Revista Acadêmica da Prainha

108
ISSN IMPRESSO: 1807-5096 ISSN ELETRÔNICO: 2357-9420 Revista Acadêmica da Prainha Ano X/2 Julho/Dezembro 2013 Prof. Ms. Pe. Antonio Almir Magalhães de Oliveira Prof. Dr. Érico Tadeu Xavier Ir. Graça Disingakala Nunes Profa. Dra. Ir. Aíla Luzia Pinheiro de Andrade Esp. Fanty Ferreira ter Reegen Prof. Dr. Pe. Francisco Evaristo Marcos Profa. Dra. Francisca Galiléia Pereira da Silva Prof. Dr. Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha

Transcript of Revista Acadêmica da Prainha

Page 1: Revista Acadêmica da Prainha

ISS

N I

MP

RE

SS

O 1

80

7-5

09

6IS

SN

EL

ET

ROcirc

NIC

O 2

35

7-9

42

0

Revista Acadecircmica da PrainhaAno X2 JulhoDezembro 2013

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier

Ir Graccedila Disingakala Nunes

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade

Esp Fanty Ferreira ter Reegen

Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

Suelen Pereira da Cunha

Revista Acadecircmica da PrainhaAno X2 JulhoDezembro 2013

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n2 p 117-225 2013

Correspondecircncias K A I R Oacute S ndash Revista Acadecircmica da Prainha ndash ISSN 1807-5096 Endereccedilo Rua Tenente Beneacutevolo 201 - Cep 60160-040 Tel (0xx85) 3453-2150 Fortaleza ndash Cearaacute ndash Brasil

Ficha catalograacutefica

Bibliotecaacuteria responsaacutevel Deusimar Frutuoso de Almeida CRB- 3578

KAIROacuteS Revista Acadecircmica da Prainha Faculdade Catoacutelica de Fortaleza ndash Ano I nordm 1-2 (jandez 2004) - ndash Fortaleza FCF 2004 ndash Semestral ISSN 1807-5096 1 Teologia ndash Perioacutedicos 2 Filosofia ndash Perioacutedicos 3 Ciecircncias Humanas ndash Perioacutedicos 4 Ciecircncias Sociais ndash Perioacutedicos 5 Educaccedilatildeo ndash Perioacutedicos I Faculdade Catoacutelica de Fortaleza

CDD 105 205 305

37005

Eacute proibida a reproduccedilatildeo dos artigos publicados nesta revista sem preacutevia autorizaccedilatildeo Os artigos publicados sua originalidade e redaccedilatildeo satildeo de inteira responsabilidade dos seus autores e natildeo reproduzem necessariamente a opiniatildeo da revista

Kairoacutes ndash Revista Acadecircmica da Prainha Ano Ano X2 JulhoDezembro 2013

Chanceler D Joseacute Antonio Aparecido Tosi Marques Arcebispo Metropolitano de Fortaleza

Diretor e Redator Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Redator adjunto Profa Ms Lisieux DrsquoJesus Luzia de Arauacutejo Rocha Publicaccedilatildeo Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Diretor Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

Secretaacuteria Maria Uyaacutera Feacutelix Beleza Diagramaccedilatildeo Evaldo Amaro dos Santos

CONSELHO CIENTIacuteFICO Prof Dr Carlos Josaphat OP Prof Dr Francisco Manfredo Thomaz Ramos (FCF) Prof Dr Henrique Noronha Galvatildeo (UCP-Lisboa) Prof Dr Luis Alberto De Boni (PUCRS) Prof Dr Manfredo Oliveira (UFC) Prof Dr Maacutercio Fabri dos Anjos Prof Dr Marcus Roberto Nunes Costa (UFP) Prof Dr Maacuterio de Franccedila Miranda SJ (PUC-RJ) Prof Dr Ney de Souza (PUCndashSP-Assunccedilatildeo) Prof Dr Pedro Rubens SJ (UNICAP-PE) Profa Dra Paula Oliveira e Silva (Universidade do Porto)

CONSELHO EDITORIAL Prof Dr Francisco de Aquino Paulino Prof Dr Francisco Evaristo Marcos Prof Dr Joseacute Fernandes de Oliveira Prof Dr Moeacutesio Pereira de Souza Profa Dra Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade Profa DraTacircnia Maria Couto Maia Profa Dra Maria Celeste de Sousa Impressatildeo Graacutefica Encaixe

SUMAacuteRIO I - Seccedilatildeo Teoloacutegica Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira Os ministros da igreja caracteriacutesticas e exigencias 127

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier A teologia de Tiago feacute em accedilatildeo 133

Ir Graccedila Disingakala Nunes Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta 146 II - Seccedilatildeo Filosoacutefica Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

A eacutetica poliacutetica em Maquiavel 161 Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha Sobre a relaccedilatildeo dinacircmica da realidade supra-sensiacutevel segundo Proclo 189 III - Ensaio Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ As fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas do ldquocastelo interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila 208 IV - Traduccedilatildeo Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Comeccedilam os erros dos filoacutesofos Aristoacuteteles Averroacuteis Avicena Algazel Al-Kindi Maimonides coletados por irmatildeo Egiacutedio da ordem de Santrsquo Agostinho 216 V - Resenha Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ Miacutestica de olhos abertos 223

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 125-126 2013

125

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos esta ediccedilatildeo da KAIROacuteS Revista Acadecircmica da Prainha Aleacutem de ser uma manifestaccedilatildeo das pesquisas e estudos do nosso corpo docente eacute um prazer receber contribuiccedilotildees de outros estudiosos - um fator de enriquecimento para a Revista

A Seccedilatildeo Teoloacutegica traz uma rica e austera reflexatildeo sobre os ministros da Igreja o que se deve e se pode esperara deles neste tempo

Como conciliar e unir feacute e accedilatildeo chama a atenccedilatildeo para a carta de Tiago

O artigo sobre vocaccedilatildeo como resposta e natildeo como uma escolha eacute como se fosse uma conclusatildeo dos artigos anteriores

A Seccedilatildeo filosoacutefica traz um bem fundamentado artigo sobre a Eacutetica Poliacutetica em Maquiavel tentando esclarecer seu contexto e significado Um estudo sobre Proclo e sua doutrina a realidade supra-sensiacutevel e seu dinamismo encerra esta seccedilatildeo

No contexto da Miacutestica eacute apresentado um ensaio sobre as fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas da obra ldquoCastelo Interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila

Na Seccedilatildeo traduccedilatildeo um texto de Egiacutedio de Roma que continua o contexto da traduccedilatildeo anterior a aceitaccedilatildeo de Aristoacuteteles na segunda metade do Seacuteculo XIII

Uma Resenha do Livro conhecido teoacutelogo Johanns Metz Miacutestica de olhos abertos encerra este nuacutemero

A todos uma proveitosa leitura

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

126

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

127

OS MINISTROS DA IGREJA CARACTERIacuteSTICAS E EXIGENCIAS1

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

1 O padre servidor do povo

O documento da CNBB nordm 100 ndash Comunidade de comunidades ndash uma nova paroacutequia ndash A conversatildeo pastoral da paroacutequia em seu capiacutetulo 5 tem como tiacutetulo ndash Sujeitos e Tarefas da Conversatildeo Pastoral Reuacutene quais satildeo os sujeitos da referida conversatildeo (bispos presbiacuteteros diaacuteconos permanentes os consagrados e os leigos) Deter-me-ei nos sete nuacutemeros que fazem alusatildeo agrave figura do presbiacutetero (nordm199-205)

Esta parte comeccedila afirmando que o presbiacutetero eacute chamado a ser padre-pastor exprimindo quais suas caracteriacutesticas dedicado generoso acolhedor e aberto ao serviccedilo da comunidade faz referecircncia ao excesso de atividades como um sinal preocupante que pode prejudicar o equiliacutebrio pessoal do padre (cfn 199)

Em algumas comunidades encontram-se presbiacuteteros desencantados cansados Nesta ocasiatildeo o documento em apreccedilo chama a atenccedilatildeo para algo que eacute muito grave e que merece de noacutes presbiacuteteros em especial aos paacuterocos a atenccedilatildeo

A sobrecarga de trabalhos pode dificultar a capacidade de relacionamento dos presbiacuteteros tornando-os apaacuteticos aos sofrimentos dos outros insensiacuteveis aos pobres rude no tratamento de seus paroquianos e incapazes de manifestar a misericoacuterdia e a bondade de Cristo do qual satildeo ministros Eles precisam ser ajudados (nordm 200)

1 Constantes satildeo os apelos do Magisteacuterio da Igreja tanto do Bispo de Roma como dos bispos do Brasil sobre os ministros ordenados Denotam-se caracteriacutesticas agraves quais estes ldquoservidoresrdquo do povo devem corresponder Em trecircs artigos escritos em ocasiotildees diferentes o Padre Almir Magalhatildees faz uma descriccedilatildeo e siacutentese geral das exigecircncias que satildeo a base de um ministeacuterio evangeacutelico adaptado aos nossos dias

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

128

Vivemos numa sociedade do vazio da superficialidade e neste contexto somos entre outras realidades formadores de opiniatildeo com um papel importante na sociedade de fazer a contraposiccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser considerado manipulaccedilatildeo das consciecircncias O documento tambeacutem contribui neste aspecto quando afirma que ldquoOutra preocupaccedilatildeo se refere agrave atualizaccedilatildeo do padre diante das aceleradas mudanccedilas que ocorrem na modernidade Ele pode ficar atrasado no tempo e afastado da realidade No ativismo pode ser que natildeo se dedique ao estudo e natildeo se prepare melhor para escutar e entender os anseios dos que o procuramrdquo (Nordm 201) Afinal de contas apesar de o modelo eclesioloacutegico do Vaticano II ser trinitaacuterio uma eclesiologia de comunhatildeo sob a qual todos satildeo responsaacuteveis pela accedilatildeo evangelizadora ldquoA conversatildeo pastoral da paroacutequia depende muito da postura do presbiacutetero na comunidaderdquo (Nordm 202)

Para que boa parte destas realidades aconteccedila seraacute de fundamental importacircncia que o presbiacutetero acolha bem as pessoas exerccedila a paternidade espiritual sem distinccedilotildees evitando atitude seletiva de privileacutegios a grupos A ou B renovando sua espiritualidade para ajudar tantos irmatildeos que buscam a paroacutequia (Cfnordm 202) Identicamente eacute preciso evitar-se que paroacutequias possam projetar uma imagem contraacuteria daquilo falado ateacute aqui a imagem de uma Igreja distante burocraacutetica e sancionadora (Cfnordm 37)

Devemos melhorar nosso atendimento e a paroacutequia haacute de estabelecer o diverso neste item comeccedilando pelo padre Isto requer que o presbiacutetero cultive profunda experiecircncia de Cristo vivo com espiacuterito missionaacuterio coraccedilatildeo paterno que seja animador da vida espiritual e evangelizador capaz de promover a participaccedilatildeordquo (Nordm 203)

Finalmente o padre deve ser formado para ser servidor do seu povo Eacute por este motivo que deve existir cuidado com o preparo permanente e a formaccedilatildeo nos seminaacuterios de acordo com esta visatildeo pastoral que considera a paroacutequia uma comunidade de comunidades tal como insiste a Igreja no Brasil a respeito da formaccedilatildeo presbiteral (Nordm 205 e Doc 93 da CNBB)

A questatildeo fundamental eacute como superar o ldquomodelordquo atual de paroacute-quia muito mais voltada para a sacramentalizaccedilatildeo conservaccedilatildeo para o modelo expresso no documento aqui refletido ldquoO ministeacuterio sacerdotal tem uma forma comunitaacuteria radical e soacute pode se desenvolver como tarefa coletivardquo (Nordm 204)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

129

2 Tentaccedilotildees dos agentes de pastorais

O tiacutetulo desta reflexatildeo eacute retirado da segunda parte do Capiacutetulo II da Exortaccedilatildeo Apostoacutelica A Alegria do Evangelho do Papa Francisco (Na crise do compromisso comunitaacuterio) Admito que muitos agentes jaacute tiveram acesso a esta Exortaccedilatildeo mas considero que a maioria ainda natildeo teve acesso e desta forma socializo algumas questotildees relevantes desta parte e que tecircm incidecircncia na vida dos agentes de pastoral Uma avaliaccedilatildeo eacute incontestaacutevel o Papa sempre desconcerta

Logo no iniacutecio afirma o Pontiacutefice sua gratidatildeo pela tarefa de quantos trabalham na Igreja e que a nossa tristeza e a vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja natildeo devem fazer esquecer os inuacutemeros cristatildeos que datildeo a vida por amor e agradece o belo exemplo de que datildeo tantos cristatildeos que oferecem sua vida e o seu tempo com alegria (Cfnordm 76)

Em seguida convoca a uma espiritualidade missionaacuteria chamando a atenccedilatildeo para algo que particularmente considero uma peacuterola em termos de anaacutelise da situaccedilatildeo atual ao assinalar que a vida espiritual de muitos agentes se confunde com alguns momentos religiosos que proporcionam algum aliacutevio mas natildeo alimentam o encontro com os outros o compromisso no mundo a paixatildeo pela evangelizaccedilatildeo (Cf nordm 78) Saliento que jaacute vi esta observaccedilatildeo ser feita por outros pastoralistas entretanto quando parte de teoacutelogos geralmente eacute avaliada como tendenciosa fechando-se Agora eacute o Papa Francisco quem faz a afirmaccedilatildeo

Uma tocircnica sua no diaacutelogo com o mundo eacute o encontro com o outro o que natildeo faltou tambeacutem nessa Exortaccedilatildeo ldquoO ideal cristatildeo convidaraacute sempre a superar a suspeita a desconfianccedila permanente o medo de sermos invadidos as atitudes defensivas que nos impotildee o mundo atual Muitos tentam escapar dos outros se fechando na sua privacidade confortaacutevel ou no ciacuterculo reduzido dos mais iacutentimos e renunciam ao realismo da dimensatildeo social do Evangelhordquo (Nordm88) Ele trata deste assunto na mesma Exortaccedilatildeo no Cap IV

Relevante eacute como ele conclui este mesmo nordm 88

ldquoPorque assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual sem carne nem cruz tambeacutem se pretendem relaccedilotildees interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos por eacutecrans e sistemas que se podem acender e apagar agrave vontade Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraccedilar o risco do encontro com o rosto do outro com a sua presenccedila fiacutesica que interpela com os seus sofrimentos e suas reivindicaccedilotildees A verdadeira feacute no Filho de Deus feito carne eacute inseparaacutevel do dom de si mesmo da

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

130

pertenccedila agrave comunidade do serviccedilo da reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros Na sua encarnaccedilatildeo o Filho de Deus convidou-nos agrave revoluccedilatildeo da ternurardquo

Percebam que neste pequeno trecho o Papa nos daacute material para um retiro de no miacutenimo 7(sete) dias pois relembra uma heresia do seacutec II ndash o docetismo que nega a humanidade de Cristo afirmando em outras palavras que hoje tambeacutem faltam nos cristatildeos as relaccedilotildees interpessoais substituiacutedas pela ldquotelinhardquo portanto sem cruz sem encontro na comodi-dade Estamos conectados quase que permanentemente sem preocupaccedilatildeo com o sofrimento dos outros Analisem minuciosamente e comparem com a realidade em que o Papa confere autenticidade da feacute Ela se revela em quatro pontos dom de si mesmo pertenccedila agrave comunidade serviccedilo e reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros

Concluo esta reflexatildeo em primeiro lugar exprimindo que natildeo estou somente me dirigindo aos outros sou um agente de pastoral e vou me confrontando com toda a Exortaccedilatildeo O grande objetivo mesmo eacute convidar a todos os agentes de pastoral a natildeo perderem de vista estes 33 (trinta e trecircs) nuacutemeros e 13 paacuteginas de cunho eminentemente pastoral-espiritual Natildeo seria bom para noacutes neste final de Quaresma ou quem sabe iniacutecio da Paacutescoa visitar estes nuacutemeros dos quais esta reflexatildeo foi apenas uma motivaccedilatildeo

3 ldquoAi de voacutesrdquo

Ao realizar sua missatildeo Jesus teve de enfrentar alguns conflitos e ateacute mesmo provocaacute-los na fidelidade e obediecircncia agrave realizaccedilatildeo da vontade do Pai Via de regra encontramos estes confrontos junto a alguns grupos de seu tempo destacando-se os escribas ou doutores da lei e os fariseus estes uacuteltimos gozando de muita credibilidade junto ao povo de Deus Tal creacutedito se dava pela loacutegica defendida por eles na medida em que pelo cumprimento da lei se visibilizava maior aproximaccedilatildeo a Deus ou natildeo a isto chamamos de legalismo farisaico pois a questatildeo principal de estar proacuteximo a Deus ou natildeo era simplesmente cumprir a lei (Cf todo o confronto sobre o saacutebado comer com as matildeos impuras Cf Mc 7)

O sistema se baseava nos polos ndash puros e impuros A pureza indicava as condiccedilotildees necessaacuterias para algueacutem poder comparecer diante de Deus no Templo (Cf C Mesters Com Jesus na contramatildeo p 24) Neste sentido o povo tinha grande preocupaccedilatildeo com a pureza pois quem natildeo era puro natildeo podia chegar perto de Deus (Mt 99-12)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

131

No capiacutetulo 23 do Evangelho de Mateus (precisamente 23 13-36) Jesus pronuncia os famosos sete ldquoaisrdquo todos eles dirigidos a estes dois grupos e de forma ousada e profeacutetica nesta seccedilatildeo chama-os ora de ldquohipoacutecritasrdquo ora de ldquoguias cegosrdquo de ldquoinsensatosrdquo e de ldquosepulcros caiadosrdquo predomina o adjetivo hipoacutecrita

Evidentemente Jesus natildeo age desta forma manifestando oacutedio para com eles mas fazendo uma catequese para que eles pudessem entrar na dinacircmica da conversatildeo e consequentemente do Reino de Deus na novidade do que ele representava jaacute que o rosto de Deus que eles mani-festavam contradizia frontalmente o Deus que Jesus representava

Do conjunto da coletacircnea de advertecircncias contra escribas e fariseus o termo mais usado eacute hipocrisia por ser uma atitude do sistema religioso que eles representavam fechando-se no seu prestiacutegio e poder julgavam-se justos e santos e disto os Evangelhos datildeo conta (Cf o ex da cena do fariseu e do publicano ndash Lc 18 9-14 a questatildeo do jejum em Mc 218ss) No sistema por eles defendido o que prevalecia de fato eram os ritos externos a formalidade

Com suporte no texto aqui referenciado destaco o versiacuteculo 23 citando-o ldquoAi de voacutes escribas e fariseus hipoacutecritas que pagais o dizimo da hortelatilde da erva-doce e do cominho enquanto descuidais o que haacute de mais grave na lei a justiccedila a misericoacuterdia e a fidelidade eacute isto que era preciso fazer sem omitir aquilordquo

A referecircncia eacute muito clara e natildeo precisa de grandes comentaacuterios acadecircmicos ndash os interlocutores de Jesus como jaacute se sabe viviam da exterioridade da formalidade do cumprimento da lei amplamente denunciado neste capiacutetulo de Mateus Na sequumlecircncia Jesus daacute um ensinamento novo como origem tambeacutem em suas praacuteticas por exemplo confraternizando-se com pessoas impuras como eram os publicanos e pecadores (Mc 2 15-17) tocar em leprosos comer sem lavar as matildeos tocar em cadaacutever e isto evidentemente tornava Jesus na concepccedilatildeo da eacutepoca uma pessoa impura pelo contato com estes pecadores e isto impedia a presenccedila de Deus

Agora vamos puxar a reflexatildeo construindo uma ponte entre a abordagem ateacute aqui desenvolvida e o nosso tempo prefiro proceder assim em primeiro lugar fazendo duas perguntas para vocecirc caro leitor existe algo parecido hoje em dia

Por gentileza interessante natildeo fazer uma interpretaccedilatildeo fundamenta-lista mas levar em consideraccedilatildeo a formalidade as questotildees de visibilidade

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

132

que a Igreja tem hoje por meio de grandes eventos de massa da miacutedia catoacutelica do estilo neopentecostal e a outra indagaccedilatildeo como estaacute sendo considerada a praacutetica da misericoacuterdia ndash a praacutetica da justiccedila e da fidelidade no seguimento de Jesus Cristo Seraacute que estamos na linha da exterioridade e sem esquecer isto estamos deletando a justiccedila da praacutetica de nossos grupos paroacutequias e idem com a misericoacuterdia e a fidelidade

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira eacute padre da Arquidiocese de Fortaleza

Diretor e Professor da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza - FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

133

A TEOLOGIA DE TIAGO FEacute EM ACcedilAtildeO

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier

Resumo A Epiacutestola de Tiago apresenta ensinos praacuteticos e eacuteticos para a vida cristatilde da mesma maneira como o proacuteprio Jesus mostrou que a feacute deveria vir acompanhada de atitudes Poreacutem alguns estudiosos biacuteblicos levantaram criacuteticas agrave epiacutestola de Tiago como se essa fosse contraacuteria agrave justificaccedilatildeo pela feacute Nesse artigo demonstra-se que a feacute e as obras natildeo se contrapotildeem na epiacutestola de Tiago sendo necessaacuterio compreender o contexto da mesma e sua importacircncia para os cristatildeos nos dias de hoje

Palavras-chave Tiago Conduta Cristatilde Feacute e Praacutetica

Abstract The Epistle of James has practical and ethical teachings for the Christian life just as Jesus himself showed that faith should be accompanied by actions However some scholars have raised criticism of the Epistle of James as if this was contrary to the justification by faith In this paper we show that faith and works are not opposed in the Epistle of James it is necessary to understand the context of the same and its importance for Christians today

Keywords James Christian Conduct Faith and Practice Introduccedilatildeo

A epiacutestola de Tiago difere das outras epiacutestolas do Novo Testamento pelo seu estilo conteuacutedo e apresentaccedilatildeo Tiago trata de religiatildeo praacutetica de eacutetica de solidariedade de religiatildeo vivencial A epiacutestola exatamente como Hebreus eacute mais um sermatildeo que uma carta propriamente dita Eacute um sermatildeo ou um ensino ou um tratado e ldquoas indicaccedilotildees satildeo de que foi o primeiro de todos os documentos escritos do Novo Testamentordquo (BAXTER 1989 p 309) O livro foi escrito aproximadamente entre 10 a 15 anos apoacutes a morte de Jesus (SHIDD BIZERRA 2010 p 7) Francis Nichol (1995 p 516) diz que natildeo haacute uma maneira segura para determinar a data da epiacutestola mas aponta a possibilidade da mesma ter sido escrita apoacutes o ano 44 dC

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

134

Neste artigo apresenta-se um panorama da teologia de Tiago com vistas a demonstrar como a feacute pode e deve ser praticada em atos e pala-vras em conformidade com a doutrina de Cristo

Sobre o autor

A Carta de Tiago jaacute provocou muitas discussotildees na histoacuteria da Teologia Uma das principais estaacute relacionada com o seu autor O prefaacutecio indica que o autor foi Tiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo (Tg 11) Mas no Novo Testamento haacute cinco homens chamados Tiago O primeiro eacute o pai de Judas (Lc 616) O segundo eacute um disciacutepulo filho de Alfeu (Mt 103) Este Tiago eacute o irmatildeo de Mateus (Mt 99 e Mc 214) O terceiro eacute chamado Tiago menor (Mc 1540) Talvez fosse chamado ldquomenorrdquo por causa do seu tamanho ou como substituto de Juacutenior (haacute pais que gostam de colocar seus nomes nos filhos) O quarto eacute o irmatildeo de Joatildeo e filho de Zebedeu (Mt 102) Este eacute o que os espanhoacuteis gostam de dizer que eacute o Tiago de Compostela Mas esse foi morto no iniacutecio dos anos quarenta conforme Atos 122 O quinto eacute chamado de ldquoirmatildeo do Senhorrdquo (Gl 119) Jesus possuiacutea um irmatildeo com este nome como aparece em Mateus 1355 Poreacutem apenas dois desses foram apresentados como possiacuteveis autores desta epiacutestola ndash Tiago filho de Zebedeu e Tiago o irmatildeo do Senhor

O primeiro eacute um candidato improvaacutevel Sofreu o martiacuterio em 44 AD e natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que ocupasse posiccedilatildeo de lideranccedila na igreja que lhe desse a autoridade de escrever esta carta geral Embora Isidoro de Sevilha e Dante achassem que ele foi o autor do livro esta identidade natildeo tem sido largamente aceita em nenhum periacuteodo da igreja A opiniatildeo tradicional identifica o autor como sendo Tiago o irmatildeo do Senhor A semelhanccedila da linguagem da epiacutestola com as palavras de Tiago em Atos 15 a forte dependecircncia do escritor da tradiccedilatildeo judia e a consistecircncia do conteuacutedo de sua carta com as notiacutecias histoacutericas que o Novo Testamento daacute em relaccedilatildeo a Tiago o irmatildeo do Senhor tudo tende a apoiar a autoria tradicional (PFEIFER HARRISON 1983 p 325)

Assim pode-se inferir que o autor da epiacutestola seja Tiago irmatildeo de Jesus

Criacuteticas agrave carta de Tiago

Esta epiacutestola tem sido alvo de criacuteticas e comentaacuterios injustos desde o iniacutecio do movimento protestante com Martinho Lutero (1522)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

135

Preocupado em afirmar a doutrina da justificaccedilatildeo pela feacute Lutero foi duro com a carta de Tiago Chamou-a de ldquoepiacutestola de palhardquo (eyne rechte stroerne Epistel) por causa de seu entendimento equivocado do capiacutetulo 2 versos 14 a 16 onde presumiu haver o ensino de justificaccedilatildeo pelas obras (STOTT 1996 p 18) Este pensamento errocircneo de Lutero ainda permanece em muitas mentes Mas deve ser entendido dentro do contexto em que as palavras dele foram proferidas Elas constam de seu prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo da Biacuteblia Alematilde onde ele se expressa sobre os livros que mais mostram a pessoa de Cristo Apoacutes nomeaacute-los disse Lutero ldquoPor isso a epiacutestola de Satildeo Tiago eacute uma epiacutestola bem insiacutepida (eyne rechte stroerne Epistel) se comparada agraves demais [] (LUTERO 1997 p 81)

Este reformador mais tarde modificou sua posiccedilatildeo Assim se expressou Lutero conforme nos diz George (1986 p 371) ldquoQuando Satildeo Tiago e Paulo dizem que um homem eacute justificado pelas obras eles estatildeo combatendo a noccedilatildeo errocircnea daqueles que pensam que a feacute sem obras eacute suficienterdquo

Outro que pode ser considerado injusto com Tiago eacute Champlin (1991 p 536) quando diz que ldquoA epiacutestola de Tiago certamente eacute um documento que representa o cristianismo judaico e natildeo erramos por dizer representa o cristianismo legalistaldquo

Paulo e Tiago

Muitas das criacuteticas se devem agrave aparente contradiccedilatildeo entre Tiago e Paulo no assunto ldquofeacute e obrasrdquo (KUMMEL 1975 p 414-41) Kuumlmmel lista cinco aparentes contradiccedilotildees A mais famosa declaraccedilatildeo de Tiago ldquoa feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) gerou discussatildeo nos primoacuterdios da Reforma Lutero natildeo conseguia conciliar esta declaraccedilatildeo com o que Paulo escreveu ldquoConcluiacutemos pois que o homem eacute justificado pela feacute independente de obras da leirdquo (Rm 328) Especialmente outra declaraccedilatildeo de Tiago estaacute em aparente oposiccedilatildeo ao ensino de Paulo ldquoVerificais que uma pessoa eacute justificada por obras e natildeo por feacute somenterdquo (Tg 224) O curioso eacute que os dois apoacutestolos tardios (isto eacute que natildeo estavam entre os doze) utilizam o mesmo personagem biacuteblico (Abraatildeo) para defender posiccedilotildees aparentemente contraditoacuterias Paulo diz ldquoQue pois diremos ter alcanccedilado Abraatildeo nosso pai segundo a carne Porque se Abraatildeo foi justificado por obras tem de que se gloriar poreacutem natildeo diante de Deus Pois que diz a Escritura Abraatildeo creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo (Rm 41-3) Tiago em contrapartida diz ldquoNatildeo foi por obras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

136

que Abraatildeo o nosso pai foi justificado quando ofereceu sobre o altar o proacuteprio filho Isaquerdquo (Tg 221) Aqui haacute pelo menos uma contradiccedilatildeo verbal (LADD 1997 p 546 MORRIS 2003 p 379) mas seraacute que haacute uma contradiccedilatildeo teoloacutegica

Uma siacutentese da diferenccedila entre Paulo e Tiago dada por Mears (1993) poderaacute resolver essa questatildeo

Tiago eacute a mais praacutetica de todas as epiacutestolas e tem sido chamada ldquoGuia Praacutetico para a Vida e a Conduta Cristatilderdquo Eacute o livro de Proveacuterbios do Novo Testamento Estaacute repleto de preceitos morais Expotildee a eacutetica do Cristianismo Eacute cheio de figuras e metaacuteforas Seu estilo eacute muitas vezes bastante dramaacutetico Obriga a pensar realmente Hebreus apresenta doutrina Tiago apresenta obras Eles se completam num Cristianismo vital Natildeo haacute conflito entre Paulo e Tiago Soacute uma leitura superficial de ambos levaria a essa conclusatildeo Paulo diz ldquoRecebam o Evangelhordquo Tiago diz ldquoVivam o Evangelhordquo Paulo viu Cristo no ceacuteu estabelecendo a nossa justiccedila Tiago viu-o na terra dizendo-nos que sejamos perfeitos como eacute perfeito o seu Pai que estaacute no ceacuteu Paulo deteacutem-se na fonte da nossa feacute Tiago fala do fruto da nossa feacute Eacute preciso natildeo soacute crer mas viver Ainda que Paulo saliente a justificaccedilatildeo pela feacute vemos em suas epiacutestolas especialmente em Tito que ele daacute grande realce agraves boas obras (1 Tm 618) enquanto Tiago fala em ser ricos em feacute (25) Conveacutem notar tambeacutem que quando Tiago parece menosprezar a feacute ele estaacute-se referindo a uma simples crenccedila intelectual e natildeo agrave ldquofeacute salvadorardquo que eacute tatildeo essencial Tiago exalta a feacute Ele diz que a prova dela opera a paciecircncia Sua carta comeccedila e termina com um forte estiacutemulo agrave feacute (16 514-18) Ele denuncia a feacute espuacuteria que natildeo produz obras (MEARS 1993 p 511-512)

Uma siacutentese menor seria

Paulo responde a pergunta Sob que condiccedilatildeo ou condiccedilotildees um pecador pode ser justificado diante de Deus Sua resposta eacute Sob a condiccedilatildeo da feacute a confianccedila de todo coraccedilatildeo em Cristo como Salvador Tiago contesta a pergunta Que classe de feacute salvaraacute a um homem Sua resposta eacute Nenhuma feacute ou credo somente nem sinceramente a crenccedila em Deus como uacutenico mas uma feacute que produz vida reta (CONNER 1951 p 221)

O resumo de Tiago sobre a feacute inoperante eacute ldquoporque assim como o corpo sem espiacuterito eacute morto assim tambeacutem a feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) Foi deste modo que Calvino resolveu a questatildeo O Reformador de Genebra natildeo viu contradiccedilatildeo entre Paulo e Tiago pois entendeu que Tiago falava de uma feacute falsa ldquoPois transparece desde as primeiras palavras que ele fala de uma falsa profissatildeo de feacute pois ele natildeo comeccedila assim lsquose algueacutem tem feacutersquo mas lsquose algueacutem diz que tem feacuterdquo (CALVIN

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

137

1998 Tg 2-14) Calvino portanto natildeo teve a mesma duacutevida de Lutero mas compreendeu o sentido especiacutefico e claro a que Tiago se referia

Os grandes temas de Tiago

O caraacuteter cristatildeo eacute o tema central da epiacutestola Tiago nada fala do Espiacuterito Santo nem mesmo da doutrina da salvaccedilatildeo O autor natildeo trata de doutrinas mas de conduta Natildeo haacute menccedilatildeo alguma a Missotildees Batismo Santa Ceia Cruz e suas implicaccedilotildees A epiacutestola eacute predominantemente eacutetica Dentre os muitos assuntos tratados por Tiago podemos destacar os seguintes

Provas e tentaccedilotildees

A carta dirige-se especialmente aos judeus cristatildeos que viviam entre gentios fora dos limites da Palestina e que sofriam devido as suas convicccedilotildees religiosas (MARTIN 1998)

Tiago escreveu ldquoMeus irmatildeos tende por motivo de toda alegria o passardes por vaacuterias provaccedilotildeesrdquo (Tg 12) Ele completa ldquoBem-aventurado o homem que suporta com perseveranccedila a provaccedilatildeo porque depois de ter sido aprovado receberaacute a coroa da vida a qual o Senhor prometeu aos que o amamrdquo (Tg 112) Soacute a recompensa eterna compensa os sofrimentos desta vida e o cristatildeo deve olhar para aquele dia futuro quando receberaacute o galardatildeo em troca das vicissitudes e isto deve fazer com que se alegre no presente seacuteculo ainda que seja pobre e necessitado

A palavra ldquotentaccedilatildeordquo eacute usada num sentido mais amplo incluindo perseguiccedilotildees externas e solicitaccedilotildees internas ao mal Tiago ensina aos leitores como transformar a tentaccedilatildeo em becircnccedilatildeo fazendo dela uma fonte de paciecircncia e usando-a como o fogo que prova o ouro (PEARLMAN 1997 p 319)

A esse respeito o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia define ldquoTentaccedilotildees (gr Peirasmos) significa provaccedilotildees com um propoacutesito e efeito beneacuteficos ou sejam provaccedilotildees ou tentaccedilotildees divinamente permitidas ou enviadasrdquo (SHEDD 1979 p 1388)

A ecircnfase eacute que a tentaccedilatildeo em si natildeo vem de Deus ldquoNingueacutem ao ser tentado diga Sou tentado por Deus porque Deus natildeo pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo a ningueacutem tentardquo (Tg 113) O verdadeiro instrumento da tentaccedilatildeo segundo Tiago eacute a cobiccedila (Tg 114) Ele diz ldquoEntatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute aacute luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morterdquo (Tg 115) A antropologia de

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

138

Tiago estaacute em perfeita harmonia com o Antigo Testamento e com os demais escritos do Novo Testamento Deus natildeo eacute o autor do mal O pecado surge no ser humano e gera morte O fato de Tiago natildeo mencionar Satanaacutes como tentador natildeo significa que ele natildeo julgasse importante no processo da tentaccedilatildeo e do pecado (Tg 47)

Tiago expotildee como a feacute verdadeira reage em meio aos sofrimentos decorrentes das provaccedilotildees e das tentaccedilotildees A feacute verdadeira gera alegria nas provaccedilotildees e eacute fortalecida em Deus nas tentaccedilotildees

Feacute e obediecircncia

A feacute verdadeira segundo Tiago eacute aquela que implica em obediecircn-cia ou seja a praacutetica da Palavra Ele diz ldquoPortanto despojando-vos de toda impureza e acuacutemulo de maldade acolhei com mansidatildeo a palavra em voacutes implantada a qual eacute poderosa para salvar vossa alma Tornai-vos pois praticantes da palavra e natildeo somente ouvintes enganando-vos a voacutes mesmosrdquo (Tg 12122)

Haacute um eco entre estas palavras e as que Jesus proferiu no final do sermatildeo do monte que compara o ouvir sem praticar a palavra como uma atitude de construir uma casa sobre a areia (Mt 724-27) Ouvir sem praticar eacute como se olhar num espelho e esquecer-se de como se eacute Os espelhos eram de bronze e refletiam mal a imagem da pessoa aleacutem de serem raros Uma pessoa pobre passava meses sem se ver ao espelho Quem ouve e pratica seraacute bem-aventurado (Tg 125) Natildeo praticar a Palavra de Deus eacute um ato de auto-engano pois a proacutepria pessoa seraacute a uacutenica prejudicada A feacute verdadeira eacute a que demonstra a Palavra de Deus na praacutetica A guarda da liacutengua

Tiago preocupado com a questatildeo da liacutengua no sentido de ldquofalar o que natildeo se deverdquo antecipa um pouco do que vai dizer adiante ldquoSe algueacutem supotildee ser religioso deixando de se refrear a liacutengua antes enganando o proacuteprio coraccedilatildeo a sua religiatildeo eacute vatilderdquo (Tg 126) Esclarece o que entende ser a verdadeira religiatildeo ldquoA religiatildeo pura e sem maacutecula para com o nosso Deus e Pai eacute essa visitar os oacuterfatildeos e as viuacutevas nas suas atribulaccedilotildees e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundordquo (Tg 127)

Com o objetivo de exemplificar de modo praacutetico o que considera uma feacute em accedilatildeo Tiago trata sobre o problema da liacutengua Agora ele tem em mente os mestres pois fala sobre o perigo de algueacutem utilizar a liacutengua

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

139

de modo errado neste sentido (Tg 31-12) Do mesmo modo expotildee sobre as dissensotildees dentro da comunidade como algo contraacuterio aacute feacute (Tg 313-18) Trata novamente sobre a cobiccedila (Tg 41-3) da vida mundana e da necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 44-10) Enfatiza os relacionamentos pessoais na igreja e na necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 411-17) A feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica de obras eacute uma feacute em accedilatildeo

Natildeo fazer acepccedilatildeo

Tiago analisa a incompatibilidade de algueacutem crer em Jesus e fazer acepccedilatildeo de pessoas

Meus irmatildeos natildeo tenhais a feacute em nosso Senhor Jesus Cristo Senhor da gloacuteria em acepccedilatildeo de pessoas Se portanto entrar na vossa sinagoga algum homem com aneacuteis de ouro nos dedos em trajos de luxo e entrar tambeacutem algum pobre andrajoso e tratardes com deferecircncia o que tecircm trajos de luxo e lhe disserdes Tu assenta-te aqui em lugar de honra e disserdes pobre Tu fica ali em peacute natildeo fizestes distinccedilatildeo entre voacutes mesmos e natildeo vos tornastes juiacutezes tomados de perversos pensamentos (Tg 21-4)

Apesar da maioria dos crentes para os quais Tiago ensinava ser de classe baixa parece que eles como eacute proacuteprio agraves vezes dos pobres tratavam bem os ricos e mal os pobres Tiago diz que isto eacute uma feacute incoerente No texto ele fala da ldquosinagogardquo e natildeo da igreja o que evidencia o aspecto judaico da carta e aponta para sua antiguidade Para Tiago fazer acepccedilatildeo de pessoas eacute quebrar a lei (Tg 2 9-10) A questatildeo polecircmica da carta

Jaacute tratamos disto em momentos anteriores e podemos deixar de emitir mais consideraccedilotildees Vamos apenas acrescentar isto a preocupaccedilatildeo de Tiago eacute primariamente praacutetica (CARBALLOSA 1994 p 70) e parece oacutebvio que ele respondia a algum tipo de questionamento antinomista pois rebatia a crenccedila de que uma pessoa pode ser salva sem que demonstre qualquer mudanccedila de vida

Por isso ele diz que no caso de Abraatildeo ldquofoi pelas obras que a feacute se consumourdquo (Tg 222) Paulo por outro lado estaacute respondendo a outro tipo de questionamento Ele combate a noccedilatildeo judaica daqueles dias de que uma pessoa era salva pela feacute e pelas obras como se as obras natildeo fossem apenas uma evidecircncia da feacute mas um instrumento real de salvaccedilatildeo Eacute oacutebvio que se algueacutem lhe dissesse que uma pessoa pode ser salva sem experimentar uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

140

transformaccedilatildeo Paulo certamente responderia ldquonatildeordquo pois embora sejamos salvos pela graccedila Deus tem preparado uma vida de boas obras para que andemos nelas (Ef 28-10) Ellen G White (1892) declarou que ldquoas boas obras se seguiratildeo como as floraccedilotildees e frutos da feacute A apropriaccedilatildeo da justiccedila de Cristo seraacute manifestada numa vida bem ordenada e na conversaccedilatildeo santardquo

Do mesmo modo se perguntassem a Tiago se a lei precisa ser obedecida para que algueacutem seja salvo como um meio de completar a feacute certamente ele diria que somos salvos pela feacute e que as obras satildeo apenas a evidecircncia de que ela existe Natildeo haacute contradiccedilatildeo teoloacutegica entre Paulo e Tiago suas respostas aparentemente divergentes explicam a razatildeo dos propoacutesitos de cada autor Assim a Reforma Protestante resolve o conflito quando declara ldquoEacute a feacute que salva sozinha mas a feacute que salva nunca estaacute sozinhardquo

Denuacutencia contra os ricos

ldquoPaciecircnciardquo eacute a palavra chave para resumir o ensino do capiacutetulo 51-6 sendo um dos temas predominantes de toda a carta de Tiago ldquoEvidentemente muitas das pessoas humildes dentre os judeus cristatildeos estavam sendo oprimidos pelos ricos e seus salaacuterios eram retidos com fraude (54)rdquo (MEARS 1993 p 517-518) Os cristatildeos pobres daqueles dias deveriam ter paciecircncia e esperar o momento da libertaccedilatildeo que viria de Deus e viver na praacutetica a feacute que salva

Sobre a denuacutencia de Tiago contra os ricos assim se expressa o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia ldquoEsta seccedilatildeo apresenta uma severa denuacutencia contra os ricos que tecircm granjeado prosperidade mediante opressatildeo Os tais satildeo condenados natildeo por serem ricos mas porque suas riquezas foram mal adquiridas permanecendo sobre elas as marcas da corrupccedilatildeordquo (SHEDD 1979 p 1388)

Jaacute o Comentaacuterio Biacuteblico Adventista por sua vez esclarece ldquoO contexto imediato implica que os ldquoricosrdquo satildeo exemplos notaacuteveis de quem tecircm muitas oportunidades para fazer o bem mas evitam fazecirc-lo Estes ldquoricosrdquo podem ser ou natildeo membros da igrejardquo (NICHOL 1995 p 553)

A mensagem de Tiago era evidente para seus leitores ldquoos opressores ainda pagaratildeo por tudo o que tecircm feitordquo Mas o povo de Deus deveria ser paciente pois natildeo haacute como antecipar o juiacutezo de Deus ldquoSede pois irmatildeos pacientes ateacute a vinda do Senhor Eis que o lavrador aguarda com paciecircncia o precioso fruto da terra ateacute receber as primeiras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

141

e as uacuteltimas chuvas Sede voacutes tambeacutem pacientes e fortalecei o vosso coraccedilatildeo pois a vinda do Senhor estaacute proacuteximardquo (Tg 578)

As chuvas do fim do outono e do comeccedilo da primavera que datildeo condiccedilotildees agrave terra de produzir natildeo podem ser antecipadas por causa do desejo ou da ira do homem Elas vecircm no tempo certo Resta ao lavrador esperar que a chuva venha e de nada adiantaraacute ele se agitar se irar ou fazer qualquer outra coisa pois seraacute apenas perda de tempo de energia e mais acuacutemulo de sofrimento Como o agricultor tem certeza de que a chuva viraacute ele deve descansar pois deve ter uma esperanccedila confiante Do mesmo modo o cristatildeo sabe que Jesus voltaraacute e ainda que ele natildeo saiba quando deve esperar confiantemente pois Jesus viraacute

Julgamentos precipitados

Tiago orienta os crentes a se absterem de julgamentos precipitados ldquoIrmatildeos natildeo vos queixeis uns dos outros para natildeo serdes julgados Eis que o juiz estaacute agraves portasrdquo (Tg 59) Natildeo eacute totalmente certo se ele fala em relaccedilatildeo aos proacuteprios crentes ou se o assunto ainda satildeo os iacutempios que os oprimem mas eacute bastante plausiacutevel que estes uacuteltimos estejam em foco Do mesmo modo que os crentes do Antigo Testamento foram pacientes em meio ao sofrimento os cristatildeos deveriam ser agora ldquoIrmatildeos tomai por modelo no sofrimento e na paciecircncia os profetas os quais falaram em nome do Senhor Eis que temos por felizes os que perseveram firmes Tendes ouvido da paciecircncia de Joacute e vistes que fim o Senhor lhe deu porque o Senhor eacute cheio de terna misericoacuterdia e compassivordquo (Tg 51011)

A paciecircncia dos santos do passado especialmente o mais conhecido de todos neste sentido Joacute eacute evocada como exemplo de que o Senhor faz justiccedila aos seus Tiago natildeo entende que os cristatildeos devem demonstrar uma paciecircncia moacuterbida mas insiste que eles tecircm em suas matildeos uma arma poderosa a oraccedilatildeo Ele diz ldquoEstaacute algueacutem entre voacutes sofrendo Faccedila oraccedilatildeordquo (Tg 513) A oraccedilatildeo eacute o instrumento dos crentes em meio a tribulaccedilatildeo A oraccedilatildeo pode trazer cura (Tg 515) e perdatildeo (Tg 516) Para comprovar que a oraccedilatildeo tem muito poder Tiago cita Elias reconhecido como um dos profetas mais poderosos ldquoElias era homem semelhante a noacutes sujeito aos mesmos sentimentos e orou com muita insistecircncia para que natildeo chovesse sobre a terra e por trecircs anos e seis meses natildeo choveu E orou de novo e o ceacuteu deu chuva e a terra fez germinar seus frutosrdquo (Tg 51718)

Tiago enfatiza que Elias era um homem sujeito aos mesmos sofrimentos e limitaccedilotildees que os seus leitores mas pela oraccedilatildeo realizou

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

142

feitos formidaacuteveis Os crentes devem ter paciecircncia orar pois Deus pode mudar as situaccedilotildees dramaacuteticas por intermeacutedio da oraccedilatildeo As uacuteltimas palavras de Tiago satildeo um lembrete aos crentes de que devem se preocupar com os desviados dos caminhos de Deus (Tg 51920)

Haacute outros temas mais mas a relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus (que seraacute apresentada a seguir) poderaacute completar aleacutem de recordar alguns pontos jaacute tratados

A relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus

Tiago pode natildeo ter o brilho intelectual de Paulo mas seu conteuacutedo em nada difere do que o Salvador ensinou E dos apoacutestolos ele foi o que mais tempo viveu com Jesus Pelo menos a infacircncia e a adolescecircncia dos dois foram juntas O ensinamento de Jesus pode ser visto em toda a epiacutestola de Tiago

1 O cristatildeo que sofre provaccedilotildees eacute abenccediloado Tiago 12 e Mateus 510-12

2 Deus deseja que sejamos perfeitos Tiago 14 e Mateus 548

3 Ele daacute generosamente aos que lhe pedem Tiago 15 e 42 Mateus 77-8

4 Mas somente o Pai tem poder para dar boas daacutedivas Tiago 117 e Mateus 79 -11

5 E neste caso ele daacute somente aos quem tecircm feacute Tiago 16 e Marcos 11 22-24

6 Devemos natildeo apenas ouvir a palavra Mas praticaacute-la Tiago 122-25 e Mateus 7 21-27

7 Devemos tomar cuidado com as riquezas porque os pobres eacute que herdam o reino de Deus Tiago 25 e Mateus 53 Lucas 620

8 Devemos amar o proacuteximo como a noacutes mesmos Tiago 28 e Marcos 1231

9 Devemos guardar os mandamentos Tiago 210 e Mateus 519

10 Devemos mostrar misericoacuterdia para recebermos misericoacuterdia Tiago 213 e Mateus 57 1833-35

11 Eacute a aacutervore que determina o fruto Tiago 312 e Mateus 715-20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

143

12 Os pacificadores seratildeo abenccediloados Tiago 318 e Mateus 59

13 Natildeo eacute possiacutevel servir a dois senhores Cada um deve escolher entre Deus e o dinheiro Tiago 44 413-15 e Mateus 624

14 Quem se humilha seraacute exaltado Tiago 46 e 10 e Lucas 1814 Comparar isto com Tiago 19-10 e Lucas 152

15 Natildeo devemos falar mal uns dou outros ou julgar uns aos outros Tiago 412 e Mateus 71

16 Natildeo devemos elaborar planos gananciosos e mundanos para obter ganhos esquecendo-nos de Deus ou do proacuteximo Tiago 413-17 e Lucas 1216-21

17 As riquezas natildeo duram Elas se corroem as roupas satildeo consu-midas pelas traccedilas e o ouro fica embaccedilado com a ferrugem Tiago 51-3 e Mateus 619-21

18 Por isso ai dos ricos Tiago 51 e Lucas 624

19 Quem crecirc que espere pacientemente e esteja pronto para a vinda do Senhor pois ele estaacute perto agraves portas Tiago 57-9 e Lucas 1235-40 Marcos 1329

20 Os cristatildeos natildeo devem jurar nem pelo ceacuteu nem pela terra nem por qualquer outro meio de juramento Sua palavra deve ser confiaacutevel Seu sim deve ser sim e seu natildeo deve ser natildeo Suas palavras natildeo podem ter duplo sentido Tiago 512 e Mateus 533

Tiago reafirma Jesus como um homem com um ensino praacutetico e praticaacutevel O cristianismo eacute vida e natildeo sensaccedilotildees Vida correta com Deus que se evidencia em vida correta com os homens

Consideraccedilotildees finais

Percebe-se que a mensagem de Tiago eacute clara e simples Ele fala sobre a feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica pelas obras Esta feacute leva os crentes a suportarem todo tipo de sofrimento a demonstrarem a conversatildeo pelas boas obras e a esperarem em oraccedilatildeo pelo retorno de Jesus ou pela manifestaccedilatildeo libertadora de Deus

Mesmo simples a carta de Tiago eacute rica e teologicamente impor-tante de modo que natildeo concordamos com a ideia de Richardson (e de Lutero) de que eacute uma ldquoepiacutestola de palhardquo (RICHARDSON 1966 p 240

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

144

BACLAY 1974 p 16) em comparaccedilatildeo com a profunda solidez da Epiacutestola aos Romanos Ela ocupa um lugar importante no cacircnon e na Teologia do Novo Testamento responsaacutevel pela ampliaccedilatildeo do entendi-mento de um conceito essencial para a feacute do Novo Testamento o relacionamento entre feacute e obras

Termino deixando uma pergunta Se Tiago ocupasse o puacutelpito contemporacircneo que diria ele aos membros e liacutederes de nossas igrejas

Referecircncias Bibliograacuteficas

BACLAY W S I y II Pedro Buenos Aires Editorial La Aurora 1974

BAXTER S J Examinai as escrituras ndash atos a apocalipse Satildeo Paulo Ediccedilotildees vida Nova 1989

CALVIN J Commentary on the espistole of the James Albany Books for the Ages 1998

CARBALLOSA E L Tiago Una fe em accioacuten 6 ed Grand Rapids Editorial Portavoz 1994

CHAMPLIN R N Enciclopeacutedia de Biacuteblia teologia e filosofia v 6 Satildeo Paulo Editora e Distribuidora Candeia 1991

CONNER W T La fe del nuevo testamento Nashvill Casa Bautista de Publicaccedilotildees 1951

GEORGE T In ldquoA rigth strawy epistle reformation perspective on Jamesrdquo Louisville Review and Expositor ndash a baptist theological journal v LXXXIII n 3 1986

KUumlMMEL W G Introduction to the new testament Nashvill Abingdon Press 1975

LADD G E Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Exodus 1997

LUTERO Martinho Da liberdade do cristatildeo ndash prefaacutecio agrave Biacuteblia (Ediccedilatildeo Biliacutengue) Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo da Editora Unesp 1997

MARTIN R P Word biblical commentary v 48 James Dallas Texas Word Books Publisher 1998

MEARS H C Estudo panoracircmico da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida 1993

MORRIS Leon Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2003

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

145

NICHOL F D (ed) Comentario biblico adventista del septimo dia Tomo 7 Buenos Aires Asociacion Casa Editora Sudamericana 1995

PEARLMAN M Atraveacutes da Biacuteblia livro por livro Satildeo Paulo Vida 1997

PFEIFER F C HARRISON E F Comentaacuterio biacuteblico Moody v IV Satildeo Paulo Imprensa Batista Regular 1983

RICHARDSON Alan Introduccedilatildeo agrave teologia do novo testamento Satildeo Paulo ASTE 1966

SHEDD R P (ed) O novo comentaacuterio da Biacuteblia v III Satildeo Paulo Ediccedilotildees Vida Nova 1979

SHEDD R P BIZERRA E F Uma exposiccedilatildeo de Tiago a sabedoria de Deus Satildeo Paulo Shedd Publicaccedilotildees 2010

STOTT J Homens com uma mensagem Campinas Editora Cristatilde Unida 1996

WHITE E G Signs of the times 5 de setembro de 1892

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier Doutor em Teologia e professor nos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graducaccedilatildeo

do Seminaacuterio Adventista Latino Americano de Teologia ndash Cachoeira BA

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

146

A VOCACcedilAtildeO NAtildeO Eacute UMA ESCOLHA MAS UMA RESPOSTA

Ir Graccedila Disingakala Nunes

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo Tentativa de responder a trecircs questotildees fundamentais sobre a vocaccedilatildeo entendida como chamado de Deus valendo-se de muitos autores mas principalmente da contribuiccedilatildeo de Gianfranco Poli Natildeo vai certamente exaurir o assunto mas eacute uma chamada de atenccedilatildeo agraves escolas teoloacutegicas para que trabalhem este argumento de um modo mais aprofundado O tema pesquisado eacute a vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta Discorre-se entatildeo acerca de sua origem e significado o porquecirc de uma teologia da vocaccedilatildeo as caracteriacutesticas do chamado a relaccedilatildeo de intimidade com a pessoa de Jesus Cristo a resposta incondicional do homem Evidenciam-se tambeacutem os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde o discernimento as exigecircncias que o chamado comporta e de modo muito breve as dimensotildees que compotildeem fundamentalmente a resposta do homem e as consideraccedilotildees finais Toda essa dinacircmica eacute realizada mediante uma relaccedilatildeo dialogal entre as duas liberdades a de Deus que chama e a do homem que responde

Palavras-chave Deus-Trindade Vocaccedilatildeo ou Chamado Homem Encontro Igreja

Riassunto Questo articolo egrave un tentativo di rispondere a ter domande fondamentali sulla vocazione intesa come chiamata di Dio servendosi di tanti autori ma sopratutto dela contribuizione di Gianfranco Poli Non va sicuramente esaurire lrsquoassunto ma visa a scuotere lrsquoattenzione dele scuole teologiche percheacute lavorino la questione vocazione in modo piugrave profondo Il tema svolto egrave la vocazione non `e una scelta ma una risposta Si sviluppa quindi sua origine e significato il perchegrave di una teologia dela vocazione le caratteristiche della chiamata la relazione di intimitagrave com la persona di Cristo Gesugrave la risposta incondizionata dellrsquouomo Sono noti anche gli elementi centrali dela vocazione cristiana il discernimento le esigenze che la chiamata di Dio comporta e si fa cenno alle dimensioni che essenzialmente compongono la risposta dellrsquouomo e per ultimo le considerazioni finali Tutta la dinamica egrave svolta attraverso una relazione dialogica tra le due libertagrave di Dio che chiama e dellrsquouomo che risponde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

147

Parole chiavi Dio-Trinitagrave Vocazione o Chiamata Uomo Incontro Chiesa

1 Introduccedilatildeo

Haacute no Brasil e no mundo muitos escritos sobre vocaccedilatildeo mas falta uma teologia da vocaccedilatildeo ldquoFalta ainda um estudo sistemaacuteticordquo deste argumento Haacute pouco interesse nas escolas teoloacutegicas e entre os teoacutelogos no sentido de aprofundar este assunto1 A ausecircncia de fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica das vocaccedilotildees eacute negativa enquanto a praacutexis permanece sem fundamentaccedilatildeo conforme constatou Joseacute Lisboa Moreira de Oliveira na sua Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo2 Eacute tatildeo verdade o fato de o tema vocaccedilatildeo carecer de estudo sistemaacutetico que outros autores fazem esta constataccedilatildeo Exemplo Gianfranco Poli na sua exposiccedilatildeo sobre o assunto Tra vocazione e domanda di senso natildeo hesita em afirmar que a palavra vocaccedilatildeo eacute muitas vezes usada e repetidamente mas raramente se precisa o seu conteuacutedo

Advertimos para a necessidade natildeo soacute no Brasil mas tambeacutem no mundo de explicitar o que entendemos acerca de vocaccedilatildeo Para isso Gianfranco Poli trata a vocaccedilatildeo em trecircs momentos esclarecer o sujeito que chama colocar em realce os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde oferecer algumas indicaccedilotildees a respeito do homem que responde ou simplesmente eacute possiacutevel indicar estes trecircs momentos formulando trecircs perguntas quem chama A que coisa chama Em que modo se responde3

Eacute a essas perguntas que tentaremos responder com suporte na abordagem de Gianfranco Poli oferecendo ao assunto vocaccedilatildeo mais um subsiacutedio sem a pretensatildeo de exauri-lo

O tema eacute estruturado com uma introduccedilatildeo cinco partes e suas subdivisotildees Iordf parte Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo Por que teologia da vocaccedilatildeo Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo IIordf parte Dimensatildeo Trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde A vocaccedilatildeo do homem Quem chama Por que chama Para que chama Como chama IIIordf parte Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde Como saber que eacute Deus quem me chama A vocaccedilatildeo natildeo eacute 1 Cf DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992 nordm 244 2 OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996) p 22-31 3 Cf POLI Gianfranco ldquoLa cultura della vocazione tra vocazione e domanda di sensordquo in BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teologica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010 p 20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

148

uma escolha mas uma resposta Como responder Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees Consideraccedilotildees finais

2 Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo

Vocaccedilatildeo eacute um termo derivado do verbo latino vocare que significa chamar Vocaccedilatildeo eacute assim chamado convite apelo Eacute ato de chamar da parte de Deus eacute um estado de relaccedilatildeo entre Deus e o homem eacute diaacutelogo porque haacute atenccedilatildeo para com o outro Vocaccedilatildeo eacute encontro de duas liberdades a liberdade absoluta de Deus que chama e a liberdade do homem que responde Vocaccedilatildeo eacute um dom que exige resposta de feacute

Sendo um ato que brota do mais profundo do ser a vocaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com a inclinaccedilatildeo para exercer determinada profissatildeo ou um talento (aptidatildeo natural) para executar algo alguma atividade A vocaccedilatildeo eacute um chamado para amar eacute chamado ao serviccedilo (1Jo 47-21 Mc 1045) eacute a realizaccedilatildeo de um sonho

Na Biacuteblia vocaccedilatildeo estaacute em estreita relaccedilatildeo com eleiccedilatildeo e missatildeo4 Eleiccedilatildeo significa escolher um ou alguns entre tantos eacute uma predileccedilatildeo De tal maneira vocaccedilatildeo eacute um dom com o qual Deus preferiu a mim a vocecirc e natildeo a outro natildeo por merecimentos nossos mas por puro amor e em vista de uma missatildeo especiacutefica que a pessoa chamada vai desccedilo-brindo ao longo da sua vida visto que vocaccedilatildeo eacute um estado de relaccedilatildeo com Deus

21 Por que uma teologia da vocaccedilatildeo

A vocaccedilatildeo eacute um ato teoloacutegico e antropoloacutegico porque envolve Deus e o homem Eacute dom que vem do Alto iniciativa do Pai ldquoque atrai a Si uma criatura sua por um amor de predileccedilatildeo e em ordem a uma missatildeo especialrdquo5 Eacute Deus que no iacutentimo inspira agrave alma o desejo de abraccedilar o projeto de Deus seja no matrimocircnio como na vida consagrada O fato de Deus escolher algueacutem com amor de predileccedilatildeo no entanto natildeo obriga a pessoa escolhida porque sua eleiccedilatildeo se torna convite diante do qual ela eacute livre para responder sim ou natildeo Ao mesmo tempo poreacutem Deus tem um jeito todo particular de se aproximar do homem que quase

4 VOCACcedilAtildeO in CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997 5 Cf JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996 n 17

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

149

ningueacutem resiste em responder sim Acontece exatamente o que acentua Jeremias ldquoseduzistes-me Senhor e eu me deixei seduzirrdquo (cf Jr 207)

22 Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo

Pela sua natureza dialoacutegica a vocaccedilatildeo eacute relacional comunitaacuteria missionaacuteria e dinacircmica A origem de toda a vocaccedilatildeo estaacute na relaccedilatildeo com a Santiacutessima Trindade ()6 Soacute quem ficou seduzido (Jr 207) e permanece na intimidade (Os 216 1Ts 417 Jo 1724 1Pd 51) pode entender a beleza e a riqueza desta peacuterola preciosa

O diaacutelogo pessoal com Deus tambeacutem eacute comunitaacuterio nos dois sentidos de um lado acontece numa comunidade bem concreta (Mt 2531-46) de outro Deus chama mediante o ldquoclamorrdquo do povo que sofre (cf Ex 31-10 Jr 114-10) A vocaccedilatildeo eacute comunhatildeo com a Trindade que se traduz concretamente na experiecircncia de verdadeira irmandade Ela eacute comunicaccedilatildeo isto eacute vida de comunhatildeo e de participaccedilatildeo Responder ao chamado eacute inserir-se na vida da comunidade com uma missatildeo bem precisa tomar parte ativa na construccedilatildeo do Reino Vocaccedilatildeo natildeo eacute isolamento busca de satisfaccedilotildees de ldquorealizaccedilatildeo pessoalrdquo Natildeo eacute realizar ldquoprojetos pessoaisrdquo mas dar a vida pela defesa da vida (Jo 1011 1513)

3 Dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde

Desde o Concilio Vaticano II a vocaccedilatildeo eacute vista como chamado agrave comunhatildeo com o Pai pelo Filho no Espiacuterito Santo7 O segundo Congresso Internacional das vocaccedilotildees (Roma 1981) no seu documento conclusivo explicita de forma definitiva e muito clara esta dimensatildeo trinitaacuteria ldquoCada vocaccedilatildeo estaacute ligada ao desiacutegnio do Pai agrave missatildeo do Filho agrave obra do Espiacuterito Santo Cada vocaccedilatildeo eacute iluminada e fortalecida agrave luz do misteacuterio de Deusrdquo8

O Papa Bento XVI ressalta esta dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo quando afirma logo no iniacutecio de sua primeira mensagem vocacional que ldquoo Pai do ceacuteu nos escolheu pessoalmente para nos chamar a entrar em

6 CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla Satildeo Paulo Paulinas 2004 13 Ed nordm 212 7 Cf VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM Satildeo Paulo Paulinas 1999 13ordf Ed nordm 4 8 II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Vocacional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982 nordm 7

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

150

relaccedilatildeo filial com Ele por meio de Jesus Verbo feito carne sob a guia do Espiacuterito Santo9rdquo 31 A vocaccedilatildeo do homem

O homem existe porque Deus lhe dirigiu a palavra o chamou agrave existecircncia convocando-o para ser Seu interlocutor A vocaccedilatildeo eacute a palavra que Deus dirige ao homem e que o faz existir imprimindo nele a marca dialogal Se o homem foi criado pela conversaccedilatildeo com Deus e eacute assim aquele que eacute chamado a falar a expressar-se a comunicar-se a responder o tempo que tem a disposiccedilatildeo pode ser entendido como o tempo para realizar sua vocaccedilatildeo

Ora em que consiste a vocaccedilatildeo do homem senatildeo na sua plena realizaccedilatildeo no amor ao interno do princiacutepio dialoacutegico no qual foi criado com Deus como primeiro interlocutor ldquoVocaccedilatildeo entatildeo eacute um processo de maturaccedilatildeo de relaccedilotildees que culmina no amor a Cristo que eacute a plena realizaccedilatildeo do amor na sua pessoa10rdquo Em satildeo Paulo encontramos a confirmaccedilatildeo desta verdade ldquoqualquer coisa o homem faccedila fora do seu amor natildeo serve a nada aliaacutes eacute vatilde e esperdiacutecio de tempordquo (1Cor 13)

32 Quem chama

O sujeito e autor de todo o chamado eacute Deus Eacute preciso poreacutem entender por que Deus chama qual intenccedilatildeo O move de qual vontade eacute animado Um texto de Paulo aos Efeacutesios nos abre horizontes infinitos

Bendito seja Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que do alto do ceacuteu nos abenccediloou com toda a becircnccedilatildeo espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criaccedilatildeo do mundo para sermos santos e irrepreensiacuteveis diante de seus olhos No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo segundo o beneplaacutecito de sua livre vontade (Ef 13-5)

Nossa existecircncia tem raiz no coraccedilatildeo de Deus que nos desejou ldquofaccedilamos o homem agrave nossa imagem como nossa semelhanccedilardquo (Gn 1 26a) que desde a eternidade nos quis como ldquofilhos adotivosrdquo agrave imagem do seu Filho Jesus Existir eacute a primeira e fundamental vocaccedilatildeo do ser humano (cf Gn 27) As outras vocaccedilotildees dela decorrem e nela se sustentam Eacute o amor agrave

9 BENTO XVI A primeira mensagem vocacional in httpwwwportalcatolicoorgbr portala-primeira-mensagem-vocacional-de-bento-xvi Acesso em 040452015 10Cf RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000 p 21-22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

151

vida que possibilita se empenhar em tantas outras dimensotildees da existecircncia humana

33 Por que chama Os motivos do chamado

Vocaccedilatildeo eacute accedilatildeo de chamar por parte de Deus como sua iniciativa de amor corresponsaacutevel (Is 591 Jr 15 Rm 912 Gl 115 58) Deus chama porque ama (cf Dt 76-8 236 Jo 1516 Mc 312) Segundo a Biacuteblia missatildeo eacute o elemento central da vocaccedilatildeo11 Quando Deus chama algueacutem o faz para uma missatildeo a fim de fazer alguma coisa em funccedilatildeo de uma pessoa ou de uma comunidade A missatildeo eacute sempre um encargo

ldquoDeus criou-nos para compartilhar a sua proacutepria vida chama-nos para sermos seus filhos membros vivos do Corpo miacutestico de Cristo templos luminosos do Espiacuterito do Amor Chama-nos para ser ldquoseusrdquo quer que todos sejam santos12rdquo

Ante o chamado que Deus faz a cada um de noacutes eacute preciso ter coragem para deixar tudo se abandonar por inteiro ir aonde Ele mandar e fazer aquilo que Ele pedir Coragem eacute um dos passos mais importantes para um caminho vocacional bem-sucedido Eacute preciso ter coragem para entregar-se nas matildeos do bom oleiro e deixar-se moldar para enfrentar todas as tempestades do caminho todas as vicissitudes Coragem pra deixar tudo e dizer Sim a Deus

Natildeo temas ldquoCoragem Levanta-te ele te chamardquo (Mc 10 49) Ama-te e conta contigo para estabelecimento de um Reino de amor que jamais teraacute fim Amor eacute a origem e o fim de toda vocaccedilatildeo e o Deus que nos criou sem noacutes natildeo nos salva sem noacutes constata Santo Agostinho Somos chamados a colaborar no plano da salvaccedilatildeo Ele precisa do teu sim generoso e gratuito

34 Para que chama

A autoria de Deus sobre o chamado eacute contiacutenua Todos os dias Deus chama o homem para uma vida de relaccedilatildeo filial para elevaacute-lo agrave comunhatildeo com a Trindade

11wwwparoquiasaobeneditongorgbrblogp=1087 Acesso em 29102015 12JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iiptmessagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes _29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em em 29102015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

152

O uacutenico e mesmo Espiacuterito distribui seus dons a cada um conforme quer para que todo dom sem exceccedilatildeo seja para utilidade de todos para o bem da comunidade (cf 1Cor 127 11)Todo chamado eacute voltado para servir para dar sentido agrave proacutepria existecircncia doando-se

Ao se falar da vocaccedilatildeo a palavra sentido pode significar possibi-lidade e capacidade de siacutentese na proacutepria accedilatildeo cotidiana como tambeacutem abertura a um futuro em que o sentido da proacutepria vida seja menos contraditoacuterio ou contudo mais feliz e harmonioso Entatildeo a finalidade do chamado eacute de um movimento rotatoacuterio que tem como eixo Deus O ponto de partida e de chegada eacute Deus

Quanto mais o homem se relaciona com Deus mais se sente realizado e se torna capaz de doar-se sair de si e ir ao encontro do outro A realizaccedilatildeo de que se fala eacute no sentido de ser feliz do que se eacute e se faz Acreditamos ser esta a condiccedilatildeo de servir gratuitamente Assim sendo a vocaccedilatildeo visa em primeiro lugar agrave realizaccedilatildeo pessoal daquele que eacute chamado que busca um sentido da sua vida na descoberta do propoacutesito de Deus para si mediante o serviccedilo agrave comunidade de irmatildeos Na medida em que a pessoa se acha realizada em certa opccedilatildeo sente a exigecircncia de responder por via do serviccedilo E seraacute realmente um serviccedilo gratuito que natildeo espera outro em troca porque se sente bem servindo e o amor ao proacuteximo por sua vez eacute inseparaacutevel do amor a Deus A verdadeira felicidade estaacute em servirmos ao outro e a Deus 13

Sendo a vocaccedilatildeo antes de tudo um relacionamento com Jesus Cristo eacute inconcebiacutevel falar de uma vocaccedilatildeo cristatilde fora da Igreja pois eacute nela e por seu intermeacutedio que Cristo realiza e revela o proacuteprio misteacuterio como meta do desiacutegnio de Deus ldquoRecapitular tudo nelerdquo (Ef 110)

35 Como chama O modo

DeusndashPai nos chama pelo nome e sua voz chega ao homem em dois modos imediato e mediato Imediato Deus chama por meio de um desejo iacutentimo e profundo a inspiraccedilatildeo divina que impele para um estado de vida Costuma haver no mais iacutentimo da pessoa uma atraccedilatildeo essencial para formas de ser e de viver fundamentais por intermeacutedio do ambiente isto eacute das relaccedilotildees pessoais que vatildeo despertando o chamado por meio da histoacuteria pessoal (muito relevante) Mediato Deus fala pelas mediaccedilotildees Palavra escrita (e a falada) a vida de Cristo por meio da histoacuteria

13 httpformacaocancaonovacomdiversosa-vocacao-profissional Acesso em 05112015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

153

situaccedilotildees acontecimentos definidos sinais dos tempos e das pessoas (cf 1Sm 38-9)

Deus natildeo chama os homens do mesmo modo porque Ele chama por nome numa certa histoacuteria situaccedilatildeo cultura Nos relatos da Biacuteblia esta diferenccedila eacute notoacuteria algumas personagens satildeo demoradas em dizer sim e Deus tem paciecircncia e pelo diaacutelogo vai levando o chamado a uma resposta consciente como eacute o caso de Gedeatildeo (cf Jz 611-40) pois foi necessaacuterio trecircs vezes Deus prometer a sua presenccedila para se sentir seguro ao passo que natildeo foi assim com o disciacutepulo que pede para enterrar primeiro seu pai (Mt 821-22) a quem Jesus responde ldquoSegue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortosrdquo

Deus chama mediante Sua Palavra da natureza dos acontecimentos da histoacuteria significa que para escutaacute-Lo devemos estar atentos e cultivar uma atitude interior de silecircncio de escuta de meditaccedilatildeo de contemplaccedilatildeo No Novo Testamento a primeira accedilatildeo que Jesus desenvolveu no seu ministeacuterio de vida puacuteblica eacute uma ldquovocaccedilatildeordquo eacute a chamada de dois dos seus disciacutepulos Antes de tudo o chamado pede conversatildeo isto eacute seguir Jesus com o desejo de conformar-se agrave Sua pessoa

Nossa vocaccedilatildeo encontra jaacute a primeira revelaccedilatildeo no nome de cada um por isso Jesus chamaraacute Simatildeo de Pedro porque a sua missatildeo e a sua chamada seraacute aquela de ser rocha sobre a qual fundar a Igreja de Cristo Aleacutem disso os apoacutestolos satildeo chamados um a um e por nome para serem identificados na sua unicidade

4 Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde

Na Biacuteblia a vocaccedilatildeo eacute sempre de autoria do proacuteprio Deus que chama escolhe cada homem e mulher Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento o chamado pode se manifestar de modo mediato ou imediato

Segundo o esquema biacuteblico-literaacuterio satildeo elementos essenciais da vocaccedilatildeo iniciativa de Deus obediecircncia pela feacute temor e tremor investidura ou missatildeo Apesar de nem todas as caracteriacutesticas existirem em todas as vocaccedilotildees em todo tipo de vocaccedilatildeo haacute iniciativa de Deus o seguimento e a Missatildeo14

No Novo Testamento assim como no Velho Testamento a iniciativa de chamar algueacutem eacute sempre de Deus (Mt 99 101 Mc 1 1719-20 313 511 14 Cf Biacuteblia Sagrada Ediccedilatildeo da Famiacutelia Petroacutepolis Vozes 2005 p 1545

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

154

At 9 3-6) A iniciativa de Deus no entanto natildeo elimina nem substitui a resposta do homem jamais anula a participaccedilatildeo e a responsabilidade da pessoa chamada15 Natildeo eacute contudo por meio de uma manifestaccedilatildeo velada pela Palavra do Senhor nem da mediaccedilatildeo de outro homem que Deus age pois antes Ele atua na histoacuteria pessoalmente intermediado por Seu Filho que se fez carne (Jo 114)

Em ambos os Testamentos os escolhidos satildeo designados para uma missatildeo ldquoTal missatildeo eacute a participaccedilatildeo na compaixatildeo pastoral de Jesus ajudaacute-lo na sua missatildeo de serviccedilo agrave necessidade mais profunda das pessoasrdquo 16 Aquele que eacute chamado a seguir Jesus eacute convidado a ter aquilo que Satildeo Paulo pede aos filipenses isto eacute os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 25ss) que eacute a praacutetica da feacute esperanccedila e caridade ldquoNa vivecircncia dessas trecircs virtudes teologais se encontra a fundamental explicitaccedilatildeo da opccedilatildeo fundamental de seguir Cristo17rdquo

O esquema literaacuterio das narrativas vocacionais se repete em muitos casos no Antigo e no Novo Testamento chamado rejeiccedilatildeo ao chamado explicitaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo da missatildeo A novidade estaacute no Segundo Testamento que entende a vocaccedilatildeo agrave santidade e consagraccedilatildeo a Deus em relaccedilatildeo ao Espiacuterito Santo e Jesus

O singular do chamado no Novo Testamento eacute que todos satildeo realizados sob o signo da Nova Alianccedila isto eacute sob o signo da figura de Jesus Eles satildeo enviados e convidados a levar ao povo a presenccedila do proacuteprio Senhor18

A realizaccedilatildeo da vocaccedilatildeo de Jesus para o serviccedilo do Reino eacute expressa de modo claro em Lc 4 14-22 remir os presos recuperar a vista 15 MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro tostado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001 p 26 e 29 16 Cf PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991 p 400 17 Cf GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998 p 20 18 Alguns exemplos do chamado nos quais o aspecto missionaacuterio eacute evidente Abraatildeo e Sara chamados para formar um povo (Gn 121-9 Sb 105 At 7 2-3 e Hb 11 8) Moiseacutes a vocaccedilatildeo de um libertador (Ex 3 1-15 4 1-17 6 2-13 6 28-30 71-7 5) Isaiacuteas vocaccedilatildeo para denunciar e anunciar (Is 6 1-10) Maria vocaccedilatildeo para ser a matildee de Deus Apoacutestolos vocaccedilatildeo de propagar os ensinamentos de Jesus (Jo 135-394051 Lc 54-10 Lc 612-16 Mc 117-20 Mc 2 13-17 Mt 412-22 At 115-26) Paulo vocaccedilatildeo de continuar a missatildeo de Jesus ressuscitado (At 91-19 221-21 262-18) Jesus siacutentese da vocaccedilatildeo profeacutetica (Lc 4 14-22 Hb 51-10 Ap 1913 Jo 11-83036 314-19 331-34 4252634 442 530363843 62938-40 64450-5157 71628-2933 81618 11274252 1213273746-49 1424311521 16527 17468 171418212325 181137 19 2021-22)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

155

dos cegos restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graccedila do Senhor

41 Como saber que eacute Deus quem me chama

Vocaccedilatildeo eacute um chamado ao diaacutelogo com Deus em Jesus no Espiacuterito Santo Deus fala chama e pede ao homem de escutaacute-Lo (cf Mc 97) Escutar significa dar atenccedilatildeo ouvir e interiorizar o conteuacutedo da conversa interagir dar adesatildeo uma resposta Vocaccedilatildeo eacute um conhecer e deixar-se conhecer mediante o diaacutelogo com a Trindade Estes dois atos satildeo feitos simultacircnea e cotidianamente A vocaccedilatildeo nasce de um encontro pessoal com Cristo Deus-Amor nos chama em Cristo e o Espiacuterito Santo faz o homem participar desse amor do Pai Uma autecircntica experiecircncia de ser salvado pelo Senhor habilita a compreensatildeo de que eacute o Senhor que chama19

A descoberta da proacutepria vocaccedilatildeo eacute um processo que dura por toda a vida eacute um trabalho de elaboraccedilatildeo de si da proacutepria identidade um trabalho que exige atenccedilatildeo paciecircncia docilidade para acolher a palavra de Deus sensibilidade discernimento e tambeacutem a ajuda de um orientador ou diretor espiritual O chamado eacute entendido e decifrado com base numa ldquoexperiecircncia pessoal com Deusrdquo Nessa experiecircncia Ele revela o seu projeto para noacutes assim como fez com Moiseacutes (cf Ex3 4) e Pedro (Jo 2115-19)

42 A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta

O seguimento de Jesus Cristo comporta trecircs implicaccedilotildees encontro chamado e caminho O encontro suscita um desejo um deixar-se seduzir pelo amor O chamado sustenta esse desejo ou correspondecircncia e ainda este se desenvolve numa inquietaccedilatildeo constante sempre crescente ateacute responder E o caminho eacute o carisma ou a maneira de realizar esse projeto Estes trecircs passos se realizam numa simbiose vocacional surpreendente

Um olhar superficial dos relatos biacuteblicos sobre a vocaccedilatildeo pode levar-nos a concluir que vocaccedilatildeo eacute uma escolha pessoal iniciativa daquele que busca realizar suas inclinaccedilotildees mais profundas Uma anaacutelise mais percuciente no entanto nos desarma ao revelar que apesar de toda a nossa boa vontade e empenho pessoal num determinado chamado a nossa accedilatildeo natildeo passa de uma resposta agrave iniciativa de Deus que quis da nossa existecircncia e felicidade desde sempre (cf Jr 15)

19 Cf RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001 p 116 e 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

156

Nos Evangelhos Jesus chama a Si aqueles aos quais depois faraacute seus disciacutepulos ldquoNatildeo fostes voacutes que me escolhestes mas eu escolhi a voacutes e vos constitui para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneccedilardquo (Jo 1516)

Na origem de cada autecircntica chamada portanto estaacute o Senhor que escolhe e convida ao seu seguimento A Igreja manifesta na diversidade e na multiplicidade das vocaccedilotildees a riqueza do Espiacuterito que distribui livremente os seus dons segundo o projeto divino () A vocaccedilatildeo natildeo se constroacutei se recebe de Deus e sua realizaccedilatildeo depende da resposta que cada um sabe dar Viver de fato eacute responder20

A vocaccedilatildeo poreacutem natildeo eacute predestinaccedilatildeo (Ef 14 Jr 15) mas apelo do Pai dirigido agrave pessoa humana livre (Mt 1921 Gn 128-31)O projeto de Deus para a pessoa natildeo eacute algo estaacutetico predeterminado preestabelecido mas um apelo que se faz por via de mediaccedilotildees bem concretas (Jo 135-50) Deste modo a pessoa pode dizer ldquosimrdquo como Maria (Lc 138) fazendo acontecer a histoacuteria da salvaccedilatildeo ou dizer ldquonatildeordquo como o jovem rico (Mt 1922) frustrando o projeto de amor do Pai Da nossa resposta ao chamado de Deus depende a nossa felicidade O homem que diz sim se reencontra encontrando Deus e o que diz natildeo se perde

43 Como responder

A vocaccedilatildeo eacute um convite que se transforma em apelo o qual exprime uma proposta propositura que se torna eleiccedilatildeo escolha que solicita uma resposta21 O significado de cada um desses termos eacute muito profundo Convite eacute o ato de fazer uma proposta que se supotildee agradaacutevel Apelo eacute chamar algueacutem por nome Proposta eacute quanto vem apresentado agrave atenccedilatildeo e agrave aceitaccedilatildeo do outro um projeto Eleiccedilatildeo eacute o processo pelo qual um grupo designa um de seus integrantes para ocupar um determinado cargo com apelo a uma votaccedilatildeo Resposta eacute o ato de satisfazer uma chamada Deus espera uma resposta da nossa parte uma adesatildeo ao cumprimento da sua vontade sobre noacutes Deveriacuteamos ser agradecidos e sentir-nos honrados quando Deus se digna a nos chamar a colaborar da Sua missatildeo salviacutefica

20 httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa-non-ehtml Acesso em 29052015 21Cf PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus p 1385

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

157

44 Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A vida do cristatildeo eacute ldquosequela Christirdquo seguimento de Cristo em busca do caminho traccedilado por Ele para ser na Igreja e no mundo sinal inconfundiacutevel de amor e modelo de vida generosa e exemplar

A dimensatildeo do dom eacute a totalidade que prende a vida plenamente radicando-a no uacutenico absoluto que eacute Deus Instaura-se uma relaccedilatildeo que interessa o profundo do ser e que natildeo se confunde no anonimato Jesus busca a mim proacuteprio a mim Como um dia chamou por nome Abraatildeo Samuel Pedro Saulo assim ainda hoje o Pastor divino tem para cada ovelhinha nome uacutenico ldquoirrepetiacutevelrdquo22 distinto de qualquer outro nome ou som e que somente aquele que eacute chamado eacute capaz de perceber O ldquodeixa os mortos sepultar os seus mortosrdquo (Mt 822) o ldquoSegue-merdquo (Jo 2122) e o ldquonatildeo eacute digno do reino de Deusrdquo (Lc 959-62) mostram que as exigecircncias do chamado satildeo totais e natildeo admitem condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A radicalidade da resposta eacute uma exigecircncia fundamental do seguimento Natildeo se consente algum tipo de reenvio ou prorrogaccedilatildeo nem mesmo se nos encontraacutessemos diante de um motivo de grande valor moral e social como a necessidade de ldquosepultar o pairdquo a pessoa de Jesus exige uma prioridade absoluta e incondicionada ainda mais que Ele convida a anunciar ldquoo reino de Deusrdquo ao qual tudo eacute subordinado (cf Mt 633)

Trecircs dimensotildees satildeo necessaacuterias para uma resposta total liberdade como possibilidade de escolha de ausecircncia de constriccedilatildeo exterior e interior que permite de fazer uma eleiccedilatildeo autocircnoma gratuidade como alegria de servir no amor e sem esperar nada em troca eacute ter os sentimentos de Cristo Jesus (cf Fl 25) e dom ldquo o dom entra em cena quando descubro a dimensatildeo do outro como sujeito quando a categoria da gratuidade se torna a mola do meu agir e tambeacutem a descoberta do meu ser da minha dignidade e a do outro como pessoa humana pelo que viver a experiecircncia do dom significa substancialmente fazer experiecircncia de liberdaderdquo23

22 Cf CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006 p 61 23 Cf POLI Gianfranco La cultura della vocazione p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

158

5 Consideraccedilotildees finais

O objetivo geral do trabalho eacute mostrar que o argumento lsquovocaccedilatildeorsquo carece de um estudo sistemaacutetico de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica Com este escrito constatamos a necessidade de um estudo sistemaacutetico que esclareccedila o que entendemos quando falamos de vocaccedilatildeo Isto porque efetivar uma vocaccedilatildeo segundo o projeto de Deus contribui para o bem natildeo somente pessoal ou da instituiccedilatildeo a que se pertence mas do corpo como todo a Igreja Entatildeo vale muito despertar as escolas teoloacutegicas a abraccedilarem esta causa como questatildeo urgente levando seus teoacutelogos a reflexotildees mais aprofundadas com embasamento biacuteblico

Durante a realizaccedilatildeo do trabalho assumimos os desafios de ler textos em liacutengua italiana e de individuar entre o abundante conteuacutedo pesquisado qual responderia melhor ao tema Natildeo foi faacutecil descartarmos tantos conceitos e tentarmos nos ater ao tema com poucas paacuteginas

No desenvolvimento do assunto vimos que a vocaccedilatildeo eacute um ato dinacircmico um procedimento gradual uma histoacuteria de amor um relaciona-mento profundo com Deus por meio do Filho no Espiacuterito Santo e que por isso requer entrar na intimidade com Deus estar a soacutes na escola do Mestre pois a vocaccedilatildeo como ato de chamar conta com o envolvimento de dois sujeitos Deus que chama e o homem que responde

A iniciativa eacute sempre de Deus que chama para uma missatildeo especiacutefica na comunidade eclesial de onde nasce e cresce a mesma Deus se manifesta por intermeacutedio dos acontecimentos do mundo e da histoacuteria pessoal Ele precisa da nossa resposta concreta generosa e sem condicionamentos para continuar Sua obra da salvaccedilatildeo hoje

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

159

Referecircncias Bibliograacuteficas

ALBERTO Cosegrave la vocazione Cosa non egrave httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa -non-ehtml Acesso 29052015

BENTO XVI A primeira mensagem vocacional httpwwwportalcatolicoorgbrportala-primeira-mensagem-vocacio nal-de-bento-xvi Acesso em 040452015

BIacuteBLIA SAGRADA EDICcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA Petroacutepolis Vozes 2005

CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997

CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 2004

CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006

DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992

GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998

II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Voca-cional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982

JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996

JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iipt messagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes_29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em 29102015

MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro testado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001

OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996)

PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus 1999

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

160

PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991

POLI Gianfranco La cultura della vocazione tra vocazione e domanda di senso In BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teoloacutegica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010

RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000

RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001

VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 1999

Ir Graccedila Disingakala Nunes Aluna do Curso de Especializaccedilatildeo para qualificaccedilatildeo de formadores

na Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Artigo escrito sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

161

A EacuteTICA POLIacuteTICA EM MAQUIAVEL

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

Resumo

Na obra maquiaveliana encontra-se uma nova concepccedilatildeo da poliacutetica que se distancia das concepccedilotildees claacutessica patriacutestica e escolaacutestica Suas fontes satildeo as praticas poliacuteticas contemporacircneas e os escritos do historiador Tito Liacutevio O objetivo do seu estudo eacute uma Itaacutelia unida Nesta nova abordagem ganha interesse e destaque a relaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica assunto tratado especialmente na obra O Priacutencipe

Palavras-chave Renascimento Itaacutelia Maquiavel Eacutetica Poliacutetica

Abstract In the Machiavellian work we find is a new conception of politics which moves away from the classical patristic and scholastic conceptions His sources are contemporary political practices and the writings of the historian Titus Livius The purpose of his study is a united Italy In this new vision great interest and highlight are given to the relationship between ethics and politics specially treated in the work De Principe

Keywords Renaissance Italy Machiavelli Ethics Politics

1 Introduccedilatildeo

Satildeo conhecidos o vigor e a profundidade do pensamento do filoacutesofo poliacutetico Maquiavel1 Entre as suas obras que satildeo muacuteltiplas e de variados

1 Niccoloacute di Bernardo del Machiaveli nasceu na cidade de Florenccedila no dia 3 de maio de 1469 Sua vida desenvolveu sob o signo da poliacutetica a que dedicou tanto no campo teoacuterico como no praacutetico todos os seus esforccedilos materiais e intelectuais A poliacutetica como ele confessa estava no seu sangue Desde cedo Maquiavel foi incentivado por seu pai a se dedicar aacute leitura dos autores da Antiguidade Claacutessica como Virgiacutelio e Tito Liacutevio Sua juventude foi marcada pelos acontecimentos turbulentos da sua cidade natal que fazia parte de uma Itaacutelia assolada e perturbada por disputas poliacuteticas natildeo somente de acircmbito local como tambeacutem de forccedilas estrangeiras como Franccedila e Espanha que se aproveitaram das lutas internas da Peniacutensula Apeninica e da cidade de Florenccedila para sobretudo aumen-tarem a sua influecircncia Conta-se que Maquiavel aos nove anos assistiu ao assasinato de Juliano de Meacutedici e ao ferimento de Lourenccedilo de Meacutedici O ano de 1498 que viu a execuccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

162

gecircneros a De Principe eacute de longe a mais conhecida e analisada2 As outras de cunho poliacutetico natildeo deixam se ter interesse e importacircncia mas natildeo desenvolvem com a mesma clareza e pujanccedila o nuacutecleo do seu pensamento poliacutetico de modo especial o seu carter moral e eacutetico

O estudo ora expresso intenta com suporte nessa obra e preferen-cialmente nela comentar e descrever a eacutetica poliacutetica maquiaveliana que significa uma reviravolta em comparaccedilatildeo com a ideia natildeo somente a claacutessica mas tambeacutem cristatilde que quase sem exceccedilatildeo ateacute agrave eacutepoca da Baixa Idade Meacutedia se baseia quase exclusivamente no pensamento bem ou mal interpretado de SantrsquoAgostinho

2 As fontes da formaccedilatildeo de Maquiavel como pensador poliacutetico

Ao ler e refletir o pensamento poliacutetico de Maquiavel saltam aos olhos natildeo somente o seu profundo conhecimento a respeito da histoacuteria da Itaacutelia especificamente quando da eacutepoca do Impeacuterio Romano como tambeacutem os vestiacutegios de uma profiacutecua e intensa atividade diplomaacutetica Neste aspecto destacou-se por intermeacutedio de missotildees diplomaacuteticas vitoriosas ndash umas mais outras menos importantes - em vaacuterios estados da Peniacutensula Italiana inclusive em centros de poder nacional de grande envergadura tais como a Franccedila e a Alemanha

21 A atividade diplomaacutetica de Maquiavel

Logo apoacutes o dantesco e triste espetaacuteculo do julgamento da conde-naccedilatildeo e da execuccedilatildeo na fogueira do profeacutetico Jerocircnimo Savanarola na Praccedila da Senhoria reinstala-se em Florenccedila a Repuacuteblica Livre para alguns

de Savanarola pode ser considerado como a entrada de Maquiavel na poliacutetica sendo ele chamado a exercer o cargo de secretaacuterio da Segunda Chancelaria da Repuacuteblica de Florenccedila Em seguida ele se tornou um dos principais auxiliares do gonfaloniero vitaliacutecio Piero Soderini sendo encarregado dos assuntos diplomaacuteticos Quando Soderini caiu Maquiavel perdeu o cargo destituiacutedo pelos novos donos do poder ateacute a sua anistia concedida pelo Papa Leatildeo X da famiacutelia dos Meacutedicis Maquiavel esforccedilou-se ao maacuteximo para cair nas graccedilas dos Meacutedicis Quando estes caiacuteram e a Repuacuteblica foi reinstalada em Florenccedila Maquiavel visto com desconfianccedila retirou-se da vida publica Morreu no dia 21 de junho de 1527 2 Pode-se dividir a obra de Maquiavel em trecircs grandes setores que facilitam e ajudam na sua vasta atividade literaacuteria 1- Correspondecircncia tanto particular como oficial 2- obras literaacuterias poesia (eg) a famosa obra inacabada o Asno de Ouro) prosa (Discurso Moral que exorta a penitecircncia) teatro e novelas (vg Mandraacutegora em que se expotildee a degradaccedilatildeo moral e religiosa e se afirma a corrupccedilatildeo como inerente aacute natureza humana) 3- obras poliacutetico-histoacutericas (eo Discurso sobre a primeira deacutecada de Tito Livio)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

163

uma dinastia camuflada Suprime-se a teocracia e retoma-se o regime aristocraacutetico Foi aiacute em 1498 que Maquiavel com quase 30 anos de idade foi sorteado para exercer o cargo de secretaacuterio da 2ordf Chancelaria do Estado Livre da Repuacuteblica de Florenccedila E logo depois passou a realizar tambeacutem tarefas para a comissatildeo dos Dez do Poder ou Dez da Guerra

Como chanceler Maquiavel realizou a primeira legaccedilatildeo junto agrave Duquesa de Imola e Forli onde renegociou o soldo pago pelo Governo Florentino ao ldquocondottiererdquo3 Otaviano Florenccedila contratara o filho da Duquesa por 15 mil ducados soma considerada exorbitante por Florenccedila Maquiavel teve ecircxito conseguiu reduzir o soldo como tambeacutem recebeu auxiacutelio militar da duquesa - na forma de tropas de soldados e artilharia ndash de grande valor na ocupaccedilatildeo de Pisa4 Desde entatildeo o Diplomata Florentino comeccedilou a ser considerado e tratado como um haacutebil conciliador Entusiasmado com o prestiacutegio e a experiecircncia adquiridos escreveu o primeiro texto poliacutetico Discorso fatto a Magistrato dei Dieci sopra le cose de Pisa

Nuvens negras e sombrias no entanto continuaram a se espalhar e ameaccedilaram empanar o brilho do cenaacuterio poliacutetico florentino Segundo relato5 Pisa rebelara-se mais uma vez cortando o acesso de Florenccedila ao mar pelo rio Arno O rei Luis XII de Franccedila concordara em apoiar Florenccedila na guerra contra Pisa As tropas mercenaacuterias que o Monarca enviara no entanto natildeo cumpriram bem o seu papel acarretando seacuterios problemas ao Estado de Florenccedila Aqui estava uma delicada situaccedilatildeo expor tal reclamaccedilatildeo ao Governo Francecircs e declinar a sua oferta sem ferir a honra do rei Os representantes Maquiavel e Francisco della Casa foram enviados agrave Franccedila para a cidade de Nevers Com muita maestria os dois diplomatas resolveram a difiacutecil tarefa O perigo passou e embora Florenccedila natildeo tenha recuperado Pisa continua com a sua independecircncia

Maquiavel foi ainda encarregado de vaacuterias outras missotildees diplo-maacuteticas junto agrave Franccedila Conveacutem lembrar que Luis XII rei de Franccedila tinha como aliado o Papa Alexandre VI cujo filho se chamava Ceacutesar Boacutergia conforme a opiniatildeo de alguns um ldquocondottiererdquo de muita bravura poliacutetico

3 ldquoCondottiererdquo era ndash na histoacuteria da Itaacutelia ndash chamada o senhor feudal que tinha sob o seu absoluto controle uma miliacutecia que ele podia colocar agrave disposiccedilatildeo de quem o quisesse ou pagasse mais Era entatildeo uma espeacutecie de capitatildeo de soldados mercenaacuterios Assume tambeacutem o sentido de aventureiro 4 Florenccedila e Pisa alternaram periacuteodos de amizade com tempos em que a inimizade explodia em conflitos seacuterios muitas vezes armados 5Cf LARIVAILLE PAUL A Itaacutelia no tempo de Maquiavel Op Cit pg 75-79

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

164

de excelente habilidade mas por outro lado extremamente cruel6 Com a dupla proteccedilatildeo de seu pai e das armas francesas Ceacutesar Boacutergia vinha desempenhando uma accedilatildeo militar avassaladora sobre as possessotildees italianas

No que concerne agrave situaccedilatildeo alarmante de Florenccedila ante o turbulento protegido de Luis XII eacute esclarecedora a descriccedilatildeo desses acontecimentos expressos por JF Duvernoy

Florenccedila tem medo ela se entrega ela cuja doutrina consiste em fugir da submissatildeo de um senhor de um gonfaloneiro vitaliacutecio Eacute verdade que ela o escolheu ldquodemocratardquo na pessoa de Piero Soderini Envia Maquiavel para junto de Ceacutesar Boacutergia para observaacute-lo medir suas forccedilas e seus apetites Ele de fato observa vecirc em Sinigalia como Ceacutesar reprimiu num soacute golpe todos os seus antigos aliados Ele traz de sua missatildeo algo de muito confuso uma vontade indomaacutevel de trabalhar para natildeo ser conquistado e uma admiraccedilatildeo pela poliacutetica de alto vocirco que ele viu em accedilatildeordquo7

Em 1503 o perigo iminente cessou com a morte do Papa Alexandre VI e com a derrota de Ceacutesar Boacutergia Gravemente enfermo e sem apoio nada mais restou ao valoroso Duque de Valentinois senatildeo capitular Conta-se que morreu na Espanha como ldquocondottiererdquo mediacuteocre

A Repuacuteblica de Florenccedila procurou entatildeo evitar cair sob a autori-dade do novo Pontiacutefice Juacutelio II della Rovere o qual pretendia colocar sob a jurisdiccedilatildeo da Santa Seacute todas as antigas cidades regiotildees e possessotildees que antes pertenciam ao Ducado de Valentinois Imediatamente a desas-sossegada Senhoria envia Maquiavel para prestar ao Papa serviccedilos de chancelaria Durante a segunda legaccedilatildeo a Juacutelio II Maquiavel pocircde avaliar de perto o poder temporal do Sumo Pontiacutefice aleacutem de fortemente tomar consciecircncia de como o sentimento religioso ainda se encontrava arraigado no espiacuterito dos homens Essas duas realidades levam-no ao convencimento que ele descreve no seu livro O Priacutencipe

[] os principados eclesiaacutesticos [] satildeo mantidos pela grande antiguidade que existe nas instituiccedilotildees da religiatildeo as quais satildeo tatildeo poderosas e de tal

6 Cf por exemplo Dicionario da Idade Meacutedia organizado por Henry R Lyon Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990 pg 56 [] Era totalmente inescrupuloso a fim de proteger suas fronteiras setentrionais assassinou o marido de sua irmatilde Lucreacutecia e casou-a com o futuro duque de Ferrara 7 DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores 1984 pg 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

165

natureza que seus priacutencipes permanecem no lugar de qualquer maneira que eles se comportam e que vivam8

De fato as tropas mercenaacuterias quando se batiam contra o Papa embora dispusessem de poderio beacutelico suficiente para vencecirc-lo rendiam-se facilmente preferindo assim reverenciar o Chefe da Igreja

A tempestade poliacutetica se avolumava sobre a Itaacutelia ameaccedilando o equiliacutebrio do poder Em Florenccedila a ameaccedila provinha de dois poderosos vizinhos de um lado o Papado do outro o Santo Impeacuterio Maquiavel tendo agora seus dotes conciliadores reconhecidos foi enviado agrave Alemanha e conseguiu perante o Imperador Maximiano I defender a neutralidade de Florenccedila no conflito contra Veneza

Em 1510 poreacutem a Igreja Veneza e a Espanha declaram guerra ao Governo Francecircs Havia muito tempo a Franccedila ocupava o lugar de tradi-cional aliada de Florenccedila Portanto Maquiavel em uma de suas uacuteltimas missotildees diplomaacuteticas conseguiu com muita habilidade e perspicaacutecia que mais uma vez Florenccedila ficasse neutra ou seja liberada de participar daquele conflito

Por natildeo ter apoiado todavia a Igreja na guerra contra a Franccedila o Governo Florentino se viu em maus lenccediloacuteis Em 1512 Florenccedila foi saqueada pelas tropas imperiais de Ferdinando II O Papa destituiu o liacuteder Soderini e a famiacutelia poderosa dos Meacutedicis retornou ao poder Era o fim das instituiccedilotildees democraacuteticas da Repuacuteblica Livre de Florenccedila

Aquele ano assinala igualmente o capiacutetulo final da carreira poliacutetica de Maquiavel Durante os 15 anos do exiacutelio no reinado dos Meacutedicis vive na sua propriedade interiorana trabalhando duro sem se queixar nem se lastimar porque tinha prazer de trabalhar em favor de sua querida e estimada Florenccedila Quando jaacute em desgraccedila escreveu no dia 10 de outubro de 1513 uma carta dirigida a seu amigo Francesco Vettori em que afirma ldquoforam quinze anos dedicados a cultivar a Arte do Estado em que natildeo dormi nem tive folgardquo9

Os autores em grande parte consideram Maquiavel como um excelente diplomata trabalhando sempre com muito empenho lealdade e dedicaccedilatildeo Suas cartas escritas na cidade francesa de Blois quando efetuava suas uacuteltimas atividades de diplomacia na Franccedila constituem documentos 8 MAQUIAVEL Niccolo O Priacutencipe cap XI 9 MAQUIAVELLI N Tutte Le Opere Firenze Sansoni 1992 Citado em RODRIGO Lidia Maria Maquiavel op cit p 23

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

166

que comprovam definitivamente a habilidade poliacutetica do Pensador Floren-tino que atinge alguns momentos insuperaacuteveis Acrescenta-se ainda que no bloqueio rigoroso de Pisa o papel de comissaacuterio desempenhado por Maquiavel foi determinante na retomada dessa cidade

A importacircncia da atividade diplomaacutetica na formaccedilatildeo do pensa-mento poliacutetico de Maquiavel eacute assim analisada por Bronowski e Mazlish

o seu posto natildeo lhe desse grande poder na definiccedilatildeo da poliacutetica deu-lhe uma visatildeo directa do processo poliacutetico das cidades-estado italianas E como esses processos poliacuteticos variavam desde a oligarquia em Veneza agrave monarquia em Naacutepoles e agrave democracia em Florenccedila forneciam uma verdadeira escola de poliacutetica para um observador atento10

Foi nessa atividade diplomaacutetica que Maquiavel chegou agrave conclusatildeo de que o mais importante na poliacutetica eacute

[] o Estado natildeo aquele imaginaacuterio e que nunca existiu mas aquele que eacute capaz de impor a ordem O ponto de partida e da chegada eacute a realidade corrente ndash por isto a ecircnfase na veritagrave effetuale ndash ou seja ver e examinar a realidade como ela eacute e natildeo como se gostaria que fosse11

Isto se aplica agrave imagem que Maquiavel formou dos priacutencipes nos seus contatos diretos com os detentores do poder durante tantos anos o descobriu que

[] o priacutencipe que os humanistas do Renascimento apresentavam como modelo aos governantes natildeo passava de uma construccedilatildeo do espiacuterito de uma formulaccedilatildeo abstrata e ideal desvinculada de qualquer possibilidade e em contraste chocante com a realidade crua e aacutespera da eacutepoca quinhentista O priacutencipe ideal do humanismo era o siacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilotildees religiosas cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudente ndash compendio enfim de todas as perfeiccedilotildees fiacutesicas intelectuais e morais 12

Assim surge um personagem viril audaz destemido cuja maacutexima mais importante era ater-se aacute verdade efetiva das coisas sem ficar pensando em repuacuteblicas e monarquias imaginaacuterias com seus princiacutepios inspirados por altos ideais longe da realidade concreta da poliacutetica praticada naqueles dias ndash e em tempos anteriores

10 BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 pg 47 11 Disponiacutevel em www palmirarjnet Acesso em 25-10-2010 12 ESCOREL Lauro O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades Cadernos da UnB Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 pg 18

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

167

2 2 O estudo da histoacuteria

Como Maquiavel se inspirou na histoacuteria encontrando nela valiosas pistas para a accedilatildeo poliacutetica manifesta-se sobretudo na sua obra Discursos sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio A obra caracteriza-se como um diaacutelogo com o historiador Tito Liacutevio que viveu de 58 aC ateacute 12 dC o turbu-lento periacuteodo que acusa o fim da era da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Romano13 Uma das propriedades desta grandiosa obra foi entre outras o enfoque da histoacuteria sob o ponto de vista da moral ao fazer com que Maquiavel apontasse a Repuacuteblica Romana como um verdadeiro modelo de sociedade cuja virtugrave deveria servir como exemplo para os seus contem-poracircneos

Os Discorsi satildeo uma elaboraccedilatildeo ideal uma obra de educaccedilatildeo poliacutetica uma sistematizaccedilatildeo mais refletida uma projeccedilatildeo na histoacuteria passada e futura das liccedilotildees ldquodas coisas do mundordquo Eacute uma procura das razotildees que explicam o nascimento a prosperidade e a decadecircncia das naccedilotildees com o intuito de descobrir ndash no exemplo eminente da Roma Claacutessica ndash qual o segredo da forccedila e da estabilidade dos Estados Os Discorsi satildeo compostos de trecircs livros

1o Livro trata dos modos pelos quais se fundam os Estados e da organizaccedilatildeo e modalidades de Governo

2o Livro examina os processos de engrandecimento dos Estados e de conquista de novos Estados

3o Livro tece consideraccedilotildees sobre o crescimento e a decadecircncia dos Estados e seus modos de transformaccedilatildeo e uma anaacutelise da natureza das conjuraccedilotildees que ameaccedilam os detentores do poder

Tudo o que Maquiavel exprime nestes livros eacute inspirado pela ideia que se tornou para ele um axioma de que a imitaccedilatildeo da histoacuteria antiga e de modo peculiar a da Repuacuteblica Romana constitui a fonte por excelecircncia da sabedoria poliacutetica Sob tal perspectiva vaacutelida antes de tudo para a Peniacutensula Italiana ndash outrora sede do nuacutecleo do Impeacuterio Romano ndash o que ocorrera no passado tendia inevitavelmente a se repetir no presente e no futuro Assim sendo o estudo da histoacuteria impunha-se quase como uma condiccedilatildeo sine qua non para a formulaccedilatildeo da teoria do Estado e da descriccedilatildeo das qualidades dos priacutencipes

13 Tito Liacutevio escreveu a monumental obra Ab Urbe Condita ndash a partir da Fundaccedilatildeo da Cidade constando de 142 livros do quais 35 chegaram ateacute noacutes entre eles os dez primeiros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

168

Curiosamente nessa obra Maquiavel exprime uma altamente positiva apreciaccedilatildeo da Repuacuteblica vista por ele como mais apta e equili-brada a tomar decisotildees e realizar o bem comum Ao lado dela - e aqui jaacute se veem as linhas de O Priacutencipe ndash Maquiavel destaca a Monarquia como a melhor forma de se conseguir a formaccedilatildeo do Estado na Peniacutensula da Itaacutelia Concluindo o mesmo raciociacutenio rejeita a tirania e a oligarquia de que eacute afirmado que se trata de uma relaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude Para Maquiavel poreacutem tanto as boas como as maacutes formas de governo teratildeo pouca duraccedilatildeo e por isso defende a maneira mista opiniatildeo que se reflete na descriccedilatildeo dos tipos de principados (Estados) no O Priacutencipe e na postura exigida dos priacutencipes

Resumindo pode-se afirmar que em decorrecircncia da leitura de autores claacutessicos como Tito Liacutevio e Poliacutebio14 aleacutem da recente histoacuteria e da vasta experiecircncia junto a poliacuteticos de sua eacutepoca Maquiavel chega aacute seguinte conclusatildeo O priacutencipe (irreal) estaacute longe de como se vive e de como se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da proacutepria ruiacutena do que de sua conservaccedilatildeo porque um homem que queira em todo lugar parecer bom atrai ruiacutena entre tantos que natildeo satildeo bons15

3 O Priacutencipe

31 Introduccedilatildeo

O Priacutencipe incontestavelmente a obra mais conhecida de Maquiavel foi publicada no ano de 1532 e eacute portanto poacutestuma Antes de sua publicaccedilatildeo impressa jaacute circularam algumas coacutepias manuscritas que natildeo tinham causado nenhum escacircndalo Pelo contraacuterio Maquiavel ficou desapontado pela frieza de Lourenccedilo de Meacutedici em relaccedilatildeo a sua obra que lhe foi dedicada Outro fator que causa certa espeacutecie foi o fato de que na eacutepoca natildeo foi negada agrave obra a licenccedila de imprimiacute-la o assim chamado ldquoimprimaturrdquo Parece que a postergaccedilatildeo da impressatildeo decorre das circunstacircncias poliacuteticas de 1513 ndash 1527 eacutepoca em que Maquiavel vivia isolado no seu exiacutelio Aleacutem disso acredita-se que ele queria reservar a publicaccedilatildeo da obra para uma conjuntura mais propiacutecia no intuito de

14 Historiador nascido na Greacutecia Antiga viveu de 203 aC ateacute 120 a C tomando na sua juventude parte ativa na luta dos gregos contra os romanos Feito prisioneiro foi levado para Roma ficando nesta cidade 17 anos como refeacutem Depois do seu retorno auml Greacutecia voltou algumas vezes a Roma e dedicou-se agrave histoacuteria dos acontecimentos ocorridos durante a sua vida procurando aleacutem do rigor cientiacutefico a valorizaccedilatildeo dos testemunhos de seus contemporacircneos Cf Biografia y Vidascombiografiaenlinea acesso em 10022011 15 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe cap XV-XVII

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

169

produzir um efeito maior Soacute mais tarde o cardeal Reginald Pole 1500-1588 constatando a ldquomaleacutefica influecircnciardquo16 da obra sobre Oliver Cromwell denunciou Maquiavel como um espiacuterito satacircnico defensor do despotismo e justificador de todas as arbitrariedades e violecircncias

Ademais a obra e seu autor enfrentaram a oposiccedilatildeo dos Jesuiacutetas que aleacutem de queimarem a efiacutegie de Maquiavel em Ingolstat em 1559 convenceram o papa Paulo IV a colocar o livro no Index por decreto o que foi confirmado pelo Concilio Tridentino em 1564 A oposiccedilatildeo ao escrito do Maquiavel entretanto natildeo foi proveniente apenas dos catoacutelicos pois tambeacutem os calvinistas como por exemplo Inocecircncio Gentillet que em 1576 publicou Contre Nicolas florentin

[] em que natildeo soacute qualificou o escritor de puant atheacuteiste mas tambeacutem denunciou suas doutrinas como instigadoras da ldquoNoite de Satildeo Bartolomeurdquo acusando-as de haver insuflado no espiacuterito de Catarina de Meacutedici a ideacuteia do massacre e de haver introduzido meacutetodos alieniacutegenas isto eacute italianos na poliacutetica francesa17

Embora importante no conjunto de seus escritos a obra de Maquiavel e sua filosofia poliacutetica natildeo se restringem soacute ao Priacutencipe devendo ser esse escrito visto no contexto de sua obra Com isto entretanto natildeo se pode nem se deve negar o lugar central que este livro ocupa no conjunto da obra maquiaveliana e eacute esta a razatildeo por que neste trabalho dedicado agrave anaacutelise da moral em Maquiavel e de modo especial no O Priacutencipe se lhe dedica um estudo especial

32 A Gecircnese de O Priacutencipe

Segundo Vilari18 deve-se buscar o conceito de O Priacutencipe no papa Leatildeo X 1513-1521 que lanccedilou a ideia de fundar um outro Estado abrangendo Parma Modena Urbino e Ferrara entregando o seu governo a Juliano de Meacutedici Desta forma realizar-se-ia o grande sonho de Maquiavel de um grande Estado monaacuterquico italiano superando a sua divisatildeo em inuacutemeros estados pequenos com um poder central suficiente tanto para unificaacute-la como para mantecirc-la unificada

16 ESCOREL Lauro O pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades VII Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1984 nordm 8 pg 18-52 17 ESCOREL Lauro op cit p 19 18 VILARI P Niccolograve Macchiavelli e i suoi tempi 3 vls Firenze 1877 p 294 vol II citado em ESCOREL Lauro op cit p 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

170

Maquiavel entusiasta defensor dessa ideia se distancia dela quanto agrave sua realizaccedilatildeo concreta como um poder monaacuterquico central e absoluto baseado nos ideais da tradiccedilatildeo cristatilde e se opotildee contra o priacutencipe ideal renascentista ldquosiacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilatildeo religiosa cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudenterdquo19 Pelo contraacuterio o priacutencipe com o qual Maquiavel sonha eacute um teacutecnico poliacutetico realista plasmado nos moldes do passado sobretudo da antiga Repuacuteblica Romana nos seus melhores dias de gloacuteria

[] para o qual o importante era ater-se agrave veritaacute effetuale delle cose [] O priacutencipe maquiaveacutelico natildeo emerge do pensamento do seu autor aureolado pelas virtudes da eacutetica tradicional como produto de uma elaboraccedilatildeo mental utoacutepica [] Plasma-o ao contraacuterio indutivamente com base nos dados de sua experiecircncia e inspirado nos exemplos da Antiguidade Claacutessica investindo-o de uma loacutegica inexoraacutevel para a consecuccedilatildeo de seu objetivo supremo a conquista e a preservaccedilatildeo do poder poliacutetico absoluto 20

Eacute nesta inspiraccedilatildeo que residem a grandiosidade e o gecircnio de Maquiavel que o fizeram descobrir e penetrar a essecircncia da accedilatildeo poliacutetica do homem revelando as leis proacuteprias e analisando dividindo e avaliando friamente a forccedila das paixotildees humanas Foi sob esse prisma que o seu livro auferiu validade permanente

33 A Estrutura do livro21

O livro que consta de 26 capiacutetulos comeccedila com uma carta dedicatoacuteria ao magniacutefico Lorenzo filho de Piero de Meacutedici neto de Lorenzo o Magniacutefico (1449-1492) Originalmente o livro seria dedicado a outro membro da famiacutelia Meacutedici Giuliano filho de Lorenzo mas este morreu em 1516

Do primeiro ao deacutecimo capiacutetulo eacute procedida agrave discriminaccedilatildeo dos vaacuterios tipos de principados Aleacutem disso Maquiavel desenvolveu as caracteriacutesticas e qualidades dos mencionados principados Central estaacute o problema da conquista do poder em geral e especialmente no

19 ESCOREL Lauro op cit p 23 20 ESCOREL Lauro op cit p 23 21 Cf Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Grupo de Estudos de Filosofia ndash GEFIL Aula I BATISTA Flaacutevio Donizete http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 15 de agosto de 2010 BATH Sergio A praacutetica poliacutetica segundo Nicolau Maquiavel Satildeo Paulo Aacutetica 2009 CHEVALLIER J J As grandes obras poliacuteticas de Maquiavel a nossos dias Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 pg 17-48

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

171

principado novo Tudo eacute visto sob a grande perspectiva da unificaccedilatildeo da Itaacutelia que deve ser fundada nas conquistas e na virtugrave do governante

Do deacutecimo ao deacutecimo quinto capiacutetulo preocupa-se em argumentar e mostrar que a base de qualquer Estado estaacute na sua autarquia militar Trata de maneira especial no capiacutetulo 11 dos Estados eclesiaacutesticos e como chegaram ao poder que ostentam

A parte principal da obra eacute formada pelos capiacutetulos deacutecimo quinto ateacute o vigeacutesimo sexto Aqui se trata do exame do problema do governo de um povo como um priacutencipe deve conduzir-se com os seus suacuteditos e seus aliados Quanto agrave imagem do priacutencipe formulada por Maquiavel merecem destaque especial os quatro conceitos por ele considerados fundamentais virtugrave ocasiatildeo fortuna e necessidade Por todos os capiacutetulos especialmente a partir do deacutecimo nono encontramos Maquiavel insiste na necessidade da reformulaccedilatildeo da imagem tradicional do priacutencipe acentuando a obrigaccedilatildeo de ele sempre se esforccedilar para ter o povo ao seu lado porque sem o apoio do povo o priacutencipe natildeo resistiraacute agraves dificuldades que sobreviratildeo

Do capiacutetulo 23 ateacute o 25 Maquiavel constatando porque os priacutencipes italianos perderam seus Estados afirma o poder da vontade humana de domar e vencer a proacutepria fortuna pela razatildeo e pela virtude

O uacuteltimo capiacutetulo ndash o 26 - eacute uma eloquente exortaccedilatildeo agrave redenccedilatildeo e libertaccedilatildeo da Itaacutelia do domiacutenio das potecircncias estrangeiras ndash Franccedila Espanha e o Impeacuterio Alematildeo ndash e consiste num convite ao priacutencipe de ser audaz e feroz a fim de alcanccedilar ecircxito Termina com as belas palavras de Petrarca

Virtugrave contro a furore Prenderaacute lrsquoarmi e fia el combatter corto Che lrsquoantico valore Nellrsquoitalici cor non egrave ancor morto22

4 Moral e Eacutetica na poliacutetica de Maquiavel

Agrave primeira vista pode parecer fora de propoacutesito falar de Moral E Eacutetica em Maquiavel Para muitos autores e sobretudo para muitas pessoas no seu dia a dia os dois conceitos significam a mesma coisa e dizem 22 O valor tomaraacute armas contra o furor e que seja curto o combate pois a coragem antiga ainda natildeo morreu no coraccedilatildeo dos italianos PETRARCA Francesco Rime Esparse (sem maiores referecircncias) em O Priacutencipe comentado por Napoleatildeo Bonaparte MAQUIAVEL texto integral Traduccedilatildeo NASSETTI Pietro Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

172

respeito ao comportamento humano Por que e para que entatildeo fazer uma distinccedilatildeo Leonardo Boff no seu livro Ethos Mundial diz o seguinte

[] precisamos voltar ao sentido originaacuterio da eacutetica e da moralidade Todas as morais por mais diversas nascem de um transfundo comum que eacute a eacutetica Eacutetica somente existe no singular pois pertence aacute natureza humana presente em cada pessoa enquanto moral estaacute sempre no plural porque satildeo distintas formas de expressatildeo cultural e histoacuterica da eacutetica 23

Um olhar sobre o sentido original da palavra eacutetica pode esclarecer o seu rico e profundo sentido proacuteprio Na sua liacutengua de origem a grega eacutetica vem de ethos que tem duas grafias com letra e pequena ou grande e conforme o tamanho muda o sentido Ethos com letra pequena indica a morada abrigo permanente tanto dos animais como dos humanos Ela tem que ser construiacuteda pela atividade humana e por isso deve ser sempre reformada melhorada e aperfeiccediloada Assim pode-se dizer que a eacutetica tem por fim morar bem e para isto constituir objetivos fundamentais e valores e princiacutepios que norteiam a accedilatildeo humana Para os antigos entatildeo a eacutetica estaacute ligada ao bem ou aacute felicidade que devem ser perseguidos por meios que levem a esta bondade e felicidade Estes meios eram tambeacutem chamados de ethos mas com e grande e significam os costumes ou ldquoo conjunto de valores e de haacutebitos consagrados pela tradiccedilatildeo cultural de um povordquo24

Ao dizer-se que algueacutem natildeo tem eacutetica significa a ausecircncia nesta pessoa de princiacutepios norteadores para sua accedilatildeo que se desenvolve pois de acordo com as vantagens que possa conseguir e consequentemente coerecircncia e princiacutepios fazem falta na sua vida Por outro lado quando se garante que algueacutem natildeo possui moral indica-se que esta pessoa natildeo possui virtudes que a ajudem a ldquoconstruir sua moradardquo sua felicidade e age erradamente mentindo roubando explorando

Resumindo

[] moral eacute o conjunto de haacutebitos e costumes efetivamente vivenciados por um grupo humano Nas culturas dos grupos humanos estatildeo presentes haacutebitos e costumes considerados vaacutelidos porque bons bons porque justos justos porque contribuem para a realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

[] eacutetica eacute a reflexatildeo sobre a accedilatildeo humana para extrair dela o conjunto excelente de accedilotildees Eacute uma ciecircncia que tem por objeto a moral e a lei e pretende aprimorar

23 BOFF Leonardo Ethos Mundial Um consenso miacutenimo entre os humanos SI Letraviva Editorial Ltda 2000 pg 34 24 BOFF Leonardo op cit pg 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

173

as ldquoatividades realizadoras de sirdquo desenvolvidas pelos indiviacuteduos em busca do excelente25

41 A Eacutetica maquiaveliana

Com a difusatildeo do livro O Priacutencipe as ideacuteias de Nicolau Maquiavel se tornaram conhecidas mas tambeacutem quase de imediato foram atingidas por uma forte onda de severas criacuteticas A obra que pode ser considerada como a principal de Maquiavel foi qualificada de imoral e sem eacutetica Qual a razatildeo de tatildeo severo juiacutezo Ricardo Rodrigues responde a esta indagaccedilatildeo quando esclarece

[] Maquiavel simplesmente documentou verdades jaacute conhecidas pelos homens embora natildeo admitidas Tudo o que fez foi construir uma teoria poliacutetica a partir da combinaccedilatildeo de experiecircncia concreta no trato da coisa puacuteblica com a observaccedilatildeo aguda do processo poliacutetico aliada ainda ao estudo da histoacuteria26

Em verdade Maquiavel faz uma anaacutelise nua e crua da praacutetica poliacutetica do seu tempo como realmente era e natildeo como deveria ser Em primeira instacircncia estaacute o realismo poliacutetico por ele descrito como sendo a uacutenica maneira de algueacutem se tornar vitorioso no jogo pelo poder Este realismo poliacutetico que natildeo raro desprezava a moral vigente e a eacutetica tradicional feria em muitos aspectos os padrotildees escolaacutesticos da eacutepoca baseados nos estudos teoloacutegicos agostinianos e tomistas Esses estudos denotaram ideias que deveriam conduzir a accedilatildeo poliacutetica em vista da construccedilatildeo de uma sociedade baseada em princiacutepios cristatildeos conduzindo desta forma agrave construccedilatildeo da Cidade Justa ou de Deus sobre a terra27 defendendo neste sentido a consecuccedilatildeo do Bem Comum entendido em sentido cristatildeo Em outras palavras haacute um ideal a ser atingido e a eacutetica igual agrave praacutetica moral consequecircncia dela eacute julgada agrave luz deste ideaacuterio Esta posiccedilatildeo defendida embora com algumas pequenas diferenccedilas pelo pensamento da Igreja Catoacutelica de entatildeo tambeacutem se encontrava na visatildeo

25 DOS SANTOS Antonio Raimundo Eacutetica Caminhos da realizaccedilatildeo humana 4 ed Satildeo Paulo Editora Ave Maria 2004 pg 11 e 15 26 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Simposion Unicap no 2 1986 pg 44 27 Cf a grande corrente teoloacutegica que tem em Santo Agostinho o eu grande defensor e propagador especialmente na sua obra De Civitate Dei ndash (Sobre a Cidade de Deus ) que ateacute o seacuteculo XII-XIII foi a inspiraccedilatildeo maior para o ideal poliacutetico da Idade Meacutedia muitas vezes apresentada como o ideal da assim chamada Cristandade Santo Tomaacutes de Aquino natildeo negando a influecircncia agostiniana recebe grande aporte das ideias aristoteacutelicas como resta claro natildeo somente no seu pequeno tratado De Regno mas tambeacutem no extenso e inacabado comentaacuterio sobre a Poliacutetica e a Eacutetica do Nicocircmaco de Aristoacuteteles

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

174

filosoacutefica da poliacutetica baseada na teoria platocircnica com a sua cidade ideal regida pela justiccedila e aristoteacutelica em que o ideal da felicidade estaacute central o que foi intensamente estudado pelos saacutebios da eacutepoca Em outras palavras existem conceitos ideias de bem e de mal que servem como paradigma para a accedilatildeo humana uma ideia a que a accedilatildeo humana deve obedecer ou a qual se adaptar Satildeo os assim chamados valores eternos que transcendem tempo e lugar isto eacute possuem validade universal

Como consequumlecircncia da anaacutelise e descriccedilatildeo da poliacutetica de acordo com as ideacuteias de Maquiavel surge o assim chamado maquiavelismo teoria que procura ligar as ideias do Pensador de Florenccedila a procedimentos nocivos que lembram perfiacutedia astuacutecia crueldade e traiccedilatildeo E o que eacute pior para alguns estas expressotildees pejorativas continuam sobrevivendo no tempo e no espaccedilo e proliferam ainda hoje tanto na esfera poliacutetica como nas desavenccedilas do cotidiano

Eacute bem verdade que no acervo de qualidades do bom governante aceito por Maquiavel constavam a fraude e a mentira a dissimulaccedilatildeo e ateacute mesmo a crueldade 28 Isto natildeo significa todavia que Maquiavel defen-desse ou aconselhasse um estado turbulento de constantes lutas contra usurpadores gananciosos anarquicamente cruel em que os governantes poderosos mantivessem seus suacuteditos em regime de servidatildeo de tortura e perversidade

Por outro lado o Escritor Florentino nunca deixava de louvar a honestidade e a integridade em governantes29 Pelo estudo de fatos paacutes-sados entretanto e de outros da histoacuteria de entatildeo que havia presenciado e testemunhado enfatizava que o poliacutetico dependia de qualidades bem diversas Fazendo distinccedilatildeo entre honestidade e ingenuidade acreditava ele que praticar a honestidade sem levar em conta os efeitos prejudiciais para toda uma coletividade ou para a naccedilatildeo eacute de fato mera ingenuidade defeito maacuteximo de maus governantes

Discorrendo ainda sobre integridade Maquiavel considerava lou-vavel o fato de que o priacutencipe fosse um homem iacutentegro e mantivesse a palavra empenhada30 Ao mesmo tempo poreacutem alertava para o fato de que conforme a necessidade ele poderia abandonar a boa feacute desfazendo assim a palavra dada 28 Cf O Priacutencipe op cit cap XVII 29 Cf RODRIGUES RICARDO Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no 2 Recife Unicap 1986 pg 48 30 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

175

Um priacutencipe prudente natildeo deveraacute pois agir de boa feacute quando para fazecirc-lo precise agir contra seus interesses e quando os motivos que o levaram a empenhar a palavra deixarem de existir31

Em circunstacircncias adversas este poderia utilizar-se igualmente da dissimulaccedilatildeo porquanto os homens em geral satildeo tolos e sempre acreditam em quem lhes faz promessas ou lhes promete benefiacutecios Usando uma linguagem coloquial contemporacircnea ldquopara cada bobo haacute sempre um espertordquo

A argumentaccedilatildeo do Escritor Florentino sobre a crueldade reflete-se nos louvores e elogios feitos por ele ao Duque de Valentino citado como exemplo de um autecircntico e renomeado estadista

Ceacutesar Boacutergia era considerado cruel mas sua crueldade impocircs ordem agrave Romanha unificou-a reduzindo-a agrave paz e agrave fidelidade Se examinarmos bem este ponto veremos que na verdade ele foi muito mais clemente que o povo de Florenccedila que para fugir agrave reputaccedilatildeo de cruel permitiu a destruiccedilatildeo de Pistoia32

Eacute interessante esclarecer que a admiraccedilatildeo de Maquiavel por Ceacutesar Boacutergia natildeo emergiu do fato de ser este um homem perverso e cruel Em sua oacuteptica Ceacutesar Boacutergia surgiu como um governante eficiente destemido saacutebio capaz de comportar-se como priacutencipe em toda e qualquer situaccedilatildeo

Em virtude destas e de outras afirmaccedilotildees em torno do caraacuteter poliacutetico e do jogo pelo poder Maquiavel atraiu para si muitas criacuteticas atraveacutes dos tempos Seus conceitos e teorias foram analisados de vaacuterias maneiras e muito mal interpretados Como expresso anteriormente sua obra foi qualificada de imoral e sem eacutetica Impuseram ao Escritor a condiccedilatildeo de advogado da poliacutetica sem moralidade

Lauro Escorel refuta esta ideia quando diz que rdquoOs princiacutepios do poliacutetico florentino podem natildeo ser cristatildeos mas satildeo eacuteticosrdquo33

Natildeo partilhando igualmente daquela opiniatildeo que o Professor Cranston projeta o Escritor para uma dimensatildeo contraacuteria quando sugere que ldquoO argumento de Maquiavel parece-me ser o de que apenas existe uma verdadeira moralidade mas que por vezes o governante tem que a

31 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 32 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 33 ECSOREL Lauro O Pensamento Poliacutetico em Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

176

desrespeitarrdquo34 Cranston propotildee ainda que a principal razatildeo de o Florentino ser continuamente hostilizado

[] eacute a de que ele aconselha (os governantes) a fazerem consciente e deliberadamente o que muitos estatildeo fazendo de modo natural preferindo natildeo pensar no assunto [] Maquiavel nunca endossou o uso da fraude para a proteccedilatildeo de carreiras poliacuteticas aconselhando-a apenas para encobrir aqueles atos de Estado necessaacuterios que violam a moralidade35

