especial, Livro I – Das Obrigações, Capítulo II – Da extinção do

contrato, Seção IV – Da Resolução por Onerosidade Excessiva.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

82 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, 2012, p. 139. 83 Cf. Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil, 2012, p. 467.

41

Deve-se, portanto, fazer uma análise de cada um dos elementos trazidos pelo

artigo 478, do Código Civil, e que caracterizam a imprevisão.

Na doutrina pátria, os requisitos para sua aplicação são, em síntese, cinco84.

Inicialmente, as prestações deverão ser, ao tempo da formação do contrato, equivalentes e

proporcionais, caracterizando um contrato sinalagmático, oneroso e comutativo, além de

dever ter sua execução diferida no tempo, pois, se instantâneo fosse, não haveria necessidade

de posteriores mudanças.

Outrossim, não pode ter havido qualquer vício social ou de consentimento à época

da contratação nem o contratante pode ter deixado de executar as prestações de modo

intencional ou culposo. Ainda, deve ter ocorrido situação superveniente, imprevisível e

inevitável, cujo gravame seja desmedido e que não seja decorrente de caso fortuito ou força

maior, uma vez que tais condições exonerariam por completo a obrigação da parte.

Quanto ao tempo de sua execução, os contratos podem ser divididos em contratos

instantâneos e contratos de duração. Os contratos instantâneos são aqueles cujos efeitos são

produzidos de uma única vez, ainda que sua produção de efeitos possa ser posterior ou no

momento da celebração, dividindo-se em contratos instantâneos de execução imediata e de

execução diferida. Já os contratos de duração, também chamados de contratos de trato

sucessivo, são as relações jurídicas contratuais que se cumprem por meio de atos reiterados,

podendo ter duração expressa ou indeterminada.85

A resolução do contrato baseada na teoria da imprevisão só poderá ser aplicada

nos contratos de trato sucessivo ou nos contratos instantâneos de execução diferida, visto que

sua execução se prolonga pelo tempo, podendo vir a ser vítima da alteração das condições

inicialmente pactuadas.

Ademais, os contratos, para serem revistos, precisam ser comutativos, ou seja,

aqueles em que as partes conhecem as suas prestações desde o momento da contratação, e

onerosos, que implicam em sacrifícios de ambas as partes em benefício uma da outra. Os

contratos gratuitos, por sua vez, não serão excessivamente onerosos, pois sua essência já

evidencia o desequilíbrio das prestações, em que o ônus de uma parte gera apenas benefício à

84 Cf. Otavio Luiz Rodrigues Júnior. Revisão Judicial dos Contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2006, p. 80. 85 Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 140-141.

42

outra. Os contratos aleatórios, em oposição aos comutativos, não devem ser objeto de análise

judicial, visto que a incerteza e o risco já são a base da sua pactuação.

A onerosidade excessiva da prestação é caracterizada por ser anormal, agigantada

e que cause sacrifício e prejuízo extraordinário para uma das partes. Exige-se, ainda, a

extrema vantagem pra uma das partes, o que é criticado pela doutrina, haja vista que nem

sempre o prejuízo de uma parte acarretará necessariamente em vantagem à parte contrária86.

Trata-se de uma onerosidade que, embora não torne impossível a prestação, seja um gravame

econômico imenso à parte prejudicada.

O acontecimento extraordinário é aquele que não é normal que se verifique no

mundo jurídico e no qual as partes não pensaram, pois era imprevisível àquilo que pretendiam

com o contrato. O fato extraordinário e imprevisível não pode ter a participação de nenhum

dos contratantes, pois isso ocasiona o denominado comportamento contraditório e torna

impossível a revisão contratual com base na imprevisão. Portanto, para a caracterização da

onerosidade excessiva, deve haver uma alteração notável e que cause extremo desequilíbrio

entre as partes:

A notável alteração causadora da situação de desequilíbrio do contrato deve determinar uma importante mudança da relação originária entre as prestações. Para que haja excessiva onerosidade, não basta qualquer alteração. Ela tem de ser suficiente para causar o desequilíbrio entre as partes no cumprimento das prestações a que se obrigaram. A modificação ocasionada por fatos extraordinários e imprevisíveis tem de ter magnitude e ser grande o suficiente para que ocorra desequilíbrio na prestação.87

Após a análise dos requisitos dos artigos 478 e 479 do Código Civil de 2002,

opera ressaltar, no entanto, que há entendimento doutrinário, defendido especialmente por

Flávio Tartuce, no sentido de que os artigos anteriormente referidos estão inseridos no

capítulo que trata da extinção dos contratos, e não de sua revisão88. Para tanto, a revisão

contratual por imprevisibilidade, ainda que tenha seus requisitos expressos no art. 478 do

Código Civil, é disposta, em verdade, pelo art. 317 do mesmo Código:

86 Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução), 1991, p. 28. 87 Antonio Jeová Santos. Função Social do Contrato: Lesão e Imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2004, p. 241. 88 Flávio Tartuce. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, 2005, p. 192.

43

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor real da obrigação.

Assim, para a apreciação judicial da teoria da imprevisão, o fato superveniente

deverá ser imprevisível e extraordinário, não estando vinculado ao risco inerente do contrato,

devendo ser alheio e externo àquele que solicita a aplicação da imprevisão, além de não

existir culpa, negligência, mora relevante ou falta de cuidado do prejudicado, convertendo-se

em obrigação excessivamente onerosa ao obrigado, sem a necessidade de que seja de

cumprimento impossível, e evidenciando um desequilíbrio notório que não poderia ter sido

suposto por nenhum dos contratantes89.

Maria Helena Diniz trata sobre como deve agir o magistrado para apurar o pedido

de revisão contratual com base na imprevisão:

O órgão judicante deverá, para lhe dar ganho de causa, apurar rigorosamente a ocorrência dos seguintes requisitos: a) vigência de um contrato comutativo de execução continuada que não poderá ser aleatório, porque o risco é de sua própria natureza e, em regra, uma só das partes assume deveres; b) alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, em confronto com as do instante de sua formação; c) onerosidade excessiva para um dos contraentes e benefício exagerado para o outro; d) imprevisibilidade e extraordinariedade daquela modificação, pois é necessário que as partes, quando celebraram o contrato, não possam ter previsto esse evento anormal, isto é, que está fora do curso habitual das coisas, pois não se poderá admitir a rebus sic stantibus se o risco advindo for normal ao contrato. ‘A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz’ (Enunciado n. 175 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil). Se o magistrado conceder ganho de causa, ter-se-á a liberação do devedor ou a redução da importância, ou melhor, das prestações ajustadas, e as que porventura foram dadas ou recebidas na pendência da lide estarão sujeitas a modificação na execução da sentença. A sentença produzirá entre as partes efeito retroativo, desde a data da citação (CC, art. 478). 90

Caio Mário defende a impossibilidade da alteração do contrato sem a postulação

judicial:

89 Cf. Antonio Jeová Santos. Função Social do Contrato: Lesão e Imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2004, p. 242. 90 Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro, 2009, p. 164-165.

44

O contratante prejudicado ingressará em juízo no curso de produção dos efeitos do contrato, pois que se este já estiver executado não tem mais cabimento qualquer intervenção. É igualmente necessário que o postulante exija em Juízo a resolução do contrato. Mesmo em caso de extrema onerosidade, é vedado ao queixoso cessar pagamentos e proclamar diretamente a resolução. Terá de ir à Justiça, e esta deverá apurar com rigor os requisitos de aplicação da teoria revisionista. Uma vez concedida, opera a liberação do devedor. As prestações efetuadas antes do ingresso em juízo não podem ser revistas, mesmo comprovada a alteração no quadro econômico, porque a solutio espontânea do devedor produziu os seus naturais efeitos.91

Já o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990)

trouxe como princípio da relação jurídica consumerista o princípio do equilíbrio econômico

do contrato, em seu artigo 6º, inciso V. Dessa forma, admitiu ser direito do contratante

consumidor a modificação das cláusulas contratuais que determinassem prestações

desproporcionais ou a sua revisão em caso de onerosidade excessiva.

Art. 6º. São direitos do consumidor: (...) V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

A diferença que marca a imprevisão do Código do Consumidor é que nele não há

a previsão de que o acontecimento seja imprevisível, apenas que as prestações se tornem

onerosas por fatos supervenientes. É nessa disposição que se encontra o ponto fraco da teoria

da imprevisão, que pode vir a ser utilizada judicialmente com abuso do processo e, até

mesmo, abuso de direito.

Portanto, vislumbra-se que o direito positivo brasileiro admite a utilização da

teoria da imprevisão, como forma de modificar os contratos que, por alteração superveniente

das condições contratuais, tenham causado excessiva onerosidade à parte obrigada a prestá-

las, podendo entrar em juízo para revê-los, ainda que a cláusula rebus sic stantibus não esteja

expressamente prevista no contrato. A imprevisão é autorizada como forma de impedir que

haja injustiça nas relações contratuais e, mitigando os princípios da autonomia da vontade e

do pacta sunt servanda, objetiva proporcionar equidade e segurança jurídica à parte

prejudicada pelas situações extraordinárias e imprevisíveis.

91 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, 2012, p. 141.

45

3 PRÁTICAS ABUSIVAS MATERIAIS E PROCESSUAIS

3.1 Comportamentos contraditórios no Direito Privado

A proibição do venire contra factum proprium deriva da regra da boa-fé e da

segurança jurídica dos contratos. Ao celebrar um negócio jurídico, a parte gera um estado de

confiança na contraparte, estado esse que é rompido ao se modificar a situação e ir contra o

fato pactuado.

Em tradução literal, significa “vir contra fato próprio” e não se considera razoável

que a parte aja e, logo após, tenha conduta oposta. É baseado na premissa de que os

contratantes devem agir de forma coerente, devido à confiança neles depositada pela parte

contrária, tendo em vista a expectativa gerada por seu comportamento inicial92.