Daiacute conclui-se que estes atos de Estado necessaacuterios correspondiam ao conceito maquiaveliano de ldquoragione di statordquo e agrave consciecircncia de que a poliacutetica eacute uma atividade autocircnoma do Estado e no Estado sem recurso ou associaccedilatildeo agrave eacutetica agrave jurisprudecircncia agrave moralidade cristatilde ou pagatilde Seria mais justo e claro dizer que haacute para Maquiavel uma mudanccedila no conceito da eacutetica Ele aceita que a accedilatildeo poliacutetica deve ser orientada por valores mas estes assumem caraacuteter totalmente diferente distanciando-se do ideal teoloacutegico filosoacutefico e sobretudo da ideaccedilatildeo da felicidade pessoal Para o Secretaacuterio Florentino o Estado eacute sem duacutevida o valor mais alto aleacutem do qual natildeo existe um limite Para ele a poliacutetica resumia-se numa coisa conquistar e manter o poder ou a autoridade no domiacutenio conquistado Portanto a religiatildeo a moral e outros valores que os humanistas pretendiam associar agrave poliacutetica nada tinham de relaccedilatildeo com aquele ponto fundamental Permitia-se a exceccedilatildeo apenas nos casos em que a religiatildeo e a moral contribuiacutessem para a conquista e a manutenccedilatildeo do poder quando entatildeo se tornam meios para a grandeza do Estado

Eacute preciso natildeo esquecer de que a razatildeo de Estado implica um cunho social Isto quer dizer que embora o Estado representasse poder pessoal prestiacutegio e forccedila para o governante focalizava e visava tambeacutem aos suacuteditos toda uma comunidade de homens para gerenciar e prover Para Maquiavel isto era um ponto de capital importacircncia visto que ele deixa transparecer nos seus escritos a opiniatildeo que considera os homens maus de nascenccedila e iacutendole Por conseguinte de nada adiantariam a boa-feacute a integridade e a honestidade do priacutencipe se estas virtudes natildeo impedissem a sua ruiacutena levando o Estado agrave fraqueza e agrave derrota que tem como consequecircncia o domiacutenio inimigo o qual provocaria natildeo soacute a inquietaccedilatildeo mas tambeacutem o sofrimento de toda a coletividade Esta inquietaccedilatildeo e o concomitante sofrimento por sua vez causariam a desconfianccedila e ateacute a 34 CRANSTON Maurice Poliacutetica e eacutetica Em KING PRESTON O Estudo da Poliacutetica Brasilia Universidade de Brasiacutelia 1980 Citado em RICARDO Rodrigues Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p 49 35 Cranston OC Em RODRIGUES op cit p 50

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

177

revolta dos cidadatildeos e enfraqueceriam o Estado Por isso o aspecto eacutetico para Maquiavel estaacute nas mais elevadas regras de grandeza de Estado manutenccedilatildeo do poder governabilidade e defesa custe o que custar do Estado ou do domiacutenio do priacutencipe Eacute na histoacuteria e tambeacutem nas suas aventuras diplomaacuteticas que Maquiavel viu estes princiacutepios sendo praticados ndash para o bem do Estado e do seu priacutencipe e suacuteditos - ou negli-genciados ndash para a sua ruiacutena e fraqueza

Ricardo Rodrigues aprecia e tenta justificar esta doutrina maquiave-liana quando destaca ldquoEacute necessaacuterio poreacutem perguntar desapaixonadamente se Maquiavel realmente merece ser considerado ldquomaquiaveacutelicordquordquo36 O autor reaviva a polecircmica em cima de Maquiavel e chega aacute conclusatildeo de que o Florentino natildeo quis propriamente sugerir como os priacutencipes deveriam se comportar para que sua poliacutetica se adequasse ao ideal eacutetico da sociedade mas apenas registrou como realmente procediam de modo que um entre os outros natildeo poderia se comportar diferentemente caso quisesse se conservar no trono e natildeo passar por ingecircnuo

Vasquez eacute outro autor que se inclina para separar a eacutetica da poliacutetica e declara

Na poliacutetica o indiviacuteduo encarna uma funccedilatildeo coletiva e a sua atuaccedilatildeo diz respeito a um interesse comum Na moral pelo contraacuterio ainda que o coletivo esteja sempre presente o elemento iacutentimo pessoal desempenha o papel importante [] interiorizando as normas gerais e assumindo responsabilidades pessoais37

Na realidade o fato mais notoacuterio eacute que ainda nos dias de hoje os estudiosos que procuram abordar ou elucidar o mesmo tema ou seja comprovar ou natildeo a identificaccedilatildeo da poliacutetica com a moral e a eacutetica sempre tentam se basear nos pressupostos constantes da filosofia poliacutetica do famoso Escritor Florentino

42 A moral em Maquiavel

Sabe-se que vaacuterios pensadores contemporacircneos de Maquiavel escre-veram tambeacutem como este manuais da linha ldquoEspelho dos Priacutencipesrdquo38 com o intuito de oferecer um norteamento comportamental para aquele que governa pautado tatildeo somente numa moral cristatilde 36 RODRIQUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na poliacutetica Op cit p 43-53 37 VASQUEZ Adolfo Sanchez Eacutetica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 pg 77 38 Eacute um gecircnero literaacuterio antigo que se espalhou sobre a Europa Medieval com base em fontes orientais nos seacuteculos XII a XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

178

A corrente filosoacutefica tradicional enfatiza a tese de que a virtugrave caracterizada por qualidades morais individuais como a justiccedila devia ser completada pelas qualidades ou virtudes cristatildes como a bondade e a feacute

Ao contraacuterio Maquiavel prefere romper com as tendecircncias medie-vais Resolve apresentar o seu ldquoEspelhordquo com caracteriacutesticas diferentes deixando de lado princiacutepios de uma moral cristatilde Rejeita imperativos categoacutericos como leis morais natildeo relativizaacuteveis por consideraacute-los belos ou atraentes como conceitos teoacutericos mas ineficazes na praacutetica da vida puacuteblica Estudiosos do universo maquiaveliano como Berlin39 e Skinner40 compartilham da ideacuteia de que essa preocupaccedilatildeo em romper e ateacute mesmo denunciar a ingenuidade das teorias poliacuteticas reflete o traccedilo de maior originalidade de Maquiavel

O Florentino rejeita a filosofia poliacutetica tradicional acreditando que os comentadores de sua eacutepoca natildeo haviam conseguido perceber a incompati-bilidade de uma ldquomoral cristatilderdquo que atenda agrave pessoa e uma ldquomoral poliacute-ticardquo que atenda ao coletivo no caso o Estado

Essa incompatibilidade reside na natureza humana representada por homens maus levianos covardes e gananciosos Na tentativa de comprovar a sua tese Maquiavel resume seu pensamento numa frase lapidar

[] Seria muito louvaacutevel que um priacutencipe possuiacutesse todas as qualidades consideradas boas Natildeo sendo isto poreacutem inteiramente possiacutevel devido agraves proacuteprias condiccedilotildees humanas eacute necessaacuterio a um priacutencipe aprender a natildeo ser bom41

Acredita Maquiavel que a histoacuteria eacute ciacuteclica e que os costumes variam de regiatildeo para regiatildeo de eacutepoca para eacutepoca Assim sendo como eacute impos-siacutevel frear as paixotildees e os instintos humanos os conflitos e as desordens aconteceriam indefinidamente Continuamente estariam presentes os mesmos viacutecios ou as mesmas virtudes

Para o Pensador Florentino entretanto cujo sonho era ver a Itaacutelia renascida como um Estado forte como outrora o Impeacuterio Romano era fundamental acabar com a desordem causadora de uma situaccedilatildeo poliacutetica tatildeo caoacutetica como a da Peniacutensula Italiana do seu tempo Realmente 39 BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees internacionais Textos de Aula Brasilia UnB sd 40 SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988 41 MAQUIAVEL O Priacutencipe Cap XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

179

parafraseando Rodrigues42 eacute possiacutevel dizer que a visatildeo histoacuterica poliacutetica dominante nesta parte da Europa expressava um exemplo significativo dessa malignidade humana a Peniacutensula dividida a ausecircncia de um poder central lutas fratricidas conflitos violentos entre pequenas naccedilotildees ou principados italianos invasotildees promovidas por impeacuterios ou grandes reinos vizinhos o poder temporal da Igreja tantas vezes se transformando em outro obstaacuteculo Afinal um quadro desolador de fraqueza total e de insignificacircncia poliacutetica

Preocupado angustiado mesmo com esse alarmante contexto histoacute-rico em que a Itaacutelia (inclusive Florenccedila) se encontrava envolvida Maquiavel fortifica cada vez mais a sua visatildeo sonhadora de uma paacutetria forte unida eficiente e eficaz Nesta perspectiva munido por um espiacuterito empiacuterico tambeacutem realista o Pensador Florentino assume posiccedilatildeo ideoloacutegica isto eacute pragmaacutetica poliacutetica e para muitos revolucionaacuteria

Vaacuterios inteacuterpretes concordam com a noccedilatildeo de que Maquiavel levado naturalmente por seu empirismo toma aquela dura e cruel conjun-tura poliacutetica como um desafio43 Em decorrecircncia passa a conceber um priacutencipe heroacutei um priacutencipe valoroso determinado capaz de ir ateacute as uacuteltimas consequumlecircncias a fim de alcanccedilar seus objetivos que era ndash nada mais nada menos ndash a regeneraccedilatildeo da Repuacuteblica Conforme o pensamento de Liacutedia Maria ldquoo projeto poliacutetico do secretaacuterio florentino apontava essencialmente para a construccedilatildeo de um Estado forte unificado e voltado para o bem comumrdquo 44

Levando em conta o contexto histoacuterico sobre o qual se discorreu anteriormente pocircr em praacutetica semelhante projeto poliacutetico natildeo era tarefa simples Daiacute por que o priacutencipe idealizado por Maquiavel deveria ser virtuoso ou pelo menos parecer ser e aleacutem disso deveria possuir muita astuacutecia esperteza e sabedoria para pautar as suas accedilotildees com vistas agraves circunstacircncias Neste sentido a visatildeo do Florentino eacute incisiva haacute viacutecios que satildeo virtudes Natildeo tema pois o priacutencipe que deseje se manter no poder incorrer no oproacutebrio dos defeitos mencionados se tal for indispen-saacutevel para salvar o Estado Aconselhava ainda ao priacutencipe saacutebio que devia se aproveitar sempre das oportunidades (ocasione) ldquoaprender os meios de natildeo ser bom e a fazer uso ou natildeo deles de acordo com as

42 Cf RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p49-52 43 Cf por exemplo Paul Larivaille e Newton Bigotto 44 RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel ndash Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002 pg 31

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

180

necessidadesrdquo45 De conformidade com a teoria poliacutetica maquiaveliana o priacutencipe poderia ateacute praticar o mal desde que seu ato fosse justificaacutevel ou melhor que resultasse num bem maior para todos a estabilidade do Estado

Interpretando a filosofia poliacutetica de Maquiavel dentro dessa oacuteptica Rodrigues conclui

Eacute assim que a poliacutetica maquiaveliana se faz autocircnoma A finalidade eacute excelsa e imperativa porque necessaacuteria inevitaacutevel originaacuteria e fundamental eacute uma legitimaccedilatildeo tatildeo forte que pode atropelar qualquer consideraccedilatildeo eacutetica O absolutismo eacute justificado 46

Assumindo posicionamento tatildeo radical era loacutegico pois que a concepccedilatildeo maquiveliana entrasse fundamentalmente em choque com a consciecircncia moral da tradiccedilatildeo poliacutetica cristatilde De fato dos pensadores cristatildeos dos liberais e dos teoacutericos do Estado beneficente emerge uma contundente onda de criacuteticas contra o Pensador Florentino Eacute tachado de ciacutenico imoral inescrupuloso democircnio espiacuterito satacircnico autor maldito e outros adjetivos do mesmo gecircnero

Como consequecircncia deste panorama Maquiavel passou a ser deveras incompreendido incompreensatildeo que perdura ateacute os dias atuais Um comen-tador recente jaacute o compreendeu ldquocomo uma das figuras mais emblemaacuteticas sendo odiado por muitos amado por outros e incompreendido pela grande maioriardquo47

Consideraacutevel nuacutemero de leitores desinformados alguns deles em total ignoracircncia a respeito das obras de Maquiavel ainda hoje evocam a figura do Secretaacuterio Florentino ou associam o seu nome a dois termos que assumiram sentido pejorativo maquiaveacutelico e maquiavelismo Nas duas acepccedilotildees datildeo ideia de indiviacuteduos traiccediloeiros auspiciosos caloteiros

Quem de noacutes por exemplo natildeo presenciou algueacutem se utilizando do termo maquiaveacutelico para criticar ou denunciar uma pessoa desleal corrupta que para conseguir vantagens pessoais sai atropelando tudo e todos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer aspecto eacutetico ou moral

45 MAQUIAVEL O priacutencipe cap XV 46 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a eacutetica na poliacutetica Op cit pg 71 47 AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e Razatildeo de Estado Faculdade Autocircnoma de Direito SDatildeo Paulo dezembro de 2008

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

181

Portanto neste trabalho evitou-se de propoacutesito o adjetivo maquia-veacutelico irremediavelmente distorcido por interpretaccedilatildeo errocircnea usando em seu lugar a expressatildeo maquiaveliana

Ainda em decorrecircncia desta atitude objetiva e desapaixonada assumida por Maquiavel fugindo dos padrotildees escolaacutesticos do seu tempo ateacute o seacuteculo XVII eram poucos os doutrinadores que aceitavam aberta-mente os seus pressupostos E no seacuteculo XIX desenterraram a ceacutelebre frase que lhe eacute igualmente atribuiacuteda os fins justificam os meios a qual natildeo consta dos seus escritos sentenccedila cujo uso se faz geralmente isolada do contexto unidade de ideia que jamais algueacutem comprovou tecirc-lo ouvido pronunciar E se realmente o Poliacutetico Florentino a abordava os fins eram tatildeo admiraacuteveis que natildeo poderia ningueacutem deixar de o louvar

Na Modernidade poreacutem as obras do Grande Pensador passaram a ser efetivamente analisadas discutidas e apreciadas Atingiu-se a essecircncia de sua filosofia poliacutetica e Maquiavel com a imagem resgatada aparece cintilante no universo de autores bem-sucedidos

Atualmente comentadores de renome de todos os cantos se arvoraram em defensores do Autor Florentino tecendo-lhes referecircncias honrosas e louvores Entre os que concordam com opiniotildees conclusotildees e interpretaccedilotildees de Maquiavel aponta-se o nome de Mounin

Pode-se afirmar que o secretaacuterio teve honroso papel na poliacutetica da eacutepoca com os meios da eacutepoca agrave medida da eacutepoca - no seu lugar Florenccedila e com as cartas que tinha em matildeo as cartas florentinas que natildeo constituiacuteam um jogo famoso Na histoacuteria do seu tempo Maquiavel eacute vencido natildeo um falhado48

E na tentativa de defender Maquiavel contra seus adversaacuterios Mounin acrescenta

Maquiavel foi realmente um poliacutetico que se alimentou de fatos apaixonado por fatos incansaacutevel na anaacutelise dos fatos [] Pode mesmo afirmar-se um dos mais certos meacuteritos de Maquiavel e um dos menos notados dos menos ceacutelebres tambeacutem eacute a paciecircncia incansaacutevel com que pinta com minuacutecia o espetaacuteculo infinito da complexidade dos fatos Mesmo se quase nunca estamos de acordo com ele acerca das causas e conexotildees a leitura de Maquiavel eacute um antiacutedoto salutar sem disso fazer um dogma unicamente devido ao cuidado que potildee na descriccedilatildeo ensina a cada linha que em poliacutetica nada eacute tatildeo simples como parece49

48 MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 p 15 49 MOUNIN Georges Maquiavel op cit p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

182

Nos tempos modernos outro doutrinador que merece igualmente ter seu nome incluiacutedo na lista dos defensores de Maquiavel eacute Lauro Escorel quando expressa

Maquiavel natildeo traccedilou portanto regras poliacuteticas que estivessem em contradiccedilatildeo com o seu tempo e que passassem desde entatildeo a ser germes de corrupccedilatildeo ou incentivos ao absolutismo como seus adversaacuterios quiseram fazer crer limitou-se a registrar dados de fato normas empiacutericas de conduta que explicaram no passado e no presente os ecircxitos e fracassos poliacuteticos Ao mesmo tempo interpretou ele as tendecircncias poliacuteticas da eacutepoca que era o absolutismo real e o secularismo sob cujos auspiacutecios nascia o Estado Moderno [] Se alguma responsabilidade moral lhe pode ser atribuiacuteda seraacute a de natildeo se ter preocupado em submeter a praacutetica poliacutetica ao crivo de um coacutedigo moral meta-histoacuterico mas isto resulta do meacutetodo indutivo-empiacuterico que o espiacuterito da Renascenccedila lhe inspirou50

Encontra-se nos escritos de Bertrand Russel talvez uma das mais ardorosas e eloquentes defesas de Maquiavel contra as criacuteticas dos anti-maquiavelistas Suas palavras comprovam esta afirmaccedilatildeo

A Renascenccedila embora natildeo haja produzido nenhum filoacutesofo teoacuterico importante produziu um homem de suprema eminecircncia na filosofia poliacutetica Maquiavel Eacute costume sentir-se a gente chocada por ele e natildeo haacute duacutevida de que agraves vezes ele realmente eacute chocante Mas muitos outros homens tambeacutem o seriam se fossem igualmente livres de hipocrisia Sua filosofia poliacutetica eacute cientiacutefica e empiacuterica baseada em sua proacutepria experiecircncia dos assuntos preocupada em declarar os meios de se chegar a determinados fins sem se preocupar de se saber se tais meios satildeo considerados bons ou maus Quando em certas ocasiotildees se permite mencionar os fins que deseja estes satildeo de tal natureza que natildeo podemos senatildeo aplaudi-los Grande parte da difamaccedilatildeo convencional ligada ao seu nome deve-se agrave indignaccedilatildeo dos hipoacutecritas que odeiam o franco reconhecimento das maacutes accedilotildees Resta eacute certo uma boa parte que realmente exige criacutetica mas nisto ele eacute uma expressatildeo de sua eacutepoca Tal honestidade intelectual a respeito da desonestidade poliacutetica dificilmente teria sido possiacutevel em qualquer outra eacutepoca e em qualquer outro paiacutes exceto talvez na Greacutecia entre os homens que deviam sua educaccedilatildeo teoacuterica aos sofistas e seu adestramento praacutetico agraves guerra de minuacutesculos Estados que tanto na Greacutecia claacutessica como na Itaacutelia da Renascenccedila eram o acompanhamento poliacutetico do gecircnio individual51

50 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 20 51 RUSSEL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969 p20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

183

A tendecircncia moderna diz que natildeo se deve simplesmente ldquodenegrir a imagem de Maquiavel e nem tatildeo pouco louvaacute-lo indiscriminadamenterdquo52 Concorda-se em gecircnero e nuacutemero com esta afirmaccedilatildeo predominante nos dias atuais Natildeo haacute duacutevida de que o Autor Florentino cometeu erros mas acertou muito mais Jamais se deve esquecer de que ele foi um produto do meio O peixe natildeo vive fora drsquoaacutegua E para Maquiavel era quase impos-siacutevel emergir da turbulecircncia histoacuterica em que viveu O Poliacutetico de Florenccedila foi praticamente nocauteado Seu espiacuterito confrontou-se com um dilema de escolha viver ou morrer E quem preferia morrer O que faz um homem todo dia senatildeo lutar pela sobrevivecircncia O poder poliacutetico era uma loteria Para ganhar qualquer priacutencipe teria de jogar Na luta pelo poder Maquiavel justificava o uso das armas ou da crueldade Por outro lado sempre dava liccedilotildees ao povo para se livrar dos tiranos53

5 Consideraccedilotildees finais

Maquiavel ao expor o pensamento ou ideias sobre a poliacutetica o fez de modo genial sem se deixar aprisionar por nenhuma corrente literaacuteria ou doutrinaacuteria Criou estilo proacuteprio pessoal Como consequumlecircncia seus escritos foram analisados de maneiras diversas inclusive mal interpretados Nos nossos dias ainda haacute algueacutem que natildeo consegue interpretaacute-lo com clareza coerecircncia e plena nitidez

Para uns Maquiavel parece ser o protoacutetipo do poliacutetico sem escruacute-pulos sem eacutetica que age de acordo com as circunstacircncias que se lhe apresentam Destarte eacute considerado um escritor e pensador nocivo cujas ideias devem ser banidas da praacutetica poliacutetica e substituiacutedas por uma ldquoverdadeirardquo atitude eacutetica

Para uns Maquiavel eacute considerado um elitista ao contraacuterio de outros que o tecircm em conta como um democrata autecircntico que natildeo via outro fator capaz de sustentar a estabilidade de todo e qualquer regime senatildeo a forccedila e o apoio popular E ainda hoje este axioma converge na poliacutetica moderna onde nenhuma autoridade se conserva no jogo do poder quando natildeo goza de boa reputaccedilatildeo e grande simpatia junto ao povo

52 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 21 53 Biografia Niccoloacute Machiavelli ndash 1469-1527 Disponiacutevel em wwwplmitorjnet Acessado em 15 de dezembro de 2010

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

184

Ainda haacute pessoas que o apresentam como defensor da forccedila e do absolutismo enquanto outras o exaltam na qualidade de conselheiro dos governantes republicano e amigo das leis

Natildeo obstante todas estas controveacutersias e talvez exatamente por causa delas a filosofia empiacuterica e cientiacutefica de Maquiavel se tornou um marco inestimaacutevel na trajetoacuteria da ciecircncia poliacutetica e universal

Como explicar que Maquiavel poreacutem eacute um verdadeiro ponto de referecircncia no desenvolvimento da ciecircncia poliacutetica O fato eacute que em decorrecircncia dos ensinamentos dele a arte da poliacutetica natildeo estaacute mais ligada agrave formulaccedilatildeo de ideais abstratos e por muitas vezes utoacutepicos de um bem comum formulado com suporte num ideal cristatildeo mas na observaccedilatildeo da praacutetica da accedilatildeo poliacutetica e na formulaccedilatildeo clara dos objetivos que se intente alcanccedilar Tambeacutem estaacute se vendo que a eacutetica na poliacutetica natildeo deve ser concebida e avaliada nos mesmos termos que a eacutetica individual com suas normas do bem e do mal A filosofia contemporacircnea fundamenta-se na efetiva perseguiccedilatildeo de eficaacutecia vigor patrioacutetico anaacutelise aguda das circunstacircncias na procura do fortalecimento e conservaccedilatildeo da paacutetria

Natildeo deve ser esquecido o fato de que nos primeiros tempos Maquiavel foi incompreendido por ser aquele expectador objetivo do processo poliacutetico que se manifesta nos seus escritos Na verdade a arte poliacutetica maquiveliana sempre procurou assentar-se na verdade efetiva das coisas ignorando a busca de como as coisas deveriam ser Com o realismo que lhe eacute peculiar o autor florentino pretendia apenas ensinar ao priacutencipe a fugir do imaginaacuterio recusando imagens idealizadas pela natureza humana mas irreais e que nunca existiram Para evitar a ruiacutena e tornar-se vitorioso o detentor do poder deveria se fixar no real e considerar os homens como eles realmente satildeo

Desempenhando o papel de mestre dos priacutencipes legou agrave contempo-raneidade um dos seus mais relevantes ensinamentos O caminho para o governante se tornar eficaz e tambeacutem responsaacutevel eacute basear seus empreen-dimentos em informaccedilatildeo correta previsatildeo de futuros imprevistos diagnoacutestico oportuno caacutelculo exato dos resultados previsiacuteveis tomada de decisatildeo na hora certa e muita sabedoria

Pretendendo dar conselhos aos priacutencipes prestou um excelente serviccedilo agrave humanidade Aconselhou a prudecircncia para todas as geraccedilotildees Sendo cauteloso o homem procura logo a cura de seus males em vez de tomar providecircncias tardias muitas vezes sem chances de remediaacute-los

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

185

Ensinou a todos a ver aleacutem das aparecircncias e descobrir o essencial aquilo que fica escondido sob os bastidores do teatro da vida

Evitar sempre a neutralidade e a dubiedade foi outra importante liccedilatildeo A pessoa que natildeo assume corajosamente sua verdadeira posiccedilatildeo natildeo inspira credibilidade e jamais conseguiraacute a confianccedila a lealdade e a afeiccedilatildeo de outrem

Conclamou Maquiavel as geraccedilotildees a natildeo se deixarem abater diante das crises ou dos momentos de infortuacutenio Ao contraacuterio eacute preciso lutar sempre pelas suas convicccedilotildees e acreditar firmemente que vencer sem luta eacute triunfar sem gloacuteria

Apoacutes a divulgaccedilatildeo de sua obra mais importante O Priacutencipe Maquiavel teve suas reflexotildees poliacuteticas muito mal interpretadas confor-me jaacute expresso E esta incompreensatildeo perdura por seacuteculos ateacute os dias atuais Basta que se procure num dicionaacuterio o significado do vocaacutebulo maquiaveacutelico e logo se encontra como sinocircnimo deste termo rdquoindiviacuteduo que age com astuacutecia perfiacutedia ou malvadezardquo Interpretaccedilotildees dessa natureza nada tecircm de verdadeiro Sempre satildeo resultantes de leigos desinformados ou mesmo acadecircmicos que natildeo efetuam uma anaacutelise mais atenta e cuidadosa sobre as posiccedilotildees poliacuteticas de Maquiavel E destarte natildeo atingem a profundidade do complexo ideaacuterio maquiveliano Nesta perspectiva acredita-se que a maior ofensa que se possa cometer contra o Notaacutevel Escritor Florentino eacute essa heranccedila maldita em torno de seu nome

O Priacutencipe eacute na atualidade um dos livros mais polecircmicos e mais lidos do mundo Sem qualquer duacutevida um verdadeiro best-seller Conteacutem subsiacutedios para todo e qualquer leitor que queira se aprofundar no conhecimento das regras e artiacutefices da arte de governar Considerado como um verdadeiro breviaacuterio sobre poliacutetica tornou-se livro de cabeceira para vaacuterios governantes Determinar o fim da influecircncia doutrinaacuteria medieval sobre a investigaccedilatildeo poliacutetica contemporacircnea foi sua importacircncia funda-mental

Apesar do seu intenso vigor patrioacutetico o Diplomata Florentino morreu sem presenciar a realizaccedilatildeo do seu sonho maior ver sua paacutetria - a Itaacutelia renascentista ndash cintilando no panorama das naccedilotildees fortes unidas estaacuteveis e desenvolvidas E poreacutem por meio das paacuteginas de O Priacutencipe transmitiu um admiraacutevel cabedal de conhecimentos sobre a loacutegica que rege a conquista e a manutenccedilatildeo do poder

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

186

Por tudo o que se abordou neste trabalho acredita-se firmemente que com justa razatildeo Maquiavel merece o cognome de ldquopai da ciecircncia poliacutetica modernardquo

Referecircncias Bibliograacuteficas

AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e razatildeo de Estado Satildeo Paulo sEd dezembro de 2008

BATISTA Flaacutevio Donizete Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Disponiacutevel em http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 25 de ou-tubro de 2010

BELLOZO Edson Maquiavel e as origens do pensamento poliacutetico moderno Disponiacutevel em wwwminiwebcombrcienciasartigosmaquiavel Aces-so em 15-09-2010

BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Textos de Aula Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Internacionais Brasiacutelia UnB sd

BIRARDI A e Castelani G R Desmistificando Maquiavel Ensaio acerca de sua histoacuteria obras e conceitos Disponiacutevel em httpwwwklepsidra netklepsidra4maquiavelhtn Acessado em 18092010

BIGNOTTO Newton Maquiavel Republicano Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1991

BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

CAILLEacute Alain LAZZERI Christian SENELLART Michel (organizado-res) Histoacuteria argumentada da Filosofia Moral e Poliacutetica Satildeo Leopoldo Editora UNISINOS 2003

BARROS Vinicius Soares de Campos 10 liccedilotildees sobre Maquiavel Petroacute-polis Editora Vozes 2010

FRANCO Afonso Arinos de Mello O Pensamento poliacutetico na Renas-cenccedila Cadernos da UnB Humanidades Brasiacutelia UnB 1980 p 19-27

DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores Ltda 1984

ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao pensamento poliacutetico de Maquiavel Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1979

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

187

______ O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 18-52

GREGORIO Fernando Ceacutesar Aplicando Maquiavel no dia a dia Satildeo Paulo Madras Editora Ltda 2008

GRUPPI Luciano Tudo comeccedilou com Maquiavel Porto Alegre L amp PM Editores 1988

LARIVAILLE Paul A Itaacutelia no tempo de Maquiavel (Florenccedila e Roma) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

MAQUIAVEL O Priacutencipe Comentado por Napoleatildeo Bonaparte Traduccedilatildeo Pietro Nassetti Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

MAQUIAVEL Nicolau Comentaacuterios sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1992

MOREIRA Marcilio Marques O Pensamento Poliacutetico de Maquiavel Textos de aula Brasiacutelia Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Interna-cionais sd

MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984

REALE Giovanni e ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Do Huma-nismo a Descartes Satildeo Paulo Paulus 2004

RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002

RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no2 Recife Unicap 1986 p 43-53

RODRIGUES Ruy Martinho Priacutencipe Lobo e Homem Comum (Anaacutelise das Ideacuteias de Maquiavel Hobbes e Locke) Fortaleza UFC 1997

RUSSELL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969

SANTOS Vivian Matias dos Niccolo Machiavelli moralista ou intelec-tual orgacircnico Em Mediaccedilotildees v12 n2 p 175-187 juldez 2007

SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988

STRATHERN Paul Maquiavel (em 90 minutos) Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

188

WEBER Hingo O priacutencipe amp Maquiavel sem ideologias Petroacutepolis Editora Vozes 2007

SADEK Maria Nicolau Maquiavel o cidadatildeo sem Fortuna e o intelectual de virtugrave Em WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2003

WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Licenciada em Filosofia e Histoacuteria pela Faculdade de Filosofia do Cearaacute e

Especialista em Gestatildeo Puacuteblica pela Universidade Vale do Acarauacute

Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos Doutor em Teologia pela Pontiacutefica Universidade Gregoriana

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

189

SOBRE A RELACcedilAtildeO DINAcircMICA DA REALIDADE SUPRA-SENSIacuteVEL SEGUNDO PROCLO

SUR LA RELATION DYNAMIQUE DE LA REacuteALITEacute

SUPRASENSIBLE SELON PROCLUS

Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha

Resumo

O presente artigo tem por objetivo demonstrar porque as relaccedilotildees dinacircmicas satildeo imprescindiacuteveis na filosofia procleana Para tanto parte-se da problemaacutetica da inexis-tecircncia de movimento na realidade supra-sensiacutevel mostrando que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento de deslocamento Defende-se pois que natildeo se trata em Proclo (412 ndash 485 dC) de uma sucessatildeo de eventos e nem de uma mudanccedila na substacircncia Desta forma apoacutes a anaacutelise do movimento de processatildeo parte-se para a consideraccedilatildeo do papel das triacuteades da realidade incorpoacuterea para soacute entatildeo verificar a importacircncia das relaccedilotildees dinacircmicas na multiplicaccedilatildeo e diversidade dos seres Apoacutes ser estudado o papel das triacuteades seraacute possiacutevel perceber que natildeo eacute o movimento o responsaacutevel pela diversidade mas a relaccedilatildeo dinacircmica que a possibilita Assim este trabalho se fundamenta nos Elementos Teoloacutegicos de Proclo

Palavras-chave Proclo Triades Relaccedilatildeo Dinacircmica

Resumeacute Lrsquoobjectif de cette recherche est montrer que les relations dynamiques sont indispensables dans la philosophie proclienne Alors il part de la question de lrsquoabsence du mouvement dans les reacutealiteacutes suprasensibles montrant que le mouvement de oprocession nrsquoest ni une sucession drsquoeacuteveacutenements ni un changement dans la substance Apregraves analyser le mouvement de procession il fait lrsquoexamen de la function des triades dans la reacutealiteacute incorporelle et veacuterifie lrsquoimportance des relations dynamiques dans la multiplication et dans la diversiteacute des ecirctres Apregraves lrsquoeacutetude de la function des triades il sera possible comprendre que nrsquoest pas le mouvement le responsable pour la diversiteacute mais la relation dynamique qui la rend possible Cet eacutetude est fondamenteacutee dans lrsquooeuvre Eacuteleacutements de Theacuteologie de Proclus (412-485 a C)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

190

Mots-cleacutes Proclus Triades Relation Dynamique

Introduccedilatildeo

Herdeiro da filosofia pagatilde Proclo (412-485 dC) eacute considerado o uacuteltimo expoente de destaque da filosofia antiga a atuar na escola de Atenas1 Como neoplatocircnico as teses do Bizantino satildeo marcadas pela tentativa de conciliaccedilatildeo das doutrinas platocircnicas aristoteacutelicas e pitagoacutericas Por estar inserido no contexto das escolas da Antiguidade Tardia os escritos do filoacutesofo satildeo caracterizados por sua sistematicidade Neste sentido o pensador ao expor a passagem da unidade agrave multiplicidade natildeo admite passagens abruptas e portanto natildeo concebe que do Uno surja imediatamente a multiplicidade em sua complexidade isto eacute ele natildeo concebe uma passagem imediata do Uno ao Noucircs

Entretanto ainda que a passagem do Uno ao muacuteltiplo seja algo fundamental na filosofia procleana ela encerra um problema Acontece que Proclo na realidade supra-sensiacutevel natildeo admite movimento na substacircncia Diante disto partindo da ideia platocircnica de que ldquomudanccedila eacute movimentordquo2 a diferenccedila entre os seres da realidade imaterial natildeo pode ser explicada Uma vez que sem movimento natildeo haacute produccedilatildeo Assim para solucionar tal problemaacutetica parte-se da hipoacutetese de que a diferenccedila na realidade imaterial natildeo eacute o resultado de um movimento de deslocamento ou da proacutepria substacircncia dos seres mas da relaccedilatildeo entre os princiacutepios que os constituem Para verificar tal hipoacutetese eacute preciso iniciar a anaacutelise com o

1 Fechada em 529 por Justiniano de acordo com o decreto que afirma ldquoNingueacutem que tenha sido contagiado por tais heresias poderaacute desempenhar grau no exeacutercito ou exercer ofiacutecios puacuteblicos nem na condiccedilatildeo de professor que se ocupe de alguma disciplina () Proibimos que seja ensinada qualquer doutrina da parte daqueles que satildeo afetados pela insacircnia dos iacutempios pagatildeosrdquo (REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008 p 206-208)Tal decreto que afetou profundamente as escolas de vertente pagatilde fez com que pensadores da Academia como Simpliacutecio (490 ndash 560 dC) e Damascius (458 ndash 583 dC) fugissem para Peacutersia A fim de dar continuidade aos estudos permaneceram por volta de 531532 na corte de Khussraw I pois o rei da Peacutersia se mostrava simpatizante do pensamento grego Somente em 533 por ocasiatildeo do ldquotratado de paz eternardquo assinado entre os persas e os bizantinos retornaram ao Ocidente Sobre a fuga dos pensadores pagatildeos para a Peacutersia ver SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012 paacuteg 62-74 2 Parmecircnides 162c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

191

movimento de processatildeo pois eacute por ele que primeiramente Proclo explica a saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade

1 O movimento de processatildeo

De acordo com a filosofia procleana a multiplicidade soacute pode ser pensada se a unidade for pressuposta Assim toda multiplicidade participa de tal forma da unidade que a sua natildeo participaccedilatildeo implicaria em uma multiplicaccedilatildeo infinita o que seria um engano Pois se a multiplicidade natildeo participasse da unidade ou a proacutepria multiplicidade seria una ou natildeo-una e no caso de ser natildeo-una ou seria muitas ou nada Admitir que ela eacute nada eacute cair num contrassenso pois como algo (um existente) poderia ser nada Ou ainda como pode haver geraccedilatildeo se o ser natildeo pode advir do nada Por outro lado a tese de que a multiplicidade existe precisa de uma anaacutelise cuidadosa uma vez que afirmar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla pode levar a aporias jaacute que sua gecircnese natildeo seria explicada fazendo com que se caia numa regressatildeo infinita3

A regressatildeo aconteceria porque ao sustentar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla e natildeo una se admite que cada parte que a compotildee tambeacutem eacute muacuteltipla de modo que nunca se chega a um princiacutepio Logo haacute uma necessidade de contornar a ideia da regressatildeo ad infinitum Para tanto o princiacutepio como unidade eacute posto como indispensaacutevel mediante a ideia de que se fossem dois ou eles seriam iguais ou diferentes Sendo iguais se trataria de apenas uma substacircncia ou seja seriam um sendo diferentes um teria de ser o primeiro derivando entatildeo um do outro Se os dois estivessem no mesmo patamar nenhum seria o primeiro o que significaria a existecircncia de algo acima deles que os deu origem Entatildeo o que pode se perceber eacute que natildeo importa o caminho seguido a razatildeo sempre leva a um primeiro que eacute fundamentalmente um4 Assim este Um no neoplatonismo eacute posto como unidade absolutamente simples da qual toda multiplicidade participa

Proclo entatildeo faz surgir da unidade toda multiplicidade Esta multiplicaccedilatildeo da unidade originaacuteria se daacute por meio do movimento de processatildeo que eacute composto por trecircs momentos muito distintos mas que

3 PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995 Proposiccedilatildeo 1 4 Cf op cit Proposiccedilatildeo 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

192

estatildeo estreitamente interligados Satildeo eles Processatildeo (πρooacuteδος) Perma-necircncia (μονή) e Retorno (ἐπιστροφή) Os trecircs momentos se distinguem pelo fato de que no primeiro (πρooacuteδος) haacute uma separaccedilatildeo entre a causa e seu efeito no segundo (μονή) tem-se que mesmo que haja a processatildeo eacute preciso que o produto permaneccedila em sua causa e no terceiro (ἐπιστροφή) o efeito retorne agrave causa pelo desejo de nela participar Entretanto a ligaccedilatildeo entre estes eventos natildeo acontecem em uma ordem linear mas se datildeo simultaneamente5 Posto que se soacute procedesse natildeo haveria qualquer comunicaccedilatildeo entre o que produz e o que eacute produzido se soacute permanecesse natildeo haveria produccedilatildeo e como pode haver retorno sem que haja separaccedilatildeo6 Portanto por exigir tanto o sair como o permanecer na causa o movimento de processatildeo acontece de modo circular

A processatildeo guarda entatildeo algumas leis inviolaacuteveis que garantem que todas as etapas aconteccedilam A primeira lei atesta que toda causa produtiva produz por super abundacircncia de potecircncia Neste sentido Proclo sustenta que ldquo[] tout ce qui produit demeure tel qursquoil est et parce qursquoil demeure tel son deacuteriveacute procegravede Crsquoest donc par la pleacutenitude et la perfection dont il jouit qursquoil fait subsister ses deacuteriveacutes sans se mouvoir ni srsquoamoindrirrdquo7 A segunda que estaacute em concordacircncia com a primeira defende que devido agrave super abundacircncia de potecircncia o produtor natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo ao engendrar seus efeitos8 A terceira legitimando todo o momento da processatildeo defende a tese de que toda produccedilatildeo soacute se efetiva por meio da semelhanccedila9 entre produto e produtor10

A menccedilatildeo agraves leis de processatildeo prepararam o terreno para o esclarecimento da multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases por meio da unidade Isto

5 Para Caram a simultaneidade dos momentos da processatildeo se daacute porque para os neoplatocircnicos a categoria da causalidade natildeo envolve uma sequecircncia temporal ou mesmo a noccedilatildeo moderna de eventos sucessivos que pressuporia um lsquoantes e depoisrsquo jaacute que a relaccedilatildeo natildeo eacute entre eventos mas substacircncias CfCARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesrevistasthemata 49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015 p108 6 PROCLUS Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 30 7 Op cit Proposiccedilatildeo 27 8 Segundo Proclo ldquoToute cause qui produit autre qursquoelle-mecircme produit ses deacuteriveacutes et ce qui les suit en demeurant en elle-mecircmerdquo Op cit Proposiccedilatildeo 26 9 Cf Caram A semelhanccedila em Proclo eacute a capacidade de manter a caracteriacutestica do ser originaacuterio poreacutem em um grau menor CARAM op cit 2014 p 108 10 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 28-29

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

193

porque de acordo com tais leis o produtor eacute sempre superior a tudo o que vem depois dele tendo em vista que natildeo sofre qualquer diminuiccedilatildeo assegurando assim a continuidade do movimento e permite que aquilo que eacute produzido seja semelhante11 ao produtor A semelhanccedila se daacute desta forma porque o ser do produzido adveacutem do proacuteprio produtor ao dar ao produzido da sua proacutepria substacircncia Neste sentido o Diadoco sustenta que ldquoTout dispensateur qui agit par son ecirctre (τὸτῷεἰναιχορηγοῦν) est lui-mecircme de faccedilon primordiale ce qursquoil communique aux beacuteneacuteficiaires de ses dispensationsrdquo12 Partindo de tal proposiccedilatildeo o sucessor do pensamento platocircnico demonstra no que consiste a semelhanccedila entre causa e efeito Ainda eacute preciso contudo apontar as implicaccedilotildees da semelhanccedila no movimento de processatildeo

Quando se fala em semelhanccedila a primeira coisa a ser vista eacute que na processatildeo o que se revela no efeito eacute a proacutepria manifestaccedilatildeo da causa uma vez que como mencionado o produto possui o mesmo ser do produtor dado que ele eacute a continuidade ontoloacutegica da sua causa A semelhanccedila leva o produto a desejar retornar ao produtor pois soacute na causa que eacute superior pode encontrar perfeiccedilatildeo O desejo de retornar soacute existe porque haacute uma comunicaccedilatildeo ininterrupta entre eles Tal comunicaccedilatildeo eacute tambeacutem conexatildeo que na processatildeo estrutura o cosmo permitindo que a causa esteja sempre em contato com seus efeitos Deste modo o movimento acontece de modo circular no qual o efeito sai da causa ao mesmo tempo em que permanece nela e a ela retorna em um ciclo interrupto onde o princiacutepio e o fim satildeo o mesmo Sobre isto Proclo assevera

Tout ecirctre qui procegravede drsquoun principe et se convertit vers lui a une activiteacute cyclique Si cet ecirctre se convertitvers ce dont il procegravede il fait coiumlncider sa fin avec son principe et son mouvement est unique et continu qursquoil srsquoeacutecarte du repos originel ou qursquoil srsquoy rapporte Crsquoest pourquoi tous les ecirctres accomplissent un processus cyclique qui va de leurs causes agrave leurs causes Il est des cycles plus amples et il en est de plus court selon que les conversions se portent aux cause immeacutediatement supeacuterieures ou agrave de plus eacuteleveacutees jusqursquoau principe universal13

11 Platatildeo define semelhanccedila como aquilo que eacute outro mas imita o objeto ao qual eacute semelhante a fim de conservar sua beleza No entanto o faz mudando de proporccedilatildeo Cf Platatildeo Sofiacutesta 136 a 12 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 18 13 Op cit Proposiccedilatildeo 33

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

194

Na processatildeo a semelhanccedila vem em primeiro lugar sendo ela quem proporciona a conversatildeo e permanecircncia do causado na causa Todavia natildeo haacute multiplicaccedilatildeo somente com semelhantes pois neste caso o que diferiria o produto do produtor a causa do causado Para que haja distinccedilatildeo entre os elementos eacute preciso que exista alguma caracteriacutestica diferente entre eles e uma vez que a processatildeo se daacute pela multiplicaccedilatildeo do ser do produtor natildeo pode haver diferenccedila entre a constituiccedilatildeo do ser da causa e do causado Assim a priori a diferenccedila entre causa e efeito se apresenta como diferenccedila de potencialidade14 Isto porque para Proclo eacute imprescindiacutevel que o produto seja inferior em potecircncia ao seu produtor Portanto se por um lado na multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases a semelhanccedila eacute necessaacuteria por outro a dessemelhanccedila tambeacutem o eacute15

A diferenccedila entatildeo consiste em potecircncias diferentes que faz com que os elementos que compotildeem o sistema procleano faccedilam parte de uma hierarquia na qual quanto mais proacuteximo o produto estiver da sua causa mais perfeito e potente ele eacute16 Isso porque aqueles que estatildeo mais proacuteximo recebem em maior grau a potecircncia produtiva e no mesmo grau em que recebe a potecircncia recebem o ser da mocircnada originaacuteria Ao ter um maior grau de ser e de potecircncia o produtor eacute para o que vem em seguida causa bem e perfeiccedilatildeo fazendo com que este segundo deseje dele participar e natildeo somente o deseje mas necessite de tal participaccedilatildeo para alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Logo a correspondecircncia entre perfeiccedilatildeo constituiccedilatildeo e partici-paccedilatildeo se estabelece partindo de uma hierarquia na qual os seres que estatildeo mais proacuteximos do princiacutepio de sua seacuterie satildeo superiores e servem como degraus para perfeiccedilatildeo daqueles que satildeo produzidos por uacuteltimo

A perfeiccedilatildeo que se daacute mediante a participaccedilatildeo na causa como jaacute foi dito soacute eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre os termos Assim o desejo do produto de participar do seu produtor eleva o produtor ao patamar de bem No entanto se o primeiro bem de cada seacuterie natildeo pode ser partici-pado entatildeo como aquele que soacute existe por meio da participaccedilatildeo em outro pode participar daquele que eacute imparticipado Tal possibilidade se daacute pela existecircncia de um elemento intermediaacuterio que na filosofia procleana eacute sempre fundamental O intermediaacuterio no que diz respeito agrave participaccedilatildeo eacute

14ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur est drsquoordre supeacuterieur agrave son produit PROCLUS Op cit Proposiccedilatildeo 7 15 ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur esr drsquoordre supeacuterieur agrave son produitrdquoop cit 1995 Proposiccedilatildeo 7 16 Op cit Proposiccedilatildeo 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

195

posto como participado aquele pelo qual o participante adquire sua perfeiccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoPuisqursquoil eacutetait imparfait avant la participation et est devenu parfait par la participation le participant est entiegraverement subordonneacute au participeacute dans lrsquoordre de la perfection anteacuterieure il est infeacuterieur au participeacute qui le rend parfaitrdquo17

Tem-se entatildeo a existecircncia de uma triacuteade composta por hipoacutestases por meio de uma causa uacutenica satildeo elas o imparticipado o participado e o participante O imparticipado eacute segundo Proclo aquele que tem em si a razatildeo de sua proacutepria unidade18 Nele estaacute toda a potecircncia e capacidade de produzir ou seja eacute a mocircnada19 de uma seacuterie que surge mediante ele mesmo O que eacute produzido imediatamente pelo imparticipado eacute o partici-pado e o que eacute produzido em seguida participante Ambos participante e participado satildeo semelhantes ao imparticipado pois dele recebem sua substacircncia Entretanto satildeo dessemelhantes porque na medida em que saem de sua causa satildeo potencialmente inferiores a ela A inferioridade de sua potecircncia eacute determinante em sua imperfeiccedilatildeo No entanto eacute exatamente na imperfeiccedilatildeo e contemplaccedilatildeo do perfeito que estaacute o desejo de participar

A triacuteade referente agrave participaccedilatildeo estaacute diretamente associada agravequela referente agrave perfeiccedilatildeo pois a medida de perfeiccedilatildeo eacute a mesma da participaccedilatildeo Assim o ser imparticipado corresponde ao Bem o participado ao autohipostaacutetico20 e os outros seres aqueles que tecircm sua existecircncia partindo de outros ao participante Estas triacuteades por sua vez equivalem agravequela referente ao Imoacutevel Automotor e Heteromotor O que torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que sejam utilizados termos diferentes levando em consideraccedilatildeo um predicado o pensador estaacute sempre se referindo ao mesmo elemento dentro de uma seacuterie Ou seja natildeo importa se remete ao Imoacutevel Imparticipado ou Bem quando se evoca um destes termos a referecircncia eacute sempre ao princiacutepio da seacuterie e o mesmo acontece com os outros elementos21 Por esta razatildeo por meio de uma unidade que aparece como Bem Imoacutevel ou

17 PROCLUS op cit Proposiccedilatildeo 24 18 Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 23 19 Cf Proclo A Mocircnada na filosofia procleana eacute o princiacutepio originaacuterio de toda seacuterie Eacute dela que toda multiplicidade mediante a semelhanccedila tem origem op cit Proposiccedilatildeo 21 20 Autohipostaacutetico eacute todo aquele que existe em si e por si ou seja tem em si mesmo a razatildeo de sua existecircncia e constituiccedilatildeo sendo portanto perfeito 21 A saber quando se fala em participado automotor ou autohipostaacutetico do termo intermediaacuterio que faz a ligaccedilatildeo entre o princiacutepio Quando cita os seres cuja existecircncia dependente de outros estaacute sempre se referindo ao uacuteltimo termo da seacuterie ou seja o participante que eacute tambeacutem heteromotor e natildeo eacute causa de sua proacutepria perfeiccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

196

Imparticipado surge um elemento que eacute estreitamente semelhante a ela pois dele recebe o seu ser

Agrave vista do exposto nesta primeira anaacutelise a diferenccedila caracteriacutestica da multiplicidade se mostrou tatildeo somente como resultado da diferenccedila de potencialidade entre produto e produtor O que se observa entretanto ao investigar a multiplicidade ou mesmo a sua relaccedilatildeo com a unidade eacute que a diferenccedila que existe nela natildeo se limita a uma desigualdade de potecircncia como bem se observa na constituiccedilatildeo do Noucircs e na proacutepria diversidade dos seres Por isto eacute preciso ir mais a fundo na investigaccedilatildeo a fim de descobrir a gecircnese da diferenccedila Afinal quando se fala da dessemelhanccedila mediante os graus de potencialidade tem-se jaacute anteriormente uma diver-sidade presente nas mocircnadas pelas quais as seacuteries satildeo derivadas Com o intuito de aprofundar o exame referente agrave origem da diferenccedila portanto eacute necessaacuterio analisar o papel das triacuteades na geraccedilatildeo dos seres

2 A organizaccedilatildeo triaacutedica da realidade sobre o papel de Peacuteras Apeiacuteron e Mixto

O sistema procleano de hipoacutestases eacute disposto em triacuteadas Natildeo satildeo somente as hipoacutestases que satildeo ordenadas triadicamente pois esta forma de organizar perpassa todos os acircmbitos da filosofia do Bizantino Prova disto eacute a relaccedilatildeo que daacute origem a toda realidade a saber o movimento de processatildeo que como visto eacute constituiacutedo por trecircs momentos indispensaacuteveis e indissociaacuteveis Aleacutem da triacuteade presente no movimento de processatildeo a proacutepria realidade incorpoacuterea eacute sistematizada desta forma sendo composta por trecircs hipoacutestases divina inteligiacutevel e psiacutequica Cada uma das realidades mencionadas guarda particularidades que soacute dizem respeito a elas mesmas Poreacutem satildeo semelhantes na perspectiva de ser cada uma subdivi-dida em triacuteades

Por estar presente em todos os momentos da teoria do Diadoco o entendimento das triacuteades eacute essencial para que o pensamento do autor seja compreendido principalmente quando se trata da concepccedilatildeo do desdobra-mento da multiplicidade mediante a unidade Sobre a importacircncia das triacuteades na tese procleana Bezerra faz a seguinte afirmaccedilatildeo ldquochegamos assim agrave ideia das triacuteades como mediaccedilatildeo entre a multiplicidade constante das coisas e a unidade superior a todo devirrdquo22 A triacuteade como movimento de processatildeo eacute o

22 BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006 p 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

197

elemento motor da participaccedilatildeo haja vista ser determinante na constituiccedilatildeo dos seres Tal constituiccedilatildeo por sua vez estaacute diretamente relacionada agrave mobilidade dos termos que compotildee a realidade incorpoacuterea e corpoacuterea A estrutura triaacutedica portanto faz existir uma mediaccedilatildeo dinacircmica que proporciona a continuidade ontoloacutegica daquilo que eacute produzido permitindo o contato do Uno com tudo o que vem em seguida Neste sentido Caram assegura que ldquoo sistema procleano eacute uma trama de relaccedilotildeesrdquo23

Eacute esse complexo de relaccedilotildees que permite a causalidade pois os encadeamentos natildeo possuem um caraacuteter temporal uma vez que natildeo se trata de um antes e depois relativo ao vir-a-ser mas tatildeo somente a uma questatildeo loacutegica explicativa Assim a passagem da unidade agrave multiplicidade eacute feita mediante o estabelecimento de um sistema no qual partindo da unidade um atributo eacute gerado e mantido por meio das triacuteades permitindo que a comunicaccedilatildeo se estenda do primeiro ao uacuteltimo termo de uma ordem Eacute importante observar entretanto que sendo o Uno a Causa Prima ele transcende a todas as realidades de maneira a estar separado de qualquer ordem Ou seja natildeo se pode dizer que o Uno faz parte de qualquer seacuterie da realidade incorpoacuterea pois transcende a todas Trouillard neste sentido defende que o Uno natildeo estaacute em nenhuma ordem a qual produz24 diferente das demais causas que satildeo o centro de suas ordens

No que respeita agrave realidade supra-sensiacutevel a primeira hipoacutestase que descende diretamente do Uno eacute a divina o universo das heacutenadas Depois delas haacute a realidade inteligiacutevel e em seguida a psiacutequica A hipoacutestase divina eacute aquela na qual se encontra o iniacutecio da multiplicidade embora seja apenas uma multiplicidade quantitativa E mesmo que sejam muitas elas se caracterizam pela unidade dado que eacute a primeira esfera que surge atraveacutes do Uno Neste sentido com base na ideia de que o Uno eacute Deus25 e Bem Proclo defende que a multiplicidade dos deuses eacute unitaacuteria26 tendo

23 CARAM op cit 2014 p 105 24 Cf TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982 p 54 25 Eacute valido lembrar que apesar de ser denominado Deus o Uno soacute possui esta nomenclatura por ser causa e portanto dar origem e manter todos os seres aleacutem de ser objeto de desejo de todos uma vez que eacute o Sumo Bem 26 O caraacuteter transcendente do Uno o leva a ser considerado como Deus mas um deus que transcende a todos os deuses por ser Causa Primeira e objeto de desejo de todas as coisas de modo a estar acima de toda ordem Os primeiros elementos que satildeo deles originados satildeo as Heacutenadas que embora extremamente semelhantes a ele lhe satildeo potencialmente inferior Elas tecircm assim o papel intermediaacuterio entre a realidade divina e inteligiacutevel sendo assim

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

198

em vista que o Diadoco natildeo concebe saltos entre os termos da processatildeo e as Heacutenadas satildeo as primeiras coisas produzidas Apoacutes as Heacutenadas haacute a realidade inteligiacutevel onde se encontra a diversidade de maneira mais concreta tendo em vista que nela haacute inuacutemeras organizaccedilotildees nas quais o iniacutecio da diversidade dos seres eacute manifesto

A estrutura loacutegica da realidade inteligiacutevel procleana eacute interpretada por Caram27 como o fundamento de toda hipoacutestase pois a divisatildeo em Ser Vida e Intelecto tanto reflete os momentos da processatildeo quanto o ciclo das almas28 e o mundo do devir29 Assim a indispensabilidade da triacuteade inteli-giacutevel natildeo se refere somente agrave sua influecircncia no que eacute engendrado em seguida mas agrave unidade presente no Espiacuterito e na totalidade do cosmo Por esta razatildeo a ordem inteligiacutevel encontra na triacuteade Ser Vida e Pensamento sua unidade fundamental na medida em que pensamento e ser estatildeo unidos de tal forma que o pensamento eacute sempre pensamento do ser e o ser eacute sempre ser do pensamento Deste modo ldquo[] na Inteligecircncia estatildeo ambos Ser e Vida por participaccedilatildeo e cada um deles intelectualmente pois o ser da inteligecircncia eacute cognoscitivo e sua vida eacute conhecimentordquo30 A unidade entre Ser e Pensamento daacute ao Noucircs a dinacircmica que se manifesta como a vida que se faz presente no Espiacuterito e que medeia a relaccedilatildeo entre aqueles dois termos31

Proclo assegura a unidade do Espiacuterito ao declarar que cada um dos elementos que o compotildee estaacute presente nos demais embora chame atenccedilatildeo ao fato de que mesmo que tudo esteja em tudo cada um estaacute em seu modo proacuteprio O Diadoco entatildeo apresenta trecircs maneiras de existir essencial-mente vitalmente e intelectualmente32 Cada modo corresponde a um elemento que faz parte da esfera inteligiacutevel e a ligaccedilatildeo entre os trecircs soacute eacute

muacuteltiplas quanto sua quantidade mas unitaacuterias quanto aos seus atributos pois os uacutenicos que podem ser percebidos satildeo bondade e unidade PROCLO Op cit Proposiccedilatildeo 113 27 Cf CARAM op cit 2014 p 107 28 Para Proclo ldquoToda alma eacute uma substacircncia vital e cognoscitiva um princiacutepio de vida substancial e cognoscitiva e um principio de conhecimento por ser uma substacircncia e um princiacutepio de vidardquo PROCLO op cit proposiccedilatildeo 197 (traduccedilatildeo nossa) Cf TRUILLARD O ciclo da alma eacute composto por ser ou substacircncia vida ou potecircncia e pensamento ou atividade p 60 68 29 Cf TRUILLARD op cit 1982p 60 As ordens do reino do devir satildeo mineral vegetal e sensitivo 30 PROCLO op cit Proposiccedilatildeo 103 (traduccedilatildeo nossa) 31 ldquoSin el acto de la vida que opera la mediacioacuten entre los dos elementos el espiacuterito no tendria ninguna conciencia del proacuteprio ser e de la proacutepria esencia [] Ella en cuanto pensante e y existente funda el acto de identida que ocurre entre el ser y el espiacuterito y deviene mediadora dela triadicidad del νοῦςrdquo CARAM op cit 2014 p 117 32 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 103

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

199

possiacutevel porque cada um deles eacute formado pelos mesmos princiacutepios Limite e Ilimitado Desta maneira eacute possiacutevel dizer que cada elemento que faz existir a triacuteade do Espiacuterito eacute formado por outra triacuteade cujos princiacutepios satildeo comuns Ou seja 1) finito infinito e Ser 2) finito infinito e vida e 3) finito infinito e pensamento33 satildeo triacuteades que produzem triacuteades

Limite e Ilimitado satildeo a diacuteade pela qual se manifesta o Uno Satildeo o princiacutepio de todo ser e por esta razatildeo satildeo os elementos centrais para a explicaccedilatildeo da produccedilatildeo da multiplicidade haja vista o Uno soacute produzir semelhantes34 Esses dois princiacutepios satildeo causa de todo ser aleacutem de serem a primeira manifestaccedilatildeo do Uno de maneira que tudo que se segue eacute composto por eles Neste sentido DrsquoAncona atesta que ldquoCes deux priacutencipes consideres par Proclos comme Supremes en tant que responsables de chaque manifestation de stabiliteacute et de changement dans lrsquounivers tout entierrdquo35 Para Proclo ateacute as Heacutenadas que estatildeo no mesmo plano do Uno por fazerem parte da realidade divina procedem dos dois princiacutepios36 Mesmo que os dois princiacutepios soacute sejam percebidos nos seres ou seja como mistura entretanto cada princiacutepio existe por si mesmo e independente um do outro37 - o que leva agrave necessidade de analisar cada um isoladamente

Peraacutes ou o Limite eacute a causa da semelhanccedila com o Uno que segundo Berger representa o Primeiro Princiacutepio por sua estabilidade e concentraccedilatildeo em si mesmo dando a todos que dele participa integridade unidade e estabilidade Por tais donativos que concernem a suas proacuteprias caracteriacutes-ticas ele eacute anaacutelogo ao uno e ao mesmo38 Assim a accedilatildeo do limite por tambeacutem ser entendido como determinante consiste na unificaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas satildeo do Limite como existente em si e por si separado do Ilimitado39 O que acontece eacute que Limite e Ilimitado no entanto na esfera do real soacute podem ser encontrados unidos pois soacute sua uniatildeo ocasiona o primeiro ser o Ser verdadeiramente ser40 Poreacutem antes da mistura como assegura Proclo eacute necessaacuterio que tais princiacutepios existam em si e por si mesmos ainda que sua accedilatildeo soacute se realize na mistura Mas antes de passar

33 Cf BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840 p 44 34 Cf BEZERRA op cit 2006 p 120 35 COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995 p 60 36 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 159 37 Cf Ibid proposiccedilatildeo 90 38 Cf BERGER op cit 1840p 41 39 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 90 40 Cf COSTA Op cit 1995p 61

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

200

para o exame da mistura e sua necessidade eacute preciso discorrer sobre o Ilimitado

Sendo o Limite responsaacutevel pela estabilidade e unidade do ser o Ilimitado ou apeiacuteron diz respeito agrave potecircncia (dynamis) Eacute ele que possibilita o sair da unidade para a multiplicidade por ser uma potecircncia geradora sendo imagem da fecundidade do Uno De acordo com Berger o ilimitado eacute anaacutelogo ao muacuteltiplo e ao outro41 Semelhante ao Limite ainda que o Ilimitado exista substancialmente diferente e separado de qualquer mistura ele natildeo se manifesta separado do seu oposto pois ao ser indeter-minaccedilatildeo necessita de um objeto pelo qual ocorre sua manifestaccedilatildeo Ressaltando entatildeo o caraacuteter de inseparabilidade destes princiacutepios nos seres Caram assevera que ldquoLa ilimitacioacuten nunca existe apartado del liacutemite liacutemite ilimitacioacuten y su combinacioacuten reaparecen en todos los niveles de la realidadrdquo42 Desta feita o que se evidencia eacute que toda existecircncia na esfera inteligiacutevel assim como o que vem depois dela soacute eacute compreendido atraveacutes desses dois princiacutepios

Limite e Ilimitado por serem os primeiros derivados do Uno engendram a esfera Inteligiacutevel e consequentemente toda diversidade dos seres Isto ocorre porque mesmo que o Uno soacute produza unidades tais unidades se singularizam mediante a accedilatildeo do Limite que por sua vez soacute pode atuar no sentido de causar novos seres atraveacutes da accedilatildeo do Ilimitado E o Ilimitado ainda que relativo agrave potecircncia geradora soacute se manifesta quando presente nos seres ou seja quando sofre a do limite43 Eacute portanto partindo do Limite e do Ilimitado que todas as realidades sejam da esfera corpoacuterea ou incorpoacuterea vem agrave existecircncia poreacutem o limite que se encontra nos seres natildeo eacute um Limite puro e com o Ilimitado acontece o mesmo Tem-se agora a triacuteade que compotildee o universo Limite Ilimitado e Mistura

Os dois princiacutepios natildeo se manifestam na esfera do real em sua substacircncia pura o que os leva a dar origem a um terceiro que eacute na verdade a siacutentese dos seus antecessores Assim o terceiro termo como elemento de mediaccedilatildeo e siacutentese do que vem anteriormente estaacute presente em todas as relaccedilotildees triaacutedicas No caso de peacuteras e apeiacuteron tem-se a mistura que na filosofia procleana aparece como o verdadeiro ser Eacute portanto no Ser verda-deiro que a unidade caracteriacutestica do Primeiro princiacutepio eacute salvaguardada

41 Cf BERGER op cit 1840p 41 42 CARAM op cit 2014 p 114 43 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 92

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

201

sem que a diversidade do que vem em seguida seja posta em xeque44 No entanto como jaacute mencionado o reino divino ou seja das Heacutenadas tambeacutem eacute formado atraveacutes dos dois princiacutepios Desta maneira a diversidade dos seres para ser compreendida deve ser analisada nestes dois elementos a saber nas Heacutenadas e no Ser verdadeiramente ser pois eles natildeo satildeo apenas manifestaccedilotildees do Uno mas dos princiacutepios pelo qual satildeo formados

3 A origem da diversidade dos seres

O Ser como siacutentese de limite e ilimitado mesmo que encerre em si a unidade apresenta os dois princiacutepios em relaccedilatildeo pondo em evidecircncia a dualidade que adveacutem de seus componentes45 A dualidade faz do primeiro ser como tudo o que vem em seguida uma triacuteade que mesmo sendo encabeccedilada pelo Ser tem em sua substacircncia Identidade e Diferenccedila Logo o Ser nesta perspectiva se apresenta como uma unidade de contrapo-siccedilotildees dado que natildeo possuir somente o Limite e Ilimitado como perten-centes a si mas tambeacutem Identidade e Diferenccedila o que leva a ter em sua constituiccedilatildeo ser e natildeo-ser46 Eacute importante observar poreacutem que Platatildeo jaacute havia apresentado um natildeo-ser que natildeo dizia respeito a um inexistente

Platatildeo no diaacutelogo Sofista ao investigar a natureza do Ser chega agrave conclusatildeo de que tudo pela participaccedilatildeo eacute ser e simultaneamente natildeo-ser Para tanto considera que o Ser pode ser participado por inuacutemeros gecircneros dos quais o fundador da Academia lista movimento repouso diferente e idecircntico O sentido do ser e natildeo-ser ocorre porque todos os gecircneros satildeo seres pela participaccedilatildeo no Ser e ao mesmo tempo satildeo natildeo-ser por serem diferentes dele47 Com este raciociacutenio Platatildeo chega agrave tese de que o natildeo-ser natildeo eacute pura nulidade sendo portanto algo diferente do Ser embora participe dele48 Proclo segue uma teoria semelhante Nos Elementos de Teologia o Bizantino classifica todas as coisas em unas unas

44 Cf CARAM op cit 2014 p 114-115 45 De acordo com o Diadoco o ser por caracterizar-se como misto de limite e ilimitado tem em si estas duas caracteriacutesticas que nele satildeo indissociaacuteveis Eacute dito ldquoSrsquoil a une infinite puissance il est eacutevidemment infini et sous ce rapport il est forme drsquoinfini Srsquoil est indivisible et semblable agrave lrsquoum sous ce rapport il a parta u deacuteterminatrdquo PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 89 46 Cf CARAM op cit 2014 p 114 47 Sofista 255e-256e 48 Eacute necessaacuterio para Platatildeo que todos os gecircneros participem do Ser sob a pena de sua natildeo existecircncia Neste sentido ao passo que todos os outros gecircneros satildeo ser pela participaccedilatildeo o Ser natildeo participa de nenhum outro gecircnero pois ele eacute causa e se participasse de algo mais seria diferente de si mesmo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

202

e natildeo-unas e natildeo-unas e unas de acordo com a participaccedilatildeo na unidade Ao fazer isto ele natildeo considera aquilo que eacute denominado como natildeo-uno como nada49 de modo a somente estabelecer uma diferenccedila entre o que eacute pura unidade e o que de alguma maneira participa da multiplicidade Platatildeo sobre o sentido da negaccedilatildeo em casos como o do natildeo-ser e natildeo-uno esclarece

Estrangeiro Quando dizemos natildeo-ser nos referimos suponho natildeo a algo que seja o oposto do ser mas somente a algo diferente [] Portanto quando nos disserem que o negativo significa o oposto discordaremos Somente admitiremos que a partiacutecula natildeo indica algo diferente das palavras agraves quais serve de prefixo ou melhor diferente das coisas agraves quais os nomes que se seguem agrave negaccedilatildeo satildeo aplicados50

Platatildeo ainda no Sofista assegura que a natureza do Diferente eacute fragmentada pois quando manifesta nos seres natildeo se revela como diferenccedila Isto significa que o Diferente quando buscado em algo que eacute analisado por si mesmo se mostra como seu contraacuterio ou seja como idecircntico fato que soacute natildeo ocorre quando ponderado por meio da negaccedilatildeo Como exemplo tem-se o momento que objetiva investigar o diferente do branco e para esta razatildeo passa a investigar o preto Este por sua vez natildeo soacute o seu diferente mas o seu oposto ou seja o preto quando visto fora de sua relaccedilatildeo com o branco natildeo aparece como diferente dele mas como idecircntico a si mesmo Desta feita a diferenccedila ao ser estudada nas coisas natildeo se encontra como tal jaacute que o que se manifesta eacute o ser da coisa investigada O sentido do Diferente soacute eacute alcanccedilado quando na busca por ele natildeo se predica os atributos daquilo que se entende por diferente mas o anuncia mediante a negaccedilatildeo

Ao buscar a natureza do diferente se chega ao Idecircntico devido o caraacuteter positivo da afirmaccedilatildeo de sorte que o Diferente soacute pode ser compreendido na negaccedilatildeo Deste modo em Proclo ao estudar a triacuteade que corresponde ao Ser Identidade e Diferenccedila levando em consideraccedilatildeo que Identidade e Diferenccedila satildeo inerentes ao Ser a causa da diferenccedila entre os seres se revela como o princiacutepio do Limite dado que ele eacute quem daacute singularidade atraveacutes do ato de determinar Proclo sobre o

49 A unidade para Proclo eacute o que faz existir todas as coisas neste sentido negar a unidade do que quer que seja significaria negar a existecircncia da coisa Quando o Diadoco todavia se refere ao natildeo-uno ele segue a mesma linha de raciociacutenio que Platatildeo quando se refere ao natildeo-ser 50 Sofista 257b-c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

203

papel do Limite argumenta ldquo[] pero el liacutemite define circunscribe y situacutea cada cosa en sus propios confines [] de suerte que cada uno de los seres tiene una cierta naturaleza una definicioacuten una propiedad y un orden propios por el primer liacutemiterdquo51 Tornado clara a correspondecircncia do Limite na singularidade e particularizaccedilatildeo dos seres tem-se a seguinte questatildeo se eacute o Limite que daacute singularidade ao ser qual o papel do Ilimitado

O Ilimitado natildeo diz respeito ao estado dos seres mas de sua potecircncia Neste sentido Proclo assegura que o grau de potencialidade eacute proporcional ao de Unidade Esta potecircncia no ser natildeo eacute pura pois por ordem de necessidade participa do Limite Logo se pode dizer que por ser potecircncia ela soacute existe atraveacutes daquilo que jaacute estaacute em ato O Diadoco menciona assim dois tipos de potecircncias as infinitas e as finitas sendo as infinitas aquelas que estatildeo nos seres que tem maior participaccedilatildeo no limite O Sucessor Platocircnico no entanto chama atenccedilatildeo ao fato de que apesar de se falar em potecircncias infinitas estas soacute o satildeo para os seres inferiores pois para o ser de potecircncia infinita e para os seus superiores tais potecircncias natildeo satildeo infinitas Isto se daacute porque os inferiores natildeo conseguem compreender a totalidade dos seres que o satildeo superiores jaacute o ser ao qual a potecircncia lsquoinfinitarsquo pertence sabe seu limite assim como o sabem os que lhe satildeo superiores ou seja uma potecircncia soacute aparece como infinita para os seres inferiores que natildeo conseguem compreender seus limites52

O Ilimitado na qualidade de potecircncia proporciona a saiacuteda do Uno em direccedilatildeo agrave multiplicidade provocando a comunhatildeo e conexatildeo entre tudo que existe Pois eacute a potecircncia geradora ao ser indeterminada ou seja natildeo tendo nenhuma caracteriacutestica especiacutefica que perpassa todas as coisas estando portanto presente em todas Ao estar presente em tudo daacute a possibilidade de reunificaccedilatildeo de tudo o que existe Isto posto a identidade pode ser analisada em dois sentidos 1) como potecircncia que atravessa todos os seres dando a todos um caraacuteter comum e 2) como identidade dos seres consigo mesmos O primeiro sentido eacute oriundo do Ilimitado o segundo do Limite que particulariza cada ser Logo o duplo caraacuteter da identidade torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que opostos Identidade e Diferenccedila natildeo se anulam

51 PROCLO Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999 XLII13P 20 - 25 52 Cf PROCLO op cit proposiccedilatildeo 91 93

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

204

A diversidade aparece na hipoacutestase inteligiacutevel mediante a accedilatildeo dos princiacutepios do limite e do ilimitado que fazem da potecircncia que sai do Uno uma unidade delimitando-a e singularizando-a frente ao todo Fica todavia a questatildeo porque haacute diferenccedilas entre os seres que satildeo particularizados pela accedilatildeo dos dois princiacutepios Com a explicaccedilatildeo da diferenccedila como parte integrante do ser fica claro que a diferenccedila tem sua primeira expressatildeo nele porque o limite determina aquilo que jaacute eacute pela possibilidade ou seja age como uma atualizaccedilatildeo Os princiacutepios satildeo pois responsaacuteveis pela forma natildeo pela diversidade da multiplicidade propriamente dita Logo se o Ser eacute o primeiro componente do inteligiacutevel soacute resta recorrer ao primeiro elemento incorpoacutereo ou seja elevar a anaacutelise para o plano divino jaacute que o inteligiacutevel eacute a consumaccedilatildeo daquilo que jaacute existe como causa no divino

De fato toda multiplicidade Proclo repete enquanto tal faz tudo dessemelhante do Uno por consequecircncia ela eacute derivada do Uno natildeo diretamente mas atraveacutes de um princiacutepio de mediaccedilatildeo Este princiacutepio se assemelha ao Uno enquanto unidade que engendra certa multiplicidade particular e se assemelha agrave multiplicidade enquanto possui as caracteriacutesticas de modo arquetiacutepico 53

As Heacutenadas ou unidades divinas satildeo este princiacutepio e portanto a primeira multiplicidade Elas natildeo possuem poreacutem atributos de forma que esta passagem soacute pode ser constatada numericamente Assim a multiplicidade surge na proacutepria realidade divina uma vez que as Heacutenadas satildeo determinaccedilotildees divinas e como tal cooperam com o Uno que estaacute acima de toda ordem na produccedilatildeo dos seres Consequen-temente do Uno os seres recebem sua existecircncia e das Heacutenadas seus predicados atraveacutes da participaccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoasiacute es la heacutenade la que impone su propio caraacutecter a los existentes participantes y despliega existencialmente en el uacuteltimo la cualidad que eacutel mismo posee supra-existencialmente54 Por conseguinte toda diversidade existente na esfera do real jaacute se encontra nas Heacutenadas de maneira germinal Agrave vista disto para cada Heacutenada participaacutevel existe um ser participante o que

53 ldquoDe fait toute multipliciteacute Proclus le reacutepegravete est en tant que telle tout agrave fait dissemblable de lrsquoUn par conseacutequent elle deacuterive de lrsquoUn non directement mais agrave travers un principe de meacutediation Ce dernier ressemble agrave lrsquoun en tant qursquoil est lrsquouniteacute qui engendre cette multipliciteacute particuliegravere et ressemble agrave la multipliciteacute en tant qursquoil en possegravede les caractegraveres de faccedilon archeacutetypiquerdquo COSTA Op cit 1995p 87 54 PROCLO op cit proposiccedilatildeo 137

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

205

proporciona o desenvolvimento da caracteriacutestica fundamental de cada seacuterie55

A diversidade dos seres portanto na esfera incorpoacuterea natildeo se trata da accedilatildeo do movimento de geraccedilatildeo como acontece na realidade corpoacuterea A diversidade nasce como realizar-se daquilo que jaacute existe como causa nas Heacutenadas por intermeacutedio da accedilatildeo dos princiacutepios do Limite e Ilimitado Logo natildeo se pode dizer que haacute uma mudanccedila nos seres no domiacutenio da inteligibilidade mas uma passagem da potecircncia ao ato possibilitada pelo mister de limite e ilimitado Desta forma o Uno por ser causa Suma daacute existecircncia a tudo e as Heacutenadas pela participaccedilatildeo daacute os atributos que jaacute existem nelas mesmas em forma de causa Quanto aos princiacutepios do Limite e Ilimitado a eles cabe o papel de manifestar tais atributos na medida em que delimitam o ser singularizando-o Com isso tais seres seratildeo idecircnticos agrave mocircnada de sua ordem e agrave totalidade das coisas por possuiacuterem unidade e tambeacutem satildeo diferentes por sua particularizaccedilatildeo Tal diferenccedila contudo soacute pode ser percebida quando analisada a totalidade dos seres

Conclusatildeo

Ante o exposto o que pode ser concluiacutedo eacute que ainda que o sistema procleano seja regido por multiplicaccedilatildeo pela semelhanccedila pois eacute do Uno que toda multiplicidade tem origem isto soacute eacute possiacutevel porque seu sistema consiste em uma trama de relaccedilotildees Ocorre que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento ontoloacutegico isto eacute natildeo se trata de uma saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade por meio de uma sucessatildeo de eventos O que pode ser percebido quando eacute dito que natildeo haacute um antes ou depois relativo aos momentos da processatildeo O fato de natildeo existir um antes ou depois no movimento de processatildeo todavia natildeo implica em uma estabilidade no sistema do Bizantino pelo contraacuterio seu sistema eacute marcado pelas relaccedilotildees entres os termos Sendo por meio das triacuteades que tal relaccedilatildeo adquire dinamicidade

Assim se por um lado a realidade supra-sensiacutevel eacute marcada pela imobilidade com exceccedilatildeo da Alma que eacute automotora por outro ela tambeacutem eacute marcado por triacuteades que permanecem em constante relaccedilatildeo De modo que a relaccedilatildeo dialeacutetica existente entre os termos das triacuteades eacute o que possibilita a origem da diferenccedila na hipoacutestase inteligiacutevel dando a ela

55 Op cit proposiccedilotildees 131 135

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

206

um caraacuteter dinacircmico que lhe possibilita atributos aleacutem da unidade e bondade Porquanto ainda que a imobilidade esteja presente na realidade supra-sensiacutevel no sentido de natildeo existir um movimento de geraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre os princiacutepios oriundos diretamente do Uno peacuteras e apeiacuteron possibilita tanto a passagem da unidade agrave multiplicidade quanto a diversidade de seres existente Ou seja eacute a relaccedilatildeo dinacircmica que permite a existecircncia do diferente e ao passo que proporciona o diferente viabiliza tambeacutem o idecircntico

Logo o que se pode concluir eacute que no que concerne agrave realidade sensiacutevel toda a diversidade adveacutem do movimento seja o de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seja o de deslocamento jaacute na realidade supra-sensiacutevel a diversidade eacute oriunda das relaccedilotildees Considerando que eacute na relaccedilatildeo dos princiacutepios que constitui os seres que os predicados passam da potecircncia ao ato conservando caracteriacutestica dos princiacutepios que o constitui Neste sentido todo ser eacute ao mesmo tempo o resultado de seus princiacutepios e algo diferente deles De modo que eacute na relaccedilatildeo que o Outro e o Mesmo tecircm existecircncia sendo tambeacutem por ela que eacute possiacutevel chegar natildeo soacute ao ser em particular mas a totalidade dos seres

Referecircncias Bibliograacuteficas

BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006

CARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 pp 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesre vistasthemata49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015

COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995

REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008

PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

207

________ Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999

PLATAtildeO Parmecircnides In Diaacutelogos IV Parmecircnides (ou formas) Poliacutetico (ou da realeza) Filebo (ou do prazzer) Liacutesis (ou da amizade) Traduccedilatildeo textos complementares e notas de Edson Bini Bauro SP EDIPRO 2009

__________ Sofista In Diaacutelogos I Teeteto (ou sobre o conhecimento) Sofista (ou do ser) Protaacutegoras (ou sofista) Traduccedilatildeo textos complemen-tares e notas Edson Bini ndash Bauru SP EDIPRO 2007

SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012

TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982

Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Doutora pela Universidad Complutense de Madrid

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza soeudaimoniahotmailcom

Jan Gerard Joseph ter Reegen Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Professor emeacuterito da Universidade Estadual do Cearaacute e Coordenador de Pos-Graduaccedilatildeo e Extensatildeo da FCF

jangjtrgmailcom

Suelen Pereira da Cunha Mestranda pela Universidade Federal do Cearaacute

suelenldp2011gmailcom

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

208

ENSAIO

AS FONTES MIacuteSTICAS E COSMOLOacuteGICAS DO ldquoCASTELO INTERIORrdquo DE TERESA DrsquoAacuteVILA

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo

Na obra Castelo Interior ou Moradas Teresa de Jesus miacutestica do Renascimento espanhol encarou a tarefa de descrever suas experiecircncias extaacuteticas Semelhante a outros miacutesticos natildeo o poderia fazer sem interpretar e mediatizar uma experiecircncia que eacute supralinguiacutestica Por isso recorreu ao simbolismo Comparou a alma a sete castelos ou globos concecircntricos de cristal ou diamante Esses castelos simbolizam as etapas da ascensatildeo da alma O Castelo Interior eacute ldquoa aacutervore da vida que estaacute plantada nas mesmas aacuteguas vivas que eacute Deusrdquo (1M 21) Eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a cabala mais especificamente com a literatura judaica conhecida como Hechalot (Palaacutecios)

Palavras-chave Teresa de Jesus Miacutestica Renascentista Moradas Hechalot

1 Introduccedilatildeo

Santa Teresa de Jesus ou simplesmente Santa Teresa DrsquoAacutevila (1515 ndash 1582) miacutestica carmelita e escritora foi uma das mais eminentes contem-plantes do Renascimento espanhol A reformadora do Carmelo por moti-vos de obediecircncia agrave autoridade da igreja enfrentou a tarefa de colocar por escrito seus ecircxtases com o objetivo de instruir as monjas que estavam sob sua tutela a respeito do caminho interior para alcanccedilar a uniatildeo miacutestica Ela proacutepria definiu seu empenho como difiacutecil quase impossiacutevel porque nas operaccedilotildees iacutentimas da alma se adere agrave secreta ldquolinguagem de Deusrdquo Natildeo sabendo nem como comeccedilar sua empreitada Teresa acreditou ter recebido de Deus a inspiraccedilatildeo de considerar a alma como um castelo1 de diamante

1 Castelo Interior ou Moradas eacute sua obra mestra escrita em 1577 cinco anos antes da morte de Teresa

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

209

ou de cristal com muitos aposentos da mesma forma que no ceacuteu haacute muitas moradas (1M 11)

A alma humana eacute considerada agrave maneira de sete moradas ou globos concecircntricos de fino cristal ou diamante que marcam as etapas progres-sivas do desenvolvimento miacutestico O progresso espiritual descrito por meio das sete moradas resume as trecircs etapas principais da vida interior e da oraccedilatildeo

Trecircs das moradas enfocam o que se pode fazer para avanccedilar ateacute as moradas interiores nas quais estaacute Deus Exigem o desenvolvimento do amor ao proacuteximo da renuacutencia a julgar os outros do conhecimento de si da humildade do processo de interiorizaccedilatildeo e ativaccedilatildeo do desejo por Deus

A quarta eacute uma etapa de transiccedilatildeo na qual se comeccedila a responder ao chamado de Deus e eacute quando Ele comeccedila a assumir o controle de tudo Nas moradas mais interiores Deus purifica a alma cada vez mais e a vai tornando a Sua semelhanccedila ateacute a etapa do matrimocircnio espiritual

A quinta morada eacute a da santidade A esse ponto Teresa dedica quase a metade do Castelo Interior pois essas etapas mais profundas requerem orientaccedilatildeo mais cuidadosa A transformaccedilatildeo interior estaacute cada vez mais intensa e soacutelida e o coraccedilatildeo vai ficando sempre mais inundado pela radiante luz divina

Na sexta morada Teresa disserta sobre as provas exteriores e interiores acerca dos trabalhos os obstaacuteculos e as adversidades agrave santificaccedilatildeo que satildeo cada vez mais numerosos fortes e sutis e exigem maior capacidade de discernimento

A uacuteltima morada a mais interior eacute diferente de todas pois nesse estado acontece a uniatildeo miacutestica Ali estaacute Deus com quem a alma se une pois fica cheia de luz tendo deixado para traacutes o democircnio na forma de vaacuterios animais ferozes e peccedilonhentos (4M 19) Haacute uma fusatildeo entre a alma e a Luz divina Eacute o matrimocircnio miacutestico

[] eacute como se a aacutegua caindo do ceacuteu em um rio ou fonte onde estiver toda a aacutegua jaacute natildeo se pode separar nem distinguir qual eacute a aacutegua a do rio ou a que caiu do ceacuteu (7M 24)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

210

2 Os limites da linguagem humana

Michael Gerli nos mostra que muitas metaacuteforas espirituais especial-mente as arquitetocircnicas se tornaram populares na espiritualidade euro-peacuteia precisamente por seu caraacuteter mnemoteacutecnico2 que as tornava atraentes (GERLI 1982 p 154-163) Eacute notoacuterio que isso ocorreu com a metaacutefora usada por Teresa pois esta pedia agraves filhas espirituais que o trouxessem sempre agrave memoacuteria (1M 26 7M 39)

Agrave primeira vista o esquema simboacutelico usado por Teresa parece original contudo eacute impossiacutevel expressar literariamente uma experiecircncia dessa natureza sem recorrer aos siacutembolos disponiacuteveis no contexto cultural e religioso no qual o miacutestico estaacute inserido

Conforme Barbara Kurtz a linguagem dos miacutesticos natildeo pode transcrever uma experiecircncia sem interpretaacute-la e mediatizaacute-la por mais que se lute contra os limites da linguagem humana incapaz de abordar a transcendecircncia (KURTZ 1992 p 32)

Nesse sentido Teresa confessa natildeo saber como expressar a miste-riosa vivecircncia miacutestica que teve por isso eacute que se utiliza de metaacuteforas O castelo interior tal como o descreve Teresa eacute tanto uma figura de grande beleza plaacutestica quanto algo muito faacutecil de recordar Portanto deve pertencer ao contexto da autora Por ser uma metaacutefora entretanto pouco usada torna-se difiacutecil rastrear as possiacuteveis origens desse simbolismo

O contexto cultural no qual o miacutestico vive ajuda a dar forma simboacutelica agrave sua experiecircncia transcendente que eacute em si supralinguiacutestica O ecircxtase eacute por definiccedilatildeo inefaacutevel por isso o miacutestico sempre recorre a metaacuteforas que satildeo comuns em seu ambiente cultural para explicitar de alguma maneira o que aconteceu nas fronteiras espaciotemporais da razatildeo e da linguagem

Sendo assim haacute o seguinte problema de onde Teresa tira o simbo-lismo com o qual descreve a experiecircncia miacutestica Seus estranhos castelos concecircntricos natildeo pertencem agrave tradiccedilatildeo cristatilde ocidental Em qualquer outro escrito de espiritualidade encontramos o avanccedilo miacutestico da alma claramente estruturado ao longo de sete moradas (ou castelos) cada vez mais interiores

2 Teacutecnica de estimulaccedilatildeo da memoacuteria sinocircnimo de arte de memorizaccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

211

3 Busca das fontes Teresianas

A busca miacutestica da uniatildeo com Deus foi simbolizada tradicional-mente por uma viagem um trajeto percorrido pela alma Isso faz parte de um conjunto de siacutembolos religiosos adotados por cristatildeos judeus e mulccedilumanos ao longo da histoacuteria Muitas tradiccedilotildees mencionam um itineraacuterio e um desejo intenso da alma por Deus Falam da entrega e da purificaccedilatildeo da renuacutencia e do abandono resultantes da uniatildeo miacutestica

Gaston Etchegoyen propotildee que Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna ambos autores muito apreciados pela Carmelita sejam as princi-pais fontes para o Castelo Interior (ETCHEGOYEN 1923 15) Mas o proacuteprio Etchegoyen admite que os esboccedilos de ambos natildeo satildeo suficientes para explicar os pormenores do siacutembolo usado por ela

Francisco de Osuna se limita a um esquema muito restrito agraves alegorias medievais no qual os inimigos tradicionais (a carne o mundo e o democircnio) tentam penetrar o castelo da alma Bernardino Laredo com seu modo de compreender a civitas sancta assentada em um campo quadrado de fundamento de cristal com muros de pedras preciosas e com um ciacuterio pascal no centro que simboliza Cristo eacute mais distante ainda do esquema teresiano

Outros propotildeem como antecedentes teresianos os romances de cavalaria do Renascimento espanhol que a Santa admite ter lido com grande paixatildeo juvenil Quando examinamos esses livros somos forccedilados a concluir que eles natildeo nos datildeo a chave do siacutembolo imaginado pela Monja de Aacutevila Em nenhum romance da eacutepoca os castelos satildeo sete vezes concecircntricos nem celebram a uniatildeo teopaacutetica3 em seu recinto mais interno Nem na arquitetura dos castelos espanhoacuteis os quais ainda se podem visitar constam de sete moradas cada vez mais interiores (PEERS 1951 p 17)

4 Recurso agrave miacutestica judaica

A fase primitiva da miacutestica judaica antes de se cristalizar na Cabala medieval que eacute a mais longa e se estende desde o seacuteculo I aC ateacute o seacuteculo X eacute conhecida indistintamente como a tradiccedilatildeo da Merkavah ou miacutestica Carruagem ou do Trono de Deus A literatura da Merkavah se desenvolveu com suporte em especulaccedilotildees sobre visotildees profeacuteticas do Antigo Testamento O termo hebraico merkabah refere-se ao trono-

3 Sensiacutevel agrave divina influecircncia ser profundamente afetado por Deus

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

212

carruagem de Deus na visatildeo de Ez 1 O corpus principal da literatura Merkabah foi composto no periacuteodo de 200-700 dC

Na fase mais antiga o visionaacuterio o miacutestico era arrebatado geral-mente ateacute agraves esferas celestes e vislumbrava Deus como rei sentado em um trono sustentado por uma carruagem em um firmamento de cristal rodeado de raios com querubins e quatro seres vivos junto a Ele

A primeira apresentaccedilatildeo da escala completa da Merkavah a miacutestica da carruagem do Senhor aparece nos escritos visionaacuterios conhecidos como os livros de Hechalot Esses escritos consistem em descriccedilotildees Hechalot salas o palaacutecios celestiais O desejo mais profundo do miacutestico era alcanccedilar a sala do trono durante a ascensatildeo aos ceacuteus para contemplar o esplendor da majestade de Deus A literatura Hechalot dedica-se a discutir os detalhes desses ceacuteus agraves vezes em conexatildeo com as tradiccedilotildees relacionadas com a apocaliacuteptica dos ciacuterculos de Henoque (SCHOLEM 1965 p 9-13)

Para alguns estudiosos a literatura Hechalot eacute um gecircnero de textos esoteacutericos e apocaliacutepticos judaicos que se estendem ateacute o iniacutecio da Idade Meacutedia Os sete Hechalot ou sete ceacuteus fazem parte da cosmologia religiosa encontrada nas grandes religiotildees como o judaiacutesmo o hinduiacutesmo e o islamismo bem como em algumas religiotildees menores como o hermetismo e gnosticismo Segundo essa cosmologia o trono de Deus estaacute acima do seacutetimo ceacuteu

Vaacuterias religiotildees atribuem ao nuacutemero sete a perfeiccedilatildeo uacuteltima tampouco a miacutestica judaica o ignorou estaacute em obras como os Sete Hechalot ou Sete Palaacutecios a que o israelita recorria simbolicamente para falar do arrebatamento do vidente ateacute ascender ao Trono de Deus conforme o texto do Sefer Hechalot4 ou Terceiro Livro de Henoque muito considerado pela cabala judaica Essa obra se mostra como tendo sido escrita no seacuteculo II dC mas suas origens soacute podem ser rastreadas ateacute o seacuteculo V O autor se faz passar pelo Rabi Ismael o qual teria se tornado um ldquosumo sacerdoterdquo depois das visotildees decorrentes de seu arrebatamento ao ceacuteu Os principais temas abordados pelo Sefer Hechalot satildeo a ascensatildeo de Henoque ao ceacuteu e sua transformaccedilatildeo no anjo Metatron (DAN 1993 p 7-24)

No final do seacuteculo XIII Moiseacutes de Leoacuten compilou uma obra atribuiacuteda ao rabino Simeon ben Yohai que viveu na Palestina no seacuteculo II

4 Sefer significa livro e Hechalot quer dizer Palaacutecios ou Templos

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

213

Na citada obra conta-se uma experiecircncia visionaacuteria do suposto rabino no momento em que a alma dele se libera momentaneamente do corpo e experimenta una revelaccedilatildeo magniacutefica sob a forma de sete palaacutecios do paraiacuteso e em contrapartida sete palaacutecios do inferno Isso significa que ainda existe um sistema de siacutembolos essenciais dos ensinamentos dos Hechalot unido a novas ideias desenvolvidas posteriormente com origens nas especulaccedilotildees sobre a merkavah ou carruagem do Senhor

A obra compilada por Moiseacutes de Leoacuten recebeu o nome Zoha ou Livro do Esplendor o grande comentaacuterio miacutestico judaico que compendiou a Cabala No Zohar os sete palaacutecios estatildeo povoados de anjos que irradiam luz Em contraste com o objetivo dos primeiros miacutesticos da merkavah que era ver a sala do trono de Deus o desejo do miacutestico apresentado pelo Zohar eacute chegar a uma comunhatildeo com Deus ou seja a uma fusatildeo entre as vontades divina e humana que se realiza no ecircxtase e eacute simbolizada no ldquobeijo do Amorrdquo Conforme o Zohar o beijo que une a alma a Deus eacute descrito no seacutetimo palaacutecio e sua intensidade eacute tal que pode extrair a alma do corpo e levaacute-la para Deus provocando a morte fiacutesica

Santa Teresa tambeacutem menciona como o Zohar o beijo com que o Rei divino consuma o matrimocircnio espiritual na seacutetima morada de seu Castelo Interior Refere-se tambeacutem a experiecircncias extaacuteticas intensas nas quais a alma parece ser arrebatada do corpo e raptada ateacute uma comunhatildeo com Deus Teresa caracteriza essas experiecircncias como suficientes para levar o miacutestico agrave morte (7M 25 36)

5 Influecircncias da cosmologia aristoteacutelica

Aleacutem das fontes judaicas eacute possiacutevel encontrar outras influecircncias para o simbolismo teresiano As versotildees latinas das obras aristoteacutelicas Estavam amplamente divulgadas no contexto no qual Teresa viveu No livro De Caelo Aristoacuteteles imaginou o universo na forma de esferas concecircntricas que giram em movimento circular Este esquema coacutesmico se transformou em um siacutembolo que dava um transfundo para o caminho espiritual do ser humano (LOacutePEZ-BARALT 2010 p 180)

Salta agrave ideia de que Santa Teresa ao falar da alma na forma de sete ciacuterculos ou castelos concecircntricos alude de maneira obliqua agraves sete esferas planetaacuterias da cosmovisatildeo medieval herdada de Aristoacuteteles e da literatura de Hechalot A Carmelita estaria visualizando a alma como um reflexo microcoacutesmico do macrocosmo celestial estaria comparando as moradas espirituais natildeo somente com castelos mas tambeacutem com as

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

214

esferas do ceacuteu Nesse caso o ser humano teria dentro de si todas as esferas celestes

6 Conclusatildeo

Conclui-se que Teresa natildeo criou a formosa imagem plaacutestica dos castelos interiores Por mais inusitado que isto pareccedila agrave sensibilidade do cristatildeo ocidental ela simplesmente a elaborou em detalhes geniais a cristianizou e a adaptou aos seus fins

Igual a muitos filoacutesofos poetas e humanistas da Eacutepoca Renascen-tista miacutesticos cristatildeos foram profundamente influenciados pela literatura da Cabala no seacuteculo XIII Reconheceram na miacutestica judaica em geral um caminho seguro para compreender melhor suas experiecircncias com procedecircncia em raiacutezes miacutesticas mais antigas

Swietlicki orienta contudo a natildeo se ter a pretensatildeo de que a influecircncia da cabala judaica sobre os miacutesticos cristatildeos nos temas e siacutembolos usados por estes sejam resultado de influecircncia literaacuteria mas apenas supotildee-se que os traccedilos de cabala foram persistentes em ciacuterculos populares mesmo apoacutes a expulsatildeo dos judeus da Espanha (SWIETLICKI 1986 p 28) Dessa forma a miacutestica cristatilde teria se tornado um importante veiacuteculo para a transmissatildeo da Cabala judaica mesmo no seacuteculo XVI Eacute fato inegaacutevel entretanto a influecircncia da cabala sobre estas figuras importantes

Referecircncias Bibliograacuteficas

BENSION Ariel O Zohar o livro do esplendor Satildeo Paulo Polar Edito-rial 2006

DAN Joseph The Ancient Jewish Mysticism Tel Aviv Mod Books 1993

ETCHEGOYEN Gaston Lrsquoamour divin Essai sur les sources de Sainte-Theacuteregravese Bordeaux Feret 1923

GERLI Michael ldquoEl castillo interior y el arte de la memoriardquo Bulletin Hispanique 861-2 (1982) 154-163

KURTZ Barbara ldquoThe Small Castle of the Soul Mysticism and Metaphor in the European Middle Agesrdquo Studia Mystica XV (1992) 28-35

LOacutePEZ-BARALT Luce ldquoTeresa of Jesus and Islam The Simile of the Seven Concentric Castles of the Soulrdquo in Hilaire KALLENDORF (ed) A New Companion to Hispanic Mysticism Danvers BRILL 2010 p 175-199

PEERS Edgar Allison Study of the Spanish Mystics London SPCK 1951

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

215

SCHOLEM Gershom Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and the Talmudic Tradition New York Jewish Theological Seminary of America 1965

SWIETLICKI Catherine Spanish Christian Cabala The works of Luis de Leoacuten Santa Teresa de Jesus and San Juan de la Cruz Columbia Missouri University of Missouri Press 1986

TERESA DE JESUacuteS Santa Moradas del Castillo Interior in Obras Completas Madrid Editorial Catoacutelica 1951

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

216

TRADUCcedilAtildeO

COMECcedilAM OS ERROS DOS FILOacuteSOFOS ARISTOacuteTELES AVERROacuteIS AVICENA ALGAZEL

AL-KINDI MAIMONIDES COLETADOS POR IRMAtildeO EGIacuteDIO DA ORDEM DE SANTrsquo AGOSTINHO1

Introduccedilatildeo I Vida de Egiacutedio Romano ndash Aegiacutedius Romanus

Aegiacutedius Romanus ndash Egiacutedio Romanos ndash tambeacutem conhecido por seu nome francecircs Giles de Rome nasceu em Roma em 1243

Depois de sua entrada na ordem dos Agostinianos estudou em Paris de 1269 ndash 1272 com Tomaacutes de Aquino Com Tomaacutes aproveitou o pensa-mento aristoteacutelico que comeccedilou a se afirmar nos estudos filosoacuteficos com reflexos na Faculdade Teoloacutegica da Universidade de Paris Em consequecircncia das 219 teses ligadas agrave Filosofia e Teologia aristoteacutelicas publicadas em 7 de marccedilo de 1277 e que foram consideradas levianas ou hereacuteticas e como tais em desacordo com os dados da Revelaccedilatildeo pelo bispo de Paris Etienne Tempier Egiacutedio foi obrigado a deixar Paris e por enquanto natildeo conseguiu permanecer na Universidade Em Paris produziu a sua obra poliacutetica De Regimine Principum Em 1285 Egiacutedio refutou as teses que foram condenadas pela maioria da comunidade acadecircmica da universidade parisiense e como consequecircncia lhe foi possiacutevel a sua carreira acadecircmica

A partir de 1292 Egidio assume tanto na ordem dos Agostinianos como na Igreja uma posiccedilatildeo de destaque A sua atuaccedilatildeo desenvolveu-se de modo especial na aacuterea poliacutetica do papa Bonifaacutecio VIII cujas teorias 1 Incipiunt Errores philosophorum Aristotelis Averrois Avicenna Algazelis Alkindi Rabbi Moysis A fratre Aegido collecti ord S Augustini Traduccedilatildeo elaborada a partir do texto latino publicado em Giles of Rome Errores Philosophorum Critical Text with Notes and Introduction by Joseph Koch English Translation by John O Riedl Milwaukee Wisconsin Marquette University Press 1944 Neste Trabalho soacute se apresenta a versatildeo da parte sobre Aristoacuteteles cap 1-2-3 Oportuna-mente apresentar-se-atildeo os outros autores mencionados

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

217

entraram em choque com as praacuteticas e pensamentos do Rei Philippe IV o que levou agrave uma tensatildeo profunda na Igreja do Ocidente

Egidio morreu em 1316 em Avignon Agrave sua mente fina deve o apelido ldquodoctor fundatissimusrdquo ndash doutor profundo mas em razatildeo de certa prolixidade de suas obras o chamam ldquodoctor verbo-susrdquo ndash doutor tagarela

II Autoria e data

Embora sob a autoridade de Mandonnet o texto em estudo tenha sido longamente considerado como espuacuterio estudos posteriores poreacutem dos principais mestres comprovaram a autenticidade da autoria de Egidio Aleacutem disso a comprovaccedilatildeo eacute encontrada em alguns comentaacuterios antigos como tambeacutem nas primeiras ediccedilotildees impressas em 1428 e 1581 editadas em Veneza

Uma anaacutelise da obra comprova assim Koch uma concordacircncia quanto ao estilo e conteuacutedo da Incipiunt com outros escritos do Egiacutedio Mais peso entretanto eacute atribuiacutedo agrave concordacircncia de estilo entre a Incipiunt e outras obras egidianas Cita-se entre outros os seus comentaacuterios sobre a De Generatione et corruptine a Physica que lembram imediatamente os nordm 6-7-8-12 e 14 da Incipiunt (para maiores detalhes cf Koch p XXXIV e XXXV)

E Incipiunt pertence agraves primeiras obras de Egidio e deve ser situada ao redor do ano 1268 visto que no momento em que compocircs este trabalho ele jaacute tinha completado a sua formaccedilatildeo filosoacutefica e como tudo indica tambeacutem uma parte da formaccedilatildeo teoloacutegica

O termino da obra eacute o comentaacuterio da De Generatione et corruptione que cuja data deve se situar entre 1273 e 1274

Isto leva a considerar que a obra deve ser composta ao redor do ano de 1270

III Traduccedilatildeo do Texto

Afirma-se em primeiro lugar

Capiacutetulo I Sobre a lista de erros de Aristoacuteteles

Porque de um dado errado derivam muitas consequumlecircncias de um fundamento falso o Filoacutesofo tirou muitos erros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

218

1 Acreditou pois que nada estaacute numa determinada situaccedilatildeo em que anteriormente natildeo estava senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Avaliou portanto que soacute haveria novidade aonde tivesse uma mudanccedila propriamente dita Consequumlentemente como toda mudanccedila propriamente falando eacute o fim de um movimento natildeo poderaacute haver novidade sem um movimento precedente Deste argumento entatildeo concluiu que o movimento nunca comeccedilou porque se o movimento se iniciasse seria algo novo Mas natildeo existe coisa nova senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Entatildeo antes do primeiro movimento houve algum movimento O que eacute incoerente

2 Aleacutem disso errou ao afirmar que o tempo nunca comeccedilou porque o tempo sempre segue o movimento Se entatildeo o movimento natildeo comeccedilou nem o tempo iniciara Pareceu-lhe que a razatildeo teria uma difi-culdade especial em relaccedilatildeo ao tempo Visto que o instante eacute sempre o fim do passado e o comeccedilo do futuro natildeo se pode falar de um primeiro momento Por isso antes de todo e qualquer momento houve algum tempo e antes de qualquer tempo dado houve um momento Entatildeo o tempo natildeo comeccedilou mas eacute eterno

3 Aleacutem disso por causa daquilo que foi dito foi obrigado a afirmar que aquilo que se move eacute eterno e que tambeacutem o mundo eacute eterno porque uma vez que natildeo haacute tempo sem movimento e nem movimento sem algo moacutevel se tempo e movimento satildeo eternos o que se move seraacute eterno e assim o mundo nunca comeccedilou Tudo isso fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica

4 E mais Foi obrigado a afirmar que o ceacuteu natildeo eacute gerado e eacute incorruptiacutevel e que nunca foi feito mas que sempre existiu Como entre os outros movimentos soacute o movimento circular eacute contiacutenuo como fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica se qualquer movimento eacute eterno o circular seraacute eterno E porque a movimento circular eacute proacuteprio do ceacuteu como se prova no 1ordm livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo conclui-se da mesma forma que o ceacuteu eacute ingecircnito e que nunca foi feito Tinha ele uma razatildeo especial para dizer que o ceacuteu natildeo comeccedilou porque qualquer coisa que possui o poder de sempre existir no futuro tambeacutem teraacute o poder de ter existido sempre no passado E porque o ceacuteu natildeo termina natildeo comeccedilou a existir

5 E ainda visto que na opiniatildeo dele qualquer coisa que eacute feita eacute feita de mateacuteria preexistente assim opinou que Deus natildeo poderaacute fazer um outro mundo porque este o atual eacute feito de toda a mateacuteria Este erro tambeacutem pode ser encontrado no 1ordm Livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

219

6 Argumentou ainda que a geraccedilatildeo das coisas inferiores nunca cessaraacute como tambeacutem nunca tem comeccedilado Porque a corrupccedilatildeo antecede e segue toda a geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo antecede e segue toda a corrupccedilatildeo Por isso visto que a corrupccedilatildeo precede qualquer geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo qualquer corrupccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a corrupccedilatildeo e a geraccedilatildeo terem tido iniacutecio nem eacute possiacutevel elas terminarem porque a qualquer geraccedilatildeo segue a corrupccedilatildeo e a qualquer corrupccedilatildeo segue a geraccedilatildeo Se entatildeo a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo terminassem depois da uacuteltima geraccedilatildeo teria uma geraccedilatildeo e depois da uacuteltima corrupccedilatildeo uma corrupccedilatildeo Que a corrupccedilatildeo precede e segue a geraccedilatildeo ele provou pelo caminho do movimento Porque natildeo existe nada gerado sem que haja algo corrompido e desta forma a corrupccedilatildeo precede a geraccedilatildeo e tambeacutem a segue porque tudo que eacute gerado eacute corruptiacutevel e todo corruptiacutevel e corrompido por necessidade Assim tambeacutem a geraccedilatildeo precede a corrupccedilatildeo Porque nada eacute corrompido que natildeo foi gerado antes e segue a geraccedilatildeo porque a corrupccedilatildeo de um eacute a geraccedilatildeo de outro Este erro pois que a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo natildeo comeccedilam nem terminam pode se achar no 1ordm Livro de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) e de forma mais expliacutecita no Livro 2ordm

7 Ainda em razatildeo de a geraccedilatildeo neste mundo inferior acontecer pelo sol Aristoacuteteles foi obrigado de afirmar que o sol ldquonunca deixaraacute de gerar plantas e animaisrdquo como fica evidente do Livro 1ordm de De Vegetalibus (Sobre os Vegetais)

8 Ainda visto que natildeo existe novidade sem movimento anterior conforme o argumento apresentado ele errou querendo que de Deus natildeo possa proceder de forma imediata algo novo como fica claro do Livro 2ordm de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) onde diz que ldquoaquilo que permanece o mesmo sempre produziraacute o mesmordquo

9 Ainda foi obrigado a negar a ressurreiccedilatildeo dos mortos Por isso considera improvaacutevel como fica claro do Livro 1 de De Anima (Sobre a Alma) que os mortos ressurjam Porque no Livro VIIIordm da Metaphysica quer que aquilo que estaacute morto natildeo se torne vivo de novo senatildeo atraveacutes de muitos meios e se reviver natildeo revive o mesmo numericamente porque aquelas coisas cuja substacircncia se perdeu natildeo voltam as mesmas numericamente como afirma no fim do Livro IIordm de De Generatione

Natildeo tem validade que alguns tentam desculpa-lo dizendo que ele fala pela via da natureza quando acredita que nada de novo possa imediatamente proceder de Deus mas que toda coisa nova acontece por meio do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

220

10 Ainda visto que acreditou que nada de novo possa acontecer senatildeo atraveacutes do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza acreditou como se revela no Livro Iordm de Physicae (Fiacutesica) quando argumenta contra Anaxaacutegoras que um intelecto que procura separar paixotildees e acidentes da substacircncia eacute ldquoum intelecto que procura o impossiacutevelrdquo

Desta opiniatildeo parece seguir que Deus natildeo pode fazer um acidente sem substacircncia

11 Ainda visto que atraveacutes do caminho do movimento nunca haacute geraccedilatildeo de alguma coisa se natildeo houver corrupccedilatildeo de outra e que nunca eacute introduzida uma forma substancial se outra natildeo for expulsa porque a mateacuteria eacute a mesma para todas que a possuem disto se segue que natildeo haacute mais formas substanciais num composto do que em outro De fato aquele que prossegue bem neste caminho veraacute que deve ser colocada em todo composto somente uma forma substancial e assim parece ser a posiccedilatildeo do Filoacutesofo Por isso no Livro VIIordm da Metaphysica no capiacutetulo De unitate diffinitionis (Sobre a Unidade da definiccedilatildeo) afirma que as partes de uma definiccedilatildeo natildeo satildeo uno ldquoporque estatildeo num unordquo mas porque indicam uma natureza

Entatildeo se entender uma natureza composta de vaacuterias formas isto eacute toleraacutevel mas se entender uma natureza simples e que num composto haja somente uma forma isto eacute falso

12 Ele afirma ainda que onde haacute agora pacircntano e mar uma vez existiu terra seca e vice versa porque o tempo natildeo para mas eacute eterno como fica claro do Livro Iordm Meteoreorum Consequentemente tambeacutem lhe foi necessaacuterio afirmar que natildeo houve um primeiro homem nem uma primeira chuva

13 Ainda deste modo querendo proceder pela via da natureza acreditou visto que dois corpos natildeo podem existir simultaneamente no mesmo lugar como eacute revelado no Livro IVordm da Physica que era tatildeo absolu-tamente essencial ldquoper serdquo agraves dimensotildees resistir a dimensotildees e que eacute impossiacutevel as dimensotildees continuarem existindo e entretanto natildeo resistir aacutes dimensotildees

Disto se segue que Deus natildeo pode fazer que dois corpos ocupem o mesmo lugar

14 Ainda porque natildeo pertence agrave inteligecircncia o poder de se mover sem se mover em ato porque as inteligecircncias enquanto se movem satildeo colocadas na melhor disposiccedilatildeo ele afirmou que existem tantos anjos e

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

221

tantas inteligecircncias que existem mundos como fica claro no Livro XIIordm da Metaphysica

Mas a Sagrada Escritura contradiz esta posiccedilatildeo quando afirma ldquoMil milhares o serviram e miriacuteades e mais miriacuteades diante delerdquo

Capiacutetulo II Em que num sumaacuterio satildeo reunidos os erros de Aristoacuteteles

Estes entatildeo de forma sumaacuteria satildeo todos os seus erros

1 Que o movimento natildeo tem comeccedilo 2 Que o tempo eacute eterno 3 Que o mundo natildeo teve um comeccedilo 4 Que o ceacuteu natildeo foi feito 5 Que Deus natildeo poderia fazer um mundo diferente 6 Que geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo natildeo tiveram comeccedilo e natildeo teratildeo fim 7 Que o sol sempre causaraacute geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo no mundo

sublunar 8 Que nada de novo pode proceder diretamente de Deus 9 Que a ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute impossiacutevel 10 Que Deus natildeo poderaacute fazer um acidente sem a substacircncia 11 Que em qualquer composto soacute existe uma forma substancial 12 Que natildeo se pode admitir um primeiro homem e uma primeira

chuva 13 Que de maneira alguma podem existir dois corpos num mesmo

lugar 14 Que existem tantos anjos como haacute mundos Por isso concluir-

se-aacute que haacute cinquumlenta e cinco ou quarenta e sete somente

Alguns poreacutem queriam desculpar o Filoacutesofo na questatildeo sobre a eternidade do mundo Mas isto natildeo tem cabimento porque ele - para mostrar as verdades filosoacuteficas - se baseia no mencionado princiacutepio ateacute mesmo natildeo escreveu praticamente nenhum livro sobre filosofia em que natildeo coloca algo ligado a este princiacutepio

Em seguida aleacutem dos erros supramencionados alguns queriam colocar nele (a opiniatildeo) que Deus nada conhece fora de si de tal maneira que natildeo Lhe eacute conhecida este mundo inferior baseando o seu argumento nas palavras que satildeo apresentadas no XIIordm da Metafiacutesica naquele capiacutetulo Sententia Patrum (A opiniatildeo dos Padres) Mas que aqueles que afirmam isto natildeo entendem o Filoacutesofo E que natildeo eacute esta a sua intenccedilatildeo fica claro pelo que se diz no capiacutetulo De Bona Fortuna (Sobre a boa sorte) onde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

222

afirma que para Deus tanto o passado como o futuro satildeo por si conhecidos Haacute outros erros que lhe satildeo atribuiacutedos com que natildeo nos ocupamos aqui porque satildeo oriundos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea

Capiacutetulo III Em que eacute anulada aquela afirmaccedilatildeo que o Filoacutesofo eacute a base de seus erros

Todos os seus erros entretanto se algueacutem o investigar cuidadosa-mente satildeo consequumlecircncias desta sua posiccedilatildeo que no ser nada de novo acontece senatildeo por movimento anterior Poreacutem como isto eacute falso porque Deus em razatildeo de ser o primeiro agente que natildeo age como instrumento poderaacute produzir as coisas sem movimento anterior Aquele que age por natureza tambeacutem age como instrumento porque eacute do modo de ser do instrumento que move movido e necessariamente pressupotildee na sua accedilatildeo o movido A accedilatildeo entatildeo ou a produccedilatildeo do primeiro agente pode ser sem aquele movimento Criaccedilatildeo por isso natildeo eacute um movimento porque o movimento pressupotildee o moacutevel a criaccedilatildeo de fato natildeo pressupotildee nada nem eacute propriamente falando uma mudanccedila porque toda mudanccedila eacute o fim de um movimento mas como se afirma comumente ela eacute uma simples deduccedilatildeo das coisas do primeiro Qualquer coisa por isso que eacute formulada contra o iniacutecio do mundo e contra aquilo que a feacute afirma eacute totalmente sofiacutestica2

Traduccedilatildeo de

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

2 No capiacutetulo IV inicia-se a apresentaccedilatildeo dos erros de Averroacuteis

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

223

RESENHA

MIacuteSTICA DE OLHOS ABERTOS

METZ Johann Baptist Miacutestica de olhos abertos Traduccedilatildeo de Inecircs Antonia Lohbauer Satildeo Paulo Paulus 2013 Coleccedilatildeo Amantes do Misteacuterio 293 p 135 x 21 cm ISBN 978-85-349-3649-1

Johann Baptist Metz eacute um dos teoacutelogos catoacutelicos alematildees mais influentes do poacutes-Vaticano II Eacute membro da Diretoria do Instituto de Ciecircncias Humanas de Viena desde 1983 cofundador e editor da revista Concilium e professor emeacuterito de Teologia Fundamental na Universidade de Muumlnster Ex-aluno do teoacutelogo jesuiacuteta Karl Rahner rompeu com a Teologia Transcendental do mestre para assumir segundo assinala uma teologia arraigada na praacutexis (p191-211) Metz estaacute no centro de uma escola de Teologia Poliacutetica que exerceu intensa influecircncia sobre a Teologia da Libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina A teologia de Metz centraliza-se na atenccedilatildeo ao sofrimento pois natildeo haacute sofrimento no mundo que natildeo diga respeito ao cristatildeo ldquoComo podemos virar as costas para todo esse sofrimento e nos preocuparmos apenas com nossa salvaccedilatildeo e nossa redenccedilatildeordquo (P 16)

A obra sob comentaacuterio eacute uma coleccedilatildeo de textos mais antigos atualizados e recompilados Alguns dos ensaios foram escritos haacute deacutecadas mas suas preocupaccedilotildees ainda satildeo oportunas ou talvez muito mais importantes do que antes Isto porque conforme Metz o Cristianismo eacute cada vez mais uma exigecircncia e um estiacutemulo para uma accedilatildeo em favor de um mundo melhor e mais justo Notaacutevel eacute a maneira pela qual o A chama a atenccedilatildeo para a espiritualidade cristatilde como revoluccedilatildeo da esperanccedila Enquanto o contexto atual enfatiza o aspecto da introspecccedilatildeo da espiritualidade com suas teacutecnicas de meditaccedilatildeo de olhos fechados a Biacuteblia chama a atenccedilatildeo para um aspecto totalmente diferente a Escritura nos acorda e nos manteacutem de olhos abertos O objetivo da espiritualidade biacuteblica eacute nos encaminhar para o outro A biacuteblia nos ensina uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

224

espiritualidade de olhos abertos porque natildeo existe experiecircncia de Deus sem passar pelo outro o qual na maioria das vezes estaacute sofrendo por causa do que Metz chama de ldquocapitalismo predatoacuteriordquo

A primeira parte da obra ldquoPerspectivas Teoloacutegicasrdquo (P 13-49) lembra que o olhar messiacircnico de Jesus (P 19) natildeo eacute dirigido para o pecado mas para o sofrimento do outro (cf Lc 416-21) ldquoEssa sensibilidade messiacircnica ao sofrimento natildeo tem nada a ver com plangecircnciardquo mas com a miacutestica biacuteblica de justiccedila ldquopaixatildeo por Deus como empatia pelo sofrimento alheio como miacutestica praacutetica da compaixatildeordquo (P 19) situando em primeiro lugar natildeo a culpabilidade mas o sofrimento Esse eacute sentido do discurso apocaliacuteptico como tentativa de dar esperanccedila aos sofredores ldquoO apocalipse biacuteblico ldquodesvelardquo a trilha dos sofredores na histoacuteria da humanidaderdquo (P 17) Lamenta-se que os cristatildeos tenham se afastado tanto desse ponto ldquoA doutrina cristatilde da salvaccedilatildeo dramatizou a questatildeo do pecado e negligenciou a questatildeo do sofrimentordquo (P20)

Na segunda parte da obra ldquoMiacutestica do Face-a-face tentativas de aproximaccedilatildeordquo (P 53-211) Metz reuacutene textos variados no estilo de pequenas meditaccedilotildees que objetivam conduzir o leitor para o centro da feacute cristatilde a saber a abertura para Deus que leva a servir o proacuteximo

Na terceira parte intitulada ldquoUma Igreja sem interesse em aprenderrdquo (P 215-250) o Autor trata de modo muito significativo a respeito da crise na Igreja Conforme Metz ateacute mesmo cristatildeos muito engajados nas comuni-dades e na luta pela justiccedila sentem-se cada vez mais incapazes (ou sem vontade) de aprender Eacute no entanto uma igreja aprendiz (disciacutepula) sempre pronta a se abrir para outras perspectivas

Essa obra eacute sem duacutevida fruto de uma rica experiecircncia de vida do velho Teoacutelogo E uma importante contribuiccedilatildeo para o estudo da Teologia da espiritualidade cristatilde Ao fundamentar-se na exigecircncia de partir dos textos biacuteblicos e da praacutexis de Jesus o A retoma a significaccedilatildeo original e o teor teoloacutegico genuiacuteno da espiritualidade cristatilde bem como a atualidade desse tema tatildeo em moda nos nossos dias e tatildeo pouco compreendido

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

225

Apesar de algumas paacuteginas pressuporem debates teoloacutegicos que jaacute natildeo correspondem agraves experiecircncias das geraccedilotildees recentes vale a pena ler esse livro e seguir os conselhos do velho Mestre segundo o qual uma Igreja que quer se renovar deve saber quem ela eacute e a que eacute destinada

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Page 2: Revista Acadêmica da Prainha

Revista Acadecircmica da PrainhaAno X2 JulhoDezembro 2013

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n2 p 117-225 2013

Correspondecircncias K A I R Oacute S ndash Revista Acadecircmica da Prainha ndash ISSN 1807-5096 Endereccedilo Rua Tenente Beneacutevolo 201 - Cep 60160-040 Tel (0xx85) 3453-2150 Fortaleza ndash Cearaacute ndash Brasil

Ficha catalograacutefica

Bibliotecaacuteria responsaacutevel Deusimar Frutuoso de Almeida CRB- 3578

KAIROacuteS Revista Acadecircmica da Prainha Faculdade Catoacutelica de Fortaleza ndash Ano I nordm 1-2 (jandez 2004) - ndash Fortaleza FCF 2004 ndash Semestral ISSN 1807-5096 1 Teologia ndash Perioacutedicos 2 Filosofia ndash Perioacutedicos 3 Ciecircncias Humanas ndash Perioacutedicos 4 Ciecircncias Sociais ndash Perioacutedicos 5 Educaccedilatildeo ndash Perioacutedicos I Faculdade Catoacutelica de Fortaleza

CDD 105 205 305

37005

Eacute proibida a reproduccedilatildeo dos artigos publicados nesta revista sem preacutevia autorizaccedilatildeo Os artigos publicados sua originalidade e redaccedilatildeo satildeo de inteira responsabilidade dos seus autores e natildeo reproduzem necessariamente a opiniatildeo da revista

Kairoacutes ndash Revista Acadecircmica da Prainha Ano Ano X2 JulhoDezembro 2013

Chanceler D Joseacute Antonio Aparecido Tosi Marques Arcebispo Metropolitano de Fortaleza

Diretor e Redator Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Redator adjunto Profa Ms Lisieux DrsquoJesus Luzia de Arauacutejo Rocha Publicaccedilatildeo Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Diretor Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

Secretaacuteria Maria Uyaacutera Feacutelix Beleza Diagramaccedilatildeo Evaldo Amaro dos Santos

CONSELHO CIENTIacuteFICO Prof Dr Carlos Josaphat OP Prof Dr Francisco Manfredo Thomaz Ramos (FCF) Prof Dr Henrique Noronha Galvatildeo (UCP-Lisboa) Prof Dr Luis Alberto De Boni (PUCRS) Prof Dr Manfredo Oliveira (UFC) Prof Dr Maacutercio Fabri dos Anjos Prof Dr Marcus Roberto Nunes Costa (UFP) Prof Dr Maacuterio de Franccedila Miranda SJ (PUC-RJ) Prof Dr Ney de Souza (PUCndashSP-Assunccedilatildeo) Prof Dr Pedro Rubens SJ (UNICAP-PE) Profa Dra Paula Oliveira e Silva (Universidade do Porto)

CONSELHO EDITORIAL Prof Dr Francisco de Aquino Paulino Prof Dr Francisco Evaristo Marcos Prof Dr Joseacute Fernandes de Oliveira Prof Dr Moeacutesio Pereira de Souza Profa Dra Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade Profa DraTacircnia Maria Couto Maia Profa Dra Maria Celeste de Sousa Impressatildeo Graacutefica Encaixe

SUMAacuteRIO I - Seccedilatildeo Teoloacutegica Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira Os ministros da igreja caracteriacutesticas e exigencias 127

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier A teologia de Tiago feacute em accedilatildeo 133

Ir Graccedila Disingakala Nunes Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta 146 II - Seccedilatildeo Filosoacutefica Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

A eacutetica poliacutetica em Maquiavel 161 Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha Sobre a relaccedilatildeo dinacircmica da realidade supra-sensiacutevel segundo Proclo 189 III - Ensaio Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ As fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas do ldquocastelo interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila 208 IV - Traduccedilatildeo Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Comeccedilam os erros dos filoacutesofos Aristoacuteteles Averroacuteis Avicena Algazel Al-Kindi Maimonides coletados por irmatildeo Egiacutedio da ordem de Santrsquo Agostinho 216 V - Resenha Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ Miacutestica de olhos abertos 223

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 125-126 2013

125

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos esta ediccedilatildeo da KAIROacuteS Revista Acadecircmica da Prainha Aleacutem de ser uma manifestaccedilatildeo das pesquisas e estudos do nosso corpo docente eacute um prazer receber contribuiccedilotildees de outros estudiosos - um fator de enriquecimento para a Revista

A Seccedilatildeo Teoloacutegica traz uma rica e austera reflexatildeo sobre os ministros da Igreja o que se deve e se pode esperara deles neste tempo

Como conciliar e unir feacute e accedilatildeo chama a atenccedilatildeo para a carta de Tiago

O artigo sobre vocaccedilatildeo como resposta e natildeo como uma escolha eacute como se fosse uma conclusatildeo dos artigos anteriores

A Seccedilatildeo filosoacutefica traz um bem fundamentado artigo sobre a Eacutetica Poliacutetica em Maquiavel tentando esclarecer seu contexto e significado Um estudo sobre Proclo e sua doutrina a realidade supra-sensiacutevel e seu dinamismo encerra esta seccedilatildeo

No contexto da Miacutestica eacute apresentado um ensaio sobre as fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas da obra ldquoCastelo Interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila

Na Seccedilatildeo traduccedilatildeo um texto de Egiacutedio de Roma que continua o contexto da traduccedilatildeo anterior a aceitaccedilatildeo de Aristoacuteteles na segunda metade do Seacuteculo XIII

Uma Resenha do Livro conhecido teoacutelogo Johanns Metz Miacutestica de olhos abertos encerra este nuacutemero

A todos uma proveitosa leitura

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

126

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

127

OS MINISTROS DA IGREJA CARACTERIacuteSTICAS E EXIGENCIAS1

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

1 O padre servidor do povo

O documento da CNBB nordm 100 ndash Comunidade de comunidades ndash uma nova paroacutequia ndash A conversatildeo pastoral da paroacutequia em seu capiacutetulo 5 tem como tiacutetulo ndash Sujeitos e Tarefas da Conversatildeo Pastoral Reuacutene quais satildeo os sujeitos da referida conversatildeo (bispos presbiacuteteros diaacuteconos permanentes os consagrados e os leigos) Deter-me-ei nos sete nuacutemeros que fazem alusatildeo agrave figura do presbiacutetero (nordm199-205)

Esta parte comeccedila afirmando que o presbiacutetero eacute chamado a ser padre-pastor exprimindo quais suas caracteriacutesticas dedicado generoso acolhedor e aberto ao serviccedilo da comunidade faz referecircncia ao excesso de atividades como um sinal preocupante que pode prejudicar o equiliacutebrio pessoal do padre (cfn 199)

Em algumas comunidades encontram-se presbiacuteteros desencantados cansados Nesta ocasiatildeo o documento em apreccedilo chama a atenccedilatildeo para algo que eacute muito grave e que merece de noacutes presbiacuteteros em especial aos paacuterocos a atenccedilatildeo

A sobrecarga de trabalhos pode dificultar a capacidade de relacionamento dos presbiacuteteros tornando-os apaacuteticos aos sofrimentos dos outros insensiacuteveis aos pobres rude no tratamento de seus paroquianos e incapazes de manifestar a misericoacuterdia e a bondade de Cristo do qual satildeo ministros Eles precisam ser ajudados (nordm 200)

1 Constantes satildeo os apelos do Magisteacuterio da Igreja tanto do Bispo de Roma como dos bispos do Brasil sobre os ministros ordenados Denotam-se caracteriacutesticas agraves quais estes ldquoservidoresrdquo do povo devem corresponder Em trecircs artigos escritos em ocasiotildees diferentes o Padre Almir Magalhatildees faz uma descriccedilatildeo e siacutentese geral das exigecircncias que satildeo a base de um ministeacuterio evangeacutelico adaptado aos nossos dias

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

128

Vivemos numa sociedade do vazio da superficialidade e neste contexto somos entre outras realidades formadores de opiniatildeo com um papel importante na sociedade de fazer a contraposiccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser considerado manipulaccedilatildeo das consciecircncias O documento tambeacutem contribui neste aspecto quando afirma que ldquoOutra preocupaccedilatildeo se refere agrave atualizaccedilatildeo do padre diante das aceleradas mudanccedilas que ocorrem na modernidade Ele pode ficar atrasado no tempo e afastado da realidade No ativismo pode ser que natildeo se dedique ao estudo e natildeo se prepare melhor para escutar e entender os anseios dos que o procuramrdquo (Nordm 201) Afinal de contas apesar de o modelo eclesioloacutegico do Vaticano II ser trinitaacuterio uma eclesiologia de comunhatildeo sob a qual todos satildeo responsaacuteveis pela accedilatildeo evangelizadora ldquoA conversatildeo pastoral da paroacutequia depende muito da postura do presbiacutetero na comunidaderdquo (Nordm 202)