Esse agir anterior deve ser idôneo para amparar um juízo positivo, e objetivamente fundado, a respeito da coerência do titular do direito. Em outras palavras, é mister que o factum proprium possa ser razoavelmente entendido por uma pessoa normal, colocada na posição do confiante, como uma tomada de atitude quanto a determinada circunstância futura. [...] na objetividade de tal avaliação, repousa o mecanismo que assegura que a tutela outorgada pelo mencionado impedimento não alcançará os demasiadamente ingênuos, hipótese em que carregaria a pecha da injustiça.93

Na IV Jornada de Direito Civil, organizada pelo Centro de Estudos Judiciários da

Justiça Federal, foi aprovado o Enunciado nº 362, que afirma “A vedação do comportamento

contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se

extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”, o que faz perceber que essa vedação é prestigiada

pelo direito brasileiro.

Para que o factum proprium tenha um potencial prejudicial à parte, devem ser

objeto de análise um critério objetivo e um subjetivo e, em sendo ambos positivos, o

comportamento contraditório deve ser reprimido. A princípio, deve-se averiguar se, nas

condições da conduta inicial, um homem médio pudesse crer que a obrigação seria

92 Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 82-83. 93 Elena de Carvalho Gomes. Entre o Actus e o Factum: os Comportamentos Contraditórios no Direito Privado, 2009, p. 99.

46

descumprida. Essa análise deve ser objetiva, afastando da proibição casos em que se dá maior

credibilidade às indicações fornecidas pelo titular do que elas realmente merecem. Logo após,

no critério subjetivo, a parte deve confiar naquilo que a contraparte lhe prometeu cumprir e

deve, ainda, desenvolver atividades para dar continuidade ao negócio jurídico. Para a

apuração do caráter contraditório do exercício do direito, não há necessidade de que tenha

relação com o ânimo ou propósito do agente, devendo unicamente ter relação entre o

comportamento precedente e o resultado que se busca obter com a conduta posterior94.

O que se deve analisar é a contradição entre o sentido objetivo da conduta inicial, à luz da confiança que se alega objetivamente despertada por quem invoca o venire contra factum proprium, e o sentido objetivo da conduta posterior (ou seja, do resultado que ela pretende obter), à vista da mesma confiança. Para haver a incidência do princípio, deve a contradição gerar ipso facto a ruptura da confiança. É, portanto, sob o prisma da confiança suscitada que se deve verificar se houve, ou não, incoerência entre o comportamento inicial e o comportamento posterior.95

Assim sendo:

[...] a proibição do comportamento contraditório não quer limitar, em absoluto, a liberdade de mudar de opinião e de conduta, mas apenas frear o exercício desta liberdade quando daí possa derivar prejuízo a quem tenha legitimamente confiado no sentido objetivo de um comportamento inicial. É fruto, assim, de uma evolução na perspectiva do direito, que vem transcender a ótica individualista do agente que pratica a conduta, para, em uma postura mais solidária, proteger aqueles sobre quem a conduta se reflete, diminuindo a insegurança e a incerteza que tendem a acompanhar as relações sociais em uma realidade complexa, massificada e despersonalizante.96

Ademais, deve haver dano ao confiante, pois a proibição tem intuito de evitar o

prejuízo, podendo ser este atual ou eventual. A contraparte fica obrigada a ressarcir os danos,

removê-los ou evitar que eles ocorram. A razoabilidade entende que seja aplicada a via

indenizatória apenas quando tenham sido esgotados os meios de impedir o dano.

Há, na teoria do direito, institutos afins ao venire contra factum proprium, que

serão analisados a seguir.

94 Cf. Elena de Carvalho Gomes. Entre o Actus e o Factum: os Comportamentos Contraditórios no Direito Privado, 2009, p. 107-109. 95 Anderson Schreiber. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, 2007, p. 112-113. 96 Ibidem, p. 6.

47

O estoppel é um instituto muito utilizado no direito de base inglesa e significa,

etimologicamente, obstáculo ou detenção. “Define-se como mecanismo que impede a

produção de alegações em contradição com o sentido objetivo do anterior comportamento ou

declaração do agente”97. Ocorre quando são percebidas mudanças de atitude de um

contratante que sejam prejudiciais à confiança alheia, sendo necessário que o responsável

tenha auferido vantagem ou que a parte contrária tenha sofrido prejuízo. É bastante utilizado

no direito internacional como decorrência do princípio da boa-fé objetiva, vedando os

comportamentos contraditórios nesse âmbito do direito.

O estoppel tem o condão de obstruir a arguição e a prova da falsidade de um determinado estado de fato, que as condutas anteriores do sujeito pareciam, de alguma forma, legitimar. Seu principal efeito consiste em fazer com que o confiante seja colocado na mesma posição em que estaria, caso suas expectativas não tivessem sido frustradas.98

A diferença entre estoppel e a proibição de venire contra factum proprium se

encontra no fato de que aquela tem natureza defensiva, atuando apenas como exceção judicial,

o que implicaria no impedimento de alegação de certos fatos e circunstâncias. Já a proibição

de agir contra fato próprio pode embasar pedido de reparação dos danos causados pela quebra

de confiança, o que não acontece com estoppel.

Tu quoque deriva da expressão dita por Júlio César ao ser assassinado por seu

filho adotivo Brutus. No português, é conhecido por “Até tu, Brutus?”, usado para demonstrar

surpresa e desapontamento com relação a uma pessoa na qual se tinha confiança e esperava

dela lealdade99. Ocorre quando a parte viola uma norma e, posteriormente, decide alegá-la

para exercer o direito que esta mesma norma lhe atribui.

Juridicamente, o tu quoque vem referido como o emprego, desleal, de critérios valorativos diversos para situações substancialmente idênticas. Trata-se da fórmula jurídica de repressão ao que, no vernáculo, se resume como “dois pesos, duas medidas”. Assim, é comum encontrar-se alusões ao tu quoque naqueles casos em que uma parte, após violar uma norma, pretende exercer uma posição jurídica que esta mesma norma lhe assegura.

97 Elena de Carvalho Gomes. Entre o Actus e o Factum: os Comportamentos Contraditórios no Direito Privado, 2009, p. 124. 98 Ibidem, p. 124. 99 Cf. Ibidem, p. 133.

48

No ordenamento jurídico pátrio, a previsão que mais se assemelha com tu quoque

é a exceção do contrato não cumprido, prevista no artigo 476 do Código Civil100, que afirma

que “a parte que não cumpriu o contrato não pode exigir da contraparte o seu cumprimento”.

Por sua vez, um exemplo de tu quoque citado pela doutrina é a alegação de nulidade de um

contrato por ausência de assinatura, quando a parte que alega a nulidade deliberadamente

deixou de assiná-lo quando solicitada a fazê-lo.

Essa figura costuma ser considerada como uma espécie ou uma variação do venire

contra factum proprium, pois é uma situação em que a confiança alheia na estabilidade do

comportamento é lesada pela contraparte, tendo como exigência, a mais do que o gênero – vir

contra fato próprio –, essa quebra da confiança, da lealdade da parte que foi prejudicada.

A supressio constitui a supressão de um direito em virtude da falta de seu

exercício por determinado período. Foi bastante desenvolvida na jurisprudência alemã com o

nome de Verwirkung “para designar a inadmissibilidade de exercício de um direito por seu

retardamento desleal”101.

Trata-se de instituto distinto da prescrição, que se refere à perda da própria pretensão. Na figura da supressio, o que há é, metaforicamente, um “silêncio ensurdecedor”, ou seja, um comportamento omissivo tal, para o exercício de um direito, que o movimentar-se posterior soa incompatível com as legítimas expectativas até então geradas.102

Nela, a deslealdade se encontra na violação às expectativas usuais daquele que

acreditava não ser mais exercível o direito que foi suprimido. É uma espécie da proibição do

venire contra factum proprium, a qual trata exclusivamente de um comportamento omissivo

da parte, o que gera a ineficácia do direito que lhe cabia. Como exemplo, tem-se situação em

que um locador empresarial, com contrato estipulado por prazo de cinco anos, decide não

reajustar o valor dos aluguéis e, passados três anos de contrato, decide, além de reajustar o

aluguel, cobrar todas as parcelas do reajuste dos anos decorridos. A opção que ele teve de não

reajustar a prestação fez com que seu direito fosse suprimido e, ainda que não tivesse ocorrido

prescrição ou decadência de seu direito, constitui um comportamento contraditório da parte.

100 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. 101 Anderson Schreiber. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, 2007, p. 185. 102 Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 84.

49

Já a surrectio é o cenário contrário, que ocorre quando surge a exigência de um

direito como decorrência do comportamento das partes103, chamada no direito alemão de

Erwirkung. O exercício continuado de um ato jurídico contraditório ao que foi convencionado

em contrato gera um direito subjetivo às partes. Para que ocorra, deve haver a conjugação de

três requisitos, segundo a doutrina:

Exige-se um certo lapso de tempo, por excelência variável, durante o qual se atua uma situação jurídica em tudo semelhante ao direito subjetivo que vai surgir; requer-se uma conjunção objectiva de factores que concitem, em nome do Direito, a constituição do novo direito; impõe-se a ausência de previsões negativas que impeçam a surrectio.104