Para que boa parte destas realidades aconteccedila seraacute de fundamental importacircncia que o presbiacutetero acolha bem as pessoas exerccedila a paternidade espiritual sem distinccedilotildees evitando atitude seletiva de privileacutegios a grupos A ou B renovando sua espiritualidade para ajudar tantos irmatildeos que buscam a paroacutequia (Cfnordm 202) Identicamente eacute preciso evitar-se que paroacutequias possam projetar uma imagem contraacuteria daquilo falado ateacute aqui a imagem de uma Igreja distante burocraacutetica e sancionadora (Cfnordm 37)

Devemos melhorar nosso atendimento e a paroacutequia haacute de estabelecer o diverso neste item comeccedilando pelo padre Isto requer que o presbiacutetero cultive profunda experiecircncia de Cristo vivo com espiacuterito missionaacuterio coraccedilatildeo paterno que seja animador da vida espiritual e evangelizador capaz de promover a participaccedilatildeordquo (Nordm 203)

Finalmente o padre deve ser formado para ser servidor do seu povo Eacute por este motivo que deve existir cuidado com o preparo permanente e a formaccedilatildeo nos seminaacuterios de acordo com esta visatildeo pastoral que considera a paroacutequia uma comunidade de comunidades tal como insiste a Igreja no Brasil a respeito da formaccedilatildeo presbiteral (Nordm 205 e Doc 93 da CNBB)

A questatildeo fundamental eacute como superar o ldquomodelordquo atual de paroacute-quia muito mais voltada para a sacramentalizaccedilatildeo conservaccedilatildeo para o modelo expresso no documento aqui refletido ldquoO ministeacuterio sacerdotal tem uma forma comunitaacuteria radical e soacute pode se desenvolver como tarefa coletivardquo (Nordm 204)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

129

2 Tentaccedilotildees dos agentes de pastorais

O tiacutetulo desta reflexatildeo eacute retirado da segunda parte do Capiacutetulo II da Exortaccedilatildeo Apostoacutelica A Alegria do Evangelho do Papa Francisco (Na crise do compromisso comunitaacuterio) Admito que muitos agentes jaacute tiveram acesso a esta Exortaccedilatildeo mas considero que a maioria ainda natildeo teve acesso e desta forma socializo algumas questotildees relevantes desta parte e que tecircm incidecircncia na vida dos agentes de pastoral Uma avaliaccedilatildeo eacute incontestaacutevel o Papa sempre desconcerta

Logo no iniacutecio afirma o Pontiacutefice sua gratidatildeo pela tarefa de quantos trabalham na Igreja e que a nossa tristeza e a vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja natildeo devem fazer esquecer os inuacutemeros cristatildeos que datildeo a vida por amor e agradece o belo exemplo de que datildeo tantos cristatildeos que oferecem sua vida e o seu tempo com alegria (Cfnordm 76)

Em seguida convoca a uma espiritualidade missionaacuteria chamando a atenccedilatildeo para algo que particularmente considero uma peacuterola em termos de anaacutelise da situaccedilatildeo atual ao assinalar que a vida espiritual de muitos agentes se confunde com alguns momentos religiosos que proporcionam algum aliacutevio mas natildeo alimentam o encontro com os outros o compromisso no mundo a paixatildeo pela evangelizaccedilatildeo (Cf nordm 78) Saliento que jaacute vi esta observaccedilatildeo ser feita por outros pastoralistas entretanto quando parte de teoacutelogos geralmente eacute avaliada como tendenciosa fechando-se Agora eacute o Papa Francisco quem faz a afirmaccedilatildeo

Uma tocircnica sua no diaacutelogo com o mundo eacute o encontro com o outro o que natildeo faltou tambeacutem nessa Exortaccedilatildeo ldquoO ideal cristatildeo convidaraacute sempre a superar a suspeita a desconfianccedila permanente o medo de sermos invadidos as atitudes defensivas que nos impotildee o mundo atual Muitos tentam escapar dos outros se fechando na sua privacidade confortaacutevel ou no ciacuterculo reduzido dos mais iacutentimos e renunciam ao realismo da dimensatildeo social do Evangelhordquo (Nordm88) Ele trata deste assunto na mesma Exortaccedilatildeo no Cap IV

Relevante eacute como ele conclui este mesmo nordm 88

ldquoPorque assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual sem carne nem cruz tambeacutem se pretendem relaccedilotildees interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos por eacutecrans e sistemas que se podem acender e apagar agrave vontade Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraccedilar o risco do encontro com o rosto do outro com a sua presenccedila fiacutesica que interpela com os seus sofrimentos e suas reivindicaccedilotildees A verdadeira feacute no Filho de Deus feito carne eacute inseparaacutevel do dom de si mesmo da

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

130

pertenccedila agrave comunidade do serviccedilo da reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros Na sua encarnaccedilatildeo o Filho de Deus convidou-nos agrave revoluccedilatildeo da ternurardquo

Percebam que neste pequeno trecho o Papa nos daacute material para um retiro de no miacutenimo 7(sete) dias pois relembra uma heresia do seacutec II ndash o docetismo que nega a humanidade de Cristo afirmando em outras palavras que hoje tambeacutem faltam nos cristatildeos as relaccedilotildees interpessoais substituiacutedas pela ldquotelinhardquo portanto sem cruz sem encontro na comodi-dade Estamos conectados quase que permanentemente sem preocupaccedilatildeo com o sofrimento dos outros Analisem minuciosamente e comparem com a realidade em que o Papa confere autenticidade da feacute Ela se revela em quatro pontos dom de si mesmo pertenccedila agrave comunidade serviccedilo e reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros

Concluo esta reflexatildeo em primeiro lugar exprimindo que natildeo estou somente me dirigindo aos outros sou um agente de pastoral e vou me confrontando com toda a Exortaccedilatildeo O grande objetivo mesmo eacute convidar a todos os agentes de pastoral a natildeo perderem de vista estes 33 (trinta e trecircs) nuacutemeros e 13 paacuteginas de cunho eminentemente pastoral-espiritual Natildeo seria bom para noacutes neste final de Quaresma ou quem sabe iniacutecio da Paacutescoa visitar estes nuacutemeros dos quais esta reflexatildeo foi apenas uma motivaccedilatildeo

3 ldquoAi de voacutesrdquo

Ao realizar sua missatildeo Jesus teve de enfrentar alguns conflitos e ateacute mesmo provocaacute-los na fidelidade e obediecircncia agrave realizaccedilatildeo da vontade do Pai Via de regra encontramos estes confrontos junto a alguns grupos de seu tempo destacando-se os escribas ou doutores da lei e os fariseus estes uacuteltimos gozando de muita credibilidade junto ao povo de Deus Tal creacutedito se dava pela loacutegica defendida por eles na medida em que pelo cumprimento da lei se visibilizava maior aproximaccedilatildeo a Deus ou natildeo a isto chamamos de legalismo farisaico pois a questatildeo principal de estar proacuteximo a Deus ou natildeo era simplesmente cumprir a lei (Cf todo o confronto sobre o saacutebado comer com as matildeos impuras Cf Mc 7)

O sistema se baseava nos polos ndash puros e impuros A pureza indicava as condiccedilotildees necessaacuterias para algueacutem poder comparecer diante de Deus no Templo (Cf C Mesters Com Jesus na contramatildeo p 24) Neste sentido o povo tinha grande preocupaccedilatildeo com a pureza pois quem natildeo era puro natildeo podia chegar perto de Deus (Mt 99-12)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

131

No capiacutetulo 23 do Evangelho de Mateus (precisamente 23 13-36) Jesus pronuncia os famosos sete ldquoaisrdquo todos eles dirigidos a estes dois grupos e de forma ousada e profeacutetica nesta seccedilatildeo chama-os ora de ldquohipoacutecritasrdquo ora de ldquoguias cegosrdquo de ldquoinsensatosrdquo e de ldquosepulcros caiadosrdquo predomina o adjetivo hipoacutecrita

Evidentemente Jesus natildeo age desta forma manifestando oacutedio para com eles mas fazendo uma catequese para que eles pudessem entrar na dinacircmica da conversatildeo e consequentemente do Reino de Deus na novidade do que ele representava jaacute que o rosto de Deus que eles mani-festavam contradizia frontalmente o Deus que Jesus representava

Do conjunto da coletacircnea de advertecircncias contra escribas e fariseus o termo mais usado eacute hipocrisia por ser uma atitude do sistema religioso que eles representavam fechando-se no seu prestiacutegio e poder julgavam-se justos e santos e disto os Evangelhos datildeo conta (Cf o ex da cena do fariseu e do publicano ndash Lc 18 9-14 a questatildeo do jejum em Mc 218ss) No sistema por eles defendido o que prevalecia de fato eram os ritos externos a formalidade

Com suporte no texto aqui referenciado destaco o versiacuteculo 23 citando-o ldquoAi de voacutes escribas e fariseus hipoacutecritas que pagais o dizimo da hortelatilde da erva-doce e do cominho enquanto descuidais o que haacute de mais grave na lei a justiccedila a misericoacuterdia e a fidelidade eacute isto que era preciso fazer sem omitir aquilordquo

A referecircncia eacute muito clara e natildeo precisa de grandes comentaacuterios acadecircmicos ndash os interlocutores de Jesus como jaacute se sabe viviam da exterioridade da formalidade do cumprimento da lei amplamente denunciado neste capiacutetulo de Mateus Na sequumlecircncia Jesus daacute um ensinamento novo como origem tambeacutem em suas praacuteticas por exemplo confraternizando-se com pessoas impuras como eram os publicanos e pecadores (Mc 2 15-17) tocar em leprosos comer sem lavar as matildeos tocar em cadaacutever e isto evidentemente tornava Jesus na concepccedilatildeo da eacutepoca uma pessoa impura pelo contato com estes pecadores e isto impedia a presenccedila de Deus

Agora vamos puxar a reflexatildeo construindo uma ponte entre a abordagem ateacute aqui desenvolvida e o nosso tempo prefiro proceder assim em primeiro lugar fazendo duas perguntas para vocecirc caro leitor existe algo parecido hoje em dia

Por gentileza interessante natildeo fazer uma interpretaccedilatildeo fundamenta-lista mas levar em consideraccedilatildeo a formalidade as questotildees de visibilidade

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

132

que a Igreja tem hoje por meio de grandes eventos de massa da miacutedia catoacutelica do estilo neopentecostal e a outra indagaccedilatildeo como estaacute sendo considerada a praacutetica da misericoacuterdia ndash a praacutetica da justiccedila e da fidelidade no seguimento de Jesus Cristo Seraacute que estamos na linha da exterioridade e sem esquecer isto estamos deletando a justiccedila da praacutetica de nossos grupos paroacutequias e idem com a misericoacuterdia e a fidelidade

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira eacute padre da Arquidiocese de Fortaleza

Diretor e Professor da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza - FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

133

A TEOLOGIA DE TIAGO FEacute EM ACcedilAtildeO

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier

Resumo A Epiacutestola de Tiago apresenta ensinos praacuteticos e eacuteticos para a vida cristatilde da mesma maneira como o proacuteprio Jesus mostrou que a feacute deveria vir acompanhada de atitudes Poreacutem alguns estudiosos biacuteblicos levantaram criacuteticas agrave epiacutestola de Tiago como se essa fosse contraacuteria agrave justificaccedilatildeo pela feacute Nesse artigo demonstra-se que a feacute e as obras natildeo se contrapotildeem na epiacutestola de Tiago sendo necessaacuterio compreender o contexto da mesma e sua importacircncia para os cristatildeos nos dias de hoje

Palavras-chave Tiago Conduta Cristatilde Feacute e Praacutetica

Abstract The Epistle of James has practical and ethical teachings for the Christian life just as Jesus himself showed that faith should be accompanied by actions However some scholars have raised criticism of the Epistle of James as if this was contrary to the justification by faith In this paper we show that faith and works are not opposed in the Epistle of James it is necessary to understand the context of the same and its importance for Christians today

Keywords James Christian Conduct Faith and Practice Introduccedilatildeo

A epiacutestola de Tiago difere das outras epiacutestolas do Novo Testamento pelo seu estilo conteuacutedo e apresentaccedilatildeo Tiago trata de religiatildeo praacutetica de eacutetica de solidariedade de religiatildeo vivencial A epiacutestola exatamente como Hebreus eacute mais um sermatildeo que uma carta propriamente dita Eacute um sermatildeo ou um ensino ou um tratado e ldquoas indicaccedilotildees satildeo de que foi o primeiro de todos os documentos escritos do Novo Testamentordquo (BAXTER 1989 p 309) O livro foi escrito aproximadamente entre 10 a 15 anos apoacutes a morte de Jesus (SHIDD BIZERRA 2010 p 7) Francis Nichol (1995 p 516) diz que natildeo haacute uma maneira segura para determinar a data da epiacutestola mas aponta a possibilidade da mesma ter sido escrita apoacutes o ano 44 dC

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

134

Neste artigo apresenta-se um panorama da teologia de Tiago com vistas a demonstrar como a feacute pode e deve ser praticada em atos e pala-vras em conformidade com a doutrina de Cristo

Sobre o autor

A Carta de Tiago jaacute provocou muitas discussotildees na histoacuteria da Teologia Uma das principais estaacute relacionada com o seu autor O prefaacutecio indica que o autor foi Tiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo (Tg 11) Mas no Novo Testamento haacute cinco homens chamados Tiago O primeiro eacute o pai de Judas (Lc 616) O segundo eacute um disciacutepulo filho de Alfeu (Mt 103) Este Tiago eacute o irmatildeo de Mateus (Mt 99 e Mc 214) O terceiro eacute chamado Tiago menor (Mc 1540) Talvez fosse chamado ldquomenorrdquo por causa do seu tamanho ou como substituto de Juacutenior (haacute pais que gostam de colocar seus nomes nos filhos) O quarto eacute o irmatildeo de Joatildeo e filho de Zebedeu (Mt 102) Este eacute o que os espanhoacuteis gostam de dizer que eacute o Tiago de Compostela Mas esse foi morto no iniacutecio dos anos quarenta conforme Atos 122 O quinto eacute chamado de ldquoirmatildeo do Senhorrdquo (Gl 119) Jesus possuiacutea um irmatildeo com este nome como aparece em Mateus 1355 Poreacutem apenas dois desses foram apresentados como possiacuteveis autores desta epiacutestola ndash Tiago filho de Zebedeu e Tiago o irmatildeo do Senhor

O primeiro eacute um candidato improvaacutevel Sofreu o martiacuterio em 44 AD e natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que ocupasse posiccedilatildeo de lideranccedila na igreja que lhe desse a autoridade de escrever esta carta geral Embora Isidoro de Sevilha e Dante achassem que ele foi o autor do livro esta identidade natildeo tem sido largamente aceita em nenhum periacuteodo da igreja A opiniatildeo tradicional identifica o autor como sendo Tiago o irmatildeo do Senhor A semelhanccedila da linguagem da epiacutestola com as palavras de Tiago em Atos 15 a forte dependecircncia do escritor da tradiccedilatildeo judia e a consistecircncia do conteuacutedo de sua carta com as notiacutecias histoacutericas que o Novo Testamento daacute em relaccedilatildeo a Tiago o irmatildeo do Senhor tudo tende a apoiar a autoria tradicional (PFEIFER HARRISON 1983 p 325)

Assim pode-se inferir que o autor da epiacutestola seja Tiago irmatildeo de Jesus

Criacuteticas agrave carta de Tiago

Esta epiacutestola tem sido alvo de criacuteticas e comentaacuterios injustos desde o iniacutecio do movimento protestante com Martinho Lutero (1522)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

135

Preocupado em afirmar a doutrina da justificaccedilatildeo pela feacute Lutero foi duro com a carta de Tiago Chamou-a de ldquoepiacutestola de palhardquo (eyne rechte stroerne Epistel) por causa de seu entendimento equivocado do capiacutetulo 2 versos 14 a 16 onde presumiu haver o ensino de justificaccedilatildeo pelas obras (STOTT 1996 p 18) Este pensamento errocircneo de Lutero ainda permanece em muitas mentes Mas deve ser entendido dentro do contexto em que as palavras dele foram proferidas Elas constam de seu prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo da Biacuteblia Alematilde onde ele se expressa sobre os livros que mais mostram a pessoa de Cristo Apoacutes nomeaacute-los disse Lutero ldquoPor isso a epiacutestola de Satildeo Tiago eacute uma epiacutestola bem insiacutepida (eyne rechte stroerne Epistel) se comparada agraves demais [] (LUTERO 1997 p 81)

Este reformador mais tarde modificou sua posiccedilatildeo Assim se expressou Lutero conforme nos diz George (1986 p 371) ldquoQuando Satildeo Tiago e Paulo dizem que um homem eacute justificado pelas obras eles estatildeo combatendo a noccedilatildeo errocircnea daqueles que pensam que a feacute sem obras eacute suficienterdquo

Outro que pode ser considerado injusto com Tiago eacute Champlin (1991 p 536) quando diz que ldquoA epiacutestola de Tiago certamente eacute um documento que representa o cristianismo judaico e natildeo erramos por dizer representa o cristianismo legalistaldquo

Paulo e Tiago

Muitas das criacuteticas se devem agrave aparente contradiccedilatildeo entre Tiago e Paulo no assunto ldquofeacute e obrasrdquo (KUMMEL 1975 p 414-41) Kuumlmmel lista cinco aparentes contradiccedilotildees A mais famosa declaraccedilatildeo de Tiago ldquoa feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) gerou discussatildeo nos primoacuterdios da Reforma Lutero natildeo conseguia conciliar esta declaraccedilatildeo com o que Paulo escreveu ldquoConcluiacutemos pois que o homem eacute justificado pela feacute independente de obras da leirdquo (Rm 328) Especialmente outra declaraccedilatildeo de Tiago estaacute em aparente oposiccedilatildeo ao ensino de Paulo ldquoVerificais que uma pessoa eacute justificada por obras e natildeo por feacute somenterdquo (Tg 224) O curioso eacute que os dois apoacutestolos tardios (isto eacute que natildeo estavam entre os doze) utilizam o mesmo personagem biacuteblico (Abraatildeo) para defender posiccedilotildees aparentemente contraditoacuterias Paulo diz ldquoQue pois diremos ter alcanccedilado Abraatildeo nosso pai segundo a carne Porque se Abraatildeo foi justificado por obras tem de que se gloriar poreacutem natildeo diante de Deus Pois que diz a Escritura Abraatildeo creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo (Rm 41-3) Tiago em contrapartida diz ldquoNatildeo foi por obras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

136

que Abraatildeo o nosso pai foi justificado quando ofereceu sobre o altar o proacuteprio filho Isaquerdquo (Tg 221) Aqui haacute pelo menos uma contradiccedilatildeo verbal (LADD 1997 p 546 MORRIS 2003 p 379) mas seraacute que haacute uma contradiccedilatildeo teoloacutegica

Uma siacutentese da diferenccedila entre Paulo e Tiago dada por Mears (1993) poderaacute resolver essa questatildeo

Tiago eacute a mais praacutetica de todas as epiacutestolas e tem sido chamada ldquoGuia Praacutetico para a Vida e a Conduta Cristatilderdquo Eacute o livro de Proveacuterbios do Novo Testamento Estaacute repleto de preceitos morais Expotildee a eacutetica do Cristianismo Eacute cheio de figuras e metaacuteforas Seu estilo eacute muitas vezes bastante dramaacutetico Obriga a pensar realmente Hebreus apresenta doutrina Tiago apresenta obras Eles se completam num Cristianismo vital Natildeo haacute conflito entre Paulo e Tiago Soacute uma leitura superficial de ambos levaria a essa conclusatildeo Paulo diz ldquoRecebam o Evangelhordquo Tiago diz ldquoVivam o Evangelhordquo Paulo viu Cristo no ceacuteu estabelecendo a nossa justiccedila Tiago viu-o na terra dizendo-nos que sejamos perfeitos como eacute perfeito o seu Pai que estaacute no ceacuteu Paulo deteacutem-se na fonte da nossa feacute Tiago fala do fruto da nossa feacute Eacute preciso natildeo soacute crer mas viver Ainda que Paulo saliente a justificaccedilatildeo pela feacute vemos em suas epiacutestolas especialmente em Tito que ele daacute grande realce agraves boas obras (1 Tm 618) enquanto Tiago fala em ser ricos em feacute (25) Conveacutem notar tambeacutem que quando Tiago parece menosprezar a feacute ele estaacute-se referindo a uma simples crenccedila intelectual e natildeo agrave ldquofeacute salvadorardquo que eacute tatildeo essencial Tiago exalta a feacute Ele diz que a prova dela opera a paciecircncia Sua carta comeccedila e termina com um forte estiacutemulo agrave feacute (16 514-18) Ele denuncia a feacute espuacuteria que natildeo produz obras (MEARS 1993 p 511-512)

Uma siacutentese menor seria

Paulo responde a pergunta Sob que condiccedilatildeo ou condiccedilotildees um pecador pode ser justificado diante de Deus Sua resposta eacute Sob a condiccedilatildeo da feacute a confianccedila de todo coraccedilatildeo em Cristo como Salvador Tiago contesta a pergunta Que classe de feacute salvaraacute a um homem Sua resposta eacute Nenhuma feacute ou credo somente nem sinceramente a crenccedila em Deus como uacutenico mas uma feacute que produz vida reta (CONNER 1951 p 221)

O resumo de Tiago sobre a feacute inoperante eacute ldquoporque assim como o corpo sem espiacuterito eacute morto assim tambeacutem a feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) Foi deste modo que Calvino resolveu a questatildeo O Reformador de Genebra natildeo viu contradiccedilatildeo entre Paulo e Tiago pois entendeu que Tiago falava de uma feacute falsa ldquoPois transparece desde as primeiras palavras que ele fala de uma falsa profissatildeo de feacute pois ele natildeo comeccedila assim lsquose algueacutem tem feacutersquo mas lsquose algueacutem diz que tem feacuterdquo (CALVIN

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

137

1998 Tg 2-14) Calvino portanto natildeo teve a mesma duacutevida de Lutero mas compreendeu o sentido especiacutefico e claro a que Tiago se referia

Os grandes temas de Tiago

O caraacuteter cristatildeo eacute o tema central da epiacutestola Tiago nada fala do Espiacuterito Santo nem mesmo da doutrina da salvaccedilatildeo O autor natildeo trata de doutrinas mas de conduta Natildeo haacute menccedilatildeo alguma a Missotildees Batismo Santa Ceia Cruz e suas implicaccedilotildees A epiacutestola eacute predominantemente eacutetica Dentre os muitos assuntos tratados por Tiago podemos destacar os seguintes

Provas e tentaccedilotildees

A carta dirige-se especialmente aos judeus cristatildeos que viviam entre gentios fora dos limites da Palestina e que sofriam devido as suas convicccedilotildees religiosas (MARTIN 1998)

Tiago escreveu ldquoMeus irmatildeos tende por motivo de toda alegria o passardes por vaacuterias provaccedilotildeesrdquo (Tg 12) Ele completa ldquoBem-aventurado o homem que suporta com perseveranccedila a provaccedilatildeo porque depois de ter sido aprovado receberaacute a coroa da vida a qual o Senhor prometeu aos que o amamrdquo (Tg 112) Soacute a recompensa eterna compensa os sofrimentos desta vida e o cristatildeo deve olhar para aquele dia futuro quando receberaacute o galardatildeo em troca das vicissitudes e isto deve fazer com que se alegre no presente seacuteculo ainda que seja pobre e necessitado

A palavra ldquotentaccedilatildeordquo eacute usada num sentido mais amplo incluindo perseguiccedilotildees externas e solicitaccedilotildees internas ao mal Tiago ensina aos leitores como transformar a tentaccedilatildeo em becircnccedilatildeo fazendo dela uma fonte de paciecircncia e usando-a como o fogo que prova o ouro (PEARLMAN 1997 p 319)

A esse respeito o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia define ldquoTentaccedilotildees (gr Peirasmos) significa provaccedilotildees com um propoacutesito e efeito beneacuteficos ou sejam provaccedilotildees ou tentaccedilotildees divinamente permitidas ou enviadasrdquo (SHEDD 1979 p 1388)

A ecircnfase eacute que a tentaccedilatildeo em si natildeo vem de Deus ldquoNingueacutem ao ser tentado diga Sou tentado por Deus porque Deus natildeo pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo a ningueacutem tentardquo (Tg 113) O verdadeiro instrumento da tentaccedilatildeo segundo Tiago eacute a cobiccedila (Tg 114) Ele diz ldquoEntatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute aacute luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morterdquo (Tg 115) A antropologia de

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

138

Tiago estaacute em perfeita harmonia com o Antigo Testamento e com os demais escritos do Novo Testamento Deus natildeo eacute o autor do mal O pecado surge no ser humano e gera morte O fato de Tiago natildeo mencionar Satanaacutes como tentador natildeo significa que ele natildeo julgasse importante no processo da tentaccedilatildeo e do pecado (Tg 47)

Tiago expotildee como a feacute verdadeira reage em meio aos sofrimentos decorrentes das provaccedilotildees e das tentaccedilotildees A feacute verdadeira gera alegria nas provaccedilotildees e eacute fortalecida em Deus nas tentaccedilotildees

Feacute e obediecircncia

A feacute verdadeira segundo Tiago eacute aquela que implica em obediecircn-cia ou seja a praacutetica da Palavra Ele diz ldquoPortanto despojando-vos de toda impureza e acuacutemulo de maldade acolhei com mansidatildeo a palavra em voacutes implantada a qual eacute poderosa para salvar vossa alma Tornai-vos pois praticantes da palavra e natildeo somente ouvintes enganando-vos a voacutes mesmosrdquo (Tg 12122)

Haacute um eco entre estas palavras e as que Jesus proferiu no final do sermatildeo do monte que compara o ouvir sem praticar a palavra como uma atitude de construir uma casa sobre a areia (Mt 724-27) Ouvir sem praticar eacute como se olhar num espelho e esquecer-se de como se eacute Os espelhos eram de bronze e refletiam mal a imagem da pessoa aleacutem de serem raros Uma pessoa pobre passava meses sem se ver ao espelho Quem ouve e pratica seraacute bem-aventurado (Tg 125) Natildeo praticar a Palavra de Deus eacute um ato de auto-engano pois a proacutepria pessoa seraacute a uacutenica prejudicada A feacute verdadeira eacute a que demonstra a Palavra de Deus na praacutetica A guarda da liacutengua

Tiago preocupado com a questatildeo da liacutengua no sentido de ldquofalar o que natildeo se deverdquo antecipa um pouco do que vai dizer adiante ldquoSe algueacutem supotildee ser religioso deixando de se refrear a liacutengua antes enganando o proacuteprio coraccedilatildeo a sua religiatildeo eacute vatilderdquo (Tg 126) Esclarece o que entende ser a verdadeira religiatildeo ldquoA religiatildeo pura e sem maacutecula para com o nosso Deus e Pai eacute essa visitar os oacuterfatildeos e as viuacutevas nas suas atribulaccedilotildees e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundordquo (Tg 127)

Com o objetivo de exemplificar de modo praacutetico o que considera uma feacute em accedilatildeo Tiago trata sobre o problema da liacutengua Agora ele tem em mente os mestres pois fala sobre o perigo de algueacutem utilizar a liacutengua

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

139

de modo errado neste sentido (Tg 31-12) Do mesmo modo expotildee sobre as dissensotildees dentro da comunidade como algo contraacuterio aacute feacute (Tg 313-18) Trata novamente sobre a cobiccedila (Tg 41-3) da vida mundana e da necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 44-10) Enfatiza os relacionamentos pessoais na igreja e na necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 411-17) A feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica de obras eacute uma feacute em accedilatildeo

Natildeo fazer acepccedilatildeo

Tiago analisa a incompatibilidade de algueacutem crer em Jesus e fazer acepccedilatildeo de pessoas

Meus irmatildeos natildeo tenhais a feacute em nosso Senhor Jesus Cristo Senhor da gloacuteria em acepccedilatildeo de pessoas Se portanto entrar na vossa sinagoga algum homem com aneacuteis de ouro nos dedos em trajos de luxo e entrar tambeacutem algum pobre andrajoso e tratardes com deferecircncia o que tecircm trajos de luxo e lhe disserdes Tu assenta-te aqui em lugar de honra e disserdes pobre Tu fica ali em peacute natildeo fizestes distinccedilatildeo entre voacutes mesmos e natildeo vos tornastes juiacutezes tomados de perversos pensamentos (Tg 21-4)

Apesar da maioria dos crentes para os quais Tiago ensinava ser de classe baixa parece que eles como eacute proacuteprio agraves vezes dos pobres tratavam bem os ricos e mal os pobres Tiago diz que isto eacute uma feacute incoerente No texto ele fala da ldquosinagogardquo e natildeo da igreja o que evidencia o aspecto judaico da carta e aponta para sua antiguidade Para Tiago fazer acepccedilatildeo de pessoas eacute quebrar a lei (Tg 2 9-10) A questatildeo polecircmica da carta

Jaacute tratamos disto em momentos anteriores e podemos deixar de emitir mais consideraccedilotildees Vamos apenas acrescentar isto a preocupaccedilatildeo de Tiago eacute primariamente praacutetica (CARBALLOSA 1994 p 70) e parece oacutebvio que ele respondia a algum tipo de questionamento antinomista pois rebatia a crenccedila de que uma pessoa pode ser salva sem que demonstre qualquer mudanccedila de vida

Por isso ele diz que no caso de Abraatildeo ldquofoi pelas obras que a feacute se consumourdquo (Tg 222) Paulo por outro lado estaacute respondendo a outro tipo de questionamento Ele combate a noccedilatildeo judaica daqueles dias de que uma pessoa era salva pela feacute e pelas obras como se as obras natildeo fossem apenas uma evidecircncia da feacute mas um instrumento real de salvaccedilatildeo Eacute oacutebvio que se algueacutem lhe dissesse que uma pessoa pode ser salva sem experimentar uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

140

transformaccedilatildeo Paulo certamente responderia ldquonatildeordquo pois embora sejamos salvos pela graccedila Deus tem preparado uma vida de boas obras para que andemos nelas (Ef 28-10) Ellen G White (1892) declarou que ldquoas boas obras se seguiratildeo como as floraccedilotildees e frutos da feacute A apropriaccedilatildeo da justiccedila de Cristo seraacute manifestada numa vida bem ordenada e na conversaccedilatildeo santardquo

Do mesmo modo se perguntassem a Tiago se a lei precisa ser obedecida para que algueacutem seja salvo como um meio de completar a feacute certamente ele diria que somos salvos pela feacute e que as obras satildeo apenas a evidecircncia de que ela existe Natildeo haacute contradiccedilatildeo teoloacutegica entre Paulo e Tiago suas respostas aparentemente divergentes explicam a razatildeo dos propoacutesitos de cada autor Assim a Reforma Protestante resolve o conflito quando declara ldquoEacute a feacute que salva sozinha mas a feacute que salva nunca estaacute sozinhardquo

Denuacutencia contra os ricos

ldquoPaciecircnciardquo eacute a palavra chave para resumir o ensino do capiacutetulo 51-6 sendo um dos temas predominantes de toda a carta de Tiago ldquoEvidentemente muitas das pessoas humildes dentre os judeus cristatildeos estavam sendo oprimidos pelos ricos e seus salaacuterios eram retidos com fraude (54)rdquo (MEARS 1993 p 517-518) Os cristatildeos pobres daqueles dias deveriam ter paciecircncia e esperar o momento da libertaccedilatildeo que viria de Deus e viver na praacutetica a feacute que salva

Sobre a denuacutencia de Tiago contra os ricos assim se expressa o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia ldquoEsta seccedilatildeo apresenta uma severa denuacutencia contra os ricos que tecircm granjeado prosperidade mediante opressatildeo Os tais satildeo condenados natildeo por serem ricos mas porque suas riquezas foram mal adquiridas permanecendo sobre elas as marcas da corrupccedilatildeordquo (SHEDD 1979 p 1388)

Jaacute o Comentaacuterio Biacuteblico Adventista por sua vez esclarece ldquoO contexto imediato implica que os ldquoricosrdquo satildeo exemplos notaacuteveis de quem tecircm muitas oportunidades para fazer o bem mas evitam fazecirc-lo Estes ldquoricosrdquo podem ser ou natildeo membros da igrejardquo (NICHOL 1995 p 553)

A mensagem de Tiago era evidente para seus leitores ldquoos opressores ainda pagaratildeo por tudo o que tecircm feitordquo Mas o povo de Deus deveria ser paciente pois natildeo haacute como antecipar o juiacutezo de Deus ldquoSede pois irmatildeos pacientes ateacute a vinda do Senhor Eis que o lavrador aguarda com paciecircncia o precioso fruto da terra ateacute receber as primeiras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

141

e as uacuteltimas chuvas Sede voacutes tambeacutem pacientes e fortalecei o vosso coraccedilatildeo pois a vinda do Senhor estaacute proacuteximardquo (Tg 578)

As chuvas do fim do outono e do comeccedilo da primavera que datildeo condiccedilotildees agrave terra de produzir natildeo podem ser antecipadas por causa do desejo ou da ira do homem Elas vecircm no tempo certo Resta ao lavrador esperar que a chuva venha e de nada adiantaraacute ele se agitar se irar ou fazer qualquer outra coisa pois seraacute apenas perda de tempo de energia e mais acuacutemulo de sofrimento Como o agricultor tem certeza de que a chuva viraacute ele deve descansar pois deve ter uma esperanccedila confiante Do mesmo modo o cristatildeo sabe que Jesus voltaraacute e ainda que ele natildeo saiba quando deve esperar confiantemente pois Jesus viraacute

Julgamentos precipitados

Tiago orienta os crentes a se absterem de julgamentos precipitados ldquoIrmatildeos natildeo vos queixeis uns dos outros para natildeo serdes julgados Eis que o juiz estaacute agraves portasrdquo (Tg 59) Natildeo eacute totalmente certo se ele fala em relaccedilatildeo aos proacuteprios crentes ou se o assunto ainda satildeo os iacutempios que os oprimem mas eacute bastante plausiacutevel que estes uacuteltimos estejam em foco Do mesmo modo que os crentes do Antigo Testamento foram pacientes em meio ao sofrimento os cristatildeos deveriam ser agora ldquoIrmatildeos tomai por modelo no sofrimento e na paciecircncia os profetas os quais falaram em nome do Senhor Eis que temos por felizes os que perseveram firmes Tendes ouvido da paciecircncia de Joacute e vistes que fim o Senhor lhe deu porque o Senhor eacute cheio de terna misericoacuterdia e compassivordquo (Tg 51011)

A paciecircncia dos santos do passado especialmente o mais conhecido de todos neste sentido Joacute eacute evocada como exemplo de que o Senhor faz justiccedila aos seus Tiago natildeo entende que os cristatildeos devem demonstrar uma paciecircncia moacuterbida mas insiste que eles tecircm em suas matildeos uma arma poderosa a oraccedilatildeo Ele diz ldquoEstaacute algueacutem entre voacutes sofrendo Faccedila oraccedilatildeordquo (Tg 513) A oraccedilatildeo eacute o instrumento dos crentes em meio a tribulaccedilatildeo A oraccedilatildeo pode trazer cura (Tg 515) e perdatildeo (Tg 516) Para comprovar que a oraccedilatildeo tem muito poder Tiago cita Elias reconhecido como um dos profetas mais poderosos ldquoElias era homem semelhante a noacutes sujeito aos mesmos sentimentos e orou com muita insistecircncia para que natildeo chovesse sobre a terra e por trecircs anos e seis meses natildeo choveu E orou de novo e o ceacuteu deu chuva e a terra fez germinar seus frutosrdquo (Tg 51718)

Tiago enfatiza que Elias era um homem sujeito aos mesmos sofrimentos e limitaccedilotildees que os seus leitores mas pela oraccedilatildeo realizou

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

142

feitos formidaacuteveis Os crentes devem ter paciecircncia orar pois Deus pode mudar as situaccedilotildees dramaacuteticas por intermeacutedio da oraccedilatildeo As uacuteltimas palavras de Tiago satildeo um lembrete aos crentes de que devem se preocupar com os desviados dos caminhos de Deus (Tg 51920)

Haacute outros temas mais mas a relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus (que seraacute apresentada a seguir) poderaacute completar aleacutem de recordar alguns pontos jaacute tratados

A relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus

Tiago pode natildeo ter o brilho intelectual de Paulo mas seu conteuacutedo em nada difere do que o Salvador ensinou E dos apoacutestolos ele foi o que mais tempo viveu com Jesus Pelo menos a infacircncia e a adolescecircncia dos dois foram juntas O ensinamento de Jesus pode ser visto em toda a epiacutestola de Tiago

1 O cristatildeo que sofre provaccedilotildees eacute abenccediloado Tiago 12 e Mateus 510-12

2 Deus deseja que sejamos perfeitos Tiago 14 e Mateus 548

3 Ele daacute generosamente aos que lhe pedem Tiago 15 e 42 Mateus 77-8

4 Mas somente o Pai tem poder para dar boas daacutedivas Tiago 117 e Mateus 79 -11

5 E neste caso ele daacute somente aos quem tecircm feacute Tiago 16 e Marcos 11 22-24

6 Devemos natildeo apenas ouvir a palavra Mas praticaacute-la Tiago 122-25 e Mateus 7 21-27

7 Devemos tomar cuidado com as riquezas porque os pobres eacute que herdam o reino de Deus Tiago 25 e Mateus 53 Lucas 620

8 Devemos amar o proacuteximo como a noacutes mesmos Tiago 28 e Marcos 1231

9 Devemos guardar os mandamentos Tiago 210 e Mateus 519

10 Devemos mostrar misericoacuterdia para recebermos misericoacuterdia Tiago 213 e Mateus 57 1833-35

11 Eacute a aacutervore que determina o fruto Tiago 312 e Mateus 715-20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

143

12 Os pacificadores seratildeo abenccediloados Tiago 318 e Mateus 59

13 Natildeo eacute possiacutevel servir a dois senhores Cada um deve escolher entre Deus e o dinheiro Tiago 44 413-15 e Mateus 624

14 Quem se humilha seraacute exaltado Tiago 46 e 10 e Lucas 1814 Comparar isto com Tiago 19-10 e Lucas 152

15 Natildeo devemos falar mal uns dou outros ou julgar uns aos outros Tiago 412 e Mateus 71

16 Natildeo devemos elaborar planos gananciosos e mundanos para obter ganhos esquecendo-nos de Deus ou do proacuteximo Tiago 413-17 e Lucas 1216-21

17 As riquezas natildeo duram Elas se corroem as roupas satildeo consu-midas pelas traccedilas e o ouro fica embaccedilado com a ferrugem Tiago 51-3 e Mateus 619-21

18 Por isso ai dos ricos Tiago 51 e Lucas 624

19 Quem crecirc que espere pacientemente e esteja pronto para a vinda do Senhor pois ele estaacute perto agraves portas Tiago 57-9 e Lucas 1235-40 Marcos 1329

20 Os cristatildeos natildeo devem jurar nem pelo ceacuteu nem pela terra nem por qualquer outro meio de juramento Sua palavra deve ser confiaacutevel Seu sim deve ser sim e seu natildeo deve ser natildeo Suas palavras natildeo podem ter duplo sentido Tiago 512 e Mateus 533

Tiago reafirma Jesus como um homem com um ensino praacutetico e praticaacutevel O cristianismo eacute vida e natildeo sensaccedilotildees Vida correta com Deus que se evidencia em vida correta com os homens

Consideraccedilotildees finais

Percebe-se que a mensagem de Tiago eacute clara e simples Ele fala sobre a feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica pelas obras Esta feacute leva os crentes a suportarem todo tipo de sofrimento a demonstrarem a conversatildeo pelas boas obras e a esperarem em oraccedilatildeo pelo retorno de Jesus ou pela manifestaccedilatildeo libertadora de Deus

Mesmo simples a carta de Tiago eacute rica e teologicamente impor-tante de modo que natildeo concordamos com a ideia de Richardson (e de Lutero) de que eacute uma ldquoepiacutestola de palhardquo (RICHARDSON 1966 p 240

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

144

BACLAY 1974 p 16) em comparaccedilatildeo com a profunda solidez da Epiacutestola aos Romanos Ela ocupa um lugar importante no cacircnon e na Teologia do Novo Testamento responsaacutevel pela ampliaccedilatildeo do entendi-mento de um conceito essencial para a feacute do Novo Testamento o relacionamento entre feacute e obras

Termino deixando uma pergunta Se Tiago ocupasse o puacutelpito contemporacircneo que diria ele aos membros e liacutederes de nossas igrejas

Referecircncias Bibliograacuteficas

BACLAY W S I y II Pedro Buenos Aires Editorial La Aurora 1974

BAXTER S J Examinai as escrituras ndash atos a apocalipse Satildeo Paulo Ediccedilotildees vida Nova 1989

CALVIN J Commentary on the espistole of the James Albany Books for the Ages 1998

CARBALLOSA E L Tiago Una fe em accioacuten 6 ed Grand Rapids Editorial Portavoz 1994

CHAMPLIN R N Enciclopeacutedia de Biacuteblia teologia e filosofia v 6 Satildeo Paulo Editora e Distribuidora Candeia 1991

CONNER W T La fe del nuevo testamento Nashvill Casa Bautista de Publicaccedilotildees 1951

GEORGE T In ldquoA rigth strawy epistle reformation perspective on Jamesrdquo Louisville Review and Expositor ndash a baptist theological journal v LXXXIII n 3 1986

KUumlMMEL W G Introduction to the new testament Nashvill Abingdon Press 1975

LADD G E Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Exodus 1997

LUTERO Martinho Da liberdade do cristatildeo ndash prefaacutecio agrave Biacuteblia (Ediccedilatildeo Biliacutengue) Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo da Editora Unesp 1997

MARTIN R P Word biblical commentary v 48 James Dallas Texas Word Books Publisher 1998

MEARS H C Estudo panoracircmico da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida 1993

MORRIS Leon Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2003

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

145

NICHOL F D (ed) Comentario biblico adventista del septimo dia Tomo 7 Buenos Aires Asociacion Casa Editora Sudamericana 1995

PEARLMAN M Atraveacutes da Biacuteblia livro por livro Satildeo Paulo Vida 1997

PFEIFER F C HARRISON E F Comentaacuterio biacuteblico Moody v IV Satildeo Paulo Imprensa Batista Regular 1983

RICHARDSON Alan Introduccedilatildeo agrave teologia do novo testamento Satildeo Paulo ASTE 1966

SHEDD R P (ed) O novo comentaacuterio da Biacuteblia v III Satildeo Paulo Ediccedilotildees Vida Nova 1979

SHEDD R P BIZERRA E F Uma exposiccedilatildeo de Tiago a sabedoria de Deus Satildeo Paulo Shedd Publicaccedilotildees 2010

STOTT J Homens com uma mensagem Campinas Editora Cristatilde Unida 1996

WHITE E G Signs of the times 5 de setembro de 1892

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier Doutor em Teologia e professor nos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graducaccedilatildeo

do Seminaacuterio Adventista Latino Americano de Teologia ndash Cachoeira BA

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

146

A VOCACcedilAtildeO NAtildeO Eacute UMA ESCOLHA MAS UMA RESPOSTA

Ir Graccedila Disingakala Nunes

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo Tentativa de responder a trecircs questotildees fundamentais sobre a vocaccedilatildeo entendida como chamado de Deus valendo-se de muitos autores mas principalmente da contribuiccedilatildeo de Gianfranco Poli Natildeo vai certamente exaurir o assunto mas eacute uma chamada de atenccedilatildeo agraves escolas teoloacutegicas para que trabalhem este argumento de um modo mais aprofundado O tema pesquisado eacute a vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta Discorre-se entatildeo acerca de sua origem e significado o porquecirc de uma teologia da vocaccedilatildeo as caracteriacutesticas do chamado a relaccedilatildeo de intimidade com a pessoa de Jesus Cristo a resposta incondicional do homem Evidenciam-se tambeacutem os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde o discernimento as exigecircncias que o chamado comporta e de modo muito breve as dimensotildees que compotildeem fundamentalmente a resposta do homem e as consideraccedilotildees finais Toda essa dinacircmica eacute realizada mediante uma relaccedilatildeo dialogal entre as duas liberdades a de Deus que chama e a do homem que responde

Palavras-chave Deus-Trindade Vocaccedilatildeo ou Chamado Homem Encontro Igreja

Riassunto Questo articolo egrave un tentativo di rispondere a ter domande fondamentali sulla vocazione intesa come chiamata di Dio servendosi di tanti autori ma sopratutto dela contribuizione di Gianfranco Poli Non va sicuramente esaurire lrsquoassunto ma visa a scuotere lrsquoattenzione dele scuole teologiche percheacute lavorino la questione vocazione in modo piugrave profondo Il tema svolto egrave la vocazione non `e una scelta ma una risposta Si sviluppa quindi sua origine e significato il perchegrave di una teologia dela vocazione le caratteristiche della chiamata la relazione di intimitagrave com la persona di Cristo Gesugrave la risposta incondizionata dellrsquouomo Sono noti anche gli elementi centrali dela vocazione cristiana il discernimento le esigenze che la chiamata di Dio comporta e si fa cenno alle dimensioni che essenzialmente compongono la risposta dellrsquouomo e per ultimo le considerazioni finali Tutta la dinamica egrave svolta attraverso una relazione dialogica tra le due libertagrave di Dio che chiama e dellrsquouomo che risponde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

147

Parole chiavi Dio-Trinitagrave Vocazione o Chiamata Uomo Incontro Chiesa

1 Introduccedilatildeo

Haacute no Brasil e no mundo muitos escritos sobre vocaccedilatildeo mas falta uma teologia da vocaccedilatildeo ldquoFalta ainda um estudo sistemaacuteticordquo deste argumento Haacute pouco interesse nas escolas teoloacutegicas e entre os teoacutelogos no sentido de aprofundar este assunto1 A ausecircncia de fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica das vocaccedilotildees eacute negativa enquanto a praacutexis permanece sem fundamentaccedilatildeo conforme constatou Joseacute Lisboa Moreira de Oliveira na sua Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo2 Eacute tatildeo verdade o fato de o tema vocaccedilatildeo carecer de estudo sistemaacutetico que outros autores fazem esta constataccedilatildeo Exemplo Gianfranco Poli na sua exposiccedilatildeo sobre o assunto Tra vocazione e domanda di senso natildeo hesita em afirmar que a palavra vocaccedilatildeo eacute muitas vezes usada e repetidamente mas raramente se precisa o seu conteuacutedo

Advertimos para a necessidade natildeo soacute no Brasil mas tambeacutem no mundo de explicitar o que entendemos acerca de vocaccedilatildeo Para isso Gianfranco Poli trata a vocaccedilatildeo em trecircs momentos esclarecer o sujeito que chama colocar em realce os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde oferecer algumas indicaccedilotildees a respeito do homem que responde ou simplesmente eacute possiacutevel indicar estes trecircs momentos formulando trecircs perguntas quem chama A que coisa chama Em que modo se responde3

Eacute a essas perguntas que tentaremos responder com suporte na abordagem de Gianfranco Poli oferecendo ao assunto vocaccedilatildeo mais um subsiacutedio sem a pretensatildeo de exauri-lo

O tema eacute estruturado com uma introduccedilatildeo cinco partes e suas subdivisotildees Iordf parte Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo Por que teologia da vocaccedilatildeo Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo IIordf parte Dimensatildeo Trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde A vocaccedilatildeo do homem Quem chama Por que chama Para que chama Como chama IIIordf parte Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde Como saber que eacute Deus quem me chama A vocaccedilatildeo natildeo eacute 1 Cf DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992 nordm 244 2 OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996) p 22-31 3 Cf POLI Gianfranco ldquoLa cultura della vocazione tra vocazione e domanda di sensordquo in BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teologica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010 p 20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

148

uma escolha mas uma resposta Como responder Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees Consideraccedilotildees finais

2 Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo

Vocaccedilatildeo eacute um termo derivado do verbo latino vocare que significa chamar Vocaccedilatildeo eacute assim chamado convite apelo Eacute ato de chamar da parte de Deus eacute um estado de relaccedilatildeo entre Deus e o homem eacute diaacutelogo porque haacute atenccedilatildeo para com o outro Vocaccedilatildeo eacute encontro de duas liberdades a liberdade absoluta de Deus que chama e a liberdade do homem que responde Vocaccedilatildeo eacute um dom que exige resposta de feacute

Sendo um ato que brota do mais profundo do ser a vocaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com a inclinaccedilatildeo para exercer determinada profissatildeo ou um talento (aptidatildeo natural) para executar algo alguma atividade A vocaccedilatildeo eacute um chamado para amar eacute chamado ao serviccedilo (1Jo 47-21 Mc 1045) eacute a realizaccedilatildeo de um sonho

Na Biacuteblia vocaccedilatildeo estaacute em estreita relaccedilatildeo com eleiccedilatildeo e missatildeo4 Eleiccedilatildeo significa escolher um ou alguns entre tantos eacute uma predileccedilatildeo De tal maneira vocaccedilatildeo eacute um dom com o qual Deus preferiu a mim a vocecirc e natildeo a outro natildeo por merecimentos nossos mas por puro amor e em vista de uma missatildeo especiacutefica que a pessoa chamada vai desccedilo-brindo ao longo da sua vida visto que vocaccedilatildeo eacute um estado de relaccedilatildeo com Deus

21 Por que uma teologia da vocaccedilatildeo

A vocaccedilatildeo eacute um ato teoloacutegico e antropoloacutegico porque envolve Deus e o homem Eacute dom que vem do Alto iniciativa do Pai ldquoque atrai a Si uma criatura sua por um amor de predileccedilatildeo e em ordem a uma missatildeo especialrdquo5 Eacute Deus que no iacutentimo inspira agrave alma o desejo de abraccedilar o projeto de Deus seja no matrimocircnio como na vida consagrada O fato de Deus escolher algueacutem com amor de predileccedilatildeo no entanto natildeo obriga a pessoa escolhida porque sua eleiccedilatildeo se torna convite diante do qual ela eacute livre para responder sim ou natildeo Ao mesmo tempo poreacutem Deus tem um jeito todo particular de se aproximar do homem que quase

4 VOCACcedilAtildeO in CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997 5 Cf JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996 n 17

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

149

ningueacutem resiste em responder sim Acontece exatamente o que acentua Jeremias ldquoseduzistes-me Senhor e eu me deixei seduzirrdquo (cf Jr 207)

22 Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo

Pela sua natureza dialoacutegica a vocaccedilatildeo eacute relacional comunitaacuteria missionaacuteria e dinacircmica A origem de toda a vocaccedilatildeo estaacute na relaccedilatildeo com a Santiacutessima Trindade ()6 Soacute quem ficou seduzido (Jr 207) e permanece na intimidade (Os 216 1Ts 417 Jo 1724 1Pd 51) pode entender a beleza e a riqueza desta peacuterola preciosa

O diaacutelogo pessoal com Deus tambeacutem eacute comunitaacuterio nos dois sentidos de um lado acontece numa comunidade bem concreta (Mt 2531-46) de outro Deus chama mediante o ldquoclamorrdquo do povo que sofre (cf Ex 31-10 Jr 114-10) A vocaccedilatildeo eacute comunhatildeo com a Trindade que se traduz concretamente na experiecircncia de verdadeira irmandade Ela eacute comunicaccedilatildeo isto eacute vida de comunhatildeo e de participaccedilatildeo Responder ao chamado eacute inserir-se na vida da comunidade com uma missatildeo bem precisa tomar parte ativa na construccedilatildeo do Reino Vocaccedilatildeo natildeo eacute isolamento busca de satisfaccedilotildees de ldquorealizaccedilatildeo pessoalrdquo Natildeo eacute realizar ldquoprojetos pessoaisrdquo mas dar a vida pela defesa da vida (Jo 1011 1513)

3 Dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde

Desde o Concilio Vaticano II a vocaccedilatildeo eacute vista como chamado agrave comunhatildeo com o Pai pelo Filho no Espiacuterito Santo7 O segundo Congresso Internacional das vocaccedilotildees (Roma 1981) no seu documento conclusivo explicita de forma definitiva e muito clara esta dimensatildeo trinitaacuteria ldquoCada vocaccedilatildeo estaacute ligada ao desiacutegnio do Pai agrave missatildeo do Filho agrave obra do Espiacuterito Santo Cada vocaccedilatildeo eacute iluminada e fortalecida agrave luz do misteacuterio de Deusrdquo8

O Papa Bento XVI ressalta esta dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo quando afirma logo no iniacutecio de sua primeira mensagem vocacional que ldquoo Pai do ceacuteu nos escolheu pessoalmente para nos chamar a entrar em

6 CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla Satildeo Paulo Paulinas 2004 13 Ed nordm 212 7 Cf VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM Satildeo Paulo Paulinas 1999 13ordf Ed nordm 4 8 II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Vocacional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982 nordm 7

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

150

relaccedilatildeo filial com Ele por meio de Jesus Verbo feito carne sob a guia do Espiacuterito Santo9rdquo 31 A vocaccedilatildeo do homem

O homem existe porque Deus lhe dirigiu a palavra o chamou agrave existecircncia convocando-o para ser Seu interlocutor A vocaccedilatildeo eacute a palavra que Deus dirige ao homem e que o faz existir imprimindo nele a marca dialogal Se o homem foi criado pela conversaccedilatildeo com Deus e eacute assim aquele que eacute chamado a falar a expressar-se a comunicar-se a responder o tempo que tem a disposiccedilatildeo pode ser entendido como o tempo para realizar sua vocaccedilatildeo

Ora em que consiste a vocaccedilatildeo do homem senatildeo na sua plena realizaccedilatildeo no amor ao interno do princiacutepio dialoacutegico no qual foi criado com Deus como primeiro interlocutor ldquoVocaccedilatildeo entatildeo eacute um processo de maturaccedilatildeo de relaccedilotildees que culmina no amor a Cristo que eacute a plena realizaccedilatildeo do amor na sua pessoa10rdquo Em satildeo Paulo encontramos a confirmaccedilatildeo desta verdade ldquoqualquer coisa o homem faccedila fora do seu amor natildeo serve a nada aliaacutes eacute vatilde e esperdiacutecio de tempordquo (1Cor 13)

32 Quem chama

O sujeito e autor de todo o chamado eacute Deus Eacute preciso poreacutem entender por que Deus chama qual intenccedilatildeo O move de qual vontade eacute animado Um texto de Paulo aos Efeacutesios nos abre horizontes infinitos

Bendito seja Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que do alto do ceacuteu nos abenccediloou com toda a becircnccedilatildeo espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criaccedilatildeo do mundo para sermos santos e irrepreensiacuteveis diante de seus olhos No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo segundo o beneplaacutecito de sua livre vontade (Ef 13-5)

Nossa existecircncia tem raiz no coraccedilatildeo de Deus que nos desejou ldquofaccedilamos o homem agrave nossa imagem como nossa semelhanccedilardquo (Gn 1 26a) que desde a eternidade nos quis como ldquofilhos adotivosrdquo agrave imagem do seu Filho Jesus Existir eacute a primeira e fundamental vocaccedilatildeo do ser humano (cf Gn 27) As outras vocaccedilotildees dela decorrem e nela se sustentam Eacute o amor agrave

9 BENTO XVI A primeira mensagem vocacional in httpwwwportalcatolicoorgbr portala-primeira-mensagem-vocacional-de-bento-xvi Acesso em 040452015 10Cf RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000 p 21-22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

151

vida que possibilita se empenhar em tantas outras dimensotildees da existecircncia humana

33 Por que chama Os motivos do chamado

Vocaccedilatildeo eacute accedilatildeo de chamar por parte de Deus como sua iniciativa de amor corresponsaacutevel (Is 591 Jr 15 Rm 912 Gl 115 58) Deus chama porque ama (cf Dt 76-8 236 Jo 1516 Mc 312) Segundo a Biacuteblia missatildeo eacute o elemento central da vocaccedilatildeo11 Quando Deus chama algueacutem o faz para uma missatildeo a fim de fazer alguma coisa em funccedilatildeo de uma pessoa ou de uma comunidade A missatildeo eacute sempre um encargo

ldquoDeus criou-nos para compartilhar a sua proacutepria vida chama-nos para sermos seus filhos membros vivos do Corpo miacutestico de Cristo templos luminosos do Espiacuterito do Amor Chama-nos para ser ldquoseusrdquo quer que todos sejam santos12rdquo

Ante o chamado que Deus faz a cada um de noacutes eacute preciso ter coragem para deixar tudo se abandonar por inteiro ir aonde Ele mandar e fazer aquilo que Ele pedir Coragem eacute um dos passos mais importantes para um caminho vocacional bem-sucedido Eacute preciso ter coragem para entregar-se nas matildeos do bom oleiro e deixar-se moldar para enfrentar todas as tempestades do caminho todas as vicissitudes Coragem pra deixar tudo e dizer Sim a Deus

Natildeo temas ldquoCoragem Levanta-te ele te chamardquo (Mc 10 49) Ama-te e conta contigo para estabelecimento de um Reino de amor que jamais teraacute fim Amor eacute a origem e o fim de toda vocaccedilatildeo e o Deus que nos criou sem noacutes natildeo nos salva sem noacutes constata Santo Agostinho Somos chamados a colaborar no plano da salvaccedilatildeo Ele precisa do teu sim generoso e gratuito

34 Para que chama

A autoria de Deus sobre o chamado eacute contiacutenua Todos os dias Deus chama o homem para uma vida de relaccedilatildeo filial para elevaacute-lo agrave comunhatildeo com a Trindade

11wwwparoquiasaobeneditongorgbrblogp=1087 Acesso em 29102015 12JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iiptmessagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes _29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em em 29102015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

152

O uacutenico e mesmo Espiacuterito distribui seus dons a cada um conforme quer para que todo dom sem exceccedilatildeo seja para utilidade de todos para o bem da comunidade (cf 1Cor 127 11)Todo chamado eacute voltado para servir para dar sentido agrave proacutepria existecircncia doando-se

Ao se falar da vocaccedilatildeo a palavra sentido pode significar possibi-lidade e capacidade de siacutentese na proacutepria accedilatildeo cotidiana como tambeacutem abertura a um futuro em que o sentido da proacutepria vida seja menos contraditoacuterio ou contudo mais feliz e harmonioso Entatildeo a finalidade do chamado eacute de um movimento rotatoacuterio que tem como eixo Deus O ponto de partida e de chegada eacute Deus

Quanto mais o homem se relaciona com Deus mais se sente realizado e se torna capaz de doar-se sair de si e ir ao encontro do outro A realizaccedilatildeo de que se fala eacute no sentido de ser feliz do que se eacute e se faz Acreditamos ser esta a condiccedilatildeo de servir gratuitamente Assim sendo a vocaccedilatildeo visa em primeiro lugar agrave realizaccedilatildeo pessoal daquele que eacute chamado que busca um sentido da sua vida na descoberta do propoacutesito de Deus para si mediante o serviccedilo agrave comunidade de irmatildeos Na medida em que a pessoa se acha realizada em certa opccedilatildeo sente a exigecircncia de responder por via do serviccedilo E seraacute realmente um serviccedilo gratuito que natildeo espera outro em troca porque se sente bem servindo e o amor ao proacuteximo por sua vez eacute inseparaacutevel do amor a Deus A verdadeira felicidade estaacute em servirmos ao outro e a Deus 13

Sendo a vocaccedilatildeo antes de tudo um relacionamento com Jesus Cristo eacute inconcebiacutevel falar de uma vocaccedilatildeo cristatilde fora da Igreja pois eacute nela e por seu intermeacutedio que Cristo realiza e revela o proacuteprio misteacuterio como meta do desiacutegnio de Deus ldquoRecapitular tudo nelerdquo (Ef 110)

35 Como chama O modo

DeusndashPai nos chama pelo nome e sua voz chega ao homem em dois modos imediato e mediato Imediato Deus chama por meio de um desejo iacutentimo e profundo a inspiraccedilatildeo divina que impele para um estado de vida Costuma haver no mais iacutentimo da pessoa uma atraccedilatildeo essencial para formas de ser e de viver fundamentais por intermeacutedio do ambiente isto eacute das relaccedilotildees pessoais que vatildeo despertando o chamado por meio da histoacuteria pessoal (muito relevante) Mediato Deus fala pelas mediaccedilotildees Palavra escrita (e a falada) a vida de Cristo por meio da histoacuteria

13 httpformacaocancaonovacomdiversosa-vocacao-profissional Acesso em 05112015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

153

situaccedilotildees acontecimentos definidos sinais dos tempos e das pessoas (cf 1Sm 38-9)

Deus natildeo chama os homens do mesmo modo porque Ele chama por nome numa certa histoacuteria situaccedilatildeo cultura Nos relatos da Biacuteblia esta diferenccedila eacute notoacuteria algumas personagens satildeo demoradas em dizer sim e Deus tem paciecircncia e pelo diaacutelogo vai levando o chamado a uma resposta consciente como eacute o caso de Gedeatildeo (cf Jz 611-40) pois foi necessaacuterio trecircs vezes Deus prometer a sua presenccedila para se sentir seguro ao passo que natildeo foi assim com o disciacutepulo que pede para enterrar primeiro seu pai (Mt 821-22) a quem Jesus responde ldquoSegue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortosrdquo

Deus chama mediante Sua Palavra da natureza dos acontecimentos da histoacuteria significa que para escutaacute-Lo devemos estar atentos e cultivar uma atitude interior de silecircncio de escuta de meditaccedilatildeo de contemplaccedilatildeo No Novo Testamento a primeira accedilatildeo que Jesus desenvolveu no seu ministeacuterio de vida puacuteblica eacute uma ldquovocaccedilatildeordquo eacute a chamada de dois dos seus disciacutepulos Antes de tudo o chamado pede conversatildeo isto eacute seguir Jesus com o desejo de conformar-se agrave Sua pessoa

Nossa vocaccedilatildeo encontra jaacute a primeira revelaccedilatildeo no nome de cada um por isso Jesus chamaraacute Simatildeo de Pedro porque a sua missatildeo e a sua chamada seraacute aquela de ser rocha sobre a qual fundar a Igreja de Cristo Aleacutem disso os apoacutestolos satildeo chamados um a um e por nome para serem identificados na sua unicidade

4 Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde

Na Biacuteblia a vocaccedilatildeo eacute sempre de autoria do proacuteprio Deus que chama escolhe cada homem e mulher Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento o chamado pode se manifestar de modo mediato ou imediato

Segundo o esquema biacuteblico-literaacuterio satildeo elementos essenciais da vocaccedilatildeo iniciativa de Deus obediecircncia pela feacute temor e tremor investidura ou missatildeo Apesar de nem todas as caracteriacutesticas existirem em todas as vocaccedilotildees em todo tipo de vocaccedilatildeo haacute iniciativa de Deus o seguimento e a Missatildeo14

No Novo Testamento assim como no Velho Testamento a iniciativa de chamar algueacutem eacute sempre de Deus (Mt 99 101 Mc 1 1719-20 313 511 14 Cf Biacuteblia Sagrada Ediccedilatildeo da Famiacutelia Petroacutepolis Vozes 2005 p 1545

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

154

At 9 3-6) A iniciativa de Deus no entanto natildeo elimina nem substitui a resposta do homem jamais anula a participaccedilatildeo e a responsabilidade da pessoa chamada15 Natildeo eacute contudo por meio de uma manifestaccedilatildeo velada pela Palavra do Senhor nem da mediaccedilatildeo de outro homem que Deus age pois antes Ele atua na histoacuteria pessoalmente intermediado por Seu Filho que se fez carne (Jo 114)

Em ambos os Testamentos os escolhidos satildeo designados para uma missatildeo ldquoTal missatildeo eacute a participaccedilatildeo na compaixatildeo pastoral de Jesus ajudaacute-lo na sua missatildeo de serviccedilo agrave necessidade mais profunda das pessoasrdquo 16 Aquele que eacute chamado a seguir Jesus eacute convidado a ter aquilo que Satildeo Paulo pede aos filipenses isto eacute os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 25ss) que eacute a praacutetica da feacute esperanccedila e caridade ldquoNa vivecircncia dessas trecircs virtudes teologais se encontra a fundamental explicitaccedilatildeo da opccedilatildeo fundamental de seguir Cristo17rdquo

O esquema literaacuterio das narrativas vocacionais se repete em muitos casos no Antigo e no Novo Testamento chamado rejeiccedilatildeo ao chamado explicitaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo da missatildeo A novidade estaacute no Segundo Testamento que entende a vocaccedilatildeo agrave santidade e consagraccedilatildeo a Deus em relaccedilatildeo ao Espiacuterito Santo e Jesus

O singular do chamado no Novo Testamento eacute que todos satildeo realizados sob o signo da Nova Alianccedila isto eacute sob o signo da figura de Jesus Eles satildeo enviados e convidados a levar ao povo a presenccedila do proacuteprio Senhor18

A realizaccedilatildeo da vocaccedilatildeo de Jesus para o serviccedilo do Reino eacute expressa de modo claro em Lc 4 14-22 remir os presos recuperar a vista 15 MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro tostado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001 p 26 e 29 16 Cf PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991 p 400 17 Cf GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998 p 20 18 Alguns exemplos do chamado nos quais o aspecto missionaacuterio eacute evidente Abraatildeo e Sara chamados para formar um povo (Gn 121-9 Sb 105 At 7 2-3 e Hb 11 8) Moiseacutes a vocaccedilatildeo de um libertador (Ex 3 1-15 4 1-17 6 2-13 6 28-30 71-7 5) Isaiacuteas vocaccedilatildeo para denunciar e anunciar (Is 6 1-10) Maria vocaccedilatildeo para ser a matildee de Deus Apoacutestolos vocaccedilatildeo de propagar os ensinamentos de Jesus (Jo 135-394051 Lc 54-10 Lc 612-16 Mc 117-20 Mc 2 13-17 Mt 412-22 At 115-26) Paulo vocaccedilatildeo de continuar a missatildeo de Jesus ressuscitado (At 91-19 221-21 262-18) Jesus siacutentese da vocaccedilatildeo profeacutetica (Lc 4 14-22 Hb 51-10 Ap 1913 Jo 11-83036 314-19 331-34 4252634 442 530363843 62938-40 64450-5157 71628-2933 81618 11274252 1213273746-49 1424311521 16527 17468 171418212325 181137 19 2021-22)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

155

dos cegos restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graccedila do Senhor

41 Como saber que eacute Deus quem me chama

Vocaccedilatildeo eacute um chamado ao diaacutelogo com Deus em Jesus no Espiacuterito Santo Deus fala chama e pede ao homem de escutaacute-Lo (cf Mc 97) Escutar significa dar atenccedilatildeo ouvir e interiorizar o conteuacutedo da conversa interagir dar adesatildeo uma resposta Vocaccedilatildeo eacute um conhecer e deixar-se conhecer mediante o diaacutelogo com a Trindade Estes dois atos satildeo feitos simultacircnea e cotidianamente A vocaccedilatildeo nasce de um encontro pessoal com Cristo Deus-Amor nos chama em Cristo e o Espiacuterito Santo faz o homem participar desse amor do Pai Uma autecircntica experiecircncia de ser salvado pelo Senhor habilita a compreensatildeo de que eacute o Senhor que chama19

A descoberta da proacutepria vocaccedilatildeo eacute um processo que dura por toda a vida eacute um trabalho de elaboraccedilatildeo de si da proacutepria identidade um trabalho que exige atenccedilatildeo paciecircncia docilidade para acolher a palavra de Deus sensibilidade discernimento e tambeacutem a ajuda de um orientador ou diretor espiritual O chamado eacute entendido e decifrado com base numa ldquoexperiecircncia pessoal com Deusrdquo Nessa experiecircncia Ele revela o seu projeto para noacutes assim como fez com Moiseacutes (cf Ex3 4) e Pedro (Jo 2115-19)

42 A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta

O seguimento de Jesus Cristo comporta trecircs implicaccedilotildees encontro chamado e caminho O encontro suscita um desejo um deixar-se seduzir pelo amor O chamado sustenta esse desejo ou correspondecircncia e ainda este se desenvolve numa inquietaccedilatildeo constante sempre crescente ateacute responder E o caminho eacute o carisma ou a maneira de realizar esse projeto Estes trecircs passos se realizam numa simbiose vocacional surpreendente

Um olhar superficial dos relatos biacuteblicos sobre a vocaccedilatildeo pode levar-nos a concluir que vocaccedilatildeo eacute uma escolha pessoal iniciativa daquele que busca realizar suas inclinaccedilotildees mais profundas Uma anaacutelise mais percuciente no entanto nos desarma ao revelar que apesar de toda a nossa boa vontade e empenho pessoal num determinado chamado a nossa accedilatildeo natildeo passa de uma resposta agrave iniciativa de Deus que quis da nossa existecircncia e felicidade desde sempre (cf Jr 15)

19 Cf RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001 p 116 e 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

156

Nos Evangelhos Jesus chama a Si aqueles aos quais depois faraacute seus disciacutepulos ldquoNatildeo fostes voacutes que me escolhestes mas eu escolhi a voacutes e vos constitui para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneccedilardquo (Jo 1516)

Na origem de cada autecircntica chamada portanto estaacute o Senhor que escolhe e convida ao seu seguimento A Igreja manifesta na diversidade e na multiplicidade das vocaccedilotildees a riqueza do Espiacuterito que distribui livremente os seus dons segundo o projeto divino () A vocaccedilatildeo natildeo se constroacutei se recebe de Deus e sua realizaccedilatildeo depende da resposta que cada um sabe dar Viver de fato eacute responder20

A vocaccedilatildeo poreacutem natildeo eacute predestinaccedilatildeo (Ef 14 Jr 15) mas apelo do Pai dirigido agrave pessoa humana livre (Mt 1921 Gn 128-31)O projeto de Deus para a pessoa natildeo eacute algo estaacutetico predeterminado preestabelecido mas um apelo que se faz por via de mediaccedilotildees bem concretas (Jo 135-50) Deste modo a pessoa pode dizer ldquosimrdquo como Maria (Lc 138) fazendo acontecer a histoacuteria da salvaccedilatildeo ou dizer ldquonatildeordquo como o jovem rico (Mt 1922) frustrando o projeto de amor do Pai Da nossa resposta ao chamado de Deus depende a nossa felicidade O homem que diz sim se reencontra encontrando Deus e o que diz natildeo se perde

43 Como responder

A vocaccedilatildeo eacute um convite que se transforma em apelo o qual exprime uma proposta propositura que se torna eleiccedilatildeo escolha que solicita uma resposta21 O significado de cada um desses termos eacute muito profundo Convite eacute o ato de fazer uma proposta que se supotildee agradaacutevel Apelo eacute chamar algueacutem por nome Proposta eacute quanto vem apresentado agrave atenccedilatildeo e agrave aceitaccedilatildeo do outro um projeto Eleiccedilatildeo eacute o processo pelo qual um grupo designa um de seus integrantes para ocupar um determinado cargo com apelo a uma votaccedilatildeo Resposta eacute o ato de satisfazer uma chamada Deus espera uma resposta da nossa parte uma adesatildeo ao cumprimento da sua vontade sobre noacutes Deveriacuteamos ser agradecidos e sentir-nos honrados quando Deus se digna a nos chamar a colaborar da Sua missatildeo salviacutefica

20 httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa-non-ehtml Acesso em 29052015 21Cf PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus p 1385

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

157

44 Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A vida do cristatildeo eacute ldquosequela Christirdquo seguimento de Cristo em busca do caminho traccedilado por Ele para ser na Igreja e no mundo sinal inconfundiacutevel de amor e modelo de vida generosa e exemplar

A dimensatildeo do dom eacute a totalidade que prende a vida plenamente radicando-a no uacutenico absoluto que eacute Deus Instaura-se uma relaccedilatildeo que interessa o profundo do ser e que natildeo se confunde no anonimato Jesus busca a mim proacuteprio a mim Como um dia chamou por nome Abraatildeo Samuel Pedro Saulo assim ainda hoje o Pastor divino tem para cada ovelhinha nome uacutenico ldquoirrepetiacutevelrdquo22 distinto de qualquer outro nome ou som e que somente aquele que eacute chamado eacute capaz de perceber O ldquodeixa os mortos sepultar os seus mortosrdquo (Mt 822) o ldquoSegue-merdquo (Jo 2122) e o ldquonatildeo eacute digno do reino de Deusrdquo (Lc 959-62) mostram que as exigecircncias do chamado satildeo totais e natildeo admitem condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A radicalidade da resposta eacute uma exigecircncia fundamental do seguimento Natildeo se consente algum tipo de reenvio ou prorrogaccedilatildeo nem mesmo se nos encontraacutessemos diante de um motivo de grande valor moral e social como a necessidade de ldquosepultar o pairdquo a pessoa de Jesus exige uma prioridade absoluta e incondicionada ainda mais que Ele convida a anunciar ldquoo reino de Deusrdquo ao qual tudo eacute subordinado (cf Mt 633)

Trecircs dimensotildees satildeo necessaacuterias para uma resposta total liberdade como possibilidade de escolha de ausecircncia de constriccedilatildeo exterior e interior que permite de fazer uma eleiccedilatildeo autocircnoma gratuidade como alegria de servir no amor e sem esperar nada em troca eacute ter os sentimentos de Cristo Jesus (cf Fl 25) e dom ldquo o dom entra em cena quando descubro a dimensatildeo do outro como sujeito quando a categoria da gratuidade se torna a mola do meu agir e tambeacutem a descoberta do meu ser da minha dignidade e a do outro como pessoa humana pelo que viver a experiecircncia do dom significa substancialmente fazer experiecircncia de liberdaderdquo23

22 Cf CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006 p 61 23 Cf POLI Gianfranco La cultura della vocazione p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

158

5 Consideraccedilotildees finais

O objetivo geral do trabalho eacute mostrar que o argumento lsquovocaccedilatildeorsquo carece de um estudo sistemaacutetico de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica Com este escrito constatamos a necessidade de um estudo sistemaacutetico que esclareccedila o que entendemos quando falamos de vocaccedilatildeo Isto porque efetivar uma vocaccedilatildeo segundo o projeto de Deus contribui para o bem natildeo somente pessoal ou da instituiccedilatildeo a que se pertence mas do corpo como todo a Igreja Entatildeo vale muito despertar as escolas teoloacutegicas a abraccedilarem esta causa como questatildeo urgente levando seus teoacutelogos a reflexotildees mais aprofundadas com embasamento biacuteblico

Durante a realizaccedilatildeo do trabalho assumimos os desafios de ler textos em liacutengua italiana e de individuar entre o abundante conteuacutedo pesquisado qual responderia melhor ao tema Natildeo foi faacutecil descartarmos tantos conceitos e tentarmos nos ater ao tema com poucas paacuteginas

No desenvolvimento do assunto vimos que a vocaccedilatildeo eacute um ato dinacircmico um procedimento gradual uma histoacuteria de amor um relaciona-mento profundo com Deus por meio do Filho no Espiacuterito Santo e que por isso requer entrar na intimidade com Deus estar a soacutes na escola do Mestre pois a vocaccedilatildeo como ato de chamar conta com o envolvimento de dois sujeitos Deus que chama e o homem que responde

A iniciativa eacute sempre de Deus que chama para uma missatildeo especiacutefica na comunidade eclesial de onde nasce e cresce a mesma Deus se manifesta por intermeacutedio dos acontecimentos do mundo e da histoacuteria pessoal Ele precisa da nossa resposta concreta generosa e sem condicionamentos para continuar Sua obra da salvaccedilatildeo hoje

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

159

Referecircncias Bibliograacuteficas

ALBERTO Cosegrave la vocazione Cosa non egrave httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa -non-ehtml Acesso 29052015

BENTO XVI A primeira mensagem vocacional httpwwwportalcatolicoorgbrportala-primeira-mensagem-vocacio nal-de-bento-xvi Acesso em 040452015

BIacuteBLIA SAGRADA EDICcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA Petroacutepolis Vozes 2005

CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997

CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 2004

CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006

DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992

GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998

II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Voca-cional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982

JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996

JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iipt messagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes_29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em 29102015

MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro testado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001

OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996)

PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus 1999

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

160

PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991

POLI Gianfranco La cultura della vocazione tra vocazione e domanda di senso In BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teoloacutegica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010

RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000

RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001

VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 1999

Ir Graccedila Disingakala Nunes Aluna do Curso de Especializaccedilatildeo para qualificaccedilatildeo de formadores

na Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Artigo escrito sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

161

A EacuteTICA POLIacuteTICA EM MAQUIAVEL

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

Resumo

Na obra maquiaveliana encontra-se uma nova concepccedilatildeo da poliacutetica que se distancia das concepccedilotildees claacutessica patriacutestica e escolaacutestica Suas fontes satildeo as praticas poliacuteticas contemporacircneas e os escritos do historiador Tito Liacutevio O objetivo do seu estudo eacute uma Itaacutelia unida Nesta nova abordagem ganha interesse e destaque a relaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica assunto tratado especialmente na obra O Priacutencipe

Palavras-chave Renascimento Itaacutelia Maquiavel Eacutetica Poliacutetica

Abstract In the Machiavellian work we find is a new conception of politics which moves away from the classical patristic and scholastic conceptions His sources are contemporary political practices and the writings of the historian Titus Livius The purpose of his study is a united Italy In this new vision great interest and highlight are given to the relationship between ethics and politics specially treated in the work De Principe

Keywords Renaissance Italy Machiavelli Ethics Politics

1 Introduccedilatildeo

Satildeo conhecidos o vigor e a profundidade do pensamento do filoacutesofo poliacutetico Maquiavel1 Entre as suas obras que satildeo muacuteltiplas e de variados

1 Niccoloacute di Bernardo del Machiaveli nasceu na cidade de Florenccedila no dia 3 de maio de 1469 Sua vida desenvolveu sob o signo da poliacutetica a que dedicou tanto no campo teoacuterico como no praacutetico todos os seus esforccedilos materiais e intelectuais A poliacutetica como ele confessa estava no seu sangue Desde cedo Maquiavel foi incentivado por seu pai a se dedicar aacute leitura dos autores da Antiguidade Claacutessica como Virgiacutelio e Tito Liacutevio Sua juventude foi marcada pelos acontecimentos turbulentos da sua cidade natal que fazia parte de uma Itaacutelia assolada e perturbada por disputas poliacuteticas natildeo somente de acircmbito local como tambeacutem de forccedilas estrangeiras como Franccedila e Espanha que se aproveitaram das lutas internas da Peniacutensula Apeninica e da cidade de Florenccedila para sobretudo aumen-tarem a sua influecircncia Conta-se que Maquiavel aos nove anos assistiu ao assasinato de Juliano de Meacutedici e ao ferimento de Lourenccedilo de Meacutedici O ano de 1498 que viu a execuccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

162

gecircneros a De Principe eacute de longe a mais conhecida e analisada2 As outras de cunho poliacutetico natildeo deixam se ter interesse e importacircncia mas natildeo desenvolvem com a mesma clareza e pujanccedila o nuacutecleo do seu pensamento poliacutetico de modo especial o seu carter moral e eacutetico

O estudo ora expresso intenta com suporte nessa obra e preferen-cialmente nela comentar e descrever a eacutetica poliacutetica maquiaveliana que significa uma reviravolta em comparaccedilatildeo com a ideia natildeo somente a claacutessica mas tambeacutem cristatilde que quase sem exceccedilatildeo ateacute agrave eacutepoca da Baixa Idade Meacutedia se baseia quase exclusivamente no pensamento bem ou mal interpretado de SantrsquoAgostinho

2 As fontes da formaccedilatildeo de Maquiavel como pensador poliacutetico

Ao ler e refletir o pensamento poliacutetico de Maquiavel saltam aos olhos natildeo somente o seu profundo conhecimento a respeito da histoacuteria da Itaacutelia especificamente quando da eacutepoca do Impeacuterio Romano como tambeacutem os vestiacutegios de uma profiacutecua e intensa atividade diplomaacutetica Neste aspecto destacou-se por intermeacutedio de missotildees diplomaacuteticas vitoriosas ndash umas mais outras menos importantes - em vaacuterios estados da Peniacutensula Italiana inclusive em centros de poder nacional de grande envergadura tais como a Franccedila e a Alemanha

21 A atividade diplomaacutetica de Maquiavel

Logo apoacutes o dantesco e triste espetaacuteculo do julgamento da conde-naccedilatildeo e da execuccedilatildeo na fogueira do profeacutetico Jerocircnimo Savanarola na Praccedila da Senhoria reinstala-se em Florenccedila a Repuacuteblica Livre para alguns

de Savanarola pode ser considerado como a entrada de Maquiavel na poliacutetica sendo ele chamado a exercer o cargo de secretaacuterio da Segunda Chancelaria da Repuacuteblica de Florenccedila Em seguida ele se tornou um dos principais auxiliares do gonfaloniero vitaliacutecio Piero Soderini sendo encarregado dos assuntos diplomaacuteticos Quando Soderini caiu Maquiavel perdeu o cargo destituiacutedo pelos novos donos do poder ateacute a sua anistia concedida pelo Papa Leatildeo X da famiacutelia dos Meacutedicis Maquiavel esforccedilou-se ao maacuteximo para cair nas graccedilas dos Meacutedicis Quando estes caiacuteram e a Repuacuteblica foi reinstalada em Florenccedila Maquiavel visto com desconfianccedila retirou-se da vida publica Morreu no dia 21 de junho de 1527 2 Pode-se dividir a obra de Maquiavel em trecircs grandes setores que facilitam e ajudam na sua vasta atividade literaacuteria 1- Correspondecircncia tanto particular como oficial 2- obras literaacuterias poesia (eg) a famosa obra inacabada o Asno de Ouro) prosa (Discurso Moral que exorta a penitecircncia) teatro e novelas (vg Mandraacutegora em que se expotildee a degradaccedilatildeo moral e religiosa e se afirma a corrupccedilatildeo como inerente aacute natureza humana) 3- obras poliacutetico-histoacutericas (eo Discurso sobre a primeira deacutecada de Tito Livio)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

163

uma dinastia camuflada Suprime-se a teocracia e retoma-se o regime aristocraacutetico Foi aiacute em 1498 que Maquiavel com quase 30 anos de idade foi sorteado para exercer o cargo de secretaacuterio da 2ordf Chancelaria do Estado Livre da Repuacuteblica de Florenccedila E logo depois passou a realizar tambeacutem tarefas para a comissatildeo dos Dez do Poder ou Dez da Guerra

Como chanceler Maquiavel realizou a primeira legaccedilatildeo junto agrave Duquesa de Imola e Forli onde renegociou o soldo pago pelo Governo Florentino ao ldquocondottiererdquo3 Otaviano Florenccedila contratara o filho da Duquesa por 15 mil ducados soma considerada exorbitante por Florenccedila Maquiavel teve ecircxito conseguiu reduzir o soldo como tambeacutem recebeu auxiacutelio militar da duquesa - na forma de tropas de soldados e artilharia ndash de grande valor na ocupaccedilatildeo de Pisa4 Desde entatildeo o Diplomata Florentino comeccedilou a ser considerado e tratado como um haacutebil conciliador Entusiasmado com o prestiacutegio e a experiecircncia adquiridos escreveu o primeiro texto poliacutetico Discorso fatto a Magistrato dei Dieci sopra le cose de Pisa

Nuvens negras e sombrias no entanto continuaram a se espalhar e ameaccedilaram empanar o brilho do cenaacuterio poliacutetico florentino Segundo relato5 Pisa rebelara-se mais uma vez cortando o acesso de Florenccedila ao mar pelo rio Arno O rei Luis XII de Franccedila concordara em apoiar Florenccedila na guerra contra Pisa As tropas mercenaacuterias que o Monarca enviara no entanto natildeo cumpriram bem o seu papel acarretando seacuterios problemas ao Estado de Florenccedila Aqui estava uma delicada situaccedilatildeo expor tal reclamaccedilatildeo ao Governo Francecircs e declinar a sua oferta sem ferir a honra do rei Os representantes Maquiavel e Francisco della Casa foram enviados agrave Franccedila para a cidade de Nevers Com muita maestria os dois diplomatas resolveram a difiacutecil tarefa O perigo passou e embora Florenccedila natildeo tenha recuperado Pisa continua com a sua independecircncia

Maquiavel foi ainda encarregado de vaacuterias outras missotildees diplo-maacuteticas junto agrave Franccedila Conveacutem lembrar que Luis XII rei de Franccedila tinha como aliado o Papa Alexandre VI cujo filho se chamava Ceacutesar Boacutergia conforme a opiniatildeo de alguns um ldquocondottiererdquo de muita bravura poliacutetico

3 ldquoCondottiererdquo era ndash na histoacuteria da Itaacutelia ndash chamada o senhor feudal que tinha sob o seu absoluto controle uma miliacutecia que ele podia colocar agrave disposiccedilatildeo de quem o quisesse ou pagasse mais Era entatildeo uma espeacutecie de capitatildeo de soldados mercenaacuterios Assume tambeacutem o sentido de aventureiro 4 Florenccedila e Pisa alternaram periacuteodos de amizade com tempos em que a inimizade explodia em conflitos seacuterios muitas vezes armados 5Cf LARIVAILLE PAUL A Itaacutelia no tempo de Maquiavel Op Cit pg 75-79

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

164

de excelente habilidade mas por outro lado extremamente cruel6 Com a dupla proteccedilatildeo de seu pai e das armas francesas Ceacutesar Boacutergia vinha desempenhando uma accedilatildeo militar avassaladora sobre as possessotildees italianas

No que concerne agrave situaccedilatildeo alarmante de Florenccedila ante o turbulento protegido de Luis XII eacute esclarecedora a descriccedilatildeo desses acontecimentos expressos por JF Duvernoy

Florenccedila tem medo ela se entrega ela cuja doutrina consiste em fugir da submissatildeo de um senhor de um gonfaloneiro vitaliacutecio Eacute verdade que ela o escolheu ldquodemocratardquo na pessoa de Piero Soderini Envia Maquiavel para junto de Ceacutesar Boacutergia para observaacute-lo medir suas forccedilas e seus apetites Ele de fato observa vecirc em Sinigalia como Ceacutesar reprimiu num soacute golpe todos os seus antigos aliados Ele traz de sua missatildeo algo de muito confuso uma vontade indomaacutevel de trabalhar para natildeo ser conquistado e uma admiraccedilatildeo pela poliacutetica de alto vocirco que ele viu em accedilatildeordquo7

Em 1503 o perigo iminente cessou com a morte do Papa Alexandre VI e com a derrota de Ceacutesar Boacutergia Gravemente enfermo e sem apoio nada mais restou ao valoroso Duque de Valentinois senatildeo capitular Conta-se que morreu na Espanha como ldquocondottiererdquo mediacuteocre

A Repuacuteblica de Florenccedila procurou entatildeo evitar cair sob a autori-dade do novo Pontiacutefice Juacutelio II della Rovere o qual pretendia colocar sob a jurisdiccedilatildeo da Santa Seacute todas as antigas cidades regiotildees e possessotildees que antes pertenciam ao Ducado de Valentinois Imediatamente a desas-sossegada Senhoria envia Maquiavel para prestar ao Papa serviccedilos de chancelaria Durante a segunda legaccedilatildeo a Juacutelio II Maquiavel pocircde avaliar de perto o poder temporal do Sumo Pontiacutefice aleacutem de fortemente tomar consciecircncia de como o sentimento religioso ainda se encontrava arraigado no espiacuterito dos homens Essas duas realidades levam-no ao convencimento que ele descreve no seu livro O Priacutencipe

[] os principados eclesiaacutesticos [] satildeo mantidos pela grande antiguidade que existe nas instituiccedilotildees da religiatildeo as quais satildeo tatildeo poderosas e de tal

6 Cf por exemplo Dicionario da Idade Meacutedia organizado por Henry R Lyon Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990 pg 56 [] Era totalmente inescrupuloso a fim de proteger suas fronteiras setentrionais assassinou o marido de sua irmatilde Lucreacutecia e casou-a com o futuro duque de Ferrara 7 DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores 1984 pg 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

165

natureza que seus priacutencipes permanecem no lugar de qualquer maneira que eles se comportam e que vivam8

De fato as tropas mercenaacuterias quando se batiam contra o Papa embora dispusessem de poderio beacutelico suficiente para vencecirc-lo rendiam-se facilmente preferindo assim reverenciar o Chefe da Igreja

A tempestade poliacutetica se avolumava sobre a Itaacutelia ameaccedilando o equiliacutebrio do poder Em Florenccedila a ameaccedila provinha de dois poderosos vizinhos de um lado o Papado do outro o Santo Impeacuterio Maquiavel tendo agora seus dotes conciliadores reconhecidos foi enviado agrave Alemanha e conseguiu perante o Imperador Maximiano I defender a neutralidade de Florenccedila no conflito contra Veneza

Em 1510 poreacutem a Igreja Veneza e a Espanha declaram guerra ao Governo Francecircs Havia muito tempo a Franccedila ocupava o lugar de tradi-cional aliada de Florenccedila Portanto Maquiavel em uma de suas uacuteltimas missotildees diplomaacuteticas conseguiu com muita habilidade e perspicaacutecia que mais uma vez Florenccedila ficasse neutra ou seja liberada de participar daquele conflito

Por natildeo ter apoiado todavia a Igreja na guerra contra a Franccedila o Governo Florentino se viu em maus lenccediloacuteis Em 1512 Florenccedila foi saqueada pelas tropas imperiais de Ferdinando II O Papa destituiu o liacuteder Soderini e a famiacutelia poderosa dos Meacutedicis retornou ao poder Era o fim das instituiccedilotildees democraacuteticas da Repuacuteblica Livre de Florenccedila

Aquele ano assinala igualmente o capiacutetulo final da carreira poliacutetica de Maquiavel Durante os 15 anos do exiacutelio no reinado dos Meacutedicis vive na sua propriedade interiorana trabalhando duro sem se queixar nem se lastimar porque tinha prazer de trabalhar em favor de sua querida e estimada Florenccedila Quando jaacute em desgraccedila escreveu no dia 10 de outubro de 1513 uma carta dirigida a seu amigo Francesco Vettori em que afirma ldquoforam quinze anos dedicados a cultivar a Arte do Estado em que natildeo dormi nem tive folgardquo9

Os autores em grande parte consideram Maquiavel como um excelente diplomata trabalhando sempre com muito empenho lealdade e dedicaccedilatildeo Suas cartas escritas na cidade francesa de Blois quando efetuava suas uacuteltimas atividades de diplomacia na Franccedila constituem documentos 8 MAQUIAVEL Niccolo O Priacutencipe cap XI 9 MAQUIAVELLI N Tutte Le Opere Firenze Sansoni 1992 Citado em RODRIGO Lidia Maria Maquiavel op cit p 23

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

166

que comprovam definitivamente a habilidade poliacutetica do Pensador Floren-tino que atinge alguns momentos insuperaacuteveis Acrescenta-se ainda que no bloqueio rigoroso de Pisa o papel de comissaacuterio desempenhado por Maquiavel foi determinante na retomada dessa cidade

A importacircncia da atividade diplomaacutetica na formaccedilatildeo do pensa-mento poliacutetico de Maquiavel eacute assim analisada por Bronowski e Mazlish

o seu posto natildeo lhe desse grande poder na definiccedilatildeo da poliacutetica deu-lhe uma visatildeo directa do processo poliacutetico das cidades-estado italianas E como esses processos poliacuteticos variavam desde a oligarquia em Veneza agrave monarquia em Naacutepoles e agrave democracia em Florenccedila forneciam uma verdadeira escola de poliacutetica para um observador atento10

Foi nessa atividade diplomaacutetica que Maquiavel chegou agrave conclusatildeo de que o mais importante na poliacutetica eacute

[] o Estado natildeo aquele imaginaacuterio e que nunca existiu mas aquele que eacute capaz de impor a ordem O ponto de partida e da chegada eacute a realidade corrente ndash por isto a ecircnfase na veritagrave effetuale ndash ou seja ver e examinar a realidade como ela eacute e natildeo como se gostaria que fosse11

Isto se aplica agrave imagem que Maquiavel formou dos priacutencipes nos seus contatos diretos com os detentores do poder durante tantos anos o descobriu que

[] o priacutencipe que os humanistas do Renascimento apresentavam como modelo aos governantes natildeo passava de uma construccedilatildeo do espiacuterito de uma formulaccedilatildeo abstrata e ideal desvinculada de qualquer possibilidade e em contraste chocante com a realidade crua e aacutespera da eacutepoca quinhentista O priacutencipe ideal do humanismo era o siacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilotildees religiosas cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudente ndash compendio enfim de todas as perfeiccedilotildees fiacutesicas intelectuais e morais 12

Assim surge um personagem viril audaz destemido cuja maacutexima mais importante era ater-se aacute verdade efetiva das coisas sem ficar pensando em repuacuteblicas e monarquias imaginaacuterias com seus princiacutepios inspirados por altos ideais longe da realidade concreta da poliacutetica praticada naqueles dias ndash e em tempos anteriores

10 BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 pg 47 11 Disponiacutevel em www palmirarjnet Acesso em 25-10-2010 12 ESCOREL Lauro O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades Cadernos da UnB Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 pg 18

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

167

2 2 O estudo da histoacuteria

Como Maquiavel se inspirou na histoacuteria encontrando nela valiosas pistas para a accedilatildeo poliacutetica manifesta-se sobretudo na sua obra Discursos sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio A obra caracteriza-se como um diaacutelogo com o historiador Tito Liacutevio que viveu de 58 aC ateacute 12 dC o turbu-lento periacuteodo que acusa o fim da era da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Romano13 Uma das propriedades desta grandiosa obra foi entre outras o enfoque da histoacuteria sob o ponto de vista da moral ao fazer com que Maquiavel apontasse a Repuacuteblica Romana como um verdadeiro modelo de sociedade cuja virtugrave deveria servir como exemplo para os seus contem-poracircneos

Os Discorsi satildeo uma elaboraccedilatildeo ideal uma obra de educaccedilatildeo poliacutetica uma sistematizaccedilatildeo mais refletida uma projeccedilatildeo na histoacuteria passada e futura das liccedilotildees ldquodas coisas do mundordquo Eacute uma procura das razotildees que explicam o nascimento a prosperidade e a decadecircncia das naccedilotildees com o intuito de descobrir ndash no exemplo eminente da Roma Claacutessica ndash qual o segredo da forccedila e da estabilidade dos Estados Os Discorsi satildeo compostos de trecircs livros

1o Livro trata dos modos pelos quais se fundam os Estados e da organizaccedilatildeo e modalidades de Governo

2o Livro examina os processos de engrandecimento dos Estados e de conquista de novos Estados

3o Livro tece consideraccedilotildees sobre o crescimento e a decadecircncia dos Estados e seus modos de transformaccedilatildeo e uma anaacutelise da natureza das conjuraccedilotildees que ameaccedilam os detentores do poder

Tudo o que Maquiavel exprime nestes livros eacute inspirado pela ideia que se tornou para ele um axioma de que a imitaccedilatildeo da histoacuteria antiga e de modo peculiar a da Repuacuteblica Romana constitui a fonte por excelecircncia da sabedoria poliacutetica Sob tal perspectiva vaacutelida antes de tudo para a Peniacutensula Italiana ndash outrora sede do nuacutecleo do Impeacuterio Romano ndash o que ocorrera no passado tendia inevitavelmente a se repetir no presente e no futuro Assim sendo o estudo da histoacuteria impunha-se quase como uma condiccedilatildeo sine qua non para a formulaccedilatildeo da teoria do Estado e da descriccedilatildeo das qualidades dos priacutencipes

13 Tito Liacutevio escreveu a monumental obra Ab Urbe Condita ndash a partir da Fundaccedilatildeo da Cidade constando de 142 livros do quais 35 chegaram ateacute noacutes entre eles os dez primeiros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

168

Curiosamente nessa obra Maquiavel exprime uma altamente positiva apreciaccedilatildeo da Repuacuteblica vista por ele como mais apta e equili-brada a tomar decisotildees e realizar o bem comum Ao lado dela - e aqui jaacute se veem as linhas de O Priacutencipe ndash Maquiavel destaca a Monarquia como a melhor forma de se conseguir a formaccedilatildeo do Estado na Peniacutensula da Itaacutelia Concluindo o mesmo raciociacutenio rejeita a tirania e a oligarquia de que eacute afirmado que se trata de uma relaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude Para Maquiavel poreacutem tanto as boas como as maacutes formas de governo teratildeo pouca duraccedilatildeo e por isso defende a maneira mista opiniatildeo que se reflete na descriccedilatildeo dos tipos de principados (Estados) no O Priacutencipe e na postura exigida dos priacutencipes

Resumindo pode-se afirmar que em decorrecircncia da leitura de autores claacutessicos como Tito Liacutevio e Poliacutebio14 aleacutem da recente histoacuteria e da vasta experiecircncia junto a poliacuteticos de sua eacutepoca Maquiavel chega aacute seguinte conclusatildeo O priacutencipe (irreal) estaacute longe de como se vive e de como se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da proacutepria ruiacutena do que de sua conservaccedilatildeo porque um homem que queira em todo lugar parecer bom atrai ruiacutena entre tantos que natildeo satildeo bons15

3 O Priacutencipe

31 Introduccedilatildeo

O Priacutencipe incontestavelmente a obra mais conhecida de Maquiavel foi publicada no ano de 1532 e eacute portanto poacutestuma Antes de sua publicaccedilatildeo impressa jaacute circularam algumas coacutepias manuscritas que natildeo tinham causado nenhum escacircndalo Pelo contraacuterio Maquiavel ficou desapontado pela frieza de Lourenccedilo de Meacutedici em relaccedilatildeo a sua obra que lhe foi dedicada Outro fator que causa certa espeacutecie foi o fato de que na eacutepoca natildeo foi negada agrave obra a licenccedila de imprimiacute-la o assim chamado ldquoimprimaturrdquo Parece que a postergaccedilatildeo da impressatildeo decorre das circunstacircncias poliacuteticas de 1513 ndash 1527 eacutepoca em que Maquiavel vivia isolado no seu exiacutelio Aleacutem disso acredita-se que ele queria reservar a publicaccedilatildeo da obra para uma conjuntura mais propiacutecia no intuito de

14 Historiador nascido na Greacutecia Antiga viveu de 203 aC ateacute 120 a C tomando na sua juventude parte ativa na luta dos gregos contra os romanos Feito prisioneiro foi levado para Roma ficando nesta cidade 17 anos como refeacutem Depois do seu retorno auml Greacutecia voltou algumas vezes a Roma e dedicou-se agrave histoacuteria dos acontecimentos ocorridos durante a sua vida procurando aleacutem do rigor cientiacutefico a valorizaccedilatildeo dos testemunhos de seus contemporacircneos Cf Biografia y Vidascombiografiaenlinea acesso em 10022011 15 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe cap XV-XVII

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

169

produzir um efeito maior Soacute mais tarde o cardeal Reginald Pole 1500-1588 constatando a ldquomaleacutefica influecircnciardquo16 da obra sobre Oliver Cromwell denunciou Maquiavel como um espiacuterito satacircnico defensor do despotismo e justificador de todas as arbitrariedades e violecircncias

Ademais a obra e seu autor enfrentaram a oposiccedilatildeo dos Jesuiacutetas que aleacutem de queimarem a efiacutegie de Maquiavel em Ingolstat em 1559 convenceram o papa Paulo IV a colocar o livro no Index por decreto o que foi confirmado pelo Concilio Tridentino em 1564 A oposiccedilatildeo ao escrito do Maquiavel entretanto natildeo foi proveniente apenas dos catoacutelicos pois tambeacutem os calvinistas como por exemplo Inocecircncio Gentillet que em 1576 publicou Contre Nicolas florentin

[] em que natildeo soacute qualificou o escritor de puant atheacuteiste mas tambeacutem denunciou suas doutrinas como instigadoras da ldquoNoite de Satildeo Bartolomeurdquo acusando-as de haver insuflado no espiacuterito de Catarina de Meacutedici a ideacuteia do massacre e de haver introduzido meacutetodos alieniacutegenas isto eacute italianos na poliacutetica francesa17

Embora importante no conjunto de seus escritos a obra de Maquiavel e sua filosofia poliacutetica natildeo se restringem soacute ao Priacutencipe devendo ser esse escrito visto no contexto de sua obra Com isto entretanto natildeo se pode nem se deve negar o lugar central que este livro ocupa no conjunto da obra maquiaveliana e eacute esta a razatildeo por que neste trabalho dedicado agrave anaacutelise da moral em Maquiavel e de modo especial no O Priacutencipe se lhe dedica um estudo especial

32 A Gecircnese de O Priacutencipe

Segundo Vilari18 deve-se buscar o conceito de O Priacutencipe no papa Leatildeo X 1513-1521 que lanccedilou a ideia de fundar um outro Estado abrangendo Parma Modena Urbino e Ferrara entregando o seu governo a Juliano de Meacutedici Desta forma realizar-se-ia o grande sonho de Maquiavel de um grande Estado monaacuterquico italiano superando a sua divisatildeo em inuacutemeros estados pequenos com um poder central suficiente tanto para unificaacute-la como para mantecirc-la unificada

16 ESCOREL Lauro O pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades VII Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1984 nordm 8 pg 18-52 17 ESCOREL Lauro op cit p 19 18 VILARI P Niccolograve Macchiavelli e i suoi tempi 3 vls Firenze 1877 p 294 vol II citado em ESCOREL Lauro op cit p 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

170

Maquiavel entusiasta defensor dessa ideia se distancia dela quanto agrave sua realizaccedilatildeo concreta como um poder monaacuterquico central e absoluto baseado nos ideais da tradiccedilatildeo cristatilde e se opotildee contra o priacutencipe ideal renascentista ldquosiacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilatildeo religiosa cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudenterdquo19 Pelo contraacuterio o priacutencipe com o qual Maquiavel sonha eacute um teacutecnico poliacutetico realista plasmado nos moldes do passado sobretudo da antiga Repuacuteblica Romana nos seus melhores dias de gloacuteria

[] para o qual o importante era ater-se agrave veritaacute effetuale delle cose [] O priacutencipe maquiaveacutelico natildeo emerge do pensamento do seu autor aureolado pelas virtudes da eacutetica tradicional como produto de uma elaboraccedilatildeo mental utoacutepica [] Plasma-o ao contraacuterio indutivamente com base nos dados de sua experiecircncia e inspirado nos exemplos da Antiguidade Claacutessica investindo-o de uma loacutegica inexoraacutevel para a consecuccedilatildeo de seu objetivo supremo a conquista e a preservaccedilatildeo do poder poliacutetico absoluto 20

Eacute nesta inspiraccedilatildeo que residem a grandiosidade e o gecircnio de Maquiavel que o fizeram descobrir e penetrar a essecircncia da accedilatildeo poliacutetica do homem revelando as leis proacuteprias e analisando dividindo e avaliando friamente a forccedila das paixotildees humanas Foi sob esse prisma que o seu livro auferiu validade permanente

33 A Estrutura do livro21

O livro que consta de 26 capiacutetulos comeccedila com uma carta dedicatoacuteria ao magniacutefico Lorenzo filho de Piero de Meacutedici neto de Lorenzo o Magniacutefico (1449-1492) Originalmente o livro seria dedicado a outro membro da famiacutelia Meacutedici Giuliano filho de Lorenzo mas este morreu em 1516

Do primeiro ao deacutecimo capiacutetulo eacute procedida agrave discriminaccedilatildeo dos vaacuterios tipos de principados Aleacutem disso Maquiavel desenvolveu as caracteriacutesticas e qualidades dos mencionados principados Central estaacute o problema da conquista do poder em geral e especialmente no

19 ESCOREL Lauro op cit p 23 20 ESCOREL Lauro op cit p 23 21 Cf Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Grupo de Estudos de Filosofia ndash GEFIL Aula I BATISTA Flaacutevio Donizete http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 15 de agosto de 2010 BATH Sergio A praacutetica poliacutetica segundo Nicolau Maquiavel Satildeo Paulo Aacutetica 2009 CHEVALLIER J J As grandes obras poliacuteticas de Maquiavel a nossos dias Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 pg 17-48

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

171

principado novo Tudo eacute visto sob a grande perspectiva da unificaccedilatildeo da Itaacutelia que deve ser fundada nas conquistas e na virtugrave do governante

Do deacutecimo ao deacutecimo quinto capiacutetulo preocupa-se em argumentar e mostrar que a base de qualquer Estado estaacute na sua autarquia militar Trata de maneira especial no capiacutetulo 11 dos Estados eclesiaacutesticos e como chegaram ao poder que ostentam

A parte principal da obra eacute formada pelos capiacutetulos deacutecimo quinto ateacute o vigeacutesimo sexto Aqui se trata do exame do problema do governo de um povo como um priacutencipe deve conduzir-se com os seus suacuteditos e seus aliados Quanto agrave imagem do priacutencipe formulada por Maquiavel merecem destaque especial os quatro conceitos por ele considerados fundamentais virtugrave ocasiatildeo fortuna e necessidade Por todos os capiacutetulos especialmente a partir do deacutecimo nono encontramos Maquiavel insiste na necessidade da reformulaccedilatildeo da imagem tradicional do priacutencipe acentuando a obrigaccedilatildeo de ele sempre se esforccedilar para ter o povo ao seu lado porque sem o apoio do povo o priacutencipe natildeo resistiraacute agraves dificuldades que sobreviratildeo

Do capiacutetulo 23 ateacute o 25 Maquiavel constatando porque os priacutencipes italianos perderam seus Estados afirma o poder da vontade humana de domar e vencer a proacutepria fortuna pela razatildeo e pela virtude

O uacuteltimo capiacutetulo ndash o 26 - eacute uma eloquente exortaccedilatildeo agrave redenccedilatildeo e libertaccedilatildeo da Itaacutelia do domiacutenio das potecircncias estrangeiras ndash Franccedila Espanha e o Impeacuterio Alematildeo ndash e consiste num convite ao priacutencipe de ser audaz e feroz a fim de alcanccedilar ecircxito Termina com as belas palavras de Petrarca

Virtugrave contro a furore Prenderaacute lrsquoarmi e fia el combatter corto Che lrsquoantico valore Nellrsquoitalici cor non egrave ancor morto22

4 Moral e Eacutetica na poliacutetica de Maquiavel

Agrave primeira vista pode parecer fora de propoacutesito falar de Moral E Eacutetica em Maquiavel Para muitos autores e sobretudo para muitas pessoas no seu dia a dia os dois conceitos significam a mesma coisa e dizem 22 O valor tomaraacute armas contra o furor e que seja curto o combate pois a coragem antiga ainda natildeo morreu no coraccedilatildeo dos italianos PETRARCA Francesco Rime Esparse (sem maiores referecircncias) em O Priacutencipe comentado por Napoleatildeo Bonaparte MAQUIAVEL texto integral Traduccedilatildeo NASSETTI Pietro Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

172

respeito ao comportamento humano Por que e para que entatildeo fazer uma distinccedilatildeo Leonardo Boff no seu livro Ethos Mundial diz o seguinte

[] precisamos voltar ao sentido originaacuterio da eacutetica e da moralidade Todas as morais por mais diversas nascem de um transfundo comum que eacute a eacutetica Eacutetica somente existe no singular pois pertence aacute natureza humana presente em cada pessoa enquanto moral estaacute sempre no plural porque satildeo distintas formas de expressatildeo cultural e histoacuterica da eacutetica 23

Um olhar sobre o sentido original da palavra eacutetica pode esclarecer o seu rico e profundo sentido proacuteprio Na sua liacutengua de origem a grega eacutetica vem de ethos que tem duas grafias com letra e pequena ou grande e conforme o tamanho muda o sentido Ethos com letra pequena indica a morada abrigo permanente tanto dos animais como dos humanos Ela tem que ser construiacuteda pela atividade humana e por isso deve ser sempre reformada melhorada e aperfeiccediloada Assim pode-se dizer que a eacutetica tem por fim morar bem e para isto constituir objetivos fundamentais e valores e princiacutepios que norteiam a accedilatildeo humana Para os antigos entatildeo a eacutetica estaacute ligada ao bem ou aacute felicidade que devem ser perseguidos por meios que levem a esta bondade e felicidade Estes meios eram tambeacutem chamados de ethos mas com e grande e significam os costumes ou ldquoo conjunto de valores e de haacutebitos consagrados pela tradiccedilatildeo cultural de um povordquo24

Ao dizer-se que algueacutem natildeo tem eacutetica significa a ausecircncia nesta pessoa de princiacutepios norteadores para sua accedilatildeo que se desenvolve pois de acordo com as vantagens que possa conseguir e consequentemente coerecircncia e princiacutepios fazem falta na sua vida Por outro lado quando se garante que algueacutem natildeo possui moral indica-se que esta pessoa natildeo possui virtudes que a ajudem a ldquoconstruir sua moradardquo sua felicidade e age erradamente mentindo roubando explorando

Resumindo

[] moral eacute o conjunto de haacutebitos e costumes efetivamente vivenciados por um grupo humano Nas culturas dos grupos humanos estatildeo presentes haacutebitos e costumes considerados vaacutelidos porque bons bons porque justos justos porque contribuem para a realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

[] eacutetica eacute a reflexatildeo sobre a accedilatildeo humana para extrair dela o conjunto excelente de accedilotildees Eacute uma ciecircncia que tem por objeto a moral e a lei e pretende aprimorar

23 BOFF Leonardo Ethos Mundial Um consenso miacutenimo entre os humanos SI Letraviva Editorial Ltda 2000 pg 34 24 BOFF Leonardo op cit pg 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

173

as ldquoatividades realizadoras de sirdquo desenvolvidas pelos indiviacuteduos em busca do excelente25

41 A Eacutetica maquiaveliana

Com a difusatildeo do livro O Priacutencipe as ideacuteias de Nicolau Maquiavel se tornaram conhecidas mas tambeacutem quase de imediato foram atingidas por uma forte onda de severas criacuteticas A obra que pode ser considerada como a principal de Maquiavel foi qualificada de imoral e sem eacutetica Qual a razatildeo de tatildeo severo juiacutezo Ricardo Rodrigues responde a esta indagaccedilatildeo quando esclarece

[] Maquiavel simplesmente documentou verdades jaacute conhecidas pelos homens embora natildeo admitidas Tudo o que fez foi construir uma teoria poliacutetica a partir da combinaccedilatildeo de experiecircncia concreta no trato da coisa puacuteblica com a observaccedilatildeo aguda do processo poliacutetico aliada ainda ao estudo da histoacuteria26

Em verdade Maquiavel faz uma anaacutelise nua e crua da praacutetica poliacutetica do seu tempo como realmente era e natildeo como deveria ser Em primeira instacircncia estaacute o realismo poliacutetico por ele descrito como sendo a uacutenica maneira de algueacutem se tornar vitorioso no jogo pelo poder Este realismo poliacutetico que natildeo raro desprezava a moral vigente e a eacutetica tradicional feria em muitos aspectos os padrotildees escolaacutesticos da eacutepoca baseados nos estudos teoloacutegicos agostinianos e tomistas Esses estudos denotaram ideias que deveriam conduzir a accedilatildeo poliacutetica em vista da construccedilatildeo de uma sociedade baseada em princiacutepios cristatildeos conduzindo desta forma agrave construccedilatildeo da Cidade Justa ou de Deus sobre a terra27 defendendo neste sentido a consecuccedilatildeo do Bem Comum entendido em sentido cristatildeo Em outras palavras haacute um ideal a ser atingido e a eacutetica igual agrave praacutetica moral consequecircncia dela eacute julgada agrave luz deste ideaacuterio Esta posiccedilatildeo defendida embora com algumas pequenas diferenccedilas pelo pensamento da Igreja Catoacutelica de entatildeo tambeacutem se encontrava na visatildeo

25 DOS SANTOS Antonio Raimundo Eacutetica Caminhos da realizaccedilatildeo humana 4 ed Satildeo Paulo Editora Ave Maria 2004 pg 11 e 15 26 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Simposion Unicap no 2 1986 pg 44 27 Cf a grande corrente teoloacutegica que tem em Santo Agostinho o eu grande defensor e propagador especialmente na sua obra De Civitate Dei ndash (Sobre a Cidade de Deus ) que ateacute o seacuteculo XII-XIII foi a inspiraccedilatildeo maior para o ideal poliacutetico da Idade Meacutedia muitas vezes apresentada como o ideal da assim chamada Cristandade Santo Tomaacutes de Aquino natildeo negando a influecircncia agostiniana recebe grande aporte das ideias aristoteacutelicas como resta claro natildeo somente no seu pequeno tratado De Regno mas tambeacutem no extenso e inacabado comentaacuterio sobre a Poliacutetica e a Eacutetica do Nicocircmaco de Aristoacuteteles

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

174

filosoacutefica da poliacutetica baseada na teoria platocircnica com a sua cidade ideal regida pela justiccedila e aristoteacutelica em que o ideal da felicidade estaacute central o que foi intensamente estudado pelos saacutebios da eacutepoca Em outras palavras existem conceitos ideias de bem e de mal que servem como paradigma para a accedilatildeo humana uma ideia a que a accedilatildeo humana deve obedecer ou a qual se adaptar Satildeo os assim chamados valores eternos que transcendem tempo e lugar isto eacute possuem validade universal

Como consequumlecircncia da anaacutelise e descriccedilatildeo da poliacutetica de acordo com as ideacuteias de Maquiavel surge o assim chamado maquiavelismo teoria que procura ligar as ideias do Pensador de Florenccedila a procedimentos nocivos que lembram perfiacutedia astuacutecia crueldade e traiccedilatildeo E o que eacute pior para alguns estas expressotildees pejorativas continuam sobrevivendo no tempo e no espaccedilo e proliferam ainda hoje tanto na esfera poliacutetica como nas desavenccedilas do cotidiano

Eacute bem verdade que no acervo de qualidades do bom governante aceito por Maquiavel constavam a fraude e a mentira a dissimulaccedilatildeo e ateacute mesmo a crueldade 28 Isto natildeo significa todavia que Maquiavel defen-desse ou aconselhasse um estado turbulento de constantes lutas contra usurpadores gananciosos anarquicamente cruel em que os governantes poderosos mantivessem seus suacuteditos em regime de servidatildeo de tortura e perversidade

Por outro lado o Escritor Florentino nunca deixava de louvar a honestidade e a integridade em governantes29 Pelo estudo de fatos paacutes-sados entretanto e de outros da histoacuteria de entatildeo que havia presenciado e testemunhado enfatizava que o poliacutetico dependia de qualidades bem diversas Fazendo distinccedilatildeo entre honestidade e ingenuidade acreditava ele que praticar a honestidade sem levar em conta os efeitos prejudiciais para toda uma coletividade ou para a naccedilatildeo eacute de fato mera ingenuidade defeito maacuteximo de maus governantes

Discorrendo ainda sobre integridade Maquiavel considerava lou-vavel o fato de que o priacutencipe fosse um homem iacutentegro e mantivesse a palavra empenhada30 Ao mesmo tempo poreacutem alertava para o fato de que conforme a necessidade ele poderia abandonar a boa feacute desfazendo assim a palavra dada 28 Cf O Priacutencipe op cit cap XVII 29 Cf RODRIGUES RICARDO Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no 2 Recife Unicap 1986 pg 48 30 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

175

Um priacutencipe prudente natildeo deveraacute pois agir de boa feacute quando para fazecirc-lo precise agir contra seus interesses e quando os motivos que o levaram a empenhar a palavra deixarem de existir31

Em circunstacircncias adversas este poderia utilizar-se igualmente da dissimulaccedilatildeo porquanto os homens em geral satildeo tolos e sempre acreditam em quem lhes faz promessas ou lhes promete benefiacutecios Usando uma linguagem coloquial contemporacircnea ldquopara cada bobo haacute sempre um espertordquo

A argumentaccedilatildeo do Escritor Florentino sobre a crueldade reflete-se nos louvores e elogios feitos por ele ao Duque de Valentino citado como exemplo de um autecircntico e renomeado estadista

Ceacutesar Boacutergia era considerado cruel mas sua crueldade impocircs ordem agrave Romanha unificou-a reduzindo-a agrave paz e agrave fidelidade Se examinarmos bem este ponto veremos que na verdade ele foi muito mais clemente que o povo de Florenccedila que para fugir agrave reputaccedilatildeo de cruel permitiu a destruiccedilatildeo de Pistoia32

Eacute interessante esclarecer que a admiraccedilatildeo de Maquiavel por Ceacutesar Boacutergia natildeo emergiu do fato de ser este um homem perverso e cruel Em sua oacuteptica Ceacutesar Boacutergia surgiu como um governante eficiente destemido saacutebio capaz de comportar-se como priacutencipe em toda e qualquer situaccedilatildeo

Em virtude destas e de outras afirmaccedilotildees em torno do caraacuteter poliacutetico e do jogo pelo poder Maquiavel atraiu para si muitas criacuteticas atraveacutes dos tempos Seus conceitos e teorias foram analisados de vaacuterias maneiras e muito mal interpretados Como expresso anteriormente sua obra foi qualificada de imoral e sem eacutetica Impuseram ao Escritor a condiccedilatildeo de advogado da poliacutetica sem moralidade

Lauro Escorel refuta esta ideia quando diz que rdquoOs princiacutepios do poliacutetico florentino podem natildeo ser cristatildeos mas satildeo eacuteticosrdquo33

Natildeo partilhando igualmente daquela opiniatildeo que o Professor Cranston projeta o Escritor para uma dimensatildeo contraacuteria quando sugere que ldquoO argumento de Maquiavel parece-me ser o de que apenas existe uma verdadeira moralidade mas que por vezes o governante tem que a

31 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 32 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 33 ECSOREL Lauro O Pensamento Poliacutetico em Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

176

desrespeitarrdquo34 Cranston propotildee ainda que a principal razatildeo de o Florentino ser continuamente hostilizado

[] eacute a de que ele aconselha (os governantes) a fazerem consciente e deliberadamente o que muitos estatildeo fazendo de modo natural preferindo natildeo pensar no assunto [] Maquiavel nunca endossou o uso da fraude para a proteccedilatildeo de carreiras poliacuteticas aconselhando-a apenas para encobrir aqueles atos de Estado necessaacuterios que violam a moralidade35

Daiacute conclui-se que estes atos de Estado necessaacuterios correspondiam ao conceito maquiaveliano de ldquoragione di statordquo e agrave consciecircncia de que a poliacutetica eacute uma atividade autocircnoma do Estado e no Estado sem recurso ou associaccedilatildeo agrave eacutetica agrave jurisprudecircncia agrave moralidade cristatilde ou pagatilde Seria mais justo e claro dizer que haacute para Maquiavel uma mudanccedila no conceito da eacutetica Ele aceita que a accedilatildeo poliacutetica deve ser orientada por valores mas estes assumem caraacuteter totalmente diferente distanciando-se do ideal teoloacutegico filosoacutefico e sobretudo da ideaccedilatildeo da felicidade pessoal Para o Secretaacuterio Florentino o Estado eacute sem duacutevida o valor mais alto aleacutem do qual natildeo existe um limite Para ele a poliacutetica resumia-se numa coisa conquistar e manter o poder ou a autoridade no domiacutenio conquistado Portanto a religiatildeo a moral e outros valores que os humanistas pretendiam associar agrave poliacutetica nada tinham de relaccedilatildeo com aquele ponto fundamental Permitia-se a exceccedilatildeo apenas nos casos em que a religiatildeo e a moral contribuiacutessem para a conquista e a manutenccedilatildeo do poder quando entatildeo se tornam meios para a grandeza do Estado

Eacute preciso natildeo esquecer de que a razatildeo de Estado implica um cunho social Isto quer dizer que embora o Estado representasse poder pessoal prestiacutegio e forccedila para o governante focalizava e visava tambeacutem aos suacuteditos toda uma comunidade de homens para gerenciar e prover Para Maquiavel isto era um ponto de capital importacircncia visto que ele deixa transparecer nos seus escritos a opiniatildeo que considera os homens maus de nascenccedila e iacutendole Por conseguinte de nada adiantariam a boa-feacute a integridade e a honestidade do priacutencipe se estas virtudes natildeo impedissem a sua ruiacutena levando o Estado agrave fraqueza e agrave derrota que tem como consequecircncia o domiacutenio inimigo o qual provocaria natildeo soacute a inquietaccedilatildeo mas tambeacutem o sofrimento de toda a coletividade Esta inquietaccedilatildeo e o concomitante sofrimento por sua vez causariam a desconfianccedila e ateacute a 34 CRANSTON Maurice Poliacutetica e eacutetica Em KING PRESTON O Estudo da Poliacutetica Brasilia Universidade de Brasiacutelia 1980 Citado em RICARDO Rodrigues Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p 49 35 Cranston OC Em RODRIGUES op cit p 50

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

177

revolta dos cidadatildeos e enfraqueceriam o Estado Por isso o aspecto eacutetico para Maquiavel estaacute nas mais elevadas regras de grandeza de Estado manutenccedilatildeo do poder governabilidade e defesa custe o que custar do Estado ou do domiacutenio do priacutencipe Eacute na histoacuteria e tambeacutem nas suas aventuras diplomaacuteticas que Maquiavel viu estes princiacutepios sendo praticados ndash para o bem do Estado e do seu priacutencipe e suacuteditos - ou negli-genciados ndash para a sua ruiacutena e fraqueza

Ricardo Rodrigues aprecia e tenta justificar esta doutrina maquiave-liana quando destaca ldquoEacute necessaacuterio poreacutem perguntar desapaixonadamente se Maquiavel realmente merece ser considerado ldquomaquiaveacutelicordquordquo36 O autor reaviva a polecircmica em cima de Maquiavel e chega aacute conclusatildeo de que o Florentino natildeo quis propriamente sugerir como os priacutencipes deveriam se comportar para que sua poliacutetica se adequasse ao ideal eacutetico da sociedade mas apenas registrou como realmente procediam de modo que um entre os outros natildeo poderia se comportar diferentemente caso quisesse se conservar no trono e natildeo passar por ingecircnuo

Vasquez eacute outro autor que se inclina para separar a eacutetica da poliacutetica e declara

Na poliacutetica o indiviacuteduo encarna uma funccedilatildeo coletiva e a sua atuaccedilatildeo diz respeito a um interesse comum Na moral pelo contraacuterio ainda que o coletivo esteja sempre presente o elemento iacutentimo pessoal desempenha o papel importante [] interiorizando as normas gerais e assumindo responsabilidades pessoais37

Na realidade o fato mais notoacuterio eacute que ainda nos dias de hoje os estudiosos que procuram abordar ou elucidar o mesmo tema ou seja comprovar ou natildeo a identificaccedilatildeo da poliacutetica com a moral e a eacutetica sempre tentam se basear nos pressupostos constantes da filosofia poliacutetica do famoso Escritor Florentino

42 A moral em Maquiavel

Sabe-se que vaacuterios pensadores contemporacircneos de Maquiavel escre-veram tambeacutem como este manuais da linha ldquoEspelho dos Priacutencipesrdquo38 com o intuito de oferecer um norteamento comportamental para aquele que governa pautado tatildeo somente numa moral cristatilde 36 RODRIQUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na poliacutetica Op cit p 43-53 37 VASQUEZ Adolfo Sanchez Eacutetica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 pg 77 38 Eacute um gecircnero literaacuterio antigo que se espalhou sobre a Europa Medieval com base em fontes orientais nos seacuteculos XII a XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

178

A corrente filosoacutefica tradicional enfatiza a tese de que a virtugrave caracterizada por qualidades morais individuais como a justiccedila devia ser completada pelas qualidades ou virtudes cristatildes como a bondade e a feacute

Ao contraacuterio Maquiavel prefere romper com as tendecircncias medie-vais Resolve apresentar o seu ldquoEspelhordquo com caracteriacutesticas diferentes deixando de lado princiacutepios de uma moral cristatilde Rejeita imperativos categoacutericos como leis morais natildeo relativizaacuteveis por consideraacute-los belos ou atraentes como conceitos teoacutericos mas ineficazes na praacutetica da vida puacuteblica Estudiosos do universo maquiaveliano como Berlin39 e Skinner40 compartilham da ideacuteia de que essa preocupaccedilatildeo em romper e ateacute mesmo denunciar a ingenuidade das teorias poliacuteticas reflete o traccedilo de maior originalidade de Maquiavel

O Florentino rejeita a filosofia poliacutetica tradicional acreditando que os comentadores de sua eacutepoca natildeo haviam conseguido perceber a incompati-bilidade de uma ldquomoral cristatilderdquo que atenda agrave pessoa e uma ldquomoral poliacute-ticardquo que atenda ao coletivo no caso o Estado

Essa incompatibilidade reside na natureza humana representada por homens maus levianos covardes e gananciosos Na tentativa de comprovar a sua tese Maquiavel resume seu pensamento numa frase lapidar

[] Seria muito louvaacutevel que um priacutencipe possuiacutesse todas as qualidades consideradas boas Natildeo sendo isto poreacutem inteiramente possiacutevel devido agraves proacuteprias condiccedilotildees humanas eacute necessaacuterio a um priacutencipe aprender a natildeo ser bom41

Acredita Maquiavel que a histoacuteria eacute ciacuteclica e que os costumes variam de regiatildeo para regiatildeo de eacutepoca para eacutepoca Assim sendo como eacute impos-siacutevel frear as paixotildees e os instintos humanos os conflitos e as desordens aconteceriam indefinidamente Continuamente estariam presentes os mesmos viacutecios ou as mesmas virtudes

Para o Pensador Florentino entretanto cujo sonho era ver a Itaacutelia renascida como um Estado forte como outrora o Impeacuterio Romano era fundamental acabar com a desordem causadora de uma situaccedilatildeo poliacutetica tatildeo caoacutetica como a da Peniacutensula Italiana do seu tempo Realmente 39 BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees internacionais Textos de Aula Brasilia UnB sd 40 SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988 41 MAQUIAVEL O Priacutencipe Cap XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

179

parafraseando Rodrigues42 eacute possiacutevel dizer que a visatildeo histoacuterica poliacutetica dominante nesta parte da Europa expressava um exemplo significativo dessa malignidade humana a Peniacutensula dividida a ausecircncia de um poder central lutas fratricidas conflitos violentos entre pequenas naccedilotildees ou principados italianos invasotildees promovidas por impeacuterios ou grandes reinos vizinhos o poder temporal da Igreja tantas vezes se transformando em outro obstaacuteculo Afinal um quadro desolador de fraqueza total e de insignificacircncia poliacutetica

Preocupado angustiado mesmo com esse alarmante contexto histoacute-rico em que a Itaacutelia (inclusive Florenccedila) se encontrava envolvida Maquiavel fortifica cada vez mais a sua visatildeo sonhadora de uma paacutetria forte unida eficiente e eficaz Nesta perspectiva munido por um espiacuterito empiacuterico tambeacutem realista o Pensador Florentino assume posiccedilatildeo ideoloacutegica isto eacute pragmaacutetica poliacutetica e para muitos revolucionaacuteria

Vaacuterios inteacuterpretes concordam com a noccedilatildeo de que Maquiavel levado naturalmente por seu empirismo toma aquela dura e cruel conjun-tura poliacutetica como um desafio43 Em decorrecircncia passa a conceber um priacutencipe heroacutei um priacutencipe valoroso determinado capaz de ir ateacute as uacuteltimas consequumlecircncias a fim de alcanccedilar seus objetivos que era ndash nada mais nada menos ndash a regeneraccedilatildeo da Repuacuteblica Conforme o pensamento de Liacutedia Maria ldquoo projeto poliacutetico do secretaacuterio florentino apontava essencialmente para a construccedilatildeo de um Estado forte unificado e voltado para o bem comumrdquo 44