Um bom exemplo para explicar tanto as duas figuras anteriores é o art. 330 do

Código Civil, que diz que “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir

renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. Desta feita, ocorre a supressio do

direito do credor de exigir o pagamento no local previsto do contrato, assim como há a

surrectio do direito do devedor de pagar em local diverso do contratado, cumprindo sempre

no novo lugar tolerado.105

Há, ainda, a proibição de alegação da própria torpeza como instituto afim à

vedação do comportamento contraditório. É conhecido em latim pelo brocardo nemo auditur

propriam turpitudinem allegans, que significa “ninguém pode ser ouvido ao alegar a própria

torpeza”. A doutrina brasileira entende que essa proibição é aplicada de forma implícita, pois,

ainda que não esteja disposta atualmente em nenhuma lei, extrai-se do ordenamento jurídico a

proibição de alegação da simulação quando é praticada pela própria parte.106

A proibição de alegação da própria torpeza permanece, entretanto, referida como um princípio geral de direito de uso recorrente. Assemelha-se ao nemo potest venire contra factum proprium pelo fato de ambos impedirem uma conduta posterior, em virtude de uma conduta inicial adotada pelo mesmo centro de interesses. [...] a diferença entre as duas figuras é clara na medida em que o que essencialmente se reprime com o nemo auditur propriam turpitudinem allegans é a torpeza, o dolo, a malícia de quem praticou a conduta inicial. E o nemo potest venire contra factum proprium, ao contrário,

103 Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, 2009, p. 85. 104 Antônio Manuel da Rocha Menezes Cordeiro. Da Boa Fé no Direito Civil, 2000, p. 821-822. 105 Cf. Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho, op. cit., p. 85. 106 Cf. Anderson Schreiber. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, 2007, p. 174.

50

independe de intenção subjetiva do agente; bastando-lhe a contradição objetiva entre os dois comportamentos.107

A intenção dessa máxima é impedir que as partes invoquem a sua própria malícia

para serem dela beneficiados. O atual Código Civil, ainda que não preveja expressamente tal

proibição, repudia a simulação dos atos jurídicos, considerando-o causa de nulidade do

negócio jurídico.

A distinção entre a proibição de alegação da própria torpeza e de ir contra fato

próprio se encontra exatamente no bem e no sujeito tutelados por cada uma delas. Aquela visa

à repressão da malícia daquele que indevidamente a invocou para se tornar titular de um

direito, enquanto esta pretende defender o estado de confiança daquele que confiou na

coerência da contraparte.108

A máxima protestatio facto contraria nihil relevat significa que o protesto não é

válido caso o comportamento declaratório consentir apenas a interpretação contra a qual o

declarante pretende se acautelar. Depende intimamente do conceito de protesto, que é

“declaração pela qual uma pessoa acautela e proclama que certo comportamento seu não tem

determinada significação negocial, que de outro modo receia que pudesse ser-lhe validamente

atribuída.”109 Ocorreria, portanto, nos casos em que a parte declare um comportamento

mediante protesto tão somente para ser interpretado de forma contrária ao direito que a

contraparte tem a exercer.

Diversas vezes o protesto pode ser considerado como uma contraposição da

vontade anterior do titular do direito, uma vez que o sujeito afasta a caracterização de sua

conduta como uma declaração de vontade. Assim, pode ser realizado com o fito meramente

de excluir o reconhecimento de direito alheio. Porém, não há uma definição clara de quando o

protesto realizado será irrelevante ou não.

Ademais, muitas vezes, a contrariedade de intenções ou do significado da conduta do agente não podem sequer observar-se numa perspectiva global, em vista da absoluta coerência verificada entre seu comportamento anterior, e o protesto, cuja finalidade será, nesse caso, garantir a posição do declarante

107 Anderson Schreiber. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, 2007, p. 175-176. 108 Cf. Elena de Carvalho Gomes. Entre o Actus e o Factum: os Comportamentos Contraditórios no Direito Privado, 2009, p. 131. 109 Manuel A. Domingues de Andrade apud Elena de Carvalho Gomes, op. cit., p. 139.

51

precavido. Não haveria, aí, a contradição de comportamentos exigida para a incidência da vedação de voltar-se contra os próprios atos, muito menos a possibilidade de formulação de confiança digna de tutela, por parte do declaratário.110

Nessa seara, o entendimento de Elena de Carvalho Gomes111 é que essa máxima

deva ser rechaçada, para que se compreenda que o protesto realizado é válido, devendo ser

provado em juízo, caso não o protesto não seja feito.

Em análise derradeira, em se tratando do pedido de revisão judicial dos contratos

devido ao uso indevido da teoria da imprevisão, ocorre claramente uma atuação contraditória

da parte autora, que indicou uma condição pessoal e econômico-financeira ao realizar o

contrato e, a posteriori, afirma não ter tal condição e solicita redução do ônus que o contrato

lhe causou. Para enquadrar essa conduta em um dos tipos de comportamento contraditório

supracitados, considera-se que inseri-la na hipótese de nemo auditur propriam turpitudinem

allegans seja o mais adequado, visto que há uma alegação inicial de possibilidade de

adimplemento da obrigação e, ainda que a situação em nada tenha se modificado, a parte

alega o seu próprio falseamento da realidade como forma de legitimar o seu pedido de revisão

judicial. Devido ao fato dessa prática ser um comportamento contraditório, a parte que dela se

utilizou incorre no abuso do direito, conceito que será explanado a seguir.

3.2 Abuso do direito e abuso do processo

O abuso do processo surge como um desdobramento da concepção de abuso do

direito, mais precisamente, abuso do direito subjetivo que um indivíduo tem ao processo. O

abuso ocorre quando o sujeito excede os limites aceitáveis para o exercício de um direito.

Segundo Bruno Miragem112, “abuso é exercício irregular, na exata medida em que o titular ao

exercer seu direito atua de modo a violar padrões, parâmetros estabelecidos para este

exercício”.

110 Elena de Carvalho Gomes. Entre o Actus e o Factum: os Comportamentos Contraditórios no Direito Privado, 2009, p. 141. 111 Ibidem, p. 142. 112 Bruno Miragem. Abuso do direito: proteção da confiança e limite ao exercício das prerrogativas jurídicas no direito privado, 2009, p. 19.

52

A expressão ‘abuso do direito de demandar’ contém um sentido verdadeiramente absurdo, embora consagrada em vários ordenamentos e, sobretudo, na doutrina, em obras até clássicas sobre a matéria. Na conhecida objeção de Planiol, se é ‘abuso’, não há direito; se há ‘exercício de um direito’, não há abuso. Dentro da lógica pura, a crítica procede. Mas, dentro da realidade, sente-se a verdadeira acepção: há uma aparência de exercício legítimo de um direito; mas, no fundo, a intenção é de lesar terceiro, deturpando-se, assim, aquele exercício. Ninguém o faz de modo visível, concreto, com desfaçatez, mas, sim, agindo sorrateiramente, mascarando o ânimo de prejudicar com toda a crosta de legalidade.113

Antes do atual Código Civil de 2002, o ordenamento jurídico brasileiro não previa

qualquer tipo de proibição expressa ao abuso do direito. Nele, contudo, há o artigo 187, que

preconiza que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede

manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos

bons costumes”. Vislumbra-se, portanto, que a lei exige o preenchimento de requisitos para

que um ato seja considerado exercício abusivo de um direito, sendo eles: a ocorrência de

abuso durante o exercício de um direito subjetivo114; a titularidade do direito pelo agente; o

excesso dos limites impostos pelo fim econômico ou social, pela boa-fé ou bons costumes; e

que seja esse excesso manifesto.115

Já o abuso do processo ocorre quando há o exercício do direito de ação, por parte

do requerente ou requerido, excedendo os limites da boa-fé no processo e as situações

subjetivas processuais.

No abuso do processo, os sujeitos são as partes da relação jurídica processual. São

elas que podem exceder, em juízo, os limites impostos pela legislação processual. No conceito

clássico de ação, há a parte autora, a parte ré e o juiz como sujeitos no processo. Entretanto,

em sendo o juiz a autoridade, o tipo de abuso que for cometido por ele é mais considerado

como abuso de poder do que propriamente abuso do processo116. Ademais, a finalidade deste

estudo é a demonstração do abuso do processo cometido pela parte autora.

No que tange ao objeto do abuso do processo, há o entendimento de que:

113 Alcides de Mendonça Lima apud Anne Joyce Angher. Litigância de má-fé no processo civil, 2005, p. 79-80. 114 Corresponde à “faculdade ou ao poder conferidos ao indivíduo pela norma de direito positivo, a qual reconhece a prevalência de um interesse juridicamente protegido” (Helena Najjar Abdo. O Abuso do Processo, 2007, p. 35). 115 Cf. Helena Najjar Abdo, op. cit., p. 44-46. 116 Ibidem, p. 48-50.

53

(i) o objeto mínimo do abuso no processo é a singular situação subjetiva processual; (ii) cada uma dessas situações subjetivas processuais refere-se a um sujeito processual; (iii) além disso, elas manifestam-se por meio de atos (condutas) desses sujeitos e, (iv) assim como no abuso do direito, a irregularidade, no abuso do processo, é verificada no exercício do direito ou da situação subjetiva, (v) com aparência de legalidade.117 [grifos no original]

São cinco as situações subjetivas processuais, quais sejam, faculdade, poder,

dever, ônus e sujeição. As duas primeiras são situações subjetivas ativas, enquanto que as três

últimas são passivas.

A faculdade e o poder são permissões de conduta, sendo que aquela se exaure na

esfera jurídica do agente e este tem escopo de modificar a esfera jurídica alheia. Exemplos são

a faculdade que a parte tem em recorrer de uma decisão judicial, que gera o poder de que o

juiz reavalie a situação anteriormente decidida. Quanto às situações passivas, o dever é a

exigência de um comportamento da parte, o ônus é o exercício necessário de uma faculdade

para a consecução de um interesse, e a sujeição é a imprescindibilidade de se submeter a um

comando. Para esclarecer os conceitos, um caso de dever é o dever de lealdade processual, de

ônus, há o ônus da prova, e de sujeição é a sujeição ao provimento final da ação.118