Levando em conta o contexto histoacuterico sobre o qual se discorreu anteriormente pocircr em praacutetica semelhante projeto poliacutetico natildeo era tarefa simples Daiacute por que o priacutencipe idealizado por Maquiavel deveria ser virtuoso ou pelo menos parecer ser e aleacutem disso deveria possuir muita astuacutecia esperteza e sabedoria para pautar as suas accedilotildees com vistas agraves circunstacircncias Neste sentido a visatildeo do Florentino eacute incisiva haacute viacutecios que satildeo virtudes Natildeo tema pois o priacutencipe que deseje se manter no poder incorrer no oproacutebrio dos defeitos mencionados se tal for indispen-saacutevel para salvar o Estado Aconselhava ainda ao priacutencipe saacutebio que devia se aproveitar sempre das oportunidades (ocasione) ldquoaprender os meios de natildeo ser bom e a fazer uso ou natildeo deles de acordo com as

42 Cf RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p49-52 43 Cf por exemplo Paul Larivaille e Newton Bigotto 44 RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel ndash Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002 pg 31

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

180

necessidadesrdquo45 De conformidade com a teoria poliacutetica maquiaveliana o priacutencipe poderia ateacute praticar o mal desde que seu ato fosse justificaacutevel ou melhor que resultasse num bem maior para todos a estabilidade do Estado

Interpretando a filosofia poliacutetica de Maquiavel dentro dessa oacuteptica Rodrigues conclui

Eacute assim que a poliacutetica maquiaveliana se faz autocircnoma A finalidade eacute excelsa e imperativa porque necessaacuteria inevitaacutevel originaacuteria e fundamental eacute uma legitimaccedilatildeo tatildeo forte que pode atropelar qualquer consideraccedilatildeo eacutetica O absolutismo eacute justificado 46

Assumindo posicionamento tatildeo radical era loacutegico pois que a concepccedilatildeo maquiveliana entrasse fundamentalmente em choque com a consciecircncia moral da tradiccedilatildeo poliacutetica cristatilde De fato dos pensadores cristatildeos dos liberais e dos teoacutericos do Estado beneficente emerge uma contundente onda de criacuteticas contra o Pensador Florentino Eacute tachado de ciacutenico imoral inescrupuloso democircnio espiacuterito satacircnico autor maldito e outros adjetivos do mesmo gecircnero

Como consequecircncia deste panorama Maquiavel passou a ser deveras incompreendido incompreensatildeo que perdura ateacute os dias atuais Um comen-tador recente jaacute o compreendeu ldquocomo uma das figuras mais emblemaacuteticas sendo odiado por muitos amado por outros e incompreendido pela grande maioriardquo47

Consideraacutevel nuacutemero de leitores desinformados alguns deles em total ignoracircncia a respeito das obras de Maquiavel ainda hoje evocam a figura do Secretaacuterio Florentino ou associam o seu nome a dois termos que assumiram sentido pejorativo maquiaveacutelico e maquiavelismo Nas duas acepccedilotildees datildeo ideia de indiviacuteduos traiccediloeiros auspiciosos caloteiros

Quem de noacutes por exemplo natildeo presenciou algueacutem se utilizando do termo maquiaveacutelico para criticar ou denunciar uma pessoa desleal corrupta que para conseguir vantagens pessoais sai atropelando tudo e todos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer aspecto eacutetico ou moral

45 MAQUIAVEL O priacutencipe cap XV 46 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a eacutetica na poliacutetica Op cit pg 71 47 AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e Razatildeo de Estado Faculdade Autocircnoma de Direito SDatildeo Paulo dezembro de 2008

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

181

Portanto neste trabalho evitou-se de propoacutesito o adjetivo maquia-veacutelico irremediavelmente distorcido por interpretaccedilatildeo errocircnea usando em seu lugar a expressatildeo maquiaveliana

Ainda em decorrecircncia desta atitude objetiva e desapaixonada assumida por Maquiavel fugindo dos padrotildees escolaacutesticos do seu tempo ateacute o seacuteculo XVII eram poucos os doutrinadores que aceitavam aberta-mente os seus pressupostos E no seacuteculo XIX desenterraram a ceacutelebre frase que lhe eacute igualmente atribuiacuteda os fins justificam os meios a qual natildeo consta dos seus escritos sentenccedila cujo uso se faz geralmente isolada do contexto unidade de ideia que jamais algueacutem comprovou tecirc-lo ouvido pronunciar E se realmente o Poliacutetico Florentino a abordava os fins eram tatildeo admiraacuteveis que natildeo poderia ningueacutem deixar de o louvar

Na Modernidade poreacutem as obras do Grande Pensador passaram a ser efetivamente analisadas discutidas e apreciadas Atingiu-se a essecircncia de sua filosofia poliacutetica e Maquiavel com a imagem resgatada aparece cintilante no universo de autores bem-sucedidos

Atualmente comentadores de renome de todos os cantos se arvoraram em defensores do Autor Florentino tecendo-lhes referecircncias honrosas e louvores Entre os que concordam com opiniotildees conclusotildees e interpretaccedilotildees de Maquiavel aponta-se o nome de Mounin

Pode-se afirmar que o secretaacuterio teve honroso papel na poliacutetica da eacutepoca com os meios da eacutepoca agrave medida da eacutepoca - no seu lugar Florenccedila e com as cartas que tinha em matildeo as cartas florentinas que natildeo constituiacuteam um jogo famoso Na histoacuteria do seu tempo Maquiavel eacute vencido natildeo um falhado48

E na tentativa de defender Maquiavel contra seus adversaacuterios Mounin acrescenta

Maquiavel foi realmente um poliacutetico que se alimentou de fatos apaixonado por fatos incansaacutevel na anaacutelise dos fatos [] Pode mesmo afirmar-se um dos mais certos meacuteritos de Maquiavel e um dos menos notados dos menos ceacutelebres tambeacutem eacute a paciecircncia incansaacutevel com que pinta com minuacutecia o espetaacuteculo infinito da complexidade dos fatos Mesmo se quase nunca estamos de acordo com ele acerca das causas e conexotildees a leitura de Maquiavel eacute um antiacutedoto salutar sem disso fazer um dogma unicamente devido ao cuidado que potildee na descriccedilatildeo ensina a cada linha que em poliacutetica nada eacute tatildeo simples como parece49

48 MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 p 15 49 MOUNIN Georges Maquiavel op cit p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

182

Nos tempos modernos outro doutrinador que merece igualmente ter seu nome incluiacutedo na lista dos defensores de Maquiavel eacute Lauro Escorel quando expressa

Maquiavel natildeo traccedilou portanto regras poliacuteticas que estivessem em contradiccedilatildeo com o seu tempo e que passassem desde entatildeo a ser germes de corrupccedilatildeo ou incentivos ao absolutismo como seus adversaacuterios quiseram fazer crer limitou-se a registrar dados de fato normas empiacutericas de conduta que explicaram no passado e no presente os ecircxitos e fracassos poliacuteticos Ao mesmo tempo interpretou ele as tendecircncias poliacuteticas da eacutepoca que era o absolutismo real e o secularismo sob cujos auspiacutecios nascia o Estado Moderno [] Se alguma responsabilidade moral lhe pode ser atribuiacuteda seraacute a de natildeo se ter preocupado em submeter a praacutetica poliacutetica ao crivo de um coacutedigo moral meta-histoacuterico mas isto resulta do meacutetodo indutivo-empiacuterico que o espiacuterito da Renascenccedila lhe inspirou50

Encontra-se nos escritos de Bertrand Russel talvez uma das mais ardorosas e eloquentes defesas de Maquiavel contra as criacuteticas dos anti-maquiavelistas Suas palavras comprovam esta afirmaccedilatildeo

A Renascenccedila embora natildeo haja produzido nenhum filoacutesofo teoacuterico importante produziu um homem de suprema eminecircncia na filosofia poliacutetica Maquiavel Eacute costume sentir-se a gente chocada por ele e natildeo haacute duacutevida de que agraves vezes ele realmente eacute chocante Mas muitos outros homens tambeacutem o seriam se fossem igualmente livres de hipocrisia Sua filosofia poliacutetica eacute cientiacutefica e empiacuterica baseada em sua proacutepria experiecircncia dos assuntos preocupada em declarar os meios de se chegar a determinados fins sem se preocupar de se saber se tais meios satildeo considerados bons ou maus Quando em certas ocasiotildees se permite mencionar os fins que deseja estes satildeo de tal natureza que natildeo podemos senatildeo aplaudi-los Grande parte da difamaccedilatildeo convencional ligada ao seu nome deve-se agrave indignaccedilatildeo dos hipoacutecritas que odeiam o franco reconhecimento das maacutes accedilotildees Resta eacute certo uma boa parte que realmente exige criacutetica mas nisto ele eacute uma expressatildeo de sua eacutepoca Tal honestidade intelectual a respeito da desonestidade poliacutetica dificilmente teria sido possiacutevel em qualquer outra eacutepoca e em qualquer outro paiacutes exceto talvez na Greacutecia entre os homens que deviam sua educaccedilatildeo teoacuterica aos sofistas e seu adestramento praacutetico agraves guerra de minuacutesculos Estados que tanto na Greacutecia claacutessica como na Itaacutelia da Renascenccedila eram o acompanhamento poliacutetico do gecircnio individual51

50 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 20 51 RUSSEL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969 p20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

183

A tendecircncia moderna diz que natildeo se deve simplesmente ldquodenegrir a imagem de Maquiavel e nem tatildeo pouco louvaacute-lo indiscriminadamenterdquo52 Concorda-se em gecircnero e nuacutemero com esta afirmaccedilatildeo predominante nos dias atuais Natildeo haacute duacutevida de que o Autor Florentino cometeu erros mas acertou muito mais Jamais se deve esquecer de que ele foi um produto do meio O peixe natildeo vive fora drsquoaacutegua E para Maquiavel era quase impos-siacutevel emergir da turbulecircncia histoacuterica em que viveu O Poliacutetico de Florenccedila foi praticamente nocauteado Seu espiacuterito confrontou-se com um dilema de escolha viver ou morrer E quem preferia morrer O que faz um homem todo dia senatildeo lutar pela sobrevivecircncia O poder poliacutetico era uma loteria Para ganhar qualquer priacutencipe teria de jogar Na luta pelo poder Maquiavel justificava o uso das armas ou da crueldade Por outro lado sempre dava liccedilotildees ao povo para se livrar dos tiranos53

5 Consideraccedilotildees finais

Maquiavel ao expor o pensamento ou ideias sobre a poliacutetica o fez de modo genial sem se deixar aprisionar por nenhuma corrente literaacuteria ou doutrinaacuteria Criou estilo proacuteprio pessoal Como consequumlecircncia seus escritos foram analisados de maneiras diversas inclusive mal interpretados Nos nossos dias ainda haacute algueacutem que natildeo consegue interpretaacute-lo com clareza coerecircncia e plena nitidez

Para uns Maquiavel parece ser o protoacutetipo do poliacutetico sem escruacute-pulos sem eacutetica que age de acordo com as circunstacircncias que se lhe apresentam Destarte eacute considerado um escritor e pensador nocivo cujas ideias devem ser banidas da praacutetica poliacutetica e substituiacutedas por uma ldquoverdadeirardquo atitude eacutetica

Para uns Maquiavel eacute considerado um elitista ao contraacuterio de outros que o tecircm em conta como um democrata autecircntico que natildeo via outro fator capaz de sustentar a estabilidade de todo e qualquer regime senatildeo a forccedila e o apoio popular E ainda hoje este axioma converge na poliacutetica moderna onde nenhuma autoridade se conserva no jogo do poder quando natildeo goza de boa reputaccedilatildeo e grande simpatia junto ao povo

52 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 21 53 Biografia Niccoloacute Machiavelli ndash 1469-1527 Disponiacutevel em wwwplmitorjnet Acessado em 15 de dezembro de 2010

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

184

Ainda haacute pessoas que o apresentam como defensor da forccedila e do absolutismo enquanto outras o exaltam na qualidade de conselheiro dos governantes republicano e amigo das leis

Natildeo obstante todas estas controveacutersias e talvez exatamente por causa delas a filosofia empiacuterica e cientiacutefica de Maquiavel se tornou um marco inestimaacutevel na trajetoacuteria da ciecircncia poliacutetica e universal

Como explicar que Maquiavel poreacutem eacute um verdadeiro ponto de referecircncia no desenvolvimento da ciecircncia poliacutetica O fato eacute que em decorrecircncia dos ensinamentos dele a arte da poliacutetica natildeo estaacute mais ligada agrave formulaccedilatildeo de ideais abstratos e por muitas vezes utoacutepicos de um bem comum formulado com suporte num ideal cristatildeo mas na observaccedilatildeo da praacutetica da accedilatildeo poliacutetica e na formulaccedilatildeo clara dos objetivos que se intente alcanccedilar Tambeacutem estaacute se vendo que a eacutetica na poliacutetica natildeo deve ser concebida e avaliada nos mesmos termos que a eacutetica individual com suas normas do bem e do mal A filosofia contemporacircnea fundamenta-se na efetiva perseguiccedilatildeo de eficaacutecia vigor patrioacutetico anaacutelise aguda das circunstacircncias na procura do fortalecimento e conservaccedilatildeo da paacutetria

Natildeo deve ser esquecido o fato de que nos primeiros tempos Maquiavel foi incompreendido por ser aquele expectador objetivo do processo poliacutetico que se manifesta nos seus escritos Na verdade a arte poliacutetica maquiveliana sempre procurou assentar-se na verdade efetiva das coisas ignorando a busca de como as coisas deveriam ser Com o realismo que lhe eacute peculiar o autor florentino pretendia apenas ensinar ao priacutencipe a fugir do imaginaacuterio recusando imagens idealizadas pela natureza humana mas irreais e que nunca existiram Para evitar a ruiacutena e tornar-se vitorioso o detentor do poder deveria se fixar no real e considerar os homens como eles realmente satildeo

Desempenhando o papel de mestre dos priacutencipes legou agrave contempo-raneidade um dos seus mais relevantes ensinamentos O caminho para o governante se tornar eficaz e tambeacutem responsaacutevel eacute basear seus empreen-dimentos em informaccedilatildeo correta previsatildeo de futuros imprevistos diagnoacutestico oportuno caacutelculo exato dos resultados previsiacuteveis tomada de decisatildeo na hora certa e muita sabedoria

Pretendendo dar conselhos aos priacutencipes prestou um excelente serviccedilo agrave humanidade Aconselhou a prudecircncia para todas as geraccedilotildees Sendo cauteloso o homem procura logo a cura de seus males em vez de tomar providecircncias tardias muitas vezes sem chances de remediaacute-los

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

185

Ensinou a todos a ver aleacutem das aparecircncias e descobrir o essencial aquilo que fica escondido sob os bastidores do teatro da vida

Evitar sempre a neutralidade e a dubiedade foi outra importante liccedilatildeo A pessoa que natildeo assume corajosamente sua verdadeira posiccedilatildeo natildeo inspira credibilidade e jamais conseguiraacute a confianccedila a lealdade e a afeiccedilatildeo de outrem

Conclamou Maquiavel as geraccedilotildees a natildeo se deixarem abater diante das crises ou dos momentos de infortuacutenio Ao contraacuterio eacute preciso lutar sempre pelas suas convicccedilotildees e acreditar firmemente que vencer sem luta eacute triunfar sem gloacuteria

Apoacutes a divulgaccedilatildeo de sua obra mais importante O Priacutencipe Maquiavel teve suas reflexotildees poliacuteticas muito mal interpretadas confor-me jaacute expresso E esta incompreensatildeo perdura por seacuteculos ateacute os dias atuais Basta que se procure num dicionaacuterio o significado do vocaacutebulo maquiaveacutelico e logo se encontra como sinocircnimo deste termo rdquoindiviacuteduo que age com astuacutecia perfiacutedia ou malvadezardquo Interpretaccedilotildees dessa natureza nada tecircm de verdadeiro Sempre satildeo resultantes de leigos desinformados ou mesmo acadecircmicos que natildeo efetuam uma anaacutelise mais atenta e cuidadosa sobre as posiccedilotildees poliacuteticas de Maquiavel E destarte natildeo atingem a profundidade do complexo ideaacuterio maquiveliano Nesta perspectiva acredita-se que a maior ofensa que se possa cometer contra o Notaacutevel Escritor Florentino eacute essa heranccedila maldita em torno de seu nome

O Priacutencipe eacute na atualidade um dos livros mais polecircmicos e mais lidos do mundo Sem qualquer duacutevida um verdadeiro best-seller Conteacutem subsiacutedios para todo e qualquer leitor que queira se aprofundar no conhecimento das regras e artiacutefices da arte de governar Considerado como um verdadeiro breviaacuterio sobre poliacutetica tornou-se livro de cabeceira para vaacuterios governantes Determinar o fim da influecircncia doutrinaacuteria medieval sobre a investigaccedilatildeo poliacutetica contemporacircnea foi sua importacircncia funda-mental

Apesar do seu intenso vigor patrioacutetico o Diplomata Florentino morreu sem presenciar a realizaccedilatildeo do seu sonho maior ver sua paacutetria - a Itaacutelia renascentista ndash cintilando no panorama das naccedilotildees fortes unidas estaacuteveis e desenvolvidas E poreacutem por meio das paacuteginas de O Priacutencipe transmitiu um admiraacutevel cabedal de conhecimentos sobre a loacutegica que rege a conquista e a manutenccedilatildeo do poder

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

186

Por tudo o que se abordou neste trabalho acredita-se firmemente que com justa razatildeo Maquiavel merece o cognome de ldquopai da ciecircncia poliacutetica modernardquo

Referecircncias Bibliograacuteficas

AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e razatildeo de Estado Satildeo Paulo sEd dezembro de 2008

BATISTA Flaacutevio Donizete Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Disponiacutevel em http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 25 de ou-tubro de 2010

BELLOZO Edson Maquiavel e as origens do pensamento poliacutetico moderno Disponiacutevel em wwwminiwebcombrcienciasartigosmaquiavel Aces-so em 15-09-2010

BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Textos de Aula Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Internacionais Brasiacutelia UnB sd

BIRARDI A e Castelani G R Desmistificando Maquiavel Ensaio acerca de sua histoacuteria obras e conceitos Disponiacutevel em httpwwwklepsidra netklepsidra4maquiavelhtn Acessado em 18092010

BIGNOTTO Newton Maquiavel Republicano Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1991

BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

CAILLEacute Alain LAZZERI Christian SENELLART Michel (organizado-res) Histoacuteria argumentada da Filosofia Moral e Poliacutetica Satildeo Leopoldo Editora UNISINOS 2003

BARROS Vinicius Soares de Campos 10 liccedilotildees sobre Maquiavel Petroacute-polis Editora Vozes 2010

FRANCO Afonso Arinos de Mello O Pensamento poliacutetico na Renas-cenccedila Cadernos da UnB Humanidades Brasiacutelia UnB 1980 p 19-27

DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores Ltda 1984

ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao pensamento poliacutetico de Maquiavel Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1979

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

187

______ O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 18-52

GREGORIO Fernando Ceacutesar Aplicando Maquiavel no dia a dia Satildeo Paulo Madras Editora Ltda 2008

GRUPPI Luciano Tudo comeccedilou com Maquiavel Porto Alegre L amp PM Editores 1988

LARIVAILLE Paul A Itaacutelia no tempo de Maquiavel (Florenccedila e Roma) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

MAQUIAVEL O Priacutencipe Comentado por Napoleatildeo Bonaparte Traduccedilatildeo Pietro Nassetti Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

MAQUIAVEL Nicolau Comentaacuterios sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1992

MOREIRA Marcilio Marques O Pensamento Poliacutetico de Maquiavel Textos de aula Brasiacutelia Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Interna-cionais sd

MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984

REALE Giovanni e ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Do Huma-nismo a Descartes Satildeo Paulo Paulus 2004

RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002

RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no2 Recife Unicap 1986 p 43-53

RODRIGUES Ruy Martinho Priacutencipe Lobo e Homem Comum (Anaacutelise das Ideacuteias de Maquiavel Hobbes e Locke) Fortaleza UFC 1997

RUSSELL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969

SANTOS Vivian Matias dos Niccolo Machiavelli moralista ou intelec-tual orgacircnico Em Mediaccedilotildees v12 n2 p 175-187 juldez 2007

SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988

STRATHERN Paul Maquiavel (em 90 minutos) Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

188

WEBER Hingo O priacutencipe amp Maquiavel sem ideologias Petroacutepolis Editora Vozes 2007

SADEK Maria Nicolau Maquiavel o cidadatildeo sem Fortuna e o intelectual de virtugrave Em WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2003

WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Licenciada em Filosofia e Histoacuteria pela Faculdade de Filosofia do Cearaacute e

Especialista em Gestatildeo Puacuteblica pela Universidade Vale do Acarauacute

Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos Doutor em Teologia pela Pontiacutefica Universidade Gregoriana

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

189

SOBRE A RELACcedilAtildeO DINAcircMICA DA REALIDADE SUPRA-SENSIacuteVEL SEGUNDO PROCLO

SUR LA RELATION DYNAMIQUE DE LA REacuteALITEacute

SUPRASENSIBLE SELON PROCLUS

Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha

Resumo

O presente artigo tem por objetivo demonstrar porque as relaccedilotildees dinacircmicas satildeo imprescindiacuteveis na filosofia procleana Para tanto parte-se da problemaacutetica da inexis-tecircncia de movimento na realidade supra-sensiacutevel mostrando que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento de deslocamento Defende-se pois que natildeo se trata em Proclo (412 ndash 485 dC) de uma sucessatildeo de eventos e nem de uma mudanccedila na substacircncia Desta forma apoacutes a anaacutelise do movimento de processatildeo parte-se para a consideraccedilatildeo do papel das triacuteades da realidade incorpoacuterea para soacute entatildeo verificar a importacircncia das relaccedilotildees dinacircmicas na multiplicaccedilatildeo e diversidade dos seres Apoacutes ser estudado o papel das triacuteades seraacute possiacutevel perceber que natildeo eacute o movimento o responsaacutevel pela diversidade mas a relaccedilatildeo dinacircmica que a possibilita Assim este trabalho se fundamenta nos Elementos Teoloacutegicos de Proclo

Palavras-chave Proclo Triades Relaccedilatildeo Dinacircmica

Resumeacute Lrsquoobjectif de cette recherche est montrer que les relations dynamiques sont indispensables dans la philosophie proclienne Alors il part de la question de lrsquoabsence du mouvement dans les reacutealiteacutes suprasensibles montrant que le mouvement de oprocession nrsquoest ni une sucession drsquoeacuteveacutenements ni un changement dans la substance Apregraves analyser le mouvement de procession il fait lrsquoexamen de la function des triades dans la reacutealiteacute incorporelle et veacuterifie lrsquoimportance des relations dynamiques dans la multiplication et dans la diversiteacute des ecirctres Apregraves lrsquoeacutetude de la function des triades il sera possible comprendre que nrsquoest pas le mouvement le responsable pour la diversiteacute mais la relation dynamique qui la rend possible Cet eacutetude est fondamenteacutee dans lrsquooeuvre Eacuteleacutements de Theacuteologie de Proclus (412-485 a C)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

190

Mots-cleacutes Proclus Triades Relation Dynamique

Introduccedilatildeo

Herdeiro da filosofia pagatilde Proclo (412-485 dC) eacute considerado o uacuteltimo expoente de destaque da filosofia antiga a atuar na escola de Atenas1 Como neoplatocircnico as teses do Bizantino satildeo marcadas pela tentativa de conciliaccedilatildeo das doutrinas platocircnicas aristoteacutelicas e pitagoacutericas Por estar inserido no contexto das escolas da Antiguidade Tardia os escritos do filoacutesofo satildeo caracterizados por sua sistematicidade Neste sentido o pensador ao expor a passagem da unidade agrave multiplicidade natildeo admite passagens abruptas e portanto natildeo concebe que do Uno surja imediatamente a multiplicidade em sua complexidade isto eacute ele natildeo concebe uma passagem imediata do Uno ao Noucircs

Entretanto ainda que a passagem do Uno ao muacuteltiplo seja algo fundamental na filosofia procleana ela encerra um problema Acontece que Proclo na realidade supra-sensiacutevel natildeo admite movimento na substacircncia Diante disto partindo da ideia platocircnica de que ldquomudanccedila eacute movimentordquo2 a diferenccedila entre os seres da realidade imaterial natildeo pode ser explicada Uma vez que sem movimento natildeo haacute produccedilatildeo Assim para solucionar tal problemaacutetica parte-se da hipoacutetese de que a diferenccedila na realidade imaterial natildeo eacute o resultado de um movimento de deslocamento ou da proacutepria substacircncia dos seres mas da relaccedilatildeo entre os princiacutepios que os constituem Para verificar tal hipoacutetese eacute preciso iniciar a anaacutelise com o

1 Fechada em 529 por Justiniano de acordo com o decreto que afirma ldquoNingueacutem que tenha sido contagiado por tais heresias poderaacute desempenhar grau no exeacutercito ou exercer ofiacutecios puacuteblicos nem na condiccedilatildeo de professor que se ocupe de alguma disciplina () Proibimos que seja ensinada qualquer doutrina da parte daqueles que satildeo afetados pela insacircnia dos iacutempios pagatildeosrdquo (REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008 p 206-208)Tal decreto que afetou profundamente as escolas de vertente pagatilde fez com que pensadores da Academia como Simpliacutecio (490 ndash 560 dC) e Damascius (458 ndash 583 dC) fugissem para Peacutersia A fim de dar continuidade aos estudos permaneceram por volta de 531532 na corte de Khussraw I pois o rei da Peacutersia se mostrava simpatizante do pensamento grego Somente em 533 por ocasiatildeo do ldquotratado de paz eternardquo assinado entre os persas e os bizantinos retornaram ao Ocidente Sobre a fuga dos pensadores pagatildeos para a Peacutersia ver SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012 paacuteg 62-74 2 Parmecircnides 162c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

191

movimento de processatildeo pois eacute por ele que primeiramente Proclo explica a saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade

1 O movimento de processatildeo

De acordo com a filosofia procleana a multiplicidade soacute pode ser pensada se a unidade for pressuposta Assim toda multiplicidade participa de tal forma da unidade que a sua natildeo participaccedilatildeo implicaria em uma multiplicaccedilatildeo infinita o que seria um engano Pois se a multiplicidade natildeo participasse da unidade ou a proacutepria multiplicidade seria una ou natildeo-una e no caso de ser natildeo-una ou seria muitas ou nada Admitir que ela eacute nada eacute cair num contrassenso pois como algo (um existente) poderia ser nada Ou ainda como pode haver geraccedilatildeo se o ser natildeo pode advir do nada Por outro lado a tese de que a multiplicidade existe precisa de uma anaacutelise cuidadosa uma vez que afirmar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla pode levar a aporias jaacute que sua gecircnese natildeo seria explicada fazendo com que se caia numa regressatildeo infinita3

A regressatildeo aconteceria porque ao sustentar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla e natildeo una se admite que cada parte que a compotildee tambeacutem eacute muacuteltipla de modo que nunca se chega a um princiacutepio Logo haacute uma necessidade de contornar a ideia da regressatildeo ad infinitum Para tanto o princiacutepio como unidade eacute posto como indispensaacutevel mediante a ideia de que se fossem dois ou eles seriam iguais ou diferentes Sendo iguais se trataria de apenas uma substacircncia ou seja seriam um sendo diferentes um teria de ser o primeiro derivando entatildeo um do outro Se os dois estivessem no mesmo patamar nenhum seria o primeiro o que significaria a existecircncia de algo acima deles que os deu origem Entatildeo o que pode se perceber eacute que natildeo importa o caminho seguido a razatildeo sempre leva a um primeiro que eacute fundamentalmente um4 Assim este Um no neoplatonismo eacute posto como unidade absolutamente simples da qual toda multiplicidade participa

Proclo entatildeo faz surgir da unidade toda multiplicidade Esta multiplicaccedilatildeo da unidade originaacuteria se daacute por meio do movimento de processatildeo que eacute composto por trecircs momentos muito distintos mas que

3 PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995 Proposiccedilatildeo 1 4 Cf op cit Proposiccedilatildeo 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

192

estatildeo estreitamente interligados Satildeo eles Processatildeo (πρooacuteδος) Perma-necircncia (μονή) e Retorno (ἐπιστροφή) Os trecircs momentos se distinguem pelo fato de que no primeiro (πρooacuteδος) haacute uma separaccedilatildeo entre a causa e seu efeito no segundo (μονή) tem-se que mesmo que haja a processatildeo eacute preciso que o produto permaneccedila em sua causa e no terceiro (ἐπιστροφή) o efeito retorne agrave causa pelo desejo de nela participar Entretanto a ligaccedilatildeo entre estes eventos natildeo acontecem em uma ordem linear mas se datildeo simultaneamente5 Posto que se soacute procedesse natildeo haveria qualquer comunicaccedilatildeo entre o que produz e o que eacute produzido se soacute permanecesse natildeo haveria produccedilatildeo e como pode haver retorno sem que haja separaccedilatildeo6 Portanto por exigir tanto o sair como o permanecer na causa o movimento de processatildeo acontece de modo circular

A processatildeo guarda entatildeo algumas leis inviolaacuteveis que garantem que todas as etapas aconteccedilam A primeira lei atesta que toda causa produtiva produz por super abundacircncia de potecircncia Neste sentido Proclo sustenta que ldquo[] tout ce qui produit demeure tel qursquoil est et parce qursquoil demeure tel son deacuteriveacute procegravede Crsquoest donc par la pleacutenitude et la perfection dont il jouit qursquoil fait subsister ses deacuteriveacutes sans se mouvoir ni srsquoamoindrirrdquo7 A segunda que estaacute em concordacircncia com a primeira defende que devido agrave super abundacircncia de potecircncia o produtor natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo ao engendrar seus efeitos8 A terceira legitimando todo o momento da processatildeo defende a tese de que toda produccedilatildeo soacute se efetiva por meio da semelhanccedila9 entre produto e produtor10

A menccedilatildeo agraves leis de processatildeo prepararam o terreno para o esclarecimento da multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases por meio da unidade Isto

5 Para Caram a simultaneidade dos momentos da processatildeo se daacute porque para os neoplatocircnicos a categoria da causalidade natildeo envolve uma sequecircncia temporal ou mesmo a noccedilatildeo moderna de eventos sucessivos que pressuporia um lsquoantes e depoisrsquo jaacute que a relaccedilatildeo natildeo eacute entre eventos mas substacircncias CfCARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesrevistasthemata 49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015 p108 6 PROCLUS Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 30 7 Op cit Proposiccedilatildeo 27 8 Segundo Proclo ldquoToute cause qui produit autre qursquoelle-mecircme produit ses deacuteriveacutes et ce qui les suit en demeurant en elle-mecircmerdquo Op cit Proposiccedilatildeo 26 9 Cf Caram A semelhanccedila em Proclo eacute a capacidade de manter a caracteriacutestica do ser originaacuterio poreacutem em um grau menor CARAM op cit 2014 p 108 10 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 28-29

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

193

porque de acordo com tais leis o produtor eacute sempre superior a tudo o que vem depois dele tendo em vista que natildeo sofre qualquer diminuiccedilatildeo assegurando assim a continuidade do movimento e permite que aquilo que eacute produzido seja semelhante11 ao produtor A semelhanccedila se daacute desta forma porque o ser do produzido adveacutem do proacuteprio produtor ao dar ao produzido da sua proacutepria substacircncia Neste sentido o Diadoco sustenta que ldquoTout dispensateur qui agit par son ecirctre (τὸτῷεἰναιχορηγοῦν) est lui-mecircme de faccedilon primordiale ce qursquoil communique aux beacuteneacuteficiaires de ses dispensationsrdquo12 Partindo de tal proposiccedilatildeo o sucessor do pensamento platocircnico demonstra no que consiste a semelhanccedila entre causa e efeito Ainda eacute preciso contudo apontar as implicaccedilotildees da semelhanccedila no movimento de processatildeo

Quando se fala em semelhanccedila a primeira coisa a ser vista eacute que na processatildeo o que se revela no efeito eacute a proacutepria manifestaccedilatildeo da causa uma vez que como mencionado o produto possui o mesmo ser do produtor dado que ele eacute a continuidade ontoloacutegica da sua causa A semelhanccedila leva o produto a desejar retornar ao produtor pois soacute na causa que eacute superior pode encontrar perfeiccedilatildeo O desejo de retornar soacute existe porque haacute uma comunicaccedilatildeo ininterrupta entre eles Tal comunicaccedilatildeo eacute tambeacutem conexatildeo que na processatildeo estrutura o cosmo permitindo que a causa esteja sempre em contato com seus efeitos Deste modo o movimento acontece de modo circular no qual o efeito sai da causa ao mesmo tempo em que permanece nela e a ela retorna em um ciclo interrupto onde o princiacutepio e o fim satildeo o mesmo Sobre isto Proclo assevera

Tout ecirctre qui procegravede drsquoun principe et se convertit vers lui a une activiteacute cyclique Si cet ecirctre se convertitvers ce dont il procegravede il fait coiumlncider sa fin avec son principe et son mouvement est unique et continu qursquoil srsquoeacutecarte du repos originel ou qursquoil srsquoy rapporte Crsquoest pourquoi tous les ecirctres accomplissent un processus cyclique qui va de leurs causes agrave leurs causes Il est des cycles plus amples et il en est de plus court selon que les conversions se portent aux cause immeacutediatement supeacuterieures ou agrave de plus eacuteleveacutees jusqursquoau principe universal13

11 Platatildeo define semelhanccedila como aquilo que eacute outro mas imita o objeto ao qual eacute semelhante a fim de conservar sua beleza No entanto o faz mudando de proporccedilatildeo Cf Platatildeo Sofiacutesta 136 a 12 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 18 13 Op cit Proposiccedilatildeo 33

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

194

Na processatildeo a semelhanccedila vem em primeiro lugar sendo ela quem proporciona a conversatildeo e permanecircncia do causado na causa Todavia natildeo haacute multiplicaccedilatildeo somente com semelhantes pois neste caso o que diferiria o produto do produtor a causa do causado Para que haja distinccedilatildeo entre os elementos eacute preciso que exista alguma caracteriacutestica diferente entre eles e uma vez que a processatildeo se daacute pela multiplicaccedilatildeo do ser do produtor natildeo pode haver diferenccedila entre a constituiccedilatildeo do ser da causa e do causado Assim a priori a diferenccedila entre causa e efeito se apresenta como diferenccedila de potencialidade14 Isto porque para Proclo eacute imprescindiacutevel que o produto seja inferior em potecircncia ao seu produtor Portanto se por um lado na multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases a semelhanccedila eacute necessaacuteria por outro a dessemelhanccedila tambeacutem o eacute15

A diferenccedila entatildeo consiste em potecircncias diferentes que faz com que os elementos que compotildeem o sistema procleano faccedilam parte de uma hierarquia na qual quanto mais proacuteximo o produto estiver da sua causa mais perfeito e potente ele eacute16 Isso porque aqueles que estatildeo mais proacuteximo recebem em maior grau a potecircncia produtiva e no mesmo grau em que recebe a potecircncia recebem o ser da mocircnada originaacuteria Ao ter um maior grau de ser e de potecircncia o produtor eacute para o que vem em seguida causa bem e perfeiccedilatildeo fazendo com que este segundo deseje dele participar e natildeo somente o deseje mas necessite de tal participaccedilatildeo para alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Logo a correspondecircncia entre perfeiccedilatildeo constituiccedilatildeo e partici-paccedilatildeo se estabelece partindo de uma hierarquia na qual os seres que estatildeo mais proacuteximos do princiacutepio de sua seacuterie satildeo superiores e servem como degraus para perfeiccedilatildeo daqueles que satildeo produzidos por uacuteltimo

A perfeiccedilatildeo que se daacute mediante a participaccedilatildeo na causa como jaacute foi dito soacute eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre os termos Assim o desejo do produto de participar do seu produtor eleva o produtor ao patamar de bem No entanto se o primeiro bem de cada seacuterie natildeo pode ser partici-pado entatildeo como aquele que soacute existe por meio da participaccedilatildeo em outro pode participar daquele que eacute imparticipado Tal possibilidade se daacute pela existecircncia de um elemento intermediaacuterio que na filosofia procleana eacute sempre fundamental O intermediaacuterio no que diz respeito agrave participaccedilatildeo eacute

14ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur est drsquoordre supeacuterieur agrave son produit PROCLUS Op cit Proposiccedilatildeo 7 15 ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur esr drsquoordre supeacuterieur agrave son produitrdquoop cit 1995 Proposiccedilatildeo 7 16 Op cit Proposiccedilatildeo 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

195

posto como participado aquele pelo qual o participante adquire sua perfeiccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoPuisqursquoil eacutetait imparfait avant la participation et est devenu parfait par la participation le participant est entiegraverement subordonneacute au participeacute dans lrsquoordre de la perfection anteacuterieure il est infeacuterieur au participeacute qui le rend parfaitrdquo17

Tem-se entatildeo a existecircncia de uma triacuteade composta por hipoacutestases por meio de uma causa uacutenica satildeo elas o imparticipado o participado e o participante O imparticipado eacute segundo Proclo aquele que tem em si a razatildeo de sua proacutepria unidade18 Nele estaacute toda a potecircncia e capacidade de produzir ou seja eacute a mocircnada19 de uma seacuterie que surge mediante ele mesmo O que eacute produzido imediatamente pelo imparticipado eacute o partici-pado e o que eacute produzido em seguida participante Ambos participante e participado satildeo semelhantes ao imparticipado pois dele recebem sua substacircncia Entretanto satildeo dessemelhantes porque na medida em que saem de sua causa satildeo potencialmente inferiores a ela A inferioridade de sua potecircncia eacute determinante em sua imperfeiccedilatildeo No entanto eacute exatamente na imperfeiccedilatildeo e contemplaccedilatildeo do perfeito que estaacute o desejo de participar

A triacuteade referente agrave participaccedilatildeo estaacute diretamente associada agravequela referente agrave perfeiccedilatildeo pois a medida de perfeiccedilatildeo eacute a mesma da participaccedilatildeo Assim o ser imparticipado corresponde ao Bem o participado ao autohipostaacutetico20 e os outros seres aqueles que tecircm sua existecircncia partindo de outros ao participante Estas triacuteades por sua vez equivalem agravequela referente ao Imoacutevel Automotor e Heteromotor O que torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que sejam utilizados termos diferentes levando em consideraccedilatildeo um predicado o pensador estaacute sempre se referindo ao mesmo elemento dentro de uma seacuterie Ou seja natildeo importa se remete ao Imoacutevel Imparticipado ou Bem quando se evoca um destes termos a referecircncia eacute sempre ao princiacutepio da seacuterie e o mesmo acontece com os outros elementos21 Por esta razatildeo por meio de uma unidade que aparece como Bem Imoacutevel ou

17 PROCLUS op cit Proposiccedilatildeo 24 18 Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 23 19 Cf Proclo A Mocircnada na filosofia procleana eacute o princiacutepio originaacuterio de toda seacuterie Eacute dela que toda multiplicidade mediante a semelhanccedila tem origem op cit Proposiccedilatildeo 21 20 Autohipostaacutetico eacute todo aquele que existe em si e por si ou seja tem em si mesmo a razatildeo de sua existecircncia e constituiccedilatildeo sendo portanto perfeito 21 A saber quando se fala em participado automotor ou autohipostaacutetico do termo intermediaacuterio que faz a ligaccedilatildeo entre o princiacutepio Quando cita os seres cuja existecircncia dependente de outros estaacute sempre se referindo ao uacuteltimo termo da seacuterie ou seja o participante que eacute tambeacutem heteromotor e natildeo eacute causa de sua proacutepria perfeiccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

196

Imparticipado surge um elemento que eacute estreitamente semelhante a ela pois dele recebe o seu ser

Agrave vista do exposto nesta primeira anaacutelise a diferenccedila caracteriacutestica da multiplicidade se mostrou tatildeo somente como resultado da diferenccedila de potencialidade entre produto e produtor O que se observa entretanto ao investigar a multiplicidade ou mesmo a sua relaccedilatildeo com a unidade eacute que a diferenccedila que existe nela natildeo se limita a uma desigualdade de potecircncia como bem se observa na constituiccedilatildeo do Noucircs e na proacutepria diversidade dos seres Por isto eacute preciso ir mais a fundo na investigaccedilatildeo a fim de descobrir a gecircnese da diferenccedila Afinal quando se fala da dessemelhanccedila mediante os graus de potencialidade tem-se jaacute anteriormente uma diver-sidade presente nas mocircnadas pelas quais as seacuteries satildeo derivadas Com o intuito de aprofundar o exame referente agrave origem da diferenccedila portanto eacute necessaacuterio analisar o papel das triacuteades na geraccedilatildeo dos seres

2 A organizaccedilatildeo triaacutedica da realidade sobre o papel de Peacuteras Apeiacuteron e Mixto

O sistema procleano de hipoacutestases eacute disposto em triacuteadas Natildeo satildeo somente as hipoacutestases que satildeo ordenadas triadicamente pois esta forma de organizar perpassa todos os acircmbitos da filosofia do Bizantino Prova disto eacute a relaccedilatildeo que daacute origem a toda realidade a saber o movimento de processatildeo que como visto eacute constituiacutedo por trecircs momentos indispensaacuteveis e indissociaacuteveis Aleacutem da triacuteade presente no movimento de processatildeo a proacutepria realidade incorpoacuterea eacute sistematizada desta forma sendo composta por trecircs hipoacutestases divina inteligiacutevel e psiacutequica Cada uma das realidades mencionadas guarda particularidades que soacute dizem respeito a elas mesmas Poreacutem satildeo semelhantes na perspectiva de ser cada uma subdivi-dida em triacuteades

Por estar presente em todos os momentos da teoria do Diadoco o entendimento das triacuteades eacute essencial para que o pensamento do autor seja compreendido principalmente quando se trata da concepccedilatildeo do desdobra-mento da multiplicidade mediante a unidade Sobre a importacircncia das triacuteades na tese procleana Bezerra faz a seguinte afirmaccedilatildeo ldquochegamos assim agrave ideia das triacuteades como mediaccedilatildeo entre a multiplicidade constante das coisas e a unidade superior a todo devirrdquo22 A triacuteade como movimento de processatildeo eacute o

22 BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006 p 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

197

elemento motor da participaccedilatildeo haja vista ser determinante na constituiccedilatildeo dos seres Tal constituiccedilatildeo por sua vez estaacute diretamente relacionada agrave mobilidade dos termos que compotildee a realidade incorpoacuterea e corpoacuterea A estrutura triaacutedica portanto faz existir uma mediaccedilatildeo dinacircmica que proporciona a continuidade ontoloacutegica daquilo que eacute produzido permitindo o contato do Uno com tudo o que vem em seguida Neste sentido Caram assegura que ldquoo sistema procleano eacute uma trama de relaccedilotildeesrdquo23

Eacute esse complexo de relaccedilotildees que permite a causalidade pois os encadeamentos natildeo possuem um caraacuteter temporal uma vez que natildeo se trata de um antes e depois relativo ao vir-a-ser mas tatildeo somente a uma questatildeo loacutegica explicativa Assim a passagem da unidade agrave multiplicidade eacute feita mediante o estabelecimento de um sistema no qual partindo da unidade um atributo eacute gerado e mantido por meio das triacuteades permitindo que a comunicaccedilatildeo se estenda do primeiro ao uacuteltimo termo de uma ordem Eacute importante observar entretanto que sendo o Uno a Causa Prima ele transcende a todas as realidades de maneira a estar separado de qualquer ordem Ou seja natildeo se pode dizer que o Uno faz parte de qualquer seacuterie da realidade incorpoacuterea pois transcende a todas Trouillard neste sentido defende que o Uno natildeo estaacute em nenhuma ordem a qual produz24 diferente das demais causas que satildeo o centro de suas ordens

No que respeita agrave realidade supra-sensiacutevel a primeira hipoacutestase que descende diretamente do Uno eacute a divina o universo das heacutenadas Depois delas haacute a realidade inteligiacutevel e em seguida a psiacutequica A hipoacutestase divina eacute aquela na qual se encontra o iniacutecio da multiplicidade embora seja apenas uma multiplicidade quantitativa E mesmo que sejam muitas elas se caracterizam pela unidade dado que eacute a primeira esfera que surge atraveacutes do Uno Neste sentido com base na ideia de que o Uno eacute Deus25 e Bem Proclo defende que a multiplicidade dos deuses eacute unitaacuteria26 tendo

23 CARAM op cit 2014 p 105 24 Cf TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982 p 54 25 Eacute valido lembrar que apesar de ser denominado Deus o Uno soacute possui esta nomenclatura por ser causa e portanto dar origem e manter todos os seres aleacutem de ser objeto de desejo de todos uma vez que eacute o Sumo Bem 26 O caraacuteter transcendente do Uno o leva a ser considerado como Deus mas um deus que transcende a todos os deuses por ser Causa Primeira e objeto de desejo de todas as coisas de modo a estar acima de toda ordem Os primeiros elementos que satildeo deles originados satildeo as Heacutenadas que embora extremamente semelhantes a ele lhe satildeo potencialmente inferior Elas tecircm assim o papel intermediaacuterio entre a realidade divina e inteligiacutevel sendo assim

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

198

em vista que o Diadoco natildeo concebe saltos entre os termos da processatildeo e as Heacutenadas satildeo as primeiras coisas produzidas Apoacutes as Heacutenadas haacute a realidade inteligiacutevel onde se encontra a diversidade de maneira mais concreta tendo em vista que nela haacute inuacutemeras organizaccedilotildees nas quais o iniacutecio da diversidade dos seres eacute manifesto

A estrutura loacutegica da realidade inteligiacutevel procleana eacute interpretada por Caram27 como o fundamento de toda hipoacutestase pois a divisatildeo em Ser Vida e Intelecto tanto reflete os momentos da processatildeo quanto o ciclo das almas28 e o mundo do devir29 Assim a indispensabilidade da triacuteade inteli-giacutevel natildeo se refere somente agrave sua influecircncia no que eacute engendrado em seguida mas agrave unidade presente no Espiacuterito e na totalidade do cosmo Por esta razatildeo a ordem inteligiacutevel encontra na triacuteade Ser Vida e Pensamento sua unidade fundamental na medida em que pensamento e ser estatildeo unidos de tal forma que o pensamento eacute sempre pensamento do ser e o ser eacute sempre ser do pensamento Deste modo ldquo[] na Inteligecircncia estatildeo ambos Ser e Vida por participaccedilatildeo e cada um deles intelectualmente pois o ser da inteligecircncia eacute cognoscitivo e sua vida eacute conhecimentordquo30 A unidade entre Ser e Pensamento daacute ao Noucircs a dinacircmica que se manifesta como a vida que se faz presente no Espiacuterito e que medeia a relaccedilatildeo entre aqueles dois termos31

Proclo assegura a unidade do Espiacuterito ao declarar que cada um dos elementos que o compotildee estaacute presente nos demais embora chame atenccedilatildeo ao fato de que mesmo que tudo esteja em tudo cada um estaacute em seu modo proacuteprio O Diadoco entatildeo apresenta trecircs maneiras de existir essencial-mente vitalmente e intelectualmente32 Cada modo corresponde a um elemento que faz parte da esfera inteligiacutevel e a ligaccedilatildeo entre os trecircs soacute eacute

muacuteltiplas quanto sua quantidade mas unitaacuterias quanto aos seus atributos pois os uacutenicos que podem ser percebidos satildeo bondade e unidade PROCLO Op cit Proposiccedilatildeo 113 27 Cf CARAM op cit 2014 p 107 28 Para Proclo ldquoToda alma eacute uma substacircncia vital e cognoscitiva um princiacutepio de vida substancial e cognoscitiva e um principio de conhecimento por ser uma substacircncia e um princiacutepio de vidardquo PROCLO op cit proposiccedilatildeo 197 (traduccedilatildeo nossa) Cf TRUILLARD O ciclo da alma eacute composto por ser ou substacircncia vida ou potecircncia e pensamento ou atividade p 60 68 29 Cf TRUILLARD op cit 1982p 60 As ordens do reino do devir satildeo mineral vegetal e sensitivo 30 PROCLO op cit Proposiccedilatildeo 103 (traduccedilatildeo nossa) 31 ldquoSin el acto de la vida que opera la mediacioacuten entre los dos elementos el espiacuterito no tendria ninguna conciencia del proacuteprio ser e de la proacutepria esencia [] Ella en cuanto pensante e y existente funda el acto de identida que ocurre entre el ser y el espiacuterito y deviene mediadora dela triadicidad del νοῦςrdquo CARAM op cit 2014 p 117 32 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 103

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

199

possiacutevel porque cada um deles eacute formado pelos mesmos princiacutepios Limite e Ilimitado Desta maneira eacute possiacutevel dizer que cada elemento que faz existir a triacuteade do Espiacuterito eacute formado por outra triacuteade cujos princiacutepios satildeo comuns Ou seja 1) finito infinito e Ser 2) finito infinito e vida e 3) finito infinito e pensamento33 satildeo triacuteades que produzem triacuteades

Limite e Ilimitado satildeo a diacuteade pela qual se manifesta o Uno Satildeo o princiacutepio de todo ser e por esta razatildeo satildeo os elementos centrais para a explicaccedilatildeo da produccedilatildeo da multiplicidade haja vista o Uno soacute produzir semelhantes34 Esses dois princiacutepios satildeo causa de todo ser aleacutem de serem a primeira manifestaccedilatildeo do Uno de maneira que tudo que se segue eacute composto por eles Neste sentido DrsquoAncona atesta que ldquoCes deux priacutencipes consideres par Proclos comme Supremes en tant que responsables de chaque manifestation de stabiliteacute et de changement dans lrsquounivers tout entierrdquo35 Para Proclo ateacute as Heacutenadas que estatildeo no mesmo plano do Uno por fazerem parte da realidade divina procedem dos dois princiacutepios36 Mesmo que os dois princiacutepios soacute sejam percebidos nos seres ou seja como mistura entretanto cada princiacutepio existe por si mesmo e independente um do outro37 - o que leva agrave necessidade de analisar cada um isoladamente

Peraacutes ou o Limite eacute a causa da semelhanccedila com o Uno que segundo Berger representa o Primeiro Princiacutepio por sua estabilidade e concentraccedilatildeo em si mesmo dando a todos que dele participa integridade unidade e estabilidade Por tais donativos que concernem a suas proacuteprias caracteriacutes-ticas ele eacute anaacutelogo ao uno e ao mesmo38 Assim a accedilatildeo do limite por tambeacutem ser entendido como determinante consiste na unificaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas satildeo do Limite como existente em si e por si separado do Ilimitado39 O que acontece eacute que Limite e Ilimitado no entanto na esfera do real soacute podem ser encontrados unidos pois soacute sua uniatildeo ocasiona o primeiro ser o Ser verdadeiramente ser40 Poreacutem antes da mistura como assegura Proclo eacute necessaacuterio que tais princiacutepios existam em si e por si mesmos ainda que sua accedilatildeo soacute se realize na mistura Mas antes de passar

33 Cf BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840 p 44 34 Cf BEZERRA op cit 2006 p 120 35 COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995 p 60 36 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 159 37 Cf Ibid proposiccedilatildeo 90 38 Cf BERGER op cit 1840p 41 39 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 90 40 Cf COSTA Op cit 1995p 61

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

200

para o exame da mistura e sua necessidade eacute preciso discorrer sobre o Ilimitado

Sendo o Limite responsaacutevel pela estabilidade e unidade do ser o Ilimitado ou apeiacuteron diz respeito agrave potecircncia (dynamis) Eacute ele que possibilita o sair da unidade para a multiplicidade por ser uma potecircncia geradora sendo imagem da fecundidade do Uno De acordo com Berger o ilimitado eacute anaacutelogo ao muacuteltiplo e ao outro41 Semelhante ao Limite ainda que o Ilimitado exista substancialmente diferente e separado de qualquer mistura ele natildeo se manifesta separado do seu oposto pois ao ser indeter-minaccedilatildeo necessita de um objeto pelo qual ocorre sua manifestaccedilatildeo Ressaltando entatildeo o caraacuteter de inseparabilidade destes princiacutepios nos seres Caram assevera que ldquoLa ilimitacioacuten nunca existe apartado del liacutemite liacutemite ilimitacioacuten y su combinacioacuten reaparecen en todos los niveles de la realidadrdquo42 Desta feita o que se evidencia eacute que toda existecircncia na esfera inteligiacutevel assim como o que vem depois dela soacute eacute compreendido atraveacutes desses dois princiacutepios

Limite e Ilimitado por serem os primeiros derivados do Uno engendram a esfera Inteligiacutevel e consequentemente toda diversidade dos seres Isto ocorre porque mesmo que o Uno soacute produza unidades tais unidades se singularizam mediante a accedilatildeo do Limite que por sua vez soacute pode atuar no sentido de causar novos seres atraveacutes da accedilatildeo do Ilimitado E o Ilimitado ainda que relativo agrave potecircncia geradora soacute se manifesta quando presente nos seres ou seja quando sofre a do limite43 Eacute portanto partindo do Limite e do Ilimitado que todas as realidades sejam da esfera corpoacuterea ou incorpoacuterea vem agrave existecircncia poreacutem o limite que se encontra nos seres natildeo eacute um Limite puro e com o Ilimitado acontece o mesmo Tem-se agora a triacuteade que compotildee o universo Limite Ilimitado e Mistura

Os dois princiacutepios natildeo se manifestam na esfera do real em sua substacircncia pura o que os leva a dar origem a um terceiro que eacute na verdade a siacutentese dos seus antecessores Assim o terceiro termo como elemento de mediaccedilatildeo e siacutentese do que vem anteriormente estaacute presente em todas as relaccedilotildees triaacutedicas No caso de peacuteras e apeiacuteron tem-se a mistura que na filosofia procleana aparece como o verdadeiro ser Eacute portanto no Ser verda-deiro que a unidade caracteriacutestica do Primeiro princiacutepio eacute salvaguardada

41 Cf BERGER op cit 1840p 41 42 CARAM op cit 2014 p 114 43 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 92

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

201

sem que a diversidade do que vem em seguida seja posta em xeque44 No entanto como jaacute mencionado o reino divino ou seja das Heacutenadas tambeacutem eacute formado atraveacutes dos dois princiacutepios Desta maneira a diversidade dos seres para ser compreendida deve ser analisada nestes dois elementos a saber nas Heacutenadas e no Ser verdadeiramente ser pois eles natildeo satildeo apenas manifestaccedilotildees do Uno mas dos princiacutepios pelo qual satildeo formados

3 A origem da diversidade dos seres

O Ser como siacutentese de limite e ilimitado mesmo que encerre em si a unidade apresenta os dois princiacutepios em relaccedilatildeo pondo em evidecircncia a dualidade que adveacutem de seus componentes45 A dualidade faz do primeiro ser como tudo o que vem em seguida uma triacuteade que mesmo sendo encabeccedilada pelo Ser tem em sua substacircncia Identidade e Diferenccedila Logo o Ser nesta perspectiva se apresenta como uma unidade de contrapo-siccedilotildees dado que natildeo possuir somente o Limite e Ilimitado como perten-centes a si mas tambeacutem Identidade e Diferenccedila o que leva a ter em sua constituiccedilatildeo ser e natildeo-ser46 Eacute importante observar poreacutem que Platatildeo jaacute havia apresentado um natildeo-ser que natildeo dizia respeito a um inexistente

Platatildeo no diaacutelogo Sofista ao investigar a natureza do Ser chega agrave conclusatildeo de que tudo pela participaccedilatildeo eacute ser e simultaneamente natildeo-ser Para tanto considera que o Ser pode ser participado por inuacutemeros gecircneros dos quais o fundador da Academia lista movimento repouso diferente e idecircntico O sentido do ser e natildeo-ser ocorre porque todos os gecircneros satildeo seres pela participaccedilatildeo no Ser e ao mesmo tempo satildeo natildeo-ser por serem diferentes dele47 Com este raciociacutenio Platatildeo chega agrave tese de que o natildeo-ser natildeo eacute pura nulidade sendo portanto algo diferente do Ser embora participe dele48 Proclo segue uma teoria semelhante Nos Elementos de Teologia o Bizantino classifica todas as coisas em unas unas

44 Cf CARAM op cit 2014 p 114-115 45 De acordo com o Diadoco o ser por caracterizar-se como misto de limite e ilimitado tem em si estas duas caracteriacutesticas que nele satildeo indissociaacuteveis Eacute dito ldquoSrsquoil a une infinite puissance il est eacutevidemment infini et sous ce rapport il est forme drsquoinfini Srsquoil est indivisible et semblable agrave lrsquoum sous ce rapport il a parta u deacuteterminatrdquo PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 89 46 Cf CARAM op cit 2014 p 114 47 Sofista 255e-256e 48 Eacute necessaacuterio para Platatildeo que todos os gecircneros participem do Ser sob a pena de sua natildeo existecircncia Neste sentido ao passo que todos os outros gecircneros satildeo ser pela participaccedilatildeo o Ser natildeo participa de nenhum outro gecircnero pois ele eacute causa e se participasse de algo mais seria diferente de si mesmo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

202

e natildeo-unas e natildeo-unas e unas de acordo com a participaccedilatildeo na unidade Ao fazer isto ele natildeo considera aquilo que eacute denominado como natildeo-uno como nada49 de modo a somente estabelecer uma diferenccedila entre o que eacute pura unidade e o que de alguma maneira participa da multiplicidade Platatildeo sobre o sentido da negaccedilatildeo em casos como o do natildeo-ser e natildeo-uno esclarece

Estrangeiro Quando dizemos natildeo-ser nos referimos suponho natildeo a algo que seja o oposto do ser mas somente a algo diferente [] Portanto quando nos disserem que o negativo significa o oposto discordaremos Somente admitiremos que a partiacutecula natildeo indica algo diferente das palavras agraves quais serve de prefixo ou melhor diferente das coisas agraves quais os nomes que se seguem agrave negaccedilatildeo satildeo aplicados50

Platatildeo ainda no Sofista assegura que a natureza do Diferente eacute fragmentada pois quando manifesta nos seres natildeo se revela como diferenccedila Isto significa que o Diferente quando buscado em algo que eacute analisado por si mesmo se mostra como seu contraacuterio ou seja como idecircntico fato que soacute natildeo ocorre quando ponderado por meio da negaccedilatildeo Como exemplo tem-se o momento que objetiva investigar o diferente do branco e para esta razatildeo passa a investigar o preto Este por sua vez natildeo soacute o seu diferente mas o seu oposto ou seja o preto quando visto fora de sua relaccedilatildeo com o branco natildeo aparece como diferente dele mas como idecircntico a si mesmo Desta feita a diferenccedila ao ser estudada nas coisas natildeo se encontra como tal jaacute que o que se manifesta eacute o ser da coisa investigada O sentido do Diferente soacute eacute alcanccedilado quando na busca por ele natildeo se predica os atributos daquilo que se entende por diferente mas o anuncia mediante a negaccedilatildeo

Ao buscar a natureza do diferente se chega ao Idecircntico devido o caraacuteter positivo da afirmaccedilatildeo de sorte que o Diferente soacute pode ser compreendido na negaccedilatildeo Deste modo em Proclo ao estudar a triacuteade que corresponde ao Ser Identidade e Diferenccedila levando em consideraccedilatildeo que Identidade e Diferenccedila satildeo inerentes ao Ser a causa da diferenccedila entre os seres se revela como o princiacutepio do Limite dado que ele eacute quem daacute singularidade atraveacutes do ato de determinar Proclo sobre o

49 A unidade para Proclo eacute o que faz existir todas as coisas neste sentido negar a unidade do que quer que seja significaria negar a existecircncia da coisa Quando o Diadoco todavia se refere ao natildeo-uno ele segue a mesma linha de raciociacutenio que Platatildeo quando se refere ao natildeo-ser 50 Sofista 257b-c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

203

papel do Limite argumenta ldquo[] pero el liacutemite define circunscribe y situacutea cada cosa en sus propios confines [] de suerte que cada uno de los seres tiene una cierta naturaleza una definicioacuten una propiedad y un orden propios por el primer liacutemiterdquo51 Tornado clara a correspondecircncia do Limite na singularidade e particularizaccedilatildeo dos seres tem-se a seguinte questatildeo se eacute o Limite que daacute singularidade ao ser qual o papel do Ilimitado

O Ilimitado natildeo diz respeito ao estado dos seres mas de sua potecircncia Neste sentido Proclo assegura que o grau de potencialidade eacute proporcional ao de Unidade Esta potecircncia no ser natildeo eacute pura pois por ordem de necessidade participa do Limite Logo se pode dizer que por ser potecircncia ela soacute existe atraveacutes daquilo que jaacute estaacute em ato O Diadoco menciona assim dois tipos de potecircncias as infinitas e as finitas sendo as infinitas aquelas que estatildeo nos seres que tem maior participaccedilatildeo no limite O Sucessor Platocircnico no entanto chama atenccedilatildeo ao fato de que apesar de se falar em potecircncias infinitas estas soacute o satildeo para os seres inferiores pois para o ser de potecircncia infinita e para os seus superiores tais potecircncias natildeo satildeo infinitas Isto se daacute porque os inferiores natildeo conseguem compreender a totalidade dos seres que o satildeo superiores jaacute o ser ao qual a potecircncia lsquoinfinitarsquo pertence sabe seu limite assim como o sabem os que lhe satildeo superiores ou seja uma potecircncia soacute aparece como infinita para os seres inferiores que natildeo conseguem compreender seus limites52

O Ilimitado na qualidade de potecircncia proporciona a saiacuteda do Uno em direccedilatildeo agrave multiplicidade provocando a comunhatildeo e conexatildeo entre tudo que existe Pois eacute a potecircncia geradora ao ser indeterminada ou seja natildeo tendo nenhuma caracteriacutestica especiacutefica que perpassa todas as coisas estando portanto presente em todas Ao estar presente em tudo daacute a possibilidade de reunificaccedilatildeo de tudo o que existe Isto posto a identidade pode ser analisada em dois sentidos 1) como potecircncia que atravessa todos os seres dando a todos um caraacuteter comum e 2) como identidade dos seres consigo mesmos O primeiro sentido eacute oriundo do Ilimitado o segundo do Limite que particulariza cada ser Logo o duplo caraacuteter da identidade torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que opostos Identidade e Diferenccedila natildeo se anulam

51 PROCLO Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999 XLII13P 20 - 25 52 Cf PROCLO op cit proposiccedilatildeo 91 93

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

204

A diversidade aparece na hipoacutestase inteligiacutevel mediante a accedilatildeo dos princiacutepios do limite e do ilimitado que fazem da potecircncia que sai do Uno uma unidade delimitando-a e singularizando-a frente ao todo Fica todavia a questatildeo porque haacute diferenccedilas entre os seres que satildeo particularizados pela accedilatildeo dos dois princiacutepios Com a explicaccedilatildeo da diferenccedila como parte integrante do ser fica claro que a diferenccedila tem sua primeira expressatildeo nele porque o limite determina aquilo que jaacute eacute pela possibilidade ou seja age como uma atualizaccedilatildeo Os princiacutepios satildeo pois responsaacuteveis pela forma natildeo pela diversidade da multiplicidade propriamente dita Logo se o Ser eacute o primeiro componente do inteligiacutevel soacute resta recorrer ao primeiro elemento incorpoacutereo ou seja elevar a anaacutelise para o plano divino jaacute que o inteligiacutevel eacute a consumaccedilatildeo daquilo que jaacute existe como causa no divino

De fato toda multiplicidade Proclo repete enquanto tal faz tudo dessemelhante do Uno por consequecircncia ela eacute derivada do Uno natildeo diretamente mas atraveacutes de um princiacutepio de mediaccedilatildeo Este princiacutepio se assemelha ao Uno enquanto unidade que engendra certa multiplicidade particular e se assemelha agrave multiplicidade enquanto possui as caracteriacutesticas de modo arquetiacutepico 53

As Heacutenadas ou unidades divinas satildeo este princiacutepio e portanto a primeira multiplicidade Elas natildeo possuem poreacutem atributos de forma que esta passagem soacute pode ser constatada numericamente Assim a multiplicidade surge na proacutepria realidade divina uma vez que as Heacutenadas satildeo determinaccedilotildees divinas e como tal cooperam com o Uno que estaacute acima de toda ordem na produccedilatildeo dos seres Consequen-temente do Uno os seres recebem sua existecircncia e das Heacutenadas seus predicados atraveacutes da participaccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoasiacute es la heacutenade la que impone su propio caraacutecter a los existentes participantes y despliega existencialmente en el uacuteltimo la cualidad que eacutel mismo posee supra-existencialmente54 Por conseguinte toda diversidade existente na esfera do real jaacute se encontra nas Heacutenadas de maneira germinal Agrave vista disto para cada Heacutenada participaacutevel existe um ser participante o que

53 ldquoDe fait toute multipliciteacute Proclus le reacutepegravete est en tant que telle tout agrave fait dissemblable de lrsquoUn par conseacutequent elle deacuterive de lrsquoUn non directement mais agrave travers un principe de meacutediation Ce dernier ressemble agrave lrsquoun en tant qursquoil est lrsquouniteacute qui engendre cette multipliciteacute particuliegravere et ressemble agrave la multipliciteacute en tant qursquoil en possegravede les caractegraveres de faccedilon archeacutetypiquerdquo COSTA Op cit 1995p 87 54 PROCLO op cit proposiccedilatildeo 137

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

205

proporciona o desenvolvimento da caracteriacutestica fundamental de cada seacuterie55

A diversidade dos seres portanto na esfera incorpoacuterea natildeo se trata da accedilatildeo do movimento de geraccedilatildeo como acontece na realidade corpoacuterea A diversidade nasce como realizar-se daquilo que jaacute existe como causa nas Heacutenadas por intermeacutedio da accedilatildeo dos princiacutepios do Limite e Ilimitado Logo natildeo se pode dizer que haacute uma mudanccedila nos seres no domiacutenio da inteligibilidade mas uma passagem da potecircncia ao ato possibilitada pelo mister de limite e ilimitado Desta forma o Uno por ser causa Suma daacute existecircncia a tudo e as Heacutenadas pela participaccedilatildeo daacute os atributos que jaacute existem nelas mesmas em forma de causa Quanto aos princiacutepios do Limite e Ilimitado a eles cabe o papel de manifestar tais atributos na medida em que delimitam o ser singularizando-o Com isso tais seres seratildeo idecircnticos agrave mocircnada de sua ordem e agrave totalidade das coisas por possuiacuterem unidade e tambeacutem satildeo diferentes por sua particularizaccedilatildeo Tal diferenccedila contudo soacute pode ser percebida quando analisada a totalidade dos seres

Conclusatildeo

Ante o exposto o que pode ser concluiacutedo eacute que ainda que o sistema procleano seja regido por multiplicaccedilatildeo pela semelhanccedila pois eacute do Uno que toda multiplicidade tem origem isto soacute eacute possiacutevel porque seu sistema consiste em uma trama de relaccedilotildees Ocorre que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento ontoloacutegico isto eacute natildeo se trata de uma saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade por meio de uma sucessatildeo de eventos O que pode ser percebido quando eacute dito que natildeo haacute um antes ou depois relativo aos momentos da processatildeo O fato de natildeo existir um antes ou depois no movimento de processatildeo todavia natildeo implica em uma estabilidade no sistema do Bizantino pelo contraacuterio seu sistema eacute marcado pelas relaccedilotildees entres os termos Sendo por meio das triacuteades que tal relaccedilatildeo adquire dinamicidade

Assim se por um lado a realidade supra-sensiacutevel eacute marcada pela imobilidade com exceccedilatildeo da Alma que eacute automotora por outro ela tambeacutem eacute marcado por triacuteades que permanecem em constante relaccedilatildeo De modo que a relaccedilatildeo dialeacutetica existente entre os termos das triacuteades eacute o que possibilita a origem da diferenccedila na hipoacutestase inteligiacutevel dando a ela

55 Op cit proposiccedilotildees 131 135

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

206

um caraacuteter dinacircmico que lhe possibilita atributos aleacutem da unidade e bondade Porquanto ainda que a imobilidade esteja presente na realidade supra-sensiacutevel no sentido de natildeo existir um movimento de geraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre os princiacutepios oriundos diretamente do Uno peacuteras e apeiacuteron possibilita tanto a passagem da unidade agrave multiplicidade quanto a diversidade de seres existente Ou seja eacute a relaccedilatildeo dinacircmica que permite a existecircncia do diferente e ao passo que proporciona o diferente viabiliza tambeacutem o idecircntico

Logo o que se pode concluir eacute que no que concerne agrave realidade sensiacutevel toda a diversidade adveacutem do movimento seja o de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seja o de deslocamento jaacute na realidade supra-sensiacutevel a diversidade eacute oriunda das relaccedilotildees Considerando que eacute na relaccedilatildeo dos princiacutepios que constitui os seres que os predicados passam da potecircncia ao ato conservando caracteriacutestica dos princiacutepios que o constitui Neste sentido todo ser eacute ao mesmo tempo o resultado de seus princiacutepios e algo diferente deles De modo que eacute na relaccedilatildeo que o Outro e o Mesmo tecircm existecircncia sendo tambeacutem por ela que eacute possiacutevel chegar natildeo soacute ao ser em particular mas a totalidade dos seres

Referecircncias Bibliograacuteficas

BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006

CARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 pp 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesre vistasthemata49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015

COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995

REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008

PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

207

________ Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999

PLATAtildeO Parmecircnides In Diaacutelogos IV Parmecircnides (ou formas) Poliacutetico (ou da realeza) Filebo (ou do prazzer) Liacutesis (ou da amizade) Traduccedilatildeo textos complementares e notas de Edson Bini Bauro SP EDIPRO 2009

__________ Sofista In Diaacutelogos I Teeteto (ou sobre o conhecimento) Sofista (ou do ser) Protaacutegoras (ou sofista) Traduccedilatildeo textos complemen-tares e notas Edson Bini ndash Bauru SP EDIPRO 2007

SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012

TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982

Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Doutora pela Universidad Complutense de Madrid

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza soeudaimoniahotmailcom

Jan Gerard Joseph ter Reegen Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Professor emeacuterito da Universidade Estadual do Cearaacute e Coordenador de Pos-Graduaccedilatildeo e Extensatildeo da FCF

jangjtrgmailcom

Suelen Pereira da Cunha Mestranda pela Universidade Federal do Cearaacute

suelenldp2011gmailcom

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

208

ENSAIO

AS FONTES MIacuteSTICAS E COSMOLOacuteGICAS DO ldquoCASTELO INTERIORrdquo DE TERESA DrsquoAacuteVILA

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo

Na obra Castelo Interior ou Moradas Teresa de Jesus miacutestica do Renascimento espanhol encarou a tarefa de descrever suas experiecircncias extaacuteticas Semelhante a outros miacutesticos natildeo o poderia fazer sem interpretar e mediatizar uma experiecircncia que eacute supralinguiacutestica Por isso recorreu ao simbolismo Comparou a alma a sete castelos ou globos concecircntricos de cristal ou diamante Esses castelos simbolizam as etapas da ascensatildeo da alma O Castelo Interior eacute ldquoa aacutervore da vida que estaacute plantada nas mesmas aacuteguas vivas que eacute Deusrdquo (1M 21) Eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a cabala mais especificamente com a literatura judaica conhecida como Hechalot (Palaacutecios)

Palavras-chave Teresa de Jesus Miacutestica Renascentista Moradas Hechalot

1 Introduccedilatildeo

Santa Teresa de Jesus ou simplesmente Santa Teresa DrsquoAacutevila (1515 ndash 1582) miacutestica carmelita e escritora foi uma das mais eminentes contem-plantes do Renascimento espanhol A reformadora do Carmelo por moti-vos de obediecircncia agrave autoridade da igreja enfrentou a tarefa de colocar por escrito seus ecircxtases com o objetivo de instruir as monjas que estavam sob sua tutela a respeito do caminho interior para alcanccedilar a uniatildeo miacutestica Ela proacutepria definiu seu empenho como difiacutecil quase impossiacutevel porque nas operaccedilotildees iacutentimas da alma se adere agrave secreta ldquolinguagem de Deusrdquo Natildeo sabendo nem como comeccedilar sua empreitada Teresa acreditou ter recebido de Deus a inspiraccedilatildeo de considerar a alma como um castelo1 de diamante

1 Castelo Interior ou Moradas eacute sua obra mestra escrita em 1577 cinco anos antes da morte de Teresa

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

209

ou de cristal com muitos aposentos da mesma forma que no ceacuteu haacute muitas moradas (1M 11)

A alma humana eacute considerada agrave maneira de sete moradas ou globos concecircntricos de fino cristal ou diamante que marcam as etapas progres-sivas do desenvolvimento miacutestico O progresso espiritual descrito por meio das sete moradas resume as trecircs etapas principais da vida interior e da oraccedilatildeo

Trecircs das moradas enfocam o que se pode fazer para avanccedilar ateacute as moradas interiores nas quais estaacute Deus Exigem o desenvolvimento do amor ao proacuteximo da renuacutencia a julgar os outros do conhecimento de si da humildade do processo de interiorizaccedilatildeo e ativaccedilatildeo do desejo por Deus

A quarta eacute uma etapa de transiccedilatildeo na qual se comeccedila a responder ao chamado de Deus e eacute quando Ele comeccedila a assumir o controle de tudo Nas moradas mais interiores Deus purifica a alma cada vez mais e a vai tornando a Sua semelhanccedila ateacute a etapa do matrimocircnio espiritual

A quinta morada eacute a da santidade A esse ponto Teresa dedica quase a metade do Castelo Interior pois essas etapas mais profundas requerem orientaccedilatildeo mais cuidadosa A transformaccedilatildeo interior estaacute cada vez mais intensa e soacutelida e o coraccedilatildeo vai ficando sempre mais inundado pela radiante luz divina

Na sexta morada Teresa disserta sobre as provas exteriores e interiores acerca dos trabalhos os obstaacuteculos e as adversidades agrave santificaccedilatildeo que satildeo cada vez mais numerosos fortes e sutis e exigem maior capacidade de discernimento

A uacuteltima morada a mais interior eacute diferente de todas pois nesse estado acontece a uniatildeo miacutestica Ali estaacute Deus com quem a alma se une pois fica cheia de luz tendo deixado para traacutes o democircnio na forma de vaacuterios animais ferozes e peccedilonhentos (4M 19) Haacute uma fusatildeo entre a alma e a Luz divina Eacute o matrimocircnio miacutestico

[] eacute como se a aacutegua caindo do ceacuteu em um rio ou fonte onde estiver toda a aacutegua jaacute natildeo se pode separar nem distinguir qual eacute a aacutegua a do rio ou a que caiu do ceacuteu (7M 24)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

210

2 Os limites da linguagem humana

Michael Gerli nos mostra que muitas metaacuteforas espirituais especial-mente as arquitetocircnicas se tornaram populares na espiritualidade euro-peacuteia precisamente por seu caraacuteter mnemoteacutecnico2 que as tornava atraentes (GERLI 1982 p 154-163) Eacute notoacuterio que isso ocorreu com a metaacutefora usada por Teresa pois esta pedia agraves filhas espirituais que o trouxessem sempre agrave memoacuteria (1M 26 7M 39)

Agrave primeira vista o esquema simboacutelico usado por Teresa parece original contudo eacute impossiacutevel expressar literariamente uma experiecircncia dessa natureza sem recorrer aos siacutembolos disponiacuteveis no contexto cultural e religioso no qual o miacutestico estaacute inserido

Conforme Barbara Kurtz a linguagem dos miacutesticos natildeo pode transcrever uma experiecircncia sem interpretaacute-la e mediatizaacute-la por mais que se lute contra os limites da linguagem humana incapaz de abordar a transcendecircncia (KURTZ 1992 p 32)

Nesse sentido Teresa confessa natildeo saber como expressar a miste-riosa vivecircncia miacutestica que teve por isso eacute que se utiliza de metaacuteforas O castelo interior tal como o descreve Teresa eacute tanto uma figura de grande beleza plaacutestica quanto algo muito faacutecil de recordar Portanto deve pertencer ao contexto da autora Por ser uma metaacutefora entretanto pouco usada torna-se difiacutecil rastrear as possiacuteveis origens desse simbolismo

O contexto cultural no qual o miacutestico vive ajuda a dar forma simboacutelica agrave sua experiecircncia transcendente que eacute em si supralinguiacutestica O ecircxtase eacute por definiccedilatildeo inefaacutevel por isso o miacutestico sempre recorre a metaacuteforas que satildeo comuns em seu ambiente cultural para explicitar de alguma maneira o que aconteceu nas fronteiras espaciotemporais da razatildeo e da linguagem

Sendo assim haacute o seguinte problema de onde Teresa tira o simbo-lismo com o qual descreve a experiecircncia miacutestica Seus estranhos castelos concecircntricos natildeo pertencem agrave tradiccedilatildeo cristatilde ocidental Em qualquer outro escrito de espiritualidade encontramos o avanccedilo miacutestico da alma claramente estruturado ao longo de sete moradas (ou castelos) cada vez mais interiores

2 Teacutecnica de estimulaccedilatildeo da memoacuteria sinocircnimo de arte de memorizaccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

211

3 Busca das fontes Teresianas

A busca miacutestica da uniatildeo com Deus foi simbolizada tradicional-mente por uma viagem um trajeto percorrido pela alma Isso faz parte de um conjunto de siacutembolos religiosos adotados por cristatildeos judeus e mulccedilumanos ao longo da histoacuteria Muitas tradiccedilotildees mencionam um itineraacuterio e um desejo intenso da alma por Deus Falam da entrega e da purificaccedilatildeo da renuacutencia e do abandono resultantes da uniatildeo miacutestica

Gaston Etchegoyen propotildee que Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna ambos autores muito apreciados pela Carmelita sejam as princi-pais fontes para o Castelo Interior (ETCHEGOYEN 1923 15) Mas o proacuteprio Etchegoyen admite que os esboccedilos de ambos natildeo satildeo suficientes para explicar os pormenores do siacutembolo usado por ela

Francisco de Osuna se limita a um esquema muito restrito agraves alegorias medievais no qual os inimigos tradicionais (a carne o mundo e o democircnio) tentam penetrar o castelo da alma Bernardino Laredo com seu modo de compreender a civitas sancta assentada em um campo quadrado de fundamento de cristal com muros de pedras preciosas e com um ciacuterio pascal no centro que simboliza Cristo eacute mais distante ainda do esquema teresiano

Outros propotildeem como antecedentes teresianos os romances de cavalaria do Renascimento espanhol que a Santa admite ter lido com grande paixatildeo juvenil Quando examinamos esses livros somos forccedilados a concluir que eles natildeo nos datildeo a chave do siacutembolo imaginado pela Monja de Aacutevila Em nenhum romance da eacutepoca os castelos satildeo sete vezes concecircntricos nem celebram a uniatildeo teopaacutetica3 em seu recinto mais interno Nem na arquitetura dos castelos espanhoacuteis os quais ainda se podem visitar constam de sete moradas cada vez mais interiores (PEERS 1951 p 17)

4 Recurso agrave miacutestica judaica

A fase primitiva da miacutestica judaica antes de se cristalizar na Cabala medieval que eacute a mais longa e se estende desde o seacuteculo I aC ateacute o seacuteculo X eacute conhecida indistintamente como a tradiccedilatildeo da Merkavah ou miacutestica Carruagem ou do Trono de Deus A literatura da Merkavah se desenvolveu com suporte em especulaccedilotildees sobre visotildees profeacuteticas do Antigo Testamento O termo hebraico merkabah refere-se ao trono-

3 Sensiacutevel agrave divina influecircncia ser profundamente afetado por Deus

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

212

carruagem de Deus na visatildeo de Ez 1 O corpus principal da literatura Merkabah foi composto no periacuteodo de 200-700 dC

Na fase mais antiga o visionaacuterio o miacutestico era arrebatado geral-mente ateacute agraves esferas celestes e vislumbrava Deus como rei sentado em um trono sustentado por uma carruagem em um firmamento de cristal rodeado de raios com querubins e quatro seres vivos junto a Ele

A primeira apresentaccedilatildeo da escala completa da Merkavah a miacutestica da carruagem do Senhor aparece nos escritos visionaacuterios conhecidos como os livros de Hechalot Esses escritos consistem em descriccedilotildees Hechalot salas o palaacutecios celestiais O desejo mais profundo do miacutestico era alcanccedilar a sala do trono durante a ascensatildeo aos ceacuteus para contemplar o esplendor da majestade de Deus A literatura Hechalot dedica-se a discutir os detalhes desses ceacuteus agraves vezes em conexatildeo com as tradiccedilotildees relacionadas com a apocaliacuteptica dos ciacuterculos de Henoque (SCHOLEM 1965 p 9-13)

Para alguns estudiosos a literatura Hechalot eacute um gecircnero de textos esoteacutericos e apocaliacutepticos judaicos que se estendem ateacute o iniacutecio da Idade Meacutedia Os sete Hechalot ou sete ceacuteus fazem parte da cosmologia religiosa encontrada nas grandes religiotildees como o judaiacutesmo o hinduiacutesmo e o islamismo bem como em algumas religiotildees menores como o hermetismo e gnosticismo Segundo essa cosmologia o trono de Deus estaacute acima do seacutetimo ceacuteu

Vaacuterias religiotildees atribuem ao nuacutemero sete a perfeiccedilatildeo uacuteltima tampouco a miacutestica judaica o ignorou estaacute em obras como os Sete Hechalot ou Sete Palaacutecios a que o israelita recorria simbolicamente para falar do arrebatamento do vidente ateacute ascender ao Trono de Deus conforme o texto do Sefer Hechalot4 ou Terceiro Livro de Henoque muito considerado pela cabala judaica Essa obra se mostra como tendo sido escrita no seacuteculo II dC mas suas origens soacute podem ser rastreadas ateacute o seacuteculo V O autor se faz passar pelo Rabi Ismael o qual teria se tornado um ldquosumo sacerdoterdquo depois das visotildees decorrentes de seu arrebatamento ao ceacuteu Os principais temas abordados pelo Sefer Hechalot satildeo a ascensatildeo de Henoque ao ceacuteu e sua transformaccedilatildeo no anjo Metatron (DAN 1993 p 7-24)

No final do seacuteculo XIII Moiseacutes de Leoacuten compilou uma obra atribuiacuteda ao rabino Simeon ben Yohai que viveu na Palestina no seacuteculo II

4 Sefer significa livro e Hechalot quer dizer Palaacutecios ou Templos

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

213

Na citada obra conta-se uma experiecircncia visionaacuteria do suposto rabino no momento em que a alma dele se libera momentaneamente do corpo e experimenta una revelaccedilatildeo magniacutefica sob a forma de sete palaacutecios do paraiacuteso e em contrapartida sete palaacutecios do inferno Isso significa que ainda existe um sistema de siacutembolos essenciais dos ensinamentos dos Hechalot unido a novas ideias desenvolvidas posteriormente com origens nas especulaccedilotildees sobre a merkavah ou carruagem do Senhor

A obra compilada por Moiseacutes de Leoacuten recebeu o nome Zoha ou Livro do Esplendor o grande comentaacuterio miacutestico judaico que compendiou a Cabala No Zohar os sete palaacutecios estatildeo povoados de anjos que irradiam luz Em contraste com o objetivo dos primeiros miacutesticos da merkavah que era ver a sala do trono de Deus o desejo do miacutestico apresentado pelo Zohar eacute chegar a uma comunhatildeo com Deus ou seja a uma fusatildeo entre as vontades divina e humana que se realiza no ecircxtase e eacute simbolizada no ldquobeijo do Amorrdquo Conforme o Zohar o beijo que une a alma a Deus eacute descrito no seacutetimo palaacutecio e sua intensidade eacute tal que pode extrair a alma do corpo e levaacute-la para Deus provocando a morte fiacutesica

Santa Teresa tambeacutem menciona como o Zohar o beijo com que o Rei divino consuma o matrimocircnio espiritual na seacutetima morada de seu Castelo Interior Refere-se tambeacutem a experiecircncias extaacuteticas intensas nas quais a alma parece ser arrebatada do corpo e raptada ateacute uma comunhatildeo com Deus Teresa caracteriza essas experiecircncias como suficientes para levar o miacutestico agrave morte (7M 25 36)

5 Influecircncias da cosmologia aristoteacutelica

Aleacutem das fontes judaicas eacute possiacutevel encontrar outras influecircncias para o simbolismo teresiano As versotildees latinas das obras aristoteacutelicas Estavam amplamente divulgadas no contexto no qual Teresa viveu No livro De Caelo Aristoacuteteles imaginou o universo na forma de esferas concecircntricas que giram em movimento circular Este esquema coacutesmico se transformou em um siacutembolo que dava um transfundo para o caminho espiritual do ser humano (LOacutePEZ-BARALT 2010 p 180)

Salta agrave ideia de que Santa Teresa ao falar da alma na forma de sete ciacuterculos ou castelos concecircntricos alude de maneira obliqua agraves sete esferas planetaacuterias da cosmovisatildeo medieval herdada de Aristoacuteteles e da literatura de Hechalot A Carmelita estaria visualizando a alma como um reflexo microcoacutesmico do macrocosmo celestial estaria comparando as moradas espirituais natildeo somente com castelos mas tambeacutem com as

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

214

esferas do ceacuteu Nesse caso o ser humano teria dentro de si todas as esferas celestes

6 Conclusatildeo

Conclui-se que Teresa natildeo criou a formosa imagem plaacutestica dos castelos interiores Por mais inusitado que isto pareccedila agrave sensibilidade do cristatildeo ocidental ela simplesmente a elaborou em detalhes geniais a cristianizou e a adaptou aos seus fins

Igual a muitos filoacutesofos poetas e humanistas da Eacutepoca Renascen-tista miacutesticos cristatildeos foram profundamente influenciados pela literatura da Cabala no seacuteculo XIII Reconheceram na miacutestica judaica em geral um caminho seguro para compreender melhor suas experiecircncias com procedecircncia em raiacutezes miacutesticas mais antigas

Swietlicki orienta contudo a natildeo se ter a pretensatildeo de que a influecircncia da cabala judaica sobre os miacutesticos cristatildeos nos temas e siacutembolos usados por estes sejam resultado de influecircncia literaacuteria mas apenas supotildee-se que os traccedilos de cabala foram persistentes em ciacuterculos populares mesmo apoacutes a expulsatildeo dos judeus da Espanha (SWIETLICKI 1986 p 28) Dessa forma a miacutestica cristatilde teria se tornado um importante veiacuteculo para a transmissatildeo da Cabala judaica mesmo no seacuteculo XVI Eacute fato inegaacutevel entretanto a influecircncia da cabala sobre estas figuras importantes

Referecircncias Bibliograacuteficas

BENSION Ariel O Zohar o livro do esplendor Satildeo Paulo Polar Edito-rial 2006

DAN Joseph The Ancient Jewish Mysticism Tel Aviv Mod Books 1993

ETCHEGOYEN Gaston Lrsquoamour divin Essai sur les sources de Sainte-Theacuteregravese Bordeaux Feret 1923

GERLI Michael ldquoEl castillo interior y el arte de la memoriardquo Bulletin Hispanique 861-2 (1982) 154-163

KURTZ Barbara ldquoThe Small Castle of the Soul Mysticism and Metaphor in the European Middle Agesrdquo Studia Mystica XV (1992) 28-35

LOacutePEZ-BARALT Luce ldquoTeresa of Jesus and Islam The Simile of the Seven Concentric Castles of the Soulrdquo in Hilaire KALLENDORF (ed) A New Companion to Hispanic Mysticism Danvers BRILL 2010 p 175-199

PEERS Edgar Allison Study of the Spanish Mystics London SPCK 1951

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

215

SCHOLEM Gershom Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and the Talmudic Tradition New York Jewish Theological Seminary of America 1965

SWIETLICKI Catherine Spanish Christian Cabala The works of Luis de Leoacuten Santa Teresa de Jesus and San Juan de la Cruz Columbia Missouri University of Missouri Press 1986

TERESA DE JESUacuteS Santa Moradas del Castillo Interior in Obras Completas Madrid Editorial Catoacutelica 1951

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

216

TRADUCcedilAtildeO

COMECcedilAM OS ERROS DOS FILOacuteSOFOS ARISTOacuteTELES AVERROacuteIS AVICENA ALGAZEL

AL-KINDI MAIMONIDES COLETADOS POR IRMAtildeO EGIacuteDIO DA ORDEM DE SANTrsquo AGOSTINHO1

Introduccedilatildeo I Vida de Egiacutedio Romano ndash Aegiacutedius Romanus

Aegiacutedius Romanus ndash Egiacutedio Romanos ndash tambeacutem conhecido por seu nome francecircs Giles de Rome nasceu em Roma em 1243

Depois de sua entrada na ordem dos Agostinianos estudou em Paris de 1269 ndash 1272 com Tomaacutes de Aquino Com Tomaacutes aproveitou o pensa-mento aristoteacutelico que comeccedilou a se afirmar nos estudos filosoacuteficos com reflexos na Faculdade Teoloacutegica da Universidade de Paris Em consequecircncia das 219 teses ligadas agrave Filosofia e Teologia aristoteacutelicas publicadas em 7 de marccedilo de 1277 e que foram consideradas levianas ou hereacuteticas e como tais em desacordo com os dados da Revelaccedilatildeo pelo bispo de Paris Etienne Tempier Egiacutedio foi obrigado a deixar Paris e por enquanto natildeo conseguiu permanecer na Universidade Em Paris produziu a sua obra poliacutetica De Regimine Principum Em 1285 Egiacutedio refutou as teses que foram condenadas pela maioria da comunidade acadecircmica da universidade parisiense e como consequecircncia lhe foi possiacutevel a sua carreira acadecircmica

A partir de 1292 Egidio assume tanto na ordem dos Agostinianos como na Igreja uma posiccedilatildeo de destaque A sua atuaccedilatildeo desenvolveu-se de modo especial na aacuterea poliacutetica do papa Bonifaacutecio VIII cujas teorias 1 Incipiunt Errores philosophorum Aristotelis Averrois Avicenna Algazelis Alkindi Rabbi Moysis A fratre Aegido collecti ord S Augustini Traduccedilatildeo elaborada a partir do texto latino publicado em Giles of Rome Errores Philosophorum Critical Text with Notes and Introduction by Joseph Koch English Translation by John O Riedl Milwaukee Wisconsin Marquette University Press 1944 Neste Trabalho soacute se apresenta a versatildeo da parte sobre Aristoacuteteles cap 1-2-3 Oportuna-mente apresentar-se-atildeo os outros autores mencionados

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

217

entraram em choque com as praacuteticas e pensamentos do Rei Philippe IV o que levou agrave uma tensatildeo profunda na Igreja do Ocidente

Egidio morreu em 1316 em Avignon Agrave sua mente fina deve o apelido ldquodoctor fundatissimusrdquo ndash doutor profundo mas em razatildeo de certa prolixidade de suas obras o chamam ldquodoctor verbo-susrdquo ndash doutor tagarela

II Autoria e data

Embora sob a autoridade de Mandonnet o texto em estudo tenha sido longamente considerado como espuacuterio estudos posteriores poreacutem dos principais mestres comprovaram a autenticidade da autoria de Egidio Aleacutem disso a comprovaccedilatildeo eacute encontrada em alguns comentaacuterios antigos como tambeacutem nas primeiras ediccedilotildees impressas em 1428 e 1581 editadas em Veneza

Uma anaacutelise da obra comprova assim Koch uma concordacircncia quanto ao estilo e conteuacutedo da Incipiunt com outros escritos do Egiacutedio Mais peso entretanto eacute atribuiacutedo agrave concordacircncia de estilo entre a Incipiunt e outras obras egidianas Cita-se entre outros os seus comentaacuterios sobre a De Generatione et corruptine a Physica que lembram imediatamente os nordm 6-7-8-12 e 14 da Incipiunt (para maiores detalhes cf Koch p XXXIV e XXXV)

E Incipiunt pertence agraves primeiras obras de Egidio e deve ser situada ao redor do ano 1268 visto que no momento em que compocircs este trabalho ele jaacute tinha completado a sua formaccedilatildeo filosoacutefica e como tudo indica tambeacutem uma parte da formaccedilatildeo teoloacutegica

O termino da obra eacute o comentaacuterio da De Generatione et corruptione que cuja data deve se situar entre 1273 e 1274

Isto leva a considerar que a obra deve ser composta ao redor do ano de 1270

III Traduccedilatildeo do Texto

Afirma-se em primeiro lugar

Capiacutetulo I Sobre a lista de erros de Aristoacuteteles

Porque de um dado errado derivam muitas consequumlecircncias de um fundamento falso o Filoacutesofo tirou muitos erros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

218

1 Acreditou pois que nada estaacute numa determinada situaccedilatildeo em que anteriormente natildeo estava senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Avaliou portanto que soacute haveria novidade aonde tivesse uma mudanccedila propriamente dita Consequumlentemente como toda mudanccedila propriamente falando eacute o fim de um movimento natildeo poderaacute haver novidade sem um movimento precedente Deste argumento entatildeo concluiu que o movimento nunca comeccedilou porque se o movimento se iniciasse seria algo novo Mas natildeo existe coisa nova senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Entatildeo antes do primeiro movimento houve algum movimento O que eacute incoerente

2 Aleacutem disso errou ao afirmar que o tempo nunca comeccedilou porque o tempo sempre segue o movimento Se entatildeo o movimento natildeo comeccedilou nem o tempo iniciara Pareceu-lhe que a razatildeo teria uma difi-culdade especial em relaccedilatildeo ao tempo Visto que o instante eacute sempre o fim do passado e o comeccedilo do futuro natildeo se pode falar de um primeiro momento Por isso antes de todo e qualquer momento houve algum tempo e antes de qualquer tempo dado houve um momento Entatildeo o tempo natildeo comeccedilou mas eacute eterno

3 Aleacutem disso por causa daquilo que foi dito foi obrigado a afirmar que aquilo que se move eacute eterno e que tambeacutem o mundo eacute eterno porque uma vez que natildeo haacute tempo sem movimento e nem movimento sem algo moacutevel se tempo e movimento satildeo eternos o que se move seraacute eterno e assim o mundo nunca comeccedilou Tudo isso fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica

4 E mais Foi obrigado a afirmar que o ceacuteu natildeo eacute gerado e eacute incorruptiacutevel e que nunca foi feito mas que sempre existiu Como entre os outros movimentos soacute o movimento circular eacute contiacutenuo como fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica se qualquer movimento eacute eterno o circular seraacute eterno E porque a movimento circular eacute proacuteprio do ceacuteu como se prova no 1ordm livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo conclui-se da mesma forma que o ceacuteu eacute ingecircnito e que nunca foi feito Tinha ele uma razatildeo especial para dizer que o ceacuteu natildeo comeccedilou porque qualquer coisa que possui o poder de sempre existir no futuro tambeacutem teraacute o poder de ter existido sempre no passado E porque o ceacuteu natildeo termina natildeo comeccedilou a existir

5 E ainda visto que na opiniatildeo dele qualquer coisa que eacute feita eacute feita de mateacuteria preexistente assim opinou que Deus natildeo poderaacute fazer um outro mundo porque este o atual eacute feito de toda a mateacuteria Este erro tambeacutem pode ser encontrado no 1ordm Livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

219

6 Argumentou ainda que a geraccedilatildeo das coisas inferiores nunca cessaraacute como tambeacutem nunca tem comeccedilado Porque a corrupccedilatildeo antecede e segue toda a geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo antecede e segue toda a corrupccedilatildeo Por isso visto que a corrupccedilatildeo precede qualquer geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo qualquer corrupccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a corrupccedilatildeo e a geraccedilatildeo terem tido iniacutecio nem eacute possiacutevel elas terminarem porque a qualquer geraccedilatildeo segue a corrupccedilatildeo e a qualquer corrupccedilatildeo segue a geraccedilatildeo Se entatildeo a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo terminassem depois da uacuteltima geraccedilatildeo teria uma geraccedilatildeo e depois da uacuteltima corrupccedilatildeo uma corrupccedilatildeo Que a corrupccedilatildeo precede e segue a geraccedilatildeo ele provou pelo caminho do movimento Porque natildeo existe nada gerado sem que haja algo corrompido e desta forma a corrupccedilatildeo precede a geraccedilatildeo e tambeacutem a segue porque tudo que eacute gerado eacute corruptiacutevel e todo corruptiacutevel e corrompido por necessidade Assim tambeacutem a geraccedilatildeo precede a corrupccedilatildeo Porque nada eacute corrompido que natildeo foi gerado antes e segue a geraccedilatildeo porque a corrupccedilatildeo de um eacute a geraccedilatildeo de outro Este erro pois que a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo natildeo comeccedilam nem terminam pode se achar no 1ordm Livro de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) e de forma mais expliacutecita no Livro 2ordm

7 Ainda em razatildeo de a geraccedilatildeo neste mundo inferior acontecer pelo sol Aristoacuteteles foi obrigado de afirmar que o sol ldquonunca deixaraacute de gerar plantas e animaisrdquo como fica evidente do Livro 1ordm de De Vegetalibus (Sobre os Vegetais)

8 Ainda visto que natildeo existe novidade sem movimento anterior conforme o argumento apresentado ele errou querendo que de Deus natildeo possa proceder de forma imediata algo novo como fica claro do Livro 2ordm de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) onde diz que ldquoaquilo que permanece o mesmo sempre produziraacute o mesmordquo

9 Ainda foi obrigado a negar a ressurreiccedilatildeo dos mortos Por isso considera improvaacutevel como fica claro do Livro 1 de De Anima (Sobre a Alma) que os mortos ressurjam Porque no Livro VIIIordm da Metaphysica quer que aquilo que estaacute morto natildeo se torne vivo de novo senatildeo atraveacutes de muitos meios e se reviver natildeo revive o mesmo numericamente porque aquelas coisas cuja substacircncia se perdeu natildeo voltam as mesmas numericamente como afirma no fim do Livro IIordm de De Generatione

Natildeo tem validade que alguns tentam desculpa-lo dizendo que ele fala pela via da natureza quando acredita que nada de novo possa imediatamente proceder de Deus mas que toda coisa nova acontece por meio do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

220

10 Ainda visto que acreditou que nada de novo possa acontecer senatildeo atraveacutes do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza acreditou como se revela no Livro Iordm de Physicae (Fiacutesica) quando argumenta contra Anaxaacutegoras que um intelecto que procura separar paixotildees e acidentes da substacircncia eacute ldquoum intelecto que procura o impossiacutevelrdquo

Desta opiniatildeo parece seguir que Deus natildeo pode fazer um acidente sem substacircncia

11 Ainda visto que atraveacutes do caminho do movimento nunca haacute geraccedilatildeo de alguma coisa se natildeo houver corrupccedilatildeo de outra e que nunca eacute introduzida uma forma substancial se outra natildeo for expulsa porque a mateacuteria eacute a mesma para todas que a possuem disto se segue que natildeo haacute mais formas substanciais num composto do que em outro De fato aquele que prossegue bem neste caminho veraacute que deve ser colocada em todo composto somente uma forma substancial e assim parece ser a posiccedilatildeo do Filoacutesofo Por isso no Livro VIIordm da Metaphysica no capiacutetulo De unitate diffinitionis (Sobre a Unidade da definiccedilatildeo) afirma que as partes de uma definiccedilatildeo natildeo satildeo uno ldquoporque estatildeo num unordquo mas porque indicam uma natureza

Entatildeo se entender uma natureza composta de vaacuterias formas isto eacute toleraacutevel mas se entender uma natureza simples e que num composto haja somente uma forma isto eacute falso

12 Ele afirma ainda que onde haacute agora pacircntano e mar uma vez existiu terra seca e vice versa porque o tempo natildeo para mas eacute eterno como fica claro do Livro Iordm Meteoreorum Consequentemente tambeacutem lhe foi necessaacuterio afirmar que natildeo houve um primeiro homem nem uma primeira chuva

13 Ainda deste modo querendo proceder pela via da natureza acreditou visto que dois corpos natildeo podem existir simultaneamente no mesmo lugar como eacute revelado no Livro IVordm da Physica que era tatildeo absolu-tamente essencial ldquoper serdquo agraves dimensotildees resistir a dimensotildees e que eacute impossiacutevel as dimensotildees continuarem existindo e entretanto natildeo resistir aacutes dimensotildees

Disto se segue que Deus natildeo pode fazer que dois corpos ocupem o mesmo lugar

14 Ainda porque natildeo pertence agrave inteligecircncia o poder de se mover sem se mover em ato porque as inteligecircncias enquanto se movem satildeo colocadas na melhor disposiccedilatildeo ele afirmou que existem tantos anjos e

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

221

tantas inteligecircncias que existem mundos como fica claro no Livro XIIordm da Metaphysica

Mas a Sagrada Escritura contradiz esta posiccedilatildeo quando afirma ldquoMil milhares o serviram e miriacuteades e mais miriacuteades diante delerdquo

Capiacutetulo II Em que num sumaacuterio satildeo reunidos os erros de Aristoacuteteles

Estes entatildeo de forma sumaacuteria satildeo todos os seus erros

1 Que o movimento natildeo tem comeccedilo 2 Que o tempo eacute eterno 3 Que o mundo natildeo teve um comeccedilo 4 Que o ceacuteu natildeo foi feito 5 Que Deus natildeo poderia fazer um mundo diferente 6 Que geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo natildeo tiveram comeccedilo e natildeo teratildeo fim 7 Que o sol sempre causaraacute geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo no mundo

sublunar 8 Que nada de novo pode proceder diretamente de Deus 9 Que a ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute impossiacutevel 10 Que Deus natildeo poderaacute fazer um acidente sem a substacircncia 11 Que em qualquer composto soacute existe uma forma substancial 12 Que natildeo se pode admitir um primeiro homem e uma primeira

chuva 13 Que de maneira alguma podem existir dois corpos num mesmo

lugar 14 Que existem tantos anjos como haacute mundos Por isso concluir-

se-aacute que haacute cinquumlenta e cinco ou quarenta e sete somente

Alguns poreacutem queriam desculpar o Filoacutesofo na questatildeo sobre a eternidade do mundo Mas isto natildeo tem cabimento porque ele - para mostrar as verdades filosoacuteficas - se baseia no mencionado princiacutepio ateacute mesmo natildeo escreveu praticamente nenhum livro sobre filosofia em que natildeo coloca algo ligado a este princiacutepio

Em seguida aleacutem dos erros supramencionados alguns queriam colocar nele (a opiniatildeo) que Deus nada conhece fora de si de tal maneira que natildeo Lhe eacute conhecida este mundo inferior baseando o seu argumento nas palavras que satildeo apresentadas no XIIordm da Metafiacutesica naquele capiacutetulo Sententia Patrum (A opiniatildeo dos Padres) Mas que aqueles que afirmam isto natildeo entendem o Filoacutesofo E que natildeo eacute esta a sua intenccedilatildeo fica claro pelo que se diz no capiacutetulo De Bona Fortuna (Sobre a boa sorte) onde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

222

afirma que para Deus tanto o passado como o futuro satildeo por si conhecidos Haacute outros erros que lhe satildeo atribuiacutedos com que natildeo nos ocupamos aqui porque satildeo oriundos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea

Capiacutetulo III Em que eacute anulada aquela afirmaccedilatildeo que o Filoacutesofo eacute a base de seus erros

Todos os seus erros entretanto se algueacutem o investigar cuidadosa-mente satildeo consequumlecircncias desta sua posiccedilatildeo que no ser nada de novo acontece senatildeo por movimento anterior Poreacutem como isto eacute falso porque Deus em razatildeo de ser o primeiro agente que natildeo age como instrumento poderaacute produzir as coisas sem movimento anterior Aquele que age por natureza tambeacutem age como instrumento porque eacute do modo de ser do instrumento que move movido e necessariamente pressupotildee na sua accedilatildeo o movido A accedilatildeo entatildeo ou a produccedilatildeo do primeiro agente pode ser sem aquele movimento Criaccedilatildeo por isso natildeo eacute um movimento porque o movimento pressupotildee o moacutevel a criaccedilatildeo de fato natildeo pressupotildee nada nem eacute propriamente falando uma mudanccedila porque toda mudanccedila eacute o fim de um movimento mas como se afirma comumente ela eacute uma simples deduccedilatildeo das coisas do primeiro Qualquer coisa por isso que eacute formulada contra o iniacutecio do mundo e contra aquilo que a feacute afirma eacute totalmente sofiacutestica2

Traduccedilatildeo de

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

2 No capiacutetulo IV inicia-se a apresentaccedilatildeo dos erros de Averroacuteis

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

223

RESENHA

MIacuteSTICA DE OLHOS ABERTOS

METZ Johann Baptist Miacutestica de olhos abertos Traduccedilatildeo de Inecircs Antonia Lohbauer Satildeo Paulo Paulus 2013 Coleccedilatildeo Amantes do Misteacuterio 293 p 135 x 21 cm ISBN 978-85-349-3649-1

Johann Baptist Metz eacute um dos teoacutelogos catoacutelicos alematildees mais influentes do poacutes-Vaticano II Eacute membro da Diretoria do Instituto de Ciecircncias Humanas de Viena desde 1983 cofundador e editor da revista Concilium e professor emeacuterito de Teologia Fundamental na Universidade de Muumlnster Ex-aluno do teoacutelogo jesuiacuteta Karl Rahner rompeu com a Teologia Transcendental do mestre para assumir segundo assinala uma teologia arraigada na praacutexis (p191-211) Metz estaacute no centro de uma escola de Teologia Poliacutetica que exerceu intensa influecircncia sobre a Teologia da Libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina A teologia de Metz centraliza-se na atenccedilatildeo ao sofrimento pois natildeo haacute sofrimento no mundo que natildeo diga respeito ao cristatildeo ldquoComo podemos virar as costas para todo esse sofrimento e nos preocuparmos apenas com nossa salvaccedilatildeo e nossa redenccedilatildeordquo (P 16)

A obra sob comentaacuterio eacute uma coleccedilatildeo de textos mais antigos atualizados e recompilados Alguns dos ensaios foram escritos haacute deacutecadas mas suas preocupaccedilotildees ainda satildeo oportunas ou talvez muito mais importantes do que antes Isto porque conforme Metz o Cristianismo eacute cada vez mais uma exigecircncia e um estiacutemulo para uma accedilatildeo em favor de um mundo melhor e mais justo Notaacutevel eacute a maneira pela qual o A chama a atenccedilatildeo para a espiritualidade cristatilde como revoluccedilatildeo da esperanccedila Enquanto o contexto atual enfatiza o aspecto da introspecccedilatildeo da espiritualidade com suas teacutecnicas de meditaccedilatildeo de olhos fechados a Biacuteblia chama a atenccedilatildeo para um aspecto totalmente diferente a Escritura nos acorda e nos manteacutem de olhos abertos O objetivo da espiritualidade biacuteblica eacute nos encaminhar para o outro A biacuteblia nos ensina uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

224

espiritualidade de olhos abertos porque natildeo existe experiecircncia de Deus sem passar pelo outro o qual na maioria das vezes estaacute sofrendo por causa do que Metz chama de ldquocapitalismo predatoacuteriordquo

A primeira parte da obra ldquoPerspectivas Teoloacutegicasrdquo (P 13-49) lembra que o olhar messiacircnico de Jesus (P 19) natildeo eacute dirigido para o pecado mas para o sofrimento do outro (cf Lc 416-21) ldquoEssa sensibilidade messiacircnica ao sofrimento natildeo tem nada a ver com plangecircnciardquo mas com a miacutestica biacuteblica de justiccedila ldquopaixatildeo por Deus como empatia pelo sofrimento alheio como miacutestica praacutetica da compaixatildeordquo (P 19) situando em primeiro lugar natildeo a culpabilidade mas o sofrimento Esse eacute sentido do discurso apocaliacuteptico como tentativa de dar esperanccedila aos sofredores ldquoO apocalipse biacuteblico ldquodesvelardquo a trilha dos sofredores na histoacuteria da humanidaderdquo (P 17) Lamenta-se que os cristatildeos tenham se afastado tanto desse ponto ldquoA doutrina cristatilde da salvaccedilatildeo dramatizou a questatildeo do pecado e negligenciou a questatildeo do sofrimentordquo (P20)

Na segunda parte da obra ldquoMiacutestica do Face-a-face tentativas de aproximaccedilatildeordquo (P 53-211) Metz reuacutene textos variados no estilo de pequenas meditaccedilotildees que objetivam conduzir o leitor para o centro da feacute cristatilde a saber a abertura para Deus que leva a servir o proacuteximo

Na terceira parte intitulada ldquoUma Igreja sem interesse em aprenderrdquo (P 215-250) o Autor trata de modo muito significativo a respeito da crise na Igreja Conforme Metz ateacute mesmo cristatildeos muito engajados nas comuni-dades e na luta pela justiccedila sentem-se cada vez mais incapazes (ou sem vontade) de aprender Eacute no entanto uma igreja aprendiz (disciacutepula) sempre pronta a se abrir para outras perspectivas

Essa obra eacute sem duacutevida fruto de uma rica experiecircncia de vida do velho Teoacutelogo E uma importante contribuiccedilatildeo para o estudo da Teologia da espiritualidade cristatilde Ao fundamentar-se na exigecircncia de partir dos textos biacuteblicos e da praacutexis de Jesus o A retoma a significaccedilatildeo original e o teor teoloacutegico genuiacuteno da espiritualidade cristatilde bem como a atualidade desse tema tatildeo em moda nos nossos dias e tatildeo pouco compreendido

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

225

Apesar de algumas paacuteginas pressuporem debates teoloacutegicos que jaacute natildeo correspondem agraves experiecircncias das geraccedilotildees recentes vale a pena ler esse livro e seguir os conselhos do velho Mestre segundo o qual uma Igreja que quer se renovar deve saber quem ela eacute e a que eacute destinada

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Page 3: Revista Acadêmica da Prainha

Correspondecircncias K A I R Oacute S ndash Revista Acadecircmica da Prainha ndash ISSN 1807-5096 Endereccedilo Rua Tenente Beneacutevolo 201 - Cep 60160-040 Tel (0xx85) 3453-2150 Fortaleza ndash Cearaacute ndash Brasil

Ficha catalograacutefica

Bibliotecaacuteria responsaacutevel Deusimar Frutuoso de Almeida CRB- 3578

KAIROacuteS Revista Acadecircmica da Prainha Faculdade Catoacutelica de Fortaleza ndash Ano I nordm 1-2 (jandez 2004) - ndash Fortaleza FCF 2004 ndash Semestral ISSN 1807-5096 1 Teologia ndash Perioacutedicos 2 Filosofia ndash Perioacutedicos 3 Ciecircncias Humanas ndash Perioacutedicos 4 Ciecircncias Sociais ndash Perioacutedicos 5 Educaccedilatildeo ndash Perioacutedicos I Faculdade Catoacutelica de Fortaleza

CDD 105 205 305

37005

Eacute proibida a reproduccedilatildeo dos artigos publicados nesta revista sem preacutevia autorizaccedilatildeo Os artigos publicados sua originalidade e redaccedilatildeo satildeo de inteira responsabilidade dos seus autores e natildeo reproduzem necessariamente a opiniatildeo da revista

Kairoacutes ndash Revista Acadecircmica da Prainha Ano Ano X2 JulhoDezembro 2013

Chanceler D Joseacute Antonio Aparecido Tosi Marques Arcebispo Metropolitano de Fortaleza

Diretor e Redator Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Redator adjunto Profa Ms Lisieux DrsquoJesus Luzia de Arauacutejo Rocha Publicaccedilatildeo Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Diretor Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

Secretaacuteria Maria Uyaacutera Feacutelix Beleza Diagramaccedilatildeo Evaldo Amaro dos Santos

CONSELHO CIENTIacuteFICO Prof Dr Carlos Josaphat OP Prof Dr Francisco Manfredo Thomaz Ramos (FCF) Prof Dr Henrique Noronha Galvatildeo (UCP-Lisboa) Prof Dr Luis Alberto De Boni (PUCRS) Prof Dr Manfredo Oliveira (UFC) Prof Dr Maacutercio Fabri dos Anjos Prof Dr Marcus Roberto Nunes Costa (UFP) Prof Dr Maacuterio de Franccedila Miranda SJ (PUC-RJ) Prof Dr Ney de Souza (PUCndashSP-Assunccedilatildeo) Prof Dr Pedro Rubens SJ (UNICAP-PE) Profa Dra Paula Oliveira e Silva (Universidade do Porto)

CONSELHO EDITORIAL Prof Dr Francisco de Aquino Paulino Prof Dr Francisco Evaristo Marcos Prof Dr Joseacute Fernandes de Oliveira Prof Dr Moeacutesio Pereira de Souza Profa Dra Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade Profa DraTacircnia Maria Couto Maia Profa Dra Maria Celeste de Sousa Impressatildeo Graacutefica Encaixe

SUMAacuteRIO I - Seccedilatildeo Teoloacutegica Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira Os ministros da igreja caracteriacutesticas e exigencias 127

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier A teologia de Tiago feacute em accedilatildeo 133

Ir Graccedila Disingakala Nunes Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta 146 II - Seccedilatildeo Filosoacutefica Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

A eacutetica poliacutetica em Maquiavel 161 Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha Sobre a relaccedilatildeo dinacircmica da realidade supra-sensiacutevel segundo Proclo 189 III - Ensaio Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ As fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas do ldquocastelo interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila 208 IV - Traduccedilatildeo Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Comeccedilam os erros dos filoacutesofos Aristoacuteteles Averroacuteis Avicena Algazel Al-Kindi Maimonides coletados por irmatildeo Egiacutedio da ordem de Santrsquo Agostinho 216 V - Resenha Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ Miacutestica de olhos abertos 223

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 125-126 2013

125

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos esta ediccedilatildeo da KAIROacuteS Revista Acadecircmica da Prainha Aleacutem de ser uma manifestaccedilatildeo das pesquisas e estudos do nosso corpo docente eacute um prazer receber contribuiccedilotildees de outros estudiosos - um fator de enriquecimento para a Revista

A Seccedilatildeo Teoloacutegica traz uma rica e austera reflexatildeo sobre os ministros da Igreja o que se deve e se pode esperara deles neste tempo

Como conciliar e unir feacute e accedilatildeo chama a atenccedilatildeo para a carta de Tiago

O artigo sobre vocaccedilatildeo como resposta e natildeo como uma escolha eacute como se fosse uma conclusatildeo dos artigos anteriores

A Seccedilatildeo filosoacutefica traz um bem fundamentado artigo sobre a Eacutetica Poliacutetica em Maquiavel tentando esclarecer seu contexto e significado Um estudo sobre Proclo e sua doutrina a realidade supra-sensiacutevel e seu dinamismo encerra esta seccedilatildeo

No contexto da Miacutestica eacute apresentado um ensaio sobre as fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas da obra ldquoCastelo Interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila

Na Seccedilatildeo traduccedilatildeo um texto de Egiacutedio de Roma que continua o contexto da traduccedilatildeo anterior a aceitaccedilatildeo de Aristoacuteteles na segunda metade do Seacuteculo XIII

Uma Resenha do Livro conhecido teoacutelogo Johanns Metz Miacutestica de olhos abertos encerra este nuacutemero

A todos uma proveitosa leitura

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

126

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

127

OS MINISTROS DA IGREJA CARACTERIacuteSTICAS E EXIGENCIAS1

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

1 O padre servidor do povo

O documento da CNBB nordm 100 ndash Comunidade de comunidades ndash uma nova paroacutequia ndash A conversatildeo pastoral da paroacutequia em seu capiacutetulo 5 tem como tiacutetulo ndash Sujeitos e Tarefas da Conversatildeo Pastoral Reuacutene quais satildeo os sujeitos da referida conversatildeo (bispos presbiacuteteros diaacuteconos permanentes os consagrados e os leigos) Deter-me-ei nos sete nuacutemeros que fazem alusatildeo agrave figura do presbiacutetero (nordm199-205)

Esta parte comeccedila afirmando que o presbiacutetero eacute chamado a ser padre-pastor exprimindo quais suas caracteriacutesticas dedicado generoso acolhedor e aberto ao serviccedilo da comunidade faz referecircncia ao excesso de atividades como um sinal preocupante que pode prejudicar o equiliacutebrio pessoal do padre (cfn 199)

Em algumas comunidades encontram-se presbiacuteteros desencantados cansados Nesta ocasiatildeo o documento em apreccedilo chama a atenccedilatildeo para algo que eacute muito grave e que merece de noacutes presbiacuteteros em especial aos paacuterocos a atenccedilatildeo

A sobrecarga de trabalhos pode dificultar a capacidade de relacionamento dos presbiacuteteros tornando-os apaacuteticos aos sofrimentos dos outros insensiacuteveis aos pobres rude no tratamento de seus paroquianos e incapazes de manifestar a misericoacuterdia e a bondade de Cristo do qual satildeo ministros Eles precisam ser ajudados (nordm 200)

1 Constantes satildeo os apelos do Magisteacuterio da Igreja tanto do Bispo de Roma como dos bispos do Brasil sobre os ministros ordenados Denotam-se caracteriacutesticas agraves quais estes ldquoservidoresrdquo do povo devem corresponder Em trecircs artigos escritos em ocasiotildees diferentes o Padre Almir Magalhatildees faz uma descriccedilatildeo e siacutentese geral das exigecircncias que satildeo a base de um ministeacuterio evangeacutelico adaptado aos nossos dias

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

128

Vivemos numa sociedade do vazio da superficialidade e neste contexto somos entre outras realidades formadores de opiniatildeo com um papel importante na sociedade de fazer a contraposiccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser considerado manipulaccedilatildeo das consciecircncias O documento tambeacutem contribui neste aspecto quando afirma que ldquoOutra preocupaccedilatildeo se refere agrave atualizaccedilatildeo do padre diante das aceleradas mudanccedilas que ocorrem na modernidade Ele pode ficar atrasado no tempo e afastado da realidade No ativismo pode ser que natildeo se dedique ao estudo e natildeo se prepare melhor para escutar e entender os anseios dos que o procuramrdquo (Nordm 201) Afinal de contas apesar de o modelo eclesioloacutegico do Vaticano II ser trinitaacuterio uma eclesiologia de comunhatildeo sob a qual todos satildeo responsaacuteveis pela accedilatildeo evangelizadora ldquoA conversatildeo pastoral da paroacutequia depende muito da postura do presbiacutetero na comunidaderdquo (Nordm 202)

Para que boa parte destas realidades aconteccedila seraacute de fundamental importacircncia que o presbiacutetero acolha bem as pessoas exerccedila a paternidade espiritual sem distinccedilotildees evitando atitude seletiva de privileacutegios a grupos A ou B renovando sua espiritualidade para ajudar tantos irmatildeos que buscam a paroacutequia (Cfnordm 202) Identicamente eacute preciso evitar-se que paroacutequias possam projetar uma imagem contraacuteria daquilo falado ateacute aqui a imagem de uma Igreja distante burocraacutetica e sancionadora (Cfnordm 37)

Devemos melhorar nosso atendimento e a paroacutequia haacute de estabelecer o diverso neste item comeccedilando pelo padre Isto requer que o presbiacutetero cultive profunda experiecircncia de Cristo vivo com espiacuterito missionaacuterio coraccedilatildeo paterno que seja animador da vida espiritual e evangelizador capaz de promover a participaccedilatildeordquo (Nordm 203)

Finalmente o padre deve ser formado para ser servidor do seu povo Eacute por este motivo que deve existir cuidado com o preparo permanente e a formaccedilatildeo nos seminaacuterios de acordo com esta visatildeo pastoral que considera a paroacutequia uma comunidade de comunidades tal como insiste a Igreja no Brasil a respeito da formaccedilatildeo presbiteral (Nordm 205 e Doc 93 da CNBB)

A questatildeo fundamental eacute como superar o ldquomodelordquo atual de paroacute-quia muito mais voltada para a sacramentalizaccedilatildeo conservaccedilatildeo para o modelo expresso no documento aqui refletido ldquoO ministeacuterio sacerdotal tem uma forma comunitaacuteria radical e soacute pode se desenvolver como tarefa coletivardquo (Nordm 204)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

129

2 Tentaccedilotildees dos agentes de pastorais

O tiacutetulo desta reflexatildeo eacute retirado da segunda parte do Capiacutetulo II da Exortaccedilatildeo Apostoacutelica A Alegria do Evangelho do Papa Francisco (Na crise do compromisso comunitaacuterio) Admito que muitos agentes jaacute tiveram acesso a esta Exortaccedilatildeo mas considero que a maioria ainda natildeo teve acesso e desta forma socializo algumas questotildees relevantes desta parte e que tecircm incidecircncia na vida dos agentes de pastoral Uma avaliaccedilatildeo eacute incontestaacutevel o Papa sempre desconcerta

Logo no iniacutecio afirma o Pontiacutefice sua gratidatildeo pela tarefa de quantos trabalham na Igreja e que a nossa tristeza e a vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja natildeo devem fazer esquecer os inuacutemeros cristatildeos que datildeo a vida por amor e agradece o belo exemplo de que datildeo tantos cristatildeos que oferecem sua vida e o seu tempo com alegria (Cfnordm 76)

Em seguida convoca a uma espiritualidade missionaacuteria chamando a atenccedilatildeo para algo que particularmente considero uma peacuterola em termos de anaacutelise da situaccedilatildeo atual ao assinalar que a vida espiritual de muitos agentes se confunde com alguns momentos religiosos que proporcionam algum aliacutevio mas natildeo alimentam o encontro com os outros o compromisso no mundo a paixatildeo pela evangelizaccedilatildeo (Cf nordm 78) Saliento que jaacute vi esta observaccedilatildeo ser feita por outros pastoralistas entretanto quando parte de teoacutelogos geralmente eacute avaliada como tendenciosa fechando-se Agora eacute o Papa Francisco quem faz a afirmaccedilatildeo

Uma tocircnica sua no diaacutelogo com o mundo eacute o encontro com o outro o que natildeo faltou tambeacutem nessa Exortaccedilatildeo ldquoO ideal cristatildeo convidaraacute sempre a superar a suspeita a desconfianccedila permanente o medo de sermos invadidos as atitudes defensivas que nos impotildee o mundo atual Muitos tentam escapar dos outros se fechando na sua privacidade confortaacutevel ou no ciacuterculo reduzido dos mais iacutentimos e renunciam ao realismo da dimensatildeo social do Evangelhordquo (Nordm88) Ele trata deste assunto na mesma Exortaccedilatildeo no Cap IV

Relevante eacute como ele conclui este mesmo nordm 88

ldquoPorque assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual sem carne nem cruz tambeacutem se pretendem relaccedilotildees interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos por eacutecrans e sistemas que se podem acender e apagar agrave vontade Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraccedilar o risco do encontro com o rosto do outro com a sua presenccedila fiacutesica que interpela com os seus sofrimentos e suas reivindicaccedilotildees A verdadeira feacute no Filho de Deus feito carne eacute inseparaacutevel do dom de si mesmo da

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

130

pertenccedila agrave comunidade do serviccedilo da reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros Na sua encarnaccedilatildeo o Filho de Deus convidou-nos agrave revoluccedilatildeo da ternurardquo

Percebam que neste pequeno trecho o Papa nos daacute material para um retiro de no miacutenimo 7(sete) dias pois relembra uma heresia do seacutec II ndash o docetismo que nega a humanidade de Cristo afirmando em outras palavras que hoje tambeacutem faltam nos cristatildeos as relaccedilotildees interpessoais substituiacutedas pela ldquotelinhardquo portanto sem cruz sem encontro na comodi-dade Estamos conectados quase que permanentemente sem preocupaccedilatildeo com o sofrimento dos outros Analisem minuciosamente e comparem com a realidade em que o Papa confere autenticidade da feacute Ela se revela em quatro pontos dom de si mesmo pertenccedila agrave comunidade serviccedilo e reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros

Concluo esta reflexatildeo em primeiro lugar exprimindo que natildeo estou somente me dirigindo aos outros sou um agente de pastoral e vou me confrontando com toda a Exortaccedilatildeo O grande objetivo mesmo eacute convidar a todos os agentes de pastoral a natildeo perderem de vista estes 33 (trinta e trecircs) nuacutemeros e 13 paacuteginas de cunho eminentemente pastoral-espiritual Natildeo seria bom para noacutes neste final de Quaresma ou quem sabe iniacutecio da Paacutescoa visitar estes nuacutemeros dos quais esta reflexatildeo foi apenas uma motivaccedilatildeo

3 ldquoAi de voacutesrdquo

Ao realizar sua missatildeo Jesus teve de enfrentar alguns conflitos e ateacute mesmo provocaacute-los na fidelidade e obediecircncia agrave realizaccedilatildeo da vontade do Pai Via de regra encontramos estes confrontos junto a alguns grupos de seu tempo destacando-se os escribas ou doutores da lei e os fariseus estes uacuteltimos gozando de muita credibilidade junto ao povo de Deus Tal creacutedito se dava pela loacutegica defendida por eles na medida em que pelo cumprimento da lei se visibilizava maior aproximaccedilatildeo a Deus ou natildeo a isto chamamos de legalismo farisaico pois a questatildeo principal de estar proacuteximo a Deus ou natildeo era simplesmente cumprir a lei (Cf todo o confronto sobre o saacutebado comer com as matildeos impuras Cf Mc 7)

O sistema se baseava nos polos ndash puros e impuros A pureza indicava as condiccedilotildees necessaacuterias para algueacutem poder comparecer diante de Deus no Templo (Cf C Mesters Com Jesus na contramatildeo p 24) Neste sentido o povo tinha grande preocupaccedilatildeo com a pureza pois quem natildeo era puro natildeo podia chegar perto de Deus (Mt 99-12)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

131

No capiacutetulo 23 do Evangelho de Mateus (precisamente 23 13-36) Jesus pronuncia os famosos sete ldquoaisrdquo todos eles dirigidos a estes dois grupos e de forma ousada e profeacutetica nesta seccedilatildeo chama-os ora de ldquohipoacutecritasrdquo ora de ldquoguias cegosrdquo de ldquoinsensatosrdquo e de ldquosepulcros caiadosrdquo predomina o adjetivo hipoacutecrita

Evidentemente Jesus natildeo age desta forma manifestando oacutedio para com eles mas fazendo uma catequese para que eles pudessem entrar na dinacircmica da conversatildeo e consequentemente do Reino de Deus na novidade do que ele representava jaacute que o rosto de Deus que eles mani-festavam contradizia frontalmente o Deus que Jesus representava

Do conjunto da coletacircnea de advertecircncias contra escribas e fariseus o termo mais usado eacute hipocrisia por ser uma atitude do sistema religioso que eles representavam fechando-se no seu prestiacutegio e poder julgavam-se justos e santos e disto os Evangelhos datildeo conta (Cf o ex da cena do fariseu e do publicano ndash Lc 18 9-14 a questatildeo do jejum em Mc 218ss) No sistema por eles defendido o que prevalecia de fato eram os ritos externos a formalidade

Com suporte no texto aqui referenciado destaco o versiacuteculo 23 citando-o ldquoAi de voacutes escribas e fariseus hipoacutecritas que pagais o dizimo da hortelatilde da erva-doce e do cominho enquanto descuidais o que haacute de mais grave na lei a justiccedila a misericoacuterdia e a fidelidade eacute isto que era preciso fazer sem omitir aquilordquo

A referecircncia eacute muito clara e natildeo precisa de grandes comentaacuterios acadecircmicos ndash os interlocutores de Jesus como jaacute se sabe viviam da exterioridade da formalidade do cumprimento da lei amplamente denunciado neste capiacutetulo de Mateus Na sequumlecircncia Jesus daacute um ensinamento novo como origem tambeacutem em suas praacuteticas por exemplo confraternizando-se com pessoas impuras como eram os publicanos e pecadores (Mc 2 15-17) tocar em leprosos comer sem lavar as matildeos tocar em cadaacutever e isto evidentemente tornava Jesus na concepccedilatildeo da eacutepoca uma pessoa impura pelo contato com estes pecadores e isto impedia a presenccedila de Deus

Agora vamos puxar a reflexatildeo construindo uma ponte entre a abordagem ateacute aqui desenvolvida e o nosso tempo prefiro proceder assim em primeiro lugar fazendo duas perguntas para vocecirc caro leitor existe algo parecido hoje em dia

Por gentileza interessante natildeo fazer uma interpretaccedilatildeo fundamenta-lista mas levar em consideraccedilatildeo a formalidade as questotildees de visibilidade

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

132

que a Igreja tem hoje por meio de grandes eventos de massa da miacutedia catoacutelica do estilo neopentecostal e a outra indagaccedilatildeo como estaacute sendo considerada a praacutetica da misericoacuterdia ndash a praacutetica da justiccedila e da fidelidade no seguimento de Jesus Cristo Seraacute que estamos na linha da exterioridade e sem esquecer isto estamos deletando a justiccedila da praacutetica de nossos grupos paroacutequias e idem com a misericoacuterdia e a fidelidade

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira eacute padre da Arquidiocese de Fortaleza

Diretor e Professor da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza - FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

133

A TEOLOGIA DE TIAGO FEacute EM ACcedilAtildeO

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier

Resumo A Epiacutestola de Tiago apresenta ensinos praacuteticos e eacuteticos para a vida cristatilde da mesma maneira como o proacuteprio Jesus mostrou que a feacute deveria vir acompanhada de atitudes Poreacutem alguns estudiosos biacuteblicos levantaram criacuteticas agrave epiacutestola de Tiago como se essa fosse contraacuteria agrave justificaccedilatildeo pela feacute Nesse artigo demonstra-se que a feacute e as obras natildeo se contrapotildeem na epiacutestola de Tiago sendo necessaacuterio compreender o contexto da mesma e sua importacircncia para os cristatildeos nos dias de hoje

Palavras-chave Tiago Conduta Cristatilde Feacute e Praacutetica

Abstract The Epistle of James has practical and ethical teachings for the Christian life just as Jesus himself showed that faith should be accompanied by actions However some scholars have raised criticism of the Epistle of James as if this was contrary to the justification by faith In this paper we show that faith and works are not opposed in the Epistle of James it is necessary to understand the context of the same and its importance for Christians today

Keywords James Christian Conduct Faith and Practice Introduccedilatildeo

A epiacutestola de Tiago difere das outras epiacutestolas do Novo Testamento pelo seu estilo conteuacutedo e apresentaccedilatildeo Tiago trata de religiatildeo praacutetica de eacutetica de solidariedade de religiatildeo vivencial A epiacutestola exatamente como Hebreus eacute mais um sermatildeo que uma carta propriamente dita Eacute um sermatildeo ou um ensino ou um tratado e ldquoas indicaccedilotildees satildeo de que foi o primeiro de todos os documentos escritos do Novo Testamentordquo (BAXTER 1989 p 309) O livro foi escrito aproximadamente entre 10 a 15 anos apoacutes a morte de Jesus (SHIDD BIZERRA 2010 p 7) Francis Nichol (1995 p 516) diz que natildeo haacute uma maneira segura para determinar a data da epiacutestola mas aponta a possibilidade da mesma ter sido escrita apoacutes o ano 44 dC

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

134

Neste artigo apresenta-se um panorama da teologia de Tiago com vistas a demonstrar como a feacute pode e deve ser praticada em atos e pala-vras em conformidade com a doutrina de Cristo

Sobre o autor

A Carta de Tiago jaacute provocou muitas discussotildees na histoacuteria da Teologia Uma das principais estaacute relacionada com o seu autor O prefaacutecio indica que o autor foi Tiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo (Tg 11) Mas no Novo Testamento haacute cinco homens chamados Tiago O primeiro eacute o pai de Judas (Lc 616) O segundo eacute um disciacutepulo filho de Alfeu (Mt 103) Este Tiago eacute o irmatildeo de Mateus (Mt 99 e Mc 214) O terceiro eacute chamado Tiago menor (Mc 1540) Talvez fosse chamado ldquomenorrdquo por causa do seu tamanho ou como substituto de Juacutenior (haacute pais que gostam de colocar seus nomes nos filhos) O quarto eacute o irmatildeo de Joatildeo e filho de Zebedeu (Mt 102) Este eacute o que os espanhoacuteis gostam de dizer que eacute o Tiago de Compostela Mas esse foi morto no iniacutecio dos anos quarenta conforme Atos 122 O quinto eacute chamado de ldquoirmatildeo do Senhorrdquo (Gl 119) Jesus possuiacutea um irmatildeo com este nome como aparece em Mateus 1355 Poreacutem apenas dois desses foram apresentados como possiacuteveis autores desta epiacutestola ndash Tiago filho de Zebedeu e Tiago o irmatildeo do Senhor

O primeiro eacute um candidato improvaacutevel Sofreu o martiacuterio em 44 AD e natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que ocupasse posiccedilatildeo de lideranccedila na igreja que lhe desse a autoridade de escrever esta carta geral Embora Isidoro de Sevilha e Dante achassem que ele foi o autor do livro esta identidade natildeo tem sido largamente aceita em nenhum periacuteodo da igreja A opiniatildeo tradicional identifica o autor como sendo Tiago o irmatildeo do Senhor A semelhanccedila da linguagem da epiacutestola com as palavras de Tiago em Atos 15 a forte dependecircncia do escritor da tradiccedilatildeo judia e a consistecircncia do conteuacutedo de sua carta com as notiacutecias histoacutericas que o Novo Testamento daacute em relaccedilatildeo a Tiago o irmatildeo do Senhor tudo tende a apoiar a autoria tradicional (PFEIFER HARRISON 1983 p 325)

Assim pode-se inferir que o autor da epiacutestola seja Tiago irmatildeo de Jesus

Criacuteticas agrave carta de Tiago

Esta epiacutestola tem sido alvo de criacuteticas e comentaacuterios injustos desde o iniacutecio do movimento protestante com Martinho Lutero (1522)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

135

Preocupado em afirmar a doutrina da justificaccedilatildeo pela feacute Lutero foi duro com a carta de Tiago Chamou-a de ldquoepiacutestola de palhardquo (eyne rechte stroerne Epistel) por causa de seu entendimento equivocado do capiacutetulo 2 versos 14 a 16 onde presumiu haver o ensino de justificaccedilatildeo pelas obras (STOTT 1996 p 18) Este pensamento errocircneo de Lutero ainda permanece em muitas mentes Mas deve ser entendido dentro do contexto em que as palavras dele foram proferidas Elas constam de seu prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo da Biacuteblia Alematilde onde ele se expressa sobre os livros que mais mostram a pessoa de Cristo Apoacutes nomeaacute-los disse Lutero ldquoPor isso a epiacutestola de Satildeo Tiago eacute uma epiacutestola bem insiacutepida (eyne rechte stroerne Epistel) se comparada agraves demais [] (LUTERO 1997 p 81)

Este reformador mais tarde modificou sua posiccedilatildeo Assim se expressou Lutero conforme nos diz George (1986 p 371) ldquoQuando Satildeo Tiago e Paulo dizem que um homem eacute justificado pelas obras eles estatildeo combatendo a noccedilatildeo errocircnea daqueles que pensam que a feacute sem obras eacute suficienterdquo

Outro que pode ser considerado injusto com Tiago eacute Champlin (1991 p 536) quando diz que ldquoA epiacutestola de Tiago certamente eacute um documento que representa o cristianismo judaico e natildeo erramos por dizer representa o cristianismo legalistaldquo

Paulo e Tiago

Muitas das criacuteticas se devem agrave aparente contradiccedilatildeo entre Tiago e Paulo no assunto ldquofeacute e obrasrdquo (KUMMEL 1975 p 414-41) Kuumlmmel lista cinco aparentes contradiccedilotildees A mais famosa declaraccedilatildeo de Tiago ldquoa feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) gerou discussatildeo nos primoacuterdios da Reforma Lutero natildeo conseguia conciliar esta declaraccedilatildeo com o que Paulo escreveu ldquoConcluiacutemos pois que o homem eacute justificado pela feacute independente de obras da leirdquo (Rm 328) Especialmente outra declaraccedilatildeo de Tiago estaacute em aparente oposiccedilatildeo ao ensino de Paulo ldquoVerificais que uma pessoa eacute justificada por obras e natildeo por feacute somenterdquo (Tg 224) O curioso eacute que os dois apoacutestolos tardios (isto eacute que natildeo estavam entre os doze) utilizam o mesmo personagem biacuteblico (Abraatildeo) para defender posiccedilotildees aparentemente contraditoacuterias Paulo diz ldquoQue pois diremos ter alcanccedilado Abraatildeo nosso pai segundo a carne Porque se Abraatildeo foi justificado por obras tem de que se gloriar poreacutem natildeo diante de Deus Pois que diz a Escritura Abraatildeo creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo (Rm 41-3) Tiago em contrapartida diz ldquoNatildeo foi por obras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

136

que Abraatildeo o nosso pai foi justificado quando ofereceu sobre o altar o proacuteprio filho Isaquerdquo (Tg 221) Aqui haacute pelo menos uma contradiccedilatildeo verbal (LADD 1997 p 546 MORRIS 2003 p 379) mas seraacute que haacute uma contradiccedilatildeo teoloacutegica

Uma siacutentese da diferenccedila entre Paulo e Tiago dada por Mears (1993) poderaacute resolver essa questatildeo

Tiago eacute a mais praacutetica de todas as epiacutestolas e tem sido chamada ldquoGuia Praacutetico para a Vida e a Conduta Cristatilderdquo Eacute o livro de Proveacuterbios do Novo Testamento Estaacute repleto de preceitos morais Expotildee a eacutetica do Cristianismo Eacute cheio de figuras e metaacuteforas Seu estilo eacute muitas vezes bastante dramaacutetico Obriga a pensar realmente Hebreus apresenta doutrina Tiago apresenta obras Eles se completam num Cristianismo vital Natildeo haacute conflito entre Paulo e Tiago Soacute uma leitura superficial de ambos levaria a essa conclusatildeo Paulo diz ldquoRecebam o Evangelhordquo Tiago diz ldquoVivam o Evangelhordquo Paulo viu Cristo no ceacuteu estabelecendo a nossa justiccedila Tiago viu-o na terra dizendo-nos que sejamos perfeitos como eacute perfeito o seu Pai que estaacute no ceacuteu Paulo deteacutem-se na fonte da nossa feacute Tiago fala do fruto da nossa feacute Eacute preciso natildeo soacute crer mas viver Ainda que Paulo saliente a justificaccedilatildeo pela feacute vemos em suas epiacutestolas especialmente em Tito que ele daacute grande realce agraves boas obras (1 Tm 618) enquanto Tiago fala em ser ricos em feacute (25) Conveacutem notar tambeacutem que quando Tiago parece menosprezar a feacute ele estaacute-se referindo a uma simples crenccedila intelectual e natildeo agrave ldquofeacute salvadorardquo que eacute tatildeo essencial Tiago exalta a feacute Ele diz que a prova dela opera a paciecircncia Sua carta comeccedila e termina com um forte estiacutemulo agrave feacute (16 514-18) Ele denuncia a feacute espuacuteria que natildeo produz obras (MEARS 1993 p 511-512)

Uma siacutentese menor seria

Paulo responde a pergunta Sob que condiccedilatildeo ou condiccedilotildees um pecador pode ser justificado diante de Deus Sua resposta eacute Sob a condiccedilatildeo da feacute a confianccedila de todo coraccedilatildeo em Cristo como Salvador Tiago contesta a pergunta Que classe de feacute salvaraacute a um homem Sua resposta eacute Nenhuma feacute ou credo somente nem sinceramente a crenccedila em Deus como uacutenico mas uma feacute que produz vida reta (CONNER 1951 p 221)

O resumo de Tiago sobre a feacute inoperante eacute ldquoporque assim como o corpo sem espiacuterito eacute morto assim tambeacutem a feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) Foi deste modo que Calvino resolveu a questatildeo O Reformador de Genebra natildeo viu contradiccedilatildeo entre Paulo e Tiago pois entendeu que Tiago falava de uma feacute falsa ldquoPois transparece desde as primeiras palavras que ele fala de uma falsa profissatildeo de feacute pois ele natildeo comeccedila assim lsquose algueacutem tem feacutersquo mas lsquose algueacutem diz que tem feacuterdquo (CALVIN

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

137

1998 Tg 2-14) Calvino portanto natildeo teve a mesma duacutevida de Lutero mas compreendeu o sentido especiacutefico e claro a que Tiago se referia

Os grandes temas de Tiago

O caraacuteter cristatildeo eacute o tema central da epiacutestola Tiago nada fala do Espiacuterito Santo nem mesmo da doutrina da salvaccedilatildeo O autor natildeo trata de doutrinas mas de conduta Natildeo haacute menccedilatildeo alguma a Missotildees Batismo Santa Ceia Cruz e suas implicaccedilotildees A epiacutestola eacute predominantemente eacutetica Dentre os muitos assuntos tratados por Tiago podemos destacar os seguintes

Provas e tentaccedilotildees

A carta dirige-se especialmente aos judeus cristatildeos que viviam entre gentios fora dos limites da Palestina e que sofriam devido as suas convicccedilotildees religiosas (MARTIN 1998)

Tiago escreveu ldquoMeus irmatildeos tende por motivo de toda alegria o passardes por vaacuterias provaccedilotildeesrdquo (Tg 12) Ele completa ldquoBem-aventurado o homem que suporta com perseveranccedila a provaccedilatildeo porque depois de ter sido aprovado receberaacute a coroa da vida a qual o Senhor prometeu aos que o amamrdquo (Tg 112) Soacute a recompensa eterna compensa os sofrimentos desta vida e o cristatildeo deve olhar para aquele dia futuro quando receberaacute o galardatildeo em troca das vicissitudes e isto deve fazer com que se alegre no presente seacuteculo ainda que seja pobre e necessitado

A palavra ldquotentaccedilatildeordquo eacute usada num sentido mais amplo incluindo perseguiccedilotildees externas e solicitaccedilotildees internas ao mal Tiago ensina aos leitores como transformar a tentaccedilatildeo em becircnccedilatildeo fazendo dela uma fonte de paciecircncia e usando-a como o fogo que prova o ouro (PEARLMAN 1997 p 319)

A esse respeito o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia define ldquoTentaccedilotildees (gr Peirasmos) significa provaccedilotildees com um propoacutesito e efeito beneacuteficos ou sejam provaccedilotildees ou tentaccedilotildees divinamente permitidas ou enviadasrdquo (SHEDD 1979 p 1388)

A ecircnfase eacute que a tentaccedilatildeo em si natildeo vem de Deus ldquoNingueacutem ao ser tentado diga Sou tentado por Deus porque Deus natildeo pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo a ningueacutem tentardquo (Tg 113) O verdadeiro instrumento da tentaccedilatildeo segundo Tiago eacute a cobiccedila (Tg 114) Ele diz ldquoEntatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute aacute luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morterdquo (Tg 115) A antropologia de

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

138

Tiago estaacute em perfeita harmonia com o Antigo Testamento e com os demais escritos do Novo Testamento Deus natildeo eacute o autor do mal O pecado surge no ser humano e gera morte O fato de Tiago natildeo mencionar Satanaacutes como tentador natildeo significa que ele natildeo julgasse importante no processo da tentaccedilatildeo e do pecado (Tg 47)

Tiago expotildee como a feacute verdadeira reage em meio aos sofrimentos decorrentes das provaccedilotildees e das tentaccedilotildees A feacute verdadeira gera alegria nas provaccedilotildees e eacute fortalecida em Deus nas tentaccedilotildees

Feacute e obediecircncia

A feacute verdadeira segundo Tiago eacute aquela que implica em obediecircn-cia ou seja a praacutetica da Palavra Ele diz ldquoPortanto despojando-vos de toda impureza e acuacutemulo de maldade acolhei com mansidatildeo a palavra em voacutes implantada a qual eacute poderosa para salvar vossa alma Tornai-vos pois praticantes da palavra e natildeo somente ouvintes enganando-vos a voacutes mesmosrdquo (Tg 12122)

Haacute um eco entre estas palavras e as que Jesus proferiu no final do sermatildeo do monte que compara o ouvir sem praticar a palavra como uma atitude de construir uma casa sobre a areia (Mt 724-27) Ouvir sem praticar eacute como se olhar num espelho e esquecer-se de como se eacute Os espelhos eram de bronze e refletiam mal a imagem da pessoa aleacutem de serem raros Uma pessoa pobre passava meses sem se ver ao espelho Quem ouve e pratica seraacute bem-aventurado (Tg 125) Natildeo praticar a Palavra de Deus eacute um ato de auto-engano pois a proacutepria pessoa seraacute a uacutenica prejudicada A feacute verdadeira eacute a que demonstra a Palavra de Deus na praacutetica A guarda da liacutengua

Tiago preocupado com a questatildeo da liacutengua no sentido de ldquofalar o que natildeo se deverdquo antecipa um pouco do que vai dizer adiante ldquoSe algueacutem supotildee ser religioso deixando de se refrear a liacutengua antes enganando o proacuteprio coraccedilatildeo a sua religiatildeo eacute vatilderdquo (Tg 126) Esclarece o que entende ser a verdadeira religiatildeo ldquoA religiatildeo pura e sem maacutecula para com o nosso Deus e Pai eacute essa visitar os oacuterfatildeos e as viuacutevas nas suas atribulaccedilotildees e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundordquo (Tg 127)

Com o objetivo de exemplificar de modo praacutetico o que considera uma feacute em accedilatildeo Tiago trata sobre o problema da liacutengua Agora ele tem em mente os mestres pois fala sobre o perigo de algueacutem utilizar a liacutengua

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

139

de modo errado neste sentido (Tg 31-12) Do mesmo modo expotildee sobre as dissensotildees dentro da comunidade como algo contraacuterio aacute feacute (Tg 313-18) Trata novamente sobre a cobiccedila (Tg 41-3) da vida mundana e da necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 44-10) Enfatiza os relacionamentos pessoais na igreja e na necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 411-17) A feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica de obras eacute uma feacute em accedilatildeo

Natildeo fazer acepccedilatildeo

Tiago analisa a incompatibilidade de algueacutem crer em Jesus e fazer acepccedilatildeo de pessoas

Meus irmatildeos natildeo tenhais a feacute em nosso Senhor Jesus Cristo Senhor da gloacuteria em acepccedilatildeo de pessoas Se portanto entrar na vossa sinagoga algum homem com aneacuteis de ouro nos dedos em trajos de luxo e entrar tambeacutem algum pobre andrajoso e tratardes com deferecircncia o que tecircm trajos de luxo e lhe disserdes Tu assenta-te aqui em lugar de honra e disserdes pobre Tu fica ali em peacute natildeo fizestes distinccedilatildeo entre voacutes mesmos e natildeo vos tornastes juiacutezes tomados de perversos pensamentos (Tg 21-4)

Apesar da maioria dos crentes para os quais Tiago ensinava ser de classe baixa parece que eles como eacute proacuteprio agraves vezes dos pobres tratavam bem os ricos e mal os pobres Tiago diz que isto eacute uma feacute incoerente No texto ele fala da ldquosinagogardquo e natildeo da igreja o que evidencia o aspecto judaico da carta e aponta para sua antiguidade Para Tiago fazer acepccedilatildeo de pessoas eacute quebrar a lei (Tg 2 9-10) A questatildeo polecircmica da carta

Jaacute tratamos disto em momentos anteriores e podemos deixar de emitir mais consideraccedilotildees Vamos apenas acrescentar isto a preocupaccedilatildeo de Tiago eacute primariamente praacutetica (CARBALLOSA 1994 p 70) e parece oacutebvio que ele respondia a algum tipo de questionamento antinomista pois rebatia a crenccedila de que uma pessoa pode ser salva sem que demonstre qualquer mudanccedila de vida

Por isso ele diz que no caso de Abraatildeo ldquofoi pelas obras que a feacute se consumourdquo (Tg 222) Paulo por outro lado estaacute respondendo a outro tipo de questionamento Ele combate a noccedilatildeo judaica daqueles dias de que uma pessoa era salva pela feacute e pelas obras como se as obras natildeo fossem apenas uma evidecircncia da feacute mas um instrumento real de salvaccedilatildeo Eacute oacutebvio que se algueacutem lhe dissesse que uma pessoa pode ser salva sem experimentar uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

140

transformaccedilatildeo Paulo certamente responderia ldquonatildeordquo pois embora sejamos salvos pela graccedila Deus tem preparado uma vida de boas obras para que andemos nelas (Ef 28-10) Ellen G White (1892) declarou que ldquoas boas obras se seguiratildeo como as floraccedilotildees e frutos da feacute A apropriaccedilatildeo da justiccedila de Cristo seraacute manifestada numa vida bem ordenada e na conversaccedilatildeo santardquo

Do mesmo modo se perguntassem a Tiago se a lei precisa ser obedecida para que algueacutem seja salvo como um meio de completar a feacute certamente ele diria que somos salvos pela feacute e que as obras satildeo apenas a evidecircncia de que ela existe Natildeo haacute contradiccedilatildeo teoloacutegica entre Paulo e Tiago suas respostas aparentemente divergentes explicam a razatildeo dos propoacutesitos de cada autor Assim a Reforma Protestante resolve o conflito quando declara ldquoEacute a feacute que salva sozinha mas a feacute que salva nunca estaacute sozinhardquo

Denuacutencia contra os ricos

ldquoPaciecircnciardquo eacute a palavra chave para resumir o ensino do capiacutetulo 51-6 sendo um dos temas predominantes de toda a carta de Tiago ldquoEvidentemente muitas das pessoas humildes dentre os judeus cristatildeos estavam sendo oprimidos pelos ricos e seus salaacuterios eram retidos com fraude (54)rdquo (MEARS 1993 p 517-518) Os cristatildeos pobres daqueles dias deveriam ter paciecircncia e esperar o momento da libertaccedilatildeo que viria de Deus e viver na praacutetica a feacute que salva

Sobre a denuacutencia de Tiago contra os ricos assim se expressa o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia ldquoEsta seccedilatildeo apresenta uma severa denuacutencia contra os ricos que tecircm granjeado prosperidade mediante opressatildeo Os tais satildeo condenados natildeo por serem ricos mas porque suas riquezas foram mal adquiridas permanecendo sobre elas as marcas da corrupccedilatildeordquo (SHEDD 1979 p 1388)

Jaacute o Comentaacuterio Biacuteblico Adventista por sua vez esclarece ldquoO contexto imediato implica que os ldquoricosrdquo satildeo exemplos notaacuteveis de quem tecircm muitas oportunidades para fazer o bem mas evitam fazecirc-lo Estes ldquoricosrdquo podem ser ou natildeo membros da igrejardquo (NICHOL 1995 p 553)

A mensagem de Tiago era evidente para seus leitores ldquoos opressores ainda pagaratildeo por tudo o que tecircm feitordquo Mas o povo de Deus deveria ser paciente pois natildeo haacute como antecipar o juiacutezo de Deus ldquoSede pois irmatildeos pacientes ateacute a vinda do Senhor Eis que o lavrador aguarda com paciecircncia o precioso fruto da terra ateacute receber as primeiras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

141

e as uacuteltimas chuvas Sede voacutes tambeacutem pacientes e fortalecei o vosso coraccedilatildeo pois a vinda do Senhor estaacute proacuteximardquo (Tg 578)

As chuvas do fim do outono e do comeccedilo da primavera que datildeo condiccedilotildees agrave terra de produzir natildeo podem ser antecipadas por causa do desejo ou da ira do homem Elas vecircm no tempo certo Resta ao lavrador esperar que a chuva venha e de nada adiantaraacute ele se agitar se irar ou fazer qualquer outra coisa pois seraacute apenas perda de tempo de energia e mais acuacutemulo de sofrimento Como o agricultor tem certeza de que a chuva viraacute ele deve descansar pois deve ter uma esperanccedila confiante Do mesmo modo o cristatildeo sabe que Jesus voltaraacute e ainda que ele natildeo saiba quando deve esperar confiantemente pois Jesus viraacute

Julgamentos precipitados

Tiago orienta os crentes a se absterem de julgamentos precipitados ldquoIrmatildeos natildeo vos queixeis uns dos outros para natildeo serdes julgados Eis que o juiz estaacute agraves portasrdquo (Tg 59) Natildeo eacute totalmente certo se ele fala em relaccedilatildeo aos proacuteprios crentes ou se o assunto ainda satildeo os iacutempios que os oprimem mas eacute bastante plausiacutevel que estes uacuteltimos estejam em foco Do mesmo modo que os crentes do Antigo Testamento foram pacientes em meio ao sofrimento os cristatildeos deveriam ser agora ldquoIrmatildeos tomai por modelo no sofrimento e na paciecircncia os profetas os quais falaram em nome do Senhor Eis que temos por felizes os que perseveram firmes Tendes ouvido da paciecircncia de Joacute e vistes que fim o Senhor lhe deu porque o Senhor eacute cheio de terna misericoacuterdia e compassivordquo (Tg 51011)

A paciecircncia dos santos do passado especialmente o mais conhecido de todos neste sentido Joacute eacute evocada como exemplo de que o Senhor faz justiccedila aos seus Tiago natildeo entende que os cristatildeos devem demonstrar uma paciecircncia moacuterbida mas insiste que eles tecircm em suas matildeos uma arma poderosa a oraccedilatildeo Ele diz ldquoEstaacute algueacutem entre voacutes sofrendo Faccedila oraccedilatildeordquo (Tg 513) A oraccedilatildeo eacute o instrumento dos crentes em meio a tribulaccedilatildeo A oraccedilatildeo pode trazer cura (Tg 515) e perdatildeo (Tg 516) Para comprovar que a oraccedilatildeo tem muito poder Tiago cita Elias reconhecido como um dos profetas mais poderosos ldquoElias era homem semelhante a noacutes sujeito aos mesmos sentimentos e orou com muita insistecircncia para que natildeo chovesse sobre a terra e por trecircs anos e seis meses natildeo choveu E orou de novo e o ceacuteu deu chuva e a terra fez germinar seus frutosrdquo (Tg 51718)

Tiago enfatiza que Elias era um homem sujeito aos mesmos sofrimentos e limitaccedilotildees que os seus leitores mas pela oraccedilatildeo realizou

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

142

feitos formidaacuteveis Os crentes devem ter paciecircncia orar pois Deus pode mudar as situaccedilotildees dramaacuteticas por intermeacutedio da oraccedilatildeo As uacuteltimas palavras de Tiago satildeo um lembrete aos crentes de que devem se preocupar com os desviados dos caminhos de Deus (Tg 51920)

Haacute outros temas mais mas a relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus (que seraacute apresentada a seguir) poderaacute completar aleacutem de recordar alguns pontos jaacute tratados

A relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus

Tiago pode natildeo ter o brilho intelectual de Paulo mas seu conteuacutedo em nada difere do que o Salvador ensinou E dos apoacutestolos ele foi o que mais tempo viveu com Jesus Pelo menos a infacircncia e a adolescecircncia dos dois foram juntas O ensinamento de Jesus pode ser visto em toda a epiacutestola de Tiago

1 O cristatildeo que sofre provaccedilotildees eacute abenccediloado Tiago 12 e Mateus 510-12

2 Deus deseja que sejamos perfeitos Tiago 14 e Mateus 548

3 Ele daacute generosamente aos que lhe pedem Tiago 15 e 42 Mateus 77-8

4 Mas somente o Pai tem poder para dar boas daacutedivas Tiago 117 e Mateus 79 -11

5 E neste caso ele daacute somente aos quem tecircm feacute Tiago 16 e Marcos 11 22-24

6 Devemos natildeo apenas ouvir a palavra Mas praticaacute-la Tiago 122-25 e Mateus 7 21-27

7 Devemos tomar cuidado com as riquezas porque os pobres eacute que herdam o reino de Deus Tiago 25 e Mateus 53 Lucas 620

8 Devemos amar o proacuteximo como a noacutes mesmos Tiago 28 e Marcos 1231

9 Devemos guardar os mandamentos Tiago 210 e Mateus 519

10 Devemos mostrar misericoacuterdia para recebermos misericoacuterdia Tiago 213 e Mateus 57 1833-35

11 Eacute a aacutervore que determina o fruto Tiago 312 e Mateus 715-20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

143

12 Os pacificadores seratildeo abenccediloados Tiago 318 e Mateus 59

13 Natildeo eacute possiacutevel servir a dois senhores Cada um deve escolher entre Deus e o dinheiro Tiago 44 413-15 e Mateus 624

14 Quem se humilha seraacute exaltado Tiago 46 e 10 e Lucas 1814 Comparar isto com Tiago 19-10 e Lucas 152

15 Natildeo devemos falar mal uns dou outros ou julgar uns aos outros Tiago 412 e Mateus 71

16 Natildeo devemos elaborar planos gananciosos e mundanos para obter ganhos esquecendo-nos de Deus ou do proacuteximo Tiago 413-17 e Lucas 1216-21

17 As riquezas natildeo duram Elas se corroem as roupas satildeo consu-midas pelas traccedilas e o ouro fica embaccedilado com a ferrugem Tiago 51-3 e Mateus 619-21

18 Por isso ai dos ricos Tiago 51 e Lucas 624

19 Quem crecirc que espere pacientemente e esteja pronto para a vinda do Senhor pois ele estaacute perto agraves portas Tiago 57-9 e Lucas 1235-40 Marcos 1329

20 Os cristatildeos natildeo devem jurar nem pelo ceacuteu nem pela terra nem por qualquer outro meio de juramento Sua palavra deve ser confiaacutevel Seu sim deve ser sim e seu natildeo deve ser natildeo Suas palavras natildeo podem ter duplo sentido Tiago 512 e Mateus 533

Tiago reafirma Jesus como um homem com um ensino praacutetico e praticaacutevel O cristianismo eacute vida e natildeo sensaccedilotildees Vida correta com Deus que se evidencia em vida correta com os homens

Consideraccedilotildees finais

Percebe-se que a mensagem de Tiago eacute clara e simples Ele fala sobre a feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica pelas obras Esta feacute leva os crentes a suportarem todo tipo de sofrimento a demonstrarem a conversatildeo pelas boas obras e a esperarem em oraccedilatildeo pelo retorno de Jesus ou pela manifestaccedilatildeo libertadora de Deus

Mesmo simples a carta de Tiago eacute rica e teologicamente impor-tante de modo que natildeo concordamos com a ideia de Richardson (e de Lutero) de que eacute uma ldquoepiacutestola de palhardquo (RICHARDSON 1966 p 240

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

144

BACLAY 1974 p 16) em comparaccedilatildeo com a profunda solidez da Epiacutestola aos Romanos Ela ocupa um lugar importante no cacircnon e na Teologia do Novo Testamento responsaacutevel pela ampliaccedilatildeo do entendi-mento de um conceito essencial para a feacute do Novo Testamento o relacionamento entre feacute e obras

Termino deixando uma pergunta Se Tiago ocupasse o puacutelpito contemporacircneo que diria ele aos membros e liacutederes de nossas igrejas

Referecircncias Bibliograacuteficas

BACLAY W S I y II Pedro Buenos Aires Editorial La Aurora 1974

BAXTER S J Examinai as escrituras ndash atos a apocalipse Satildeo Paulo Ediccedilotildees vida Nova 1989

CALVIN J Commentary on the espistole of the James Albany Books for the Ages 1998

CARBALLOSA E L Tiago Una fe em accioacuten 6 ed Grand Rapids Editorial Portavoz 1994

CHAMPLIN R N Enciclopeacutedia de Biacuteblia teologia e filosofia v 6 Satildeo Paulo Editora e Distribuidora Candeia 1991

CONNER W T La fe del nuevo testamento Nashvill Casa Bautista de Publicaccedilotildees 1951

GEORGE T In ldquoA rigth strawy epistle reformation perspective on Jamesrdquo Louisville Review and Expositor ndash a baptist theological journal v LXXXIII n 3 1986

KUumlMMEL W G Introduction to the new testament Nashvill Abingdon Press 1975

LADD G E Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Exodus 1997

LUTERO Martinho Da liberdade do cristatildeo ndash prefaacutecio agrave Biacuteblia (Ediccedilatildeo Biliacutengue) Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo da Editora Unesp 1997

MARTIN R P Word biblical commentary v 48 James Dallas Texas Word Books Publisher 1998

MEARS H C Estudo panoracircmico da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida 1993

MORRIS Leon Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2003

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

145

NICHOL F D (ed) Comentario biblico adventista del septimo dia Tomo 7 Buenos Aires Asociacion Casa Editora Sudamericana 1995

PEARLMAN M Atraveacutes da Biacuteblia livro por livro Satildeo Paulo Vida 1997

PFEIFER F C HARRISON E F Comentaacuterio biacuteblico Moody v IV Satildeo Paulo Imprensa Batista Regular 1983

RICHARDSON Alan Introduccedilatildeo agrave teologia do novo testamento Satildeo Paulo ASTE 1966

SHEDD R P (ed) O novo comentaacuterio da Biacuteblia v III Satildeo Paulo Ediccedilotildees Vida Nova 1979

SHEDD R P BIZERRA E F Uma exposiccedilatildeo de Tiago a sabedoria de Deus Satildeo Paulo Shedd Publicaccedilotildees 2010

STOTT J Homens com uma mensagem Campinas Editora Cristatilde Unida 1996

WHITE E G Signs of the times 5 de setembro de 1892

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier Doutor em Teologia e professor nos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graducaccedilatildeo

do Seminaacuterio Adventista Latino Americano de Teologia ndash Cachoeira BA

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

146

A VOCACcedilAtildeO NAtildeO Eacute UMA ESCOLHA MAS UMA RESPOSTA

Ir Graccedila Disingakala Nunes

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo Tentativa de responder a trecircs questotildees fundamentais sobre a vocaccedilatildeo entendida como chamado de Deus valendo-se de muitos autores mas principalmente da contribuiccedilatildeo de Gianfranco Poli Natildeo vai certamente exaurir o assunto mas eacute uma chamada de atenccedilatildeo agraves escolas teoloacutegicas para que trabalhem este argumento de um modo mais aprofundado O tema pesquisado eacute a vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta Discorre-se entatildeo acerca de sua origem e significado o porquecirc de uma teologia da vocaccedilatildeo as caracteriacutesticas do chamado a relaccedilatildeo de intimidade com a pessoa de Jesus Cristo a resposta incondicional do homem Evidenciam-se tambeacutem os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde o discernimento as exigecircncias que o chamado comporta e de modo muito breve as dimensotildees que compotildeem fundamentalmente a resposta do homem e as consideraccedilotildees finais Toda essa dinacircmica eacute realizada mediante uma relaccedilatildeo dialogal entre as duas liberdades a de Deus que chama e a do homem que responde

Palavras-chave Deus-Trindade Vocaccedilatildeo ou Chamado Homem Encontro Igreja

Riassunto Questo articolo egrave un tentativo di rispondere a ter domande fondamentali sulla vocazione intesa come chiamata di Dio servendosi di tanti autori ma sopratutto dela contribuizione di Gianfranco Poli Non va sicuramente esaurire lrsquoassunto ma visa a scuotere lrsquoattenzione dele scuole teologiche percheacute lavorino la questione vocazione in modo piugrave profondo Il tema svolto egrave la vocazione non `e una scelta ma una risposta Si sviluppa quindi sua origine e significato il perchegrave di una teologia dela vocazione le caratteristiche della chiamata la relazione di intimitagrave com la persona di Cristo Gesugrave la risposta incondizionata dellrsquouomo Sono noti anche gli elementi centrali dela vocazione cristiana il discernimento le esigenze che la chiamata di Dio comporta e si fa cenno alle dimensioni che essenzialmente compongono la risposta dellrsquouomo e per ultimo le considerazioni finali Tutta la dinamica egrave svolta attraverso una relazione dialogica tra le due libertagrave di Dio che chiama e dellrsquouomo che risponde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

147

Parole chiavi Dio-Trinitagrave Vocazione o Chiamata Uomo Incontro Chiesa

1 Introduccedilatildeo

Haacute no Brasil e no mundo muitos escritos sobre vocaccedilatildeo mas falta uma teologia da vocaccedilatildeo ldquoFalta ainda um estudo sistemaacuteticordquo deste argumento Haacute pouco interesse nas escolas teoloacutegicas e entre os teoacutelogos no sentido de aprofundar este assunto1 A ausecircncia de fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica das vocaccedilotildees eacute negativa enquanto a praacutexis permanece sem fundamentaccedilatildeo conforme constatou Joseacute Lisboa Moreira de Oliveira na sua Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo2 Eacute tatildeo verdade o fato de o tema vocaccedilatildeo carecer de estudo sistemaacutetico que outros autores fazem esta constataccedilatildeo Exemplo Gianfranco Poli na sua exposiccedilatildeo sobre o assunto Tra vocazione e domanda di senso natildeo hesita em afirmar que a palavra vocaccedilatildeo eacute muitas vezes usada e repetidamente mas raramente se precisa o seu conteuacutedo

Advertimos para a necessidade natildeo soacute no Brasil mas tambeacutem no mundo de explicitar o que entendemos acerca de vocaccedilatildeo Para isso Gianfranco Poli trata a vocaccedilatildeo em trecircs momentos esclarecer o sujeito que chama colocar em realce os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde oferecer algumas indicaccedilotildees a respeito do homem que responde ou simplesmente eacute possiacutevel indicar estes trecircs momentos formulando trecircs perguntas quem chama A que coisa chama Em que modo se responde3

Eacute a essas perguntas que tentaremos responder com suporte na abordagem de Gianfranco Poli oferecendo ao assunto vocaccedilatildeo mais um subsiacutedio sem a pretensatildeo de exauri-lo

O tema eacute estruturado com uma introduccedilatildeo cinco partes e suas subdivisotildees Iordf parte Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo Por que teologia da vocaccedilatildeo Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo IIordf parte Dimensatildeo Trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde A vocaccedilatildeo do homem Quem chama Por que chama Para que chama Como chama IIIordf parte Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde Como saber que eacute Deus quem me chama A vocaccedilatildeo natildeo eacute 1 Cf DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992 nordm 244 2 OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996) p 22-31 3 Cf POLI Gianfranco ldquoLa cultura della vocazione tra vocazione e domanda di sensordquo in BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teologica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010 p 20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

148

uma escolha mas uma resposta Como responder Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees Consideraccedilotildees finais

2 Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo

Vocaccedilatildeo eacute um termo derivado do verbo latino vocare que significa chamar Vocaccedilatildeo eacute assim chamado convite apelo Eacute ato de chamar da parte de Deus eacute um estado de relaccedilatildeo entre Deus e o homem eacute diaacutelogo porque haacute atenccedilatildeo para com o outro Vocaccedilatildeo eacute encontro de duas liberdades a liberdade absoluta de Deus que chama e a liberdade do homem que responde Vocaccedilatildeo eacute um dom que exige resposta de feacute

Sendo um ato que brota do mais profundo do ser a vocaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com a inclinaccedilatildeo para exercer determinada profissatildeo ou um talento (aptidatildeo natural) para executar algo alguma atividade A vocaccedilatildeo eacute um chamado para amar eacute chamado ao serviccedilo (1Jo 47-21 Mc 1045) eacute a realizaccedilatildeo de um sonho

Na Biacuteblia vocaccedilatildeo estaacute em estreita relaccedilatildeo com eleiccedilatildeo e missatildeo4 Eleiccedilatildeo significa escolher um ou alguns entre tantos eacute uma predileccedilatildeo De tal maneira vocaccedilatildeo eacute um dom com o qual Deus preferiu a mim a vocecirc e natildeo a outro natildeo por merecimentos nossos mas por puro amor e em vista de uma missatildeo especiacutefica que a pessoa chamada vai desccedilo-brindo ao longo da sua vida visto que vocaccedilatildeo eacute um estado de relaccedilatildeo com Deus

21 Por que uma teologia da vocaccedilatildeo

A vocaccedilatildeo eacute um ato teoloacutegico e antropoloacutegico porque envolve Deus e o homem Eacute dom que vem do Alto iniciativa do Pai ldquoque atrai a Si uma criatura sua por um amor de predileccedilatildeo e em ordem a uma missatildeo especialrdquo5 Eacute Deus que no iacutentimo inspira agrave alma o desejo de abraccedilar o projeto de Deus seja no matrimocircnio como na vida consagrada O fato de Deus escolher algueacutem com amor de predileccedilatildeo no entanto natildeo obriga a pessoa escolhida porque sua eleiccedilatildeo se torna convite diante do qual ela eacute livre para responder sim ou natildeo Ao mesmo tempo poreacutem Deus tem um jeito todo particular de se aproximar do homem que quase

4 VOCACcedilAtildeO in CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997 5 Cf JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996 n 17

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

149

ningueacutem resiste em responder sim Acontece exatamente o que acentua Jeremias ldquoseduzistes-me Senhor e eu me deixei seduzirrdquo (cf Jr 207)

22 Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo

Pela sua natureza dialoacutegica a vocaccedilatildeo eacute relacional comunitaacuteria missionaacuteria e dinacircmica A origem de toda a vocaccedilatildeo estaacute na relaccedilatildeo com a Santiacutessima Trindade ()6 Soacute quem ficou seduzido (Jr 207) e permanece na intimidade (Os 216 1Ts 417 Jo 1724 1Pd 51) pode entender a beleza e a riqueza desta peacuterola preciosa

O diaacutelogo pessoal com Deus tambeacutem eacute comunitaacuterio nos dois sentidos de um lado acontece numa comunidade bem concreta (Mt 2531-46) de outro Deus chama mediante o ldquoclamorrdquo do povo que sofre (cf Ex 31-10 Jr 114-10) A vocaccedilatildeo eacute comunhatildeo com a Trindade que se traduz concretamente na experiecircncia de verdadeira irmandade Ela eacute comunicaccedilatildeo isto eacute vida de comunhatildeo e de participaccedilatildeo Responder ao chamado eacute inserir-se na vida da comunidade com uma missatildeo bem precisa tomar parte ativa na construccedilatildeo do Reino Vocaccedilatildeo natildeo eacute isolamento busca de satisfaccedilotildees de ldquorealizaccedilatildeo pessoalrdquo Natildeo eacute realizar ldquoprojetos pessoaisrdquo mas dar a vida pela defesa da vida (Jo 1011 1513)

3 Dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde

Desde o Concilio Vaticano II a vocaccedilatildeo eacute vista como chamado agrave comunhatildeo com o Pai pelo Filho no Espiacuterito Santo7 O segundo Congresso Internacional das vocaccedilotildees (Roma 1981) no seu documento conclusivo explicita de forma definitiva e muito clara esta dimensatildeo trinitaacuteria ldquoCada vocaccedilatildeo estaacute ligada ao desiacutegnio do Pai agrave missatildeo do Filho agrave obra do Espiacuterito Santo Cada vocaccedilatildeo eacute iluminada e fortalecida agrave luz do misteacuterio de Deusrdquo8

O Papa Bento XVI ressalta esta dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo quando afirma logo no iniacutecio de sua primeira mensagem vocacional que ldquoo Pai do ceacuteu nos escolheu pessoalmente para nos chamar a entrar em

6 CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla Satildeo Paulo Paulinas 2004 13 Ed nordm 212 7 Cf VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM Satildeo Paulo Paulinas 1999 13ordf Ed nordm 4 8 II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Vocacional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982 nordm 7

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

150

relaccedilatildeo filial com Ele por meio de Jesus Verbo feito carne sob a guia do Espiacuterito Santo9rdquo 31 A vocaccedilatildeo do homem

O homem existe porque Deus lhe dirigiu a palavra o chamou agrave existecircncia convocando-o para ser Seu interlocutor A vocaccedilatildeo eacute a palavra que Deus dirige ao homem e que o faz existir imprimindo nele a marca dialogal Se o homem foi criado pela conversaccedilatildeo com Deus e eacute assim aquele que eacute chamado a falar a expressar-se a comunicar-se a responder o tempo que tem a disposiccedilatildeo pode ser entendido como o tempo para realizar sua vocaccedilatildeo

Ora em que consiste a vocaccedilatildeo do homem senatildeo na sua plena realizaccedilatildeo no amor ao interno do princiacutepio dialoacutegico no qual foi criado com Deus como primeiro interlocutor ldquoVocaccedilatildeo entatildeo eacute um processo de maturaccedilatildeo de relaccedilotildees que culmina no amor a Cristo que eacute a plena realizaccedilatildeo do amor na sua pessoa10rdquo Em satildeo Paulo encontramos a confirmaccedilatildeo desta verdade ldquoqualquer coisa o homem faccedila fora do seu amor natildeo serve a nada aliaacutes eacute vatilde e esperdiacutecio de tempordquo (1Cor 13)

32 Quem chama

O sujeito e autor de todo o chamado eacute Deus Eacute preciso poreacutem entender por que Deus chama qual intenccedilatildeo O move de qual vontade eacute animado Um texto de Paulo aos Efeacutesios nos abre horizontes infinitos

Bendito seja Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que do alto do ceacuteu nos abenccediloou com toda a becircnccedilatildeo espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criaccedilatildeo do mundo para sermos santos e irrepreensiacuteveis diante de seus olhos No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo segundo o beneplaacutecito de sua livre vontade (Ef 13-5)

Nossa existecircncia tem raiz no coraccedilatildeo de Deus que nos desejou ldquofaccedilamos o homem agrave nossa imagem como nossa semelhanccedilardquo (Gn 1 26a) que desde a eternidade nos quis como ldquofilhos adotivosrdquo agrave imagem do seu Filho Jesus Existir eacute a primeira e fundamental vocaccedilatildeo do ser humano (cf Gn 27) As outras vocaccedilotildees dela decorrem e nela se sustentam Eacute o amor agrave

9 BENTO XVI A primeira mensagem vocacional in httpwwwportalcatolicoorgbr portala-primeira-mensagem-vocacional-de-bento-xvi Acesso em 040452015 10Cf RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000 p 21-22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

151

vida que possibilita se empenhar em tantas outras dimensotildees da existecircncia humana

33 Por que chama Os motivos do chamado

Vocaccedilatildeo eacute accedilatildeo de chamar por parte de Deus como sua iniciativa de amor corresponsaacutevel (Is 591 Jr 15 Rm 912 Gl 115 58) Deus chama porque ama (cf Dt 76-8 236 Jo 1516 Mc 312) Segundo a Biacuteblia missatildeo eacute o elemento central da vocaccedilatildeo11 Quando Deus chama algueacutem o faz para uma missatildeo a fim de fazer alguma coisa em funccedilatildeo de uma pessoa ou de uma comunidade A missatildeo eacute sempre um encargo

ldquoDeus criou-nos para compartilhar a sua proacutepria vida chama-nos para sermos seus filhos membros vivos do Corpo miacutestico de Cristo templos luminosos do Espiacuterito do Amor Chama-nos para ser ldquoseusrdquo quer que todos sejam santos12rdquo

Ante o chamado que Deus faz a cada um de noacutes eacute preciso ter coragem para deixar tudo se abandonar por inteiro ir aonde Ele mandar e fazer aquilo que Ele pedir Coragem eacute um dos passos mais importantes para um caminho vocacional bem-sucedido Eacute preciso ter coragem para entregar-se nas matildeos do bom oleiro e deixar-se moldar para enfrentar todas as tempestades do caminho todas as vicissitudes Coragem pra deixar tudo e dizer Sim a Deus

Natildeo temas ldquoCoragem Levanta-te ele te chamardquo (Mc 10 49) Ama-te e conta contigo para estabelecimento de um Reino de amor que jamais teraacute fim Amor eacute a origem e o fim de toda vocaccedilatildeo e o Deus que nos criou sem noacutes natildeo nos salva sem noacutes constata Santo Agostinho Somos chamados a colaborar no plano da salvaccedilatildeo Ele precisa do teu sim generoso e gratuito

34 Para que chama

A autoria de Deus sobre o chamado eacute contiacutenua Todos os dias Deus chama o homem para uma vida de relaccedilatildeo filial para elevaacute-lo agrave comunhatildeo com a Trindade

11wwwparoquiasaobeneditongorgbrblogp=1087 Acesso em 29102015 12JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iiptmessagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes _29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em em 29102015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

152

O uacutenico e mesmo Espiacuterito distribui seus dons a cada um conforme quer para que todo dom sem exceccedilatildeo seja para utilidade de todos para o bem da comunidade (cf 1Cor 127 11)Todo chamado eacute voltado para servir para dar sentido agrave proacutepria existecircncia doando-se

Ao se falar da vocaccedilatildeo a palavra sentido pode significar possibi-lidade e capacidade de siacutentese na proacutepria accedilatildeo cotidiana como tambeacutem abertura a um futuro em que o sentido da proacutepria vida seja menos contraditoacuterio ou contudo mais feliz e harmonioso Entatildeo a finalidade do chamado eacute de um movimento rotatoacuterio que tem como eixo Deus O ponto de partida e de chegada eacute Deus

Quanto mais o homem se relaciona com Deus mais se sente realizado e se torna capaz de doar-se sair de si e ir ao encontro do outro A realizaccedilatildeo de que se fala eacute no sentido de ser feliz do que se eacute e se faz Acreditamos ser esta a condiccedilatildeo de servir gratuitamente Assim sendo a vocaccedilatildeo visa em primeiro lugar agrave realizaccedilatildeo pessoal daquele que eacute chamado que busca um sentido da sua vida na descoberta do propoacutesito de Deus para si mediante o serviccedilo agrave comunidade de irmatildeos Na medida em que a pessoa se acha realizada em certa opccedilatildeo sente a exigecircncia de responder por via do serviccedilo E seraacute realmente um serviccedilo gratuito que natildeo espera outro em troca porque se sente bem servindo e o amor ao proacuteximo por sua vez eacute inseparaacutevel do amor a Deus A verdadeira felicidade estaacute em servirmos ao outro e a Deus 13

Sendo a vocaccedilatildeo antes de tudo um relacionamento com Jesus Cristo eacute inconcebiacutevel falar de uma vocaccedilatildeo cristatilde fora da Igreja pois eacute nela e por seu intermeacutedio que Cristo realiza e revela o proacuteprio misteacuterio como meta do desiacutegnio de Deus ldquoRecapitular tudo nelerdquo (Ef 110)

35 Como chama O modo

DeusndashPai nos chama pelo nome e sua voz chega ao homem em dois modos imediato e mediato Imediato Deus chama por meio de um desejo iacutentimo e profundo a inspiraccedilatildeo divina que impele para um estado de vida Costuma haver no mais iacutentimo da pessoa uma atraccedilatildeo essencial para formas de ser e de viver fundamentais por intermeacutedio do ambiente isto eacute das relaccedilotildees pessoais que vatildeo despertando o chamado por meio da histoacuteria pessoal (muito relevante) Mediato Deus fala pelas mediaccedilotildees Palavra escrita (e a falada) a vida de Cristo por meio da histoacuteria

13 httpformacaocancaonovacomdiversosa-vocacao-profissional Acesso em 05112015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

153

situaccedilotildees acontecimentos definidos sinais dos tempos e das pessoas (cf 1Sm 38-9)

Deus natildeo chama os homens do mesmo modo porque Ele chama por nome numa certa histoacuteria situaccedilatildeo cultura Nos relatos da Biacuteblia esta diferenccedila eacute notoacuteria algumas personagens satildeo demoradas em dizer sim e Deus tem paciecircncia e pelo diaacutelogo vai levando o chamado a uma resposta consciente como eacute o caso de Gedeatildeo (cf Jz 611-40) pois foi necessaacuterio trecircs vezes Deus prometer a sua presenccedila para se sentir seguro ao passo que natildeo foi assim com o disciacutepulo que pede para enterrar primeiro seu pai (Mt 821-22) a quem Jesus responde ldquoSegue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortosrdquo

Deus chama mediante Sua Palavra da natureza dos acontecimentos da histoacuteria significa que para escutaacute-Lo devemos estar atentos e cultivar uma atitude interior de silecircncio de escuta de meditaccedilatildeo de contemplaccedilatildeo No Novo Testamento a primeira accedilatildeo que Jesus desenvolveu no seu ministeacuterio de vida puacuteblica eacute uma ldquovocaccedilatildeordquo eacute a chamada de dois dos seus disciacutepulos Antes de tudo o chamado pede conversatildeo isto eacute seguir Jesus com o desejo de conformar-se agrave Sua pessoa

Nossa vocaccedilatildeo encontra jaacute a primeira revelaccedilatildeo no nome de cada um por isso Jesus chamaraacute Simatildeo de Pedro porque a sua missatildeo e a sua chamada seraacute aquela de ser rocha sobre a qual fundar a Igreja de Cristo Aleacutem disso os apoacutestolos satildeo chamados um a um e por nome para serem identificados na sua unicidade

4 Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde

Na Biacuteblia a vocaccedilatildeo eacute sempre de autoria do proacuteprio Deus que chama escolhe cada homem e mulher Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento o chamado pode se manifestar de modo mediato ou imediato

Segundo o esquema biacuteblico-literaacuterio satildeo elementos essenciais da vocaccedilatildeo iniciativa de Deus obediecircncia pela feacute temor e tremor investidura ou missatildeo Apesar de nem todas as caracteriacutesticas existirem em todas as vocaccedilotildees em todo tipo de vocaccedilatildeo haacute iniciativa de Deus o seguimento e a Missatildeo14

No Novo Testamento assim como no Velho Testamento a iniciativa de chamar algueacutem eacute sempre de Deus (Mt 99 101 Mc 1 1719-20 313 511 14 Cf Biacuteblia Sagrada Ediccedilatildeo da Famiacutelia Petroacutepolis Vozes 2005 p 1545

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

154

At 9 3-6) A iniciativa de Deus no entanto natildeo elimina nem substitui a resposta do homem jamais anula a participaccedilatildeo e a responsabilidade da pessoa chamada15 Natildeo eacute contudo por meio de uma manifestaccedilatildeo velada pela Palavra do Senhor nem da mediaccedilatildeo de outro homem que Deus age pois antes Ele atua na histoacuteria pessoalmente intermediado por Seu Filho que se fez carne (Jo 114)

Em ambos os Testamentos os escolhidos satildeo designados para uma missatildeo ldquoTal missatildeo eacute a participaccedilatildeo na compaixatildeo pastoral de Jesus ajudaacute-lo na sua missatildeo de serviccedilo agrave necessidade mais profunda das pessoasrdquo 16 Aquele que eacute chamado a seguir Jesus eacute convidado a ter aquilo que Satildeo Paulo pede aos filipenses isto eacute os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 25ss) que eacute a praacutetica da feacute esperanccedila e caridade ldquoNa vivecircncia dessas trecircs virtudes teologais se encontra a fundamental explicitaccedilatildeo da opccedilatildeo fundamental de seguir Cristo17rdquo

O esquema literaacuterio das narrativas vocacionais se repete em muitos casos no Antigo e no Novo Testamento chamado rejeiccedilatildeo ao chamado explicitaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo da missatildeo A novidade estaacute no Segundo Testamento que entende a vocaccedilatildeo agrave santidade e consagraccedilatildeo a Deus em relaccedilatildeo ao Espiacuterito Santo e Jesus

O singular do chamado no Novo Testamento eacute que todos satildeo realizados sob o signo da Nova Alianccedila isto eacute sob o signo da figura de Jesus Eles satildeo enviados e convidados a levar ao povo a presenccedila do proacuteprio Senhor18

A realizaccedilatildeo da vocaccedilatildeo de Jesus para o serviccedilo do Reino eacute expressa de modo claro em Lc 4 14-22 remir os presos recuperar a vista 15 MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro tostado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001 p 26 e 29 16 Cf PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991 p 400 17 Cf GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998 p 20 18 Alguns exemplos do chamado nos quais o aspecto missionaacuterio eacute evidente Abraatildeo e Sara chamados para formar um povo (Gn 121-9 Sb 105 At 7 2-3 e Hb 11 8) Moiseacutes a vocaccedilatildeo de um libertador (Ex 3 1-15 4 1-17 6 2-13 6 28-30 71-7 5) Isaiacuteas vocaccedilatildeo para denunciar e anunciar (Is 6 1-10) Maria vocaccedilatildeo para ser a matildee de Deus Apoacutestolos vocaccedilatildeo de propagar os ensinamentos de Jesus (Jo 135-394051 Lc 54-10 Lc 612-16 Mc 117-20 Mc 2 13-17 Mt 412-22 At 115-26) Paulo vocaccedilatildeo de continuar a missatildeo de Jesus ressuscitado (At 91-19 221-21 262-18) Jesus siacutentese da vocaccedilatildeo profeacutetica (Lc 4 14-22 Hb 51-10 Ap 1913 Jo 11-83036 314-19 331-34 4252634 442 530363843 62938-40 64450-5157 71628-2933 81618 11274252 1213273746-49 1424311521 16527 17468 171418212325 181137 19 2021-22)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

155

dos cegos restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graccedila do Senhor

41 Como saber que eacute Deus quem me chama

Vocaccedilatildeo eacute um chamado ao diaacutelogo com Deus em Jesus no Espiacuterito Santo Deus fala chama e pede ao homem de escutaacute-Lo (cf Mc 97) Escutar significa dar atenccedilatildeo ouvir e interiorizar o conteuacutedo da conversa interagir dar adesatildeo uma resposta Vocaccedilatildeo eacute um conhecer e deixar-se conhecer mediante o diaacutelogo com a Trindade Estes dois atos satildeo feitos simultacircnea e cotidianamente A vocaccedilatildeo nasce de um encontro pessoal com Cristo Deus-Amor nos chama em Cristo e o Espiacuterito Santo faz o homem participar desse amor do Pai Uma autecircntica experiecircncia de ser salvado pelo Senhor habilita a compreensatildeo de que eacute o Senhor que chama19

A descoberta da proacutepria vocaccedilatildeo eacute um processo que dura por toda a vida eacute um trabalho de elaboraccedilatildeo de si da proacutepria identidade um trabalho que exige atenccedilatildeo paciecircncia docilidade para acolher a palavra de Deus sensibilidade discernimento e tambeacutem a ajuda de um orientador ou diretor espiritual O chamado eacute entendido e decifrado com base numa ldquoexperiecircncia pessoal com Deusrdquo Nessa experiecircncia Ele revela o seu projeto para noacutes assim como fez com Moiseacutes (cf Ex3 4) e Pedro (Jo 2115-19)

42 A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta

O seguimento de Jesus Cristo comporta trecircs implicaccedilotildees encontro chamado e caminho O encontro suscita um desejo um deixar-se seduzir pelo amor O chamado sustenta esse desejo ou correspondecircncia e ainda este se desenvolve numa inquietaccedilatildeo constante sempre crescente ateacute responder E o caminho eacute o carisma ou a maneira de realizar esse projeto Estes trecircs passos se realizam numa simbiose vocacional surpreendente

Um olhar superficial dos relatos biacuteblicos sobre a vocaccedilatildeo pode levar-nos a concluir que vocaccedilatildeo eacute uma escolha pessoal iniciativa daquele que busca realizar suas inclinaccedilotildees mais profundas Uma anaacutelise mais percuciente no entanto nos desarma ao revelar que apesar de toda a nossa boa vontade e empenho pessoal num determinado chamado a nossa accedilatildeo natildeo passa de uma resposta agrave iniciativa de Deus que quis da nossa existecircncia e felicidade desde sempre (cf Jr 15)

19 Cf RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001 p 116 e 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

156

Nos Evangelhos Jesus chama a Si aqueles aos quais depois faraacute seus disciacutepulos ldquoNatildeo fostes voacutes que me escolhestes mas eu escolhi a voacutes e vos constitui para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneccedilardquo (Jo 1516)

Na origem de cada autecircntica chamada portanto estaacute o Senhor que escolhe e convida ao seu seguimento A Igreja manifesta na diversidade e na multiplicidade das vocaccedilotildees a riqueza do Espiacuterito que distribui livremente os seus dons segundo o projeto divino () A vocaccedilatildeo natildeo se constroacutei se recebe de Deus e sua realizaccedilatildeo depende da resposta que cada um sabe dar Viver de fato eacute responder20

A vocaccedilatildeo poreacutem natildeo eacute predestinaccedilatildeo (Ef 14 Jr 15) mas apelo do Pai dirigido agrave pessoa humana livre (Mt 1921 Gn 128-31)O projeto de Deus para a pessoa natildeo eacute algo estaacutetico predeterminado preestabelecido mas um apelo que se faz por via de mediaccedilotildees bem concretas (Jo 135-50) Deste modo a pessoa pode dizer ldquosimrdquo como Maria (Lc 138) fazendo acontecer a histoacuteria da salvaccedilatildeo ou dizer ldquonatildeordquo como o jovem rico (Mt 1922) frustrando o projeto de amor do Pai Da nossa resposta ao chamado de Deus depende a nossa felicidade O homem que diz sim se reencontra encontrando Deus e o que diz natildeo se perde

43 Como responder

A vocaccedilatildeo eacute um convite que se transforma em apelo o qual exprime uma proposta propositura que se torna eleiccedilatildeo escolha que solicita uma resposta21 O significado de cada um desses termos eacute muito profundo Convite eacute o ato de fazer uma proposta que se supotildee agradaacutevel Apelo eacute chamar algueacutem por nome Proposta eacute quanto vem apresentado agrave atenccedilatildeo e agrave aceitaccedilatildeo do outro um projeto Eleiccedilatildeo eacute o processo pelo qual um grupo designa um de seus integrantes para ocupar um determinado cargo com apelo a uma votaccedilatildeo Resposta eacute o ato de satisfazer uma chamada Deus espera uma resposta da nossa parte uma adesatildeo ao cumprimento da sua vontade sobre noacutes Deveriacuteamos ser agradecidos e sentir-nos honrados quando Deus se digna a nos chamar a colaborar da Sua missatildeo salviacutefica

20 httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa-non-ehtml Acesso em 29052015 21Cf PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus p 1385

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

157

44 Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A vida do cristatildeo eacute ldquosequela Christirdquo seguimento de Cristo em busca do caminho traccedilado por Ele para ser na Igreja e no mundo sinal inconfundiacutevel de amor e modelo de vida generosa e exemplar

A dimensatildeo do dom eacute a totalidade que prende a vida plenamente radicando-a no uacutenico absoluto que eacute Deus Instaura-se uma relaccedilatildeo que interessa o profundo do ser e que natildeo se confunde no anonimato Jesus busca a mim proacuteprio a mim Como um dia chamou por nome Abraatildeo Samuel Pedro Saulo assim ainda hoje o Pastor divino tem para cada ovelhinha nome uacutenico ldquoirrepetiacutevelrdquo22 distinto de qualquer outro nome ou som e que somente aquele que eacute chamado eacute capaz de perceber O ldquodeixa os mortos sepultar os seus mortosrdquo (Mt 822) o ldquoSegue-merdquo (Jo 2122) e o ldquonatildeo eacute digno do reino de Deusrdquo (Lc 959-62) mostram que as exigecircncias do chamado satildeo totais e natildeo admitem condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A radicalidade da resposta eacute uma exigecircncia fundamental do seguimento Natildeo se consente algum tipo de reenvio ou prorrogaccedilatildeo nem mesmo se nos encontraacutessemos diante de um motivo de grande valor moral e social como a necessidade de ldquosepultar o pairdquo a pessoa de Jesus exige uma prioridade absoluta e incondicionada ainda mais que Ele convida a anunciar ldquoo reino de Deusrdquo ao qual tudo eacute subordinado (cf Mt 633)

Trecircs dimensotildees satildeo necessaacuterias para uma resposta total liberdade como possibilidade de escolha de ausecircncia de constriccedilatildeo exterior e interior que permite de fazer uma eleiccedilatildeo autocircnoma gratuidade como alegria de servir no amor e sem esperar nada em troca eacute ter os sentimentos de Cristo Jesus (cf Fl 25) e dom ldquo o dom entra em cena quando descubro a dimensatildeo do outro como sujeito quando a categoria da gratuidade se torna a mola do meu agir e tambeacutem a descoberta do meu ser da minha dignidade e a do outro como pessoa humana pelo que viver a experiecircncia do dom significa substancialmente fazer experiecircncia de liberdaderdquo23

22 Cf CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006 p 61 23 Cf POLI Gianfranco La cultura della vocazione p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

158

5 Consideraccedilotildees finais

O objetivo geral do trabalho eacute mostrar que o argumento lsquovocaccedilatildeorsquo carece de um estudo sistemaacutetico de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica Com este escrito constatamos a necessidade de um estudo sistemaacutetico que esclareccedila o que entendemos quando falamos de vocaccedilatildeo Isto porque efetivar uma vocaccedilatildeo segundo o projeto de Deus contribui para o bem natildeo somente pessoal ou da instituiccedilatildeo a que se pertence mas do corpo como todo a Igreja Entatildeo vale muito despertar as escolas teoloacutegicas a abraccedilarem esta causa como questatildeo urgente levando seus teoacutelogos a reflexotildees mais aprofundadas com embasamento biacuteblico

Durante a realizaccedilatildeo do trabalho assumimos os desafios de ler textos em liacutengua italiana e de individuar entre o abundante conteuacutedo pesquisado qual responderia melhor ao tema Natildeo foi faacutecil descartarmos tantos conceitos e tentarmos nos ater ao tema com poucas paacuteginas

No desenvolvimento do assunto vimos que a vocaccedilatildeo eacute um ato dinacircmico um procedimento gradual uma histoacuteria de amor um relaciona-mento profundo com Deus por meio do Filho no Espiacuterito Santo e que por isso requer entrar na intimidade com Deus estar a soacutes na escola do Mestre pois a vocaccedilatildeo como ato de chamar conta com o envolvimento de dois sujeitos Deus que chama e o homem que responde

A iniciativa eacute sempre de Deus que chama para uma missatildeo especiacutefica na comunidade eclesial de onde nasce e cresce a mesma Deus se manifesta por intermeacutedio dos acontecimentos do mundo e da histoacuteria pessoal Ele precisa da nossa resposta concreta generosa e sem condicionamentos para continuar Sua obra da salvaccedilatildeo hoje

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

159

Referecircncias Bibliograacuteficas

ALBERTO Cosegrave la vocazione Cosa non egrave httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa -non-ehtml Acesso 29052015

BENTO XVI A primeira mensagem vocacional httpwwwportalcatolicoorgbrportala-primeira-mensagem-vocacio nal-de-bento-xvi Acesso em 040452015

BIacuteBLIA SAGRADA EDICcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA Petroacutepolis Vozes 2005

CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997

CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 2004

CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006

DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992

GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998

II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Voca-cional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982

JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996

JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iipt messagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes_29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em 29102015

MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro testado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001

OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996)

PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus 1999

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

160

PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991

POLI Gianfranco La cultura della vocazione tra vocazione e domanda di senso In BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teoloacutegica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010

RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000

RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001

VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 1999

Ir Graccedila Disingakala Nunes Aluna do Curso de Especializaccedilatildeo para qualificaccedilatildeo de formadores

na Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Artigo escrito sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

161

A EacuteTICA POLIacuteTICA EM MAQUIAVEL

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

Resumo

Na obra maquiaveliana encontra-se uma nova concepccedilatildeo da poliacutetica que se distancia das concepccedilotildees claacutessica patriacutestica e escolaacutestica Suas fontes satildeo as praticas poliacuteticas contemporacircneas e os escritos do historiador Tito Liacutevio O objetivo do seu estudo eacute uma Itaacutelia unida Nesta nova abordagem ganha interesse e destaque a relaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica assunto tratado especialmente na obra O Priacutencipe

Palavras-chave Renascimento Itaacutelia Maquiavel Eacutetica Poliacutetica

Abstract In the Machiavellian work we find is a new conception of politics which moves away from the classical patristic and scholastic conceptions His sources are contemporary political practices and the writings of the historian Titus Livius The purpose of his study is a united Italy In this new vision great interest and highlight are given to the relationship between ethics and politics specially treated in the work De Principe

Keywords Renaissance Italy Machiavelli Ethics Politics

1 Introduccedilatildeo

Satildeo conhecidos o vigor e a profundidade do pensamento do filoacutesofo poliacutetico Maquiavel1 Entre as suas obras que satildeo muacuteltiplas e de variados

1 Niccoloacute di Bernardo del Machiaveli nasceu na cidade de Florenccedila no dia 3 de maio de 1469 Sua vida desenvolveu sob o signo da poliacutetica a que dedicou tanto no campo teoacuterico como no praacutetico todos os seus esforccedilos materiais e intelectuais A poliacutetica como ele confessa estava no seu sangue Desde cedo Maquiavel foi incentivado por seu pai a se dedicar aacute leitura dos autores da Antiguidade Claacutessica como Virgiacutelio e Tito Liacutevio Sua juventude foi marcada pelos acontecimentos turbulentos da sua cidade natal que fazia parte de uma Itaacutelia assolada e perturbada por disputas poliacuteticas natildeo somente de acircmbito local como tambeacutem de forccedilas estrangeiras como Franccedila e Espanha que se aproveitaram das lutas internas da Peniacutensula Apeninica e da cidade de Florenccedila para sobretudo aumen-tarem a sua influecircncia Conta-se que Maquiavel aos nove anos assistiu ao assasinato de Juliano de Meacutedici e ao ferimento de Lourenccedilo de Meacutedici O ano de 1498 que viu a execuccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

162

gecircneros a De Principe eacute de longe a mais conhecida e analisada2 As outras de cunho poliacutetico natildeo deixam se ter interesse e importacircncia mas natildeo desenvolvem com a mesma clareza e pujanccedila o nuacutecleo do seu pensamento poliacutetico de modo especial o seu carter moral e eacutetico

O estudo ora expresso intenta com suporte nessa obra e preferen-cialmente nela comentar e descrever a eacutetica poliacutetica maquiaveliana que significa uma reviravolta em comparaccedilatildeo com a ideia natildeo somente a claacutessica mas tambeacutem cristatilde que quase sem exceccedilatildeo ateacute agrave eacutepoca da Baixa Idade Meacutedia se baseia quase exclusivamente no pensamento bem ou mal interpretado de SantrsquoAgostinho

2 As fontes da formaccedilatildeo de Maquiavel como pensador poliacutetico

Ao ler e refletir o pensamento poliacutetico de Maquiavel saltam aos olhos natildeo somente o seu profundo conhecimento a respeito da histoacuteria da Itaacutelia especificamente quando da eacutepoca do Impeacuterio Romano como tambeacutem os vestiacutegios de uma profiacutecua e intensa atividade diplomaacutetica Neste aspecto destacou-se por intermeacutedio de missotildees diplomaacuteticas vitoriosas ndash umas mais outras menos importantes - em vaacuterios estados da Peniacutensula Italiana inclusive em centros de poder nacional de grande envergadura tais como a Franccedila e a Alemanha

21 A atividade diplomaacutetica de Maquiavel

Logo apoacutes o dantesco e triste espetaacuteculo do julgamento da conde-naccedilatildeo e da execuccedilatildeo na fogueira do profeacutetico Jerocircnimo Savanarola na Praccedila da Senhoria reinstala-se em Florenccedila a Repuacuteblica Livre para alguns

de Savanarola pode ser considerado como a entrada de Maquiavel na poliacutetica sendo ele chamado a exercer o cargo de secretaacuterio da Segunda Chancelaria da Repuacuteblica de Florenccedila Em seguida ele se tornou um dos principais auxiliares do gonfaloniero vitaliacutecio Piero Soderini sendo encarregado dos assuntos diplomaacuteticos Quando Soderini caiu Maquiavel perdeu o cargo destituiacutedo pelos novos donos do poder ateacute a sua anistia concedida pelo Papa Leatildeo X da famiacutelia dos Meacutedicis Maquiavel esforccedilou-se ao maacuteximo para cair nas graccedilas dos Meacutedicis Quando estes caiacuteram e a Repuacuteblica foi reinstalada em Florenccedila Maquiavel visto com desconfianccedila retirou-se da vida publica Morreu no dia 21 de junho de 1527 2 Pode-se dividir a obra de Maquiavel em trecircs grandes setores que facilitam e ajudam na sua vasta atividade literaacuteria 1- Correspondecircncia tanto particular como oficial 2- obras literaacuterias poesia (eg) a famosa obra inacabada o Asno de Ouro) prosa (Discurso Moral que exorta a penitecircncia) teatro e novelas (vg Mandraacutegora em que se expotildee a degradaccedilatildeo moral e religiosa e se afirma a corrupccedilatildeo como inerente aacute natureza humana) 3- obras poliacutetico-histoacutericas (eo Discurso sobre a primeira deacutecada de Tito Livio)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

163

uma dinastia camuflada Suprime-se a teocracia e retoma-se o regime aristocraacutetico Foi aiacute em 1498 que Maquiavel com quase 30 anos de idade foi sorteado para exercer o cargo de secretaacuterio da 2ordf Chancelaria do Estado Livre da Repuacuteblica de Florenccedila E logo depois passou a realizar tambeacutem tarefas para a comissatildeo dos Dez do Poder ou Dez da Guerra

Como chanceler Maquiavel realizou a primeira legaccedilatildeo junto agrave Duquesa de Imola e Forli onde renegociou o soldo pago pelo Governo Florentino ao ldquocondottiererdquo3 Otaviano Florenccedila contratara o filho da Duquesa por 15 mil ducados soma considerada exorbitante por Florenccedila Maquiavel teve ecircxito conseguiu reduzir o soldo como tambeacutem recebeu auxiacutelio militar da duquesa - na forma de tropas de soldados e artilharia ndash de grande valor na ocupaccedilatildeo de Pisa4 Desde entatildeo o Diplomata Florentino comeccedilou a ser considerado e tratado como um haacutebil conciliador Entusiasmado com o prestiacutegio e a experiecircncia adquiridos escreveu o primeiro texto poliacutetico Discorso fatto a Magistrato dei Dieci sopra le cose de Pisa

Nuvens negras e sombrias no entanto continuaram a se espalhar e ameaccedilaram empanar o brilho do cenaacuterio poliacutetico florentino Segundo relato5 Pisa rebelara-se mais uma vez cortando o acesso de Florenccedila ao mar pelo rio Arno O rei Luis XII de Franccedila concordara em apoiar Florenccedila na guerra contra Pisa As tropas mercenaacuterias que o Monarca enviara no entanto natildeo cumpriram bem o seu papel acarretando seacuterios problemas ao Estado de Florenccedila Aqui estava uma delicada situaccedilatildeo expor tal reclamaccedilatildeo ao Governo Francecircs e declinar a sua oferta sem ferir a honra do rei Os representantes Maquiavel e Francisco della Casa foram enviados agrave Franccedila para a cidade de Nevers Com muita maestria os dois diplomatas resolveram a difiacutecil tarefa O perigo passou e embora Florenccedila natildeo tenha recuperado Pisa continua com a sua independecircncia

Maquiavel foi ainda encarregado de vaacuterias outras missotildees diplo-maacuteticas junto agrave Franccedila Conveacutem lembrar que Luis XII rei de Franccedila tinha como aliado o Papa Alexandre VI cujo filho se chamava Ceacutesar Boacutergia conforme a opiniatildeo de alguns um ldquocondottiererdquo de muita bravura poliacutetico

3 ldquoCondottiererdquo era ndash na histoacuteria da Itaacutelia ndash chamada o senhor feudal que tinha sob o seu absoluto controle uma miliacutecia que ele podia colocar agrave disposiccedilatildeo de quem o quisesse ou pagasse mais Era entatildeo uma espeacutecie de capitatildeo de soldados mercenaacuterios Assume tambeacutem o sentido de aventureiro 4 Florenccedila e Pisa alternaram periacuteodos de amizade com tempos em que a inimizade explodia em conflitos seacuterios muitas vezes armados 5Cf LARIVAILLE PAUL A Itaacutelia no tempo de Maquiavel Op Cit pg 75-79

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

164

de excelente habilidade mas por outro lado extremamente cruel6 Com a dupla proteccedilatildeo de seu pai e das armas francesas Ceacutesar Boacutergia vinha desempenhando uma accedilatildeo militar avassaladora sobre as possessotildees italianas

No que concerne agrave situaccedilatildeo alarmante de Florenccedila ante o turbulento protegido de Luis XII eacute esclarecedora a descriccedilatildeo desses acontecimentos expressos por JF Duvernoy

Florenccedila tem medo ela se entrega ela cuja doutrina consiste em fugir da submissatildeo de um senhor de um gonfaloneiro vitaliacutecio Eacute verdade que ela o escolheu ldquodemocratardquo na pessoa de Piero Soderini Envia Maquiavel para junto de Ceacutesar Boacutergia para observaacute-lo medir suas forccedilas e seus apetites Ele de fato observa vecirc em Sinigalia como Ceacutesar reprimiu num soacute golpe todos os seus antigos aliados Ele traz de sua missatildeo algo de muito confuso uma vontade indomaacutevel de trabalhar para natildeo ser conquistado e uma admiraccedilatildeo pela poliacutetica de alto vocirco que ele viu em accedilatildeordquo7

Em 1503 o perigo iminente cessou com a morte do Papa Alexandre VI e com a derrota de Ceacutesar Boacutergia Gravemente enfermo e sem apoio nada mais restou ao valoroso Duque de Valentinois senatildeo capitular Conta-se que morreu na Espanha como ldquocondottiererdquo mediacuteocre

A Repuacuteblica de Florenccedila procurou entatildeo evitar cair sob a autori-dade do novo Pontiacutefice Juacutelio II della Rovere o qual pretendia colocar sob a jurisdiccedilatildeo da Santa Seacute todas as antigas cidades regiotildees e possessotildees que antes pertenciam ao Ducado de Valentinois Imediatamente a desas-sossegada Senhoria envia Maquiavel para prestar ao Papa serviccedilos de chancelaria Durante a segunda legaccedilatildeo a Juacutelio II Maquiavel pocircde avaliar de perto o poder temporal do Sumo Pontiacutefice aleacutem de fortemente tomar consciecircncia de como o sentimento religioso ainda se encontrava arraigado no espiacuterito dos homens Essas duas realidades levam-no ao convencimento que ele descreve no seu livro O Priacutencipe

[] os principados eclesiaacutesticos [] satildeo mantidos pela grande antiguidade que existe nas instituiccedilotildees da religiatildeo as quais satildeo tatildeo poderosas e de tal

6 Cf por exemplo Dicionario da Idade Meacutedia organizado por Henry R Lyon Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990 pg 56 [] Era totalmente inescrupuloso a fim de proteger suas fronteiras setentrionais assassinou o marido de sua irmatilde Lucreacutecia e casou-a com o futuro duque de Ferrara 7 DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores 1984 pg 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

165

natureza que seus priacutencipes permanecem no lugar de qualquer maneira que eles se comportam e que vivam8

De fato as tropas mercenaacuterias quando se batiam contra o Papa embora dispusessem de poderio beacutelico suficiente para vencecirc-lo rendiam-se facilmente preferindo assim reverenciar o Chefe da Igreja

A tempestade poliacutetica se avolumava sobre a Itaacutelia ameaccedilando o equiliacutebrio do poder Em Florenccedila a ameaccedila provinha de dois poderosos vizinhos de um lado o Papado do outro o Santo Impeacuterio Maquiavel tendo agora seus dotes conciliadores reconhecidos foi enviado agrave Alemanha e conseguiu perante o Imperador Maximiano I defender a neutralidade de Florenccedila no conflito contra Veneza

Em 1510 poreacutem a Igreja Veneza e a Espanha declaram guerra ao Governo Francecircs Havia muito tempo a Franccedila ocupava o lugar de tradi-cional aliada de Florenccedila Portanto Maquiavel em uma de suas uacuteltimas missotildees diplomaacuteticas conseguiu com muita habilidade e perspicaacutecia que mais uma vez Florenccedila ficasse neutra ou seja liberada de participar daquele conflito

Por natildeo ter apoiado todavia a Igreja na guerra contra a Franccedila o Governo Florentino se viu em maus lenccediloacuteis Em 1512 Florenccedila foi saqueada pelas tropas imperiais de Ferdinando II O Papa destituiu o liacuteder Soderini e a famiacutelia poderosa dos Meacutedicis retornou ao poder Era o fim das instituiccedilotildees democraacuteticas da Repuacuteblica Livre de Florenccedila

Aquele ano assinala igualmente o capiacutetulo final da carreira poliacutetica de Maquiavel Durante os 15 anos do exiacutelio no reinado dos Meacutedicis vive na sua propriedade interiorana trabalhando duro sem se queixar nem se lastimar porque tinha prazer de trabalhar em favor de sua querida e estimada Florenccedila Quando jaacute em desgraccedila escreveu no dia 10 de outubro de 1513 uma carta dirigida a seu amigo Francesco Vettori em que afirma ldquoforam quinze anos dedicados a cultivar a Arte do Estado em que natildeo dormi nem tive folgardquo9

Os autores em grande parte consideram Maquiavel como um excelente diplomata trabalhando sempre com muito empenho lealdade e dedicaccedilatildeo Suas cartas escritas na cidade francesa de Blois quando efetuava suas uacuteltimas atividades de diplomacia na Franccedila constituem documentos 8 MAQUIAVEL Niccolo O Priacutencipe cap XI 9 MAQUIAVELLI N Tutte Le Opere Firenze Sansoni 1992 Citado em RODRIGO Lidia Maria Maquiavel op cit p 23

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

166

que comprovam definitivamente a habilidade poliacutetica do Pensador Floren-tino que atinge alguns momentos insuperaacuteveis Acrescenta-se ainda que no bloqueio rigoroso de Pisa o papel de comissaacuterio desempenhado por Maquiavel foi determinante na retomada dessa cidade

A importacircncia da atividade diplomaacutetica na formaccedilatildeo do pensa-mento poliacutetico de Maquiavel eacute assim analisada por Bronowski e Mazlish

o seu posto natildeo lhe desse grande poder na definiccedilatildeo da poliacutetica deu-lhe uma visatildeo directa do processo poliacutetico das cidades-estado italianas E como esses processos poliacuteticos variavam desde a oligarquia em Veneza agrave monarquia em Naacutepoles e agrave democracia em Florenccedila forneciam uma verdadeira escola de poliacutetica para um observador atento10

Foi nessa atividade diplomaacutetica que Maquiavel chegou agrave conclusatildeo de que o mais importante na poliacutetica eacute

[] o Estado natildeo aquele imaginaacuterio e que nunca existiu mas aquele que eacute capaz de impor a ordem O ponto de partida e da chegada eacute a realidade corrente ndash por isto a ecircnfase na veritagrave effetuale ndash ou seja ver e examinar a realidade como ela eacute e natildeo como se gostaria que fosse11

Isto se aplica agrave imagem que Maquiavel formou dos priacutencipes nos seus contatos diretos com os detentores do poder durante tantos anos o descobriu que

[] o priacutencipe que os humanistas do Renascimento apresentavam como modelo aos governantes natildeo passava de uma construccedilatildeo do espiacuterito de uma formulaccedilatildeo abstrata e ideal desvinculada de qualquer possibilidade e em contraste chocante com a realidade crua e aacutespera da eacutepoca quinhentista O priacutencipe ideal do humanismo era o siacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilotildees religiosas cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudente ndash compendio enfim de todas as perfeiccedilotildees fiacutesicas intelectuais e morais 12

Assim surge um personagem viril audaz destemido cuja maacutexima mais importante era ater-se aacute verdade efetiva das coisas sem ficar pensando em repuacuteblicas e monarquias imaginaacuterias com seus princiacutepios inspirados por altos ideais longe da realidade concreta da poliacutetica praticada naqueles dias ndash e em tempos anteriores

10 BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 pg 47 11 Disponiacutevel em www palmirarjnet Acesso em 25-10-2010 12 ESCOREL Lauro O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades Cadernos da UnB Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 pg 18

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

167

2 2 O estudo da histoacuteria

Como Maquiavel se inspirou na histoacuteria encontrando nela valiosas pistas para a accedilatildeo poliacutetica manifesta-se sobretudo na sua obra Discursos sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio A obra caracteriza-se como um diaacutelogo com o historiador Tito Liacutevio que viveu de 58 aC ateacute 12 dC o turbu-lento periacuteodo que acusa o fim da era da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Romano13 Uma das propriedades desta grandiosa obra foi entre outras o enfoque da histoacuteria sob o ponto de vista da moral ao fazer com que Maquiavel apontasse a Repuacuteblica Romana como um verdadeiro modelo de sociedade cuja virtugrave deveria servir como exemplo para os seus contem-poracircneos

Os Discorsi satildeo uma elaboraccedilatildeo ideal uma obra de educaccedilatildeo poliacutetica uma sistematizaccedilatildeo mais refletida uma projeccedilatildeo na histoacuteria passada e futura das liccedilotildees ldquodas coisas do mundordquo Eacute uma procura das razotildees que explicam o nascimento a prosperidade e a decadecircncia das naccedilotildees com o intuito de descobrir ndash no exemplo eminente da Roma Claacutessica ndash qual o segredo da forccedila e da estabilidade dos Estados Os Discorsi satildeo compostos de trecircs livros

1o Livro trata dos modos pelos quais se fundam os Estados e da organizaccedilatildeo e modalidades de Governo

2o Livro examina os processos de engrandecimento dos Estados e de conquista de novos Estados

3o Livro tece consideraccedilotildees sobre o crescimento e a decadecircncia dos Estados e seus modos de transformaccedilatildeo e uma anaacutelise da natureza das conjuraccedilotildees que ameaccedilam os detentores do poder

Tudo o que Maquiavel exprime nestes livros eacute inspirado pela ideia que se tornou para ele um axioma de que a imitaccedilatildeo da histoacuteria antiga e de modo peculiar a da Repuacuteblica Romana constitui a fonte por excelecircncia da sabedoria poliacutetica Sob tal perspectiva vaacutelida antes de tudo para a Peniacutensula Italiana ndash outrora sede do nuacutecleo do Impeacuterio Romano ndash o que ocorrera no passado tendia inevitavelmente a se repetir no presente e no futuro Assim sendo o estudo da histoacuteria impunha-se quase como uma condiccedilatildeo sine qua non para a formulaccedilatildeo da teoria do Estado e da descriccedilatildeo das qualidades dos priacutencipes

13 Tito Liacutevio escreveu a monumental obra Ab Urbe Condita ndash a partir da Fundaccedilatildeo da Cidade constando de 142 livros do quais 35 chegaram ateacute noacutes entre eles os dez primeiros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

168

Curiosamente nessa obra Maquiavel exprime uma altamente positiva apreciaccedilatildeo da Repuacuteblica vista por ele como mais apta e equili-brada a tomar decisotildees e realizar o bem comum Ao lado dela - e aqui jaacute se veem as linhas de O Priacutencipe ndash Maquiavel destaca a Monarquia como a melhor forma de se conseguir a formaccedilatildeo do Estado na Peniacutensula da Itaacutelia Concluindo o mesmo raciociacutenio rejeita a tirania e a oligarquia de que eacute afirmado que se trata de uma relaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude Para Maquiavel poreacutem tanto as boas como as maacutes formas de governo teratildeo pouca duraccedilatildeo e por isso defende a maneira mista opiniatildeo que se reflete na descriccedilatildeo dos tipos de principados (Estados) no O Priacutencipe e na postura exigida dos priacutencipes

Resumindo pode-se afirmar que em decorrecircncia da leitura de autores claacutessicos como Tito Liacutevio e Poliacutebio14 aleacutem da recente histoacuteria e da vasta experiecircncia junto a poliacuteticos de sua eacutepoca Maquiavel chega aacute seguinte conclusatildeo O priacutencipe (irreal) estaacute longe de como se vive e de como se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da proacutepria ruiacutena do que de sua conservaccedilatildeo porque um homem que queira em todo lugar parecer bom atrai ruiacutena entre tantos que natildeo satildeo bons15

3 O Priacutencipe

31 Introduccedilatildeo

O Priacutencipe incontestavelmente a obra mais conhecida de Maquiavel foi publicada no ano de 1532 e eacute portanto poacutestuma Antes de sua publicaccedilatildeo impressa jaacute circularam algumas coacutepias manuscritas que natildeo tinham causado nenhum escacircndalo Pelo contraacuterio Maquiavel ficou desapontado pela frieza de Lourenccedilo de Meacutedici em relaccedilatildeo a sua obra que lhe foi dedicada Outro fator que causa certa espeacutecie foi o fato de que na eacutepoca natildeo foi negada agrave obra a licenccedila de imprimiacute-la o assim chamado ldquoimprimaturrdquo Parece que a postergaccedilatildeo da impressatildeo decorre das circunstacircncias poliacuteticas de 1513 ndash 1527 eacutepoca em que Maquiavel vivia isolado no seu exiacutelio Aleacutem disso acredita-se que ele queria reservar a publicaccedilatildeo da obra para uma conjuntura mais propiacutecia no intuito de

14 Historiador nascido na Greacutecia Antiga viveu de 203 aC ateacute 120 a C tomando na sua juventude parte ativa na luta dos gregos contra os romanos Feito prisioneiro foi levado para Roma ficando nesta cidade 17 anos como refeacutem Depois do seu retorno auml Greacutecia voltou algumas vezes a Roma e dedicou-se agrave histoacuteria dos acontecimentos ocorridos durante a sua vida procurando aleacutem do rigor cientiacutefico a valorizaccedilatildeo dos testemunhos de seus contemporacircneos Cf Biografia y Vidascombiografiaenlinea acesso em 10022011 15 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe cap XV-XVII

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

169

produzir um efeito maior Soacute mais tarde o cardeal Reginald Pole 1500-1588 constatando a ldquomaleacutefica influecircnciardquo16 da obra sobre Oliver Cromwell denunciou Maquiavel como um espiacuterito satacircnico defensor do despotismo e justificador de todas as arbitrariedades e violecircncias

Ademais a obra e seu autor enfrentaram a oposiccedilatildeo dos Jesuiacutetas que aleacutem de queimarem a efiacutegie de Maquiavel em Ingolstat em 1559 convenceram o papa Paulo IV a colocar o livro no Index por decreto o que foi confirmado pelo Concilio Tridentino em 1564 A oposiccedilatildeo ao escrito do Maquiavel entretanto natildeo foi proveniente apenas dos catoacutelicos pois tambeacutem os calvinistas como por exemplo Inocecircncio Gentillet que em 1576 publicou Contre Nicolas florentin

[] em que natildeo soacute qualificou o escritor de puant atheacuteiste mas tambeacutem denunciou suas doutrinas como instigadoras da ldquoNoite de Satildeo Bartolomeurdquo acusando-as de haver insuflado no espiacuterito de Catarina de Meacutedici a ideacuteia do massacre e de haver introduzido meacutetodos alieniacutegenas isto eacute italianos na poliacutetica francesa17

Embora importante no conjunto de seus escritos a obra de Maquiavel e sua filosofia poliacutetica natildeo se restringem soacute ao Priacutencipe devendo ser esse escrito visto no contexto de sua obra Com isto entretanto natildeo se pode nem se deve negar o lugar central que este livro ocupa no conjunto da obra maquiaveliana e eacute esta a razatildeo por que neste trabalho dedicado agrave anaacutelise da moral em Maquiavel e de modo especial no O Priacutencipe se lhe dedica um estudo especial

32 A Gecircnese de O Priacutencipe

Segundo Vilari18 deve-se buscar o conceito de O Priacutencipe no papa Leatildeo X 1513-1521 que lanccedilou a ideia de fundar um outro Estado abrangendo Parma Modena Urbino e Ferrara entregando o seu governo a Juliano de Meacutedici Desta forma realizar-se-ia o grande sonho de Maquiavel de um grande Estado monaacuterquico italiano superando a sua divisatildeo em inuacutemeros estados pequenos com um poder central suficiente tanto para unificaacute-la como para mantecirc-la unificada

16 ESCOREL Lauro O pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades VII Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1984 nordm 8 pg 18-52 17 ESCOREL Lauro op cit p 19 18 VILARI P Niccolograve Macchiavelli e i suoi tempi 3 vls Firenze 1877 p 294 vol II citado em ESCOREL Lauro op cit p 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

170

Maquiavel entusiasta defensor dessa ideia se distancia dela quanto agrave sua realizaccedilatildeo concreta como um poder monaacuterquico central e absoluto baseado nos ideais da tradiccedilatildeo cristatilde e se opotildee contra o priacutencipe ideal renascentista ldquosiacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilatildeo religiosa cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudenterdquo19 Pelo contraacuterio o priacutencipe com o qual Maquiavel sonha eacute um teacutecnico poliacutetico realista plasmado nos moldes do passado sobretudo da antiga Repuacuteblica Romana nos seus melhores dias de gloacuteria

[] para o qual o importante era ater-se agrave veritaacute effetuale delle cose [] O priacutencipe maquiaveacutelico natildeo emerge do pensamento do seu autor aureolado pelas virtudes da eacutetica tradicional como produto de uma elaboraccedilatildeo mental utoacutepica [] Plasma-o ao contraacuterio indutivamente com base nos dados de sua experiecircncia e inspirado nos exemplos da Antiguidade Claacutessica investindo-o de uma loacutegica inexoraacutevel para a consecuccedilatildeo de seu objetivo supremo a conquista e a preservaccedilatildeo do poder poliacutetico absoluto 20

Eacute nesta inspiraccedilatildeo que residem a grandiosidade e o gecircnio de Maquiavel que o fizeram descobrir e penetrar a essecircncia da accedilatildeo poliacutetica do homem revelando as leis proacuteprias e analisando dividindo e avaliando friamente a forccedila das paixotildees humanas Foi sob esse prisma que o seu livro auferiu validade permanente

33 A Estrutura do livro21

O livro que consta de 26 capiacutetulos comeccedila com uma carta dedicatoacuteria ao magniacutefico Lorenzo filho de Piero de Meacutedici neto de Lorenzo o Magniacutefico (1449-1492) Originalmente o livro seria dedicado a outro membro da famiacutelia Meacutedici Giuliano filho de Lorenzo mas este morreu em 1516

Do primeiro ao deacutecimo capiacutetulo eacute procedida agrave discriminaccedilatildeo dos vaacuterios tipos de principados Aleacutem disso Maquiavel desenvolveu as caracteriacutesticas e qualidades dos mencionados principados Central estaacute o problema da conquista do poder em geral e especialmente no

19 ESCOREL Lauro op cit p 23 20 ESCOREL Lauro op cit p 23 21 Cf Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Grupo de Estudos de Filosofia ndash GEFIL Aula I BATISTA Flaacutevio Donizete http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 15 de agosto de 2010 BATH Sergio A praacutetica poliacutetica segundo Nicolau Maquiavel Satildeo Paulo Aacutetica 2009 CHEVALLIER J J As grandes obras poliacuteticas de Maquiavel a nossos dias Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 pg 17-48

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

171

principado novo Tudo eacute visto sob a grande perspectiva da unificaccedilatildeo da Itaacutelia que deve ser fundada nas conquistas e na virtugrave do governante

Do deacutecimo ao deacutecimo quinto capiacutetulo preocupa-se em argumentar e mostrar que a base de qualquer Estado estaacute na sua autarquia militar Trata de maneira especial no capiacutetulo 11 dos Estados eclesiaacutesticos e como chegaram ao poder que ostentam

A parte principal da obra eacute formada pelos capiacutetulos deacutecimo quinto ateacute o vigeacutesimo sexto Aqui se trata do exame do problema do governo de um povo como um priacutencipe deve conduzir-se com os seus suacuteditos e seus aliados Quanto agrave imagem do priacutencipe formulada por Maquiavel merecem destaque especial os quatro conceitos por ele considerados fundamentais virtugrave ocasiatildeo fortuna e necessidade Por todos os capiacutetulos especialmente a partir do deacutecimo nono encontramos Maquiavel insiste na necessidade da reformulaccedilatildeo da imagem tradicional do priacutencipe acentuando a obrigaccedilatildeo de ele sempre se esforccedilar para ter o povo ao seu lado porque sem o apoio do povo o priacutencipe natildeo resistiraacute agraves dificuldades que sobreviratildeo

Do capiacutetulo 23 ateacute o 25 Maquiavel constatando porque os priacutencipes italianos perderam seus Estados afirma o poder da vontade humana de domar e vencer a proacutepria fortuna pela razatildeo e pela virtude

O uacuteltimo capiacutetulo ndash o 26 - eacute uma eloquente exortaccedilatildeo agrave redenccedilatildeo e libertaccedilatildeo da Itaacutelia do domiacutenio das potecircncias estrangeiras ndash Franccedila Espanha e o Impeacuterio Alematildeo ndash e consiste num convite ao priacutencipe de ser audaz e feroz a fim de alcanccedilar ecircxito Termina com as belas palavras de Petrarca

Virtugrave contro a furore Prenderaacute lrsquoarmi e fia el combatter corto Che lrsquoantico valore Nellrsquoitalici cor non egrave ancor morto22

4 Moral e Eacutetica na poliacutetica de Maquiavel

Agrave primeira vista pode parecer fora de propoacutesito falar de Moral E Eacutetica em Maquiavel Para muitos autores e sobretudo para muitas pessoas no seu dia a dia os dois conceitos significam a mesma coisa e dizem 22 O valor tomaraacute armas contra o furor e que seja curto o combate pois a coragem antiga ainda natildeo morreu no coraccedilatildeo dos italianos PETRARCA Francesco Rime Esparse (sem maiores referecircncias) em O Priacutencipe comentado por Napoleatildeo Bonaparte MAQUIAVEL texto integral Traduccedilatildeo NASSETTI Pietro Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

172

respeito ao comportamento humano Por que e para que entatildeo fazer uma distinccedilatildeo Leonardo Boff no seu livro Ethos Mundial diz o seguinte

[] precisamos voltar ao sentido originaacuterio da eacutetica e da moralidade Todas as morais por mais diversas nascem de um transfundo comum que eacute a eacutetica Eacutetica somente existe no singular pois pertence aacute natureza humana presente em cada pessoa enquanto moral estaacute sempre no plural porque satildeo distintas formas de expressatildeo cultural e histoacuterica da eacutetica 23

Um olhar sobre o sentido original da palavra eacutetica pode esclarecer o seu rico e profundo sentido proacuteprio Na sua liacutengua de origem a grega eacutetica vem de ethos que tem duas grafias com letra e pequena ou grande e conforme o tamanho muda o sentido Ethos com letra pequena indica a morada abrigo permanente tanto dos animais como dos humanos Ela tem que ser construiacuteda pela atividade humana e por isso deve ser sempre reformada melhorada e aperfeiccediloada Assim pode-se dizer que a eacutetica tem por fim morar bem e para isto constituir objetivos fundamentais e valores e princiacutepios que norteiam a accedilatildeo humana Para os antigos entatildeo a eacutetica estaacute ligada ao bem ou aacute felicidade que devem ser perseguidos por meios que levem a esta bondade e felicidade Estes meios eram tambeacutem chamados de ethos mas com e grande e significam os costumes ou ldquoo conjunto de valores e de haacutebitos consagrados pela tradiccedilatildeo cultural de um povordquo24

Ao dizer-se que algueacutem natildeo tem eacutetica significa a ausecircncia nesta pessoa de princiacutepios norteadores para sua accedilatildeo que se desenvolve pois de acordo com as vantagens que possa conseguir e consequentemente coerecircncia e princiacutepios fazem falta na sua vida Por outro lado quando se garante que algueacutem natildeo possui moral indica-se que esta pessoa natildeo possui virtudes que a ajudem a ldquoconstruir sua moradardquo sua felicidade e age erradamente mentindo roubando explorando

Resumindo

[] moral eacute o conjunto de haacutebitos e costumes efetivamente vivenciados por um grupo humano Nas culturas dos grupos humanos estatildeo presentes haacutebitos e costumes considerados vaacutelidos porque bons bons porque justos justos porque contribuem para a realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

[] eacutetica eacute a reflexatildeo sobre a accedilatildeo humana para extrair dela o conjunto excelente de accedilotildees Eacute uma ciecircncia que tem por objeto a moral e a lei e pretende aprimorar

23 BOFF Leonardo Ethos Mundial Um consenso miacutenimo entre os humanos SI Letraviva Editorial Ltda 2000 pg 34 24 BOFF Leonardo op cit pg 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

173

as ldquoatividades realizadoras de sirdquo desenvolvidas pelos indiviacuteduos em busca do excelente25

41 A Eacutetica maquiaveliana

Com a difusatildeo do livro O Priacutencipe as ideacuteias de Nicolau Maquiavel se tornaram conhecidas mas tambeacutem quase de imediato foram atingidas por uma forte onda de severas criacuteticas A obra que pode ser considerada como a principal de Maquiavel foi qualificada de imoral e sem eacutetica Qual a razatildeo de tatildeo severo juiacutezo Ricardo Rodrigues responde a esta indagaccedilatildeo quando esclarece

[] Maquiavel simplesmente documentou verdades jaacute conhecidas pelos homens embora natildeo admitidas Tudo o que fez foi construir uma teoria poliacutetica a partir da combinaccedilatildeo de experiecircncia concreta no trato da coisa puacuteblica com a observaccedilatildeo aguda do processo poliacutetico aliada ainda ao estudo da histoacuteria26

Em verdade Maquiavel faz uma anaacutelise nua e crua da praacutetica poliacutetica do seu tempo como realmente era e natildeo como deveria ser Em primeira instacircncia estaacute o realismo poliacutetico por ele descrito como sendo a uacutenica maneira de algueacutem se tornar vitorioso no jogo pelo poder Este realismo poliacutetico que natildeo raro desprezava a moral vigente e a eacutetica tradicional feria em muitos aspectos os padrotildees escolaacutesticos da eacutepoca baseados nos estudos teoloacutegicos agostinianos e tomistas Esses estudos denotaram ideias que deveriam conduzir a accedilatildeo poliacutetica em vista da construccedilatildeo de uma sociedade baseada em princiacutepios cristatildeos conduzindo desta forma agrave construccedilatildeo da Cidade Justa ou de Deus sobre a terra27 defendendo neste sentido a consecuccedilatildeo do Bem Comum entendido em sentido cristatildeo Em outras palavras haacute um ideal a ser atingido e a eacutetica igual agrave praacutetica moral consequecircncia dela eacute julgada agrave luz deste ideaacuterio Esta posiccedilatildeo defendida embora com algumas pequenas diferenccedilas pelo pensamento da Igreja Catoacutelica de entatildeo tambeacutem se encontrava na visatildeo

25 DOS SANTOS Antonio Raimundo Eacutetica Caminhos da realizaccedilatildeo humana 4 ed Satildeo Paulo Editora Ave Maria 2004 pg 11 e 15 26 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Simposion Unicap no 2 1986 pg 44 27 Cf a grande corrente teoloacutegica que tem em Santo Agostinho o eu grande defensor e propagador especialmente na sua obra De Civitate Dei ndash (Sobre a Cidade de Deus ) que ateacute o seacuteculo XII-XIII foi a inspiraccedilatildeo maior para o ideal poliacutetico da Idade Meacutedia muitas vezes apresentada como o ideal da assim chamada Cristandade Santo Tomaacutes de Aquino natildeo negando a influecircncia agostiniana recebe grande aporte das ideias aristoteacutelicas como resta claro natildeo somente no seu pequeno tratado De Regno mas tambeacutem no extenso e inacabado comentaacuterio sobre a Poliacutetica e a Eacutetica do Nicocircmaco de Aristoacuteteles

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

174

filosoacutefica da poliacutetica baseada na teoria platocircnica com a sua cidade ideal regida pela justiccedila e aristoteacutelica em que o ideal da felicidade estaacute central o que foi intensamente estudado pelos saacutebios da eacutepoca Em outras palavras existem conceitos ideias de bem e de mal que servem como paradigma para a accedilatildeo humana uma ideia a que a accedilatildeo humana deve obedecer ou a qual se adaptar Satildeo os assim chamados valores eternos que transcendem tempo e lugar isto eacute possuem validade universal

Como consequumlecircncia da anaacutelise e descriccedilatildeo da poliacutetica de acordo com as ideacuteias de Maquiavel surge o assim chamado maquiavelismo teoria que procura ligar as ideias do Pensador de Florenccedila a procedimentos nocivos que lembram perfiacutedia astuacutecia crueldade e traiccedilatildeo E o que eacute pior para alguns estas expressotildees pejorativas continuam sobrevivendo no tempo e no espaccedilo e proliferam ainda hoje tanto na esfera poliacutetica como nas desavenccedilas do cotidiano

Eacute bem verdade que no acervo de qualidades do bom governante aceito por Maquiavel constavam a fraude e a mentira a dissimulaccedilatildeo e ateacute mesmo a crueldade 28 Isto natildeo significa todavia que Maquiavel defen-desse ou aconselhasse um estado turbulento de constantes lutas contra usurpadores gananciosos anarquicamente cruel em que os governantes poderosos mantivessem seus suacuteditos em regime de servidatildeo de tortura e perversidade

Por outro lado o Escritor Florentino nunca deixava de louvar a honestidade e a integridade em governantes29 Pelo estudo de fatos paacutes-sados entretanto e de outros da histoacuteria de entatildeo que havia presenciado e testemunhado enfatizava que o poliacutetico dependia de qualidades bem diversas Fazendo distinccedilatildeo entre honestidade e ingenuidade acreditava ele que praticar a honestidade sem levar em conta os efeitos prejudiciais para toda uma coletividade ou para a naccedilatildeo eacute de fato mera ingenuidade defeito maacuteximo de maus governantes

Discorrendo ainda sobre integridade Maquiavel considerava lou-vavel o fato de que o priacutencipe fosse um homem iacutentegro e mantivesse a palavra empenhada30 Ao mesmo tempo poreacutem alertava para o fato de que conforme a necessidade ele poderia abandonar a boa feacute desfazendo assim a palavra dada 28 Cf O Priacutencipe op cit cap XVII 29 Cf RODRIGUES RICARDO Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no 2 Recife Unicap 1986 pg 48 30 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

175

Um priacutencipe prudente natildeo deveraacute pois agir de boa feacute quando para fazecirc-lo precise agir contra seus interesses e quando os motivos que o levaram a empenhar a palavra deixarem de existir31

Em circunstacircncias adversas este poderia utilizar-se igualmente da dissimulaccedilatildeo porquanto os homens em geral satildeo tolos e sempre acreditam em quem lhes faz promessas ou lhes promete benefiacutecios Usando uma linguagem coloquial contemporacircnea ldquopara cada bobo haacute sempre um espertordquo

A argumentaccedilatildeo do Escritor Florentino sobre a crueldade reflete-se nos louvores e elogios feitos por ele ao Duque de Valentino citado como exemplo de um autecircntico e renomeado estadista

Ceacutesar Boacutergia era considerado cruel mas sua crueldade impocircs ordem agrave Romanha unificou-a reduzindo-a agrave paz e agrave fidelidade Se examinarmos bem este ponto veremos que na verdade ele foi muito mais clemente que o povo de Florenccedila que para fugir agrave reputaccedilatildeo de cruel permitiu a destruiccedilatildeo de Pistoia32

Eacute interessante esclarecer que a admiraccedilatildeo de Maquiavel por Ceacutesar Boacutergia natildeo emergiu do fato de ser este um homem perverso e cruel Em sua oacuteptica Ceacutesar Boacutergia surgiu como um governante eficiente destemido saacutebio capaz de comportar-se como priacutencipe em toda e qualquer situaccedilatildeo

Em virtude destas e de outras afirmaccedilotildees em torno do caraacuteter poliacutetico e do jogo pelo poder Maquiavel atraiu para si muitas criacuteticas atraveacutes dos tempos Seus conceitos e teorias foram analisados de vaacuterias maneiras e muito mal interpretados Como expresso anteriormente sua obra foi qualificada de imoral e sem eacutetica Impuseram ao Escritor a condiccedilatildeo de advogado da poliacutetica sem moralidade

Lauro Escorel refuta esta ideia quando diz que rdquoOs princiacutepios do poliacutetico florentino podem natildeo ser cristatildeos mas satildeo eacuteticosrdquo33

Natildeo partilhando igualmente daquela opiniatildeo que o Professor Cranston projeta o Escritor para uma dimensatildeo contraacuteria quando sugere que ldquoO argumento de Maquiavel parece-me ser o de que apenas existe uma verdadeira moralidade mas que por vezes o governante tem que a

31 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 32 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 33 ECSOREL Lauro O Pensamento Poliacutetico em Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

176

desrespeitarrdquo34 Cranston propotildee ainda que a principal razatildeo de o Florentino ser continuamente hostilizado

[] eacute a de que ele aconselha (os governantes) a fazerem consciente e deliberadamente o que muitos estatildeo fazendo de modo natural preferindo natildeo pensar no assunto [] Maquiavel nunca endossou o uso da fraude para a proteccedilatildeo de carreiras poliacuteticas aconselhando-a apenas para encobrir aqueles atos de Estado necessaacuterios que violam a moralidade35

Daiacute conclui-se que estes atos de Estado necessaacuterios correspondiam ao conceito maquiaveliano de ldquoragione di statordquo e agrave consciecircncia de que a poliacutetica eacute uma atividade autocircnoma do Estado e no Estado sem recurso ou associaccedilatildeo agrave eacutetica agrave jurisprudecircncia agrave moralidade cristatilde ou pagatilde Seria mais justo e claro dizer que haacute para Maquiavel uma mudanccedila no conceito da eacutetica Ele aceita que a accedilatildeo poliacutetica deve ser orientada por valores mas estes assumem caraacuteter totalmente diferente distanciando-se do ideal teoloacutegico filosoacutefico e sobretudo da ideaccedilatildeo da felicidade pessoal Para o Secretaacuterio Florentino o Estado eacute sem duacutevida o valor mais alto aleacutem do qual natildeo existe um limite Para ele a poliacutetica resumia-se numa coisa conquistar e manter o poder ou a autoridade no domiacutenio conquistado Portanto a religiatildeo a moral e outros valores que os humanistas pretendiam associar agrave poliacutetica nada tinham de relaccedilatildeo com aquele ponto fundamental Permitia-se a exceccedilatildeo apenas nos casos em que a religiatildeo e a moral contribuiacutessem para a conquista e a manutenccedilatildeo do poder quando entatildeo se tornam meios para a grandeza do Estado

Eacute preciso natildeo esquecer de que a razatildeo de Estado implica um cunho social Isto quer dizer que embora o Estado representasse poder pessoal prestiacutegio e forccedila para o governante focalizava e visava tambeacutem aos suacuteditos toda uma comunidade de homens para gerenciar e prover Para Maquiavel isto era um ponto de capital importacircncia visto que ele deixa transparecer nos seus escritos a opiniatildeo que considera os homens maus de nascenccedila e iacutendole Por conseguinte de nada adiantariam a boa-feacute a integridade e a honestidade do priacutencipe se estas virtudes natildeo impedissem a sua ruiacutena levando o Estado agrave fraqueza e agrave derrota que tem como consequecircncia o domiacutenio inimigo o qual provocaria natildeo soacute a inquietaccedilatildeo mas tambeacutem o sofrimento de toda a coletividade Esta inquietaccedilatildeo e o concomitante sofrimento por sua vez causariam a desconfianccedila e ateacute a 34 CRANSTON Maurice Poliacutetica e eacutetica Em KING PRESTON O Estudo da Poliacutetica Brasilia Universidade de Brasiacutelia 1980 Citado em RICARDO Rodrigues Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p 49 35 Cranston OC Em RODRIGUES op cit p 50

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

177

revolta dos cidadatildeos e enfraqueceriam o Estado Por isso o aspecto eacutetico para Maquiavel estaacute nas mais elevadas regras de grandeza de Estado manutenccedilatildeo do poder governabilidade e defesa custe o que custar do Estado ou do domiacutenio do priacutencipe Eacute na histoacuteria e tambeacutem nas suas aventuras diplomaacuteticas que Maquiavel viu estes princiacutepios sendo praticados ndash para o bem do Estado e do seu priacutencipe e suacuteditos - ou negli-genciados ndash para a sua ruiacutena e fraqueza

Ricardo Rodrigues aprecia e tenta justificar esta doutrina maquiave-liana quando destaca ldquoEacute necessaacuterio poreacutem perguntar desapaixonadamente se Maquiavel realmente merece ser considerado ldquomaquiaveacutelicordquordquo36 O autor reaviva a polecircmica em cima de Maquiavel e chega aacute conclusatildeo de que o Florentino natildeo quis propriamente sugerir como os priacutencipes deveriam se comportar para que sua poliacutetica se adequasse ao ideal eacutetico da sociedade mas apenas registrou como realmente procediam de modo que um entre os outros natildeo poderia se comportar diferentemente caso quisesse se conservar no trono e natildeo passar por ingecircnuo

Vasquez eacute outro autor que se inclina para separar a eacutetica da poliacutetica e declara

Na poliacutetica o indiviacuteduo encarna uma funccedilatildeo coletiva e a sua atuaccedilatildeo diz respeito a um interesse comum Na moral pelo contraacuterio ainda que o coletivo esteja sempre presente o elemento iacutentimo pessoal desempenha o papel importante [] interiorizando as normas gerais e assumindo responsabilidades pessoais37

Na realidade o fato mais notoacuterio eacute que ainda nos dias de hoje os estudiosos que procuram abordar ou elucidar o mesmo tema ou seja comprovar ou natildeo a identificaccedilatildeo da poliacutetica com a moral e a eacutetica sempre tentam se basear nos pressupostos constantes da filosofia poliacutetica do famoso Escritor Florentino

42 A moral em Maquiavel

Sabe-se que vaacuterios pensadores contemporacircneos de Maquiavel escre-veram tambeacutem como este manuais da linha ldquoEspelho dos Priacutencipesrdquo38 com o intuito de oferecer um norteamento comportamental para aquele que governa pautado tatildeo somente numa moral cristatilde 36 RODRIQUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na poliacutetica Op cit p 43-53 37 VASQUEZ Adolfo Sanchez Eacutetica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 pg 77 38 Eacute um gecircnero literaacuterio antigo que se espalhou sobre a Europa Medieval com base em fontes orientais nos seacuteculos XII a XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

178

A corrente filosoacutefica tradicional enfatiza a tese de que a virtugrave caracterizada por qualidades morais individuais como a justiccedila devia ser completada pelas qualidades ou virtudes cristatildes como a bondade e a feacute

Ao contraacuterio Maquiavel prefere romper com as tendecircncias medie-vais Resolve apresentar o seu ldquoEspelhordquo com caracteriacutesticas diferentes deixando de lado princiacutepios de uma moral cristatilde Rejeita imperativos categoacutericos como leis morais natildeo relativizaacuteveis por consideraacute-los belos ou atraentes como conceitos teoacutericos mas ineficazes na praacutetica da vida puacuteblica Estudiosos do universo maquiaveliano como Berlin39 e Skinner40 compartilham da ideacuteia de que essa preocupaccedilatildeo em romper e ateacute mesmo denunciar a ingenuidade das teorias poliacuteticas reflete o traccedilo de maior originalidade de Maquiavel

O Florentino rejeita a filosofia poliacutetica tradicional acreditando que os comentadores de sua eacutepoca natildeo haviam conseguido perceber a incompati-bilidade de uma ldquomoral cristatilderdquo que atenda agrave pessoa e uma ldquomoral poliacute-ticardquo que atenda ao coletivo no caso o Estado

Essa incompatibilidade reside na natureza humana representada por homens maus levianos covardes e gananciosos Na tentativa de comprovar a sua tese Maquiavel resume seu pensamento numa frase lapidar

[] Seria muito louvaacutevel que um priacutencipe possuiacutesse todas as qualidades consideradas boas Natildeo sendo isto poreacutem inteiramente possiacutevel devido agraves proacuteprias condiccedilotildees humanas eacute necessaacuterio a um priacutencipe aprender a natildeo ser bom41

Acredita Maquiavel que a histoacuteria eacute ciacuteclica e que os costumes variam de regiatildeo para regiatildeo de eacutepoca para eacutepoca Assim sendo como eacute impos-siacutevel frear as paixotildees e os instintos humanos os conflitos e as desordens aconteceriam indefinidamente Continuamente estariam presentes os mesmos viacutecios ou as mesmas virtudes

Para o Pensador Florentino entretanto cujo sonho era ver a Itaacutelia renascida como um Estado forte como outrora o Impeacuterio Romano era fundamental acabar com a desordem causadora de uma situaccedilatildeo poliacutetica tatildeo caoacutetica como a da Peniacutensula Italiana do seu tempo Realmente 39 BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees internacionais Textos de Aula Brasilia UnB sd 40 SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988 41 MAQUIAVEL O Priacutencipe Cap XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

179

parafraseando Rodrigues42 eacute possiacutevel dizer que a visatildeo histoacuterica poliacutetica dominante nesta parte da Europa expressava um exemplo significativo dessa malignidade humana a Peniacutensula dividida a ausecircncia de um poder central lutas fratricidas conflitos violentos entre pequenas naccedilotildees ou principados italianos invasotildees promovidas por impeacuterios ou grandes reinos vizinhos o poder temporal da Igreja tantas vezes se transformando em outro obstaacuteculo Afinal um quadro desolador de fraqueza total e de insignificacircncia poliacutetica

Preocupado angustiado mesmo com esse alarmante contexto histoacute-rico em que a Itaacutelia (inclusive Florenccedila) se encontrava envolvida Maquiavel fortifica cada vez mais a sua visatildeo sonhadora de uma paacutetria forte unida eficiente e eficaz Nesta perspectiva munido por um espiacuterito empiacuterico tambeacutem realista o Pensador Florentino assume posiccedilatildeo ideoloacutegica isto eacute pragmaacutetica poliacutetica e para muitos revolucionaacuteria

Vaacuterios inteacuterpretes concordam com a noccedilatildeo de que Maquiavel levado naturalmente por seu empirismo toma aquela dura e cruel conjun-tura poliacutetica como um desafio43 Em decorrecircncia passa a conceber um priacutencipe heroacutei um priacutencipe valoroso determinado capaz de ir ateacute as uacuteltimas consequumlecircncias a fim de alcanccedilar seus objetivos que era ndash nada mais nada menos ndash a regeneraccedilatildeo da Repuacuteblica Conforme o pensamento de Liacutedia Maria ldquoo projeto poliacutetico do secretaacuterio florentino apontava essencialmente para a construccedilatildeo de um Estado forte unificado e voltado para o bem comumrdquo 44

Levando em conta o contexto histoacuterico sobre o qual se discorreu anteriormente pocircr em praacutetica semelhante projeto poliacutetico natildeo era tarefa simples Daiacute por que o priacutencipe idealizado por Maquiavel deveria ser virtuoso ou pelo menos parecer ser e aleacutem disso deveria possuir muita astuacutecia esperteza e sabedoria para pautar as suas accedilotildees com vistas agraves circunstacircncias Neste sentido a visatildeo do Florentino eacute incisiva haacute viacutecios que satildeo virtudes Natildeo tema pois o priacutencipe que deseje se manter no poder incorrer no oproacutebrio dos defeitos mencionados se tal for indispen-saacutevel para salvar o Estado Aconselhava ainda ao priacutencipe saacutebio que devia se aproveitar sempre das oportunidades (ocasione) ldquoaprender os meios de natildeo ser bom e a fazer uso ou natildeo deles de acordo com as

42 Cf RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p49-52 43 Cf por exemplo Paul Larivaille e Newton Bigotto 44 RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel ndash Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002 pg 31

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

180

necessidadesrdquo45 De conformidade com a teoria poliacutetica maquiaveliana o priacutencipe poderia ateacute praticar o mal desde que seu ato fosse justificaacutevel ou melhor que resultasse num bem maior para todos a estabilidade do Estado

Interpretando a filosofia poliacutetica de Maquiavel dentro dessa oacuteptica Rodrigues conclui

Eacute assim que a poliacutetica maquiaveliana se faz autocircnoma A finalidade eacute excelsa e imperativa porque necessaacuteria inevitaacutevel originaacuteria e fundamental eacute uma legitimaccedilatildeo tatildeo forte que pode atropelar qualquer consideraccedilatildeo eacutetica O absolutismo eacute justificado 46

Assumindo posicionamento tatildeo radical era loacutegico pois que a concepccedilatildeo maquiveliana entrasse fundamentalmente em choque com a consciecircncia moral da tradiccedilatildeo poliacutetica cristatilde De fato dos pensadores cristatildeos dos liberais e dos teoacutericos do Estado beneficente emerge uma contundente onda de criacuteticas contra o Pensador Florentino Eacute tachado de ciacutenico imoral inescrupuloso democircnio espiacuterito satacircnico autor maldito e outros adjetivos do mesmo gecircnero

Como consequecircncia deste panorama Maquiavel passou a ser deveras incompreendido incompreensatildeo que perdura ateacute os dias atuais Um comen-tador recente jaacute o compreendeu ldquocomo uma das figuras mais emblemaacuteticas sendo odiado por muitos amado por outros e incompreendido pela grande maioriardquo47

Consideraacutevel nuacutemero de leitores desinformados alguns deles em total ignoracircncia a respeito das obras de Maquiavel ainda hoje evocam a figura do Secretaacuterio Florentino ou associam o seu nome a dois termos que assumiram sentido pejorativo maquiaveacutelico e maquiavelismo Nas duas acepccedilotildees datildeo ideia de indiviacuteduos traiccediloeiros auspiciosos caloteiros

Quem de noacutes por exemplo natildeo presenciou algueacutem se utilizando do termo maquiaveacutelico para criticar ou denunciar uma pessoa desleal corrupta que para conseguir vantagens pessoais sai atropelando tudo e todos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer aspecto eacutetico ou moral

45 MAQUIAVEL O priacutencipe cap XV 46 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a eacutetica na poliacutetica Op cit pg 71 47 AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e Razatildeo de Estado Faculdade Autocircnoma de Direito SDatildeo Paulo dezembro de 2008

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

181

Portanto neste trabalho evitou-se de propoacutesito o adjetivo maquia-veacutelico irremediavelmente distorcido por interpretaccedilatildeo errocircnea usando em seu lugar a expressatildeo maquiaveliana

Ainda em decorrecircncia desta atitude objetiva e desapaixonada assumida por Maquiavel fugindo dos padrotildees escolaacutesticos do seu tempo ateacute o seacuteculo XVII eram poucos os doutrinadores que aceitavam aberta-mente os seus pressupostos E no seacuteculo XIX desenterraram a ceacutelebre frase que lhe eacute igualmente atribuiacuteda os fins justificam os meios a qual natildeo consta dos seus escritos sentenccedila cujo uso se faz geralmente isolada do contexto unidade de ideia que jamais algueacutem comprovou tecirc-lo ouvido pronunciar E se realmente o Poliacutetico Florentino a abordava os fins eram tatildeo admiraacuteveis que natildeo poderia ningueacutem deixar de o louvar

Na Modernidade poreacutem as obras do Grande Pensador passaram a ser efetivamente analisadas discutidas e apreciadas Atingiu-se a essecircncia de sua filosofia poliacutetica e Maquiavel com a imagem resgatada aparece cintilante no universo de autores bem-sucedidos

Atualmente comentadores de renome de todos os cantos se arvoraram em defensores do Autor Florentino tecendo-lhes referecircncias honrosas e louvores Entre os que concordam com opiniotildees conclusotildees e interpretaccedilotildees de Maquiavel aponta-se o nome de Mounin

Pode-se afirmar que o secretaacuterio teve honroso papel na poliacutetica da eacutepoca com os meios da eacutepoca agrave medida da eacutepoca - no seu lugar Florenccedila e com as cartas que tinha em matildeo as cartas florentinas que natildeo constituiacuteam um jogo famoso Na histoacuteria do seu tempo Maquiavel eacute vencido natildeo um falhado48

E na tentativa de defender Maquiavel contra seus adversaacuterios Mounin acrescenta

Maquiavel foi realmente um poliacutetico que se alimentou de fatos apaixonado por fatos incansaacutevel na anaacutelise dos fatos [] Pode mesmo afirmar-se um dos mais certos meacuteritos de Maquiavel e um dos menos notados dos menos ceacutelebres tambeacutem eacute a paciecircncia incansaacutevel com que pinta com minuacutecia o espetaacuteculo infinito da complexidade dos fatos Mesmo se quase nunca estamos de acordo com ele acerca das causas e conexotildees a leitura de Maquiavel eacute um antiacutedoto salutar sem disso fazer um dogma unicamente devido ao cuidado que potildee na descriccedilatildeo ensina a cada linha que em poliacutetica nada eacute tatildeo simples como parece49

48 MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 p 15 49 MOUNIN Georges Maquiavel op cit p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

182

Nos tempos modernos outro doutrinador que merece igualmente ter seu nome incluiacutedo na lista dos defensores de Maquiavel eacute Lauro Escorel quando expressa

Maquiavel natildeo traccedilou portanto regras poliacuteticas que estivessem em contradiccedilatildeo com o seu tempo e que passassem desde entatildeo a ser germes de corrupccedilatildeo ou incentivos ao absolutismo como seus adversaacuterios quiseram fazer crer limitou-se a registrar dados de fato normas empiacutericas de conduta que explicaram no passado e no presente os ecircxitos e fracassos poliacuteticos Ao mesmo tempo interpretou ele as tendecircncias poliacuteticas da eacutepoca que era o absolutismo real e o secularismo sob cujos auspiacutecios nascia o Estado Moderno [] Se alguma responsabilidade moral lhe pode ser atribuiacuteda seraacute a de natildeo se ter preocupado em submeter a praacutetica poliacutetica ao crivo de um coacutedigo moral meta-histoacuterico mas isto resulta do meacutetodo indutivo-empiacuterico que o espiacuterito da Renascenccedila lhe inspirou50

Encontra-se nos escritos de Bertrand Russel talvez uma das mais ardorosas e eloquentes defesas de Maquiavel contra as criacuteticas dos anti-maquiavelistas Suas palavras comprovam esta afirmaccedilatildeo

A Renascenccedila embora natildeo haja produzido nenhum filoacutesofo teoacuterico importante produziu um homem de suprema eminecircncia na filosofia poliacutetica Maquiavel Eacute costume sentir-se a gente chocada por ele e natildeo haacute duacutevida de que agraves vezes ele realmente eacute chocante Mas muitos outros homens tambeacutem o seriam se fossem igualmente livres de hipocrisia Sua filosofia poliacutetica eacute cientiacutefica e empiacuterica baseada em sua proacutepria experiecircncia dos assuntos preocupada em declarar os meios de se chegar a determinados fins sem se preocupar de se saber se tais meios satildeo considerados bons ou maus Quando em certas ocasiotildees se permite mencionar os fins que deseja estes satildeo de tal natureza que natildeo podemos senatildeo aplaudi-los Grande parte da difamaccedilatildeo convencional ligada ao seu nome deve-se agrave indignaccedilatildeo dos hipoacutecritas que odeiam o franco reconhecimento das maacutes accedilotildees Resta eacute certo uma boa parte que realmente exige criacutetica mas nisto ele eacute uma expressatildeo de sua eacutepoca Tal honestidade intelectual a respeito da desonestidade poliacutetica dificilmente teria sido possiacutevel em qualquer outra eacutepoca e em qualquer outro paiacutes exceto talvez na Greacutecia entre os homens que deviam sua educaccedilatildeo teoacuterica aos sofistas e seu adestramento praacutetico agraves guerra de minuacutesculos Estados que tanto na Greacutecia claacutessica como na Itaacutelia da Renascenccedila eram o acompanhamento poliacutetico do gecircnio individual51

50 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 20 51 RUSSEL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969 p20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

183

A tendecircncia moderna diz que natildeo se deve simplesmente ldquodenegrir a imagem de Maquiavel e nem tatildeo pouco louvaacute-lo indiscriminadamenterdquo52 Concorda-se em gecircnero e nuacutemero com esta afirmaccedilatildeo predominante nos dias atuais Natildeo haacute duacutevida de que o Autor Florentino cometeu erros mas acertou muito mais Jamais se deve esquecer de que ele foi um produto do meio O peixe natildeo vive fora drsquoaacutegua E para Maquiavel era quase impos-siacutevel emergir da turbulecircncia histoacuterica em que viveu O Poliacutetico de Florenccedila foi praticamente nocauteado Seu espiacuterito confrontou-se com um dilema de escolha viver ou morrer E quem preferia morrer O que faz um homem todo dia senatildeo lutar pela sobrevivecircncia O poder poliacutetico era uma loteria Para ganhar qualquer priacutencipe teria de jogar Na luta pelo poder Maquiavel justificava o uso das armas ou da crueldade Por outro lado sempre dava liccedilotildees ao povo para se livrar dos tiranos53