Ônus, nesse sentido, são atividades que devem ser desempenhadas, e, uma vez desempenhadas, geram benefícios àquele que do ônus se terá desincumbido. Omisso aquele a quem cabia o ônus, as consequências negativas da omissão sobre este recaem. Cumprido o ônus, a parte dele se libera. O dever é permanente e não se esgota com o seu ‘cumprimento’. Diferentemente da obrigação, que também libera o adimplente, o dever se liga a uma conduta, e não a um ato isolado. O juiz, em contraposição ao que ocorre com as partes, tem, predominantemente, deveres. Não tem, no processo, obrigações nem faculdades. A faculdade existe quando a parte pode optar, e o sistema jurídico é indiferente à sua opção. Optando pela possibilidade A ou B de ação, isso não implica a ocorrência de consequências diferentes. Portanto, a expressão ‘faculdade’, no mais das vezes, é imprópria para qualificar juridicamente a atividade do juiz e das partes. Estas têm ônus (de contestar, de provar, de recorrer etc.) e aquele tem deveres (poderes-deveres).119

Quando há o uso anormal de uma dessas situações subjetivas processuais,

exercendo-as fora dos limites legais e sendo um obstáculo ao bom andamento da ação, ocorre

117 Helena Najjar Abdo. O Abuso do Processo, 2007, p. 74. 118 Cf. Ibidem, p. 65-70. 119 Luiz Rodrigues Wambier; Teresa Arruda Alvim Wambier apud Anne Joyce Angher. Litigância de má-fé no processo civil, 2005, p. 37.

54

o abuso do processo. Para identificá-lo, deve, pois, ter ocorrido o desvio de finalidade. Este,

por sua vez, se caracteriza pelo exercício de algum direito processual com finalidades

impróprias ou diversas de sua destinação normal, ou, ainda, o uso da máquina judiciária com

objetivos diversos à finalidade usual do processo120.

Assim, o objetivo natural de um processo é a prestação jurisdicional de um direito

que a parte possui ou crê, de boa-fé, possuir. Se a parte age de má-fé, ajuizando uma ação

para obter direitos os quais não possuía ou se não cumpre com um dever ou sujeição

processual para prejudicar a contraparte, está agindo de forma abusiva e anormal no processo.

A anormalidade a que tanto se referem os estudiosos reside na disparidade existente entre os meios de que o sujeito se utiliza e os fins por ele almejados. Ou melhor, a discrepância (ou o desvio) existe em relação aos fins previstos pelo sistema para determinados meios e os fins efetivamente pretendidos pelo agente com a prática do ato, no livre exercício das situações subjetivas de que é titular.121

Com base nisso, segundo as teorias jurídicas sobre abuso do processo122, os

critérios para que ele ocorra são a conjugação da aparência de legalidade do ato da parte, com

a preexistência de um direito subjetivo e o abuso do exercício do direito. Acima, foram

tratadas as situações subjetivas e seu uso anormal, o que caracterizam, respectivamente, a

preexistência do direito subjetivo e o abuso do exercício do direito. Resta explanar a definição

de aparência de legalidade.

Reveste-se o ato abusivo no processo de uma aparência de legalidade. Isso

significa que, à primeira vista, o ato praticado pela parte aparenta ser regular e lícito, pois

parece estar exercendo seu direito. Contudo, em uma análise mais profunda, percebe-se que

tal prática vai além do exercício regular do direito e excede os limites aceitáveis da conduta.

Destarte, deve ser comprovado, em juízo, que o ato apenas tinha aparência de legalidade, mas

que, de fato, consistia em ato ilegal, contrário à disposição de lei e da boa-fé processual.

Quanto ao direito brasileiro e sua disciplina sobre abuso do processo, o artigo 14

do Código de Processo Civil define os deveres das partes no processo:

120 Cf. Helena Najjar Abdo. O Abuso do Processo, 2007, p. 89. 121 Ibidem, 2007, p. 91. 122 Ibidem, 2007, p. 37-42.

55

Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: I - expor os fatos em juízo conforme a verdade; II - proceder com lealdade e boa-fé; III - não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; IV - não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito; V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.

Dentre os deveres das partes no processo, o dever de lealdade é a base do

impedimento do abuso do processo. Esse dever impõe aos litigantes que procedam com

moralidade e probidade, agindo com ética e moral, durante todo o curso do processo, sem se

utilizar de subterfúgios com intuito de saírem vitoriosos ou protelarem o andamento do

feito.123 Está previsto expressamente no art. 14, II do Código de Processo Civil, juntamente

com o dever das partes de agir com boa-fé.

Nesse mesmo artigo, em seu inciso I, há a disposição do dever de veracidade,

obrigando as partes a expor os fatos em juízo conforme a verdade. Entretanto, a verdade de

que trata a lei processual civil brasileira refere-se à índole subjetiva, bastando que, para

cumprir com tal dever, a parte acredite naquilo que afirma, até porque não pode ser exigido da

parte que faça afirmações que possam beneficiar a contraparte ou prejudicar seu próprio

direito. 124 Por outro lado, se a parte não lograr êxito em provar os fatos que narrou em juízo,

não significa que descumpriu o dever de veracidade no processo; significa apenas que o ônus

da prova daquele fato foi muito grande e poderá acarretar na improcedência do pedido.