5 Consideraccedilotildees finais

Maquiavel ao expor o pensamento ou ideias sobre a poliacutetica o fez de modo genial sem se deixar aprisionar por nenhuma corrente literaacuteria ou doutrinaacuteria Criou estilo proacuteprio pessoal Como consequumlecircncia seus escritos foram analisados de maneiras diversas inclusive mal interpretados Nos nossos dias ainda haacute algueacutem que natildeo consegue interpretaacute-lo com clareza coerecircncia e plena nitidez

Para uns Maquiavel parece ser o protoacutetipo do poliacutetico sem escruacute-pulos sem eacutetica que age de acordo com as circunstacircncias que se lhe apresentam Destarte eacute considerado um escritor e pensador nocivo cujas ideias devem ser banidas da praacutetica poliacutetica e substituiacutedas por uma ldquoverdadeirardquo atitude eacutetica

Para uns Maquiavel eacute considerado um elitista ao contraacuterio de outros que o tecircm em conta como um democrata autecircntico que natildeo via outro fator capaz de sustentar a estabilidade de todo e qualquer regime senatildeo a forccedila e o apoio popular E ainda hoje este axioma converge na poliacutetica moderna onde nenhuma autoridade se conserva no jogo do poder quando natildeo goza de boa reputaccedilatildeo e grande simpatia junto ao povo

52 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 21 53 Biografia Niccoloacute Machiavelli ndash 1469-1527 Disponiacutevel em wwwplmitorjnet Acessado em 15 de dezembro de 2010

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

184

Ainda haacute pessoas que o apresentam como defensor da forccedila e do absolutismo enquanto outras o exaltam na qualidade de conselheiro dos governantes republicano e amigo das leis

Natildeo obstante todas estas controveacutersias e talvez exatamente por causa delas a filosofia empiacuterica e cientiacutefica de Maquiavel se tornou um marco inestimaacutevel na trajetoacuteria da ciecircncia poliacutetica e universal

Como explicar que Maquiavel poreacutem eacute um verdadeiro ponto de referecircncia no desenvolvimento da ciecircncia poliacutetica O fato eacute que em decorrecircncia dos ensinamentos dele a arte da poliacutetica natildeo estaacute mais ligada agrave formulaccedilatildeo de ideais abstratos e por muitas vezes utoacutepicos de um bem comum formulado com suporte num ideal cristatildeo mas na observaccedilatildeo da praacutetica da accedilatildeo poliacutetica e na formulaccedilatildeo clara dos objetivos que se intente alcanccedilar Tambeacutem estaacute se vendo que a eacutetica na poliacutetica natildeo deve ser concebida e avaliada nos mesmos termos que a eacutetica individual com suas normas do bem e do mal A filosofia contemporacircnea fundamenta-se na efetiva perseguiccedilatildeo de eficaacutecia vigor patrioacutetico anaacutelise aguda das circunstacircncias na procura do fortalecimento e conservaccedilatildeo da paacutetria

Natildeo deve ser esquecido o fato de que nos primeiros tempos Maquiavel foi incompreendido por ser aquele expectador objetivo do processo poliacutetico que se manifesta nos seus escritos Na verdade a arte poliacutetica maquiveliana sempre procurou assentar-se na verdade efetiva das coisas ignorando a busca de como as coisas deveriam ser Com o realismo que lhe eacute peculiar o autor florentino pretendia apenas ensinar ao priacutencipe a fugir do imaginaacuterio recusando imagens idealizadas pela natureza humana mas irreais e que nunca existiram Para evitar a ruiacutena e tornar-se vitorioso o detentor do poder deveria se fixar no real e considerar os homens como eles realmente satildeo

Desempenhando o papel de mestre dos priacutencipes legou agrave contempo-raneidade um dos seus mais relevantes ensinamentos O caminho para o governante se tornar eficaz e tambeacutem responsaacutevel eacute basear seus empreen-dimentos em informaccedilatildeo correta previsatildeo de futuros imprevistos diagnoacutestico oportuno caacutelculo exato dos resultados previsiacuteveis tomada de decisatildeo na hora certa e muita sabedoria

Pretendendo dar conselhos aos priacutencipes prestou um excelente serviccedilo agrave humanidade Aconselhou a prudecircncia para todas as geraccedilotildees Sendo cauteloso o homem procura logo a cura de seus males em vez de tomar providecircncias tardias muitas vezes sem chances de remediaacute-los

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

185

Ensinou a todos a ver aleacutem das aparecircncias e descobrir o essencial aquilo que fica escondido sob os bastidores do teatro da vida

Evitar sempre a neutralidade e a dubiedade foi outra importante liccedilatildeo A pessoa que natildeo assume corajosamente sua verdadeira posiccedilatildeo natildeo inspira credibilidade e jamais conseguiraacute a confianccedila a lealdade e a afeiccedilatildeo de outrem

Conclamou Maquiavel as geraccedilotildees a natildeo se deixarem abater diante das crises ou dos momentos de infortuacutenio Ao contraacuterio eacute preciso lutar sempre pelas suas convicccedilotildees e acreditar firmemente que vencer sem luta eacute triunfar sem gloacuteria

Apoacutes a divulgaccedilatildeo de sua obra mais importante O Priacutencipe Maquiavel teve suas reflexotildees poliacuteticas muito mal interpretadas confor-me jaacute expresso E esta incompreensatildeo perdura por seacuteculos ateacute os dias atuais Basta que se procure num dicionaacuterio o significado do vocaacutebulo maquiaveacutelico e logo se encontra como sinocircnimo deste termo rdquoindiviacuteduo que age com astuacutecia perfiacutedia ou malvadezardquo Interpretaccedilotildees dessa natureza nada tecircm de verdadeiro Sempre satildeo resultantes de leigos desinformados ou mesmo acadecircmicos que natildeo efetuam uma anaacutelise mais atenta e cuidadosa sobre as posiccedilotildees poliacuteticas de Maquiavel E destarte natildeo atingem a profundidade do complexo ideaacuterio maquiveliano Nesta perspectiva acredita-se que a maior ofensa que se possa cometer contra o Notaacutevel Escritor Florentino eacute essa heranccedila maldita em torno de seu nome

O Priacutencipe eacute na atualidade um dos livros mais polecircmicos e mais lidos do mundo Sem qualquer duacutevida um verdadeiro best-seller Conteacutem subsiacutedios para todo e qualquer leitor que queira se aprofundar no conhecimento das regras e artiacutefices da arte de governar Considerado como um verdadeiro breviaacuterio sobre poliacutetica tornou-se livro de cabeceira para vaacuterios governantes Determinar o fim da influecircncia doutrinaacuteria medieval sobre a investigaccedilatildeo poliacutetica contemporacircnea foi sua importacircncia funda-mental

Apesar do seu intenso vigor patrioacutetico o Diplomata Florentino morreu sem presenciar a realizaccedilatildeo do seu sonho maior ver sua paacutetria - a Itaacutelia renascentista ndash cintilando no panorama das naccedilotildees fortes unidas estaacuteveis e desenvolvidas E poreacutem por meio das paacuteginas de O Priacutencipe transmitiu um admiraacutevel cabedal de conhecimentos sobre a loacutegica que rege a conquista e a manutenccedilatildeo do poder

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

186

Por tudo o que se abordou neste trabalho acredita-se firmemente que com justa razatildeo Maquiavel merece o cognome de ldquopai da ciecircncia poliacutetica modernardquo

Referecircncias Bibliograacuteficas

AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e razatildeo de Estado Satildeo Paulo sEd dezembro de 2008

BATISTA Flaacutevio Donizete Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Disponiacutevel em http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 25 de ou-tubro de 2010

BELLOZO Edson Maquiavel e as origens do pensamento poliacutetico moderno Disponiacutevel em wwwminiwebcombrcienciasartigosmaquiavel Aces-so em 15-09-2010

BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Textos de Aula Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Internacionais Brasiacutelia UnB sd

BIRARDI A e Castelani G R Desmistificando Maquiavel Ensaio acerca de sua histoacuteria obras e conceitos Disponiacutevel em httpwwwklepsidra netklepsidra4maquiavelhtn Acessado em 18092010

BIGNOTTO Newton Maquiavel Republicano Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1991

BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

CAILLEacute Alain LAZZERI Christian SENELLART Michel (organizado-res) Histoacuteria argumentada da Filosofia Moral e Poliacutetica Satildeo Leopoldo Editora UNISINOS 2003

BARROS Vinicius Soares de Campos 10 liccedilotildees sobre Maquiavel Petroacute-polis Editora Vozes 2010

FRANCO Afonso Arinos de Mello O Pensamento poliacutetico na Renas-cenccedila Cadernos da UnB Humanidades Brasiacutelia UnB 1980 p 19-27

DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores Ltda 1984

ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao pensamento poliacutetico de Maquiavel Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1979

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

187

______ O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 18-52

GREGORIO Fernando Ceacutesar Aplicando Maquiavel no dia a dia Satildeo Paulo Madras Editora Ltda 2008

GRUPPI Luciano Tudo comeccedilou com Maquiavel Porto Alegre L amp PM Editores 1988

LARIVAILLE Paul A Itaacutelia no tempo de Maquiavel (Florenccedila e Roma) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

MAQUIAVEL O Priacutencipe Comentado por Napoleatildeo Bonaparte Traduccedilatildeo Pietro Nassetti Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

MAQUIAVEL Nicolau Comentaacuterios sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1992

MOREIRA Marcilio Marques O Pensamento Poliacutetico de Maquiavel Textos de aula Brasiacutelia Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Interna-cionais sd

MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984

REALE Giovanni e ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Do Huma-nismo a Descartes Satildeo Paulo Paulus 2004

RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002

RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no2 Recife Unicap 1986 p 43-53

RODRIGUES Ruy Martinho Priacutencipe Lobo e Homem Comum (Anaacutelise das Ideacuteias de Maquiavel Hobbes e Locke) Fortaleza UFC 1997

RUSSELL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969

SANTOS Vivian Matias dos Niccolo Machiavelli moralista ou intelec-tual orgacircnico Em Mediaccedilotildees v12 n2 p 175-187 juldez 2007

SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988

STRATHERN Paul Maquiavel (em 90 minutos) Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

188

WEBER Hingo O priacutencipe amp Maquiavel sem ideologias Petroacutepolis Editora Vozes 2007

SADEK Maria Nicolau Maquiavel o cidadatildeo sem Fortuna e o intelectual de virtugrave Em WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2003

WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Licenciada em Filosofia e Histoacuteria pela Faculdade de Filosofia do Cearaacute e

Especialista em Gestatildeo Puacuteblica pela Universidade Vale do Acarauacute

Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos Doutor em Teologia pela Pontiacutefica Universidade Gregoriana

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

189

SOBRE A RELACcedilAtildeO DINAcircMICA DA REALIDADE SUPRA-SENSIacuteVEL SEGUNDO PROCLO

SUR LA RELATION DYNAMIQUE DE LA REacuteALITEacute

SUPRASENSIBLE SELON PROCLUS

Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha

Resumo

O presente artigo tem por objetivo demonstrar porque as relaccedilotildees dinacircmicas satildeo imprescindiacuteveis na filosofia procleana Para tanto parte-se da problemaacutetica da inexis-tecircncia de movimento na realidade supra-sensiacutevel mostrando que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento de deslocamento Defende-se pois que natildeo se trata em Proclo (412 ndash 485 dC) de uma sucessatildeo de eventos e nem de uma mudanccedila na substacircncia Desta forma apoacutes a anaacutelise do movimento de processatildeo parte-se para a consideraccedilatildeo do papel das triacuteades da realidade incorpoacuterea para soacute entatildeo verificar a importacircncia das relaccedilotildees dinacircmicas na multiplicaccedilatildeo e diversidade dos seres Apoacutes ser estudado o papel das triacuteades seraacute possiacutevel perceber que natildeo eacute o movimento o responsaacutevel pela diversidade mas a relaccedilatildeo dinacircmica que a possibilita Assim este trabalho se fundamenta nos Elementos Teoloacutegicos de Proclo

Palavras-chave Proclo Triades Relaccedilatildeo Dinacircmica

Resumeacute Lrsquoobjectif de cette recherche est montrer que les relations dynamiques sont indispensables dans la philosophie proclienne Alors il part de la question de lrsquoabsence du mouvement dans les reacutealiteacutes suprasensibles montrant que le mouvement de oprocession nrsquoest ni une sucession drsquoeacuteveacutenements ni un changement dans la substance Apregraves analyser le mouvement de procession il fait lrsquoexamen de la function des triades dans la reacutealiteacute incorporelle et veacuterifie lrsquoimportance des relations dynamiques dans la multiplication et dans la diversiteacute des ecirctres Apregraves lrsquoeacutetude de la function des triades il sera possible comprendre que nrsquoest pas le mouvement le responsable pour la diversiteacute mais la relation dynamique qui la rend possible Cet eacutetude est fondamenteacutee dans lrsquooeuvre Eacuteleacutements de Theacuteologie de Proclus (412-485 a C)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

190

Mots-cleacutes Proclus Triades Relation Dynamique

Introduccedilatildeo

Herdeiro da filosofia pagatilde Proclo (412-485 dC) eacute considerado o uacuteltimo expoente de destaque da filosofia antiga a atuar na escola de Atenas1 Como neoplatocircnico as teses do Bizantino satildeo marcadas pela tentativa de conciliaccedilatildeo das doutrinas platocircnicas aristoteacutelicas e pitagoacutericas Por estar inserido no contexto das escolas da Antiguidade Tardia os escritos do filoacutesofo satildeo caracterizados por sua sistematicidade Neste sentido o pensador ao expor a passagem da unidade agrave multiplicidade natildeo admite passagens abruptas e portanto natildeo concebe que do Uno surja imediatamente a multiplicidade em sua complexidade isto eacute ele natildeo concebe uma passagem imediata do Uno ao Noucircs

Entretanto ainda que a passagem do Uno ao muacuteltiplo seja algo fundamental na filosofia procleana ela encerra um problema Acontece que Proclo na realidade supra-sensiacutevel natildeo admite movimento na substacircncia Diante disto partindo da ideia platocircnica de que ldquomudanccedila eacute movimentordquo2 a diferenccedila entre os seres da realidade imaterial natildeo pode ser explicada Uma vez que sem movimento natildeo haacute produccedilatildeo Assim para solucionar tal problemaacutetica parte-se da hipoacutetese de que a diferenccedila na realidade imaterial natildeo eacute o resultado de um movimento de deslocamento ou da proacutepria substacircncia dos seres mas da relaccedilatildeo entre os princiacutepios que os constituem Para verificar tal hipoacutetese eacute preciso iniciar a anaacutelise com o

1 Fechada em 529 por Justiniano de acordo com o decreto que afirma ldquoNingueacutem que tenha sido contagiado por tais heresias poderaacute desempenhar grau no exeacutercito ou exercer ofiacutecios puacuteblicos nem na condiccedilatildeo de professor que se ocupe de alguma disciplina () Proibimos que seja ensinada qualquer doutrina da parte daqueles que satildeo afetados pela insacircnia dos iacutempios pagatildeosrdquo (REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008 p 206-208)Tal decreto que afetou profundamente as escolas de vertente pagatilde fez com que pensadores da Academia como Simpliacutecio (490 ndash 560 dC) e Damascius (458 ndash 583 dC) fugissem para Peacutersia A fim de dar continuidade aos estudos permaneceram por volta de 531532 na corte de Khussraw I pois o rei da Peacutersia se mostrava simpatizante do pensamento grego Somente em 533 por ocasiatildeo do ldquotratado de paz eternardquo assinado entre os persas e os bizantinos retornaram ao Ocidente Sobre a fuga dos pensadores pagatildeos para a Peacutersia ver SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012 paacuteg 62-74 2 Parmecircnides 162c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

191

movimento de processatildeo pois eacute por ele que primeiramente Proclo explica a saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade

1 O movimento de processatildeo

De acordo com a filosofia procleana a multiplicidade soacute pode ser pensada se a unidade for pressuposta Assim toda multiplicidade participa de tal forma da unidade que a sua natildeo participaccedilatildeo implicaria em uma multiplicaccedilatildeo infinita o que seria um engano Pois se a multiplicidade natildeo participasse da unidade ou a proacutepria multiplicidade seria una ou natildeo-una e no caso de ser natildeo-una ou seria muitas ou nada Admitir que ela eacute nada eacute cair num contrassenso pois como algo (um existente) poderia ser nada Ou ainda como pode haver geraccedilatildeo se o ser natildeo pode advir do nada Por outro lado a tese de que a multiplicidade existe precisa de uma anaacutelise cuidadosa uma vez que afirmar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla pode levar a aporias jaacute que sua gecircnese natildeo seria explicada fazendo com que se caia numa regressatildeo infinita3

A regressatildeo aconteceria porque ao sustentar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla e natildeo una se admite que cada parte que a compotildee tambeacutem eacute muacuteltipla de modo que nunca se chega a um princiacutepio Logo haacute uma necessidade de contornar a ideia da regressatildeo ad infinitum Para tanto o princiacutepio como unidade eacute posto como indispensaacutevel mediante a ideia de que se fossem dois ou eles seriam iguais ou diferentes Sendo iguais se trataria de apenas uma substacircncia ou seja seriam um sendo diferentes um teria de ser o primeiro derivando entatildeo um do outro Se os dois estivessem no mesmo patamar nenhum seria o primeiro o que significaria a existecircncia de algo acima deles que os deu origem Entatildeo o que pode se perceber eacute que natildeo importa o caminho seguido a razatildeo sempre leva a um primeiro que eacute fundamentalmente um4 Assim este Um no neoplatonismo eacute posto como unidade absolutamente simples da qual toda multiplicidade participa

Proclo entatildeo faz surgir da unidade toda multiplicidade Esta multiplicaccedilatildeo da unidade originaacuteria se daacute por meio do movimento de processatildeo que eacute composto por trecircs momentos muito distintos mas que

3 PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995 Proposiccedilatildeo 1 4 Cf op cit Proposiccedilatildeo 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

192

estatildeo estreitamente interligados Satildeo eles Processatildeo (πρooacuteδος) Perma-necircncia (μονή) e Retorno (ἐπιστροφή) Os trecircs momentos se distinguem pelo fato de que no primeiro (πρooacuteδος) haacute uma separaccedilatildeo entre a causa e seu efeito no segundo (μονή) tem-se que mesmo que haja a processatildeo eacute preciso que o produto permaneccedila em sua causa e no terceiro (ἐπιστροφή) o efeito retorne agrave causa pelo desejo de nela participar Entretanto a ligaccedilatildeo entre estes eventos natildeo acontecem em uma ordem linear mas se datildeo simultaneamente5 Posto que se soacute procedesse natildeo haveria qualquer comunicaccedilatildeo entre o que produz e o que eacute produzido se soacute permanecesse natildeo haveria produccedilatildeo e como pode haver retorno sem que haja separaccedilatildeo6 Portanto por exigir tanto o sair como o permanecer na causa o movimento de processatildeo acontece de modo circular

A processatildeo guarda entatildeo algumas leis inviolaacuteveis que garantem que todas as etapas aconteccedilam A primeira lei atesta que toda causa produtiva produz por super abundacircncia de potecircncia Neste sentido Proclo sustenta que ldquo[] tout ce qui produit demeure tel qursquoil est et parce qursquoil demeure tel son deacuteriveacute procegravede Crsquoest donc par la pleacutenitude et la perfection dont il jouit qursquoil fait subsister ses deacuteriveacutes sans se mouvoir ni srsquoamoindrirrdquo7 A segunda que estaacute em concordacircncia com a primeira defende que devido agrave super abundacircncia de potecircncia o produtor natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo ao engendrar seus efeitos8 A terceira legitimando todo o momento da processatildeo defende a tese de que toda produccedilatildeo soacute se efetiva por meio da semelhanccedila9 entre produto e produtor10

A menccedilatildeo agraves leis de processatildeo prepararam o terreno para o esclarecimento da multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases por meio da unidade Isto

5 Para Caram a simultaneidade dos momentos da processatildeo se daacute porque para os neoplatocircnicos a categoria da causalidade natildeo envolve uma sequecircncia temporal ou mesmo a noccedilatildeo moderna de eventos sucessivos que pressuporia um lsquoantes e depoisrsquo jaacute que a relaccedilatildeo natildeo eacute entre eventos mas substacircncias CfCARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesrevistasthemata 49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015 p108 6 PROCLUS Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 30 7 Op cit Proposiccedilatildeo 27 8 Segundo Proclo ldquoToute cause qui produit autre qursquoelle-mecircme produit ses deacuteriveacutes et ce qui les suit en demeurant en elle-mecircmerdquo Op cit Proposiccedilatildeo 26 9 Cf Caram A semelhanccedila em Proclo eacute a capacidade de manter a caracteriacutestica do ser originaacuterio poreacutem em um grau menor CARAM op cit 2014 p 108 10 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 28-29

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

193

porque de acordo com tais leis o produtor eacute sempre superior a tudo o que vem depois dele tendo em vista que natildeo sofre qualquer diminuiccedilatildeo assegurando assim a continuidade do movimento e permite que aquilo que eacute produzido seja semelhante11 ao produtor A semelhanccedila se daacute desta forma porque o ser do produzido adveacutem do proacuteprio produtor ao dar ao produzido da sua proacutepria substacircncia Neste sentido o Diadoco sustenta que ldquoTout dispensateur qui agit par son ecirctre (τὸτῷεἰναιχορηγοῦν) est lui-mecircme de faccedilon primordiale ce qursquoil communique aux beacuteneacuteficiaires de ses dispensationsrdquo12 Partindo de tal proposiccedilatildeo o sucessor do pensamento platocircnico demonstra no que consiste a semelhanccedila entre causa e efeito Ainda eacute preciso contudo apontar as implicaccedilotildees da semelhanccedila no movimento de processatildeo

Quando se fala em semelhanccedila a primeira coisa a ser vista eacute que na processatildeo o que se revela no efeito eacute a proacutepria manifestaccedilatildeo da causa uma vez que como mencionado o produto possui o mesmo ser do produtor dado que ele eacute a continuidade ontoloacutegica da sua causa A semelhanccedila leva o produto a desejar retornar ao produtor pois soacute na causa que eacute superior pode encontrar perfeiccedilatildeo O desejo de retornar soacute existe porque haacute uma comunicaccedilatildeo ininterrupta entre eles Tal comunicaccedilatildeo eacute tambeacutem conexatildeo que na processatildeo estrutura o cosmo permitindo que a causa esteja sempre em contato com seus efeitos Deste modo o movimento acontece de modo circular no qual o efeito sai da causa ao mesmo tempo em que permanece nela e a ela retorna em um ciclo interrupto onde o princiacutepio e o fim satildeo o mesmo Sobre isto Proclo assevera

Tout ecirctre qui procegravede drsquoun principe et se convertit vers lui a une activiteacute cyclique Si cet ecirctre se convertitvers ce dont il procegravede il fait coiumlncider sa fin avec son principe et son mouvement est unique et continu qursquoil srsquoeacutecarte du repos originel ou qursquoil srsquoy rapporte Crsquoest pourquoi tous les ecirctres accomplissent un processus cyclique qui va de leurs causes agrave leurs causes Il est des cycles plus amples et il en est de plus court selon que les conversions se portent aux cause immeacutediatement supeacuterieures ou agrave de plus eacuteleveacutees jusqursquoau principe universal13

11 Platatildeo define semelhanccedila como aquilo que eacute outro mas imita o objeto ao qual eacute semelhante a fim de conservar sua beleza No entanto o faz mudando de proporccedilatildeo Cf Platatildeo Sofiacutesta 136 a 12 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 18 13 Op cit Proposiccedilatildeo 33

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

194

Na processatildeo a semelhanccedila vem em primeiro lugar sendo ela quem proporciona a conversatildeo e permanecircncia do causado na causa Todavia natildeo haacute multiplicaccedilatildeo somente com semelhantes pois neste caso o que diferiria o produto do produtor a causa do causado Para que haja distinccedilatildeo entre os elementos eacute preciso que exista alguma caracteriacutestica diferente entre eles e uma vez que a processatildeo se daacute pela multiplicaccedilatildeo do ser do produtor natildeo pode haver diferenccedila entre a constituiccedilatildeo do ser da causa e do causado Assim a priori a diferenccedila entre causa e efeito se apresenta como diferenccedila de potencialidade14 Isto porque para Proclo eacute imprescindiacutevel que o produto seja inferior em potecircncia ao seu produtor Portanto se por um lado na multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases a semelhanccedila eacute necessaacuteria por outro a dessemelhanccedila tambeacutem o eacute15

A diferenccedila entatildeo consiste em potecircncias diferentes que faz com que os elementos que compotildeem o sistema procleano faccedilam parte de uma hierarquia na qual quanto mais proacuteximo o produto estiver da sua causa mais perfeito e potente ele eacute16 Isso porque aqueles que estatildeo mais proacuteximo recebem em maior grau a potecircncia produtiva e no mesmo grau em que recebe a potecircncia recebem o ser da mocircnada originaacuteria Ao ter um maior grau de ser e de potecircncia o produtor eacute para o que vem em seguida causa bem e perfeiccedilatildeo fazendo com que este segundo deseje dele participar e natildeo somente o deseje mas necessite de tal participaccedilatildeo para alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Logo a correspondecircncia entre perfeiccedilatildeo constituiccedilatildeo e partici-paccedilatildeo se estabelece partindo de uma hierarquia na qual os seres que estatildeo mais proacuteximos do princiacutepio de sua seacuterie satildeo superiores e servem como degraus para perfeiccedilatildeo daqueles que satildeo produzidos por uacuteltimo

A perfeiccedilatildeo que se daacute mediante a participaccedilatildeo na causa como jaacute foi dito soacute eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre os termos Assim o desejo do produto de participar do seu produtor eleva o produtor ao patamar de bem No entanto se o primeiro bem de cada seacuterie natildeo pode ser partici-pado entatildeo como aquele que soacute existe por meio da participaccedilatildeo em outro pode participar daquele que eacute imparticipado Tal possibilidade se daacute pela existecircncia de um elemento intermediaacuterio que na filosofia procleana eacute sempre fundamental O intermediaacuterio no que diz respeito agrave participaccedilatildeo eacute

14ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur est drsquoordre supeacuterieur agrave son produit PROCLUS Op cit Proposiccedilatildeo 7 15 ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur esr drsquoordre supeacuterieur agrave son produitrdquoop cit 1995 Proposiccedilatildeo 7 16 Op cit Proposiccedilatildeo 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

195

posto como participado aquele pelo qual o participante adquire sua perfeiccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoPuisqursquoil eacutetait imparfait avant la participation et est devenu parfait par la participation le participant est entiegraverement subordonneacute au participeacute dans lrsquoordre de la perfection anteacuterieure il est infeacuterieur au participeacute qui le rend parfaitrdquo17

Tem-se entatildeo a existecircncia de uma triacuteade composta por hipoacutestases por meio de uma causa uacutenica satildeo elas o imparticipado o participado e o participante O imparticipado eacute segundo Proclo aquele que tem em si a razatildeo de sua proacutepria unidade18 Nele estaacute toda a potecircncia e capacidade de produzir ou seja eacute a mocircnada19 de uma seacuterie que surge mediante ele mesmo O que eacute produzido imediatamente pelo imparticipado eacute o partici-pado e o que eacute produzido em seguida participante Ambos participante e participado satildeo semelhantes ao imparticipado pois dele recebem sua substacircncia Entretanto satildeo dessemelhantes porque na medida em que saem de sua causa satildeo potencialmente inferiores a ela A inferioridade de sua potecircncia eacute determinante em sua imperfeiccedilatildeo No entanto eacute exatamente na imperfeiccedilatildeo e contemplaccedilatildeo do perfeito que estaacute o desejo de participar

A triacuteade referente agrave participaccedilatildeo estaacute diretamente associada agravequela referente agrave perfeiccedilatildeo pois a medida de perfeiccedilatildeo eacute a mesma da participaccedilatildeo Assim o ser imparticipado corresponde ao Bem o participado ao autohipostaacutetico20 e os outros seres aqueles que tecircm sua existecircncia partindo de outros ao participante Estas triacuteades por sua vez equivalem agravequela referente ao Imoacutevel Automotor e Heteromotor O que torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que sejam utilizados termos diferentes levando em consideraccedilatildeo um predicado o pensador estaacute sempre se referindo ao mesmo elemento dentro de uma seacuterie Ou seja natildeo importa se remete ao Imoacutevel Imparticipado ou Bem quando se evoca um destes termos a referecircncia eacute sempre ao princiacutepio da seacuterie e o mesmo acontece com os outros elementos21 Por esta razatildeo por meio de uma unidade que aparece como Bem Imoacutevel ou

17 PROCLUS op cit Proposiccedilatildeo 24 18 Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 23 19 Cf Proclo A Mocircnada na filosofia procleana eacute o princiacutepio originaacuterio de toda seacuterie Eacute dela que toda multiplicidade mediante a semelhanccedila tem origem op cit Proposiccedilatildeo 21 20 Autohipostaacutetico eacute todo aquele que existe em si e por si ou seja tem em si mesmo a razatildeo de sua existecircncia e constituiccedilatildeo sendo portanto perfeito 21 A saber quando se fala em participado automotor ou autohipostaacutetico do termo intermediaacuterio que faz a ligaccedilatildeo entre o princiacutepio Quando cita os seres cuja existecircncia dependente de outros estaacute sempre se referindo ao uacuteltimo termo da seacuterie ou seja o participante que eacute tambeacutem heteromotor e natildeo eacute causa de sua proacutepria perfeiccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

196

Imparticipado surge um elemento que eacute estreitamente semelhante a ela pois dele recebe o seu ser

Agrave vista do exposto nesta primeira anaacutelise a diferenccedila caracteriacutestica da multiplicidade se mostrou tatildeo somente como resultado da diferenccedila de potencialidade entre produto e produtor O que se observa entretanto ao investigar a multiplicidade ou mesmo a sua relaccedilatildeo com a unidade eacute que a diferenccedila que existe nela natildeo se limita a uma desigualdade de potecircncia como bem se observa na constituiccedilatildeo do Noucircs e na proacutepria diversidade dos seres Por isto eacute preciso ir mais a fundo na investigaccedilatildeo a fim de descobrir a gecircnese da diferenccedila Afinal quando se fala da dessemelhanccedila mediante os graus de potencialidade tem-se jaacute anteriormente uma diver-sidade presente nas mocircnadas pelas quais as seacuteries satildeo derivadas Com o intuito de aprofundar o exame referente agrave origem da diferenccedila portanto eacute necessaacuterio analisar o papel das triacuteades na geraccedilatildeo dos seres

2 A organizaccedilatildeo triaacutedica da realidade sobre o papel de Peacuteras Apeiacuteron e Mixto

O sistema procleano de hipoacutestases eacute disposto em triacuteadas Natildeo satildeo somente as hipoacutestases que satildeo ordenadas triadicamente pois esta forma de organizar perpassa todos os acircmbitos da filosofia do Bizantino Prova disto eacute a relaccedilatildeo que daacute origem a toda realidade a saber o movimento de processatildeo que como visto eacute constituiacutedo por trecircs momentos indispensaacuteveis e indissociaacuteveis Aleacutem da triacuteade presente no movimento de processatildeo a proacutepria realidade incorpoacuterea eacute sistematizada desta forma sendo composta por trecircs hipoacutestases divina inteligiacutevel e psiacutequica Cada uma das realidades mencionadas guarda particularidades que soacute dizem respeito a elas mesmas Poreacutem satildeo semelhantes na perspectiva de ser cada uma subdivi-dida em triacuteades

Por estar presente em todos os momentos da teoria do Diadoco o entendimento das triacuteades eacute essencial para que o pensamento do autor seja compreendido principalmente quando se trata da concepccedilatildeo do desdobra-mento da multiplicidade mediante a unidade Sobre a importacircncia das triacuteades na tese procleana Bezerra faz a seguinte afirmaccedilatildeo ldquochegamos assim agrave ideia das triacuteades como mediaccedilatildeo entre a multiplicidade constante das coisas e a unidade superior a todo devirrdquo22 A triacuteade como movimento de processatildeo eacute o

22 BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006 p 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

197

elemento motor da participaccedilatildeo haja vista ser determinante na constituiccedilatildeo dos seres Tal constituiccedilatildeo por sua vez estaacute diretamente relacionada agrave mobilidade dos termos que compotildee a realidade incorpoacuterea e corpoacuterea A estrutura triaacutedica portanto faz existir uma mediaccedilatildeo dinacircmica que proporciona a continuidade ontoloacutegica daquilo que eacute produzido permitindo o contato do Uno com tudo o que vem em seguida Neste sentido Caram assegura que ldquoo sistema procleano eacute uma trama de relaccedilotildeesrdquo23

Eacute esse complexo de relaccedilotildees que permite a causalidade pois os encadeamentos natildeo possuem um caraacuteter temporal uma vez que natildeo se trata de um antes e depois relativo ao vir-a-ser mas tatildeo somente a uma questatildeo loacutegica explicativa Assim a passagem da unidade agrave multiplicidade eacute feita mediante o estabelecimento de um sistema no qual partindo da unidade um atributo eacute gerado e mantido por meio das triacuteades permitindo que a comunicaccedilatildeo se estenda do primeiro ao uacuteltimo termo de uma ordem Eacute importante observar entretanto que sendo o Uno a Causa Prima ele transcende a todas as realidades de maneira a estar separado de qualquer ordem Ou seja natildeo se pode dizer que o Uno faz parte de qualquer seacuterie da realidade incorpoacuterea pois transcende a todas Trouillard neste sentido defende que o Uno natildeo estaacute em nenhuma ordem a qual produz24 diferente das demais causas que satildeo o centro de suas ordens

No que respeita agrave realidade supra-sensiacutevel a primeira hipoacutestase que descende diretamente do Uno eacute a divina o universo das heacutenadas Depois delas haacute a realidade inteligiacutevel e em seguida a psiacutequica A hipoacutestase divina eacute aquela na qual se encontra o iniacutecio da multiplicidade embora seja apenas uma multiplicidade quantitativa E mesmo que sejam muitas elas se caracterizam pela unidade dado que eacute a primeira esfera que surge atraveacutes do Uno Neste sentido com base na ideia de que o Uno eacute Deus25 e Bem Proclo defende que a multiplicidade dos deuses eacute unitaacuteria26 tendo

23 CARAM op cit 2014 p 105 24 Cf TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982 p 54 25 Eacute valido lembrar que apesar de ser denominado Deus o Uno soacute possui esta nomenclatura por ser causa e portanto dar origem e manter todos os seres aleacutem de ser objeto de desejo de todos uma vez que eacute o Sumo Bem 26 O caraacuteter transcendente do Uno o leva a ser considerado como Deus mas um deus que transcende a todos os deuses por ser Causa Primeira e objeto de desejo de todas as coisas de modo a estar acima de toda ordem Os primeiros elementos que satildeo deles originados satildeo as Heacutenadas que embora extremamente semelhantes a ele lhe satildeo potencialmente inferior Elas tecircm assim o papel intermediaacuterio entre a realidade divina e inteligiacutevel sendo assim

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

198

em vista que o Diadoco natildeo concebe saltos entre os termos da processatildeo e as Heacutenadas satildeo as primeiras coisas produzidas Apoacutes as Heacutenadas haacute a realidade inteligiacutevel onde se encontra a diversidade de maneira mais concreta tendo em vista que nela haacute inuacutemeras organizaccedilotildees nas quais o iniacutecio da diversidade dos seres eacute manifesto

A estrutura loacutegica da realidade inteligiacutevel procleana eacute interpretada por Caram27 como o fundamento de toda hipoacutestase pois a divisatildeo em Ser Vida e Intelecto tanto reflete os momentos da processatildeo quanto o ciclo das almas28 e o mundo do devir29 Assim a indispensabilidade da triacuteade inteli-giacutevel natildeo se refere somente agrave sua influecircncia no que eacute engendrado em seguida mas agrave unidade presente no Espiacuterito e na totalidade do cosmo Por esta razatildeo a ordem inteligiacutevel encontra na triacuteade Ser Vida e Pensamento sua unidade fundamental na medida em que pensamento e ser estatildeo unidos de tal forma que o pensamento eacute sempre pensamento do ser e o ser eacute sempre ser do pensamento Deste modo ldquo[] na Inteligecircncia estatildeo ambos Ser e Vida por participaccedilatildeo e cada um deles intelectualmente pois o ser da inteligecircncia eacute cognoscitivo e sua vida eacute conhecimentordquo30 A unidade entre Ser e Pensamento daacute ao Noucircs a dinacircmica que se manifesta como a vida que se faz presente no Espiacuterito e que medeia a relaccedilatildeo entre aqueles dois termos31

Proclo assegura a unidade do Espiacuterito ao declarar que cada um dos elementos que o compotildee estaacute presente nos demais embora chame atenccedilatildeo ao fato de que mesmo que tudo esteja em tudo cada um estaacute em seu modo proacuteprio O Diadoco entatildeo apresenta trecircs maneiras de existir essencial-mente vitalmente e intelectualmente32 Cada modo corresponde a um elemento que faz parte da esfera inteligiacutevel e a ligaccedilatildeo entre os trecircs soacute eacute

muacuteltiplas quanto sua quantidade mas unitaacuterias quanto aos seus atributos pois os uacutenicos que podem ser percebidos satildeo bondade e unidade PROCLO Op cit Proposiccedilatildeo 113 27 Cf CARAM op cit 2014 p 107 28 Para Proclo ldquoToda alma eacute uma substacircncia vital e cognoscitiva um princiacutepio de vida substancial e cognoscitiva e um principio de conhecimento por ser uma substacircncia e um princiacutepio de vidardquo PROCLO op cit proposiccedilatildeo 197 (traduccedilatildeo nossa) Cf TRUILLARD O ciclo da alma eacute composto por ser ou substacircncia vida ou potecircncia e pensamento ou atividade p 60 68 29 Cf TRUILLARD op cit 1982p 60 As ordens do reino do devir satildeo mineral vegetal e sensitivo 30 PROCLO op cit Proposiccedilatildeo 103 (traduccedilatildeo nossa) 31 ldquoSin el acto de la vida que opera la mediacioacuten entre los dos elementos el espiacuterito no tendria ninguna conciencia del proacuteprio ser e de la proacutepria esencia [] Ella en cuanto pensante e y existente funda el acto de identida que ocurre entre el ser y el espiacuterito y deviene mediadora dela triadicidad del νοῦςrdquo CARAM op cit 2014 p 117 32 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 103

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

199

possiacutevel porque cada um deles eacute formado pelos mesmos princiacutepios Limite e Ilimitado Desta maneira eacute possiacutevel dizer que cada elemento que faz existir a triacuteade do Espiacuterito eacute formado por outra triacuteade cujos princiacutepios satildeo comuns Ou seja 1) finito infinito e Ser 2) finito infinito e vida e 3) finito infinito e pensamento33 satildeo triacuteades que produzem triacuteades

Limite e Ilimitado satildeo a diacuteade pela qual se manifesta o Uno Satildeo o princiacutepio de todo ser e por esta razatildeo satildeo os elementos centrais para a explicaccedilatildeo da produccedilatildeo da multiplicidade haja vista o Uno soacute produzir semelhantes34 Esses dois princiacutepios satildeo causa de todo ser aleacutem de serem a primeira manifestaccedilatildeo do Uno de maneira que tudo que se segue eacute composto por eles Neste sentido DrsquoAncona atesta que ldquoCes deux priacutencipes consideres par Proclos comme Supremes en tant que responsables de chaque manifestation de stabiliteacute et de changement dans lrsquounivers tout entierrdquo35 Para Proclo ateacute as Heacutenadas que estatildeo no mesmo plano do Uno por fazerem parte da realidade divina procedem dos dois princiacutepios36 Mesmo que os dois princiacutepios soacute sejam percebidos nos seres ou seja como mistura entretanto cada princiacutepio existe por si mesmo e independente um do outro37 - o que leva agrave necessidade de analisar cada um isoladamente

Peraacutes ou o Limite eacute a causa da semelhanccedila com o Uno que segundo Berger representa o Primeiro Princiacutepio por sua estabilidade e concentraccedilatildeo em si mesmo dando a todos que dele participa integridade unidade e estabilidade Por tais donativos que concernem a suas proacuteprias caracteriacutes-ticas ele eacute anaacutelogo ao uno e ao mesmo38 Assim a accedilatildeo do limite por tambeacutem ser entendido como determinante consiste na unificaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas satildeo do Limite como existente em si e por si separado do Ilimitado39 O que acontece eacute que Limite e Ilimitado no entanto na esfera do real soacute podem ser encontrados unidos pois soacute sua uniatildeo ocasiona o primeiro ser o Ser verdadeiramente ser40 Poreacutem antes da mistura como assegura Proclo eacute necessaacuterio que tais princiacutepios existam em si e por si mesmos ainda que sua accedilatildeo soacute se realize na mistura Mas antes de passar

33 Cf BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840 p 44 34 Cf BEZERRA op cit 2006 p 120 35 COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995 p 60 36 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 159 37 Cf Ibid proposiccedilatildeo 90 38 Cf BERGER op cit 1840p 41 39 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 90 40 Cf COSTA Op cit 1995p 61

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

200

para o exame da mistura e sua necessidade eacute preciso discorrer sobre o Ilimitado

Sendo o Limite responsaacutevel pela estabilidade e unidade do ser o Ilimitado ou apeiacuteron diz respeito agrave potecircncia (dynamis) Eacute ele que possibilita o sair da unidade para a multiplicidade por ser uma potecircncia geradora sendo imagem da fecundidade do Uno De acordo com Berger o ilimitado eacute anaacutelogo ao muacuteltiplo e ao outro41 Semelhante ao Limite ainda que o Ilimitado exista substancialmente diferente e separado de qualquer mistura ele natildeo se manifesta separado do seu oposto pois ao ser indeter-minaccedilatildeo necessita de um objeto pelo qual ocorre sua manifestaccedilatildeo Ressaltando entatildeo o caraacuteter de inseparabilidade destes princiacutepios nos seres Caram assevera que ldquoLa ilimitacioacuten nunca existe apartado del liacutemite liacutemite ilimitacioacuten y su combinacioacuten reaparecen en todos los niveles de la realidadrdquo42 Desta feita o que se evidencia eacute que toda existecircncia na esfera inteligiacutevel assim como o que vem depois dela soacute eacute compreendido atraveacutes desses dois princiacutepios

Limite e Ilimitado por serem os primeiros derivados do Uno engendram a esfera Inteligiacutevel e consequentemente toda diversidade dos seres Isto ocorre porque mesmo que o Uno soacute produza unidades tais unidades se singularizam mediante a accedilatildeo do Limite que por sua vez soacute pode atuar no sentido de causar novos seres atraveacutes da accedilatildeo do Ilimitado E o Ilimitado ainda que relativo agrave potecircncia geradora soacute se manifesta quando presente nos seres ou seja quando sofre a do limite43 Eacute portanto partindo do Limite e do Ilimitado que todas as realidades sejam da esfera corpoacuterea ou incorpoacuterea vem agrave existecircncia poreacutem o limite que se encontra nos seres natildeo eacute um Limite puro e com o Ilimitado acontece o mesmo Tem-se agora a triacuteade que compotildee o universo Limite Ilimitado e Mistura

Os dois princiacutepios natildeo se manifestam na esfera do real em sua substacircncia pura o que os leva a dar origem a um terceiro que eacute na verdade a siacutentese dos seus antecessores Assim o terceiro termo como elemento de mediaccedilatildeo e siacutentese do que vem anteriormente estaacute presente em todas as relaccedilotildees triaacutedicas No caso de peacuteras e apeiacuteron tem-se a mistura que na filosofia procleana aparece como o verdadeiro ser Eacute portanto no Ser verda-deiro que a unidade caracteriacutestica do Primeiro princiacutepio eacute salvaguardada

41 Cf BERGER op cit 1840p 41 42 CARAM op cit 2014 p 114 43 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 92

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

201

sem que a diversidade do que vem em seguida seja posta em xeque44 No entanto como jaacute mencionado o reino divino ou seja das Heacutenadas tambeacutem eacute formado atraveacutes dos dois princiacutepios Desta maneira a diversidade dos seres para ser compreendida deve ser analisada nestes dois elementos a saber nas Heacutenadas e no Ser verdadeiramente ser pois eles natildeo satildeo apenas manifestaccedilotildees do Uno mas dos princiacutepios pelo qual satildeo formados

3 A origem da diversidade dos seres

O Ser como siacutentese de limite e ilimitado mesmo que encerre em si a unidade apresenta os dois princiacutepios em relaccedilatildeo pondo em evidecircncia a dualidade que adveacutem de seus componentes45 A dualidade faz do primeiro ser como tudo o que vem em seguida uma triacuteade que mesmo sendo encabeccedilada pelo Ser tem em sua substacircncia Identidade e Diferenccedila Logo o Ser nesta perspectiva se apresenta como uma unidade de contrapo-siccedilotildees dado que natildeo possuir somente o Limite e Ilimitado como perten-centes a si mas tambeacutem Identidade e Diferenccedila o que leva a ter em sua constituiccedilatildeo ser e natildeo-ser46 Eacute importante observar poreacutem que Platatildeo jaacute havia apresentado um natildeo-ser que natildeo dizia respeito a um inexistente

Platatildeo no diaacutelogo Sofista ao investigar a natureza do Ser chega agrave conclusatildeo de que tudo pela participaccedilatildeo eacute ser e simultaneamente natildeo-ser Para tanto considera que o Ser pode ser participado por inuacutemeros gecircneros dos quais o fundador da Academia lista movimento repouso diferente e idecircntico O sentido do ser e natildeo-ser ocorre porque todos os gecircneros satildeo seres pela participaccedilatildeo no Ser e ao mesmo tempo satildeo natildeo-ser por serem diferentes dele47 Com este raciociacutenio Platatildeo chega agrave tese de que o natildeo-ser natildeo eacute pura nulidade sendo portanto algo diferente do Ser embora participe dele48 Proclo segue uma teoria semelhante Nos Elementos de Teologia o Bizantino classifica todas as coisas em unas unas

44 Cf CARAM op cit 2014 p 114-115 45 De acordo com o Diadoco o ser por caracterizar-se como misto de limite e ilimitado tem em si estas duas caracteriacutesticas que nele satildeo indissociaacuteveis Eacute dito ldquoSrsquoil a une infinite puissance il est eacutevidemment infini et sous ce rapport il est forme drsquoinfini Srsquoil est indivisible et semblable agrave lrsquoum sous ce rapport il a parta u deacuteterminatrdquo PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 89 46 Cf CARAM op cit 2014 p 114 47 Sofista 255e-256e 48 Eacute necessaacuterio para Platatildeo que todos os gecircneros participem do Ser sob a pena de sua natildeo existecircncia Neste sentido ao passo que todos os outros gecircneros satildeo ser pela participaccedilatildeo o Ser natildeo participa de nenhum outro gecircnero pois ele eacute causa e se participasse de algo mais seria diferente de si mesmo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

202

e natildeo-unas e natildeo-unas e unas de acordo com a participaccedilatildeo na unidade Ao fazer isto ele natildeo considera aquilo que eacute denominado como natildeo-uno como nada49 de modo a somente estabelecer uma diferenccedila entre o que eacute pura unidade e o que de alguma maneira participa da multiplicidade Platatildeo sobre o sentido da negaccedilatildeo em casos como o do natildeo-ser e natildeo-uno esclarece

Estrangeiro Quando dizemos natildeo-ser nos referimos suponho natildeo a algo que seja o oposto do ser mas somente a algo diferente [] Portanto quando nos disserem que o negativo significa o oposto discordaremos Somente admitiremos que a partiacutecula natildeo indica algo diferente das palavras agraves quais serve de prefixo ou melhor diferente das coisas agraves quais os nomes que se seguem agrave negaccedilatildeo satildeo aplicados50

Platatildeo ainda no Sofista assegura que a natureza do Diferente eacute fragmentada pois quando manifesta nos seres natildeo se revela como diferenccedila Isto significa que o Diferente quando buscado em algo que eacute analisado por si mesmo se mostra como seu contraacuterio ou seja como idecircntico fato que soacute natildeo ocorre quando ponderado por meio da negaccedilatildeo Como exemplo tem-se o momento que objetiva investigar o diferente do branco e para esta razatildeo passa a investigar o preto Este por sua vez natildeo soacute o seu diferente mas o seu oposto ou seja o preto quando visto fora de sua relaccedilatildeo com o branco natildeo aparece como diferente dele mas como idecircntico a si mesmo Desta feita a diferenccedila ao ser estudada nas coisas natildeo se encontra como tal jaacute que o que se manifesta eacute o ser da coisa investigada O sentido do Diferente soacute eacute alcanccedilado quando na busca por ele natildeo se predica os atributos daquilo que se entende por diferente mas o anuncia mediante a negaccedilatildeo

Ao buscar a natureza do diferente se chega ao Idecircntico devido o caraacuteter positivo da afirmaccedilatildeo de sorte que o Diferente soacute pode ser compreendido na negaccedilatildeo Deste modo em Proclo ao estudar a triacuteade que corresponde ao Ser Identidade e Diferenccedila levando em consideraccedilatildeo que Identidade e Diferenccedila satildeo inerentes ao Ser a causa da diferenccedila entre os seres se revela como o princiacutepio do Limite dado que ele eacute quem daacute singularidade atraveacutes do ato de determinar Proclo sobre o

49 A unidade para Proclo eacute o que faz existir todas as coisas neste sentido negar a unidade do que quer que seja significaria negar a existecircncia da coisa Quando o Diadoco todavia se refere ao natildeo-uno ele segue a mesma linha de raciociacutenio que Platatildeo quando se refere ao natildeo-ser 50 Sofista 257b-c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

203

papel do Limite argumenta ldquo[] pero el liacutemite define circunscribe y situacutea cada cosa en sus propios confines [] de suerte que cada uno de los seres tiene una cierta naturaleza una definicioacuten una propiedad y un orden propios por el primer liacutemiterdquo51 Tornado clara a correspondecircncia do Limite na singularidade e particularizaccedilatildeo dos seres tem-se a seguinte questatildeo se eacute o Limite que daacute singularidade ao ser qual o papel do Ilimitado

O Ilimitado natildeo diz respeito ao estado dos seres mas de sua potecircncia Neste sentido Proclo assegura que o grau de potencialidade eacute proporcional ao de Unidade Esta potecircncia no ser natildeo eacute pura pois por ordem de necessidade participa do Limite Logo se pode dizer que por ser potecircncia ela soacute existe atraveacutes daquilo que jaacute estaacute em ato O Diadoco menciona assim dois tipos de potecircncias as infinitas e as finitas sendo as infinitas aquelas que estatildeo nos seres que tem maior participaccedilatildeo no limite O Sucessor Platocircnico no entanto chama atenccedilatildeo ao fato de que apesar de se falar em potecircncias infinitas estas soacute o satildeo para os seres inferiores pois para o ser de potecircncia infinita e para os seus superiores tais potecircncias natildeo satildeo infinitas Isto se daacute porque os inferiores natildeo conseguem compreender a totalidade dos seres que o satildeo superiores jaacute o ser ao qual a potecircncia lsquoinfinitarsquo pertence sabe seu limite assim como o sabem os que lhe satildeo superiores ou seja uma potecircncia soacute aparece como infinita para os seres inferiores que natildeo conseguem compreender seus limites52

O Ilimitado na qualidade de potecircncia proporciona a saiacuteda do Uno em direccedilatildeo agrave multiplicidade provocando a comunhatildeo e conexatildeo entre tudo que existe Pois eacute a potecircncia geradora ao ser indeterminada ou seja natildeo tendo nenhuma caracteriacutestica especiacutefica que perpassa todas as coisas estando portanto presente em todas Ao estar presente em tudo daacute a possibilidade de reunificaccedilatildeo de tudo o que existe Isto posto a identidade pode ser analisada em dois sentidos 1) como potecircncia que atravessa todos os seres dando a todos um caraacuteter comum e 2) como identidade dos seres consigo mesmos O primeiro sentido eacute oriundo do Ilimitado o segundo do Limite que particulariza cada ser Logo o duplo caraacuteter da identidade torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que opostos Identidade e Diferenccedila natildeo se anulam

51 PROCLO Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999 XLII13P 20 - 25 52 Cf PROCLO op cit proposiccedilatildeo 91 93

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

204

A diversidade aparece na hipoacutestase inteligiacutevel mediante a accedilatildeo dos princiacutepios do limite e do ilimitado que fazem da potecircncia que sai do Uno uma unidade delimitando-a e singularizando-a frente ao todo Fica todavia a questatildeo porque haacute diferenccedilas entre os seres que satildeo particularizados pela accedilatildeo dos dois princiacutepios Com a explicaccedilatildeo da diferenccedila como parte integrante do ser fica claro que a diferenccedila tem sua primeira expressatildeo nele porque o limite determina aquilo que jaacute eacute pela possibilidade ou seja age como uma atualizaccedilatildeo Os princiacutepios satildeo pois responsaacuteveis pela forma natildeo pela diversidade da multiplicidade propriamente dita Logo se o Ser eacute o primeiro componente do inteligiacutevel soacute resta recorrer ao primeiro elemento incorpoacutereo ou seja elevar a anaacutelise para o plano divino jaacute que o inteligiacutevel eacute a consumaccedilatildeo daquilo que jaacute existe como causa no divino

De fato toda multiplicidade Proclo repete enquanto tal faz tudo dessemelhante do Uno por consequecircncia ela eacute derivada do Uno natildeo diretamente mas atraveacutes de um princiacutepio de mediaccedilatildeo Este princiacutepio se assemelha ao Uno enquanto unidade que engendra certa multiplicidade particular e se assemelha agrave multiplicidade enquanto possui as caracteriacutesticas de modo arquetiacutepico 53

As Heacutenadas ou unidades divinas satildeo este princiacutepio e portanto a primeira multiplicidade Elas natildeo possuem poreacutem atributos de forma que esta passagem soacute pode ser constatada numericamente Assim a multiplicidade surge na proacutepria realidade divina uma vez que as Heacutenadas satildeo determinaccedilotildees divinas e como tal cooperam com o Uno que estaacute acima de toda ordem na produccedilatildeo dos seres Consequen-temente do Uno os seres recebem sua existecircncia e das Heacutenadas seus predicados atraveacutes da participaccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoasiacute es la heacutenade la que impone su propio caraacutecter a los existentes participantes y despliega existencialmente en el uacuteltimo la cualidad que eacutel mismo posee supra-existencialmente54 Por conseguinte toda diversidade existente na esfera do real jaacute se encontra nas Heacutenadas de maneira germinal Agrave vista disto para cada Heacutenada participaacutevel existe um ser participante o que

53 ldquoDe fait toute multipliciteacute Proclus le reacutepegravete est en tant que telle tout agrave fait dissemblable de lrsquoUn par conseacutequent elle deacuterive de lrsquoUn non directement mais agrave travers un principe de meacutediation Ce dernier ressemble agrave lrsquoun en tant qursquoil est lrsquouniteacute qui engendre cette multipliciteacute particuliegravere et ressemble agrave la multipliciteacute en tant qursquoil en possegravede les caractegraveres de faccedilon archeacutetypiquerdquo COSTA Op cit 1995p 87 54 PROCLO op cit proposiccedilatildeo 137

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

205

proporciona o desenvolvimento da caracteriacutestica fundamental de cada seacuterie55

A diversidade dos seres portanto na esfera incorpoacuterea natildeo se trata da accedilatildeo do movimento de geraccedilatildeo como acontece na realidade corpoacuterea A diversidade nasce como realizar-se daquilo que jaacute existe como causa nas Heacutenadas por intermeacutedio da accedilatildeo dos princiacutepios do Limite e Ilimitado Logo natildeo se pode dizer que haacute uma mudanccedila nos seres no domiacutenio da inteligibilidade mas uma passagem da potecircncia ao ato possibilitada pelo mister de limite e ilimitado Desta forma o Uno por ser causa Suma daacute existecircncia a tudo e as Heacutenadas pela participaccedilatildeo daacute os atributos que jaacute existem nelas mesmas em forma de causa Quanto aos princiacutepios do Limite e Ilimitado a eles cabe o papel de manifestar tais atributos na medida em que delimitam o ser singularizando-o Com isso tais seres seratildeo idecircnticos agrave mocircnada de sua ordem e agrave totalidade das coisas por possuiacuterem unidade e tambeacutem satildeo diferentes por sua particularizaccedilatildeo Tal diferenccedila contudo soacute pode ser percebida quando analisada a totalidade dos seres

Conclusatildeo

Ante o exposto o que pode ser concluiacutedo eacute que ainda que o sistema procleano seja regido por multiplicaccedilatildeo pela semelhanccedila pois eacute do Uno que toda multiplicidade tem origem isto soacute eacute possiacutevel porque seu sistema consiste em uma trama de relaccedilotildees Ocorre que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento ontoloacutegico isto eacute natildeo se trata de uma saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade por meio de uma sucessatildeo de eventos O que pode ser percebido quando eacute dito que natildeo haacute um antes ou depois relativo aos momentos da processatildeo O fato de natildeo existir um antes ou depois no movimento de processatildeo todavia natildeo implica em uma estabilidade no sistema do Bizantino pelo contraacuterio seu sistema eacute marcado pelas relaccedilotildees entres os termos Sendo por meio das triacuteades que tal relaccedilatildeo adquire dinamicidade

Assim se por um lado a realidade supra-sensiacutevel eacute marcada pela imobilidade com exceccedilatildeo da Alma que eacute automotora por outro ela tambeacutem eacute marcado por triacuteades que permanecem em constante relaccedilatildeo De modo que a relaccedilatildeo dialeacutetica existente entre os termos das triacuteades eacute o que possibilita a origem da diferenccedila na hipoacutestase inteligiacutevel dando a ela

55 Op cit proposiccedilotildees 131 135

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

206

um caraacuteter dinacircmico que lhe possibilita atributos aleacutem da unidade e bondade Porquanto ainda que a imobilidade esteja presente na realidade supra-sensiacutevel no sentido de natildeo existir um movimento de geraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre os princiacutepios oriundos diretamente do Uno peacuteras e apeiacuteron possibilita tanto a passagem da unidade agrave multiplicidade quanto a diversidade de seres existente Ou seja eacute a relaccedilatildeo dinacircmica que permite a existecircncia do diferente e ao passo que proporciona o diferente viabiliza tambeacutem o idecircntico

Logo o que se pode concluir eacute que no que concerne agrave realidade sensiacutevel toda a diversidade adveacutem do movimento seja o de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seja o de deslocamento jaacute na realidade supra-sensiacutevel a diversidade eacute oriunda das relaccedilotildees Considerando que eacute na relaccedilatildeo dos princiacutepios que constitui os seres que os predicados passam da potecircncia ao ato conservando caracteriacutestica dos princiacutepios que o constitui Neste sentido todo ser eacute ao mesmo tempo o resultado de seus princiacutepios e algo diferente deles De modo que eacute na relaccedilatildeo que o Outro e o Mesmo tecircm existecircncia sendo tambeacutem por ela que eacute possiacutevel chegar natildeo soacute ao ser em particular mas a totalidade dos seres

Referecircncias Bibliograacuteficas

BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006

CARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 pp 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesre vistasthemata49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015

COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995

REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008

PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

207

________ Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999

PLATAtildeO Parmecircnides In Diaacutelogos IV Parmecircnides (ou formas) Poliacutetico (ou da realeza) Filebo (ou do prazzer) Liacutesis (ou da amizade) Traduccedilatildeo textos complementares e notas de Edson Bini Bauro SP EDIPRO 2009

__________ Sofista In Diaacutelogos I Teeteto (ou sobre o conhecimento) Sofista (ou do ser) Protaacutegoras (ou sofista) Traduccedilatildeo textos complemen-tares e notas Edson Bini ndash Bauru SP EDIPRO 2007

SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012

TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982

Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Doutora pela Universidad Complutense de Madrid

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza soeudaimoniahotmailcom

Jan Gerard Joseph ter Reegen Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Professor emeacuterito da Universidade Estadual do Cearaacute e Coordenador de Pos-Graduaccedilatildeo e Extensatildeo da FCF

jangjtrgmailcom

Suelen Pereira da Cunha Mestranda pela Universidade Federal do Cearaacute

suelenldp2011gmailcom

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

208

ENSAIO

AS FONTES MIacuteSTICAS E COSMOLOacuteGICAS DO ldquoCASTELO INTERIORrdquo DE TERESA DrsquoAacuteVILA

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo

Na obra Castelo Interior ou Moradas Teresa de Jesus miacutestica do Renascimento espanhol encarou a tarefa de descrever suas experiecircncias extaacuteticas Semelhante a outros miacutesticos natildeo o poderia fazer sem interpretar e mediatizar uma experiecircncia que eacute supralinguiacutestica Por isso recorreu ao simbolismo Comparou a alma a sete castelos ou globos concecircntricos de cristal ou diamante Esses castelos simbolizam as etapas da ascensatildeo da alma O Castelo Interior eacute ldquoa aacutervore da vida que estaacute plantada nas mesmas aacuteguas vivas que eacute Deusrdquo (1M 21) Eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a cabala mais especificamente com a literatura judaica conhecida como Hechalot (Palaacutecios)

Palavras-chave Teresa de Jesus Miacutestica Renascentista Moradas Hechalot

1 Introduccedilatildeo

Santa Teresa de Jesus ou simplesmente Santa Teresa DrsquoAacutevila (1515 ndash 1582) miacutestica carmelita e escritora foi uma das mais eminentes contem-plantes do Renascimento espanhol A reformadora do Carmelo por moti-vos de obediecircncia agrave autoridade da igreja enfrentou a tarefa de colocar por escrito seus ecircxtases com o objetivo de instruir as monjas que estavam sob sua tutela a respeito do caminho interior para alcanccedilar a uniatildeo miacutestica Ela proacutepria definiu seu empenho como difiacutecil quase impossiacutevel porque nas operaccedilotildees iacutentimas da alma se adere agrave secreta ldquolinguagem de Deusrdquo Natildeo sabendo nem como comeccedilar sua empreitada Teresa acreditou ter recebido de Deus a inspiraccedilatildeo de considerar a alma como um castelo1 de diamante

1 Castelo Interior ou Moradas eacute sua obra mestra escrita em 1577 cinco anos antes da morte de Teresa

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

209

ou de cristal com muitos aposentos da mesma forma que no ceacuteu haacute muitas moradas (1M 11)

A alma humana eacute considerada agrave maneira de sete moradas ou globos concecircntricos de fino cristal ou diamante que marcam as etapas progres-sivas do desenvolvimento miacutestico O progresso espiritual descrito por meio das sete moradas resume as trecircs etapas principais da vida interior e da oraccedilatildeo

Trecircs das moradas enfocam o que se pode fazer para avanccedilar ateacute as moradas interiores nas quais estaacute Deus Exigem o desenvolvimento do amor ao proacuteximo da renuacutencia a julgar os outros do conhecimento de si da humildade do processo de interiorizaccedilatildeo e ativaccedilatildeo do desejo por Deus

A quarta eacute uma etapa de transiccedilatildeo na qual se comeccedila a responder ao chamado de Deus e eacute quando Ele comeccedila a assumir o controle de tudo Nas moradas mais interiores Deus purifica a alma cada vez mais e a vai tornando a Sua semelhanccedila ateacute a etapa do matrimocircnio espiritual

A quinta morada eacute a da santidade A esse ponto Teresa dedica quase a metade do Castelo Interior pois essas etapas mais profundas requerem orientaccedilatildeo mais cuidadosa A transformaccedilatildeo interior estaacute cada vez mais intensa e soacutelida e o coraccedilatildeo vai ficando sempre mais inundado pela radiante luz divina

Na sexta morada Teresa disserta sobre as provas exteriores e interiores acerca dos trabalhos os obstaacuteculos e as adversidades agrave santificaccedilatildeo que satildeo cada vez mais numerosos fortes e sutis e exigem maior capacidade de discernimento

A uacuteltima morada a mais interior eacute diferente de todas pois nesse estado acontece a uniatildeo miacutestica Ali estaacute Deus com quem a alma se une pois fica cheia de luz tendo deixado para traacutes o democircnio na forma de vaacuterios animais ferozes e peccedilonhentos (4M 19) Haacute uma fusatildeo entre a alma e a Luz divina Eacute o matrimocircnio miacutestico

[] eacute como se a aacutegua caindo do ceacuteu em um rio ou fonte onde estiver toda a aacutegua jaacute natildeo se pode separar nem distinguir qual eacute a aacutegua a do rio ou a que caiu do ceacuteu (7M 24)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

210

2 Os limites da linguagem humana

Michael Gerli nos mostra que muitas metaacuteforas espirituais especial-mente as arquitetocircnicas se tornaram populares na espiritualidade euro-peacuteia precisamente por seu caraacuteter mnemoteacutecnico2 que as tornava atraentes (GERLI 1982 p 154-163) Eacute notoacuterio que isso ocorreu com a metaacutefora usada por Teresa pois esta pedia agraves filhas espirituais que o trouxessem sempre agrave memoacuteria (1M 26 7M 39)

Agrave primeira vista o esquema simboacutelico usado por Teresa parece original contudo eacute impossiacutevel expressar literariamente uma experiecircncia dessa natureza sem recorrer aos siacutembolos disponiacuteveis no contexto cultural e religioso no qual o miacutestico estaacute inserido

Conforme Barbara Kurtz a linguagem dos miacutesticos natildeo pode transcrever uma experiecircncia sem interpretaacute-la e mediatizaacute-la por mais que se lute contra os limites da linguagem humana incapaz de abordar a transcendecircncia (KURTZ 1992 p 32)

Nesse sentido Teresa confessa natildeo saber como expressar a miste-riosa vivecircncia miacutestica que teve por isso eacute que se utiliza de metaacuteforas O castelo interior tal como o descreve Teresa eacute tanto uma figura de grande beleza plaacutestica quanto algo muito faacutecil de recordar Portanto deve pertencer ao contexto da autora Por ser uma metaacutefora entretanto pouco usada torna-se difiacutecil rastrear as possiacuteveis origens desse simbolismo

O contexto cultural no qual o miacutestico vive ajuda a dar forma simboacutelica agrave sua experiecircncia transcendente que eacute em si supralinguiacutestica O ecircxtase eacute por definiccedilatildeo inefaacutevel por isso o miacutestico sempre recorre a metaacuteforas que satildeo comuns em seu ambiente cultural para explicitar de alguma maneira o que aconteceu nas fronteiras espaciotemporais da razatildeo e da linguagem

Sendo assim haacute o seguinte problema de onde Teresa tira o simbo-lismo com o qual descreve a experiecircncia miacutestica Seus estranhos castelos concecircntricos natildeo pertencem agrave tradiccedilatildeo cristatilde ocidental Em qualquer outro escrito de espiritualidade encontramos o avanccedilo miacutestico da alma claramente estruturado ao longo de sete moradas (ou castelos) cada vez mais interiores

2 Teacutecnica de estimulaccedilatildeo da memoacuteria sinocircnimo de arte de memorizaccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

211

3 Busca das fontes Teresianas

A busca miacutestica da uniatildeo com Deus foi simbolizada tradicional-mente por uma viagem um trajeto percorrido pela alma Isso faz parte de um conjunto de siacutembolos religiosos adotados por cristatildeos judeus e mulccedilumanos ao longo da histoacuteria Muitas tradiccedilotildees mencionam um itineraacuterio e um desejo intenso da alma por Deus Falam da entrega e da purificaccedilatildeo da renuacutencia e do abandono resultantes da uniatildeo miacutestica

Gaston Etchegoyen propotildee que Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna ambos autores muito apreciados pela Carmelita sejam as princi-pais fontes para o Castelo Interior (ETCHEGOYEN 1923 15) Mas o proacuteprio Etchegoyen admite que os esboccedilos de ambos natildeo satildeo suficientes para explicar os pormenores do siacutembolo usado por ela

Francisco de Osuna se limita a um esquema muito restrito agraves alegorias medievais no qual os inimigos tradicionais (a carne o mundo e o democircnio) tentam penetrar o castelo da alma Bernardino Laredo com seu modo de compreender a civitas sancta assentada em um campo quadrado de fundamento de cristal com muros de pedras preciosas e com um ciacuterio pascal no centro que simboliza Cristo eacute mais distante ainda do esquema teresiano

Outros propotildeem como antecedentes teresianos os romances de cavalaria do Renascimento espanhol que a Santa admite ter lido com grande paixatildeo juvenil Quando examinamos esses livros somos forccedilados a concluir que eles natildeo nos datildeo a chave do siacutembolo imaginado pela Monja de Aacutevila Em nenhum romance da eacutepoca os castelos satildeo sete vezes concecircntricos nem celebram a uniatildeo teopaacutetica3 em seu recinto mais interno Nem na arquitetura dos castelos espanhoacuteis os quais ainda se podem visitar constam de sete moradas cada vez mais interiores (PEERS 1951 p 17)

4 Recurso agrave miacutestica judaica

A fase primitiva da miacutestica judaica antes de se cristalizar na Cabala medieval que eacute a mais longa e se estende desde o seacuteculo I aC ateacute o seacuteculo X eacute conhecida indistintamente como a tradiccedilatildeo da Merkavah ou miacutestica Carruagem ou do Trono de Deus A literatura da Merkavah se desenvolveu com suporte em especulaccedilotildees sobre visotildees profeacuteticas do Antigo Testamento O termo hebraico merkabah refere-se ao trono-

3 Sensiacutevel agrave divina influecircncia ser profundamente afetado por Deus

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

212

carruagem de Deus na visatildeo de Ez 1 O corpus principal da literatura Merkabah foi composto no periacuteodo de 200-700 dC

Na fase mais antiga o visionaacuterio o miacutestico era arrebatado geral-mente ateacute agraves esferas celestes e vislumbrava Deus como rei sentado em um trono sustentado por uma carruagem em um firmamento de cristal rodeado de raios com querubins e quatro seres vivos junto a Ele

A primeira apresentaccedilatildeo da escala completa da Merkavah a miacutestica da carruagem do Senhor aparece nos escritos visionaacuterios conhecidos como os livros de Hechalot Esses escritos consistem em descriccedilotildees Hechalot salas o palaacutecios celestiais O desejo mais profundo do miacutestico era alcanccedilar a sala do trono durante a ascensatildeo aos ceacuteus para contemplar o esplendor da majestade de Deus A literatura Hechalot dedica-se a discutir os detalhes desses ceacuteus agraves vezes em conexatildeo com as tradiccedilotildees relacionadas com a apocaliacuteptica dos ciacuterculos de Henoque (SCHOLEM 1965 p 9-13)

Para alguns estudiosos a literatura Hechalot eacute um gecircnero de textos esoteacutericos e apocaliacutepticos judaicos que se estendem ateacute o iniacutecio da Idade Meacutedia Os sete Hechalot ou sete ceacuteus fazem parte da cosmologia religiosa encontrada nas grandes religiotildees como o judaiacutesmo o hinduiacutesmo e o islamismo bem como em algumas religiotildees menores como o hermetismo e gnosticismo Segundo essa cosmologia o trono de Deus estaacute acima do seacutetimo ceacuteu

Vaacuterias religiotildees atribuem ao nuacutemero sete a perfeiccedilatildeo uacuteltima tampouco a miacutestica judaica o ignorou estaacute em obras como os Sete Hechalot ou Sete Palaacutecios a que o israelita recorria simbolicamente para falar do arrebatamento do vidente ateacute ascender ao Trono de Deus conforme o texto do Sefer Hechalot4 ou Terceiro Livro de Henoque muito considerado pela cabala judaica Essa obra se mostra como tendo sido escrita no seacuteculo II dC mas suas origens soacute podem ser rastreadas ateacute o seacuteculo V O autor se faz passar pelo Rabi Ismael o qual teria se tornado um ldquosumo sacerdoterdquo depois das visotildees decorrentes de seu arrebatamento ao ceacuteu Os principais temas abordados pelo Sefer Hechalot satildeo a ascensatildeo de Henoque ao ceacuteu e sua transformaccedilatildeo no anjo Metatron (DAN 1993 p 7-24)

No final do seacuteculo XIII Moiseacutes de Leoacuten compilou uma obra atribuiacuteda ao rabino Simeon ben Yohai que viveu na Palestina no seacuteculo II

4 Sefer significa livro e Hechalot quer dizer Palaacutecios ou Templos

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

213

Na citada obra conta-se uma experiecircncia visionaacuteria do suposto rabino no momento em que a alma dele se libera momentaneamente do corpo e experimenta una revelaccedilatildeo magniacutefica sob a forma de sete palaacutecios do paraiacuteso e em contrapartida sete palaacutecios do inferno Isso significa que ainda existe um sistema de siacutembolos essenciais dos ensinamentos dos Hechalot unido a novas ideias desenvolvidas posteriormente com origens nas especulaccedilotildees sobre a merkavah ou carruagem do Senhor

A obra compilada por Moiseacutes de Leoacuten recebeu o nome Zoha ou Livro do Esplendor o grande comentaacuterio miacutestico judaico que compendiou a Cabala No Zohar os sete palaacutecios estatildeo povoados de anjos que irradiam luz Em contraste com o objetivo dos primeiros miacutesticos da merkavah que era ver a sala do trono de Deus o desejo do miacutestico apresentado pelo Zohar eacute chegar a uma comunhatildeo com Deus ou seja a uma fusatildeo entre as vontades divina e humana que se realiza no ecircxtase e eacute simbolizada no ldquobeijo do Amorrdquo Conforme o Zohar o beijo que une a alma a Deus eacute descrito no seacutetimo palaacutecio e sua intensidade eacute tal que pode extrair a alma do corpo e levaacute-la para Deus provocando a morte fiacutesica

Santa Teresa tambeacutem menciona como o Zohar o beijo com que o Rei divino consuma o matrimocircnio espiritual na seacutetima morada de seu Castelo Interior Refere-se tambeacutem a experiecircncias extaacuteticas intensas nas quais a alma parece ser arrebatada do corpo e raptada ateacute uma comunhatildeo com Deus Teresa caracteriza essas experiecircncias como suficientes para levar o miacutestico agrave morte (7M 25 36)

5 Influecircncias da cosmologia aristoteacutelica

Aleacutem das fontes judaicas eacute possiacutevel encontrar outras influecircncias para o simbolismo teresiano As versotildees latinas das obras aristoteacutelicas Estavam amplamente divulgadas no contexto no qual Teresa viveu No livro De Caelo Aristoacuteteles imaginou o universo na forma de esferas concecircntricas que giram em movimento circular Este esquema coacutesmico se transformou em um siacutembolo que dava um transfundo para o caminho espiritual do ser humano (LOacutePEZ-BARALT 2010 p 180)

Salta agrave ideia de que Santa Teresa ao falar da alma na forma de sete ciacuterculos ou castelos concecircntricos alude de maneira obliqua agraves sete esferas planetaacuterias da cosmovisatildeo medieval herdada de Aristoacuteteles e da literatura de Hechalot A Carmelita estaria visualizando a alma como um reflexo microcoacutesmico do macrocosmo celestial estaria comparando as moradas espirituais natildeo somente com castelos mas tambeacutem com as

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

214

esferas do ceacuteu Nesse caso o ser humano teria dentro de si todas as esferas celestes

6 Conclusatildeo

Conclui-se que Teresa natildeo criou a formosa imagem plaacutestica dos castelos interiores Por mais inusitado que isto pareccedila agrave sensibilidade do cristatildeo ocidental ela simplesmente a elaborou em detalhes geniais a cristianizou e a adaptou aos seus fins

Igual a muitos filoacutesofos poetas e humanistas da Eacutepoca Renascen-tista miacutesticos cristatildeos foram profundamente influenciados pela literatura da Cabala no seacuteculo XIII Reconheceram na miacutestica judaica em geral um caminho seguro para compreender melhor suas experiecircncias com procedecircncia em raiacutezes miacutesticas mais antigas

Swietlicki orienta contudo a natildeo se ter a pretensatildeo de que a influecircncia da cabala judaica sobre os miacutesticos cristatildeos nos temas e siacutembolos usados por estes sejam resultado de influecircncia literaacuteria mas apenas supotildee-se que os traccedilos de cabala foram persistentes em ciacuterculos populares mesmo apoacutes a expulsatildeo dos judeus da Espanha (SWIETLICKI 1986 p 28) Dessa forma a miacutestica cristatilde teria se tornado um importante veiacuteculo para a transmissatildeo da Cabala judaica mesmo no seacuteculo XVI Eacute fato inegaacutevel entretanto a influecircncia da cabala sobre estas figuras importantes

Referecircncias Bibliograacuteficas

BENSION Ariel O Zohar o livro do esplendor Satildeo Paulo Polar Edito-rial 2006

DAN Joseph The Ancient Jewish Mysticism Tel Aviv Mod Books 1993

ETCHEGOYEN Gaston Lrsquoamour divin Essai sur les sources de Sainte-Theacuteregravese Bordeaux Feret 1923

GERLI Michael ldquoEl castillo interior y el arte de la memoriardquo Bulletin Hispanique 861-2 (1982) 154-163

KURTZ Barbara ldquoThe Small Castle of the Soul Mysticism and Metaphor in the European Middle Agesrdquo Studia Mystica XV (1992) 28-35

LOacutePEZ-BARALT Luce ldquoTeresa of Jesus and Islam The Simile of the Seven Concentric Castles of the Soulrdquo in Hilaire KALLENDORF (ed) A New Companion to Hispanic Mysticism Danvers BRILL 2010 p 175-199

PEERS Edgar Allison Study of the Spanish Mystics London SPCK 1951

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

215

SCHOLEM Gershom Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and the Talmudic Tradition New York Jewish Theological Seminary of America 1965

SWIETLICKI Catherine Spanish Christian Cabala The works of Luis de Leoacuten Santa Teresa de Jesus and San Juan de la Cruz Columbia Missouri University of Missouri Press 1986

TERESA DE JESUacuteS Santa Moradas del Castillo Interior in Obras Completas Madrid Editorial Catoacutelica 1951

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

216

TRADUCcedilAtildeO

COMECcedilAM OS ERROS DOS FILOacuteSOFOS ARISTOacuteTELES AVERROacuteIS AVICENA ALGAZEL

AL-KINDI MAIMONIDES COLETADOS POR IRMAtildeO EGIacuteDIO DA ORDEM DE SANTrsquo AGOSTINHO1

Introduccedilatildeo I Vida de Egiacutedio Romano ndash Aegiacutedius Romanus

Aegiacutedius Romanus ndash Egiacutedio Romanos ndash tambeacutem conhecido por seu nome francecircs Giles de Rome nasceu em Roma em 1243

Depois de sua entrada na ordem dos Agostinianos estudou em Paris de 1269 ndash 1272 com Tomaacutes de Aquino Com Tomaacutes aproveitou o pensa-mento aristoteacutelico que comeccedilou a se afirmar nos estudos filosoacuteficos com reflexos na Faculdade Teoloacutegica da Universidade de Paris Em consequecircncia das 219 teses ligadas agrave Filosofia e Teologia aristoteacutelicas publicadas em 7 de marccedilo de 1277 e que foram consideradas levianas ou hereacuteticas e como tais em desacordo com os dados da Revelaccedilatildeo pelo bispo de Paris Etienne Tempier Egiacutedio foi obrigado a deixar Paris e por enquanto natildeo conseguiu permanecer na Universidade Em Paris produziu a sua obra poliacutetica De Regimine Principum Em 1285 Egiacutedio refutou as teses que foram condenadas pela maioria da comunidade acadecircmica da universidade parisiense e como consequecircncia lhe foi possiacutevel a sua carreira acadecircmica

A partir de 1292 Egidio assume tanto na ordem dos Agostinianos como na Igreja uma posiccedilatildeo de destaque A sua atuaccedilatildeo desenvolveu-se de modo especial na aacuterea poliacutetica do papa Bonifaacutecio VIII cujas teorias 1 Incipiunt Errores philosophorum Aristotelis Averrois Avicenna Algazelis Alkindi Rabbi Moysis A fratre Aegido collecti ord S Augustini Traduccedilatildeo elaborada a partir do texto latino publicado em Giles of Rome Errores Philosophorum Critical Text with Notes and Introduction by Joseph Koch English Translation by John O Riedl Milwaukee Wisconsin Marquette University Press 1944 Neste Trabalho soacute se apresenta a versatildeo da parte sobre Aristoacuteteles cap 1-2-3 Oportuna-mente apresentar-se-atildeo os outros autores mencionados

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

217

entraram em choque com as praacuteticas e pensamentos do Rei Philippe IV o que levou agrave uma tensatildeo profunda na Igreja do Ocidente

Egidio morreu em 1316 em Avignon Agrave sua mente fina deve o apelido ldquodoctor fundatissimusrdquo ndash doutor profundo mas em razatildeo de certa prolixidade de suas obras o chamam ldquodoctor verbo-susrdquo ndash doutor tagarela

II Autoria e data

Embora sob a autoridade de Mandonnet o texto em estudo tenha sido longamente considerado como espuacuterio estudos posteriores poreacutem dos principais mestres comprovaram a autenticidade da autoria de Egidio Aleacutem disso a comprovaccedilatildeo eacute encontrada em alguns comentaacuterios antigos como tambeacutem nas primeiras ediccedilotildees impressas em 1428 e 1581 editadas em Veneza

Uma anaacutelise da obra comprova assim Koch uma concordacircncia quanto ao estilo e conteuacutedo da Incipiunt com outros escritos do Egiacutedio Mais peso entretanto eacute atribuiacutedo agrave concordacircncia de estilo entre a Incipiunt e outras obras egidianas Cita-se entre outros os seus comentaacuterios sobre a De Generatione et corruptine a Physica que lembram imediatamente os nordm 6-7-8-12 e 14 da Incipiunt (para maiores detalhes cf Koch p XXXIV e XXXV)

E Incipiunt pertence agraves primeiras obras de Egidio e deve ser situada ao redor do ano 1268 visto que no momento em que compocircs este trabalho ele jaacute tinha completado a sua formaccedilatildeo filosoacutefica e como tudo indica tambeacutem uma parte da formaccedilatildeo teoloacutegica

O termino da obra eacute o comentaacuterio da De Generatione et corruptione que cuja data deve se situar entre 1273 e 1274

Isto leva a considerar que a obra deve ser composta ao redor do ano de 1270

III Traduccedilatildeo do Texto

Afirma-se em primeiro lugar

Capiacutetulo I Sobre a lista de erros de Aristoacuteteles

Porque de um dado errado derivam muitas consequumlecircncias de um fundamento falso o Filoacutesofo tirou muitos erros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

218

1 Acreditou pois que nada estaacute numa determinada situaccedilatildeo em que anteriormente natildeo estava senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Avaliou portanto que soacute haveria novidade aonde tivesse uma mudanccedila propriamente dita Consequumlentemente como toda mudanccedila propriamente falando eacute o fim de um movimento natildeo poderaacute haver novidade sem um movimento precedente Deste argumento entatildeo concluiu que o movimento nunca comeccedilou porque se o movimento se iniciasse seria algo novo Mas natildeo existe coisa nova senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Entatildeo antes do primeiro movimento houve algum movimento O que eacute incoerente

2 Aleacutem disso errou ao afirmar que o tempo nunca comeccedilou porque o tempo sempre segue o movimento Se entatildeo o movimento natildeo comeccedilou nem o tempo iniciara Pareceu-lhe que a razatildeo teria uma difi-culdade especial em relaccedilatildeo ao tempo Visto que o instante eacute sempre o fim do passado e o comeccedilo do futuro natildeo se pode falar de um primeiro momento Por isso antes de todo e qualquer momento houve algum tempo e antes de qualquer tempo dado houve um momento Entatildeo o tempo natildeo comeccedilou mas eacute eterno

3 Aleacutem disso por causa daquilo que foi dito foi obrigado a afirmar que aquilo que se move eacute eterno e que tambeacutem o mundo eacute eterno porque uma vez que natildeo haacute tempo sem movimento e nem movimento sem algo moacutevel se tempo e movimento satildeo eternos o que se move seraacute eterno e assim o mundo nunca comeccedilou Tudo isso fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica

4 E mais Foi obrigado a afirmar que o ceacuteu natildeo eacute gerado e eacute incorruptiacutevel e que nunca foi feito mas que sempre existiu Como entre os outros movimentos soacute o movimento circular eacute contiacutenuo como fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica se qualquer movimento eacute eterno o circular seraacute eterno E porque a movimento circular eacute proacuteprio do ceacuteu como se prova no 1ordm livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo conclui-se da mesma forma que o ceacuteu eacute ingecircnito e que nunca foi feito Tinha ele uma razatildeo especial para dizer que o ceacuteu natildeo comeccedilou porque qualquer coisa que possui o poder de sempre existir no futuro tambeacutem teraacute o poder de ter existido sempre no passado E porque o ceacuteu natildeo termina natildeo comeccedilou a existir

5 E ainda visto que na opiniatildeo dele qualquer coisa que eacute feita eacute feita de mateacuteria preexistente assim opinou que Deus natildeo poderaacute fazer um outro mundo porque este o atual eacute feito de toda a mateacuteria Este erro tambeacutem pode ser encontrado no 1ordm Livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

219

6 Argumentou ainda que a geraccedilatildeo das coisas inferiores nunca cessaraacute como tambeacutem nunca tem comeccedilado Porque a corrupccedilatildeo antecede e segue toda a geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo antecede e segue toda a corrupccedilatildeo Por isso visto que a corrupccedilatildeo precede qualquer geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo qualquer corrupccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a corrupccedilatildeo e a geraccedilatildeo terem tido iniacutecio nem eacute possiacutevel elas terminarem porque a qualquer geraccedilatildeo segue a corrupccedilatildeo e a qualquer corrupccedilatildeo segue a geraccedilatildeo Se entatildeo a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo terminassem depois da uacuteltima geraccedilatildeo teria uma geraccedilatildeo e depois da uacuteltima corrupccedilatildeo uma corrupccedilatildeo Que a corrupccedilatildeo precede e segue a geraccedilatildeo ele provou pelo caminho do movimento Porque natildeo existe nada gerado sem que haja algo corrompido e desta forma a corrupccedilatildeo precede a geraccedilatildeo e tambeacutem a segue porque tudo que eacute gerado eacute corruptiacutevel e todo corruptiacutevel e corrompido por necessidade Assim tambeacutem a geraccedilatildeo precede a corrupccedilatildeo Porque nada eacute corrompido que natildeo foi gerado antes e segue a geraccedilatildeo porque a corrupccedilatildeo de um eacute a geraccedilatildeo de outro Este erro pois que a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo natildeo comeccedilam nem terminam pode se achar no 1ordm Livro de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) e de forma mais expliacutecita no Livro 2ordm

7 Ainda em razatildeo de a geraccedilatildeo neste mundo inferior acontecer pelo sol Aristoacuteteles foi obrigado de afirmar que o sol ldquonunca deixaraacute de gerar plantas e animaisrdquo como fica evidente do Livro 1ordm de De Vegetalibus (Sobre os Vegetais)

8 Ainda visto que natildeo existe novidade sem movimento anterior conforme o argumento apresentado ele errou querendo que de Deus natildeo possa proceder de forma imediata algo novo como fica claro do Livro 2ordm de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) onde diz que ldquoaquilo que permanece o mesmo sempre produziraacute o mesmordquo

9 Ainda foi obrigado a negar a ressurreiccedilatildeo dos mortos Por isso considera improvaacutevel como fica claro do Livro 1 de De Anima (Sobre a Alma) que os mortos ressurjam Porque no Livro VIIIordm da Metaphysica quer que aquilo que estaacute morto natildeo se torne vivo de novo senatildeo atraveacutes de muitos meios e se reviver natildeo revive o mesmo numericamente porque aquelas coisas cuja substacircncia se perdeu natildeo voltam as mesmas numericamente como afirma no fim do Livro IIordm de De Generatione

Natildeo tem validade que alguns tentam desculpa-lo dizendo que ele fala pela via da natureza quando acredita que nada de novo possa imediatamente proceder de Deus mas que toda coisa nova acontece por meio do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

220

10 Ainda visto que acreditou que nada de novo possa acontecer senatildeo atraveacutes do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza acreditou como se revela no Livro Iordm de Physicae (Fiacutesica) quando argumenta contra Anaxaacutegoras que um intelecto que procura separar paixotildees e acidentes da substacircncia eacute ldquoum intelecto que procura o impossiacutevelrdquo

Desta opiniatildeo parece seguir que Deus natildeo pode fazer um acidente sem substacircncia

11 Ainda visto que atraveacutes do caminho do movimento nunca haacute geraccedilatildeo de alguma coisa se natildeo houver corrupccedilatildeo de outra e que nunca eacute introduzida uma forma substancial se outra natildeo for expulsa porque a mateacuteria eacute a mesma para todas que a possuem disto se segue que natildeo haacute mais formas substanciais num composto do que em outro De fato aquele que prossegue bem neste caminho veraacute que deve ser colocada em todo composto somente uma forma substancial e assim parece ser a posiccedilatildeo do Filoacutesofo Por isso no Livro VIIordm da Metaphysica no capiacutetulo De unitate diffinitionis (Sobre a Unidade da definiccedilatildeo) afirma que as partes de uma definiccedilatildeo natildeo satildeo uno ldquoporque estatildeo num unordquo mas porque indicam uma natureza

Entatildeo se entender uma natureza composta de vaacuterias formas isto eacute toleraacutevel mas se entender uma natureza simples e que num composto haja somente uma forma isto eacute falso

12 Ele afirma ainda que onde haacute agora pacircntano e mar uma vez existiu terra seca e vice versa porque o tempo natildeo para mas eacute eterno como fica claro do Livro Iordm Meteoreorum Consequentemente tambeacutem lhe foi necessaacuterio afirmar que natildeo houve um primeiro homem nem uma primeira chuva

13 Ainda deste modo querendo proceder pela via da natureza acreditou visto que dois corpos natildeo podem existir simultaneamente no mesmo lugar como eacute revelado no Livro IVordm da Physica que era tatildeo absolu-tamente essencial ldquoper serdquo agraves dimensotildees resistir a dimensotildees e que eacute impossiacutevel as dimensotildees continuarem existindo e entretanto natildeo resistir aacutes dimensotildees

Disto se segue que Deus natildeo pode fazer que dois corpos ocupem o mesmo lugar

14 Ainda porque natildeo pertence agrave inteligecircncia o poder de se mover sem se mover em ato porque as inteligecircncias enquanto se movem satildeo colocadas na melhor disposiccedilatildeo ele afirmou que existem tantos anjos e

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

221

tantas inteligecircncias que existem mundos como fica claro no Livro XIIordm da Metaphysica

Mas a Sagrada Escritura contradiz esta posiccedilatildeo quando afirma ldquoMil milhares o serviram e miriacuteades e mais miriacuteades diante delerdquo

Capiacutetulo II Em que num sumaacuterio satildeo reunidos os erros de Aristoacuteteles

Estes entatildeo de forma sumaacuteria satildeo todos os seus erros

1 Que o movimento natildeo tem comeccedilo 2 Que o tempo eacute eterno 3 Que o mundo natildeo teve um comeccedilo 4 Que o ceacuteu natildeo foi feito 5 Que Deus natildeo poderia fazer um mundo diferente 6 Que geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo natildeo tiveram comeccedilo e natildeo teratildeo fim 7 Que o sol sempre causaraacute geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo no mundo

sublunar 8 Que nada de novo pode proceder diretamente de Deus 9 Que a ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute impossiacutevel 10 Que Deus natildeo poderaacute fazer um acidente sem a substacircncia 11 Que em qualquer composto soacute existe uma forma substancial 12 Que natildeo se pode admitir um primeiro homem e uma primeira

chuva 13 Que de maneira alguma podem existir dois corpos num mesmo

lugar 14 Que existem tantos anjos como haacute mundos Por isso concluir-

se-aacute que haacute cinquumlenta e cinco ou quarenta e sete somente

Alguns poreacutem queriam desculpar o Filoacutesofo na questatildeo sobre a eternidade do mundo Mas isto natildeo tem cabimento porque ele - para mostrar as verdades filosoacuteficas - se baseia no mencionado princiacutepio ateacute mesmo natildeo escreveu praticamente nenhum livro sobre filosofia em que natildeo coloca algo ligado a este princiacutepio

Em seguida aleacutem dos erros supramencionados alguns queriam colocar nele (a opiniatildeo) que Deus nada conhece fora de si de tal maneira que natildeo Lhe eacute conhecida este mundo inferior baseando o seu argumento nas palavras que satildeo apresentadas no XIIordm da Metafiacutesica naquele capiacutetulo Sententia Patrum (A opiniatildeo dos Padres) Mas que aqueles que afirmam isto natildeo entendem o Filoacutesofo E que natildeo eacute esta a sua intenccedilatildeo fica claro pelo que se diz no capiacutetulo De Bona Fortuna (Sobre a boa sorte) onde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

222

afirma que para Deus tanto o passado como o futuro satildeo por si conhecidos Haacute outros erros que lhe satildeo atribuiacutedos com que natildeo nos ocupamos aqui porque satildeo oriundos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea

Capiacutetulo III Em que eacute anulada aquela afirmaccedilatildeo que o Filoacutesofo eacute a base de seus erros

Todos os seus erros entretanto se algueacutem o investigar cuidadosa-mente satildeo consequumlecircncias desta sua posiccedilatildeo que no ser nada de novo acontece senatildeo por movimento anterior Poreacutem como isto eacute falso porque Deus em razatildeo de ser o primeiro agente que natildeo age como instrumento poderaacute produzir as coisas sem movimento anterior Aquele que age por natureza tambeacutem age como instrumento porque eacute do modo de ser do instrumento que move movido e necessariamente pressupotildee na sua accedilatildeo o movido A accedilatildeo entatildeo ou a produccedilatildeo do primeiro agente pode ser sem aquele movimento Criaccedilatildeo por isso natildeo eacute um movimento porque o movimento pressupotildee o moacutevel a criaccedilatildeo de fato natildeo pressupotildee nada nem eacute propriamente falando uma mudanccedila porque toda mudanccedila eacute o fim de um movimento mas como se afirma comumente ela eacute uma simples deduccedilatildeo das coisas do primeiro Qualquer coisa por isso que eacute formulada contra o iniacutecio do mundo e contra aquilo que a feacute afirma eacute totalmente sofiacutestica2

Traduccedilatildeo de

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

2 No capiacutetulo IV inicia-se a apresentaccedilatildeo dos erros de Averroacuteis

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

223

RESENHA

MIacuteSTICA DE OLHOS ABERTOS

METZ Johann Baptist Miacutestica de olhos abertos Traduccedilatildeo de Inecircs Antonia Lohbauer Satildeo Paulo Paulus 2013 Coleccedilatildeo Amantes do Misteacuterio 293 p 135 x 21 cm ISBN 978-85-349-3649-1

Johann Baptist Metz eacute um dos teoacutelogos catoacutelicos alematildees mais influentes do poacutes-Vaticano II Eacute membro da Diretoria do Instituto de Ciecircncias Humanas de Viena desde 1983 cofundador e editor da revista Concilium e professor emeacuterito de Teologia Fundamental na Universidade de Muumlnster Ex-aluno do teoacutelogo jesuiacuteta Karl Rahner rompeu com a Teologia Transcendental do mestre para assumir segundo assinala uma teologia arraigada na praacutexis (p191-211) Metz estaacute no centro de uma escola de Teologia Poliacutetica que exerceu intensa influecircncia sobre a Teologia da Libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina A teologia de Metz centraliza-se na atenccedilatildeo ao sofrimento pois natildeo haacute sofrimento no mundo que natildeo diga respeito ao cristatildeo ldquoComo podemos virar as costas para todo esse sofrimento e nos preocuparmos apenas com nossa salvaccedilatildeo e nossa redenccedilatildeordquo (P 16)

A obra sob comentaacuterio eacute uma coleccedilatildeo de textos mais antigos atualizados e recompilados Alguns dos ensaios foram escritos haacute deacutecadas mas suas preocupaccedilotildees ainda satildeo oportunas ou talvez muito mais importantes do que antes Isto porque conforme Metz o Cristianismo eacute cada vez mais uma exigecircncia e um estiacutemulo para uma accedilatildeo em favor de um mundo melhor e mais justo Notaacutevel eacute a maneira pela qual o A chama a atenccedilatildeo para a espiritualidade cristatilde como revoluccedilatildeo da esperanccedila Enquanto o contexto atual enfatiza o aspecto da introspecccedilatildeo da espiritualidade com suas teacutecnicas de meditaccedilatildeo de olhos fechados a Biacuteblia chama a atenccedilatildeo para um aspecto totalmente diferente a Escritura nos acorda e nos manteacutem de olhos abertos O objetivo da espiritualidade biacuteblica eacute nos encaminhar para o outro A biacuteblia nos ensina uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

224

espiritualidade de olhos abertos porque natildeo existe experiecircncia de Deus sem passar pelo outro o qual na maioria das vezes estaacute sofrendo por causa do que Metz chama de ldquocapitalismo predatoacuteriordquo

A primeira parte da obra ldquoPerspectivas Teoloacutegicasrdquo (P 13-49) lembra que o olhar messiacircnico de Jesus (P 19) natildeo eacute dirigido para o pecado mas para o sofrimento do outro (cf Lc 416-21) ldquoEssa sensibilidade messiacircnica ao sofrimento natildeo tem nada a ver com plangecircnciardquo mas com a miacutestica biacuteblica de justiccedila ldquopaixatildeo por Deus como empatia pelo sofrimento alheio como miacutestica praacutetica da compaixatildeordquo (P 19) situando em primeiro lugar natildeo a culpabilidade mas o sofrimento Esse eacute sentido do discurso apocaliacuteptico como tentativa de dar esperanccedila aos sofredores ldquoO apocalipse biacuteblico ldquodesvelardquo a trilha dos sofredores na histoacuteria da humanidaderdquo (P 17) Lamenta-se que os cristatildeos tenham se afastado tanto desse ponto ldquoA doutrina cristatilde da salvaccedilatildeo dramatizou a questatildeo do pecado e negligenciou a questatildeo do sofrimentordquo (P20)

Na segunda parte da obra ldquoMiacutestica do Face-a-face tentativas de aproximaccedilatildeordquo (P 53-211) Metz reuacutene textos variados no estilo de pequenas meditaccedilotildees que objetivam conduzir o leitor para o centro da feacute cristatilde a saber a abertura para Deus que leva a servir o proacuteximo

Na terceira parte intitulada ldquoUma Igreja sem interesse em aprenderrdquo (P 215-250) o Autor trata de modo muito significativo a respeito da crise na Igreja Conforme Metz ateacute mesmo cristatildeos muito engajados nas comuni-dades e na luta pela justiccedila sentem-se cada vez mais incapazes (ou sem vontade) de aprender Eacute no entanto uma igreja aprendiz (disciacutepula) sempre pronta a se abrir para outras perspectivas

Essa obra eacute sem duacutevida fruto de uma rica experiecircncia de vida do velho Teoacutelogo E uma importante contribuiccedilatildeo para o estudo da Teologia da espiritualidade cristatilde Ao fundamentar-se na exigecircncia de partir dos textos biacuteblicos e da praacutexis de Jesus o A retoma a significaccedilatildeo original e o teor teoloacutegico genuiacuteno da espiritualidade cristatilde bem como a atualidade desse tema tatildeo em moda nos nossos dias e tatildeo pouco compreendido

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

225

Apesar de algumas paacuteginas pressuporem debates teoloacutegicos que jaacute natildeo correspondem agraves experiecircncias das geraccedilotildees recentes vale a pena ler esse livro e seguir os conselhos do velho Mestre segundo o qual uma Igreja que quer se renovar deve saber quem ela eacute e a que eacute destinada

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Page 4: Revista Acadêmica da Prainha

Kairoacutes ndash Revista Acadecircmica da Prainha Ano Ano X2 JulhoDezembro 2013

Chanceler D Joseacute Antonio Aparecido Tosi Marques Arcebispo Metropolitano de Fortaleza

Diretor e Redator Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Redator adjunto Profa Ms Lisieux DrsquoJesus Luzia de Arauacutejo Rocha Publicaccedilatildeo Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Diretor Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

Secretaacuteria Maria Uyaacutera Feacutelix Beleza Diagramaccedilatildeo Evaldo Amaro dos Santos

CONSELHO CIENTIacuteFICO Prof Dr Carlos Josaphat OP Prof Dr Francisco Manfredo Thomaz Ramos (FCF) Prof Dr Henrique Noronha Galvatildeo (UCP-Lisboa) Prof Dr Luis Alberto De Boni (PUCRS) Prof Dr Manfredo Oliveira (UFC) Prof Dr Maacutercio Fabri dos Anjos Prof Dr Marcus Roberto Nunes Costa (UFP) Prof Dr Maacuterio de Franccedila Miranda SJ (PUC-RJ) Prof Dr Ney de Souza (PUCndashSP-Assunccedilatildeo) Prof Dr Pedro Rubens SJ (UNICAP-PE) Profa Dra Paula Oliveira e Silva (Universidade do Porto)

CONSELHO EDITORIAL Prof Dr Francisco de Aquino Paulino Prof Dr Francisco Evaristo Marcos Prof Dr Joseacute Fernandes de Oliveira Prof Dr Moeacutesio Pereira de Souza Profa Dra Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade Profa DraTacircnia Maria Couto Maia Profa Dra Maria Celeste de Sousa Impressatildeo Graacutefica Encaixe

SUMAacuteRIO I - Seccedilatildeo Teoloacutegica Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira Os ministros da igreja caracteriacutesticas e exigencias 127

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier A teologia de Tiago feacute em accedilatildeo 133

Ir Graccedila Disingakala Nunes Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta 146 II - Seccedilatildeo Filosoacutefica Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

A eacutetica poliacutetica em Maquiavel 161 Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha Sobre a relaccedilatildeo dinacircmica da realidade supra-sensiacutevel segundo Proclo 189 III - Ensaio Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ As fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas do ldquocastelo interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila 208 IV - Traduccedilatildeo Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Comeccedilam os erros dos filoacutesofos Aristoacuteteles Averroacuteis Avicena Algazel Al-Kindi Maimonides coletados por irmatildeo Egiacutedio da ordem de Santrsquo Agostinho 216 V - Resenha Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ Miacutestica de olhos abertos 223

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 125-126 2013

125

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos esta ediccedilatildeo da KAIROacuteS Revista Acadecircmica da Prainha Aleacutem de ser uma manifestaccedilatildeo das pesquisas e estudos do nosso corpo docente eacute um prazer receber contribuiccedilotildees de outros estudiosos - um fator de enriquecimento para a Revista

A Seccedilatildeo Teoloacutegica traz uma rica e austera reflexatildeo sobre os ministros da Igreja o que se deve e se pode esperara deles neste tempo

Como conciliar e unir feacute e accedilatildeo chama a atenccedilatildeo para a carta de Tiago

O artigo sobre vocaccedilatildeo como resposta e natildeo como uma escolha eacute como se fosse uma conclusatildeo dos artigos anteriores

A Seccedilatildeo filosoacutefica traz um bem fundamentado artigo sobre a Eacutetica Poliacutetica em Maquiavel tentando esclarecer seu contexto e significado Um estudo sobre Proclo e sua doutrina a realidade supra-sensiacutevel e seu dinamismo encerra esta seccedilatildeo

No contexto da Miacutestica eacute apresentado um ensaio sobre as fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas da obra ldquoCastelo Interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila

Na Seccedilatildeo traduccedilatildeo um texto de Egiacutedio de Roma que continua o contexto da traduccedilatildeo anterior a aceitaccedilatildeo de Aristoacuteteles na segunda metade do Seacuteculo XIII

Uma Resenha do Livro conhecido teoacutelogo Johanns Metz Miacutestica de olhos abertos encerra este nuacutemero

A todos uma proveitosa leitura

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

126

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

127

OS MINISTROS DA IGREJA CARACTERIacuteSTICAS E EXIGENCIAS1

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

1 O padre servidor do povo

O documento da CNBB nordm 100 ndash Comunidade de comunidades ndash uma nova paroacutequia ndash A conversatildeo pastoral da paroacutequia em seu capiacutetulo 5 tem como tiacutetulo ndash Sujeitos e Tarefas da Conversatildeo Pastoral Reuacutene quais satildeo os sujeitos da referida conversatildeo (bispos presbiacuteteros diaacuteconos permanentes os consagrados e os leigos) Deter-me-ei nos sete nuacutemeros que fazem alusatildeo agrave figura do presbiacutetero (nordm199-205)

Esta parte comeccedila afirmando que o presbiacutetero eacute chamado a ser padre-pastor exprimindo quais suas caracteriacutesticas dedicado generoso acolhedor e aberto ao serviccedilo da comunidade faz referecircncia ao excesso de atividades como um sinal preocupante que pode prejudicar o equiliacutebrio pessoal do padre (cfn 199)

Em algumas comunidades encontram-se presbiacuteteros desencantados cansados Nesta ocasiatildeo o documento em apreccedilo chama a atenccedilatildeo para algo que eacute muito grave e que merece de noacutes presbiacuteteros em especial aos paacuterocos a atenccedilatildeo

A sobrecarga de trabalhos pode dificultar a capacidade de relacionamento dos presbiacuteteros tornando-os apaacuteticos aos sofrimentos dos outros insensiacuteveis aos pobres rude no tratamento de seus paroquianos e incapazes de manifestar a misericoacuterdia e a bondade de Cristo do qual satildeo ministros Eles precisam ser ajudados (nordm 200)

1 Constantes satildeo os apelos do Magisteacuterio da Igreja tanto do Bispo de Roma como dos bispos do Brasil sobre os ministros ordenados Denotam-se caracteriacutesticas agraves quais estes ldquoservidoresrdquo do povo devem corresponder Em trecircs artigos escritos em ocasiotildees diferentes o Padre Almir Magalhatildees faz uma descriccedilatildeo e siacutentese geral das exigecircncias que satildeo a base de um ministeacuterio evangeacutelico adaptado aos nossos dias

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

128

Vivemos numa sociedade do vazio da superficialidade e neste contexto somos entre outras realidades formadores de opiniatildeo com um papel importante na sociedade de fazer a contraposiccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser considerado manipulaccedilatildeo das consciecircncias O documento tambeacutem contribui neste aspecto quando afirma que ldquoOutra preocupaccedilatildeo se refere agrave atualizaccedilatildeo do padre diante das aceleradas mudanccedilas que ocorrem na modernidade Ele pode ficar atrasado no tempo e afastado da realidade No ativismo pode ser que natildeo se dedique ao estudo e natildeo se prepare melhor para escutar e entender os anseios dos que o procuramrdquo (Nordm 201) Afinal de contas apesar de o modelo eclesioloacutegico do Vaticano II ser trinitaacuterio uma eclesiologia de comunhatildeo sob a qual todos satildeo responsaacuteveis pela accedilatildeo evangelizadora ldquoA conversatildeo pastoral da paroacutequia depende muito da postura do presbiacutetero na comunidaderdquo (Nordm 202)

Para que boa parte destas realidades aconteccedila seraacute de fundamental importacircncia que o presbiacutetero acolha bem as pessoas exerccedila a paternidade espiritual sem distinccedilotildees evitando atitude seletiva de privileacutegios a grupos A ou B renovando sua espiritualidade para ajudar tantos irmatildeos que buscam a paroacutequia (Cfnordm 202) Identicamente eacute preciso evitar-se que paroacutequias possam projetar uma imagem contraacuteria daquilo falado ateacute aqui a imagem de uma Igreja distante burocraacutetica e sancionadora (Cfnordm 37)

Devemos melhorar nosso atendimento e a paroacutequia haacute de estabelecer o diverso neste item comeccedilando pelo padre Isto requer que o presbiacutetero cultive profunda experiecircncia de Cristo vivo com espiacuterito missionaacuterio coraccedilatildeo paterno que seja animador da vida espiritual e evangelizador capaz de promover a participaccedilatildeordquo (Nordm 203)

Finalmente o padre deve ser formado para ser servidor do seu povo Eacute por este motivo que deve existir cuidado com o preparo permanente e a formaccedilatildeo nos seminaacuterios de acordo com esta visatildeo pastoral que considera a paroacutequia uma comunidade de comunidades tal como insiste a Igreja no Brasil a respeito da formaccedilatildeo presbiteral (Nordm 205 e Doc 93 da CNBB)

A questatildeo fundamental eacute como superar o ldquomodelordquo atual de paroacute-quia muito mais voltada para a sacramentalizaccedilatildeo conservaccedilatildeo para o modelo expresso no documento aqui refletido ldquoO ministeacuterio sacerdotal tem uma forma comunitaacuteria radical e soacute pode se desenvolver como tarefa coletivardquo (Nordm 204)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

129

2 Tentaccedilotildees dos agentes de pastorais

O tiacutetulo desta reflexatildeo eacute retirado da segunda parte do Capiacutetulo II da Exortaccedilatildeo Apostoacutelica A Alegria do Evangelho do Papa Francisco (Na crise do compromisso comunitaacuterio) Admito que muitos agentes jaacute tiveram acesso a esta Exortaccedilatildeo mas considero que a maioria ainda natildeo teve acesso e desta forma socializo algumas questotildees relevantes desta parte e que tecircm incidecircncia na vida dos agentes de pastoral Uma avaliaccedilatildeo eacute incontestaacutevel o Papa sempre desconcerta

Logo no iniacutecio afirma o Pontiacutefice sua gratidatildeo pela tarefa de quantos trabalham na Igreja e que a nossa tristeza e a vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja natildeo devem fazer esquecer os inuacutemeros cristatildeos que datildeo a vida por amor e agradece o belo exemplo de que datildeo tantos cristatildeos que oferecem sua vida e o seu tempo com alegria (Cfnordm 76)

Em seguida convoca a uma espiritualidade missionaacuteria chamando a atenccedilatildeo para algo que particularmente considero uma peacuterola em termos de anaacutelise da situaccedilatildeo atual ao assinalar que a vida espiritual de muitos agentes se confunde com alguns momentos religiosos que proporcionam algum aliacutevio mas natildeo alimentam o encontro com os outros o compromisso no mundo a paixatildeo pela evangelizaccedilatildeo (Cf nordm 78) Saliento que jaacute vi esta observaccedilatildeo ser feita por outros pastoralistas entretanto quando parte de teoacutelogos geralmente eacute avaliada como tendenciosa fechando-se Agora eacute o Papa Francisco quem faz a afirmaccedilatildeo

Uma tocircnica sua no diaacutelogo com o mundo eacute o encontro com o outro o que natildeo faltou tambeacutem nessa Exortaccedilatildeo ldquoO ideal cristatildeo convidaraacute sempre a superar a suspeita a desconfianccedila permanente o medo de sermos invadidos as atitudes defensivas que nos impotildee o mundo atual Muitos tentam escapar dos outros se fechando na sua privacidade confortaacutevel ou no ciacuterculo reduzido dos mais iacutentimos e renunciam ao realismo da dimensatildeo social do Evangelhordquo (Nordm88) Ele trata deste assunto na mesma Exortaccedilatildeo no Cap IV

Relevante eacute como ele conclui este mesmo nordm 88

ldquoPorque assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual sem carne nem cruz tambeacutem se pretendem relaccedilotildees interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos por eacutecrans e sistemas que se podem acender e apagar agrave vontade Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraccedilar o risco do encontro com o rosto do outro com a sua presenccedila fiacutesica que interpela com os seus sofrimentos e suas reivindicaccedilotildees A verdadeira feacute no Filho de Deus feito carne eacute inseparaacutevel do dom de si mesmo da

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

130

pertenccedila agrave comunidade do serviccedilo da reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros Na sua encarnaccedilatildeo o Filho de Deus convidou-nos agrave revoluccedilatildeo da ternurardquo

Percebam que neste pequeno trecho o Papa nos daacute material para um retiro de no miacutenimo 7(sete) dias pois relembra uma heresia do seacutec II ndash o docetismo que nega a humanidade de Cristo afirmando em outras palavras que hoje tambeacutem faltam nos cristatildeos as relaccedilotildees interpessoais substituiacutedas pela ldquotelinhardquo portanto sem cruz sem encontro na comodi-dade Estamos conectados quase que permanentemente sem preocupaccedilatildeo com o sofrimento dos outros Analisem minuciosamente e comparem com a realidade em que o Papa confere autenticidade da feacute Ela se revela em quatro pontos dom de si mesmo pertenccedila agrave comunidade serviccedilo e reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros

Concluo esta reflexatildeo em primeiro lugar exprimindo que natildeo estou somente me dirigindo aos outros sou um agente de pastoral e vou me confrontando com toda a Exortaccedilatildeo O grande objetivo mesmo eacute convidar a todos os agentes de pastoral a natildeo perderem de vista estes 33 (trinta e trecircs) nuacutemeros e 13 paacuteginas de cunho eminentemente pastoral-espiritual Natildeo seria bom para noacutes neste final de Quaresma ou quem sabe iniacutecio da Paacutescoa visitar estes nuacutemeros dos quais esta reflexatildeo foi apenas uma motivaccedilatildeo

3 ldquoAi de voacutesrdquo

Ao realizar sua missatildeo Jesus teve de enfrentar alguns conflitos e ateacute mesmo provocaacute-los na fidelidade e obediecircncia agrave realizaccedilatildeo da vontade do Pai Via de regra encontramos estes confrontos junto a alguns grupos de seu tempo destacando-se os escribas ou doutores da lei e os fariseus estes uacuteltimos gozando de muita credibilidade junto ao povo de Deus Tal creacutedito se dava pela loacutegica defendida por eles na medida em que pelo cumprimento da lei se visibilizava maior aproximaccedilatildeo a Deus ou natildeo a isto chamamos de legalismo farisaico pois a questatildeo principal de estar proacuteximo a Deus ou natildeo era simplesmente cumprir a lei (Cf todo o confronto sobre o saacutebado comer com as matildeos impuras Cf Mc 7)

O sistema se baseava nos polos ndash puros e impuros A pureza indicava as condiccedilotildees necessaacuterias para algueacutem poder comparecer diante de Deus no Templo (Cf C Mesters Com Jesus na contramatildeo p 24) Neste sentido o povo tinha grande preocupaccedilatildeo com a pureza pois quem natildeo era puro natildeo podia chegar perto de Deus (Mt 99-12)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

131

No capiacutetulo 23 do Evangelho de Mateus (precisamente 23 13-36) Jesus pronuncia os famosos sete ldquoaisrdquo todos eles dirigidos a estes dois grupos e de forma ousada e profeacutetica nesta seccedilatildeo chama-os ora de ldquohipoacutecritasrdquo ora de ldquoguias cegosrdquo de ldquoinsensatosrdquo e de ldquosepulcros caiadosrdquo predomina o adjetivo hipoacutecrita

Evidentemente Jesus natildeo age desta forma manifestando oacutedio para com eles mas fazendo uma catequese para que eles pudessem entrar na dinacircmica da conversatildeo e consequentemente do Reino de Deus na novidade do que ele representava jaacute que o rosto de Deus que eles mani-festavam contradizia frontalmente o Deus que Jesus representava

Do conjunto da coletacircnea de advertecircncias contra escribas e fariseus o termo mais usado eacute hipocrisia por ser uma atitude do sistema religioso que eles representavam fechando-se no seu prestiacutegio e poder julgavam-se justos e santos e disto os Evangelhos datildeo conta (Cf o ex da cena do fariseu e do publicano ndash Lc 18 9-14 a questatildeo do jejum em Mc 218ss) No sistema por eles defendido o que prevalecia de fato eram os ritos externos a formalidade

Com suporte no texto aqui referenciado destaco o versiacuteculo 23 citando-o ldquoAi de voacutes escribas e fariseus hipoacutecritas que pagais o dizimo da hortelatilde da erva-doce e do cominho enquanto descuidais o que haacute de mais grave na lei a justiccedila a misericoacuterdia e a fidelidade eacute isto que era preciso fazer sem omitir aquilordquo

A referecircncia eacute muito clara e natildeo precisa de grandes comentaacuterios acadecircmicos ndash os interlocutores de Jesus como jaacute se sabe viviam da exterioridade da formalidade do cumprimento da lei amplamente denunciado neste capiacutetulo de Mateus Na sequumlecircncia Jesus daacute um ensinamento novo como origem tambeacutem em suas praacuteticas por exemplo confraternizando-se com pessoas impuras como eram os publicanos e pecadores (Mc 2 15-17) tocar em leprosos comer sem lavar as matildeos tocar em cadaacutever e isto evidentemente tornava Jesus na concepccedilatildeo da eacutepoca uma pessoa impura pelo contato com estes pecadores e isto impedia a presenccedila de Deus

Agora vamos puxar a reflexatildeo construindo uma ponte entre a abordagem ateacute aqui desenvolvida e o nosso tempo prefiro proceder assim em primeiro lugar fazendo duas perguntas para vocecirc caro leitor existe algo parecido hoje em dia

Por gentileza interessante natildeo fazer uma interpretaccedilatildeo fundamenta-lista mas levar em consideraccedilatildeo a formalidade as questotildees de visibilidade

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

132

que a Igreja tem hoje por meio de grandes eventos de massa da miacutedia catoacutelica do estilo neopentecostal e a outra indagaccedilatildeo como estaacute sendo considerada a praacutetica da misericoacuterdia ndash a praacutetica da justiccedila e da fidelidade no seguimento de Jesus Cristo Seraacute que estamos na linha da exterioridade e sem esquecer isto estamos deletando a justiccedila da praacutetica de nossos grupos paroacutequias e idem com a misericoacuterdia e a fidelidade

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira eacute padre da Arquidiocese de Fortaleza

Diretor e Professor da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza - FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

133

A TEOLOGIA DE TIAGO FEacute EM ACcedilAtildeO

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier

Resumo A Epiacutestola de Tiago apresenta ensinos praacuteticos e eacuteticos para a vida cristatilde da mesma maneira como o proacuteprio Jesus mostrou que a feacute deveria vir acompanhada de atitudes Poreacutem alguns estudiosos biacuteblicos levantaram criacuteticas agrave epiacutestola de Tiago como se essa fosse contraacuteria agrave justificaccedilatildeo pela feacute Nesse artigo demonstra-se que a feacute e as obras natildeo se contrapotildeem na epiacutestola de Tiago sendo necessaacuterio compreender o contexto da mesma e sua importacircncia para os cristatildeos nos dias de hoje

Palavras-chave Tiago Conduta Cristatilde Feacute e Praacutetica

Abstract The Epistle of James has practical and ethical teachings for the Christian life just as Jesus himself showed that faith should be accompanied by actions However some scholars have raised criticism of the Epistle of James as if this was contrary to the justification by faith In this paper we show that faith and works are not opposed in the Epistle of James it is necessary to understand the context of the same and its importance for Christians today

Keywords James Christian Conduct Faith and Practice Introduccedilatildeo

A epiacutestola de Tiago difere das outras epiacutestolas do Novo Testamento pelo seu estilo conteuacutedo e apresentaccedilatildeo Tiago trata de religiatildeo praacutetica de eacutetica de solidariedade de religiatildeo vivencial A epiacutestola exatamente como Hebreus eacute mais um sermatildeo que uma carta propriamente dita Eacute um sermatildeo ou um ensino ou um tratado e ldquoas indicaccedilotildees satildeo de que foi o primeiro de todos os documentos escritos do Novo Testamentordquo (BAXTER 1989 p 309) O livro foi escrito aproximadamente entre 10 a 15 anos apoacutes a morte de Jesus (SHIDD BIZERRA 2010 p 7) Francis Nichol (1995 p 516) diz que natildeo haacute uma maneira segura para determinar a data da epiacutestola mas aponta a possibilidade da mesma ter sido escrita apoacutes o ano 44 dC

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

134

Neste artigo apresenta-se um panorama da teologia de Tiago com vistas a demonstrar como a feacute pode e deve ser praticada em atos e pala-vras em conformidade com a doutrina de Cristo

Sobre o autor

A Carta de Tiago jaacute provocou muitas discussotildees na histoacuteria da Teologia Uma das principais estaacute relacionada com o seu autor O prefaacutecio indica que o autor foi Tiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo (Tg 11) Mas no Novo Testamento haacute cinco homens chamados Tiago O primeiro eacute o pai de Judas (Lc 616) O segundo eacute um disciacutepulo filho de Alfeu (Mt 103) Este Tiago eacute o irmatildeo de Mateus (Mt 99 e Mc 214) O terceiro eacute chamado Tiago menor (Mc 1540) Talvez fosse chamado ldquomenorrdquo por causa do seu tamanho ou como substituto de Juacutenior (haacute pais que gostam de colocar seus nomes nos filhos) O quarto eacute o irmatildeo de Joatildeo e filho de Zebedeu (Mt 102) Este eacute o que os espanhoacuteis gostam de dizer que eacute o Tiago de Compostela Mas esse foi morto no iniacutecio dos anos quarenta conforme Atos 122 O quinto eacute chamado de ldquoirmatildeo do Senhorrdquo (Gl 119) Jesus possuiacutea um irmatildeo com este nome como aparece em Mateus 1355 Poreacutem apenas dois desses foram apresentados como possiacuteveis autores desta epiacutestola ndash Tiago filho de Zebedeu e Tiago o irmatildeo do Senhor

O primeiro eacute um candidato improvaacutevel Sofreu o martiacuterio em 44 AD e natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que ocupasse posiccedilatildeo de lideranccedila na igreja que lhe desse a autoridade de escrever esta carta geral Embora Isidoro de Sevilha e Dante achassem que ele foi o autor do livro esta identidade natildeo tem sido largamente aceita em nenhum periacuteodo da igreja A opiniatildeo tradicional identifica o autor como sendo Tiago o irmatildeo do Senhor A semelhanccedila da linguagem da epiacutestola com as palavras de Tiago em Atos 15 a forte dependecircncia do escritor da tradiccedilatildeo judia e a consistecircncia do conteuacutedo de sua carta com as notiacutecias histoacutericas que o Novo Testamento daacute em relaccedilatildeo a Tiago o irmatildeo do Senhor tudo tende a apoiar a autoria tradicional (PFEIFER HARRISON 1983 p 325)

Assim pode-se inferir que o autor da epiacutestola seja Tiago irmatildeo de Jesus

Criacuteticas agrave carta de Tiago

Esta epiacutestola tem sido alvo de criacuteticas e comentaacuterios injustos desde o iniacutecio do movimento protestante com Martinho Lutero (1522)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

135

Preocupado em afirmar a doutrina da justificaccedilatildeo pela feacute Lutero foi duro com a carta de Tiago Chamou-a de ldquoepiacutestola de palhardquo (eyne rechte stroerne Epistel) por causa de seu entendimento equivocado do capiacutetulo 2 versos 14 a 16 onde presumiu haver o ensino de justificaccedilatildeo pelas obras (STOTT 1996 p 18) Este pensamento errocircneo de Lutero ainda permanece em muitas mentes Mas deve ser entendido dentro do contexto em que as palavras dele foram proferidas Elas constam de seu prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo da Biacuteblia Alematilde onde ele se expressa sobre os livros que mais mostram a pessoa de Cristo Apoacutes nomeaacute-los disse Lutero ldquoPor isso a epiacutestola de Satildeo Tiago eacute uma epiacutestola bem insiacutepida (eyne rechte stroerne Epistel) se comparada agraves demais [] (LUTERO 1997 p 81)

Este reformador mais tarde modificou sua posiccedilatildeo Assim se expressou Lutero conforme nos diz George (1986 p 371) ldquoQuando Satildeo Tiago e Paulo dizem que um homem eacute justificado pelas obras eles estatildeo combatendo a noccedilatildeo errocircnea daqueles que pensam que a feacute sem obras eacute suficienterdquo

Outro que pode ser considerado injusto com Tiago eacute Champlin (1991 p 536) quando diz que ldquoA epiacutestola de Tiago certamente eacute um documento que representa o cristianismo judaico e natildeo erramos por dizer representa o cristianismo legalistaldquo

Paulo e Tiago

Muitas das criacuteticas se devem agrave aparente contradiccedilatildeo entre Tiago e Paulo no assunto ldquofeacute e obrasrdquo (KUMMEL 1975 p 414-41) Kuumlmmel lista cinco aparentes contradiccedilotildees A mais famosa declaraccedilatildeo de Tiago ldquoa feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) gerou discussatildeo nos primoacuterdios da Reforma Lutero natildeo conseguia conciliar esta declaraccedilatildeo com o que Paulo escreveu ldquoConcluiacutemos pois que o homem eacute justificado pela feacute independente de obras da leirdquo (Rm 328) Especialmente outra declaraccedilatildeo de Tiago estaacute em aparente oposiccedilatildeo ao ensino de Paulo ldquoVerificais que uma pessoa eacute justificada por obras e natildeo por feacute somenterdquo (Tg 224) O curioso eacute que os dois apoacutestolos tardios (isto eacute que natildeo estavam entre os doze) utilizam o mesmo personagem biacuteblico (Abraatildeo) para defender posiccedilotildees aparentemente contraditoacuterias Paulo diz ldquoQue pois diremos ter alcanccedilado Abraatildeo nosso pai segundo a carne Porque se Abraatildeo foi justificado por obras tem de que se gloriar poreacutem natildeo diante de Deus Pois que diz a Escritura Abraatildeo creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo (Rm 41-3) Tiago em contrapartida diz ldquoNatildeo foi por obras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

136

que Abraatildeo o nosso pai foi justificado quando ofereceu sobre o altar o proacuteprio filho Isaquerdquo (Tg 221) Aqui haacute pelo menos uma contradiccedilatildeo verbal (LADD 1997 p 546 MORRIS 2003 p 379) mas seraacute que haacute uma contradiccedilatildeo teoloacutegica

Uma siacutentese da diferenccedila entre Paulo e Tiago dada por Mears (1993) poderaacute resolver essa questatildeo

Tiago eacute a mais praacutetica de todas as epiacutestolas e tem sido chamada ldquoGuia Praacutetico para a Vida e a Conduta Cristatilderdquo Eacute o livro de Proveacuterbios do Novo Testamento Estaacute repleto de preceitos morais Expotildee a eacutetica do Cristianismo Eacute cheio de figuras e metaacuteforas Seu estilo eacute muitas vezes bastante dramaacutetico Obriga a pensar realmente Hebreus apresenta doutrina Tiago apresenta obras Eles se completam num Cristianismo vital Natildeo haacute conflito entre Paulo e Tiago Soacute uma leitura superficial de ambos levaria a essa conclusatildeo Paulo diz ldquoRecebam o Evangelhordquo Tiago diz ldquoVivam o Evangelhordquo Paulo viu Cristo no ceacuteu estabelecendo a nossa justiccedila Tiago viu-o na terra dizendo-nos que sejamos perfeitos como eacute perfeito o seu Pai que estaacute no ceacuteu Paulo deteacutem-se na fonte da nossa feacute Tiago fala do fruto da nossa feacute Eacute preciso natildeo soacute crer mas viver Ainda que Paulo saliente a justificaccedilatildeo pela feacute vemos em suas epiacutestolas especialmente em Tito que ele daacute grande realce agraves boas obras (1 Tm 618) enquanto Tiago fala em ser ricos em feacute (25) Conveacutem notar tambeacutem que quando Tiago parece menosprezar a feacute ele estaacute-se referindo a uma simples crenccedila intelectual e natildeo agrave ldquofeacute salvadorardquo que eacute tatildeo essencial Tiago exalta a feacute Ele diz que a prova dela opera a paciecircncia Sua carta comeccedila e termina com um forte estiacutemulo agrave feacute (16 514-18) Ele denuncia a feacute espuacuteria que natildeo produz obras (MEARS 1993 p 511-512)

Uma siacutentese menor seria

Paulo responde a pergunta Sob que condiccedilatildeo ou condiccedilotildees um pecador pode ser justificado diante de Deus Sua resposta eacute Sob a condiccedilatildeo da feacute a confianccedila de todo coraccedilatildeo em Cristo como Salvador Tiago contesta a pergunta Que classe de feacute salvaraacute a um homem Sua resposta eacute Nenhuma feacute ou credo somente nem sinceramente a crenccedila em Deus como uacutenico mas uma feacute que produz vida reta (CONNER 1951 p 221)

O resumo de Tiago sobre a feacute inoperante eacute ldquoporque assim como o corpo sem espiacuterito eacute morto assim tambeacutem a feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) Foi deste modo que Calvino resolveu a questatildeo O Reformador de Genebra natildeo viu contradiccedilatildeo entre Paulo e Tiago pois entendeu que Tiago falava de uma feacute falsa ldquoPois transparece desde as primeiras palavras que ele fala de uma falsa profissatildeo de feacute pois ele natildeo comeccedila assim lsquose algueacutem tem feacutersquo mas lsquose algueacutem diz que tem feacuterdquo (CALVIN

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

137

1998 Tg 2-14) Calvino portanto natildeo teve a mesma duacutevida de Lutero mas compreendeu o sentido especiacutefico e claro a que Tiago se referia

Os grandes temas de Tiago

O caraacuteter cristatildeo eacute o tema central da epiacutestola Tiago nada fala do Espiacuterito Santo nem mesmo da doutrina da salvaccedilatildeo O autor natildeo trata de doutrinas mas de conduta Natildeo haacute menccedilatildeo alguma a Missotildees Batismo Santa Ceia Cruz e suas implicaccedilotildees A epiacutestola eacute predominantemente eacutetica Dentre os muitos assuntos tratados por Tiago podemos destacar os seguintes

Provas e tentaccedilotildees

A carta dirige-se especialmente aos judeus cristatildeos que viviam entre gentios fora dos limites da Palestina e que sofriam devido as suas convicccedilotildees religiosas (MARTIN 1998)

Tiago escreveu ldquoMeus irmatildeos tende por motivo de toda alegria o passardes por vaacuterias provaccedilotildeesrdquo (Tg 12) Ele completa ldquoBem-aventurado o homem que suporta com perseveranccedila a provaccedilatildeo porque depois de ter sido aprovado receberaacute a coroa da vida a qual o Senhor prometeu aos que o amamrdquo (Tg 112) Soacute a recompensa eterna compensa os sofrimentos desta vida e o cristatildeo deve olhar para aquele dia futuro quando receberaacute o galardatildeo em troca das vicissitudes e isto deve fazer com que se alegre no presente seacuteculo ainda que seja pobre e necessitado

A palavra ldquotentaccedilatildeordquo eacute usada num sentido mais amplo incluindo perseguiccedilotildees externas e solicitaccedilotildees internas ao mal Tiago ensina aos leitores como transformar a tentaccedilatildeo em becircnccedilatildeo fazendo dela uma fonte de paciecircncia e usando-a como o fogo que prova o ouro (PEARLMAN 1997 p 319)

A esse respeito o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia define ldquoTentaccedilotildees (gr Peirasmos) significa provaccedilotildees com um propoacutesito e efeito beneacuteficos ou sejam provaccedilotildees ou tentaccedilotildees divinamente permitidas ou enviadasrdquo (SHEDD 1979 p 1388)

A ecircnfase eacute que a tentaccedilatildeo em si natildeo vem de Deus ldquoNingueacutem ao ser tentado diga Sou tentado por Deus porque Deus natildeo pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo a ningueacutem tentardquo (Tg 113) O verdadeiro instrumento da tentaccedilatildeo segundo Tiago eacute a cobiccedila (Tg 114) Ele diz ldquoEntatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute aacute luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morterdquo (Tg 115) A antropologia de

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

138

Tiago estaacute em perfeita harmonia com o Antigo Testamento e com os demais escritos do Novo Testamento Deus natildeo eacute o autor do mal O pecado surge no ser humano e gera morte O fato de Tiago natildeo mencionar Satanaacutes como tentador natildeo significa que ele natildeo julgasse importante no processo da tentaccedilatildeo e do pecado (Tg 47)

Tiago expotildee como a feacute verdadeira reage em meio aos sofrimentos decorrentes das provaccedilotildees e das tentaccedilotildees A feacute verdadeira gera alegria nas provaccedilotildees e eacute fortalecida em Deus nas tentaccedilotildees

Feacute e obediecircncia

A feacute verdadeira segundo Tiago eacute aquela que implica em obediecircn-cia ou seja a praacutetica da Palavra Ele diz ldquoPortanto despojando-vos de toda impureza e acuacutemulo de maldade acolhei com mansidatildeo a palavra em voacutes implantada a qual eacute poderosa para salvar vossa alma Tornai-vos pois praticantes da palavra e natildeo somente ouvintes enganando-vos a voacutes mesmosrdquo (Tg 12122)

Haacute um eco entre estas palavras e as que Jesus proferiu no final do sermatildeo do monte que compara o ouvir sem praticar a palavra como uma atitude de construir uma casa sobre a areia (Mt 724-27) Ouvir sem praticar eacute como se olhar num espelho e esquecer-se de como se eacute Os espelhos eram de bronze e refletiam mal a imagem da pessoa aleacutem de serem raros Uma pessoa pobre passava meses sem se ver ao espelho Quem ouve e pratica seraacute bem-aventurado (Tg 125) Natildeo praticar a Palavra de Deus eacute um ato de auto-engano pois a proacutepria pessoa seraacute a uacutenica prejudicada A feacute verdadeira eacute a que demonstra a Palavra de Deus na praacutetica A guarda da liacutengua

Tiago preocupado com a questatildeo da liacutengua no sentido de ldquofalar o que natildeo se deverdquo antecipa um pouco do que vai dizer adiante ldquoSe algueacutem supotildee ser religioso deixando de se refrear a liacutengua antes enganando o proacuteprio coraccedilatildeo a sua religiatildeo eacute vatilderdquo (Tg 126) Esclarece o que entende ser a verdadeira religiatildeo ldquoA religiatildeo pura e sem maacutecula para com o nosso Deus e Pai eacute essa visitar os oacuterfatildeos e as viuacutevas nas suas atribulaccedilotildees e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundordquo (Tg 127)

Com o objetivo de exemplificar de modo praacutetico o que considera uma feacute em accedilatildeo Tiago trata sobre o problema da liacutengua Agora ele tem em mente os mestres pois fala sobre o perigo de algueacutem utilizar a liacutengua

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

139

de modo errado neste sentido (Tg 31-12) Do mesmo modo expotildee sobre as dissensotildees dentro da comunidade como algo contraacuterio aacute feacute (Tg 313-18) Trata novamente sobre a cobiccedila (Tg 41-3) da vida mundana e da necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 44-10) Enfatiza os relacionamentos pessoais na igreja e na necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 411-17) A feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica de obras eacute uma feacute em accedilatildeo

Natildeo fazer acepccedilatildeo

Tiago analisa a incompatibilidade de algueacutem crer em Jesus e fazer acepccedilatildeo de pessoas

Meus irmatildeos natildeo tenhais a feacute em nosso Senhor Jesus Cristo Senhor da gloacuteria em acepccedilatildeo de pessoas Se portanto entrar na vossa sinagoga algum homem com aneacuteis de ouro nos dedos em trajos de luxo e entrar tambeacutem algum pobre andrajoso e tratardes com deferecircncia o que tecircm trajos de luxo e lhe disserdes Tu assenta-te aqui em lugar de honra e disserdes pobre Tu fica ali em peacute natildeo fizestes distinccedilatildeo entre voacutes mesmos e natildeo vos tornastes juiacutezes tomados de perversos pensamentos (Tg 21-4)

Apesar da maioria dos crentes para os quais Tiago ensinava ser de classe baixa parece que eles como eacute proacuteprio agraves vezes dos pobres tratavam bem os ricos e mal os pobres Tiago diz que isto eacute uma feacute incoerente No texto ele fala da ldquosinagogardquo e natildeo da igreja o que evidencia o aspecto judaico da carta e aponta para sua antiguidade Para Tiago fazer acepccedilatildeo de pessoas eacute quebrar a lei (Tg 2 9-10) A questatildeo polecircmica da carta

Jaacute tratamos disto em momentos anteriores e podemos deixar de emitir mais consideraccedilotildees Vamos apenas acrescentar isto a preocupaccedilatildeo de Tiago eacute primariamente praacutetica (CARBALLOSA 1994 p 70) e parece oacutebvio que ele respondia a algum tipo de questionamento antinomista pois rebatia a crenccedila de que uma pessoa pode ser salva sem que demonstre qualquer mudanccedila de vida

Por isso ele diz que no caso de Abraatildeo ldquofoi pelas obras que a feacute se consumourdquo (Tg 222) Paulo por outro lado estaacute respondendo a outro tipo de questionamento Ele combate a noccedilatildeo judaica daqueles dias de que uma pessoa era salva pela feacute e pelas obras como se as obras natildeo fossem apenas uma evidecircncia da feacute mas um instrumento real de salvaccedilatildeo Eacute oacutebvio que se algueacutem lhe dissesse que uma pessoa pode ser salva sem experimentar uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

140

transformaccedilatildeo Paulo certamente responderia ldquonatildeordquo pois embora sejamos salvos pela graccedila Deus tem preparado uma vida de boas obras para que andemos nelas (Ef 28-10) Ellen G White (1892) declarou que ldquoas boas obras se seguiratildeo como as floraccedilotildees e frutos da feacute A apropriaccedilatildeo da justiccedila de Cristo seraacute manifestada numa vida bem ordenada e na conversaccedilatildeo santardquo

Do mesmo modo se perguntassem a Tiago se a lei precisa ser obedecida para que algueacutem seja salvo como um meio de completar a feacute certamente ele diria que somos salvos pela feacute e que as obras satildeo apenas a evidecircncia de que ela existe Natildeo haacute contradiccedilatildeo teoloacutegica entre Paulo e Tiago suas respostas aparentemente divergentes explicam a razatildeo dos propoacutesitos de cada autor Assim a Reforma Protestante resolve o conflito quando declara ldquoEacute a feacute que salva sozinha mas a feacute que salva nunca estaacute sozinhardquo

Denuacutencia contra os ricos

ldquoPaciecircnciardquo eacute a palavra chave para resumir o ensino do capiacutetulo 51-6 sendo um dos temas predominantes de toda a carta de Tiago ldquoEvidentemente muitas das pessoas humildes dentre os judeus cristatildeos estavam sendo oprimidos pelos ricos e seus salaacuterios eram retidos com fraude (54)rdquo (MEARS 1993 p 517-518) Os cristatildeos pobres daqueles dias deveriam ter paciecircncia e esperar o momento da libertaccedilatildeo que viria de Deus e viver na praacutetica a feacute que salva

Sobre a denuacutencia de Tiago contra os ricos assim se expressa o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia ldquoEsta seccedilatildeo apresenta uma severa denuacutencia contra os ricos que tecircm granjeado prosperidade mediante opressatildeo Os tais satildeo condenados natildeo por serem ricos mas porque suas riquezas foram mal adquiridas permanecendo sobre elas as marcas da corrupccedilatildeordquo (SHEDD 1979 p 1388)

Jaacute o Comentaacuterio Biacuteblico Adventista por sua vez esclarece ldquoO contexto imediato implica que os ldquoricosrdquo satildeo exemplos notaacuteveis de quem tecircm muitas oportunidades para fazer o bem mas evitam fazecirc-lo Estes ldquoricosrdquo podem ser ou natildeo membros da igrejardquo (NICHOL 1995 p 553)

A mensagem de Tiago era evidente para seus leitores ldquoos opressores ainda pagaratildeo por tudo o que tecircm feitordquo Mas o povo de Deus deveria ser paciente pois natildeo haacute como antecipar o juiacutezo de Deus ldquoSede pois irmatildeos pacientes ateacute a vinda do Senhor Eis que o lavrador aguarda com paciecircncia o precioso fruto da terra ateacute receber as primeiras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

141

e as uacuteltimas chuvas Sede voacutes tambeacutem pacientes e fortalecei o vosso coraccedilatildeo pois a vinda do Senhor estaacute proacuteximardquo (Tg 578)

As chuvas do fim do outono e do comeccedilo da primavera que datildeo condiccedilotildees agrave terra de produzir natildeo podem ser antecipadas por causa do desejo ou da ira do homem Elas vecircm no tempo certo Resta ao lavrador esperar que a chuva venha e de nada adiantaraacute ele se agitar se irar ou fazer qualquer outra coisa pois seraacute apenas perda de tempo de energia e mais acuacutemulo de sofrimento Como o agricultor tem certeza de que a chuva viraacute ele deve descansar pois deve ter uma esperanccedila confiante Do mesmo modo o cristatildeo sabe que Jesus voltaraacute e ainda que ele natildeo saiba quando deve esperar confiantemente pois Jesus viraacute

Julgamentos precipitados

Tiago orienta os crentes a se absterem de julgamentos precipitados ldquoIrmatildeos natildeo vos queixeis uns dos outros para natildeo serdes julgados Eis que o juiz estaacute agraves portasrdquo (Tg 59) Natildeo eacute totalmente certo se ele fala em relaccedilatildeo aos proacuteprios crentes ou se o assunto ainda satildeo os iacutempios que os oprimem mas eacute bastante plausiacutevel que estes uacuteltimos estejam em foco Do mesmo modo que os crentes do Antigo Testamento foram pacientes em meio ao sofrimento os cristatildeos deveriam ser agora ldquoIrmatildeos tomai por modelo no sofrimento e na paciecircncia os profetas os quais falaram em nome do Senhor Eis que temos por felizes os que perseveram firmes Tendes ouvido da paciecircncia de Joacute e vistes que fim o Senhor lhe deu porque o Senhor eacute cheio de terna misericoacuterdia e compassivordquo (Tg 51011)

A paciecircncia dos santos do passado especialmente o mais conhecido de todos neste sentido Joacute eacute evocada como exemplo de que o Senhor faz justiccedila aos seus Tiago natildeo entende que os cristatildeos devem demonstrar uma paciecircncia moacuterbida mas insiste que eles tecircm em suas matildeos uma arma poderosa a oraccedilatildeo Ele diz ldquoEstaacute algueacutem entre voacutes sofrendo Faccedila oraccedilatildeordquo (Tg 513) A oraccedilatildeo eacute o instrumento dos crentes em meio a tribulaccedilatildeo A oraccedilatildeo pode trazer cura (Tg 515) e perdatildeo (Tg 516) Para comprovar que a oraccedilatildeo tem muito poder Tiago cita Elias reconhecido como um dos profetas mais poderosos ldquoElias era homem semelhante a noacutes sujeito aos mesmos sentimentos e orou com muita insistecircncia para que natildeo chovesse sobre a terra e por trecircs anos e seis meses natildeo choveu E orou de novo e o ceacuteu deu chuva e a terra fez germinar seus frutosrdquo (Tg 51718)

Tiago enfatiza que Elias era um homem sujeito aos mesmos sofrimentos e limitaccedilotildees que os seus leitores mas pela oraccedilatildeo realizou

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

142

feitos formidaacuteveis Os crentes devem ter paciecircncia orar pois Deus pode mudar as situaccedilotildees dramaacuteticas por intermeacutedio da oraccedilatildeo As uacuteltimas palavras de Tiago satildeo um lembrete aos crentes de que devem se preocupar com os desviados dos caminhos de Deus (Tg 51920)

Haacute outros temas mais mas a relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus (que seraacute apresentada a seguir) poderaacute completar aleacutem de recordar alguns pontos jaacute tratados

A relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus

Tiago pode natildeo ter o brilho intelectual de Paulo mas seu conteuacutedo em nada difere do que o Salvador ensinou E dos apoacutestolos ele foi o que mais tempo viveu com Jesus Pelo menos a infacircncia e a adolescecircncia dos dois foram juntas O ensinamento de Jesus pode ser visto em toda a epiacutestola de Tiago

1 O cristatildeo que sofre provaccedilotildees eacute abenccediloado Tiago 12 e Mateus 510-12

2 Deus deseja que sejamos perfeitos Tiago 14 e Mateus 548

3 Ele daacute generosamente aos que lhe pedem Tiago 15 e 42 Mateus 77-8

4 Mas somente o Pai tem poder para dar boas daacutedivas Tiago 117 e Mateus 79 -11

5 E neste caso ele daacute somente aos quem tecircm feacute Tiago 16 e Marcos 11 22-24

6 Devemos natildeo apenas ouvir a palavra Mas praticaacute-la Tiago 122-25 e Mateus 7 21-27

7 Devemos tomar cuidado com as riquezas porque os pobres eacute que herdam o reino de Deus Tiago 25 e Mateus 53 Lucas 620

8 Devemos amar o proacuteximo como a noacutes mesmos Tiago 28 e Marcos 1231

9 Devemos guardar os mandamentos Tiago 210 e Mateus 519

10 Devemos mostrar misericoacuterdia para recebermos misericoacuterdia Tiago 213 e Mateus 57 1833-35

11 Eacute a aacutervore que determina o fruto Tiago 312 e Mateus 715-20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

143

12 Os pacificadores seratildeo abenccediloados Tiago 318 e Mateus 59

13 Natildeo eacute possiacutevel servir a dois senhores Cada um deve escolher entre Deus e o dinheiro Tiago 44 413-15 e Mateus 624

14 Quem se humilha seraacute exaltado Tiago 46 e 10 e Lucas 1814 Comparar isto com Tiago 19-10 e Lucas 152

15 Natildeo devemos falar mal uns dou outros ou julgar uns aos outros Tiago 412 e Mateus 71

16 Natildeo devemos elaborar planos gananciosos e mundanos para obter ganhos esquecendo-nos de Deus ou do proacuteximo Tiago 413-17 e Lucas 1216-21

17 As riquezas natildeo duram Elas se corroem as roupas satildeo consu-midas pelas traccedilas e o ouro fica embaccedilado com a ferrugem Tiago 51-3 e Mateus 619-21

18 Por isso ai dos ricos Tiago 51 e Lucas 624

19 Quem crecirc que espere pacientemente e esteja pronto para a vinda do Senhor pois ele estaacute perto agraves portas Tiago 57-9 e Lucas 1235-40 Marcos 1329

20 Os cristatildeos natildeo devem jurar nem pelo ceacuteu nem pela terra nem por qualquer outro meio de juramento Sua palavra deve ser confiaacutevel Seu sim deve ser sim e seu natildeo deve ser natildeo Suas palavras natildeo podem ter duplo sentido Tiago 512 e Mateus 533

Tiago reafirma Jesus como um homem com um ensino praacutetico e praticaacutevel O cristianismo eacute vida e natildeo sensaccedilotildees Vida correta com Deus que se evidencia em vida correta com os homens

Consideraccedilotildees finais

Percebe-se que a mensagem de Tiago eacute clara e simples Ele fala sobre a feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica pelas obras Esta feacute leva os crentes a suportarem todo tipo de sofrimento a demonstrarem a conversatildeo pelas boas obras e a esperarem em oraccedilatildeo pelo retorno de Jesus ou pela manifestaccedilatildeo libertadora de Deus

Mesmo simples a carta de Tiago eacute rica e teologicamente impor-tante de modo que natildeo concordamos com a ideia de Richardson (e de Lutero) de que eacute uma ldquoepiacutestola de palhardquo (RICHARDSON 1966 p 240

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

144

BACLAY 1974 p 16) em comparaccedilatildeo com a profunda solidez da Epiacutestola aos Romanos Ela ocupa um lugar importante no cacircnon e na Teologia do Novo Testamento responsaacutevel pela ampliaccedilatildeo do entendi-mento de um conceito essencial para a feacute do Novo Testamento o relacionamento entre feacute e obras

Termino deixando uma pergunta Se Tiago ocupasse o puacutelpito contemporacircneo que diria ele aos membros e liacutederes de nossas igrejas

Referecircncias Bibliograacuteficas

BACLAY W S I y II Pedro Buenos Aires Editorial La Aurora 1974

BAXTER S J Examinai as escrituras ndash atos a apocalipse Satildeo Paulo Ediccedilotildees vida Nova 1989

CALVIN J Commentary on the espistole of the James Albany Books for the Ages 1998

CARBALLOSA E L Tiago Una fe em accioacuten 6 ed Grand Rapids Editorial Portavoz 1994

CHAMPLIN R N Enciclopeacutedia de Biacuteblia teologia e filosofia v 6 Satildeo Paulo Editora e Distribuidora Candeia 1991

CONNER W T La fe del nuevo testamento Nashvill Casa Bautista de Publicaccedilotildees 1951

GEORGE T In ldquoA rigth strawy epistle reformation perspective on Jamesrdquo Louisville Review and Expositor ndash a baptist theological journal v LXXXIII n 3 1986

KUumlMMEL W G Introduction to the new testament Nashvill Abingdon Press 1975

LADD G E Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Exodus 1997

LUTERO Martinho Da liberdade do cristatildeo ndash prefaacutecio agrave Biacuteblia (Ediccedilatildeo Biliacutengue) Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo da Editora Unesp 1997

MARTIN R P Word biblical commentary v 48 James Dallas Texas Word Books Publisher 1998

MEARS H C Estudo panoracircmico da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida 1993

MORRIS Leon Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2003

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

145

NICHOL F D (ed) Comentario biblico adventista del septimo dia Tomo 7 Buenos Aires Asociacion Casa Editora Sudamericana 1995

PEARLMAN M Atraveacutes da Biacuteblia livro por livro Satildeo Paulo Vida 1997

PFEIFER F C HARRISON E F Comentaacuterio biacuteblico Moody v IV Satildeo Paulo Imprensa Batista Regular 1983

RICHARDSON Alan Introduccedilatildeo agrave teologia do novo testamento Satildeo Paulo ASTE 1966

SHEDD R P (ed) O novo comentaacuterio da Biacuteblia v III Satildeo Paulo Ediccedilotildees Vida Nova 1979

SHEDD R P BIZERRA E F Uma exposiccedilatildeo de Tiago a sabedoria de Deus Satildeo Paulo Shedd Publicaccedilotildees 2010

STOTT J Homens com uma mensagem Campinas Editora Cristatilde Unida 1996

WHITE E G Signs of the times 5 de setembro de 1892

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier Doutor em Teologia e professor nos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graducaccedilatildeo

do Seminaacuterio Adventista Latino Americano de Teologia ndash Cachoeira BA

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

146

A VOCACcedilAtildeO NAtildeO Eacute UMA ESCOLHA MAS UMA RESPOSTA

Ir Graccedila Disingakala Nunes

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo Tentativa de responder a trecircs questotildees fundamentais sobre a vocaccedilatildeo entendida como chamado de Deus valendo-se de muitos autores mas principalmente da contribuiccedilatildeo de Gianfranco Poli Natildeo vai certamente exaurir o assunto mas eacute uma chamada de atenccedilatildeo agraves escolas teoloacutegicas para que trabalhem este argumento de um modo mais aprofundado O tema pesquisado eacute a vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta Discorre-se entatildeo acerca de sua origem e significado o porquecirc de uma teologia da vocaccedilatildeo as caracteriacutesticas do chamado a relaccedilatildeo de intimidade com a pessoa de Jesus Cristo a resposta incondicional do homem Evidenciam-se tambeacutem os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde o discernimento as exigecircncias que o chamado comporta e de modo muito breve as dimensotildees que compotildeem fundamentalmente a resposta do homem e as consideraccedilotildees finais Toda essa dinacircmica eacute realizada mediante uma relaccedilatildeo dialogal entre as duas liberdades a de Deus que chama e a do homem que responde

Palavras-chave Deus-Trindade Vocaccedilatildeo ou Chamado Homem Encontro Igreja

Riassunto Questo articolo egrave un tentativo di rispondere a ter domande fondamentali sulla vocazione intesa come chiamata di Dio servendosi di tanti autori ma sopratutto dela contribuizione di Gianfranco Poli Non va sicuramente esaurire lrsquoassunto ma visa a scuotere lrsquoattenzione dele scuole teologiche percheacute lavorino la questione vocazione in modo piugrave profondo Il tema svolto egrave la vocazione non `e una scelta ma una risposta Si sviluppa quindi sua origine e significato il perchegrave di una teologia dela vocazione le caratteristiche della chiamata la relazione di intimitagrave com la persona di Cristo Gesugrave la risposta incondizionata dellrsquouomo Sono noti anche gli elementi centrali dela vocazione cristiana il discernimento le esigenze che la chiamata di Dio comporta e si fa cenno alle dimensioni che essenzialmente compongono la risposta dellrsquouomo e per ultimo le considerazioni finali Tutta la dinamica egrave svolta attraverso una relazione dialogica tra le due libertagrave di Dio che chiama e dellrsquouomo che risponde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

147

Parole chiavi Dio-Trinitagrave Vocazione o Chiamata Uomo Incontro Chiesa

1 Introduccedilatildeo

Haacute no Brasil e no mundo muitos escritos sobre vocaccedilatildeo mas falta uma teologia da vocaccedilatildeo ldquoFalta ainda um estudo sistemaacuteticordquo deste argumento Haacute pouco interesse nas escolas teoloacutegicas e entre os teoacutelogos no sentido de aprofundar este assunto1 A ausecircncia de fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica das vocaccedilotildees eacute negativa enquanto a praacutexis permanece sem fundamentaccedilatildeo conforme constatou Joseacute Lisboa Moreira de Oliveira na sua Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo2 Eacute tatildeo verdade o fato de o tema vocaccedilatildeo carecer de estudo sistemaacutetico que outros autores fazem esta constataccedilatildeo Exemplo Gianfranco Poli na sua exposiccedilatildeo sobre o assunto Tra vocazione e domanda di senso natildeo hesita em afirmar que a palavra vocaccedilatildeo eacute muitas vezes usada e repetidamente mas raramente se precisa o seu conteuacutedo

Advertimos para a necessidade natildeo soacute no Brasil mas tambeacutem no mundo de explicitar o que entendemos acerca de vocaccedilatildeo Para isso Gianfranco Poli trata a vocaccedilatildeo em trecircs momentos esclarecer o sujeito que chama colocar em realce os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde oferecer algumas indicaccedilotildees a respeito do homem que responde ou simplesmente eacute possiacutevel indicar estes trecircs momentos formulando trecircs perguntas quem chama A que coisa chama Em que modo se responde3

Eacute a essas perguntas que tentaremos responder com suporte na abordagem de Gianfranco Poli oferecendo ao assunto vocaccedilatildeo mais um subsiacutedio sem a pretensatildeo de exauri-lo

O tema eacute estruturado com uma introduccedilatildeo cinco partes e suas subdivisotildees Iordf parte Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo Por que teologia da vocaccedilatildeo Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo IIordf parte Dimensatildeo Trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde A vocaccedilatildeo do homem Quem chama Por que chama Para que chama Como chama IIIordf parte Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde Como saber que eacute Deus quem me chama A vocaccedilatildeo natildeo eacute 1 Cf DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992 nordm 244 2 OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996) p 22-31 3 Cf POLI Gianfranco ldquoLa cultura della vocazione tra vocazione e domanda di sensordquo in BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teologica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010 p 20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

148

uma escolha mas uma resposta Como responder Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees Consideraccedilotildees finais

2 Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo

Vocaccedilatildeo eacute um termo derivado do verbo latino vocare que significa chamar Vocaccedilatildeo eacute assim chamado convite apelo Eacute ato de chamar da parte de Deus eacute um estado de relaccedilatildeo entre Deus e o homem eacute diaacutelogo porque haacute atenccedilatildeo para com o outro Vocaccedilatildeo eacute encontro de duas liberdades a liberdade absoluta de Deus que chama e a liberdade do homem que responde Vocaccedilatildeo eacute um dom que exige resposta de feacute

Sendo um ato que brota do mais profundo do ser a vocaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com a inclinaccedilatildeo para exercer determinada profissatildeo ou um talento (aptidatildeo natural) para executar algo alguma atividade A vocaccedilatildeo eacute um chamado para amar eacute chamado ao serviccedilo (1Jo 47-21 Mc 1045) eacute a realizaccedilatildeo de um sonho

Na Biacuteblia vocaccedilatildeo estaacute em estreita relaccedilatildeo com eleiccedilatildeo e missatildeo4 Eleiccedilatildeo significa escolher um ou alguns entre tantos eacute uma predileccedilatildeo De tal maneira vocaccedilatildeo eacute um dom com o qual Deus preferiu a mim a vocecirc e natildeo a outro natildeo por merecimentos nossos mas por puro amor e em vista de uma missatildeo especiacutefica que a pessoa chamada vai desccedilo-brindo ao longo da sua vida visto que vocaccedilatildeo eacute um estado de relaccedilatildeo com Deus

21 Por que uma teologia da vocaccedilatildeo

A vocaccedilatildeo eacute um ato teoloacutegico e antropoloacutegico porque envolve Deus e o homem Eacute dom que vem do Alto iniciativa do Pai ldquoque atrai a Si uma criatura sua por um amor de predileccedilatildeo e em ordem a uma missatildeo especialrdquo5 Eacute Deus que no iacutentimo inspira agrave alma o desejo de abraccedilar o projeto de Deus seja no matrimocircnio como na vida consagrada O fato de Deus escolher algueacutem com amor de predileccedilatildeo no entanto natildeo obriga a pessoa escolhida porque sua eleiccedilatildeo se torna convite diante do qual ela eacute livre para responder sim ou natildeo Ao mesmo tempo poreacutem Deus tem um jeito todo particular de se aproximar do homem que quase

4 VOCACcedilAtildeO in CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997 5 Cf JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996 n 17

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

149

ningueacutem resiste em responder sim Acontece exatamente o que acentua Jeremias ldquoseduzistes-me Senhor e eu me deixei seduzirrdquo (cf Jr 207)

22 Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo

Pela sua natureza dialoacutegica a vocaccedilatildeo eacute relacional comunitaacuteria missionaacuteria e dinacircmica A origem de toda a vocaccedilatildeo estaacute na relaccedilatildeo com a Santiacutessima Trindade ()6 Soacute quem ficou seduzido (Jr 207) e permanece na intimidade (Os 216 1Ts 417 Jo 1724 1Pd 51) pode entender a beleza e a riqueza desta peacuterola preciosa

O diaacutelogo pessoal com Deus tambeacutem eacute comunitaacuterio nos dois sentidos de um lado acontece numa comunidade bem concreta (Mt 2531-46) de outro Deus chama mediante o ldquoclamorrdquo do povo que sofre (cf Ex 31-10 Jr 114-10) A vocaccedilatildeo eacute comunhatildeo com a Trindade que se traduz concretamente na experiecircncia de verdadeira irmandade Ela eacute comunicaccedilatildeo isto eacute vida de comunhatildeo e de participaccedilatildeo Responder ao chamado eacute inserir-se na vida da comunidade com uma missatildeo bem precisa tomar parte ativa na construccedilatildeo do Reino Vocaccedilatildeo natildeo eacute isolamento busca de satisfaccedilotildees de ldquorealizaccedilatildeo pessoalrdquo Natildeo eacute realizar ldquoprojetos pessoaisrdquo mas dar a vida pela defesa da vida (Jo 1011 1513)

3 Dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde

Desde o Concilio Vaticano II a vocaccedilatildeo eacute vista como chamado agrave comunhatildeo com o Pai pelo Filho no Espiacuterito Santo7 O segundo Congresso Internacional das vocaccedilotildees (Roma 1981) no seu documento conclusivo explicita de forma definitiva e muito clara esta dimensatildeo trinitaacuteria ldquoCada vocaccedilatildeo estaacute ligada ao desiacutegnio do Pai agrave missatildeo do Filho agrave obra do Espiacuterito Santo Cada vocaccedilatildeo eacute iluminada e fortalecida agrave luz do misteacuterio de Deusrdquo8

O Papa Bento XVI ressalta esta dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo quando afirma logo no iniacutecio de sua primeira mensagem vocacional que ldquoo Pai do ceacuteu nos escolheu pessoalmente para nos chamar a entrar em

6 CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla Satildeo Paulo Paulinas 2004 13 Ed nordm 212 7 Cf VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM Satildeo Paulo Paulinas 1999 13ordf Ed nordm 4 8 II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Vocacional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982 nordm 7

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

150

relaccedilatildeo filial com Ele por meio de Jesus Verbo feito carne sob a guia do Espiacuterito Santo9rdquo 31 A vocaccedilatildeo do homem

O homem existe porque Deus lhe dirigiu a palavra o chamou agrave existecircncia convocando-o para ser Seu interlocutor A vocaccedilatildeo eacute a palavra que Deus dirige ao homem e que o faz existir imprimindo nele a marca dialogal Se o homem foi criado pela conversaccedilatildeo com Deus e eacute assim aquele que eacute chamado a falar a expressar-se a comunicar-se a responder o tempo que tem a disposiccedilatildeo pode ser entendido como o tempo para realizar sua vocaccedilatildeo

Ora em que consiste a vocaccedilatildeo do homem senatildeo na sua plena realizaccedilatildeo no amor ao interno do princiacutepio dialoacutegico no qual foi criado com Deus como primeiro interlocutor ldquoVocaccedilatildeo entatildeo eacute um processo de maturaccedilatildeo de relaccedilotildees que culmina no amor a Cristo que eacute a plena realizaccedilatildeo do amor na sua pessoa10rdquo Em satildeo Paulo encontramos a confirmaccedilatildeo desta verdade ldquoqualquer coisa o homem faccedila fora do seu amor natildeo serve a nada aliaacutes eacute vatilde e esperdiacutecio de tempordquo (1Cor 13)

32 Quem chama

O sujeito e autor de todo o chamado eacute Deus Eacute preciso poreacutem entender por que Deus chama qual intenccedilatildeo O move de qual vontade eacute animado Um texto de Paulo aos Efeacutesios nos abre horizontes infinitos

Bendito seja Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que do alto do ceacuteu nos abenccediloou com toda a becircnccedilatildeo espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criaccedilatildeo do mundo para sermos santos e irrepreensiacuteveis diante de seus olhos No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo segundo o beneplaacutecito de sua livre vontade (Ef 13-5)

Nossa existecircncia tem raiz no coraccedilatildeo de Deus que nos desejou ldquofaccedilamos o homem agrave nossa imagem como nossa semelhanccedilardquo (Gn 1 26a) que desde a eternidade nos quis como ldquofilhos adotivosrdquo agrave imagem do seu Filho Jesus Existir eacute a primeira e fundamental vocaccedilatildeo do ser humano (cf Gn 27) As outras vocaccedilotildees dela decorrem e nela se sustentam Eacute o amor agrave

9 BENTO XVI A primeira mensagem vocacional in httpwwwportalcatolicoorgbr portala-primeira-mensagem-vocacional-de-bento-xvi Acesso em 040452015 10Cf RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000 p 21-22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

151

vida que possibilita se empenhar em tantas outras dimensotildees da existecircncia humana

33 Por que chama Os motivos do chamado

Vocaccedilatildeo eacute accedilatildeo de chamar por parte de Deus como sua iniciativa de amor corresponsaacutevel (Is 591 Jr 15 Rm 912 Gl 115 58) Deus chama porque ama (cf Dt 76-8 236 Jo 1516 Mc 312) Segundo a Biacuteblia missatildeo eacute o elemento central da vocaccedilatildeo11 Quando Deus chama algueacutem o faz para uma missatildeo a fim de fazer alguma coisa em funccedilatildeo de uma pessoa ou de uma comunidade A missatildeo eacute sempre um encargo

ldquoDeus criou-nos para compartilhar a sua proacutepria vida chama-nos para sermos seus filhos membros vivos do Corpo miacutestico de Cristo templos luminosos do Espiacuterito do Amor Chama-nos para ser ldquoseusrdquo quer que todos sejam santos12rdquo

Ante o chamado que Deus faz a cada um de noacutes eacute preciso ter coragem para deixar tudo se abandonar por inteiro ir aonde Ele mandar e fazer aquilo que Ele pedir Coragem eacute um dos passos mais importantes para um caminho vocacional bem-sucedido Eacute preciso ter coragem para entregar-se nas matildeos do bom oleiro e deixar-se moldar para enfrentar todas as tempestades do caminho todas as vicissitudes Coragem pra deixar tudo e dizer Sim a Deus

Natildeo temas ldquoCoragem Levanta-te ele te chamardquo (Mc 10 49) Ama-te e conta contigo para estabelecimento de um Reino de amor que jamais teraacute fim Amor eacute a origem e o fim de toda vocaccedilatildeo e o Deus que nos criou sem noacutes natildeo nos salva sem noacutes constata Santo Agostinho Somos chamados a colaborar no plano da salvaccedilatildeo Ele precisa do teu sim generoso e gratuito

34 Para que chama

A autoria de Deus sobre o chamado eacute contiacutenua Todos os dias Deus chama o homem para uma vida de relaccedilatildeo filial para elevaacute-lo agrave comunhatildeo com a Trindade

11wwwparoquiasaobeneditongorgbrblogp=1087 Acesso em 29102015 12JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iiptmessagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes _29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em em 29102015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

152

O uacutenico e mesmo Espiacuterito distribui seus dons a cada um conforme quer para que todo dom sem exceccedilatildeo seja para utilidade de todos para o bem da comunidade (cf 1Cor 127 11)Todo chamado eacute voltado para servir para dar sentido agrave proacutepria existecircncia doando-se

Ao se falar da vocaccedilatildeo a palavra sentido pode significar possibi-lidade e capacidade de siacutentese na proacutepria accedilatildeo cotidiana como tambeacutem abertura a um futuro em que o sentido da proacutepria vida seja menos contraditoacuterio ou contudo mais feliz e harmonioso Entatildeo a finalidade do chamado eacute de um movimento rotatoacuterio que tem como eixo Deus O ponto de partida e de chegada eacute Deus

Quanto mais o homem se relaciona com Deus mais se sente realizado e se torna capaz de doar-se sair de si e ir ao encontro do outro A realizaccedilatildeo de que se fala eacute no sentido de ser feliz do que se eacute e se faz Acreditamos ser esta a condiccedilatildeo de servir gratuitamente Assim sendo a vocaccedilatildeo visa em primeiro lugar agrave realizaccedilatildeo pessoal daquele que eacute chamado que busca um sentido da sua vida na descoberta do propoacutesito de Deus para si mediante o serviccedilo agrave comunidade de irmatildeos Na medida em que a pessoa se acha realizada em certa opccedilatildeo sente a exigecircncia de responder por via do serviccedilo E seraacute realmente um serviccedilo gratuito que natildeo espera outro em troca porque se sente bem servindo e o amor ao proacuteximo por sua vez eacute inseparaacutevel do amor a Deus A verdadeira felicidade estaacute em servirmos ao outro e a Deus 13

Sendo a vocaccedilatildeo antes de tudo um relacionamento com Jesus Cristo eacute inconcebiacutevel falar de uma vocaccedilatildeo cristatilde fora da Igreja pois eacute nela e por seu intermeacutedio que Cristo realiza e revela o proacuteprio misteacuterio como meta do desiacutegnio de Deus ldquoRecapitular tudo nelerdquo (Ef 110)

35 Como chama O modo

DeusndashPai nos chama pelo nome e sua voz chega ao homem em dois modos imediato e mediato Imediato Deus chama por meio de um desejo iacutentimo e profundo a inspiraccedilatildeo divina que impele para um estado de vida Costuma haver no mais iacutentimo da pessoa uma atraccedilatildeo essencial para formas de ser e de viver fundamentais por intermeacutedio do ambiente isto eacute das relaccedilotildees pessoais que vatildeo despertando o chamado por meio da histoacuteria pessoal (muito relevante) Mediato Deus fala pelas mediaccedilotildees Palavra escrita (e a falada) a vida de Cristo por meio da histoacuteria

13 httpformacaocancaonovacomdiversosa-vocacao-profissional Acesso em 05112015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

153

situaccedilotildees acontecimentos definidos sinais dos tempos e das pessoas (cf 1Sm 38-9)

Deus natildeo chama os homens do mesmo modo porque Ele chama por nome numa certa histoacuteria situaccedilatildeo cultura Nos relatos da Biacuteblia esta diferenccedila eacute notoacuteria algumas personagens satildeo demoradas em dizer sim e Deus tem paciecircncia e pelo diaacutelogo vai levando o chamado a uma resposta consciente como eacute o caso de Gedeatildeo (cf Jz 611-40) pois foi necessaacuterio trecircs vezes Deus prometer a sua presenccedila para se sentir seguro ao passo que natildeo foi assim com o disciacutepulo que pede para enterrar primeiro seu pai (Mt 821-22) a quem Jesus responde ldquoSegue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortosrdquo

Deus chama mediante Sua Palavra da natureza dos acontecimentos da histoacuteria significa que para escutaacute-Lo devemos estar atentos e cultivar uma atitude interior de silecircncio de escuta de meditaccedilatildeo de contemplaccedilatildeo No Novo Testamento a primeira accedilatildeo que Jesus desenvolveu no seu ministeacuterio de vida puacuteblica eacute uma ldquovocaccedilatildeordquo eacute a chamada de dois dos seus disciacutepulos Antes de tudo o chamado pede conversatildeo isto eacute seguir Jesus com o desejo de conformar-se agrave Sua pessoa

Nossa vocaccedilatildeo encontra jaacute a primeira revelaccedilatildeo no nome de cada um por isso Jesus chamaraacute Simatildeo de Pedro porque a sua missatildeo e a sua chamada seraacute aquela de ser rocha sobre a qual fundar a Igreja de Cristo Aleacutem disso os apoacutestolos satildeo chamados um a um e por nome para serem identificados na sua unicidade

4 Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde

Na Biacuteblia a vocaccedilatildeo eacute sempre de autoria do proacuteprio Deus que chama escolhe cada homem e mulher Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento o chamado pode se manifestar de modo mediato ou imediato

Segundo o esquema biacuteblico-literaacuterio satildeo elementos essenciais da vocaccedilatildeo iniciativa de Deus obediecircncia pela feacute temor e tremor investidura ou missatildeo Apesar de nem todas as caracteriacutesticas existirem em todas as vocaccedilotildees em todo tipo de vocaccedilatildeo haacute iniciativa de Deus o seguimento e a Missatildeo14

No Novo Testamento assim como no Velho Testamento a iniciativa de chamar algueacutem eacute sempre de Deus (Mt 99 101 Mc 1 1719-20 313 511 14 Cf Biacuteblia Sagrada Ediccedilatildeo da Famiacutelia Petroacutepolis Vozes 2005 p 1545

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

154

At 9 3-6) A iniciativa de Deus no entanto natildeo elimina nem substitui a resposta do homem jamais anula a participaccedilatildeo e a responsabilidade da pessoa chamada15 Natildeo eacute contudo por meio de uma manifestaccedilatildeo velada pela Palavra do Senhor nem da mediaccedilatildeo de outro homem que Deus age pois antes Ele atua na histoacuteria pessoalmente intermediado por Seu Filho que se fez carne (Jo 114)

Em ambos os Testamentos os escolhidos satildeo designados para uma missatildeo ldquoTal missatildeo eacute a participaccedilatildeo na compaixatildeo pastoral de Jesus ajudaacute-lo na sua missatildeo de serviccedilo agrave necessidade mais profunda das pessoasrdquo 16 Aquele que eacute chamado a seguir Jesus eacute convidado a ter aquilo que Satildeo Paulo pede aos filipenses isto eacute os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 25ss) que eacute a praacutetica da feacute esperanccedila e caridade ldquoNa vivecircncia dessas trecircs virtudes teologais se encontra a fundamental explicitaccedilatildeo da opccedilatildeo fundamental de seguir Cristo17rdquo

O esquema literaacuterio das narrativas vocacionais se repete em muitos casos no Antigo e no Novo Testamento chamado rejeiccedilatildeo ao chamado explicitaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo da missatildeo A novidade estaacute no Segundo Testamento que entende a vocaccedilatildeo agrave santidade e consagraccedilatildeo a Deus em relaccedilatildeo ao Espiacuterito Santo e Jesus

O singular do chamado no Novo Testamento eacute que todos satildeo realizados sob o signo da Nova Alianccedila isto eacute sob o signo da figura de Jesus Eles satildeo enviados e convidados a levar ao povo a presenccedila do proacuteprio Senhor18

A realizaccedilatildeo da vocaccedilatildeo de Jesus para o serviccedilo do Reino eacute expressa de modo claro em Lc 4 14-22 remir os presos recuperar a vista 15 MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro tostado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001 p 26 e 29 16 Cf PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991 p 400 17 Cf GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998 p 20 18 Alguns exemplos do chamado nos quais o aspecto missionaacuterio eacute evidente Abraatildeo e Sara chamados para formar um povo (Gn 121-9 Sb 105 At 7 2-3 e Hb 11 8) Moiseacutes a vocaccedilatildeo de um libertador (Ex 3 1-15 4 1-17 6 2-13 6 28-30 71-7 5) Isaiacuteas vocaccedilatildeo para denunciar e anunciar (Is 6 1-10) Maria vocaccedilatildeo para ser a matildee de Deus Apoacutestolos vocaccedilatildeo de propagar os ensinamentos de Jesus (Jo 135-394051 Lc 54-10 Lc 612-16 Mc 117-20 Mc 2 13-17 Mt 412-22 At 115-26) Paulo vocaccedilatildeo de continuar a missatildeo de Jesus ressuscitado (At 91-19 221-21 262-18) Jesus siacutentese da vocaccedilatildeo profeacutetica (Lc 4 14-22 Hb 51-10 Ap 1913 Jo 11-83036 314-19 331-34 4252634 442 530363843 62938-40 64450-5157 71628-2933 81618 11274252 1213273746-49 1424311521 16527 17468 171418212325 181137 19 2021-22)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

155

dos cegos restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graccedila do Senhor

41 Como saber que eacute Deus quem me chama

Vocaccedilatildeo eacute um chamado ao diaacutelogo com Deus em Jesus no Espiacuterito Santo Deus fala chama e pede ao homem de escutaacute-Lo (cf Mc 97) Escutar significa dar atenccedilatildeo ouvir e interiorizar o conteuacutedo da conversa interagir dar adesatildeo uma resposta Vocaccedilatildeo eacute um conhecer e deixar-se conhecer mediante o diaacutelogo com a Trindade Estes dois atos satildeo feitos simultacircnea e cotidianamente A vocaccedilatildeo nasce de um encontro pessoal com Cristo Deus-Amor nos chama em Cristo e o Espiacuterito Santo faz o homem participar desse amor do Pai Uma autecircntica experiecircncia de ser salvado pelo Senhor habilita a compreensatildeo de que eacute o Senhor que chama19

A descoberta da proacutepria vocaccedilatildeo eacute um processo que dura por toda a vida eacute um trabalho de elaboraccedilatildeo de si da proacutepria identidade um trabalho que exige atenccedilatildeo paciecircncia docilidade para acolher a palavra de Deus sensibilidade discernimento e tambeacutem a ajuda de um orientador ou diretor espiritual O chamado eacute entendido e decifrado com base numa ldquoexperiecircncia pessoal com Deusrdquo Nessa experiecircncia Ele revela o seu projeto para noacutes assim como fez com Moiseacutes (cf Ex3 4) e Pedro (Jo 2115-19)

42 A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta

O seguimento de Jesus Cristo comporta trecircs implicaccedilotildees encontro chamado e caminho O encontro suscita um desejo um deixar-se seduzir pelo amor O chamado sustenta esse desejo ou correspondecircncia e ainda este se desenvolve numa inquietaccedilatildeo constante sempre crescente ateacute responder E o caminho eacute o carisma ou a maneira de realizar esse projeto Estes trecircs passos se realizam numa simbiose vocacional surpreendente

Um olhar superficial dos relatos biacuteblicos sobre a vocaccedilatildeo pode levar-nos a concluir que vocaccedilatildeo eacute uma escolha pessoal iniciativa daquele que busca realizar suas inclinaccedilotildees mais profundas Uma anaacutelise mais percuciente no entanto nos desarma ao revelar que apesar de toda a nossa boa vontade e empenho pessoal num determinado chamado a nossa accedilatildeo natildeo passa de uma resposta agrave iniciativa de Deus que quis da nossa existecircncia e felicidade desde sempre (cf Jr 15)

19 Cf RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001 p 116 e 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

156

Nos Evangelhos Jesus chama a Si aqueles aos quais depois faraacute seus disciacutepulos ldquoNatildeo fostes voacutes que me escolhestes mas eu escolhi a voacutes e vos constitui para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneccedilardquo (Jo 1516)

Na origem de cada autecircntica chamada portanto estaacute o Senhor que escolhe e convida ao seu seguimento A Igreja manifesta na diversidade e na multiplicidade das vocaccedilotildees a riqueza do Espiacuterito que distribui livremente os seus dons segundo o projeto divino () A vocaccedilatildeo natildeo se constroacutei se recebe de Deus e sua realizaccedilatildeo depende da resposta que cada um sabe dar Viver de fato eacute responder20

A vocaccedilatildeo poreacutem natildeo eacute predestinaccedilatildeo (Ef 14 Jr 15) mas apelo do Pai dirigido agrave pessoa humana livre (Mt 1921 Gn 128-31)O projeto de Deus para a pessoa natildeo eacute algo estaacutetico predeterminado preestabelecido mas um apelo que se faz por via de mediaccedilotildees bem concretas (Jo 135-50) Deste modo a pessoa pode dizer ldquosimrdquo como Maria (Lc 138) fazendo acontecer a histoacuteria da salvaccedilatildeo ou dizer ldquonatildeordquo como o jovem rico (Mt 1922) frustrando o projeto de amor do Pai Da nossa resposta ao chamado de Deus depende a nossa felicidade O homem que diz sim se reencontra encontrando Deus e o que diz natildeo se perde

43 Como responder

A vocaccedilatildeo eacute um convite que se transforma em apelo o qual exprime uma proposta propositura que se torna eleiccedilatildeo escolha que solicita uma resposta21 O significado de cada um desses termos eacute muito profundo Convite eacute o ato de fazer uma proposta que se supotildee agradaacutevel Apelo eacute chamar algueacutem por nome Proposta eacute quanto vem apresentado agrave atenccedilatildeo e agrave aceitaccedilatildeo do outro um projeto Eleiccedilatildeo eacute o processo pelo qual um grupo designa um de seus integrantes para ocupar um determinado cargo com apelo a uma votaccedilatildeo Resposta eacute o ato de satisfazer uma chamada Deus espera uma resposta da nossa parte uma adesatildeo ao cumprimento da sua vontade sobre noacutes Deveriacuteamos ser agradecidos e sentir-nos honrados quando Deus se digna a nos chamar a colaborar da Sua missatildeo salviacutefica

20 httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa-non-ehtml Acesso em 29052015 21Cf PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus p 1385

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

157

44 Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A vida do cristatildeo eacute ldquosequela Christirdquo seguimento de Cristo em busca do caminho traccedilado por Ele para ser na Igreja e no mundo sinal inconfundiacutevel de amor e modelo de vida generosa e exemplar

A dimensatildeo do dom eacute a totalidade que prende a vida plenamente radicando-a no uacutenico absoluto que eacute Deus Instaura-se uma relaccedilatildeo que interessa o profundo do ser e que natildeo se confunde no anonimato Jesus busca a mim proacuteprio a mim Como um dia chamou por nome Abraatildeo Samuel Pedro Saulo assim ainda hoje o Pastor divino tem para cada ovelhinha nome uacutenico ldquoirrepetiacutevelrdquo22 distinto de qualquer outro nome ou som e que somente aquele que eacute chamado eacute capaz de perceber O ldquodeixa os mortos sepultar os seus mortosrdquo (Mt 822) o ldquoSegue-merdquo (Jo 2122) e o ldquonatildeo eacute digno do reino de Deusrdquo (Lc 959-62) mostram que as exigecircncias do chamado satildeo totais e natildeo admitem condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A radicalidade da resposta eacute uma exigecircncia fundamental do seguimento Natildeo se consente algum tipo de reenvio ou prorrogaccedilatildeo nem mesmo se nos encontraacutessemos diante de um motivo de grande valor moral e social como a necessidade de ldquosepultar o pairdquo a pessoa de Jesus exige uma prioridade absoluta e incondicionada ainda mais que Ele convida a anunciar ldquoo reino de Deusrdquo ao qual tudo eacute subordinado (cf Mt 633)

Trecircs dimensotildees satildeo necessaacuterias para uma resposta total liberdade como possibilidade de escolha de ausecircncia de constriccedilatildeo exterior e interior que permite de fazer uma eleiccedilatildeo autocircnoma gratuidade como alegria de servir no amor e sem esperar nada em troca eacute ter os sentimentos de Cristo Jesus (cf Fl 25) e dom ldquo o dom entra em cena quando descubro a dimensatildeo do outro como sujeito quando a categoria da gratuidade se torna a mola do meu agir e tambeacutem a descoberta do meu ser da minha dignidade e a do outro como pessoa humana pelo que viver a experiecircncia do dom significa substancialmente fazer experiecircncia de liberdaderdquo23

22 Cf CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006 p 61 23 Cf POLI Gianfranco La cultura della vocazione p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

158

5 Consideraccedilotildees finais

O objetivo geral do trabalho eacute mostrar que o argumento lsquovocaccedilatildeorsquo carece de um estudo sistemaacutetico de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica Com este escrito constatamos a necessidade de um estudo sistemaacutetico que esclareccedila o que entendemos quando falamos de vocaccedilatildeo Isto porque efetivar uma vocaccedilatildeo segundo o projeto de Deus contribui para o bem natildeo somente pessoal ou da instituiccedilatildeo a que se pertence mas do corpo como todo a Igreja Entatildeo vale muito despertar as escolas teoloacutegicas a abraccedilarem esta causa como questatildeo urgente levando seus teoacutelogos a reflexotildees mais aprofundadas com embasamento biacuteblico

Durante a realizaccedilatildeo do trabalho assumimos os desafios de ler textos em liacutengua italiana e de individuar entre o abundante conteuacutedo pesquisado qual responderia melhor ao tema Natildeo foi faacutecil descartarmos tantos conceitos e tentarmos nos ater ao tema com poucas paacuteginas

No desenvolvimento do assunto vimos que a vocaccedilatildeo eacute um ato dinacircmico um procedimento gradual uma histoacuteria de amor um relaciona-mento profundo com Deus por meio do Filho no Espiacuterito Santo e que por isso requer entrar na intimidade com Deus estar a soacutes na escola do Mestre pois a vocaccedilatildeo como ato de chamar conta com o envolvimento de dois sujeitos Deus que chama e o homem que responde

A iniciativa eacute sempre de Deus que chama para uma missatildeo especiacutefica na comunidade eclesial de onde nasce e cresce a mesma Deus se manifesta por intermeacutedio dos acontecimentos do mundo e da histoacuteria pessoal Ele precisa da nossa resposta concreta generosa e sem condicionamentos para continuar Sua obra da salvaccedilatildeo hoje

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

159

Referecircncias Bibliograacuteficas

ALBERTO Cosegrave la vocazione Cosa non egrave httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa -non-ehtml Acesso 29052015

BENTO XVI A primeira mensagem vocacional httpwwwportalcatolicoorgbrportala-primeira-mensagem-vocacio nal-de-bento-xvi Acesso em 040452015

BIacuteBLIA SAGRADA EDICcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA Petroacutepolis Vozes 2005

CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997

CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 2004

CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006

DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992

GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998

II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Voca-cional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982

JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996

JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iipt messagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes_29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em 29102015

MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro testado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001

OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996)

PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus 1999

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

160

PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991

POLI Gianfranco La cultura della vocazione tra vocazione e domanda di senso In BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teoloacutegica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010

RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000

RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001

VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 1999

Ir Graccedila Disingakala Nunes Aluna do Curso de Especializaccedilatildeo para qualificaccedilatildeo de formadores

na Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Artigo escrito sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

161

A EacuteTICA POLIacuteTICA EM MAQUIAVEL

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

Resumo

Na obra maquiaveliana encontra-se uma nova concepccedilatildeo da poliacutetica que se distancia das concepccedilotildees claacutessica patriacutestica e escolaacutestica Suas fontes satildeo as praticas poliacuteticas contemporacircneas e os escritos do historiador Tito Liacutevio O objetivo do seu estudo eacute uma Itaacutelia unida Nesta nova abordagem ganha interesse e destaque a relaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica assunto tratado especialmente na obra O Priacutencipe

Palavras-chave Renascimento Itaacutelia Maquiavel Eacutetica Poliacutetica

Abstract In the Machiavellian work we find is a new conception of politics which moves away from the classical patristic and scholastic conceptions His sources are contemporary political practices and the writings of the historian Titus Livius The purpose of his study is a united Italy In this new vision great interest and highlight are given to the relationship between ethics and politics specially treated in the work De Principe

Keywords Renaissance Italy Machiavelli Ethics Politics

1 Introduccedilatildeo

Satildeo conhecidos o vigor e a profundidade do pensamento do filoacutesofo poliacutetico Maquiavel1 Entre as suas obras que satildeo muacuteltiplas e de variados

1 Niccoloacute di Bernardo del Machiaveli nasceu na cidade de Florenccedila no dia 3 de maio de 1469 Sua vida desenvolveu sob o signo da poliacutetica a que dedicou tanto no campo teoacuterico como no praacutetico todos os seus esforccedilos materiais e intelectuais A poliacutetica como ele confessa estava no seu sangue Desde cedo Maquiavel foi incentivado por seu pai a se dedicar aacute leitura dos autores da Antiguidade Claacutessica como Virgiacutelio e Tito Liacutevio Sua juventude foi marcada pelos acontecimentos turbulentos da sua cidade natal que fazia parte de uma Itaacutelia assolada e perturbada por disputas poliacuteticas natildeo somente de acircmbito local como tambeacutem de forccedilas estrangeiras como Franccedila e Espanha que se aproveitaram das lutas internas da Peniacutensula Apeninica e da cidade de Florenccedila para sobretudo aumen-tarem a sua influecircncia Conta-se que Maquiavel aos nove anos assistiu ao assasinato de Juliano de Meacutedici e ao ferimento de Lourenccedilo de Meacutedici O ano de 1498 que viu a execuccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

162

gecircneros a De Principe eacute de longe a mais conhecida e analisada2 As outras de cunho poliacutetico natildeo deixam se ter interesse e importacircncia mas natildeo desenvolvem com a mesma clareza e pujanccedila o nuacutecleo do seu pensamento poliacutetico de modo especial o seu carter moral e eacutetico

O estudo ora expresso intenta com suporte nessa obra e preferen-cialmente nela comentar e descrever a eacutetica poliacutetica maquiaveliana que significa uma reviravolta em comparaccedilatildeo com a ideia natildeo somente a claacutessica mas tambeacutem cristatilde que quase sem exceccedilatildeo ateacute agrave eacutepoca da Baixa Idade Meacutedia se baseia quase exclusivamente no pensamento bem ou mal interpretado de SantrsquoAgostinho

2 As fontes da formaccedilatildeo de Maquiavel como pensador poliacutetico

Ao ler e refletir o pensamento poliacutetico de Maquiavel saltam aos olhos natildeo somente o seu profundo conhecimento a respeito da histoacuteria da Itaacutelia especificamente quando da eacutepoca do Impeacuterio Romano como tambeacutem os vestiacutegios de uma profiacutecua e intensa atividade diplomaacutetica Neste aspecto destacou-se por intermeacutedio de missotildees diplomaacuteticas vitoriosas ndash umas mais outras menos importantes - em vaacuterios estados da Peniacutensula Italiana inclusive em centros de poder nacional de grande envergadura tais como a Franccedila e a Alemanha

21 A atividade diplomaacutetica de Maquiavel

Logo apoacutes o dantesco e triste espetaacuteculo do julgamento da conde-naccedilatildeo e da execuccedilatildeo na fogueira do profeacutetico Jerocircnimo Savanarola na Praccedila da Senhoria reinstala-se em Florenccedila a Repuacuteblica Livre para alguns

de Savanarola pode ser considerado como a entrada de Maquiavel na poliacutetica sendo ele chamado a exercer o cargo de secretaacuterio da Segunda Chancelaria da Repuacuteblica de Florenccedila Em seguida ele se tornou um dos principais auxiliares do gonfaloniero vitaliacutecio Piero Soderini sendo encarregado dos assuntos diplomaacuteticos Quando Soderini caiu Maquiavel perdeu o cargo destituiacutedo pelos novos donos do poder ateacute a sua anistia concedida pelo Papa Leatildeo X da famiacutelia dos Meacutedicis Maquiavel esforccedilou-se ao maacuteximo para cair nas graccedilas dos Meacutedicis Quando estes caiacuteram e a Repuacuteblica foi reinstalada em Florenccedila Maquiavel visto com desconfianccedila retirou-se da vida publica Morreu no dia 21 de junho de 1527 2 Pode-se dividir a obra de Maquiavel em trecircs grandes setores que facilitam e ajudam na sua vasta atividade literaacuteria 1- Correspondecircncia tanto particular como oficial 2- obras literaacuterias poesia (eg) a famosa obra inacabada o Asno de Ouro) prosa (Discurso Moral que exorta a penitecircncia) teatro e novelas (vg Mandraacutegora em que se expotildee a degradaccedilatildeo moral e religiosa e se afirma a corrupccedilatildeo como inerente aacute natureza humana) 3- obras poliacutetico-histoacutericas (eo Discurso sobre a primeira deacutecada de Tito Livio)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

163

uma dinastia camuflada Suprime-se a teocracia e retoma-se o regime aristocraacutetico Foi aiacute em 1498 que Maquiavel com quase 30 anos de idade foi sorteado para exercer o cargo de secretaacuterio da 2ordf Chancelaria do Estado Livre da Repuacuteblica de Florenccedila E logo depois passou a realizar tambeacutem tarefas para a comissatildeo dos Dez do Poder ou Dez da Guerra

Como chanceler Maquiavel realizou a primeira legaccedilatildeo junto agrave Duquesa de Imola e Forli onde renegociou o soldo pago pelo Governo Florentino ao ldquocondottiererdquo3 Otaviano Florenccedila contratara o filho da Duquesa por 15 mil ducados soma considerada exorbitante por Florenccedila Maquiavel teve ecircxito conseguiu reduzir o soldo como tambeacutem recebeu auxiacutelio militar da duquesa - na forma de tropas de soldados e artilharia ndash de grande valor na ocupaccedilatildeo de Pisa4 Desde entatildeo o Diplomata Florentino comeccedilou a ser considerado e tratado como um haacutebil conciliador Entusiasmado com o prestiacutegio e a experiecircncia adquiridos escreveu o primeiro texto poliacutetico Discorso fatto a Magistrato dei Dieci sopra le cose de Pisa

Nuvens negras e sombrias no entanto continuaram a se espalhar e ameaccedilaram empanar o brilho do cenaacuterio poliacutetico florentino Segundo relato5 Pisa rebelara-se mais uma vez cortando o acesso de Florenccedila ao mar pelo rio Arno O rei Luis XII de Franccedila concordara em apoiar Florenccedila na guerra contra Pisa As tropas mercenaacuterias que o Monarca enviara no entanto natildeo cumpriram bem o seu papel acarretando seacuterios problemas ao Estado de Florenccedila Aqui estava uma delicada situaccedilatildeo expor tal reclamaccedilatildeo ao Governo Francecircs e declinar a sua oferta sem ferir a honra do rei Os representantes Maquiavel e Francisco della Casa foram enviados agrave Franccedila para a cidade de Nevers Com muita maestria os dois diplomatas resolveram a difiacutecil tarefa O perigo passou e embora Florenccedila natildeo tenha recuperado Pisa continua com a sua independecircncia

Maquiavel foi ainda encarregado de vaacuterias outras missotildees diplo-maacuteticas junto agrave Franccedila Conveacutem lembrar que Luis XII rei de Franccedila tinha como aliado o Papa Alexandre VI cujo filho se chamava Ceacutesar Boacutergia conforme a opiniatildeo de alguns um ldquocondottiererdquo de muita bravura poliacutetico

3 ldquoCondottiererdquo era ndash na histoacuteria da Itaacutelia ndash chamada o senhor feudal que tinha sob o seu absoluto controle uma miliacutecia que ele podia colocar agrave disposiccedilatildeo de quem o quisesse ou pagasse mais Era entatildeo uma espeacutecie de capitatildeo de soldados mercenaacuterios Assume tambeacutem o sentido de aventureiro 4 Florenccedila e Pisa alternaram periacuteodos de amizade com tempos em que a inimizade explodia em conflitos seacuterios muitas vezes armados 5Cf LARIVAILLE PAUL A Itaacutelia no tempo de Maquiavel Op Cit pg 75-79

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

164

de excelente habilidade mas por outro lado extremamente cruel6 Com a dupla proteccedilatildeo de seu pai e das armas francesas Ceacutesar Boacutergia vinha desempenhando uma accedilatildeo militar avassaladora sobre as possessotildees italianas

No que concerne agrave situaccedilatildeo alarmante de Florenccedila ante o turbulento protegido de Luis XII eacute esclarecedora a descriccedilatildeo desses acontecimentos expressos por JF Duvernoy

Florenccedila tem medo ela se entrega ela cuja doutrina consiste em fugir da submissatildeo de um senhor de um gonfaloneiro vitaliacutecio Eacute verdade que ela o escolheu ldquodemocratardquo na pessoa de Piero Soderini Envia Maquiavel para junto de Ceacutesar Boacutergia para observaacute-lo medir suas forccedilas e seus apetites Ele de fato observa vecirc em Sinigalia como Ceacutesar reprimiu num soacute golpe todos os seus antigos aliados Ele traz de sua missatildeo algo de muito confuso uma vontade indomaacutevel de trabalhar para natildeo ser conquistado e uma admiraccedilatildeo pela poliacutetica de alto vocirco que ele viu em accedilatildeordquo7

Em 1503 o perigo iminente cessou com a morte do Papa Alexandre VI e com a derrota de Ceacutesar Boacutergia Gravemente enfermo e sem apoio nada mais restou ao valoroso Duque de Valentinois senatildeo capitular Conta-se que morreu na Espanha como ldquocondottiererdquo mediacuteocre

A Repuacuteblica de Florenccedila procurou entatildeo evitar cair sob a autori-dade do novo Pontiacutefice Juacutelio II della Rovere o qual pretendia colocar sob a jurisdiccedilatildeo da Santa Seacute todas as antigas cidades regiotildees e possessotildees que antes pertenciam ao Ducado de Valentinois Imediatamente a desas-sossegada Senhoria envia Maquiavel para prestar ao Papa serviccedilos de chancelaria Durante a segunda legaccedilatildeo a Juacutelio II Maquiavel pocircde avaliar de perto o poder temporal do Sumo Pontiacutefice aleacutem de fortemente tomar consciecircncia de como o sentimento religioso ainda se encontrava arraigado no espiacuterito dos homens Essas duas realidades levam-no ao convencimento que ele descreve no seu livro O Priacutencipe

[] os principados eclesiaacutesticos [] satildeo mantidos pela grande antiguidade que existe nas instituiccedilotildees da religiatildeo as quais satildeo tatildeo poderosas e de tal

6 Cf por exemplo Dicionario da Idade Meacutedia organizado por Henry R Lyon Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990 pg 56 [] Era totalmente inescrupuloso a fim de proteger suas fronteiras setentrionais assassinou o marido de sua irmatilde Lucreacutecia e casou-a com o futuro duque de Ferrara 7 DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores 1984 pg 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

165

natureza que seus priacutencipes permanecem no lugar de qualquer maneira que eles se comportam e que vivam8

De fato as tropas mercenaacuterias quando se batiam contra o Papa embora dispusessem de poderio beacutelico suficiente para vencecirc-lo rendiam-se facilmente preferindo assim reverenciar o Chefe da Igreja

A tempestade poliacutetica se avolumava sobre a Itaacutelia ameaccedilando o equiliacutebrio do poder Em Florenccedila a ameaccedila provinha de dois poderosos vizinhos de um lado o Papado do outro o Santo Impeacuterio Maquiavel tendo agora seus dotes conciliadores reconhecidos foi enviado agrave Alemanha e conseguiu perante o Imperador Maximiano I defender a neutralidade de Florenccedila no conflito contra Veneza

Em 1510 poreacutem a Igreja Veneza e a Espanha declaram guerra ao Governo Francecircs Havia muito tempo a Franccedila ocupava o lugar de tradi-cional aliada de Florenccedila Portanto Maquiavel em uma de suas uacuteltimas missotildees diplomaacuteticas conseguiu com muita habilidade e perspicaacutecia que mais uma vez Florenccedila ficasse neutra ou seja liberada de participar daquele conflito

Por natildeo ter apoiado todavia a Igreja na guerra contra a Franccedila o Governo Florentino se viu em maus lenccediloacuteis Em 1512 Florenccedila foi saqueada pelas tropas imperiais de Ferdinando II O Papa destituiu o liacuteder Soderini e a famiacutelia poderosa dos Meacutedicis retornou ao poder Era o fim das instituiccedilotildees democraacuteticas da Repuacuteblica Livre de Florenccedila

Aquele ano assinala igualmente o capiacutetulo final da carreira poliacutetica de Maquiavel Durante os 15 anos do exiacutelio no reinado dos Meacutedicis vive na sua propriedade interiorana trabalhando duro sem se queixar nem se lastimar porque tinha prazer de trabalhar em favor de sua querida e estimada Florenccedila Quando jaacute em desgraccedila escreveu no dia 10 de outubro de 1513 uma carta dirigida a seu amigo Francesco Vettori em que afirma ldquoforam quinze anos dedicados a cultivar a Arte do Estado em que natildeo dormi nem tive folgardquo9

Os autores em grande parte consideram Maquiavel como um excelente diplomata trabalhando sempre com muito empenho lealdade e dedicaccedilatildeo Suas cartas escritas na cidade francesa de Blois quando efetuava suas uacuteltimas atividades de diplomacia na Franccedila constituem documentos 8 MAQUIAVEL Niccolo O Priacutencipe cap XI 9 MAQUIAVELLI N Tutte Le Opere Firenze Sansoni 1992 Citado em RODRIGO Lidia Maria Maquiavel op cit p 23

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

166

que comprovam definitivamente a habilidade poliacutetica do Pensador Floren-tino que atinge alguns momentos insuperaacuteveis Acrescenta-se ainda que no bloqueio rigoroso de Pisa o papel de comissaacuterio desempenhado por Maquiavel foi determinante na retomada dessa cidade

A importacircncia da atividade diplomaacutetica na formaccedilatildeo do pensa-mento poliacutetico de Maquiavel eacute assim analisada por Bronowski e Mazlish

o seu posto natildeo lhe desse grande poder na definiccedilatildeo da poliacutetica deu-lhe uma visatildeo directa do processo poliacutetico das cidades-estado italianas E como esses processos poliacuteticos variavam desde a oligarquia em Veneza agrave monarquia em Naacutepoles e agrave democracia em Florenccedila forneciam uma verdadeira escola de poliacutetica para um observador atento10

Foi nessa atividade diplomaacutetica que Maquiavel chegou agrave conclusatildeo de que o mais importante na poliacutetica eacute

[] o Estado natildeo aquele imaginaacuterio e que nunca existiu mas aquele que eacute capaz de impor a ordem O ponto de partida e da chegada eacute a realidade corrente ndash por isto a ecircnfase na veritagrave effetuale ndash ou seja ver e examinar a realidade como ela eacute e natildeo como se gostaria que fosse11

Isto se aplica agrave imagem que Maquiavel formou dos priacutencipes nos seus contatos diretos com os detentores do poder durante tantos anos o descobriu que

[] o priacutencipe que os humanistas do Renascimento apresentavam como modelo aos governantes natildeo passava de uma construccedilatildeo do espiacuterito de uma formulaccedilatildeo abstrata e ideal desvinculada de qualquer possibilidade e em contraste chocante com a realidade crua e aacutespera da eacutepoca quinhentista O priacutencipe ideal do humanismo era o siacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilotildees religiosas cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudente ndash compendio enfim de todas as perfeiccedilotildees fiacutesicas intelectuais e morais 12

Assim surge um personagem viril audaz destemido cuja maacutexima mais importante era ater-se aacute verdade efetiva das coisas sem ficar pensando em repuacuteblicas e monarquias imaginaacuterias com seus princiacutepios inspirados por altos ideais longe da realidade concreta da poliacutetica praticada naqueles dias ndash e em tempos anteriores

10 BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 pg 47 11 Disponiacutevel em www palmirarjnet Acesso em 25-10-2010 12 ESCOREL Lauro O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades Cadernos da UnB Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 pg 18

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

167

2 2 O estudo da histoacuteria

Como Maquiavel se inspirou na histoacuteria encontrando nela valiosas pistas para a accedilatildeo poliacutetica manifesta-se sobretudo na sua obra Discursos sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio A obra caracteriza-se como um diaacutelogo com o historiador Tito Liacutevio que viveu de 58 aC ateacute 12 dC o turbu-lento periacuteodo que acusa o fim da era da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Romano13 Uma das propriedades desta grandiosa obra foi entre outras o enfoque da histoacuteria sob o ponto de vista da moral ao fazer com que Maquiavel apontasse a Repuacuteblica Romana como um verdadeiro modelo de sociedade cuja virtugrave deveria servir como exemplo para os seus contem-poracircneos

Os Discorsi satildeo uma elaboraccedilatildeo ideal uma obra de educaccedilatildeo poliacutetica uma sistematizaccedilatildeo mais refletida uma projeccedilatildeo na histoacuteria passada e futura das liccedilotildees ldquodas coisas do mundordquo Eacute uma procura das razotildees que explicam o nascimento a prosperidade e a decadecircncia das naccedilotildees com o intuito de descobrir ndash no exemplo eminente da Roma Claacutessica ndash qual o segredo da forccedila e da estabilidade dos Estados Os Discorsi satildeo compostos de trecircs livros

1o Livro trata dos modos pelos quais se fundam os Estados e da organizaccedilatildeo e modalidades de Governo

2o Livro examina os processos de engrandecimento dos Estados e de conquista de novos Estados

3o Livro tece consideraccedilotildees sobre o crescimento e a decadecircncia dos Estados e seus modos de transformaccedilatildeo e uma anaacutelise da natureza das conjuraccedilotildees que ameaccedilam os detentores do poder

Tudo o que Maquiavel exprime nestes livros eacute inspirado pela ideia que se tornou para ele um axioma de que a imitaccedilatildeo da histoacuteria antiga e de modo peculiar a da Repuacuteblica Romana constitui a fonte por excelecircncia da sabedoria poliacutetica Sob tal perspectiva vaacutelida antes de tudo para a Peniacutensula Italiana ndash outrora sede do nuacutecleo do Impeacuterio Romano ndash o que ocorrera no passado tendia inevitavelmente a se repetir no presente e no futuro Assim sendo o estudo da histoacuteria impunha-se quase como uma condiccedilatildeo sine qua non para a formulaccedilatildeo da teoria do Estado e da descriccedilatildeo das qualidades dos priacutencipes

13 Tito Liacutevio escreveu a monumental obra Ab Urbe Condita ndash a partir da Fundaccedilatildeo da Cidade constando de 142 livros do quais 35 chegaram ateacute noacutes entre eles os dez primeiros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

168

Curiosamente nessa obra Maquiavel exprime uma altamente positiva apreciaccedilatildeo da Repuacuteblica vista por ele como mais apta e equili-brada a tomar decisotildees e realizar o bem comum Ao lado dela - e aqui jaacute se veem as linhas de O Priacutencipe ndash Maquiavel destaca a Monarquia como a melhor forma de se conseguir a formaccedilatildeo do Estado na Peniacutensula da Itaacutelia Concluindo o mesmo raciociacutenio rejeita a tirania e a oligarquia de que eacute afirmado que se trata de uma relaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude Para Maquiavel poreacutem tanto as boas como as maacutes formas de governo teratildeo pouca duraccedilatildeo e por isso defende a maneira mista opiniatildeo que se reflete na descriccedilatildeo dos tipos de principados (Estados) no O Priacutencipe e na postura exigida dos priacutencipes

Resumindo pode-se afirmar que em decorrecircncia da leitura de autores claacutessicos como Tito Liacutevio e Poliacutebio14 aleacutem da recente histoacuteria e da vasta experiecircncia junto a poliacuteticos de sua eacutepoca Maquiavel chega aacute seguinte conclusatildeo O priacutencipe (irreal) estaacute longe de como se vive e de como se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da proacutepria ruiacutena do que de sua conservaccedilatildeo porque um homem que queira em todo lugar parecer bom atrai ruiacutena entre tantos que natildeo satildeo bons15

3 O Priacutencipe

31 Introduccedilatildeo

O Priacutencipe incontestavelmente a obra mais conhecida de Maquiavel foi publicada no ano de 1532 e eacute portanto poacutestuma Antes de sua publicaccedilatildeo impressa jaacute circularam algumas coacutepias manuscritas que natildeo tinham causado nenhum escacircndalo Pelo contraacuterio Maquiavel ficou desapontado pela frieza de Lourenccedilo de Meacutedici em relaccedilatildeo a sua obra que lhe foi dedicada Outro fator que causa certa espeacutecie foi o fato de que na eacutepoca natildeo foi negada agrave obra a licenccedila de imprimiacute-la o assim chamado ldquoimprimaturrdquo Parece que a postergaccedilatildeo da impressatildeo decorre das circunstacircncias poliacuteticas de 1513 ndash 1527 eacutepoca em que Maquiavel vivia isolado no seu exiacutelio Aleacutem disso acredita-se que ele queria reservar a publicaccedilatildeo da obra para uma conjuntura mais propiacutecia no intuito de

14 Historiador nascido na Greacutecia Antiga viveu de 203 aC ateacute 120 a C tomando na sua juventude parte ativa na luta dos gregos contra os romanos Feito prisioneiro foi levado para Roma ficando nesta cidade 17 anos como refeacutem Depois do seu retorno auml Greacutecia voltou algumas vezes a Roma e dedicou-se agrave histoacuteria dos acontecimentos ocorridos durante a sua vida procurando aleacutem do rigor cientiacutefico a valorizaccedilatildeo dos testemunhos de seus contemporacircneos Cf Biografia y Vidascombiografiaenlinea acesso em 10022011 15 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe cap XV-XVII

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

169

produzir um efeito maior Soacute mais tarde o cardeal Reginald Pole 1500-1588 constatando a ldquomaleacutefica influecircnciardquo16 da obra sobre Oliver Cromwell denunciou Maquiavel como um espiacuterito satacircnico defensor do despotismo e justificador de todas as arbitrariedades e violecircncias

Ademais a obra e seu autor enfrentaram a oposiccedilatildeo dos Jesuiacutetas que aleacutem de queimarem a efiacutegie de Maquiavel em Ingolstat em 1559 convenceram o papa Paulo IV a colocar o livro no Index por decreto o que foi confirmado pelo Concilio Tridentino em 1564 A oposiccedilatildeo ao escrito do Maquiavel entretanto natildeo foi proveniente apenas dos catoacutelicos pois tambeacutem os calvinistas como por exemplo Inocecircncio Gentillet que em 1576 publicou Contre Nicolas florentin

[] em que natildeo soacute qualificou o escritor de puant atheacuteiste mas tambeacutem denunciou suas doutrinas como instigadoras da ldquoNoite de Satildeo Bartolomeurdquo acusando-as de haver insuflado no espiacuterito de Catarina de Meacutedici a ideacuteia do massacre e de haver introduzido meacutetodos alieniacutegenas isto eacute italianos na poliacutetica francesa17

Embora importante no conjunto de seus escritos a obra de Maquiavel e sua filosofia poliacutetica natildeo se restringem soacute ao Priacutencipe devendo ser esse escrito visto no contexto de sua obra Com isto entretanto natildeo se pode nem se deve negar o lugar central que este livro ocupa no conjunto da obra maquiaveliana e eacute esta a razatildeo por que neste trabalho dedicado agrave anaacutelise da moral em Maquiavel e de modo especial no O Priacutencipe se lhe dedica um estudo especial

32 A Gecircnese de O Priacutencipe

Segundo Vilari18 deve-se buscar o conceito de O Priacutencipe no papa Leatildeo X 1513-1521 que lanccedilou a ideia de fundar um outro Estado abrangendo Parma Modena Urbino e Ferrara entregando o seu governo a Juliano de Meacutedici Desta forma realizar-se-ia o grande sonho de Maquiavel de um grande Estado monaacuterquico italiano superando a sua divisatildeo em inuacutemeros estados pequenos com um poder central suficiente tanto para unificaacute-la como para mantecirc-la unificada

16 ESCOREL Lauro O pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades VII Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1984 nordm 8 pg 18-52 17 ESCOREL Lauro op cit p 19 18 VILARI P Niccolograve Macchiavelli e i suoi tempi 3 vls Firenze 1877 p 294 vol II citado em ESCOREL Lauro op cit p 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

170

Maquiavel entusiasta defensor dessa ideia se distancia dela quanto agrave sua realizaccedilatildeo concreta como um poder monaacuterquico central e absoluto baseado nos ideais da tradiccedilatildeo cristatilde e se opotildee contra o priacutencipe ideal renascentista ldquosiacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilatildeo religiosa cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudenterdquo19 Pelo contraacuterio o priacutencipe com o qual Maquiavel sonha eacute um teacutecnico poliacutetico realista plasmado nos moldes do passado sobretudo da antiga Repuacuteblica Romana nos seus melhores dias de gloacuteria

[] para o qual o importante era ater-se agrave veritaacute effetuale delle cose [] O priacutencipe maquiaveacutelico natildeo emerge do pensamento do seu autor aureolado pelas virtudes da eacutetica tradicional como produto de uma elaboraccedilatildeo mental utoacutepica [] Plasma-o ao contraacuterio indutivamente com base nos dados de sua experiecircncia e inspirado nos exemplos da Antiguidade Claacutessica investindo-o de uma loacutegica inexoraacutevel para a consecuccedilatildeo de seu objetivo supremo a conquista e a preservaccedilatildeo do poder poliacutetico absoluto 20

Eacute nesta inspiraccedilatildeo que residem a grandiosidade e o gecircnio de Maquiavel que o fizeram descobrir e penetrar a essecircncia da accedilatildeo poliacutetica do homem revelando as leis proacuteprias e analisando dividindo e avaliando friamente a forccedila das paixotildees humanas Foi sob esse prisma que o seu livro auferiu validade permanente

33 A Estrutura do livro21

O livro que consta de 26 capiacutetulos comeccedila com uma carta dedicatoacuteria ao magniacutefico Lorenzo filho de Piero de Meacutedici neto de Lorenzo o Magniacutefico (1449-1492) Originalmente o livro seria dedicado a outro membro da famiacutelia Meacutedici Giuliano filho de Lorenzo mas este morreu em 1516

Do primeiro ao deacutecimo capiacutetulo eacute procedida agrave discriminaccedilatildeo dos vaacuterios tipos de principados Aleacutem disso Maquiavel desenvolveu as caracteriacutesticas e qualidades dos mencionados principados Central estaacute o problema da conquista do poder em geral e especialmente no

19 ESCOREL Lauro op cit p 23 20 ESCOREL Lauro op cit p 23 21 Cf Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Grupo de Estudos de Filosofia ndash GEFIL Aula I BATISTA Flaacutevio Donizete http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 15 de agosto de 2010 BATH Sergio A praacutetica poliacutetica segundo Nicolau Maquiavel Satildeo Paulo Aacutetica 2009 CHEVALLIER J J As grandes obras poliacuteticas de Maquiavel a nossos dias Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 pg 17-48

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

171

principado novo Tudo eacute visto sob a grande perspectiva da unificaccedilatildeo da Itaacutelia que deve ser fundada nas conquistas e na virtugrave do governante

Do deacutecimo ao deacutecimo quinto capiacutetulo preocupa-se em argumentar e mostrar que a base de qualquer Estado estaacute na sua autarquia militar Trata de maneira especial no capiacutetulo 11 dos Estados eclesiaacutesticos e como chegaram ao poder que ostentam

A parte principal da obra eacute formada pelos capiacutetulos deacutecimo quinto ateacute o vigeacutesimo sexto Aqui se trata do exame do problema do governo de um povo como um priacutencipe deve conduzir-se com os seus suacuteditos e seus aliados Quanto agrave imagem do priacutencipe formulada por Maquiavel merecem destaque especial os quatro conceitos por ele considerados fundamentais virtugrave ocasiatildeo fortuna e necessidade Por todos os capiacutetulos especialmente a partir do deacutecimo nono encontramos Maquiavel insiste na necessidade da reformulaccedilatildeo da imagem tradicional do priacutencipe acentuando a obrigaccedilatildeo de ele sempre se esforccedilar para ter o povo ao seu lado porque sem o apoio do povo o priacutencipe natildeo resistiraacute agraves dificuldades que sobreviratildeo

Do capiacutetulo 23 ateacute o 25 Maquiavel constatando porque os priacutencipes italianos perderam seus Estados afirma o poder da vontade humana de domar e vencer a proacutepria fortuna pela razatildeo e pela virtude

O uacuteltimo capiacutetulo ndash o 26 - eacute uma eloquente exortaccedilatildeo agrave redenccedilatildeo e libertaccedilatildeo da Itaacutelia do domiacutenio das potecircncias estrangeiras ndash Franccedila Espanha e o Impeacuterio Alematildeo ndash e consiste num convite ao priacutencipe de ser audaz e feroz a fim de alcanccedilar ecircxito Termina com as belas palavras de Petrarca

Virtugrave contro a furore Prenderaacute lrsquoarmi e fia el combatter corto Che lrsquoantico valore Nellrsquoitalici cor non egrave ancor morto22

4 Moral e Eacutetica na poliacutetica de Maquiavel

Agrave primeira vista pode parecer fora de propoacutesito falar de Moral E Eacutetica em Maquiavel Para muitos autores e sobretudo para muitas pessoas no seu dia a dia os dois conceitos significam a mesma coisa e dizem 22 O valor tomaraacute armas contra o furor e que seja curto o combate pois a coragem antiga ainda natildeo morreu no coraccedilatildeo dos italianos PETRARCA Francesco Rime Esparse (sem maiores referecircncias) em O Priacutencipe comentado por Napoleatildeo Bonaparte MAQUIAVEL texto integral Traduccedilatildeo NASSETTI Pietro Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

172

respeito ao comportamento humano Por que e para que entatildeo fazer uma distinccedilatildeo Leonardo Boff no seu livro Ethos Mundial diz o seguinte

[] precisamos voltar ao sentido originaacuterio da eacutetica e da moralidade Todas as morais por mais diversas nascem de um transfundo comum que eacute a eacutetica Eacutetica somente existe no singular pois pertence aacute natureza humana presente em cada pessoa enquanto moral estaacute sempre no plural porque satildeo distintas formas de expressatildeo cultural e histoacuterica da eacutetica 23

Um olhar sobre o sentido original da palavra eacutetica pode esclarecer o seu rico e profundo sentido proacuteprio Na sua liacutengua de origem a grega eacutetica vem de ethos que tem duas grafias com letra e pequena ou grande e conforme o tamanho muda o sentido Ethos com letra pequena indica a morada abrigo permanente tanto dos animais como dos humanos Ela tem que ser construiacuteda pela atividade humana e por isso deve ser sempre reformada melhorada e aperfeiccediloada Assim pode-se dizer que a eacutetica tem por fim morar bem e para isto constituir objetivos fundamentais e valores e princiacutepios que norteiam a accedilatildeo humana Para os antigos entatildeo a eacutetica estaacute ligada ao bem ou aacute felicidade que devem ser perseguidos por meios que levem a esta bondade e felicidade Estes meios eram tambeacutem chamados de ethos mas com e grande e significam os costumes ou ldquoo conjunto de valores e de haacutebitos consagrados pela tradiccedilatildeo cultural de um povordquo24

Ao dizer-se que algueacutem natildeo tem eacutetica significa a ausecircncia nesta pessoa de princiacutepios norteadores para sua accedilatildeo que se desenvolve pois de acordo com as vantagens que possa conseguir e consequentemente coerecircncia e princiacutepios fazem falta na sua vida Por outro lado quando se garante que algueacutem natildeo possui moral indica-se que esta pessoa natildeo possui virtudes que a ajudem a ldquoconstruir sua moradardquo sua felicidade e age erradamente mentindo roubando explorando

Resumindo

[] moral eacute o conjunto de haacutebitos e costumes efetivamente vivenciados por um grupo humano Nas culturas dos grupos humanos estatildeo presentes haacutebitos e costumes considerados vaacutelidos porque bons bons porque justos justos porque contribuem para a realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

[] eacutetica eacute a reflexatildeo sobre a accedilatildeo humana para extrair dela o conjunto excelente de accedilotildees Eacute uma ciecircncia que tem por objeto a moral e a lei e pretende aprimorar

23 BOFF Leonardo Ethos Mundial Um consenso miacutenimo entre os humanos SI Letraviva Editorial Ltda 2000 pg 34 24 BOFF Leonardo op cit pg 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

173

as ldquoatividades realizadoras de sirdquo desenvolvidas pelos indiviacuteduos em busca do excelente25

41 A Eacutetica maquiaveliana

Com a difusatildeo do livro O Priacutencipe as ideacuteias de Nicolau Maquiavel se tornaram conhecidas mas tambeacutem quase de imediato foram atingidas por uma forte onda de severas criacuteticas A obra que pode ser considerada como a principal de Maquiavel foi qualificada de imoral e sem eacutetica Qual a razatildeo de tatildeo severo juiacutezo Ricardo Rodrigues responde a esta indagaccedilatildeo quando esclarece

[] Maquiavel simplesmente documentou verdades jaacute conhecidas pelos homens embora natildeo admitidas Tudo o que fez foi construir uma teoria poliacutetica a partir da combinaccedilatildeo de experiecircncia concreta no trato da coisa puacuteblica com a observaccedilatildeo aguda do processo poliacutetico aliada ainda ao estudo da histoacuteria26

Em verdade Maquiavel faz uma anaacutelise nua e crua da praacutetica poliacutetica do seu tempo como realmente era e natildeo como deveria ser Em primeira instacircncia estaacute o realismo poliacutetico por ele descrito como sendo a uacutenica maneira de algueacutem se tornar vitorioso no jogo pelo poder Este realismo poliacutetico que natildeo raro desprezava a moral vigente e a eacutetica tradicional feria em muitos aspectos os padrotildees escolaacutesticos da eacutepoca baseados nos estudos teoloacutegicos agostinianos e tomistas Esses estudos denotaram ideias que deveriam conduzir a accedilatildeo poliacutetica em vista da construccedilatildeo de uma sociedade baseada em princiacutepios cristatildeos conduzindo desta forma agrave construccedilatildeo da Cidade Justa ou de Deus sobre a terra27 defendendo neste sentido a consecuccedilatildeo do Bem Comum entendido em sentido cristatildeo Em outras palavras haacute um ideal a ser atingido e a eacutetica igual agrave praacutetica moral consequecircncia dela eacute julgada agrave luz deste ideaacuterio Esta posiccedilatildeo defendida embora com algumas pequenas diferenccedilas pelo pensamento da Igreja Catoacutelica de entatildeo tambeacutem se encontrava na visatildeo

25 DOS SANTOS Antonio Raimundo Eacutetica Caminhos da realizaccedilatildeo humana 4 ed Satildeo Paulo Editora Ave Maria 2004 pg 11 e 15 26 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Simposion Unicap no 2 1986 pg 44 27 Cf a grande corrente teoloacutegica que tem em Santo Agostinho o eu grande defensor e propagador especialmente na sua obra De Civitate Dei ndash (Sobre a Cidade de Deus ) que ateacute o seacuteculo XII-XIII foi a inspiraccedilatildeo maior para o ideal poliacutetico da Idade Meacutedia muitas vezes apresentada como o ideal da assim chamada Cristandade Santo Tomaacutes de Aquino natildeo negando a influecircncia agostiniana recebe grande aporte das ideias aristoteacutelicas como resta claro natildeo somente no seu pequeno tratado De Regno mas tambeacutem no extenso e inacabado comentaacuterio sobre a Poliacutetica e a Eacutetica do Nicocircmaco de Aristoacuteteles

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

174

filosoacutefica da poliacutetica baseada na teoria platocircnica com a sua cidade ideal regida pela justiccedila e aristoteacutelica em que o ideal da felicidade estaacute central o que foi intensamente estudado pelos saacutebios da eacutepoca Em outras palavras existem conceitos ideias de bem e de mal que servem como paradigma para a accedilatildeo humana uma ideia a que a accedilatildeo humana deve obedecer ou a qual se adaptar Satildeo os assim chamados valores eternos que transcendem tempo e lugar isto eacute possuem validade universal

Como consequumlecircncia da anaacutelise e descriccedilatildeo da poliacutetica de acordo com as ideacuteias de Maquiavel surge o assim chamado maquiavelismo teoria que procura ligar as ideias do Pensador de Florenccedila a procedimentos nocivos que lembram perfiacutedia astuacutecia crueldade e traiccedilatildeo E o que eacute pior para alguns estas expressotildees pejorativas continuam sobrevivendo no tempo e no espaccedilo e proliferam ainda hoje tanto na esfera poliacutetica como nas desavenccedilas do cotidiano

Eacute bem verdade que no acervo de qualidades do bom governante aceito por Maquiavel constavam a fraude e a mentira a dissimulaccedilatildeo e ateacute mesmo a crueldade 28 Isto natildeo significa todavia que Maquiavel defen-desse ou aconselhasse um estado turbulento de constantes lutas contra usurpadores gananciosos anarquicamente cruel em que os governantes poderosos mantivessem seus suacuteditos em regime de servidatildeo de tortura e perversidade

Por outro lado o Escritor Florentino nunca deixava de louvar a honestidade e a integridade em governantes29 Pelo estudo de fatos paacutes-sados entretanto e de outros da histoacuteria de entatildeo que havia presenciado e testemunhado enfatizava que o poliacutetico dependia de qualidades bem diversas Fazendo distinccedilatildeo entre honestidade e ingenuidade acreditava ele que praticar a honestidade sem levar em conta os efeitos prejudiciais para toda uma coletividade ou para a naccedilatildeo eacute de fato mera ingenuidade defeito maacuteximo de maus governantes

Discorrendo ainda sobre integridade Maquiavel considerava lou-vavel o fato de que o priacutencipe fosse um homem iacutentegro e mantivesse a palavra empenhada30 Ao mesmo tempo poreacutem alertava para o fato de que conforme a necessidade ele poderia abandonar a boa feacute desfazendo assim a palavra dada 28 Cf O Priacutencipe op cit cap XVII 29 Cf RODRIGUES RICARDO Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no 2 Recife Unicap 1986 pg 48 30 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

175

Um priacutencipe prudente natildeo deveraacute pois agir de boa feacute quando para fazecirc-lo precise agir contra seus interesses e quando os motivos que o levaram a empenhar a palavra deixarem de existir31

Em circunstacircncias adversas este poderia utilizar-se igualmente da dissimulaccedilatildeo porquanto os homens em geral satildeo tolos e sempre acreditam em quem lhes faz promessas ou lhes promete benefiacutecios Usando uma linguagem coloquial contemporacircnea ldquopara cada bobo haacute sempre um espertordquo

A argumentaccedilatildeo do Escritor Florentino sobre a crueldade reflete-se nos louvores e elogios feitos por ele ao Duque de Valentino citado como exemplo de um autecircntico e renomeado estadista

Ceacutesar Boacutergia era considerado cruel mas sua crueldade impocircs ordem agrave Romanha unificou-a reduzindo-a agrave paz e agrave fidelidade Se examinarmos bem este ponto veremos que na verdade ele foi muito mais clemente que o povo de Florenccedila que para fugir agrave reputaccedilatildeo de cruel permitiu a destruiccedilatildeo de Pistoia32

Eacute interessante esclarecer que a admiraccedilatildeo de Maquiavel por Ceacutesar Boacutergia natildeo emergiu do fato de ser este um homem perverso e cruel Em sua oacuteptica Ceacutesar Boacutergia surgiu como um governante eficiente destemido saacutebio capaz de comportar-se como priacutencipe em toda e qualquer situaccedilatildeo

Em virtude destas e de outras afirmaccedilotildees em torno do caraacuteter poliacutetico e do jogo pelo poder Maquiavel atraiu para si muitas criacuteticas atraveacutes dos tempos Seus conceitos e teorias foram analisados de vaacuterias maneiras e muito mal interpretados Como expresso anteriormente sua obra foi qualificada de imoral e sem eacutetica Impuseram ao Escritor a condiccedilatildeo de advogado da poliacutetica sem moralidade

Lauro Escorel refuta esta ideia quando diz que rdquoOs princiacutepios do poliacutetico florentino podem natildeo ser cristatildeos mas satildeo eacuteticosrdquo33

Natildeo partilhando igualmente daquela opiniatildeo que o Professor Cranston projeta o Escritor para uma dimensatildeo contraacuteria quando sugere que ldquoO argumento de Maquiavel parece-me ser o de que apenas existe uma verdadeira moralidade mas que por vezes o governante tem que a

31 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 32 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 33 ECSOREL Lauro O Pensamento Poliacutetico em Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

176

desrespeitarrdquo34 Cranston propotildee ainda que a principal razatildeo de o Florentino ser continuamente hostilizado

[] eacute a de que ele aconselha (os governantes) a fazerem consciente e deliberadamente o que muitos estatildeo fazendo de modo natural preferindo natildeo pensar no assunto [] Maquiavel nunca endossou o uso da fraude para a proteccedilatildeo de carreiras poliacuteticas aconselhando-a apenas para encobrir aqueles atos de Estado necessaacuterios que violam a moralidade35

Daiacute conclui-se que estes atos de Estado necessaacuterios correspondiam ao conceito maquiaveliano de ldquoragione di statordquo e agrave consciecircncia de que a poliacutetica eacute uma atividade autocircnoma do Estado e no Estado sem recurso ou associaccedilatildeo agrave eacutetica agrave jurisprudecircncia agrave moralidade cristatilde ou pagatilde Seria mais justo e claro dizer que haacute para Maquiavel uma mudanccedila no conceito da eacutetica Ele aceita que a accedilatildeo poliacutetica deve ser orientada por valores mas estes assumem caraacuteter totalmente diferente distanciando-se do ideal teoloacutegico filosoacutefico e sobretudo da ideaccedilatildeo da felicidade pessoal Para o Secretaacuterio Florentino o Estado eacute sem duacutevida o valor mais alto aleacutem do qual natildeo existe um limite Para ele a poliacutetica resumia-se numa coisa conquistar e manter o poder ou a autoridade no domiacutenio conquistado Portanto a religiatildeo a moral e outros valores que os humanistas pretendiam associar agrave poliacutetica nada tinham de relaccedilatildeo com aquele ponto fundamental Permitia-se a exceccedilatildeo apenas nos casos em que a religiatildeo e a moral contribuiacutessem para a conquista e a manutenccedilatildeo do poder quando entatildeo se tornam meios para a grandeza do Estado

Eacute preciso natildeo esquecer de que a razatildeo de Estado implica um cunho social Isto quer dizer que embora o Estado representasse poder pessoal prestiacutegio e forccedila para o governante focalizava e visava tambeacutem aos suacuteditos toda uma comunidade de homens para gerenciar e prover Para Maquiavel isto era um ponto de capital importacircncia visto que ele deixa transparecer nos seus escritos a opiniatildeo que considera os homens maus de nascenccedila e iacutendole Por conseguinte de nada adiantariam a boa-feacute a integridade e a honestidade do priacutencipe se estas virtudes natildeo impedissem a sua ruiacutena levando o Estado agrave fraqueza e agrave derrota que tem como consequecircncia o domiacutenio inimigo o qual provocaria natildeo soacute a inquietaccedilatildeo mas tambeacutem o sofrimento de toda a coletividade Esta inquietaccedilatildeo e o concomitante sofrimento por sua vez causariam a desconfianccedila e ateacute a 34 CRANSTON Maurice Poliacutetica e eacutetica Em KING PRESTON O Estudo da Poliacutetica Brasilia Universidade de Brasiacutelia 1980 Citado em RICARDO Rodrigues Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p 49 35 Cranston OC Em RODRIGUES op cit p 50

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

177

revolta dos cidadatildeos e enfraqueceriam o Estado Por isso o aspecto eacutetico para Maquiavel estaacute nas mais elevadas regras de grandeza de Estado manutenccedilatildeo do poder governabilidade e defesa custe o que custar do Estado ou do domiacutenio do priacutencipe Eacute na histoacuteria e tambeacutem nas suas aventuras diplomaacuteticas que Maquiavel viu estes princiacutepios sendo praticados ndash para o bem do Estado e do seu priacutencipe e suacuteditos - ou negli-genciados ndash para a sua ruiacutena e fraqueza

Ricardo Rodrigues aprecia e tenta justificar esta doutrina maquiave-liana quando destaca ldquoEacute necessaacuterio poreacutem perguntar desapaixonadamente se Maquiavel realmente merece ser considerado ldquomaquiaveacutelicordquordquo36 O autor reaviva a polecircmica em cima de Maquiavel e chega aacute conclusatildeo de que o Florentino natildeo quis propriamente sugerir como os priacutencipes deveriam se comportar para que sua poliacutetica se adequasse ao ideal eacutetico da sociedade mas apenas registrou como realmente procediam de modo que um entre os outros natildeo poderia se comportar diferentemente caso quisesse se conservar no trono e natildeo passar por ingecircnuo

Vasquez eacute outro autor que se inclina para separar a eacutetica da poliacutetica e declara

Na poliacutetica o indiviacuteduo encarna uma funccedilatildeo coletiva e a sua atuaccedilatildeo diz respeito a um interesse comum Na moral pelo contraacuterio ainda que o coletivo esteja sempre presente o elemento iacutentimo pessoal desempenha o papel importante [] interiorizando as normas gerais e assumindo responsabilidades pessoais37

Na realidade o fato mais notoacuterio eacute que ainda nos dias de hoje os estudiosos que procuram abordar ou elucidar o mesmo tema ou seja comprovar ou natildeo a identificaccedilatildeo da poliacutetica com a moral e a eacutetica sempre tentam se basear nos pressupostos constantes da filosofia poliacutetica do famoso Escritor Florentino

42 A moral em Maquiavel

Sabe-se que vaacuterios pensadores contemporacircneos de Maquiavel escre-veram tambeacutem como este manuais da linha ldquoEspelho dos Priacutencipesrdquo38 com o intuito de oferecer um norteamento comportamental para aquele que governa pautado tatildeo somente numa moral cristatilde 36 RODRIQUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na poliacutetica Op cit p 43-53 37 VASQUEZ Adolfo Sanchez Eacutetica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 pg 77 38 Eacute um gecircnero literaacuterio antigo que se espalhou sobre a Europa Medieval com base em fontes orientais nos seacuteculos XII a XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

178

A corrente filosoacutefica tradicional enfatiza a tese de que a virtugrave caracterizada por qualidades morais individuais como a justiccedila devia ser completada pelas qualidades ou virtudes cristatildes como a bondade e a feacute

Ao contraacuterio Maquiavel prefere romper com as tendecircncias medie-vais Resolve apresentar o seu ldquoEspelhordquo com caracteriacutesticas diferentes deixando de lado princiacutepios de uma moral cristatilde Rejeita imperativos categoacutericos como leis morais natildeo relativizaacuteveis por consideraacute-los belos ou atraentes como conceitos teoacutericos mas ineficazes na praacutetica da vida puacuteblica Estudiosos do universo maquiaveliano como Berlin39 e Skinner40 compartilham da ideacuteia de que essa preocupaccedilatildeo em romper e ateacute mesmo denunciar a ingenuidade das teorias poliacuteticas reflete o traccedilo de maior originalidade de Maquiavel

O Florentino rejeita a filosofia poliacutetica tradicional acreditando que os comentadores de sua eacutepoca natildeo haviam conseguido perceber a incompati-bilidade de uma ldquomoral cristatilderdquo que atenda agrave pessoa e uma ldquomoral poliacute-ticardquo que atenda ao coletivo no caso o Estado

Essa incompatibilidade reside na natureza humana representada por homens maus levianos covardes e gananciosos Na tentativa de comprovar a sua tese Maquiavel resume seu pensamento numa frase lapidar

[] Seria muito louvaacutevel que um priacutencipe possuiacutesse todas as qualidades consideradas boas Natildeo sendo isto poreacutem inteiramente possiacutevel devido agraves proacuteprias condiccedilotildees humanas eacute necessaacuterio a um priacutencipe aprender a natildeo ser bom41

Acredita Maquiavel que a histoacuteria eacute ciacuteclica e que os costumes variam de regiatildeo para regiatildeo de eacutepoca para eacutepoca Assim sendo como eacute impos-siacutevel frear as paixotildees e os instintos humanos os conflitos e as desordens aconteceriam indefinidamente Continuamente estariam presentes os mesmos viacutecios ou as mesmas virtudes

Para o Pensador Florentino entretanto cujo sonho era ver a Itaacutelia renascida como um Estado forte como outrora o Impeacuterio Romano era fundamental acabar com a desordem causadora de uma situaccedilatildeo poliacutetica tatildeo caoacutetica como a da Peniacutensula Italiana do seu tempo Realmente 39 BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees internacionais Textos de Aula Brasilia UnB sd 40 SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988 41 MAQUIAVEL O Priacutencipe Cap XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

179

parafraseando Rodrigues42 eacute possiacutevel dizer que a visatildeo histoacuterica poliacutetica dominante nesta parte da Europa expressava um exemplo significativo dessa malignidade humana a Peniacutensula dividida a ausecircncia de um poder central lutas fratricidas conflitos violentos entre pequenas naccedilotildees ou principados italianos invasotildees promovidas por impeacuterios ou grandes reinos vizinhos o poder temporal da Igreja tantas vezes se transformando em outro obstaacuteculo Afinal um quadro desolador de fraqueza total e de insignificacircncia poliacutetica

Preocupado angustiado mesmo com esse alarmante contexto histoacute-rico em que a Itaacutelia (inclusive Florenccedila) se encontrava envolvida Maquiavel fortifica cada vez mais a sua visatildeo sonhadora de uma paacutetria forte unida eficiente e eficaz Nesta perspectiva munido por um espiacuterito empiacuterico tambeacutem realista o Pensador Florentino assume posiccedilatildeo ideoloacutegica isto eacute pragmaacutetica poliacutetica e para muitos revolucionaacuteria

Vaacuterios inteacuterpretes concordam com a noccedilatildeo de que Maquiavel levado naturalmente por seu empirismo toma aquela dura e cruel conjun-tura poliacutetica como um desafio43 Em decorrecircncia passa a conceber um priacutencipe heroacutei um priacutencipe valoroso determinado capaz de ir ateacute as uacuteltimas consequumlecircncias a fim de alcanccedilar seus objetivos que era ndash nada mais nada menos ndash a regeneraccedilatildeo da Repuacuteblica Conforme o pensamento de Liacutedia Maria ldquoo projeto poliacutetico do secretaacuterio florentino apontava essencialmente para a construccedilatildeo de um Estado forte unificado e voltado para o bem comumrdquo 44

Levando em conta o contexto histoacuterico sobre o qual se discorreu anteriormente pocircr em praacutetica semelhante projeto poliacutetico natildeo era tarefa simples Daiacute por que o priacutencipe idealizado por Maquiavel deveria ser virtuoso ou pelo menos parecer ser e aleacutem disso deveria possuir muita astuacutecia esperteza e sabedoria para pautar as suas accedilotildees com vistas agraves circunstacircncias Neste sentido a visatildeo do Florentino eacute incisiva haacute viacutecios que satildeo virtudes Natildeo tema pois o priacutencipe que deseje se manter no poder incorrer no oproacutebrio dos defeitos mencionados se tal for indispen-saacutevel para salvar o Estado Aconselhava ainda ao priacutencipe saacutebio que devia se aproveitar sempre das oportunidades (ocasione) ldquoaprender os meios de natildeo ser bom e a fazer uso ou natildeo deles de acordo com as

42 Cf RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p49-52 43 Cf por exemplo Paul Larivaille e Newton Bigotto 44 RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel ndash Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002 pg 31

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

180

necessidadesrdquo45 De conformidade com a teoria poliacutetica maquiaveliana o priacutencipe poderia ateacute praticar o mal desde que seu ato fosse justificaacutevel ou melhor que resultasse num bem maior para todos a estabilidade do Estado

Interpretando a filosofia poliacutetica de Maquiavel dentro dessa oacuteptica Rodrigues conclui

Eacute assim que a poliacutetica maquiaveliana se faz autocircnoma A finalidade eacute excelsa e imperativa porque necessaacuteria inevitaacutevel originaacuteria e fundamental eacute uma legitimaccedilatildeo tatildeo forte que pode atropelar qualquer consideraccedilatildeo eacutetica O absolutismo eacute justificado 46

Assumindo posicionamento tatildeo radical era loacutegico pois que a concepccedilatildeo maquiveliana entrasse fundamentalmente em choque com a consciecircncia moral da tradiccedilatildeo poliacutetica cristatilde De fato dos pensadores cristatildeos dos liberais e dos teoacutericos do Estado beneficente emerge uma contundente onda de criacuteticas contra o Pensador Florentino Eacute tachado de ciacutenico imoral inescrupuloso democircnio espiacuterito satacircnico autor maldito e outros adjetivos do mesmo gecircnero

Como consequecircncia deste panorama Maquiavel passou a ser deveras incompreendido incompreensatildeo que perdura ateacute os dias atuais Um comen-tador recente jaacute o compreendeu ldquocomo uma das figuras mais emblemaacuteticas sendo odiado por muitos amado por outros e incompreendido pela grande maioriardquo47

Consideraacutevel nuacutemero de leitores desinformados alguns deles em total ignoracircncia a respeito das obras de Maquiavel ainda hoje evocam a figura do Secretaacuterio Florentino ou associam o seu nome a dois termos que assumiram sentido pejorativo maquiaveacutelico e maquiavelismo Nas duas acepccedilotildees datildeo ideia de indiviacuteduos traiccediloeiros auspiciosos caloteiros

Quem de noacutes por exemplo natildeo presenciou algueacutem se utilizando do termo maquiaveacutelico para criticar ou denunciar uma pessoa desleal corrupta que para conseguir vantagens pessoais sai atropelando tudo e todos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer aspecto eacutetico ou moral

45 MAQUIAVEL O priacutencipe cap XV 46 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a eacutetica na poliacutetica Op cit pg 71 47 AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e Razatildeo de Estado Faculdade Autocircnoma de Direito SDatildeo Paulo dezembro de 2008

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

181

Portanto neste trabalho evitou-se de propoacutesito o adjetivo maquia-veacutelico irremediavelmente distorcido por interpretaccedilatildeo errocircnea usando em seu lugar a expressatildeo maquiaveliana

Ainda em decorrecircncia desta atitude objetiva e desapaixonada assumida por Maquiavel fugindo dos padrotildees escolaacutesticos do seu tempo ateacute o seacuteculo XVII eram poucos os doutrinadores que aceitavam aberta-mente os seus pressupostos E no seacuteculo XIX desenterraram a ceacutelebre frase que lhe eacute igualmente atribuiacuteda os fins justificam os meios a qual natildeo consta dos seus escritos sentenccedila cujo uso se faz geralmente isolada do contexto unidade de ideia que jamais algueacutem comprovou tecirc-lo ouvido pronunciar E se realmente o Poliacutetico Florentino a abordava os fins eram tatildeo admiraacuteveis que natildeo poderia ningueacutem deixar de o louvar

Na Modernidade poreacutem as obras do Grande Pensador passaram a ser efetivamente analisadas discutidas e apreciadas Atingiu-se a essecircncia de sua filosofia poliacutetica e Maquiavel com a imagem resgatada aparece cintilante no universo de autores bem-sucedidos

Atualmente comentadores de renome de todos os cantos se arvoraram em defensores do Autor Florentino tecendo-lhes referecircncias honrosas e louvores Entre os que concordam com opiniotildees conclusotildees e interpretaccedilotildees de Maquiavel aponta-se o nome de Mounin

Pode-se afirmar que o secretaacuterio teve honroso papel na poliacutetica da eacutepoca com os meios da eacutepoca agrave medida da eacutepoca - no seu lugar Florenccedila e com as cartas que tinha em matildeo as cartas florentinas que natildeo constituiacuteam um jogo famoso Na histoacuteria do seu tempo Maquiavel eacute vencido natildeo um falhado48

E na tentativa de defender Maquiavel contra seus adversaacuterios Mounin acrescenta

Maquiavel foi realmente um poliacutetico que se alimentou de fatos apaixonado por fatos incansaacutevel na anaacutelise dos fatos [] Pode mesmo afirmar-se um dos mais certos meacuteritos de Maquiavel e um dos menos notados dos menos ceacutelebres tambeacutem eacute a paciecircncia incansaacutevel com que pinta com minuacutecia o espetaacuteculo infinito da complexidade dos fatos Mesmo se quase nunca estamos de acordo com ele acerca das causas e conexotildees a leitura de Maquiavel eacute um antiacutedoto salutar sem disso fazer um dogma unicamente devido ao cuidado que potildee na descriccedilatildeo ensina a cada linha que em poliacutetica nada eacute tatildeo simples como parece49

48 MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 p 15 49 MOUNIN Georges Maquiavel op cit p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

182

Nos tempos modernos outro doutrinador que merece igualmente ter seu nome incluiacutedo na lista dos defensores de Maquiavel eacute Lauro Escorel quando expressa

Maquiavel natildeo traccedilou portanto regras poliacuteticas que estivessem em contradiccedilatildeo com o seu tempo e que passassem desde entatildeo a ser germes de corrupccedilatildeo ou incentivos ao absolutismo como seus adversaacuterios quiseram fazer crer limitou-se a registrar dados de fato normas empiacutericas de conduta que explicaram no passado e no presente os ecircxitos e fracassos poliacuteticos Ao mesmo tempo interpretou ele as tendecircncias poliacuteticas da eacutepoca que era o absolutismo real e o secularismo sob cujos auspiacutecios nascia o Estado Moderno [] Se alguma responsabilidade moral lhe pode ser atribuiacuteda seraacute a de natildeo se ter preocupado em submeter a praacutetica poliacutetica ao crivo de um coacutedigo moral meta-histoacuterico mas isto resulta do meacutetodo indutivo-empiacuterico que o espiacuterito da Renascenccedila lhe inspirou50

Encontra-se nos escritos de Bertrand Russel talvez uma das mais ardorosas e eloquentes defesas de Maquiavel contra as criacuteticas dos anti-maquiavelistas Suas palavras comprovam esta afirmaccedilatildeo

A Renascenccedila embora natildeo haja produzido nenhum filoacutesofo teoacuterico importante produziu um homem de suprema eminecircncia na filosofia poliacutetica Maquiavel Eacute costume sentir-se a gente chocada por ele e natildeo haacute duacutevida de que agraves vezes ele realmente eacute chocante Mas muitos outros homens tambeacutem o seriam se fossem igualmente livres de hipocrisia Sua filosofia poliacutetica eacute cientiacutefica e empiacuterica baseada em sua proacutepria experiecircncia dos assuntos preocupada em declarar os meios de se chegar a determinados fins sem se preocupar de se saber se tais meios satildeo considerados bons ou maus Quando em certas ocasiotildees se permite mencionar os fins que deseja estes satildeo de tal natureza que natildeo podemos senatildeo aplaudi-los Grande parte da difamaccedilatildeo convencional ligada ao seu nome deve-se agrave indignaccedilatildeo dos hipoacutecritas que odeiam o franco reconhecimento das maacutes accedilotildees Resta eacute certo uma boa parte que realmente exige criacutetica mas nisto ele eacute uma expressatildeo de sua eacutepoca Tal honestidade intelectual a respeito da desonestidade poliacutetica dificilmente teria sido possiacutevel em qualquer outra eacutepoca e em qualquer outro paiacutes exceto talvez na Greacutecia entre os homens que deviam sua educaccedilatildeo teoacuterica aos sofistas e seu adestramento praacutetico agraves guerra de minuacutesculos Estados que tanto na Greacutecia claacutessica como na Itaacutelia da Renascenccedila eram o acompanhamento poliacutetico do gecircnio individual51

50 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 20 51 RUSSEL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969 p20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

183

A tendecircncia moderna diz que natildeo se deve simplesmente ldquodenegrir a imagem de Maquiavel e nem tatildeo pouco louvaacute-lo indiscriminadamenterdquo52 Concorda-se em gecircnero e nuacutemero com esta afirmaccedilatildeo predominante nos dias atuais Natildeo haacute duacutevida de que o Autor Florentino cometeu erros mas acertou muito mais Jamais se deve esquecer de que ele foi um produto do meio O peixe natildeo vive fora drsquoaacutegua E para Maquiavel era quase impos-siacutevel emergir da turbulecircncia histoacuterica em que viveu O Poliacutetico de Florenccedila foi praticamente nocauteado Seu espiacuterito confrontou-se com um dilema de escolha viver ou morrer E quem preferia morrer O que faz um homem todo dia senatildeo lutar pela sobrevivecircncia O poder poliacutetico era uma loteria Para ganhar qualquer priacutencipe teria de jogar Na luta pelo poder Maquiavel justificava o uso das armas ou da crueldade Por outro lado sempre dava liccedilotildees ao povo para se livrar dos tiranos53

5 Consideraccedilotildees finais

Maquiavel ao expor o pensamento ou ideias sobre a poliacutetica o fez de modo genial sem se deixar aprisionar por nenhuma corrente literaacuteria ou doutrinaacuteria Criou estilo proacuteprio pessoal Como consequumlecircncia seus escritos foram analisados de maneiras diversas inclusive mal interpretados Nos nossos dias ainda haacute algueacutem que natildeo consegue interpretaacute-lo com clareza coerecircncia e plena nitidez

Para uns Maquiavel parece ser o protoacutetipo do poliacutetico sem escruacute-pulos sem eacutetica que age de acordo com as circunstacircncias que se lhe apresentam Destarte eacute considerado um escritor e pensador nocivo cujas ideias devem ser banidas da praacutetica poliacutetica e substituiacutedas por uma ldquoverdadeirardquo atitude eacutetica

Para uns Maquiavel eacute considerado um elitista ao contraacuterio de outros que o tecircm em conta como um democrata autecircntico que natildeo via outro fator capaz de sustentar a estabilidade de todo e qualquer regime senatildeo a forccedila e o apoio popular E ainda hoje este axioma converge na poliacutetica moderna onde nenhuma autoridade se conserva no jogo do poder quando natildeo goza de boa reputaccedilatildeo e grande simpatia junto ao povo

52 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 21 53 Biografia Niccoloacute Machiavelli ndash 1469-1527 Disponiacutevel em wwwplmitorjnet Acessado em 15 de dezembro de 2010

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

184

Ainda haacute pessoas que o apresentam como defensor da forccedila e do absolutismo enquanto outras o exaltam na qualidade de conselheiro dos governantes republicano e amigo das leis

Natildeo obstante todas estas controveacutersias e talvez exatamente por causa delas a filosofia empiacuterica e cientiacutefica de Maquiavel se tornou um marco inestimaacutevel na trajetoacuteria da ciecircncia poliacutetica e universal

Como explicar que Maquiavel poreacutem eacute um verdadeiro ponto de referecircncia no desenvolvimento da ciecircncia poliacutetica O fato eacute que em decorrecircncia dos ensinamentos dele a arte da poliacutetica natildeo estaacute mais ligada agrave formulaccedilatildeo de ideais abstratos e por muitas vezes utoacutepicos de um bem comum formulado com suporte num ideal cristatildeo mas na observaccedilatildeo da praacutetica da accedilatildeo poliacutetica e na formulaccedilatildeo clara dos objetivos que se intente alcanccedilar Tambeacutem estaacute se vendo que a eacutetica na poliacutetica natildeo deve ser concebida e avaliada nos mesmos termos que a eacutetica individual com suas normas do bem e do mal A filosofia contemporacircnea fundamenta-se na efetiva perseguiccedilatildeo de eficaacutecia vigor patrioacutetico anaacutelise aguda das circunstacircncias na procura do fortalecimento e conservaccedilatildeo da paacutetria

Natildeo deve ser esquecido o fato de que nos primeiros tempos Maquiavel foi incompreendido por ser aquele expectador objetivo do processo poliacutetico que se manifesta nos seus escritos Na verdade a arte poliacutetica maquiveliana sempre procurou assentar-se na verdade efetiva das coisas ignorando a busca de como as coisas deveriam ser Com o realismo que lhe eacute peculiar o autor florentino pretendia apenas ensinar ao priacutencipe a fugir do imaginaacuterio recusando imagens idealizadas pela natureza humana mas irreais e que nunca existiram Para evitar a ruiacutena e tornar-se vitorioso o detentor do poder deveria se fixar no real e considerar os homens como eles realmente satildeo

Desempenhando o papel de mestre dos priacutencipes legou agrave contempo-raneidade um dos seus mais relevantes ensinamentos O caminho para o governante se tornar eficaz e tambeacutem responsaacutevel eacute basear seus empreen-dimentos em informaccedilatildeo correta previsatildeo de futuros imprevistos diagnoacutestico oportuno caacutelculo exato dos resultados previsiacuteveis tomada de decisatildeo na hora certa e muita sabedoria

Pretendendo dar conselhos aos priacutencipes prestou um excelente serviccedilo agrave humanidade Aconselhou a prudecircncia para todas as geraccedilotildees Sendo cauteloso o homem procura logo a cura de seus males em vez de tomar providecircncias tardias muitas vezes sem chances de remediaacute-los

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

185

Ensinou a todos a ver aleacutem das aparecircncias e descobrir o essencial aquilo que fica escondido sob os bastidores do teatro da vida

Evitar sempre a neutralidade e a dubiedade foi outra importante liccedilatildeo A pessoa que natildeo assume corajosamente sua verdadeira posiccedilatildeo natildeo inspira credibilidade e jamais conseguiraacute a confianccedila a lealdade e a afeiccedilatildeo de outrem

Conclamou Maquiavel as geraccedilotildees a natildeo se deixarem abater diante das crises ou dos momentos de infortuacutenio Ao contraacuterio eacute preciso lutar sempre pelas suas convicccedilotildees e acreditar firmemente que vencer sem luta eacute triunfar sem gloacuteria

Apoacutes a divulgaccedilatildeo de sua obra mais importante O Priacutencipe Maquiavel teve suas reflexotildees poliacuteticas muito mal interpretadas confor-me jaacute expresso E esta incompreensatildeo perdura por seacuteculos ateacute os dias atuais Basta que se procure num dicionaacuterio o significado do vocaacutebulo maquiaveacutelico e logo se encontra como sinocircnimo deste termo rdquoindiviacuteduo que age com astuacutecia perfiacutedia ou malvadezardquo Interpretaccedilotildees dessa natureza nada tecircm de verdadeiro Sempre satildeo resultantes de leigos desinformados ou mesmo acadecircmicos que natildeo efetuam uma anaacutelise mais atenta e cuidadosa sobre as posiccedilotildees poliacuteticas de Maquiavel E destarte natildeo atingem a profundidade do complexo ideaacuterio maquiveliano Nesta perspectiva acredita-se que a maior ofensa que se possa cometer contra o Notaacutevel Escritor Florentino eacute essa heranccedila maldita em torno de seu nome

O Priacutencipe eacute na atualidade um dos livros mais polecircmicos e mais lidos do mundo Sem qualquer duacutevida um verdadeiro best-seller Conteacutem subsiacutedios para todo e qualquer leitor que queira se aprofundar no conhecimento das regras e artiacutefices da arte de governar Considerado como um verdadeiro breviaacuterio sobre poliacutetica tornou-se livro de cabeceira para vaacuterios governantes Determinar o fim da influecircncia doutrinaacuteria medieval sobre a investigaccedilatildeo poliacutetica contemporacircnea foi sua importacircncia funda-mental

Apesar do seu intenso vigor patrioacutetico o Diplomata Florentino morreu sem presenciar a realizaccedilatildeo do seu sonho maior ver sua paacutetria - a Itaacutelia renascentista ndash cintilando no panorama das naccedilotildees fortes unidas estaacuteveis e desenvolvidas E poreacutem por meio das paacuteginas de O Priacutencipe transmitiu um admiraacutevel cabedal de conhecimentos sobre a loacutegica que rege a conquista e a manutenccedilatildeo do poder

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

186

Por tudo o que se abordou neste trabalho acredita-se firmemente que com justa razatildeo Maquiavel merece o cognome de ldquopai da ciecircncia poliacutetica modernardquo

Referecircncias Bibliograacuteficas

AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e razatildeo de Estado Satildeo Paulo sEd dezembro de 2008

BATISTA Flaacutevio Donizete Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Disponiacutevel em http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 25 de ou-tubro de 2010

BELLOZO Edson Maquiavel e as origens do pensamento poliacutetico moderno Disponiacutevel em wwwminiwebcombrcienciasartigosmaquiavel Aces-so em 15-09-2010

BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Textos de Aula Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Internacionais Brasiacutelia UnB sd

BIRARDI A e Castelani G R Desmistificando Maquiavel Ensaio acerca de sua histoacuteria obras e conceitos Disponiacutevel em httpwwwklepsidra netklepsidra4maquiavelhtn Acessado em 18092010

BIGNOTTO Newton Maquiavel Republicano Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1991

BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

CAILLEacute Alain LAZZERI Christian SENELLART Michel (organizado-res) Histoacuteria argumentada da Filosofia Moral e Poliacutetica Satildeo Leopoldo Editora UNISINOS 2003

BARROS Vinicius Soares de Campos 10 liccedilotildees sobre Maquiavel Petroacute-polis Editora Vozes 2010

FRANCO Afonso Arinos de Mello O Pensamento poliacutetico na Renas-cenccedila Cadernos da UnB Humanidades Brasiacutelia UnB 1980 p 19-27

DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores Ltda 1984

ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao pensamento poliacutetico de Maquiavel Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1979

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

187

______ O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 18-52

GREGORIO Fernando Ceacutesar Aplicando Maquiavel no dia a dia Satildeo Paulo Madras Editora Ltda 2008

GRUPPI Luciano Tudo comeccedilou com Maquiavel Porto Alegre L amp PM Editores 1988

LARIVAILLE Paul A Itaacutelia no tempo de Maquiavel (Florenccedila e Roma) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

MAQUIAVEL O Priacutencipe Comentado por Napoleatildeo Bonaparte Traduccedilatildeo Pietro Nassetti Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

MAQUIAVEL Nicolau Comentaacuterios sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1992

MOREIRA Marcilio Marques O Pensamento Poliacutetico de Maquiavel Textos de aula Brasiacutelia Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Interna-cionais sd

MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984

REALE Giovanni e ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Do Huma-nismo a Descartes Satildeo Paulo Paulus 2004

RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002

RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no2 Recife Unicap 1986 p 43-53

RODRIGUES Ruy Martinho Priacutencipe Lobo e Homem Comum (Anaacutelise das Ideacuteias de Maquiavel Hobbes e Locke) Fortaleza UFC 1997

RUSSELL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969

SANTOS Vivian Matias dos Niccolo Machiavelli moralista ou intelec-tual orgacircnico Em Mediaccedilotildees v12 n2 p 175-187 juldez 2007

SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988

STRATHERN Paul Maquiavel (em 90 minutos) Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

188

WEBER Hingo O priacutencipe amp Maquiavel sem ideologias Petroacutepolis Editora Vozes 2007

SADEK Maria Nicolau Maquiavel o cidadatildeo sem Fortuna e o intelectual de virtugrave Em WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2003

WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Licenciada em Filosofia e Histoacuteria pela Faculdade de Filosofia do Cearaacute e

Especialista em Gestatildeo Puacuteblica pela Universidade Vale do Acarauacute

Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos Doutor em Teologia pela Pontiacutefica Universidade Gregoriana

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

189

SOBRE A RELACcedilAtildeO DINAcircMICA DA REALIDADE SUPRA-SENSIacuteVEL SEGUNDO PROCLO