Ademais, segundo o inciso III supracitado, as partes não devem formular

pretensões ou alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento, o que é mero

desdobramento do dever de veracidade. Normalmente, a inobservância deste inciso é causada

pelos advogados das partes, visto que as alegações e fundamentações são elaboradas por eles.

“A inescusabilidade do erro, que pode ser até grosseiro, mas não necessariamente, retrata a

má-fé, descrita no inciso III de forma tão subjetiva pela expressão: cientes. Assim, havendo

inescusabilidade objetiva haverá ciência da falta de fundamento da pretensão ou defesa”125.

123 Cf. Anne Joyce Angher. Litigância de má-fé no processo civil, 2005, p. 43-44. 124 Ibidem, p. 55-59. 125 Ibidem, p. 60.

Pode ocorrer em qualquer momento do processo, não apenas nas peças exordial e

contestatória, mas sempre que houver alguma formulação de pedido ou pretensão de defesa.

Já o inciso IV abarca a proibição de produzir provas ou praticar atos que sejam

inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito. Quando as provas não são

pertinentes ou não têm serventia, são consideradas inúteis, e caso sejam prescindíveis, são

desnecessárias ao processo, e acabam caracterizando-se como atos protelatórios126.

Por fim, o inciso V trata do dever de cumprir com exatidão os provimentos

mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais. O objetivo da lei é

impedir embaraços desnecessários ao bom andamento processual e facilitar a celeridade dos

processos.

Caso as partes não cumpram com os deveres previstos no artigo 14 do CPC, serão

sancionadas pelo juiz. As sanções previstas em lei para o abuso do processo são a reparação

de danos causados à contraparte, multa – cujo percentual dependerá da previsão legal em que

se enquadra o ato praticado pela parte –, restrição de direitos, nulidade ou inexistência do ato,

ou, até mesmo, sanções penais, caso o abuso praticado esteja tipificado em lei penal.

Passa a se analisar, a partir de agora, a modalidade de abuso do processo

conhecida por litigância de má-fé e o que ela acarreta às partes envolvidas no processo em

que é praticada.

3.3 Litigância de má-fé e consequências jurídicas

Litigância de má-fé é o comportamento da parte no processo que fere as regras da

boa-fé e objetiva o prejuízo da parte contrária. É, outrossim, uma decorrência do abuso do

direito de demandar.

O abuso do direito de demandar ocorre pela irregular utilização do direito em vista de sua finalidade, caracterizando-se o litigante de má-fé como aquele que excede o uso regular do direito de demandar. Trata-se, pois de uma

126 Anne Joyce Angher. Litigância de má-fé no processo civil, 2005, p. 62.

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conduta de responsabilidade subjetiva e que deve ser mais objetivamente configurada, para o fim de tornar-se mais efetiva a sua punição.127

Nelson Nery Júnior128 define litigante de má-fé como “a parte ou interveniente

que, no processo, age de forma maldosa, com dolo ou culpa, causando dano processual à parte

contrária”. Apreende-se desse conceito que responsabilidade jurídica decorrente da litigância

de má-fé é considerada de natureza subjetiva, resultante da análise da culpa em sentido estrito

ou do dolo129.

Para ocorrer a litigância de má-fé, o dano deve ser processual e derivado de ato

atentatório à boa-fé no processo, conforme disposição do art. 17 do Código de Processo Civil,

cujo rol é taxativo.

Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II - alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - provocar incidentes manifestamente infundados; VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Desta forma, a litigância de má-fé ocorre quando a parte pratica um dos atos

previstos no art. 17 do CPC. O inciso I desse artigo aduz ser litigante de má-fé aquele que

deduz pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso, o que remete

diretamente ao inciso III do art. 14, do mesmo Código, já analisado no tópico anterior. O

intuito da proibição de ação contra texto expresso de lei é obstar que a parte litigante deduza

pretensão ou defesa que tenha fundamentação sem qualquer discutibilidade objetiva130.

Agir contra texto expresso de lei, porém, nem sempre constitui ato de litigância de má-fé processual. O sentido dos termos contra texto expresso de lei não é o de inconformismo com o conteúdo da lei. Se assim fosse, não teria cabimento um pedido de declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica, o que ocorre, necessariamente, mediante a dedução de uma pretensão contra aquele texto expresso de lei. [...] Pleitear contra texto expresso de lei é, ademais, postular contra texto que não admite outra interpretação, como é o caso do prazo de defesa no rito ordinário do processo de conhecimento, indicado no artigo 297 do Código de

127 Valter Ferreira Maia. Litigância de má-fé no Código de Processo Civil, 2002, p. 57. 128 Nelson Nery Júnior apud Valter Ferreira Maia, op. cit., p. 76. 129 Cf. Valter Ferreira Maia, op. cit., p. 76. 130 Cf. Ibidem, p. 99.