SUR LA RELATION DYNAMIQUE DE LA REacuteALITEacute

SUPRASENSIBLE SELON PROCLUS

Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha

Resumo

O presente artigo tem por objetivo demonstrar porque as relaccedilotildees dinacircmicas satildeo imprescindiacuteveis na filosofia procleana Para tanto parte-se da problemaacutetica da inexis-tecircncia de movimento na realidade supra-sensiacutevel mostrando que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento de deslocamento Defende-se pois que natildeo se trata em Proclo (412 ndash 485 dC) de uma sucessatildeo de eventos e nem de uma mudanccedila na substacircncia Desta forma apoacutes a anaacutelise do movimento de processatildeo parte-se para a consideraccedilatildeo do papel das triacuteades da realidade incorpoacuterea para soacute entatildeo verificar a importacircncia das relaccedilotildees dinacircmicas na multiplicaccedilatildeo e diversidade dos seres Apoacutes ser estudado o papel das triacuteades seraacute possiacutevel perceber que natildeo eacute o movimento o responsaacutevel pela diversidade mas a relaccedilatildeo dinacircmica que a possibilita Assim este trabalho se fundamenta nos Elementos Teoloacutegicos de Proclo

Palavras-chave Proclo Triades Relaccedilatildeo Dinacircmica

Resumeacute Lrsquoobjectif de cette recherche est montrer que les relations dynamiques sont indispensables dans la philosophie proclienne Alors il part de la question de lrsquoabsence du mouvement dans les reacutealiteacutes suprasensibles montrant que le mouvement de oprocession nrsquoest ni une sucession drsquoeacuteveacutenements ni un changement dans la substance Apregraves analyser le mouvement de procession il fait lrsquoexamen de la function des triades dans la reacutealiteacute incorporelle et veacuterifie lrsquoimportance des relations dynamiques dans la multiplication et dans la diversiteacute des ecirctres Apregraves lrsquoeacutetude de la function des triades il sera possible comprendre que nrsquoest pas le mouvement le responsable pour la diversiteacute mais la relation dynamique qui la rend possible Cet eacutetude est fondamenteacutee dans lrsquooeuvre Eacuteleacutements de Theacuteologie de Proclus (412-485 a C)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

190

Mots-cleacutes Proclus Triades Relation Dynamique

Introduccedilatildeo

Herdeiro da filosofia pagatilde Proclo (412-485 dC) eacute considerado o uacuteltimo expoente de destaque da filosofia antiga a atuar na escola de Atenas1 Como neoplatocircnico as teses do Bizantino satildeo marcadas pela tentativa de conciliaccedilatildeo das doutrinas platocircnicas aristoteacutelicas e pitagoacutericas Por estar inserido no contexto das escolas da Antiguidade Tardia os escritos do filoacutesofo satildeo caracterizados por sua sistematicidade Neste sentido o pensador ao expor a passagem da unidade agrave multiplicidade natildeo admite passagens abruptas e portanto natildeo concebe que do Uno surja imediatamente a multiplicidade em sua complexidade isto eacute ele natildeo concebe uma passagem imediata do Uno ao Noucircs

Entretanto ainda que a passagem do Uno ao muacuteltiplo seja algo fundamental na filosofia procleana ela encerra um problema Acontece que Proclo na realidade supra-sensiacutevel natildeo admite movimento na substacircncia Diante disto partindo da ideia platocircnica de que ldquomudanccedila eacute movimentordquo2 a diferenccedila entre os seres da realidade imaterial natildeo pode ser explicada Uma vez que sem movimento natildeo haacute produccedilatildeo Assim para solucionar tal problemaacutetica parte-se da hipoacutetese de que a diferenccedila na realidade imaterial natildeo eacute o resultado de um movimento de deslocamento ou da proacutepria substacircncia dos seres mas da relaccedilatildeo entre os princiacutepios que os constituem Para verificar tal hipoacutetese eacute preciso iniciar a anaacutelise com o

1 Fechada em 529 por Justiniano de acordo com o decreto que afirma ldquoNingueacutem que tenha sido contagiado por tais heresias poderaacute desempenhar grau no exeacutercito ou exercer ofiacutecios puacuteblicos nem na condiccedilatildeo de professor que se ocupe de alguma disciplina () Proibimos que seja ensinada qualquer doutrina da parte daqueles que satildeo afetados pela insacircnia dos iacutempios pagatildeosrdquo (REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008 p 206-208)Tal decreto que afetou profundamente as escolas de vertente pagatilde fez com que pensadores da Academia como Simpliacutecio (490 ndash 560 dC) e Damascius (458 ndash 583 dC) fugissem para Peacutersia A fim de dar continuidade aos estudos permaneceram por volta de 531532 na corte de Khussraw I pois o rei da Peacutersia se mostrava simpatizante do pensamento grego Somente em 533 por ocasiatildeo do ldquotratado de paz eternardquo assinado entre os persas e os bizantinos retornaram ao Ocidente Sobre a fuga dos pensadores pagatildeos para a Peacutersia ver SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012 paacuteg 62-74 2 Parmecircnides 162c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

191

movimento de processatildeo pois eacute por ele que primeiramente Proclo explica a saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade

1 O movimento de processatildeo

De acordo com a filosofia procleana a multiplicidade soacute pode ser pensada se a unidade for pressuposta Assim toda multiplicidade participa de tal forma da unidade que a sua natildeo participaccedilatildeo implicaria em uma multiplicaccedilatildeo infinita o que seria um engano Pois se a multiplicidade natildeo participasse da unidade ou a proacutepria multiplicidade seria una ou natildeo-una e no caso de ser natildeo-una ou seria muitas ou nada Admitir que ela eacute nada eacute cair num contrassenso pois como algo (um existente) poderia ser nada Ou ainda como pode haver geraccedilatildeo se o ser natildeo pode advir do nada Por outro lado a tese de que a multiplicidade existe precisa de uma anaacutelise cuidadosa uma vez que afirmar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla pode levar a aporias jaacute que sua gecircnese natildeo seria explicada fazendo com que se caia numa regressatildeo infinita3

A regressatildeo aconteceria porque ao sustentar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla e natildeo una se admite que cada parte que a compotildee tambeacutem eacute muacuteltipla de modo que nunca se chega a um princiacutepio Logo haacute uma necessidade de contornar a ideia da regressatildeo ad infinitum Para tanto o princiacutepio como unidade eacute posto como indispensaacutevel mediante a ideia de que se fossem dois ou eles seriam iguais ou diferentes Sendo iguais se trataria de apenas uma substacircncia ou seja seriam um sendo diferentes um teria de ser o primeiro derivando entatildeo um do outro Se os dois estivessem no mesmo patamar nenhum seria o primeiro o que significaria a existecircncia de algo acima deles que os deu origem Entatildeo o que pode se perceber eacute que natildeo importa o caminho seguido a razatildeo sempre leva a um primeiro que eacute fundamentalmente um4 Assim este Um no neoplatonismo eacute posto como unidade absolutamente simples da qual toda multiplicidade participa

Proclo entatildeo faz surgir da unidade toda multiplicidade Esta multiplicaccedilatildeo da unidade originaacuteria se daacute por meio do movimento de processatildeo que eacute composto por trecircs momentos muito distintos mas que

3 PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995 Proposiccedilatildeo 1 4 Cf op cit Proposiccedilatildeo 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

192

estatildeo estreitamente interligados Satildeo eles Processatildeo (πρooacuteδος) Perma-necircncia (μονή) e Retorno (ἐπιστροφή) Os trecircs momentos se distinguem pelo fato de que no primeiro (πρooacuteδος) haacute uma separaccedilatildeo entre a causa e seu efeito no segundo (μονή) tem-se que mesmo que haja a processatildeo eacute preciso que o produto permaneccedila em sua causa e no terceiro (ἐπιστροφή) o efeito retorne agrave causa pelo desejo de nela participar Entretanto a ligaccedilatildeo entre estes eventos natildeo acontecem em uma ordem linear mas se datildeo simultaneamente5 Posto que se soacute procedesse natildeo haveria qualquer comunicaccedilatildeo entre o que produz e o que eacute produzido se soacute permanecesse natildeo haveria produccedilatildeo e como pode haver retorno sem que haja separaccedilatildeo6 Portanto por exigir tanto o sair como o permanecer na causa o movimento de processatildeo acontece de modo circular

A processatildeo guarda entatildeo algumas leis inviolaacuteveis que garantem que todas as etapas aconteccedilam A primeira lei atesta que toda causa produtiva produz por super abundacircncia de potecircncia Neste sentido Proclo sustenta que ldquo[] tout ce qui produit demeure tel qursquoil est et parce qursquoil demeure tel son deacuteriveacute procegravede Crsquoest donc par la pleacutenitude et la perfection dont il jouit qursquoil fait subsister ses deacuteriveacutes sans se mouvoir ni srsquoamoindrirrdquo7 A segunda que estaacute em concordacircncia com a primeira defende que devido agrave super abundacircncia de potecircncia o produtor natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo ao engendrar seus efeitos8 A terceira legitimando todo o momento da processatildeo defende a tese de que toda produccedilatildeo soacute se efetiva por meio da semelhanccedila9 entre produto e produtor10

A menccedilatildeo agraves leis de processatildeo prepararam o terreno para o esclarecimento da multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases por meio da unidade Isto

5 Para Caram a simultaneidade dos momentos da processatildeo se daacute porque para os neoplatocircnicos a categoria da causalidade natildeo envolve uma sequecircncia temporal ou mesmo a noccedilatildeo moderna de eventos sucessivos que pressuporia um lsquoantes e depoisrsquo jaacute que a relaccedilatildeo natildeo eacute entre eventos mas substacircncias CfCARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesrevistasthemata 49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015 p108 6 PROCLUS Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 30 7 Op cit Proposiccedilatildeo 27 8 Segundo Proclo ldquoToute cause qui produit autre qursquoelle-mecircme produit ses deacuteriveacutes et ce qui les suit en demeurant en elle-mecircmerdquo Op cit Proposiccedilatildeo 26 9 Cf Caram A semelhanccedila em Proclo eacute a capacidade de manter a caracteriacutestica do ser originaacuterio poreacutem em um grau menor CARAM op cit 2014 p 108 10 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 28-29

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

193

porque de acordo com tais leis o produtor eacute sempre superior a tudo o que vem depois dele tendo em vista que natildeo sofre qualquer diminuiccedilatildeo assegurando assim a continuidade do movimento e permite que aquilo que eacute produzido seja semelhante11 ao produtor A semelhanccedila se daacute desta forma porque o ser do produzido adveacutem do proacuteprio produtor ao dar ao produzido da sua proacutepria substacircncia Neste sentido o Diadoco sustenta que ldquoTout dispensateur qui agit par son ecirctre (τὸτῷεἰναιχορηγοῦν) est lui-mecircme de faccedilon primordiale ce qursquoil communique aux beacuteneacuteficiaires de ses dispensationsrdquo12 Partindo de tal proposiccedilatildeo o sucessor do pensamento platocircnico demonstra no que consiste a semelhanccedila entre causa e efeito Ainda eacute preciso contudo apontar as implicaccedilotildees da semelhanccedila no movimento de processatildeo

Quando se fala em semelhanccedila a primeira coisa a ser vista eacute que na processatildeo o que se revela no efeito eacute a proacutepria manifestaccedilatildeo da causa uma vez que como mencionado o produto possui o mesmo ser do produtor dado que ele eacute a continuidade ontoloacutegica da sua causa A semelhanccedila leva o produto a desejar retornar ao produtor pois soacute na causa que eacute superior pode encontrar perfeiccedilatildeo O desejo de retornar soacute existe porque haacute uma comunicaccedilatildeo ininterrupta entre eles Tal comunicaccedilatildeo eacute tambeacutem conexatildeo que na processatildeo estrutura o cosmo permitindo que a causa esteja sempre em contato com seus efeitos Deste modo o movimento acontece de modo circular no qual o efeito sai da causa ao mesmo tempo em que permanece nela e a ela retorna em um ciclo interrupto onde o princiacutepio e o fim satildeo o mesmo Sobre isto Proclo assevera

Tout ecirctre qui procegravede drsquoun principe et se convertit vers lui a une activiteacute cyclique Si cet ecirctre se convertitvers ce dont il procegravede il fait coiumlncider sa fin avec son principe et son mouvement est unique et continu qursquoil srsquoeacutecarte du repos originel ou qursquoil srsquoy rapporte Crsquoest pourquoi tous les ecirctres accomplissent un processus cyclique qui va de leurs causes agrave leurs causes Il est des cycles plus amples et il en est de plus court selon que les conversions se portent aux cause immeacutediatement supeacuterieures ou agrave de plus eacuteleveacutees jusqursquoau principe universal13

11 Platatildeo define semelhanccedila como aquilo que eacute outro mas imita o objeto ao qual eacute semelhante a fim de conservar sua beleza No entanto o faz mudando de proporccedilatildeo Cf Platatildeo Sofiacutesta 136 a 12 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 18 13 Op cit Proposiccedilatildeo 33

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

194

Na processatildeo a semelhanccedila vem em primeiro lugar sendo ela quem proporciona a conversatildeo e permanecircncia do causado na causa Todavia natildeo haacute multiplicaccedilatildeo somente com semelhantes pois neste caso o que diferiria o produto do produtor a causa do causado Para que haja distinccedilatildeo entre os elementos eacute preciso que exista alguma caracteriacutestica diferente entre eles e uma vez que a processatildeo se daacute pela multiplicaccedilatildeo do ser do produtor natildeo pode haver diferenccedila entre a constituiccedilatildeo do ser da causa e do causado Assim a priori a diferenccedila entre causa e efeito se apresenta como diferenccedila de potencialidade14 Isto porque para Proclo eacute imprescindiacutevel que o produto seja inferior em potecircncia ao seu produtor Portanto se por um lado na multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases a semelhanccedila eacute necessaacuteria por outro a dessemelhanccedila tambeacutem o eacute15

A diferenccedila entatildeo consiste em potecircncias diferentes que faz com que os elementos que compotildeem o sistema procleano faccedilam parte de uma hierarquia na qual quanto mais proacuteximo o produto estiver da sua causa mais perfeito e potente ele eacute16 Isso porque aqueles que estatildeo mais proacuteximo recebem em maior grau a potecircncia produtiva e no mesmo grau em que recebe a potecircncia recebem o ser da mocircnada originaacuteria Ao ter um maior grau de ser e de potecircncia o produtor eacute para o que vem em seguida causa bem e perfeiccedilatildeo fazendo com que este segundo deseje dele participar e natildeo somente o deseje mas necessite de tal participaccedilatildeo para alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Logo a correspondecircncia entre perfeiccedilatildeo constituiccedilatildeo e partici-paccedilatildeo se estabelece partindo de uma hierarquia na qual os seres que estatildeo mais proacuteximos do princiacutepio de sua seacuterie satildeo superiores e servem como degraus para perfeiccedilatildeo daqueles que satildeo produzidos por uacuteltimo

A perfeiccedilatildeo que se daacute mediante a participaccedilatildeo na causa como jaacute foi dito soacute eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre os termos Assim o desejo do produto de participar do seu produtor eleva o produtor ao patamar de bem No entanto se o primeiro bem de cada seacuterie natildeo pode ser partici-pado entatildeo como aquele que soacute existe por meio da participaccedilatildeo em outro pode participar daquele que eacute imparticipado Tal possibilidade se daacute pela existecircncia de um elemento intermediaacuterio que na filosofia procleana eacute sempre fundamental O intermediaacuterio no que diz respeito agrave participaccedilatildeo eacute

14ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur est drsquoordre supeacuterieur agrave son produit PROCLUS Op cit Proposiccedilatildeo 7 15 ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur esr drsquoordre supeacuterieur agrave son produitrdquoop cit 1995 Proposiccedilatildeo 7 16 Op cit Proposiccedilatildeo 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

195

posto como participado aquele pelo qual o participante adquire sua perfeiccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoPuisqursquoil eacutetait imparfait avant la participation et est devenu parfait par la participation le participant est entiegraverement subordonneacute au participeacute dans lrsquoordre de la perfection anteacuterieure il est infeacuterieur au participeacute qui le rend parfaitrdquo17

Tem-se entatildeo a existecircncia de uma triacuteade composta por hipoacutestases por meio de uma causa uacutenica satildeo elas o imparticipado o participado e o participante O imparticipado eacute segundo Proclo aquele que tem em si a razatildeo de sua proacutepria unidade18 Nele estaacute toda a potecircncia e capacidade de produzir ou seja eacute a mocircnada19 de uma seacuterie que surge mediante ele mesmo O que eacute produzido imediatamente pelo imparticipado eacute o partici-pado e o que eacute produzido em seguida participante Ambos participante e participado satildeo semelhantes ao imparticipado pois dele recebem sua substacircncia Entretanto satildeo dessemelhantes porque na medida em que saem de sua causa satildeo potencialmente inferiores a ela A inferioridade de sua potecircncia eacute determinante em sua imperfeiccedilatildeo No entanto eacute exatamente na imperfeiccedilatildeo e contemplaccedilatildeo do perfeito que estaacute o desejo de participar

A triacuteade referente agrave participaccedilatildeo estaacute diretamente associada agravequela referente agrave perfeiccedilatildeo pois a medida de perfeiccedilatildeo eacute a mesma da participaccedilatildeo Assim o ser imparticipado corresponde ao Bem o participado ao autohipostaacutetico20 e os outros seres aqueles que tecircm sua existecircncia partindo de outros ao participante Estas triacuteades por sua vez equivalem agravequela referente ao Imoacutevel Automotor e Heteromotor O que torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que sejam utilizados termos diferentes levando em consideraccedilatildeo um predicado o pensador estaacute sempre se referindo ao mesmo elemento dentro de uma seacuterie Ou seja natildeo importa se remete ao Imoacutevel Imparticipado ou Bem quando se evoca um destes termos a referecircncia eacute sempre ao princiacutepio da seacuterie e o mesmo acontece com os outros elementos21 Por esta razatildeo por meio de uma unidade que aparece como Bem Imoacutevel ou

17 PROCLUS op cit Proposiccedilatildeo 24 18 Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 23 19 Cf Proclo A Mocircnada na filosofia procleana eacute o princiacutepio originaacuterio de toda seacuterie Eacute dela que toda multiplicidade mediante a semelhanccedila tem origem op cit Proposiccedilatildeo 21 20 Autohipostaacutetico eacute todo aquele que existe em si e por si ou seja tem em si mesmo a razatildeo de sua existecircncia e constituiccedilatildeo sendo portanto perfeito 21 A saber quando se fala em participado automotor ou autohipostaacutetico do termo intermediaacuterio que faz a ligaccedilatildeo entre o princiacutepio Quando cita os seres cuja existecircncia dependente de outros estaacute sempre se referindo ao uacuteltimo termo da seacuterie ou seja o participante que eacute tambeacutem heteromotor e natildeo eacute causa de sua proacutepria perfeiccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

196

Imparticipado surge um elemento que eacute estreitamente semelhante a ela pois dele recebe o seu ser

Agrave vista do exposto nesta primeira anaacutelise a diferenccedila caracteriacutestica da multiplicidade se mostrou tatildeo somente como resultado da diferenccedila de potencialidade entre produto e produtor O que se observa entretanto ao investigar a multiplicidade ou mesmo a sua relaccedilatildeo com a unidade eacute que a diferenccedila que existe nela natildeo se limita a uma desigualdade de potecircncia como bem se observa na constituiccedilatildeo do Noucircs e na proacutepria diversidade dos seres Por isto eacute preciso ir mais a fundo na investigaccedilatildeo a fim de descobrir a gecircnese da diferenccedila Afinal quando se fala da dessemelhanccedila mediante os graus de potencialidade tem-se jaacute anteriormente uma diver-sidade presente nas mocircnadas pelas quais as seacuteries satildeo derivadas Com o intuito de aprofundar o exame referente agrave origem da diferenccedila portanto eacute necessaacuterio analisar o papel das triacuteades na geraccedilatildeo dos seres

2 A organizaccedilatildeo triaacutedica da realidade sobre o papel de Peacuteras Apeiacuteron e Mixto

O sistema procleano de hipoacutestases eacute disposto em triacuteadas Natildeo satildeo somente as hipoacutestases que satildeo ordenadas triadicamente pois esta forma de organizar perpassa todos os acircmbitos da filosofia do Bizantino Prova disto eacute a relaccedilatildeo que daacute origem a toda realidade a saber o movimento de processatildeo que como visto eacute constituiacutedo por trecircs momentos indispensaacuteveis e indissociaacuteveis Aleacutem da triacuteade presente no movimento de processatildeo a proacutepria realidade incorpoacuterea eacute sistematizada desta forma sendo composta por trecircs hipoacutestases divina inteligiacutevel e psiacutequica Cada uma das realidades mencionadas guarda particularidades que soacute dizem respeito a elas mesmas Poreacutem satildeo semelhantes na perspectiva de ser cada uma subdivi-dida em triacuteades

Por estar presente em todos os momentos da teoria do Diadoco o entendimento das triacuteades eacute essencial para que o pensamento do autor seja compreendido principalmente quando se trata da concepccedilatildeo do desdobra-mento da multiplicidade mediante a unidade Sobre a importacircncia das triacuteades na tese procleana Bezerra faz a seguinte afirmaccedilatildeo ldquochegamos assim agrave ideia das triacuteades como mediaccedilatildeo entre a multiplicidade constante das coisas e a unidade superior a todo devirrdquo22 A triacuteade como movimento de processatildeo eacute o

22 BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006 p 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

197

elemento motor da participaccedilatildeo haja vista ser determinante na constituiccedilatildeo dos seres Tal constituiccedilatildeo por sua vez estaacute diretamente relacionada agrave mobilidade dos termos que compotildee a realidade incorpoacuterea e corpoacuterea A estrutura triaacutedica portanto faz existir uma mediaccedilatildeo dinacircmica que proporciona a continuidade ontoloacutegica daquilo que eacute produzido permitindo o contato do Uno com tudo o que vem em seguida Neste sentido Caram assegura que ldquoo sistema procleano eacute uma trama de relaccedilotildeesrdquo23

Eacute esse complexo de relaccedilotildees que permite a causalidade pois os encadeamentos natildeo possuem um caraacuteter temporal uma vez que natildeo se trata de um antes e depois relativo ao vir-a-ser mas tatildeo somente a uma questatildeo loacutegica explicativa Assim a passagem da unidade agrave multiplicidade eacute feita mediante o estabelecimento de um sistema no qual partindo da unidade um atributo eacute gerado e mantido por meio das triacuteades permitindo que a comunicaccedilatildeo se estenda do primeiro ao uacuteltimo termo de uma ordem Eacute importante observar entretanto que sendo o Uno a Causa Prima ele transcende a todas as realidades de maneira a estar separado de qualquer ordem Ou seja natildeo se pode dizer que o Uno faz parte de qualquer seacuterie da realidade incorpoacuterea pois transcende a todas Trouillard neste sentido defende que o Uno natildeo estaacute em nenhuma ordem a qual produz24 diferente das demais causas que satildeo o centro de suas ordens

No que respeita agrave realidade supra-sensiacutevel a primeira hipoacutestase que descende diretamente do Uno eacute a divina o universo das heacutenadas Depois delas haacute a realidade inteligiacutevel e em seguida a psiacutequica A hipoacutestase divina eacute aquela na qual se encontra o iniacutecio da multiplicidade embora seja apenas uma multiplicidade quantitativa E mesmo que sejam muitas elas se caracterizam pela unidade dado que eacute a primeira esfera que surge atraveacutes do Uno Neste sentido com base na ideia de que o Uno eacute Deus25 e Bem Proclo defende que a multiplicidade dos deuses eacute unitaacuteria26 tendo

23 CARAM op cit 2014 p 105 24 Cf TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982 p 54 25 Eacute valido lembrar que apesar de ser denominado Deus o Uno soacute possui esta nomenclatura por ser causa e portanto dar origem e manter todos os seres aleacutem de ser objeto de desejo de todos uma vez que eacute o Sumo Bem 26 O caraacuteter transcendente do Uno o leva a ser considerado como Deus mas um deus que transcende a todos os deuses por ser Causa Primeira e objeto de desejo de todas as coisas de modo a estar acima de toda ordem Os primeiros elementos que satildeo deles originados satildeo as Heacutenadas que embora extremamente semelhantes a ele lhe satildeo potencialmente inferior Elas tecircm assim o papel intermediaacuterio entre a realidade divina e inteligiacutevel sendo assim

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

198

em vista que o Diadoco natildeo concebe saltos entre os termos da processatildeo e as Heacutenadas satildeo as primeiras coisas produzidas Apoacutes as Heacutenadas haacute a realidade inteligiacutevel onde se encontra a diversidade de maneira mais concreta tendo em vista que nela haacute inuacutemeras organizaccedilotildees nas quais o iniacutecio da diversidade dos seres eacute manifesto

A estrutura loacutegica da realidade inteligiacutevel procleana eacute interpretada por Caram27 como o fundamento de toda hipoacutestase pois a divisatildeo em Ser Vida e Intelecto tanto reflete os momentos da processatildeo quanto o ciclo das almas28 e o mundo do devir29 Assim a indispensabilidade da triacuteade inteli-giacutevel natildeo se refere somente agrave sua influecircncia no que eacute engendrado em seguida mas agrave unidade presente no Espiacuterito e na totalidade do cosmo Por esta razatildeo a ordem inteligiacutevel encontra na triacuteade Ser Vida e Pensamento sua unidade fundamental na medida em que pensamento e ser estatildeo unidos de tal forma que o pensamento eacute sempre pensamento do ser e o ser eacute sempre ser do pensamento Deste modo ldquo[] na Inteligecircncia estatildeo ambos Ser e Vida por participaccedilatildeo e cada um deles intelectualmente pois o ser da inteligecircncia eacute cognoscitivo e sua vida eacute conhecimentordquo30 A unidade entre Ser e Pensamento daacute ao Noucircs a dinacircmica que se manifesta como a vida que se faz presente no Espiacuterito e que medeia a relaccedilatildeo entre aqueles dois termos31

Proclo assegura a unidade do Espiacuterito ao declarar que cada um dos elementos que o compotildee estaacute presente nos demais embora chame atenccedilatildeo ao fato de que mesmo que tudo esteja em tudo cada um estaacute em seu modo proacuteprio O Diadoco entatildeo apresenta trecircs maneiras de existir essencial-mente vitalmente e intelectualmente32 Cada modo corresponde a um elemento que faz parte da esfera inteligiacutevel e a ligaccedilatildeo entre os trecircs soacute eacute

muacuteltiplas quanto sua quantidade mas unitaacuterias quanto aos seus atributos pois os uacutenicos que podem ser percebidos satildeo bondade e unidade PROCLO Op cit Proposiccedilatildeo 113 27 Cf CARAM op cit 2014 p 107 28 Para Proclo ldquoToda alma eacute uma substacircncia vital e cognoscitiva um princiacutepio de vida substancial e cognoscitiva e um principio de conhecimento por ser uma substacircncia e um princiacutepio de vidardquo PROCLO op cit proposiccedilatildeo 197 (traduccedilatildeo nossa) Cf TRUILLARD O ciclo da alma eacute composto por ser ou substacircncia vida ou potecircncia e pensamento ou atividade p 60 68 29 Cf TRUILLARD op cit 1982p 60 As ordens do reino do devir satildeo mineral vegetal e sensitivo 30 PROCLO op cit Proposiccedilatildeo 103 (traduccedilatildeo nossa) 31 ldquoSin el acto de la vida que opera la mediacioacuten entre los dos elementos el espiacuterito no tendria ninguna conciencia del proacuteprio ser e de la proacutepria esencia [] Ella en cuanto pensante e y existente funda el acto de identida que ocurre entre el ser y el espiacuterito y deviene mediadora dela triadicidad del νοῦςrdquo CARAM op cit 2014 p 117 32 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 103

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

199

possiacutevel porque cada um deles eacute formado pelos mesmos princiacutepios Limite e Ilimitado Desta maneira eacute possiacutevel dizer que cada elemento que faz existir a triacuteade do Espiacuterito eacute formado por outra triacuteade cujos princiacutepios satildeo comuns Ou seja 1) finito infinito e Ser 2) finito infinito e vida e 3) finito infinito e pensamento33 satildeo triacuteades que produzem triacuteades

Limite e Ilimitado satildeo a diacuteade pela qual se manifesta o Uno Satildeo o princiacutepio de todo ser e por esta razatildeo satildeo os elementos centrais para a explicaccedilatildeo da produccedilatildeo da multiplicidade haja vista o Uno soacute produzir semelhantes34 Esses dois princiacutepios satildeo causa de todo ser aleacutem de serem a primeira manifestaccedilatildeo do Uno de maneira que tudo que se segue eacute composto por eles Neste sentido DrsquoAncona atesta que ldquoCes deux priacutencipes consideres par Proclos comme Supremes en tant que responsables de chaque manifestation de stabiliteacute et de changement dans lrsquounivers tout entierrdquo35 Para Proclo ateacute as Heacutenadas que estatildeo no mesmo plano do Uno por fazerem parte da realidade divina procedem dos dois princiacutepios36 Mesmo que os dois princiacutepios soacute sejam percebidos nos seres ou seja como mistura entretanto cada princiacutepio existe por si mesmo e independente um do outro37 - o que leva agrave necessidade de analisar cada um isoladamente

Peraacutes ou o Limite eacute a causa da semelhanccedila com o Uno que segundo Berger representa o Primeiro Princiacutepio por sua estabilidade e concentraccedilatildeo em si mesmo dando a todos que dele participa integridade unidade e estabilidade Por tais donativos que concernem a suas proacuteprias caracteriacutes-ticas ele eacute anaacutelogo ao uno e ao mesmo38 Assim a accedilatildeo do limite por tambeacutem ser entendido como determinante consiste na unificaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas satildeo do Limite como existente em si e por si separado do Ilimitado39 O que acontece eacute que Limite e Ilimitado no entanto na esfera do real soacute podem ser encontrados unidos pois soacute sua uniatildeo ocasiona o primeiro ser o Ser verdadeiramente ser40 Poreacutem antes da mistura como assegura Proclo eacute necessaacuterio que tais princiacutepios existam em si e por si mesmos ainda que sua accedilatildeo soacute se realize na mistura Mas antes de passar

33 Cf BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840 p 44 34 Cf BEZERRA op cit 2006 p 120 35 COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995 p 60 36 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 159 37 Cf Ibid proposiccedilatildeo 90 38 Cf BERGER op cit 1840p 41 39 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 90 40 Cf COSTA Op cit 1995p 61

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

200

para o exame da mistura e sua necessidade eacute preciso discorrer sobre o Ilimitado

Sendo o Limite responsaacutevel pela estabilidade e unidade do ser o Ilimitado ou apeiacuteron diz respeito agrave potecircncia (dynamis) Eacute ele que possibilita o sair da unidade para a multiplicidade por ser uma potecircncia geradora sendo imagem da fecundidade do Uno De acordo com Berger o ilimitado eacute anaacutelogo ao muacuteltiplo e ao outro41 Semelhante ao Limite ainda que o Ilimitado exista substancialmente diferente e separado de qualquer mistura ele natildeo se manifesta separado do seu oposto pois ao ser indeter-minaccedilatildeo necessita de um objeto pelo qual ocorre sua manifestaccedilatildeo Ressaltando entatildeo o caraacuteter de inseparabilidade destes princiacutepios nos seres Caram assevera que ldquoLa ilimitacioacuten nunca existe apartado del liacutemite liacutemite ilimitacioacuten y su combinacioacuten reaparecen en todos los niveles de la realidadrdquo42 Desta feita o que se evidencia eacute que toda existecircncia na esfera inteligiacutevel assim como o que vem depois dela soacute eacute compreendido atraveacutes desses dois princiacutepios

Limite e Ilimitado por serem os primeiros derivados do Uno engendram a esfera Inteligiacutevel e consequentemente toda diversidade dos seres Isto ocorre porque mesmo que o Uno soacute produza unidades tais unidades se singularizam mediante a accedilatildeo do Limite que por sua vez soacute pode atuar no sentido de causar novos seres atraveacutes da accedilatildeo do Ilimitado E o Ilimitado ainda que relativo agrave potecircncia geradora soacute se manifesta quando presente nos seres ou seja quando sofre a do limite43 Eacute portanto partindo do Limite e do Ilimitado que todas as realidades sejam da esfera corpoacuterea ou incorpoacuterea vem agrave existecircncia poreacutem o limite que se encontra nos seres natildeo eacute um Limite puro e com o Ilimitado acontece o mesmo Tem-se agora a triacuteade que compotildee o universo Limite Ilimitado e Mistura

Os dois princiacutepios natildeo se manifestam na esfera do real em sua substacircncia pura o que os leva a dar origem a um terceiro que eacute na verdade a siacutentese dos seus antecessores Assim o terceiro termo como elemento de mediaccedilatildeo e siacutentese do que vem anteriormente estaacute presente em todas as relaccedilotildees triaacutedicas No caso de peacuteras e apeiacuteron tem-se a mistura que na filosofia procleana aparece como o verdadeiro ser Eacute portanto no Ser verda-deiro que a unidade caracteriacutestica do Primeiro princiacutepio eacute salvaguardada

41 Cf BERGER op cit 1840p 41 42 CARAM op cit 2014 p 114 43 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 92

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

201

sem que a diversidade do que vem em seguida seja posta em xeque44 No entanto como jaacute mencionado o reino divino ou seja das Heacutenadas tambeacutem eacute formado atraveacutes dos dois princiacutepios Desta maneira a diversidade dos seres para ser compreendida deve ser analisada nestes dois elementos a saber nas Heacutenadas e no Ser verdadeiramente ser pois eles natildeo satildeo apenas manifestaccedilotildees do Uno mas dos princiacutepios pelo qual satildeo formados

3 A origem da diversidade dos seres

O Ser como siacutentese de limite e ilimitado mesmo que encerre em si a unidade apresenta os dois princiacutepios em relaccedilatildeo pondo em evidecircncia a dualidade que adveacutem de seus componentes45 A dualidade faz do primeiro ser como tudo o que vem em seguida uma triacuteade que mesmo sendo encabeccedilada pelo Ser tem em sua substacircncia Identidade e Diferenccedila Logo o Ser nesta perspectiva se apresenta como uma unidade de contrapo-siccedilotildees dado que natildeo possuir somente o Limite e Ilimitado como perten-centes a si mas tambeacutem Identidade e Diferenccedila o que leva a ter em sua constituiccedilatildeo ser e natildeo-ser46 Eacute importante observar poreacutem que Platatildeo jaacute havia apresentado um natildeo-ser que natildeo dizia respeito a um inexistente

Platatildeo no diaacutelogo Sofista ao investigar a natureza do Ser chega agrave conclusatildeo de que tudo pela participaccedilatildeo eacute ser e simultaneamente natildeo-ser Para tanto considera que o Ser pode ser participado por inuacutemeros gecircneros dos quais o fundador da Academia lista movimento repouso diferente e idecircntico O sentido do ser e natildeo-ser ocorre porque todos os gecircneros satildeo seres pela participaccedilatildeo no Ser e ao mesmo tempo satildeo natildeo-ser por serem diferentes dele47 Com este raciociacutenio Platatildeo chega agrave tese de que o natildeo-ser natildeo eacute pura nulidade sendo portanto algo diferente do Ser embora participe dele48 Proclo segue uma teoria semelhante Nos Elementos de Teologia o Bizantino classifica todas as coisas em unas unas

44 Cf CARAM op cit 2014 p 114-115 45 De acordo com o Diadoco o ser por caracterizar-se como misto de limite e ilimitado tem em si estas duas caracteriacutesticas que nele satildeo indissociaacuteveis Eacute dito ldquoSrsquoil a une infinite puissance il est eacutevidemment infini et sous ce rapport il est forme drsquoinfini Srsquoil est indivisible et semblable agrave lrsquoum sous ce rapport il a parta u deacuteterminatrdquo PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 89 46 Cf CARAM op cit 2014 p 114 47 Sofista 255e-256e 48 Eacute necessaacuterio para Platatildeo que todos os gecircneros participem do Ser sob a pena de sua natildeo existecircncia Neste sentido ao passo que todos os outros gecircneros satildeo ser pela participaccedilatildeo o Ser natildeo participa de nenhum outro gecircnero pois ele eacute causa e se participasse de algo mais seria diferente de si mesmo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

202

e natildeo-unas e natildeo-unas e unas de acordo com a participaccedilatildeo na unidade Ao fazer isto ele natildeo considera aquilo que eacute denominado como natildeo-uno como nada49 de modo a somente estabelecer uma diferenccedila entre o que eacute pura unidade e o que de alguma maneira participa da multiplicidade Platatildeo sobre o sentido da negaccedilatildeo em casos como o do natildeo-ser e natildeo-uno esclarece

Estrangeiro Quando dizemos natildeo-ser nos referimos suponho natildeo a algo que seja o oposto do ser mas somente a algo diferente [] Portanto quando nos disserem que o negativo significa o oposto discordaremos Somente admitiremos que a partiacutecula natildeo indica algo diferente das palavras agraves quais serve de prefixo ou melhor diferente das coisas agraves quais os nomes que se seguem agrave negaccedilatildeo satildeo aplicados50

Platatildeo ainda no Sofista assegura que a natureza do Diferente eacute fragmentada pois quando manifesta nos seres natildeo se revela como diferenccedila Isto significa que o Diferente quando buscado em algo que eacute analisado por si mesmo se mostra como seu contraacuterio ou seja como idecircntico fato que soacute natildeo ocorre quando ponderado por meio da negaccedilatildeo Como exemplo tem-se o momento que objetiva investigar o diferente do branco e para esta razatildeo passa a investigar o preto Este por sua vez natildeo soacute o seu diferente mas o seu oposto ou seja o preto quando visto fora de sua relaccedilatildeo com o branco natildeo aparece como diferente dele mas como idecircntico a si mesmo Desta feita a diferenccedila ao ser estudada nas coisas natildeo se encontra como tal jaacute que o que se manifesta eacute o ser da coisa investigada O sentido do Diferente soacute eacute alcanccedilado quando na busca por ele natildeo se predica os atributos daquilo que se entende por diferente mas o anuncia mediante a negaccedilatildeo

Ao buscar a natureza do diferente se chega ao Idecircntico devido o caraacuteter positivo da afirmaccedilatildeo de sorte que o Diferente soacute pode ser compreendido na negaccedilatildeo Deste modo em Proclo ao estudar a triacuteade que corresponde ao Ser Identidade e Diferenccedila levando em consideraccedilatildeo que Identidade e Diferenccedila satildeo inerentes ao Ser a causa da diferenccedila entre os seres se revela como o princiacutepio do Limite dado que ele eacute quem daacute singularidade atraveacutes do ato de determinar Proclo sobre o

49 A unidade para Proclo eacute o que faz existir todas as coisas neste sentido negar a unidade do que quer que seja significaria negar a existecircncia da coisa Quando o Diadoco todavia se refere ao natildeo-uno ele segue a mesma linha de raciociacutenio que Platatildeo quando se refere ao natildeo-ser 50 Sofista 257b-c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

203

papel do Limite argumenta ldquo[] pero el liacutemite define circunscribe y situacutea cada cosa en sus propios confines [] de suerte que cada uno de los seres tiene una cierta naturaleza una definicioacuten una propiedad y un orden propios por el primer liacutemiterdquo51 Tornado clara a correspondecircncia do Limite na singularidade e particularizaccedilatildeo dos seres tem-se a seguinte questatildeo se eacute o Limite que daacute singularidade ao ser qual o papel do Ilimitado

O Ilimitado natildeo diz respeito ao estado dos seres mas de sua potecircncia Neste sentido Proclo assegura que o grau de potencialidade eacute proporcional ao de Unidade Esta potecircncia no ser natildeo eacute pura pois por ordem de necessidade participa do Limite Logo se pode dizer que por ser potecircncia ela soacute existe atraveacutes daquilo que jaacute estaacute em ato O Diadoco menciona assim dois tipos de potecircncias as infinitas e as finitas sendo as infinitas aquelas que estatildeo nos seres que tem maior participaccedilatildeo no limite O Sucessor Platocircnico no entanto chama atenccedilatildeo ao fato de que apesar de se falar em potecircncias infinitas estas soacute o satildeo para os seres inferiores pois para o ser de potecircncia infinita e para os seus superiores tais potecircncias natildeo satildeo infinitas Isto se daacute porque os inferiores natildeo conseguem compreender a totalidade dos seres que o satildeo superiores jaacute o ser ao qual a potecircncia lsquoinfinitarsquo pertence sabe seu limite assim como o sabem os que lhe satildeo superiores ou seja uma potecircncia soacute aparece como infinita para os seres inferiores que natildeo conseguem compreender seus limites52

O Ilimitado na qualidade de potecircncia proporciona a saiacuteda do Uno em direccedilatildeo agrave multiplicidade provocando a comunhatildeo e conexatildeo entre tudo que existe Pois eacute a potecircncia geradora ao ser indeterminada ou seja natildeo tendo nenhuma caracteriacutestica especiacutefica que perpassa todas as coisas estando portanto presente em todas Ao estar presente em tudo daacute a possibilidade de reunificaccedilatildeo de tudo o que existe Isto posto a identidade pode ser analisada em dois sentidos 1) como potecircncia que atravessa todos os seres dando a todos um caraacuteter comum e 2) como identidade dos seres consigo mesmos O primeiro sentido eacute oriundo do Ilimitado o segundo do Limite que particulariza cada ser Logo o duplo caraacuteter da identidade torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que opostos Identidade e Diferenccedila natildeo se anulam

51 PROCLO Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999 XLII13P 20 - 25 52 Cf PROCLO op cit proposiccedilatildeo 91 93

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

204

A diversidade aparece na hipoacutestase inteligiacutevel mediante a accedilatildeo dos princiacutepios do limite e do ilimitado que fazem da potecircncia que sai do Uno uma unidade delimitando-a e singularizando-a frente ao todo Fica todavia a questatildeo porque haacute diferenccedilas entre os seres que satildeo particularizados pela accedilatildeo dos dois princiacutepios Com a explicaccedilatildeo da diferenccedila como parte integrante do ser fica claro que a diferenccedila tem sua primeira expressatildeo nele porque o limite determina aquilo que jaacute eacute pela possibilidade ou seja age como uma atualizaccedilatildeo Os princiacutepios satildeo pois responsaacuteveis pela forma natildeo pela diversidade da multiplicidade propriamente dita Logo se o Ser eacute o primeiro componente do inteligiacutevel soacute resta recorrer ao primeiro elemento incorpoacutereo ou seja elevar a anaacutelise para o plano divino jaacute que o inteligiacutevel eacute a consumaccedilatildeo daquilo que jaacute existe como causa no divino

De fato toda multiplicidade Proclo repete enquanto tal faz tudo dessemelhante do Uno por consequecircncia ela eacute derivada do Uno natildeo diretamente mas atraveacutes de um princiacutepio de mediaccedilatildeo Este princiacutepio se assemelha ao Uno enquanto unidade que engendra certa multiplicidade particular e se assemelha agrave multiplicidade enquanto possui as caracteriacutesticas de modo arquetiacutepico 53

As Heacutenadas ou unidades divinas satildeo este princiacutepio e portanto a primeira multiplicidade Elas natildeo possuem poreacutem atributos de forma que esta passagem soacute pode ser constatada numericamente Assim a multiplicidade surge na proacutepria realidade divina uma vez que as Heacutenadas satildeo determinaccedilotildees divinas e como tal cooperam com o Uno que estaacute acima de toda ordem na produccedilatildeo dos seres Consequen-temente do Uno os seres recebem sua existecircncia e das Heacutenadas seus predicados atraveacutes da participaccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoasiacute es la heacutenade la que impone su propio caraacutecter a los existentes participantes y despliega existencialmente en el uacuteltimo la cualidad que eacutel mismo posee supra-existencialmente54 Por conseguinte toda diversidade existente na esfera do real jaacute se encontra nas Heacutenadas de maneira germinal Agrave vista disto para cada Heacutenada participaacutevel existe um ser participante o que

53 ldquoDe fait toute multipliciteacute Proclus le reacutepegravete est en tant que telle tout agrave fait dissemblable de lrsquoUn par conseacutequent elle deacuterive de lrsquoUn non directement mais agrave travers un principe de meacutediation Ce dernier ressemble agrave lrsquoun en tant qursquoil est lrsquouniteacute qui engendre cette multipliciteacute particuliegravere et ressemble agrave la multipliciteacute en tant qursquoil en possegravede les caractegraveres de faccedilon archeacutetypiquerdquo COSTA Op cit 1995p 87 54 PROCLO op cit proposiccedilatildeo 137

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

205

proporciona o desenvolvimento da caracteriacutestica fundamental de cada seacuterie55

A diversidade dos seres portanto na esfera incorpoacuterea natildeo se trata da accedilatildeo do movimento de geraccedilatildeo como acontece na realidade corpoacuterea A diversidade nasce como realizar-se daquilo que jaacute existe como causa nas Heacutenadas por intermeacutedio da accedilatildeo dos princiacutepios do Limite e Ilimitado Logo natildeo se pode dizer que haacute uma mudanccedila nos seres no domiacutenio da inteligibilidade mas uma passagem da potecircncia ao ato possibilitada pelo mister de limite e ilimitado Desta forma o Uno por ser causa Suma daacute existecircncia a tudo e as Heacutenadas pela participaccedilatildeo daacute os atributos que jaacute existem nelas mesmas em forma de causa Quanto aos princiacutepios do Limite e Ilimitado a eles cabe o papel de manifestar tais atributos na medida em que delimitam o ser singularizando-o Com isso tais seres seratildeo idecircnticos agrave mocircnada de sua ordem e agrave totalidade das coisas por possuiacuterem unidade e tambeacutem satildeo diferentes por sua particularizaccedilatildeo Tal diferenccedila contudo soacute pode ser percebida quando analisada a totalidade dos seres

Conclusatildeo

Ante o exposto o que pode ser concluiacutedo eacute que ainda que o sistema procleano seja regido por multiplicaccedilatildeo pela semelhanccedila pois eacute do Uno que toda multiplicidade tem origem isto soacute eacute possiacutevel porque seu sistema consiste em uma trama de relaccedilotildees Ocorre que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento ontoloacutegico isto eacute natildeo se trata de uma saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade por meio de uma sucessatildeo de eventos O que pode ser percebido quando eacute dito que natildeo haacute um antes ou depois relativo aos momentos da processatildeo O fato de natildeo existir um antes ou depois no movimento de processatildeo todavia natildeo implica em uma estabilidade no sistema do Bizantino pelo contraacuterio seu sistema eacute marcado pelas relaccedilotildees entres os termos Sendo por meio das triacuteades que tal relaccedilatildeo adquire dinamicidade

Assim se por um lado a realidade supra-sensiacutevel eacute marcada pela imobilidade com exceccedilatildeo da Alma que eacute automotora por outro ela tambeacutem eacute marcado por triacuteades que permanecem em constante relaccedilatildeo De modo que a relaccedilatildeo dialeacutetica existente entre os termos das triacuteades eacute o que possibilita a origem da diferenccedila na hipoacutestase inteligiacutevel dando a ela

55 Op cit proposiccedilotildees 131 135

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

206

um caraacuteter dinacircmico que lhe possibilita atributos aleacutem da unidade e bondade Porquanto ainda que a imobilidade esteja presente na realidade supra-sensiacutevel no sentido de natildeo existir um movimento de geraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre os princiacutepios oriundos diretamente do Uno peacuteras e apeiacuteron possibilita tanto a passagem da unidade agrave multiplicidade quanto a diversidade de seres existente Ou seja eacute a relaccedilatildeo dinacircmica que permite a existecircncia do diferente e ao passo que proporciona o diferente viabiliza tambeacutem o idecircntico

Logo o que se pode concluir eacute que no que concerne agrave realidade sensiacutevel toda a diversidade adveacutem do movimento seja o de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seja o de deslocamento jaacute na realidade supra-sensiacutevel a diversidade eacute oriunda das relaccedilotildees Considerando que eacute na relaccedilatildeo dos princiacutepios que constitui os seres que os predicados passam da potecircncia ao ato conservando caracteriacutestica dos princiacutepios que o constitui Neste sentido todo ser eacute ao mesmo tempo o resultado de seus princiacutepios e algo diferente deles De modo que eacute na relaccedilatildeo que o Outro e o Mesmo tecircm existecircncia sendo tambeacutem por ela que eacute possiacutevel chegar natildeo soacute ao ser em particular mas a totalidade dos seres

Referecircncias Bibliograacuteficas

BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006

CARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 pp 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesre vistasthemata49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015

COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995

REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008

PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

207

________ Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999

PLATAtildeO Parmecircnides In Diaacutelogos IV Parmecircnides (ou formas) Poliacutetico (ou da realeza) Filebo (ou do prazzer) Liacutesis (ou da amizade) Traduccedilatildeo textos complementares e notas de Edson Bini Bauro SP EDIPRO 2009

__________ Sofista In Diaacutelogos I Teeteto (ou sobre o conhecimento) Sofista (ou do ser) Protaacutegoras (ou sofista) Traduccedilatildeo textos complemen-tares e notas Edson Bini ndash Bauru SP EDIPRO 2007

SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012

TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982

Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Doutora pela Universidad Complutense de Madrid

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza soeudaimoniahotmailcom

Jan Gerard Joseph ter Reegen Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Professor emeacuterito da Universidade Estadual do Cearaacute e Coordenador de Pos-Graduaccedilatildeo e Extensatildeo da FCF

jangjtrgmailcom

Suelen Pereira da Cunha Mestranda pela Universidade Federal do Cearaacute

suelenldp2011gmailcom

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

208

ENSAIO

AS FONTES MIacuteSTICAS E COSMOLOacuteGICAS DO ldquoCASTELO INTERIORrdquo DE TERESA DrsquoAacuteVILA

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo

Na obra Castelo Interior ou Moradas Teresa de Jesus miacutestica do Renascimento espanhol encarou a tarefa de descrever suas experiecircncias extaacuteticas Semelhante a outros miacutesticos natildeo o poderia fazer sem interpretar e mediatizar uma experiecircncia que eacute supralinguiacutestica Por isso recorreu ao simbolismo Comparou a alma a sete castelos ou globos concecircntricos de cristal ou diamante Esses castelos simbolizam as etapas da ascensatildeo da alma O Castelo Interior eacute ldquoa aacutervore da vida que estaacute plantada nas mesmas aacuteguas vivas que eacute Deusrdquo (1M 21) Eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a cabala mais especificamente com a literatura judaica conhecida como Hechalot (Palaacutecios)

Palavras-chave Teresa de Jesus Miacutestica Renascentista Moradas Hechalot

1 Introduccedilatildeo

Santa Teresa de Jesus ou simplesmente Santa Teresa DrsquoAacutevila (1515 ndash 1582) miacutestica carmelita e escritora foi uma das mais eminentes contem-plantes do Renascimento espanhol A reformadora do Carmelo por moti-vos de obediecircncia agrave autoridade da igreja enfrentou a tarefa de colocar por escrito seus ecircxtases com o objetivo de instruir as monjas que estavam sob sua tutela a respeito do caminho interior para alcanccedilar a uniatildeo miacutestica Ela proacutepria definiu seu empenho como difiacutecil quase impossiacutevel porque nas operaccedilotildees iacutentimas da alma se adere agrave secreta ldquolinguagem de Deusrdquo Natildeo sabendo nem como comeccedilar sua empreitada Teresa acreditou ter recebido de Deus a inspiraccedilatildeo de considerar a alma como um castelo1 de diamante

1 Castelo Interior ou Moradas eacute sua obra mestra escrita em 1577 cinco anos antes da morte de Teresa

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

209

ou de cristal com muitos aposentos da mesma forma que no ceacuteu haacute muitas moradas (1M 11)

A alma humana eacute considerada agrave maneira de sete moradas ou globos concecircntricos de fino cristal ou diamante que marcam as etapas progres-sivas do desenvolvimento miacutestico O progresso espiritual descrito por meio das sete moradas resume as trecircs etapas principais da vida interior e da oraccedilatildeo

Trecircs das moradas enfocam o que se pode fazer para avanccedilar ateacute as moradas interiores nas quais estaacute Deus Exigem o desenvolvimento do amor ao proacuteximo da renuacutencia a julgar os outros do conhecimento de si da humildade do processo de interiorizaccedilatildeo e ativaccedilatildeo do desejo por Deus

A quarta eacute uma etapa de transiccedilatildeo na qual se comeccedila a responder ao chamado de Deus e eacute quando Ele comeccedila a assumir o controle de tudo Nas moradas mais interiores Deus purifica a alma cada vez mais e a vai tornando a Sua semelhanccedila ateacute a etapa do matrimocircnio espiritual

A quinta morada eacute a da santidade A esse ponto Teresa dedica quase a metade do Castelo Interior pois essas etapas mais profundas requerem orientaccedilatildeo mais cuidadosa A transformaccedilatildeo interior estaacute cada vez mais intensa e soacutelida e o coraccedilatildeo vai ficando sempre mais inundado pela radiante luz divina

Na sexta morada Teresa disserta sobre as provas exteriores e interiores acerca dos trabalhos os obstaacuteculos e as adversidades agrave santificaccedilatildeo que satildeo cada vez mais numerosos fortes e sutis e exigem maior capacidade de discernimento

A uacuteltima morada a mais interior eacute diferente de todas pois nesse estado acontece a uniatildeo miacutestica Ali estaacute Deus com quem a alma se une pois fica cheia de luz tendo deixado para traacutes o democircnio na forma de vaacuterios animais ferozes e peccedilonhentos (4M 19) Haacute uma fusatildeo entre a alma e a Luz divina Eacute o matrimocircnio miacutestico

[] eacute como se a aacutegua caindo do ceacuteu em um rio ou fonte onde estiver toda a aacutegua jaacute natildeo se pode separar nem distinguir qual eacute a aacutegua a do rio ou a que caiu do ceacuteu (7M 24)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

210

2 Os limites da linguagem humana

Michael Gerli nos mostra que muitas metaacuteforas espirituais especial-mente as arquitetocircnicas se tornaram populares na espiritualidade euro-peacuteia precisamente por seu caraacuteter mnemoteacutecnico2 que as tornava atraentes (GERLI 1982 p 154-163) Eacute notoacuterio que isso ocorreu com a metaacutefora usada por Teresa pois esta pedia agraves filhas espirituais que o trouxessem sempre agrave memoacuteria (1M 26 7M 39)

Agrave primeira vista o esquema simboacutelico usado por Teresa parece original contudo eacute impossiacutevel expressar literariamente uma experiecircncia dessa natureza sem recorrer aos siacutembolos disponiacuteveis no contexto cultural e religioso no qual o miacutestico estaacute inserido

Conforme Barbara Kurtz a linguagem dos miacutesticos natildeo pode transcrever uma experiecircncia sem interpretaacute-la e mediatizaacute-la por mais que se lute contra os limites da linguagem humana incapaz de abordar a transcendecircncia (KURTZ 1992 p 32)

Nesse sentido Teresa confessa natildeo saber como expressar a miste-riosa vivecircncia miacutestica que teve por isso eacute que se utiliza de metaacuteforas O castelo interior tal como o descreve Teresa eacute tanto uma figura de grande beleza plaacutestica quanto algo muito faacutecil de recordar Portanto deve pertencer ao contexto da autora Por ser uma metaacutefora entretanto pouco usada torna-se difiacutecil rastrear as possiacuteveis origens desse simbolismo

O contexto cultural no qual o miacutestico vive ajuda a dar forma simboacutelica agrave sua experiecircncia transcendente que eacute em si supralinguiacutestica O ecircxtase eacute por definiccedilatildeo inefaacutevel por isso o miacutestico sempre recorre a metaacuteforas que satildeo comuns em seu ambiente cultural para explicitar de alguma maneira o que aconteceu nas fronteiras espaciotemporais da razatildeo e da linguagem

Sendo assim haacute o seguinte problema de onde Teresa tira o simbo-lismo com o qual descreve a experiecircncia miacutestica Seus estranhos castelos concecircntricos natildeo pertencem agrave tradiccedilatildeo cristatilde ocidental Em qualquer outro escrito de espiritualidade encontramos o avanccedilo miacutestico da alma claramente estruturado ao longo de sete moradas (ou castelos) cada vez mais interiores

2 Teacutecnica de estimulaccedilatildeo da memoacuteria sinocircnimo de arte de memorizaccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

211

3 Busca das fontes Teresianas

A busca miacutestica da uniatildeo com Deus foi simbolizada tradicional-mente por uma viagem um trajeto percorrido pela alma Isso faz parte de um conjunto de siacutembolos religiosos adotados por cristatildeos judeus e mulccedilumanos ao longo da histoacuteria Muitas tradiccedilotildees mencionam um itineraacuterio e um desejo intenso da alma por Deus Falam da entrega e da purificaccedilatildeo da renuacutencia e do abandono resultantes da uniatildeo miacutestica

Gaston Etchegoyen propotildee que Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna ambos autores muito apreciados pela Carmelita sejam as princi-pais fontes para o Castelo Interior (ETCHEGOYEN 1923 15) Mas o proacuteprio Etchegoyen admite que os esboccedilos de ambos natildeo satildeo suficientes para explicar os pormenores do siacutembolo usado por ela

Francisco de Osuna se limita a um esquema muito restrito agraves alegorias medievais no qual os inimigos tradicionais (a carne o mundo e o democircnio) tentam penetrar o castelo da alma Bernardino Laredo com seu modo de compreender a civitas sancta assentada em um campo quadrado de fundamento de cristal com muros de pedras preciosas e com um ciacuterio pascal no centro que simboliza Cristo eacute mais distante ainda do esquema teresiano

Outros propotildeem como antecedentes teresianos os romances de cavalaria do Renascimento espanhol que a Santa admite ter lido com grande paixatildeo juvenil Quando examinamos esses livros somos forccedilados a concluir que eles natildeo nos datildeo a chave do siacutembolo imaginado pela Monja de Aacutevila Em nenhum romance da eacutepoca os castelos satildeo sete vezes concecircntricos nem celebram a uniatildeo teopaacutetica3 em seu recinto mais interno Nem na arquitetura dos castelos espanhoacuteis os quais ainda se podem visitar constam de sete moradas cada vez mais interiores (PEERS 1951 p 17)

4 Recurso agrave miacutestica judaica

A fase primitiva da miacutestica judaica antes de se cristalizar na Cabala medieval que eacute a mais longa e se estende desde o seacuteculo I aC ateacute o seacuteculo X eacute conhecida indistintamente como a tradiccedilatildeo da Merkavah ou miacutestica Carruagem ou do Trono de Deus A literatura da Merkavah se desenvolveu com suporte em especulaccedilotildees sobre visotildees profeacuteticas do Antigo Testamento O termo hebraico merkabah refere-se ao trono-

3 Sensiacutevel agrave divina influecircncia ser profundamente afetado por Deus

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

212

carruagem de Deus na visatildeo de Ez 1 O corpus principal da literatura Merkabah foi composto no periacuteodo de 200-700 dC

Na fase mais antiga o visionaacuterio o miacutestico era arrebatado geral-mente ateacute agraves esferas celestes e vislumbrava Deus como rei sentado em um trono sustentado por uma carruagem em um firmamento de cristal rodeado de raios com querubins e quatro seres vivos junto a Ele

A primeira apresentaccedilatildeo da escala completa da Merkavah a miacutestica da carruagem do Senhor aparece nos escritos visionaacuterios conhecidos como os livros de Hechalot Esses escritos consistem em descriccedilotildees Hechalot salas o palaacutecios celestiais O desejo mais profundo do miacutestico era alcanccedilar a sala do trono durante a ascensatildeo aos ceacuteus para contemplar o esplendor da majestade de Deus A literatura Hechalot dedica-se a discutir os detalhes desses ceacuteus agraves vezes em conexatildeo com as tradiccedilotildees relacionadas com a apocaliacuteptica dos ciacuterculos de Henoque (SCHOLEM 1965 p 9-13)

Para alguns estudiosos a literatura Hechalot eacute um gecircnero de textos esoteacutericos e apocaliacutepticos judaicos que se estendem ateacute o iniacutecio da Idade Meacutedia Os sete Hechalot ou sete ceacuteus fazem parte da cosmologia religiosa encontrada nas grandes religiotildees como o judaiacutesmo o hinduiacutesmo e o islamismo bem como em algumas religiotildees menores como o hermetismo e gnosticismo Segundo essa cosmologia o trono de Deus estaacute acima do seacutetimo ceacuteu

Vaacuterias religiotildees atribuem ao nuacutemero sete a perfeiccedilatildeo uacuteltima tampouco a miacutestica judaica o ignorou estaacute em obras como os Sete Hechalot ou Sete Palaacutecios a que o israelita recorria simbolicamente para falar do arrebatamento do vidente ateacute ascender ao Trono de Deus conforme o texto do Sefer Hechalot4 ou Terceiro Livro de Henoque muito considerado pela cabala judaica Essa obra se mostra como tendo sido escrita no seacuteculo II dC mas suas origens soacute podem ser rastreadas ateacute o seacuteculo V O autor se faz passar pelo Rabi Ismael o qual teria se tornado um ldquosumo sacerdoterdquo depois das visotildees decorrentes de seu arrebatamento ao ceacuteu Os principais temas abordados pelo Sefer Hechalot satildeo a ascensatildeo de Henoque ao ceacuteu e sua transformaccedilatildeo no anjo Metatron (DAN 1993 p 7-24)

No final do seacuteculo XIII Moiseacutes de Leoacuten compilou uma obra atribuiacuteda ao rabino Simeon ben Yohai que viveu na Palestina no seacuteculo II

4 Sefer significa livro e Hechalot quer dizer Palaacutecios ou Templos

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

213

Na citada obra conta-se uma experiecircncia visionaacuteria do suposto rabino no momento em que a alma dele se libera momentaneamente do corpo e experimenta una revelaccedilatildeo magniacutefica sob a forma de sete palaacutecios do paraiacuteso e em contrapartida sete palaacutecios do inferno Isso significa que ainda existe um sistema de siacutembolos essenciais dos ensinamentos dos Hechalot unido a novas ideias desenvolvidas posteriormente com origens nas especulaccedilotildees sobre a merkavah ou carruagem do Senhor

A obra compilada por Moiseacutes de Leoacuten recebeu o nome Zoha ou Livro do Esplendor o grande comentaacuterio miacutestico judaico que compendiou a Cabala No Zohar os sete palaacutecios estatildeo povoados de anjos que irradiam luz Em contraste com o objetivo dos primeiros miacutesticos da merkavah que era ver a sala do trono de Deus o desejo do miacutestico apresentado pelo Zohar eacute chegar a uma comunhatildeo com Deus ou seja a uma fusatildeo entre as vontades divina e humana que se realiza no ecircxtase e eacute simbolizada no ldquobeijo do Amorrdquo Conforme o Zohar o beijo que une a alma a Deus eacute descrito no seacutetimo palaacutecio e sua intensidade eacute tal que pode extrair a alma do corpo e levaacute-la para Deus provocando a morte fiacutesica

Santa Teresa tambeacutem menciona como o Zohar o beijo com que o Rei divino consuma o matrimocircnio espiritual na seacutetima morada de seu Castelo Interior Refere-se tambeacutem a experiecircncias extaacuteticas intensas nas quais a alma parece ser arrebatada do corpo e raptada ateacute uma comunhatildeo com Deus Teresa caracteriza essas experiecircncias como suficientes para levar o miacutestico agrave morte (7M 25 36)

5 Influecircncias da cosmologia aristoteacutelica

Aleacutem das fontes judaicas eacute possiacutevel encontrar outras influecircncias para o simbolismo teresiano As versotildees latinas das obras aristoteacutelicas Estavam amplamente divulgadas no contexto no qual Teresa viveu No livro De Caelo Aristoacuteteles imaginou o universo na forma de esferas concecircntricas que giram em movimento circular Este esquema coacutesmico se transformou em um siacutembolo que dava um transfundo para o caminho espiritual do ser humano (LOacutePEZ-BARALT 2010 p 180)

Salta agrave ideia de que Santa Teresa ao falar da alma na forma de sete ciacuterculos ou castelos concecircntricos alude de maneira obliqua agraves sete esferas planetaacuterias da cosmovisatildeo medieval herdada de Aristoacuteteles e da literatura de Hechalot A Carmelita estaria visualizando a alma como um reflexo microcoacutesmico do macrocosmo celestial estaria comparando as moradas espirituais natildeo somente com castelos mas tambeacutem com as

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

214

esferas do ceacuteu Nesse caso o ser humano teria dentro de si todas as esferas celestes

6 Conclusatildeo

Conclui-se que Teresa natildeo criou a formosa imagem plaacutestica dos castelos interiores Por mais inusitado que isto pareccedila agrave sensibilidade do cristatildeo ocidental ela simplesmente a elaborou em detalhes geniais a cristianizou e a adaptou aos seus fins

Igual a muitos filoacutesofos poetas e humanistas da Eacutepoca Renascen-tista miacutesticos cristatildeos foram profundamente influenciados pela literatura da Cabala no seacuteculo XIII Reconheceram na miacutestica judaica em geral um caminho seguro para compreender melhor suas experiecircncias com procedecircncia em raiacutezes miacutesticas mais antigas

Swietlicki orienta contudo a natildeo se ter a pretensatildeo de que a influecircncia da cabala judaica sobre os miacutesticos cristatildeos nos temas e siacutembolos usados por estes sejam resultado de influecircncia literaacuteria mas apenas supotildee-se que os traccedilos de cabala foram persistentes em ciacuterculos populares mesmo apoacutes a expulsatildeo dos judeus da Espanha (SWIETLICKI 1986 p 28) Dessa forma a miacutestica cristatilde teria se tornado um importante veiacuteculo para a transmissatildeo da Cabala judaica mesmo no seacuteculo XVI Eacute fato inegaacutevel entretanto a influecircncia da cabala sobre estas figuras importantes

Referecircncias Bibliograacuteficas

BENSION Ariel O Zohar o livro do esplendor Satildeo Paulo Polar Edito-rial 2006

DAN Joseph The Ancient Jewish Mysticism Tel Aviv Mod Books 1993

ETCHEGOYEN Gaston Lrsquoamour divin Essai sur les sources de Sainte-Theacuteregravese Bordeaux Feret 1923

GERLI Michael ldquoEl castillo interior y el arte de la memoriardquo Bulletin Hispanique 861-2 (1982) 154-163

KURTZ Barbara ldquoThe Small Castle of the Soul Mysticism and Metaphor in the European Middle Agesrdquo Studia Mystica XV (1992) 28-35

LOacutePEZ-BARALT Luce ldquoTeresa of Jesus and Islam The Simile of the Seven Concentric Castles of the Soulrdquo in Hilaire KALLENDORF (ed) A New Companion to Hispanic Mysticism Danvers BRILL 2010 p 175-199

PEERS Edgar Allison Study of the Spanish Mystics London SPCK 1951

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

215

SCHOLEM Gershom Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and the Talmudic Tradition New York Jewish Theological Seminary of America 1965

SWIETLICKI Catherine Spanish Christian Cabala The works of Luis de Leoacuten Santa Teresa de Jesus and San Juan de la Cruz Columbia Missouri University of Missouri Press 1986

TERESA DE JESUacuteS Santa Moradas del Castillo Interior in Obras Completas Madrid Editorial Catoacutelica 1951

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

216

TRADUCcedilAtildeO

COMECcedilAM OS ERROS DOS FILOacuteSOFOS ARISTOacuteTELES AVERROacuteIS AVICENA ALGAZEL

AL-KINDI MAIMONIDES COLETADOS POR IRMAtildeO EGIacuteDIO DA ORDEM DE SANTrsquo AGOSTINHO1

Introduccedilatildeo I Vida de Egiacutedio Romano ndash Aegiacutedius Romanus

Aegiacutedius Romanus ndash Egiacutedio Romanos ndash tambeacutem conhecido por seu nome francecircs Giles de Rome nasceu em Roma em 1243

Depois de sua entrada na ordem dos Agostinianos estudou em Paris de 1269 ndash 1272 com Tomaacutes de Aquino Com Tomaacutes aproveitou o pensa-mento aristoteacutelico que comeccedilou a se afirmar nos estudos filosoacuteficos com reflexos na Faculdade Teoloacutegica da Universidade de Paris Em consequecircncia das 219 teses ligadas agrave Filosofia e Teologia aristoteacutelicas publicadas em 7 de marccedilo de 1277 e que foram consideradas levianas ou hereacuteticas e como tais em desacordo com os dados da Revelaccedilatildeo pelo bispo de Paris Etienne Tempier Egiacutedio foi obrigado a deixar Paris e por enquanto natildeo conseguiu permanecer na Universidade Em Paris produziu a sua obra poliacutetica De Regimine Principum Em 1285 Egiacutedio refutou as teses que foram condenadas pela maioria da comunidade acadecircmica da universidade parisiense e como consequecircncia lhe foi possiacutevel a sua carreira acadecircmica

A partir de 1292 Egidio assume tanto na ordem dos Agostinianos como na Igreja uma posiccedilatildeo de destaque A sua atuaccedilatildeo desenvolveu-se de modo especial na aacuterea poliacutetica do papa Bonifaacutecio VIII cujas teorias 1 Incipiunt Errores philosophorum Aristotelis Averrois Avicenna Algazelis Alkindi Rabbi Moysis A fratre Aegido collecti ord S Augustini Traduccedilatildeo elaborada a partir do texto latino publicado em Giles of Rome Errores Philosophorum Critical Text with Notes and Introduction by Joseph Koch English Translation by John O Riedl Milwaukee Wisconsin Marquette University Press 1944 Neste Trabalho soacute se apresenta a versatildeo da parte sobre Aristoacuteteles cap 1-2-3 Oportuna-mente apresentar-se-atildeo os outros autores mencionados

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

217

entraram em choque com as praacuteticas e pensamentos do Rei Philippe IV o que levou agrave uma tensatildeo profunda na Igreja do Ocidente

Egidio morreu em 1316 em Avignon Agrave sua mente fina deve o apelido ldquodoctor fundatissimusrdquo ndash doutor profundo mas em razatildeo de certa prolixidade de suas obras o chamam ldquodoctor verbo-susrdquo ndash doutor tagarela

II Autoria e data

Embora sob a autoridade de Mandonnet o texto em estudo tenha sido longamente considerado como espuacuterio estudos posteriores poreacutem dos principais mestres comprovaram a autenticidade da autoria de Egidio Aleacutem disso a comprovaccedilatildeo eacute encontrada em alguns comentaacuterios antigos como tambeacutem nas primeiras ediccedilotildees impressas em 1428 e 1581 editadas em Veneza

Uma anaacutelise da obra comprova assim Koch uma concordacircncia quanto ao estilo e conteuacutedo da Incipiunt com outros escritos do Egiacutedio Mais peso entretanto eacute atribuiacutedo agrave concordacircncia de estilo entre a Incipiunt e outras obras egidianas Cita-se entre outros os seus comentaacuterios sobre a De Generatione et corruptine a Physica que lembram imediatamente os nordm 6-7-8-12 e 14 da Incipiunt (para maiores detalhes cf Koch p XXXIV e XXXV)

E Incipiunt pertence agraves primeiras obras de Egidio e deve ser situada ao redor do ano 1268 visto que no momento em que compocircs este trabalho ele jaacute tinha completado a sua formaccedilatildeo filosoacutefica e como tudo indica tambeacutem uma parte da formaccedilatildeo teoloacutegica

O termino da obra eacute o comentaacuterio da De Generatione et corruptione que cuja data deve se situar entre 1273 e 1274

Isto leva a considerar que a obra deve ser composta ao redor do ano de 1270

III Traduccedilatildeo do Texto

Afirma-se em primeiro lugar

Capiacutetulo I Sobre a lista de erros de Aristoacuteteles

Porque de um dado errado derivam muitas consequumlecircncias de um fundamento falso o Filoacutesofo tirou muitos erros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

218

1 Acreditou pois que nada estaacute numa determinada situaccedilatildeo em que anteriormente natildeo estava senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Avaliou portanto que soacute haveria novidade aonde tivesse uma mudanccedila propriamente dita Consequumlentemente como toda mudanccedila propriamente falando eacute o fim de um movimento natildeo poderaacute haver novidade sem um movimento precedente Deste argumento entatildeo concluiu que o movimento nunca comeccedilou porque se o movimento se iniciasse seria algo novo Mas natildeo existe coisa nova senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Entatildeo antes do primeiro movimento houve algum movimento O que eacute incoerente

2 Aleacutem disso errou ao afirmar que o tempo nunca comeccedilou porque o tempo sempre segue o movimento Se entatildeo o movimento natildeo comeccedilou nem o tempo iniciara Pareceu-lhe que a razatildeo teria uma difi-culdade especial em relaccedilatildeo ao tempo Visto que o instante eacute sempre o fim do passado e o comeccedilo do futuro natildeo se pode falar de um primeiro momento Por isso antes de todo e qualquer momento houve algum tempo e antes de qualquer tempo dado houve um momento Entatildeo o tempo natildeo comeccedilou mas eacute eterno

3 Aleacutem disso por causa daquilo que foi dito foi obrigado a afirmar que aquilo que se move eacute eterno e que tambeacutem o mundo eacute eterno porque uma vez que natildeo haacute tempo sem movimento e nem movimento sem algo moacutevel se tempo e movimento satildeo eternos o que se move seraacute eterno e assim o mundo nunca comeccedilou Tudo isso fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica

4 E mais Foi obrigado a afirmar que o ceacuteu natildeo eacute gerado e eacute incorruptiacutevel e que nunca foi feito mas que sempre existiu Como entre os outros movimentos soacute o movimento circular eacute contiacutenuo como fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica se qualquer movimento eacute eterno o circular seraacute eterno E porque a movimento circular eacute proacuteprio do ceacuteu como se prova no 1ordm livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo conclui-se da mesma forma que o ceacuteu eacute ingecircnito e que nunca foi feito Tinha ele uma razatildeo especial para dizer que o ceacuteu natildeo comeccedilou porque qualquer coisa que possui o poder de sempre existir no futuro tambeacutem teraacute o poder de ter existido sempre no passado E porque o ceacuteu natildeo termina natildeo comeccedilou a existir

5 E ainda visto que na opiniatildeo dele qualquer coisa que eacute feita eacute feita de mateacuteria preexistente assim opinou que Deus natildeo poderaacute fazer um outro mundo porque este o atual eacute feito de toda a mateacuteria Este erro tambeacutem pode ser encontrado no 1ordm Livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

219

6 Argumentou ainda que a geraccedilatildeo das coisas inferiores nunca cessaraacute como tambeacutem nunca tem comeccedilado Porque a corrupccedilatildeo antecede e segue toda a geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo antecede e segue toda a corrupccedilatildeo Por isso visto que a corrupccedilatildeo precede qualquer geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo qualquer corrupccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a corrupccedilatildeo e a geraccedilatildeo terem tido iniacutecio nem eacute possiacutevel elas terminarem porque a qualquer geraccedilatildeo segue a corrupccedilatildeo e a qualquer corrupccedilatildeo segue a geraccedilatildeo Se entatildeo a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo terminassem depois da uacuteltima geraccedilatildeo teria uma geraccedilatildeo e depois da uacuteltima corrupccedilatildeo uma corrupccedilatildeo Que a corrupccedilatildeo precede e segue a geraccedilatildeo ele provou pelo caminho do movimento Porque natildeo existe nada gerado sem que haja algo corrompido e desta forma a corrupccedilatildeo precede a geraccedilatildeo e tambeacutem a segue porque tudo que eacute gerado eacute corruptiacutevel e todo corruptiacutevel e corrompido por necessidade Assim tambeacutem a geraccedilatildeo precede a corrupccedilatildeo Porque nada eacute corrompido que natildeo foi gerado antes e segue a geraccedilatildeo porque a corrupccedilatildeo de um eacute a geraccedilatildeo de outro Este erro pois que a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo natildeo comeccedilam nem terminam pode se achar no 1ordm Livro de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) e de forma mais expliacutecita no Livro 2ordm

7 Ainda em razatildeo de a geraccedilatildeo neste mundo inferior acontecer pelo sol Aristoacuteteles foi obrigado de afirmar que o sol ldquonunca deixaraacute de gerar plantas e animaisrdquo como fica evidente do Livro 1ordm de De Vegetalibus (Sobre os Vegetais)

8 Ainda visto que natildeo existe novidade sem movimento anterior conforme o argumento apresentado ele errou querendo que de Deus natildeo possa proceder de forma imediata algo novo como fica claro do Livro 2ordm de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) onde diz que ldquoaquilo que permanece o mesmo sempre produziraacute o mesmordquo

9 Ainda foi obrigado a negar a ressurreiccedilatildeo dos mortos Por isso considera improvaacutevel como fica claro do Livro 1 de De Anima (Sobre a Alma) que os mortos ressurjam Porque no Livro VIIIordm da Metaphysica quer que aquilo que estaacute morto natildeo se torne vivo de novo senatildeo atraveacutes de muitos meios e se reviver natildeo revive o mesmo numericamente porque aquelas coisas cuja substacircncia se perdeu natildeo voltam as mesmas numericamente como afirma no fim do Livro IIordm de De Generatione

Natildeo tem validade que alguns tentam desculpa-lo dizendo que ele fala pela via da natureza quando acredita que nada de novo possa imediatamente proceder de Deus mas que toda coisa nova acontece por meio do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

220

10 Ainda visto que acreditou que nada de novo possa acontecer senatildeo atraveacutes do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza acreditou como se revela no Livro Iordm de Physicae (Fiacutesica) quando argumenta contra Anaxaacutegoras que um intelecto que procura separar paixotildees e acidentes da substacircncia eacute ldquoum intelecto que procura o impossiacutevelrdquo

Desta opiniatildeo parece seguir que Deus natildeo pode fazer um acidente sem substacircncia

11 Ainda visto que atraveacutes do caminho do movimento nunca haacute geraccedilatildeo de alguma coisa se natildeo houver corrupccedilatildeo de outra e que nunca eacute introduzida uma forma substancial se outra natildeo for expulsa porque a mateacuteria eacute a mesma para todas que a possuem disto se segue que natildeo haacute mais formas substanciais num composto do que em outro De fato aquele que prossegue bem neste caminho veraacute que deve ser colocada em todo composto somente uma forma substancial e assim parece ser a posiccedilatildeo do Filoacutesofo Por isso no Livro VIIordm da Metaphysica no capiacutetulo De unitate diffinitionis (Sobre a Unidade da definiccedilatildeo) afirma que as partes de uma definiccedilatildeo natildeo satildeo uno ldquoporque estatildeo num unordquo mas porque indicam uma natureza

Entatildeo se entender uma natureza composta de vaacuterias formas isto eacute toleraacutevel mas se entender uma natureza simples e que num composto haja somente uma forma isto eacute falso

12 Ele afirma ainda que onde haacute agora pacircntano e mar uma vez existiu terra seca e vice versa porque o tempo natildeo para mas eacute eterno como fica claro do Livro Iordm Meteoreorum Consequentemente tambeacutem lhe foi necessaacuterio afirmar que natildeo houve um primeiro homem nem uma primeira chuva

13 Ainda deste modo querendo proceder pela via da natureza acreditou visto que dois corpos natildeo podem existir simultaneamente no mesmo lugar como eacute revelado no Livro IVordm da Physica que era tatildeo absolu-tamente essencial ldquoper serdquo agraves dimensotildees resistir a dimensotildees e que eacute impossiacutevel as dimensotildees continuarem existindo e entretanto natildeo resistir aacutes dimensotildees

Disto se segue que Deus natildeo pode fazer que dois corpos ocupem o mesmo lugar

14 Ainda porque natildeo pertence agrave inteligecircncia o poder de se mover sem se mover em ato porque as inteligecircncias enquanto se movem satildeo colocadas na melhor disposiccedilatildeo ele afirmou que existem tantos anjos e

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

221

tantas inteligecircncias que existem mundos como fica claro no Livro XIIordm da Metaphysica

Mas a Sagrada Escritura contradiz esta posiccedilatildeo quando afirma ldquoMil milhares o serviram e miriacuteades e mais miriacuteades diante delerdquo

Capiacutetulo II Em que num sumaacuterio satildeo reunidos os erros de Aristoacuteteles

Estes entatildeo de forma sumaacuteria satildeo todos os seus erros

1 Que o movimento natildeo tem comeccedilo 2 Que o tempo eacute eterno 3 Que o mundo natildeo teve um comeccedilo 4 Que o ceacuteu natildeo foi feito 5 Que Deus natildeo poderia fazer um mundo diferente 6 Que geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo natildeo tiveram comeccedilo e natildeo teratildeo fim 7 Que o sol sempre causaraacute geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo no mundo

sublunar 8 Que nada de novo pode proceder diretamente de Deus 9 Que a ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute impossiacutevel 10 Que Deus natildeo poderaacute fazer um acidente sem a substacircncia 11 Que em qualquer composto soacute existe uma forma substancial 12 Que natildeo se pode admitir um primeiro homem e uma primeira

chuva 13 Que de maneira alguma podem existir dois corpos num mesmo

lugar 14 Que existem tantos anjos como haacute mundos Por isso concluir-

se-aacute que haacute cinquumlenta e cinco ou quarenta e sete somente

Alguns poreacutem queriam desculpar o Filoacutesofo na questatildeo sobre a eternidade do mundo Mas isto natildeo tem cabimento porque ele - para mostrar as verdades filosoacuteficas - se baseia no mencionado princiacutepio ateacute mesmo natildeo escreveu praticamente nenhum livro sobre filosofia em que natildeo coloca algo ligado a este princiacutepio

Em seguida aleacutem dos erros supramencionados alguns queriam colocar nele (a opiniatildeo) que Deus nada conhece fora de si de tal maneira que natildeo Lhe eacute conhecida este mundo inferior baseando o seu argumento nas palavras que satildeo apresentadas no XIIordm da Metafiacutesica naquele capiacutetulo Sententia Patrum (A opiniatildeo dos Padres) Mas que aqueles que afirmam isto natildeo entendem o Filoacutesofo E que natildeo eacute esta a sua intenccedilatildeo fica claro pelo que se diz no capiacutetulo De Bona Fortuna (Sobre a boa sorte) onde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

222

afirma que para Deus tanto o passado como o futuro satildeo por si conhecidos Haacute outros erros que lhe satildeo atribuiacutedos com que natildeo nos ocupamos aqui porque satildeo oriundos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea

Capiacutetulo III Em que eacute anulada aquela afirmaccedilatildeo que o Filoacutesofo eacute a base de seus erros

Todos os seus erros entretanto se algueacutem o investigar cuidadosa-mente satildeo consequumlecircncias desta sua posiccedilatildeo que no ser nada de novo acontece senatildeo por movimento anterior Poreacutem como isto eacute falso porque Deus em razatildeo de ser o primeiro agente que natildeo age como instrumento poderaacute produzir as coisas sem movimento anterior Aquele que age por natureza tambeacutem age como instrumento porque eacute do modo de ser do instrumento que move movido e necessariamente pressupotildee na sua accedilatildeo o movido A accedilatildeo entatildeo ou a produccedilatildeo do primeiro agente pode ser sem aquele movimento Criaccedilatildeo por isso natildeo eacute um movimento porque o movimento pressupotildee o moacutevel a criaccedilatildeo de fato natildeo pressupotildee nada nem eacute propriamente falando uma mudanccedila porque toda mudanccedila eacute o fim de um movimento mas como se afirma comumente ela eacute uma simples deduccedilatildeo das coisas do primeiro Qualquer coisa por isso que eacute formulada contra o iniacutecio do mundo e contra aquilo que a feacute afirma eacute totalmente sofiacutestica2

Traduccedilatildeo de

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

2 No capiacutetulo IV inicia-se a apresentaccedilatildeo dos erros de Averroacuteis

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

223

RESENHA

MIacuteSTICA DE OLHOS ABERTOS

METZ Johann Baptist Miacutestica de olhos abertos Traduccedilatildeo de Inecircs Antonia Lohbauer Satildeo Paulo Paulus 2013 Coleccedilatildeo Amantes do Misteacuterio 293 p 135 x 21 cm ISBN 978-85-349-3649-1

Johann Baptist Metz eacute um dos teoacutelogos catoacutelicos alematildees mais influentes do poacutes-Vaticano II Eacute membro da Diretoria do Instituto de Ciecircncias Humanas de Viena desde 1983 cofundador e editor da revista Concilium e professor emeacuterito de Teologia Fundamental na Universidade de Muumlnster Ex-aluno do teoacutelogo jesuiacuteta Karl Rahner rompeu com a Teologia Transcendental do mestre para assumir segundo assinala uma teologia arraigada na praacutexis (p191-211) Metz estaacute no centro de uma escola de Teologia Poliacutetica que exerceu intensa influecircncia sobre a Teologia da Libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina A teologia de Metz centraliza-se na atenccedilatildeo ao sofrimento pois natildeo haacute sofrimento no mundo que natildeo diga respeito ao cristatildeo ldquoComo podemos virar as costas para todo esse sofrimento e nos preocuparmos apenas com nossa salvaccedilatildeo e nossa redenccedilatildeordquo (P 16)

A obra sob comentaacuterio eacute uma coleccedilatildeo de textos mais antigos atualizados e recompilados Alguns dos ensaios foram escritos haacute deacutecadas mas suas preocupaccedilotildees ainda satildeo oportunas ou talvez muito mais importantes do que antes Isto porque conforme Metz o Cristianismo eacute cada vez mais uma exigecircncia e um estiacutemulo para uma accedilatildeo em favor de um mundo melhor e mais justo Notaacutevel eacute a maneira pela qual o A chama a atenccedilatildeo para a espiritualidade cristatilde como revoluccedilatildeo da esperanccedila Enquanto o contexto atual enfatiza o aspecto da introspecccedilatildeo da espiritualidade com suas teacutecnicas de meditaccedilatildeo de olhos fechados a Biacuteblia chama a atenccedilatildeo para um aspecto totalmente diferente a Escritura nos acorda e nos manteacutem de olhos abertos O objetivo da espiritualidade biacuteblica eacute nos encaminhar para o outro A biacuteblia nos ensina uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

224

espiritualidade de olhos abertos porque natildeo existe experiecircncia de Deus sem passar pelo outro o qual na maioria das vezes estaacute sofrendo por causa do que Metz chama de ldquocapitalismo predatoacuteriordquo

A primeira parte da obra ldquoPerspectivas Teoloacutegicasrdquo (P 13-49) lembra que o olhar messiacircnico de Jesus (P 19) natildeo eacute dirigido para o pecado mas para o sofrimento do outro (cf Lc 416-21) ldquoEssa sensibilidade messiacircnica ao sofrimento natildeo tem nada a ver com plangecircnciardquo mas com a miacutestica biacuteblica de justiccedila ldquopaixatildeo por Deus como empatia pelo sofrimento alheio como miacutestica praacutetica da compaixatildeordquo (P 19) situando em primeiro lugar natildeo a culpabilidade mas o sofrimento Esse eacute sentido do discurso apocaliacuteptico como tentativa de dar esperanccedila aos sofredores ldquoO apocalipse biacuteblico ldquodesvelardquo a trilha dos sofredores na histoacuteria da humanidaderdquo (P 17) Lamenta-se que os cristatildeos tenham se afastado tanto desse ponto ldquoA doutrina cristatilde da salvaccedilatildeo dramatizou a questatildeo do pecado e negligenciou a questatildeo do sofrimentordquo (P20)

Na segunda parte da obra ldquoMiacutestica do Face-a-face tentativas de aproximaccedilatildeordquo (P 53-211) Metz reuacutene textos variados no estilo de pequenas meditaccedilotildees que objetivam conduzir o leitor para o centro da feacute cristatilde a saber a abertura para Deus que leva a servir o proacuteximo

Na terceira parte intitulada ldquoUma Igreja sem interesse em aprenderrdquo (P 215-250) o Autor trata de modo muito significativo a respeito da crise na Igreja Conforme Metz ateacute mesmo cristatildeos muito engajados nas comuni-dades e na luta pela justiccedila sentem-se cada vez mais incapazes (ou sem vontade) de aprender Eacute no entanto uma igreja aprendiz (disciacutepula) sempre pronta a se abrir para outras perspectivas

Essa obra eacute sem duacutevida fruto de uma rica experiecircncia de vida do velho Teoacutelogo E uma importante contribuiccedilatildeo para o estudo da Teologia da espiritualidade cristatilde Ao fundamentar-se na exigecircncia de partir dos textos biacuteblicos e da praacutexis de Jesus o A retoma a significaccedilatildeo original e o teor teoloacutegico genuiacuteno da espiritualidade cristatilde bem como a atualidade desse tema tatildeo em moda nos nossos dias e tatildeo pouco compreendido

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

225

Apesar de algumas paacuteginas pressuporem debates teoloacutegicos que jaacute natildeo correspondem agraves experiecircncias das geraccedilotildees recentes vale a pena ler esse livro e seguir os conselhos do velho Mestre segundo o qual uma Igreja que quer se renovar deve saber quem ela eacute e a que eacute destinada

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Page 5: Revista Acadêmica da Prainha

SUMAacuteRIO I - Seccedilatildeo Teoloacutegica Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira Os ministros da igreja caracteriacutesticas e exigencias 127

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier A teologia de Tiago feacute em accedilatildeo 133

Ir Graccedila Disingakala Nunes Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta 146 II - Seccedilatildeo Filosoacutefica Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

A eacutetica poliacutetica em Maquiavel 161 Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha Sobre a relaccedilatildeo dinacircmica da realidade supra-sensiacutevel segundo Proclo 189 III - Ensaio Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ As fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas do ldquocastelo interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila 208 IV - Traduccedilatildeo Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Comeccedilam os erros dos filoacutesofos Aristoacuteteles Averroacuteis Avicena Algazel Al-Kindi Maimonides coletados por irmatildeo Egiacutedio da ordem de Santrsquo Agostinho 216 V - Resenha Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ Miacutestica de olhos abertos 223

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 125-126 2013

125

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos esta ediccedilatildeo da KAIROacuteS Revista Acadecircmica da Prainha Aleacutem de ser uma manifestaccedilatildeo das pesquisas e estudos do nosso corpo docente eacute um prazer receber contribuiccedilotildees de outros estudiosos - um fator de enriquecimento para a Revista

A Seccedilatildeo Teoloacutegica traz uma rica e austera reflexatildeo sobre os ministros da Igreja o que se deve e se pode esperara deles neste tempo

Como conciliar e unir feacute e accedilatildeo chama a atenccedilatildeo para a carta de Tiago

O artigo sobre vocaccedilatildeo como resposta e natildeo como uma escolha eacute como se fosse uma conclusatildeo dos artigos anteriores

A Seccedilatildeo filosoacutefica traz um bem fundamentado artigo sobre a Eacutetica Poliacutetica em Maquiavel tentando esclarecer seu contexto e significado Um estudo sobre Proclo e sua doutrina a realidade supra-sensiacutevel e seu dinamismo encerra esta seccedilatildeo

No contexto da Miacutestica eacute apresentado um ensaio sobre as fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas da obra ldquoCastelo Interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila

Na Seccedilatildeo traduccedilatildeo um texto de Egiacutedio de Roma que continua o contexto da traduccedilatildeo anterior a aceitaccedilatildeo de Aristoacuteteles na segunda metade do Seacuteculo XIII

Uma Resenha do Livro conhecido teoacutelogo Johanns Metz Miacutestica de olhos abertos encerra este nuacutemero

A todos uma proveitosa leitura

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

126

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

127

OS MINISTROS DA IGREJA CARACTERIacuteSTICAS E EXIGENCIAS1

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

1 O padre servidor do povo

O documento da CNBB nordm 100 ndash Comunidade de comunidades ndash uma nova paroacutequia ndash A conversatildeo pastoral da paroacutequia em seu capiacutetulo 5 tem como tiacutetulo ndash Sujeitos e Tarefas da Conversatildeo Pastoral Reuacutene quais satildeo os sujeitos da referida conversatildeo (bispos presbiacuteteros diaacuteconos permanentes os consagrados e os leigos) Deter-me-ei nos sete nuacutemeros que fazem alusatildeo agrave figura do presbiacutetero (nordm199-205)

Esta parte comeccedila afirmando que o presbiacutetero eacute chamado a ser padre-pastor exprimindo quais suas caracteriacutesticas dedicado generoso acolhedor e aberto ao serviccedilo da comunidade faz referecircncia ao excesso de atividades como um sinal preocupante que pode prejudicar o equiliacutebrio pessoal do padre (cfn 199)

Em algumas comunidades encontram-se presbiacuteteros desencantados cansados Nesta ocasiatildeo o documento em apreccedilo chama a atenccedilatildeo para algo que eacute muito grave e que merece de noacutes presbiacuteteros em especial aos paacuterocos a atenccedilatildeo

A sobrecarga de trabalhos pode dificultar a capacidade de relacionamento dos presbiacuteteros tornando-os apaacuteticos aos sofrimentos dos outros insensiacuteveis aos pobres rude no tratamento de seus paroquianos e incapazes de manifestar a misericoacuterdia e a bondade de Cristo do qual satildeo ministros Eles precisam ser ajudados (nordm 200)

1 Constantes satildeo os apelos do Magisteacuterio da Igreja tanto do Bispo de Roma como dos bispos do Brasil sobre os ministros ordenados Denotam-se caracteriacutesticas agraves quais estes ldquoservidoresrdquo do povo devem corresponder Em trecircs artigos escritos em ocasiotildees diferentes o Padre Almir Magalhatildees faz uma descriccedilatildeo e siacutentese geral das exigecircncias que satildeo a base de um ministeacuterio evangeacutelico adaptado aos nossos dias

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

128

Vivemos numa sociedade do vazio da superficialidade e neste contexto somos entre outras realidades formadores de opiniatildeo com um papel importante na sociedade de fazer a contraposiccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser considerado manipulaccedilatildeo das consciecircncias O documento tambeacutem contribui neste aspecto quando afirma que ldquoOutra preocupaccedilatildeo se refere agrave atualizaccedilatildeo do padre diante das aceleradas mudanccedilas que ocorrem na modernidade Ele pode ficar atrasado no tempo e afastado da realidade No ativismo pode ser que natildeo se dedique ao estudo e natildeo se prepare melhor para escutar e entender os anseios dos que o procuramrdquo (Nordm 201) Afinal de contas apesar de o modelo eclesioloacutegico do Vaticano II ser trinitaacuterio uma eclesiologia de comunhatildeo sob a qual todos satildeo responsaacuteveis pela accedilatildeo evangelizadora ldquoA conversatildeo pastoral da paroacutequia depende muito da postura do presbiacutetero na comunidaderdquo (Nordm 202)

Para que boa parte destas realidades aconteccedila seraacute de fundamental importacircncia que o presbiacutetero acolha bem as pessoas exerccedila a paternidade espiritual sem distinccedilotildees evitando atitude seletiva de privileacutegios a grupos A ou B renovando sua espiritualidade para ajudar tantos irmatildeos que buscam a paroacutequia (Cfnordm 202) Identicamente eacute preciso evitar-se que paroacutequias possam projetar uma imagem contraacuteria daquilo falado ateacute aqui a imagem de uma Igreja distante burocraacutetica e sancionadora (Cfnordm 37)

Devemos melhorar nosso atendimento e a paroacutequia haacute de estabelecer o diverso neste item comeccedilando pelo padre Isto requer que o presbiacutetero cultive profunda experiecircncia de Cristo vivo com espiacuterito missionaacuterio coraccedilatildeo paterno que seja animador da vida espiritual e evangelizador capaz de promover a participaccedilatildeordquo (Nordm 203)

Finalmente o padre deve ser formado para ser servidor do seu povo Eacute por este motivo que deve existir cuidado com o preparo permanente e a formaccedilatildeo nos seminaacuterios de acordo com esta visatildeo pastoral que considera a paroacutequia uma comunidade de comunidades tal como insiste a Igreja no Brasil a respeito da formaccedilatildeo presbiteral (Nordm 205 e Doc 93 da CNBB)

A questatildeo fundamental eacute como superar o ldquomodelordquo atual de paroacute-quia muito mais voltada para a sacramentalizaccedilatildeo conservaccedilatildeo para o modelo expresso no documento aqui refletido ldquoO ministeacuterio sacerdotal tem uma forma comunitaacuteria radical e soacute pode se desenvolver como tarefa coletivardquo (Nordm 204)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

129

2 Tentaccedilotildees dos agentes de pastorais

O tiacutetulo desta reflexatildeo eacute retirado da segunda parte do Capiacutetulo II da Exortaccedilatildeo Apostoacutelica A Alegria do Evangelho do Papa Francisco (Na crise do compromisso comunitaacuterio) Admito que muitos agentes jaacute tiveram acesso a esta Exortaccedilatildeo mas considero que a maioria ainda natildeo teve acesso e desta forma socializo algumas questotildees relevantes desta parte e que tecircm incidecircncia na vida dos agentes de pastoral Uma avaliaccedilatildeo eacute incontestaacutevel o Papa sempre desconcerta

Logo no iniacutecio afirma o Pontiacutefice sua gratidatildeo pela tarefa de quantos trabalham na Igreja e que a nossa tristeza e a vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja natildeo devem fazer esquecer os inuacutemeros cristatildeos que datildeo a vida por amor e agradece o belo exemplo de que datildeo tantos cristatildeos que oferecem sua vida e o seu tempo com alegria (Cfnordm 76)

Em seguida convoca a uma espiritualidade missionaacuteria chamando a atenccedilatildeo para algo que particularmente considero uma peacuterola em termos de anaacutelise da situaccedilatildeo atual ao assinalar que a vida espiritual de muitos agentes se confunde com alguns momentos religiosos que proporcionam algum aliacutevio mas natildeo alimentam o encontro com os outros o compromisso no mundo a paixatildeo pela evangelizaccedilatildeo (Cf nordm 78) Saliento que jaacute vi esta observaccedilatildeo ser feita por outros pastoralistas entretanto quando parte de teoacutelogos geralmente eacute avaliada como tendenciosa fechando-se Agora eacute o Papa Francisco quem faz a afirmaccedilatildeo

Uma tocircnica sua no diaacutelogo com o mundo eacute o encontro com o outro o que natildeo faltou tambeacutem nessa Exortaccedilatildeo ldquoO ideal cristatildeo convidaraacute sempre a superar a suspeita a desconfianccedila permanente o medo de sermos invadidos as atitudes defensivas que nos impotildee o mundo atual Muitos tentam escapar dos outros se fechando na sua privacidade confortaacutevel ou no ciacuterculo reduzido dos mais iacutentimos e renunciam ao realismo da dimensatildeo social do Evangelhordquo (Nordm88) Ele trata deste assunto na mesma Exortaccedilatildeo no Cap IV

Relevante eacute como ele conclui este mesmo nordm 88

ldquoPorque assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual sem carne nem cruz tambeacutem se pretendem relaccedilotildees interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos por eacutecrans e sistemas que se podem acender e apagar agrave vontade Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraccedilar o risco do encontro com o rosto do outro com a sua presenccedila fiacutesica que interpela com os seus sofrimentos e suas reivindicaccedilotildees A verdadeira feacute no Filho de Deus feito carne eacute inseparaacutevel do dom de si mesmo da

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

130

pertenccedila agrave comunidade do serviccedilo da reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros Na sua encarnaccedilatildeo o Filho de Deus convidou-nos agrave revoluccedilatildeo da ternurardquo

Percebam que neste pequeno trecho o Papa nos daacute material para um retiro de no miacutenimo 7(sete) dias pois relembra uma heresia do seacutec II ndash o docetismo que nega a humanidade de Cristo afirmando em outras palavras que hoje tambeacutem faltam nos cristatildeos as relaccedilotildees interpessoais substituiacutedas pela ldquotelinhardquo portanto sem cruz sem encontro na comodi-dade Estamos conectados quase que permanentemente sem preocupaccedilatildeo com o sofrimento dos outros Analisem minuciosamente e comparem com a realidade em que o Papa confere autenticidade da feacute Ela se revela em quatro pontos dom de si mesmo pertenccedila agrave comunidade serviccedilo e reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros

Concluo esta reflexatildeo em primeiro lugar exprimindo que natildeo estou somente me dirigindo aos outros sou um agente de pastoral e vou me confrontando com toda a Exortaccedilatildeo O grande objetivo mesmo eacute convidar a todos os agentes de pastoral a natildeo perderem de vista estes 33 (trinta e trecircs) nuacutemeros e 13 paacuteginas de cunho eminentemente pastoral-espiritual Natildeo seria bom para noacutes neste final de Quaresma ou quem sabe iniacutecio da Paacutescoa visitar estes nuacutemeros dos quais esta reflexatildeo foi apenas uma motivaccedilatildeo

3 ldquoAi de voacutesrdquo

Ao realizar sua missatildeo Jesus teve de enfrentar alguns conflitos e ateacute mesmo provocaacute-los na fidelidade e obediecircncia agrave realizaccedilatildeo da vontade do Pai Via de regra encontramos estes confrontos junto a alguns grupos de seu tempo destacando-se os escribas ou doutores da lei e os fariseus estes uacuteltimos gozando de muita credibilidade junto ao povo de Deus Tal creacutedito se dava pela loacutegica defendida por eles na medida em que pelo cumprimento da lei se visibilizava maior aproximaccedilatildeo a Deus ou natildeo a isto chamamos de legalismo farisaico pois a questatildeo principal de estar proacuteximo a Deus ou natildeo era simplesmente cumprir a lei (Cf todo o confronto sobre o saacutebado comer com as matildeos impuras Cf Mc 7)

O sistema se baseava nos polos ndash puros e impuros A pureza indicava as condiccedilotildees necessaacuterias para algueacutem poder comparecer diante de Deus no Templo (Cf C Mesters Com Jesus na contramatildeo p 24) Neste sentido o povo tinha grande preocupaccedilatildeo com a pureza pois quem natildeo era puro natildeo podia chegar perto de Deus (Mt 99-12)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

131

No capiacutetulo 23 do Evangelho de Mateus (precisamente 23 13-36) Jesus pronuncia os famosos sete ldquoaisrdquo todos eles dirigidos a estes dois grupos e de forma ousada e profeacutetica nesta seccedilatildeo chama-os ora de ldquohipoacutecritasrdquo ora de ldquoguias cegosrdquo de ldquoinsensatosrdquo e de ldquosepulcros caiadosrdquo predomina o adjetivo hipoacutecrita

Evidentemente Jesus natildeo age desta forma manifestando oacutedio para com eles mas fazendo uma catequese para que eles pudessem entrar na dinacircmica da conversatildeo e consequentemente do Reino de Deus na novidade do que ele representava jaacute que o rosto de Deus que eles mani-festavam contradizia frontalmente o Deus que Jesus representava

Do conjunto da coletacircnea de advertecircncias contra escribas e fariseus o termo mais usado eacute hipocrisia por ser uma atitude do sistema religioso que eles representavam fechando-se no seu prestiacutegio e poder julgavam-se justos e santos e disto os Evangelhos datildeo conta (Cf o ex da cena do fariseu e do publicano ndash Lc 18 9-14 a questatildeo do jejum em Mc 218ss) No sistema por eles defendido o que prevalecia de fato eram os ritos externos a formalidade

Com suporte no texto aqui referenciado destaco o versiacuteculo 23 citando-o ldquoAi de voacutes escribas e fariseus hipoacutecritas que pagais o dizimo da hortelatilde da erva-doce e do cominho enquanto descuidais o que haacute de mais grave na lei a justiccedila a misericoacuterdia e a fidelidade eacute isto que era preciso fazer sem omitir aquilordquo

A referecircncia eacute muito clara e natildeo precisa de grandes comentaacuterios acadecircmicos ndash os interlocutores de Jesus como jaacute se sabe viviam da exterioridade da formalidade do cumprimento da lei amplamente denunciado neste capiacutetulo de Mateus Na sequumlecircncia Jesus daacute um ensinamento novo como origem tambeacutem em suas praacuteticas por exemplo confraternizando-se com pessoas impuras como eram os publicanos e pecadores (Mc 2 15-17) tocar em leprosos comer sem lavar as matildeos tocar em cadaacutever e isto evidentemente tornava Jesus na concepccedilatildeo da eacutepoca uma pessoa impura pelo contato com estes pecadores e isto impedia a presenccedila de Deus

Agora vamos puxar a reflexatildeo construindo uma ponte entre a abordagem ateacute aqui desenvolvida e o nosso tempo prefiro proceder assim em primeiro lugar fazendo duas perguntas para vocecirc caro leitor existe algo parecido hoje em dia

Por gentileza interessante natildeo fazer uma interpretaccedilatildeo fundamenta-lista mas levar em consideraccedilatildeo a formalidade as questotildees de visibilidade

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

132

que a Igreja tem hoje por meio de grandes eventos de massa da miacutedia catoacutelica do estilo neopentecostal e a outra indagaccedilatildeo como estaacute sendo considerada a praacutetica da misericoacuterdia ndash a praacutetica da justiccedila e da fidelidade no seguimento de Jesus Cristo Seraacute que estamos na linha da exterioridade e sem esquecer isto estamos deletando a justiccedila da praacutetica de nossos grupos paroacutequias e idem com a misericoacuterdia e a fidelidade

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira eacute padre da Arquidiocese de Fortaleza

Diretor e Professor da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza - FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

133

A TEOLOGIA DE TIAGO FEacute EM ACcedilAtildeO

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier

Resumo A Epiacutestola de Tiago apresenta ensinos praacuteticos e eacuteticos para a vida cristatilde da mesma maneira como o proacuteprio Jesus mostrou que a feacute deveria vir acompanhada de atitudes Poreacutem alguns estudiosos biacuteblicos levantaram criacuteticas agrave epiacutestola de Tiago como se essa fosse contraacuteria agrave justificaccedilatildeo pela feacute Nesse artigo demonstra-se que a feacute e as obras natildeo se contrapotildeem na epiacutestola de Tiago sendo necessaacuterio compreender o contexto da mesma e sua importacircncia para os cristatildeos nos dias de hoje

Palavras-chave Tiago Conduta Cristatilde Feacute e Praacutetica

Abstract The Epistle of James has practical and ethical teachings for the Christian life just as Jesus himself showed that faith should be accompanied by actions However some scholars have raised criticism of the Epistle of James as if this was contrary to the justification by faith In this paper we show that faith and works are not opposed in the Epistle of James it is necessary to understand the context of the same and its importance for Christians today

Keywords James Christian Conduct Faith and Practice Introduccedilatildeo

A epiacutestola de Tiago difere das outras epiacutestolas do Novo Testamento pelo seu estilo conteuacutedo e apresentaccedilatildeo Tiago trata de religiatildeo praacutetica de eacutetica de solidariedade de religiatildeo vivencial A epiacutestola exatamente como Hebreus eacute mais um sermatildeo que uma carta propriamente dita Eacute um sermatildeo ou um ensino ou um tratado e ldquoas indicaccedilotildees satildeo de que foi o primeiro de todos os documentos escritos do Novo Testamentordquo (BAXTER 1989 p 309) O livro foi escrito aproximadamente entre 10 a 15 anos apoacutes a morte de Jesus (SHIDD BIZERRA 2010 p 7) Francis Nichol (1995 p 516) diz que natildeo haacute uma maneira segura para determinar a data da epiacutestola mas aponta a possibilidade da mesma ter sido escrita apoacutes o ano 44 dC

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

134

Neste artigo apresenta-se um panorama da teologia de Tiago com vistas a demonstrar como a feacute pode e deve ser praticada em atos e pala-vras em conformidade com a doutrina de Cristo

Sobre o autor

A Carta de Tiago jaacute provocou muitas discussotildees na histoacuteria da Teologia Uma das principais estaacute relacionada com o seu autor O prefaacutecio indica que o autor foi Tiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo (Tg 11) Mas no Novo Testamento haacute cinco homens chamados Tiago O primeiro eacute o pai de Judas (Lc 616) O segundo eacute um disciacutepulo filho de Alfeu (Mt 103) Este Tiago eacute o irmatildeo de Mateus (Mt 99 e Mc 214) O terceiro eacute chamado Tiago menor (Mc 1540) Talvez fosse chamado ldquomenorrdquo por causa do seu tamanho ou como substituto de Juacutenior (haacute pais que gostam de colocar seus nomes nos filhos) O quarto eacute o irmatildeo de Joatildeo e filho de Zebedeu (Mt 102) Este eacute o que os espanhoacuteis gostam de dizer que eacute o Tiago de Compostela Mas esse foi morto no iniacutecio dos anos quarenta conforme Atos 122 O quinto eacute chamado de ldquoirmatildeo do Senhorrdquo (Gl 119) Jesus possuiacutea um irmatildeo com este nome como aparece em Mateus 1355 Poreacutem apenas dois desses foram apresentados como possiacuteveis autores desta epiacutestola ndash Tiago filho de Zebedeu e Tiago o irmatildeo do Senhor

O primeiro eacute um candidato improvaacutevel Sofreu o martiacuterio em 44 AD e natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que ocupasse posiccedilatildeo de lideranccedila na igreja que lhe desse a autoridade de escrever esta carta geral Embora Isidoro de Sevilha e Dante achassem que ele foi o autor do livro esta identidade natildeo tem sido largamente aceita em nenhum periacuteodo da igreja A opiniatildeo tradicional identifica o autor como sendo Tiago o irmatildeo do Senhor A semelhanccedila da linguagem da epiacutestola com as palavras de Tiago em Atos 15 a forte dependecircncia do escritor da tradiccedilatildeo judia e a consistecircncia do conteuacutedo de sua carta com as notiacutecias histoacutericas que o Novo Testamento daacute em relaccedilatildeo a Tiago o irmatildeo do Senhor tudo tende a apoiar a autoria tradicional (PFEIFER HARRISON 1983 p 325)

Assim pode-se inferir que o autor da epiacutestola seja Tiago irmatildeo de Jesus

Criacuteticas agrave carta de Tiago

Esta epiacutestola tem sido alvo de criacuteticas e comentaacuterios injustos desde o iniacutecio do movimento protestante com Martinho Lutero (1522)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

135

Preocupado em afirmar a doutrina da justificaccedilatildeo pela feacute Lutero foi duro com a carta de Tiago Chamou-a de ldquoepiacutestola de palhardquo (eyne rechte stroerne Epistel) por causa de seu entendimento equivocado do capiacutetulo 2 versos 14 a 16 onde presumiu haver o ensino de justificaccedilatildeo pelas obras (STOTT 1996 p 18) Este pensamento errocircneo de Lutero ainda permanece em muitas mentes Mas deve ser entendido dentro do contexto em que as palavras dele foram proferidas Elas constam de seu prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo da Biacuteblia Alematilde onde ele se expressa sobre os livros que mais mostram a pessoa de Cristo Apoacutes nomeaacute-los disse Lutero ldquoPor isso a epiacutestola de Satildeo Tiago eacute uma epiacutestola bem insiacutepida (eyne rechte stroerne Epistel) se comparada agraves demais [] (LUTERO 1997 p 81)

Este reformador mais tarde modificou sua posiccedilatildeo Assim se expressou Lutero conforme nos diz George (1986 p 371) ldquoQuando Satildeo Tiago e Paulo dizem que um homem eacute justificado pelas obras eles estatildeo combatendo a noccedilatildeo errocircnea daqueles que pensam que a feacute sem obras eacute suficienterdquo

Outro que pode ser considerado injusto com Tiago eacute Champlin (1991 p 536) quando diz que ldquoA epiacutestola de Tiago certamente eacute um documento que representa o cristianismo judaico e natildeo erramos por dizer representa o cristianismo legalistaldquo

Paulo e Tiago

Muitas das criacuteticas se devem agrave aparente contradiccedilatildeo entre Tiago e Paulo no assunto ldquofeacute e obrasrdquo (KUMMEL 1975 p 414-41) Kuumlmmel lista cinco aparentes contradiccedilotildees A mais famosa declaraccedilatildeo de Tiago ldquoa feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) gerou discussatildeo nos primoacuterdios da Reforma Lutero natildeo conseguia conciliar esta declaraccedilatildeo com o que Paulo escreveu ldquoConcluiacutemos pois que o homem eacute justificado pela feacute independente de obras da leirdquo (Rm 328) Especialmente outra declaraccedilatildeo de Tiago estaacute em aparente oposiccedilatildeo ao ensino de Paulo ldquoVerificais que uma pessoa eacute justificada por obras e natildeo por feacute somenterdquo (Tg 224) O curioso eacute que os dois apoacutestolos tardios (isto eacute que natildeo estavam entre os doze) utilizam o mesmo personagem biacuteblico (Abraatildeo) para defender posiccedilotildees aparentemente contraditoacuterias Paulo diz ldquoQue pois diremos ter alcanccedilado Abraatildeo nosso pai segundo a carne Porque se Abraatildeo foi justificado por obras tem de que se gloriar poreacutem natildeo diante de Deus Pois que diz a Escritura Abraatildeo creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo (Rm 41-3) Tiago em contrapartida diz ldquoNatildeo foi por obras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

136

que Abraatildeo o nosso pai foi justificado quando ofereceu sobre o altar o proacuteprio filho Isaquerdquo (Tg 221) Aqui haacute pelo menos uma contradiccedilatildeo verbal (LADD 1997 p 546 MORRIS 2003 p 379) mas seraacute que haacute uma contradiccedilatildeo teoloacutegica

Uma siacutentese da diferenccedila entre Paulo e Tiago dada por Mears (1993) poderaacute resolver essa questatildeo

Tiago eacute a mais praacutetica de todas as epiacutestolas e tem sido chamada ldquoGuia Praacutetico para a Vida e a Conduta Cristatilderdquo Eacute o livro de Proveacuterbios do Novo Testamento Estaacute repleto de preceitos morais Expotildee a eacutetica do Cristianismo Eacute cheio de figuras e metaacuteforas Seu estilo eacute muitas vezes bastante dramaacutetico Obriga a pensar realmente Hebreus apresenta doutrina Tiago apresenta obras Eles se completam num Cristianismo vital Natildeo haacute conflito entre Paulo e Tiago Soacute uma leitura superficial de ambos levaria a essa conclusatildeo Paulo diz ldquoRecebam o Evangelhordquo Tiago diz ldquoVivam o Evangelhordquo Paulo viu Cristo no ceacuteu estabelecendo a nossa justiccedila Tiago viu-o na terra dizendo-nos que sejamos perfeitos como eacute perfeito o seu Pai que estaacute no ceacuteu Paulo deteacutem-se na fonte da nossa feacute Tiago fala do fruto da nossa feacute Eacute preciso natildeo soacute crer mas viver Ainda que Paulo saliente a justificaccedilatildeo pela feacute vemos em suas epiacutestolas especialmente em Tito que ele daacute grande realce agraves boas obras (1 Tm 618) enquanto Tiago fala em ser ricos em feacute (25) Conveacutem notar tambeacutem que quando Tiago parece menosprezar a feacute ele estaacute-se referindo a uma simples crenccedila intelectual e natildeo agrave ldquofeacute salvadorardquo que eacute tatildeo essencial Tiago exalta a feacute Ele diz que a prova dela opera a paciecircncia Sua carta comeccedila e termina com um forte estiacutemulo agrave feacute (16 514-18) Ele denuncia a feacute espuacuteria que natildeo produz obras (MEARS 1993 p 511-512)

Uma siacutentese menor seria

Paulo responde a pergunta Sob que condiccedilatildeo ou condiccedilotildees um pecador pode ser justificado diante de Deus Sua resposta eacute Sob a condiccedilatildeo da feacute a confianccedila de todo coraccedilatildeo em Cristo como Salvador Tiago contesta a pergunta Que classe de feacute salvaraacute a um homem Sua resposta eacute Nenhuma feacute ou credo somente nem sinceramente a crenccedila em Deus como uacutenico mas uma feacute que produz vida reta (CONNER 1951 p 221)

O resumo de Tiago sobre a feacute inoperante eacute ldquoporque assim como o corpo sem espiacuterito eacute morto assim tambeacutem a feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) Foi deste modo que Calvino resolveu a questatildeo O Reformador de Genebra natildeo viu contradiccedilatildeo entre Paulo e Tiago pois entendeu que Tiago falava de uma feacute falsa ldquoPois transparece desde as primeiras palavras que ele fala de uma falsa profissatildeo de feacute pois ele natildeo comeccedila assim lsquose algueacutem tem feacutersquo mas lsquose algueacutem diz que tem feacuterdquo (CALVIN

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

137

1998 Tg 2-14) Calvino portanto natildeo teve a mesma duacutevida de Lutero mas compreendeu o sentido especiacutefico e claro a que Tiago se referia

Os grandes temas de Tiago

O caraacuteter cristatildeo eacute o tema central da epiacutestola Tiago nada fala do Espiacuterito Santo nem mesmo da doutrina da salvaccedilatildeo O autor natildeo trata de doutrinas mas de conduta Natildeo haacute menccedilatildeo alguma a Missotildees Batismo Santa Ceia Cruz e suas implicaccedilotildees A epiacutestola eacute predominantemente eacutetica Dentre os muitos assuntos tratados por Tiago podemos destacar os seguintes

Provas e tentaccedilotildees

A carta dirige-se especialmente aos judeus cristatildeos que viviam entre gentios fora dos limites da Palestina e que sofriam devido as suas convicccedilotildees religiosas (MARTIN 1998)

Tiago escreveu ldquoMeus irmatildeos tende por motivo de toda alegria o passardes por vaacuterias provaccedilotildeesrdquo (Tg 12) Ele completa ldquoBem-aventurado o homem que suporta com perseveranccedila a provaccedilatildeo porque depois de ter sido aprovado receberaacute a coroa da vida a qual o Senhor prometeu aos que o amamrdquo (Tg 112) Soacute a recompensa eterna compensa os sofrimentos desta vida e o cristatildeo deve olhar para aquele dia futuro quando receberaacute o galardatildeo em troca das vicissitudes e isto deve fazer com que se alegre no presente seacuteculo ainda que seja pobre e necessitado

A palavra ldquotentaccedilatildeordquo eacute usada num sentido mais amplo incluindo perseguiccedilotildees externas e solicitaccedilotildees internas ao mal Tiago ensina aos leitores como transformar a tentaccedilatildeo em becircnccedilatildeo fazendo dela uma fonte de paciecircncia e usando-a como o fogo que prova o ouro (PEARLMAN 1997 p 319)

A esse respeito o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia define ldquoTentaccedilotildees (gr Peirasmos) significa provaccedilotildees com um propoacutesito e efeito beneacuteficos ou sejam provaccedilotildees ou tentaccedilotildees divinamente permitidas ou enviadasrdquo (SHEDD 1979 p 1388)

A ecircnfase eacute que a tentaccedilatildeo em si natildeo vem de Deus ldquoNingueacutem ao ser tentado diga Sou tentado por Deus porque Deus natildeo pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo a ningueacutem tentardquo (Tg 113) O verdadeiro instrumento da tentaccedilatildeo segundo Tiago eacute a cobiccedila (Tg 114) Ele diz ldquoEntatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute aacute luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morterdquo (Tg 115) A antropologia de

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

138

Tiago estaacute em perfeita harmonia com o Antigo Testamento e com os demais escritos do Novo Testamento Deus natildeo eacute o autor do mal O pecado surge no ser humano e gera morte O fato de Tiago natildeo mencionar Satanaacutes como tentador natildeo significa que ele natildeo julgasse importante no processo da tentaccedilatildeo e do pecado (Tg 47)

Tiago expotildee como a feacute verdadeira reage em meio aos sofrimentos decorrentes das provaccedilotildees e das tentaccedilotildees A feacute verdadeira gera alegria nas provaccedilotildees e eacute fortalecida em Deus nas tentaccedilotildees

Feacute e obediecircncia

A feacute verdadeira segundo Tiago eacute aquela que implica em obediecircn-cia ou seja a praacutetica da Palavra Ele diz ldquoPortanto despojando-vos de toda impureza e acuacutemulo de maldade acolhei com mansidatildeo a palavra em voacutes implantada a qual eacute poderosa para salvar vossa alma Tornai-vos pois praticantes da palavra e natildeo somente ouvintes enganando-vos a voacutes mesmosrdquo (Tg 12122)

Haacute um eco entre estas palavras e as que Jesus proferiu no final do sermatildeo do monte que compara o ouvir sem praticar a palavra como uma atitude de construir uma casa sobre a areia (Mt 724-27) Ouvir sem praticar eacute como se olhar num espelho e esquecer-se de como se eacute Os espelhos eram de bronze e refletiam mal a imagem da pessoa aleacutem de serem raros Uma pessoa pobre passava meses sem se ver ao espelho Quem ouve e pratica seraacute bem-aventurado (Tg 125) Natildeo praticar a Palavra de Deus eacute um ato de auto-engano pois a proacutepria pessoa seraacute a uacutenica prejudicada A feacute verdadeira eacute a que demonstra a Palavra de Deus na praacutetica A guarda da liacutengua

Tiago preocupado com a questatildeo da liacutengua no sentido de ldquofalar o que natildeo se deverdquo antecipa um pouco do que vai dizer adiante ldquoSe algueacutem supotildee ser religioso deixando de se refrear a liacutengua antes enganando o proacuteprio coraccedilatildeo a sua religiatildeo eacute vatilderdquo (Tg 126) Esclarece o que entende ser a verdadeira religiatildeo ldquoA religiatildeo pura e sem maacutecula para com o nosso Deus e Pai eacute essa visitar os oacuterfatildeos e as viuacutevas nas suas atribulaccedilotildees e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundordquo (Tg 127)

Com o objetivo de exemplificar de modo praacutetico o que considera uma feacute em accedilatildeo Tiago trata sobre o problema da liacutengua Agora ele tem em mente os mestres pois fala sobre o perigo de algueacutem utilizar a liacutengua

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

139

de modo errado neste sentido (Tg 31-12) Do mesmo modo expotildee sobre as dissensotildees dentro da comunidade como algo contraacuterio aacute feacute (Tg 313-18) Trata novamente sobre a cobiccedila (Tg 41-3) da vida mundana e da necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 44-10) Enfatiza os relacionamentos pessoais na igreja e na necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 411-17) A feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica de obras eacute uma feacute em accedilatildeo

Natildeo fazer acepccedilatildeo

Tiago analisa a incompatibilidade de algueacutem crer em Jesus e fazer acepccedilatildeo de pessoas

Meus irmatildeos natildeo tenhais a feacute em nosso Senhor Jesus Cristo Senhor da gloacuteria em acepccedilatildeo de pessoas Se portanto entrar na vossa sinagoga algum homem com aneacuteis de ouro nos dedos em trajos de luxo e entrar tambeacutem algum pobre andrajoso e tratardes com deferecircncia o que tecircm trajos de luxo e lhe disserdes Tu assenta-te aqui em lugar de honra e disserdes pobre Tu fica ali em peacute natildeo fizestes distinccedilatildeo entre voacutes mesmos e natildeo vos tornastes juiacutezes tomados de perversos pensamentos (Tg 21-4)

Apesar da maioria dos crentes para os quais Tiago ensinava ser de classe baixa parece que eles como eacute proacuteprio agraves vezes dos pobres tratavam bem os ricos e mal os pobres Tiago diz que isto eacute uma feacute incoerente No texto ele fala da ldquosinagogardquo e natildeo da igreja o que evidencia o aspecto judaico da carta e aponta para sua antiguidade Para Tiago fazer acepccedilatildeo de pessoas eacute quebrar a lei (Tg 2 9-10) A questatildeo polecircmica da carta

Jaacute tratamos disto em momentos anteriores e podemos deixar de emitir mais consideraccedilotildees Vamos apenas acrescentar isto a preocupaccedilatildeo de Tiago eacute primariamente praacutetica (CARBALLOSA 1994 p 70) e parece oacutebvio que ele respondia a algum tipo de questionamento antinomista pois rebatia a crenccedila de que uma pessoa pode ser salva sem que demonstre qualquer mudanccedila de vida

Por isso ele diz que no caso de Abraatildeo ldquofoi pelas obras que a feacute se consumourdquo (Tg 222) Paulo por outro lado estaacute respondendo a outro tipo de questionamento Ele combate a noccedilatildeo judaica daqueles dias de que uma pessoa era salva pela feacute e pelas obras como se as obras natildeo fossem apenas uma evidecircncia da feacute mas um instrumento real de salvaccedilatildeo Eacute oacutebvio que se algueacutem lhe dissesse que uma pessoa pode ser salva sem experimentar uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

140

transformaccedilatildeo Paulo certamente responderia ldquonatildeordquo pois embora sejamos salvos pela graccedila Deus tem preparado uma vida de boas obras para que andemos nelas (Ef 28-10) Ellen G White (1892) declarou que ldquoas boas obras se seguiratildeo como as floraccedilotildees e frutos da feacute A apropriaccedilatildeo da justiccedila de Cristo seraacute manifestada numa vida bem ordenada e na conversaccedilatildeo santardquo

Do mesmo modo se perguntassem a Tiago se a lei precisa ser obedecida para que algueacutem seja salvo como um meio de completar a feacute certamente ele diria que somos salvos pela feacute e que as obras satildeo apenas a evidecircncia de que ela existe Natildeo haacute contradiccedilatildeo teoloacutegica entre Paulo e Tiago suas respostas aparentemente divergentes explicam a razatildeo dos propoacutesitos de cada autor Assim a Reforma Protestante resolve o conflito quando declara ldquoEacute a feacute que salva sozinha mas a feacute que salva nunca estaacute sozinhardquo

Denuacutencia contra os ricos

ldquoPaciecircnciardquo eacute a palavra chave para resumir o ensino do capiacutetulo 51-6 sendo um dos temas predominantes de toda a carta de Tiago ldquoEvidentemente muitas das pessoas humildes dentre os judeus cristatildeos estavam sendo oprimidos pelos ricos e seus salaacuterios eram retidos com fraude (54)rdquo (MEARS 1993 p 517-518) Os cristatildeos pobres daqueles dias deveriam ter paciecircncia e esperar o momento da libertaccedilatildeo que viria de Deus e viver na praacutetica a feacute que salva

Sobre a denuacutencia de Tiago contra os ricos assim se expressa o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia ldquoEsta seccedilatildeo apresenta uma severa denuacutencia contra os ricos que tecircm granjeado prosperidade mediante opressatildeo Os tais satildeo condenados natildeo por serem ricos mas porque suas riquezas foram mal adquiridas permanecendo sobre elas as marcas da corrupccedilatildeordquo (SHEDD 1979 p 1388)

Jaacute o Comentaacuterio Biacuteblico Adventista por sua vez esclarece ldquoO contexto imediato implica que os ldquoricosrdquo satildeo exemplos notaacuteveis de quem tecircm muitas oportunidades para fazer o bem mas evitam fazecirc-lo Estes ldquoricosrdquo podem ser ou natildeo membros da igrejardquo (NICHOL 1995 p 553)

A mensagem de Tiago era evidente para seus leitores ldquoos opressores ainda pagaratildeo por tudo o que tecircm feitordquo Mas o povo de Deus deveria ser paciente pois natildeo haacute como antecipar o juiacutezo de Deus ldquoSede pois irmatildeos pacientes ateacute a vinda do Senhor Eis que o lavrador aguarda com paciecircncia o precioso fruto da terra ateacute receber as primeiras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

141

e as uacuteltimas chuvas Sede voacutes tambeacutem pacientes e fortalecei o vosso coraccedilatildeo pois a vinda do Senhor estaacute proacuteximardquo (Tg 578)

As chuvas do fim do outono e do comeccedilo da primavera que datildeo condiccedilotildees agrave terra de produzir natildeo podem ser antecipadas por causa do desejo ou da ira do homem Elas vecircm no tempo certo Resta ao lavrador esperar que a chuva venha e de nada adiantaraacute ele se agitar se irar ou fazer qualquer outra coisa pois seraacute apenas perda de tempo de energia e mais acuacutemulo de sofrimento Como o agricultor tem certeza de que a chuva viraacute ele deve descansar pois deve ter uma esperanccedila confiante Do mesmo modo o cristatildeo sabe que Jesus voltaraacute e ainda que ele natildeo saiba quando deve esperar confiantemente pois Jesus viraacute

Julgamentos precipitados

Tiago orienta os crentes a se absterem de julgamentos precipitados ldquoIrmatildeos natildeo vos queixeis uns dos outros para natildeo serdes julgados Eis que o juiz estaacute agraves portasrdquo (Tg 59) Natildeo eacute totalmente certo se ele fala em relaccedilatildeo aos proacuteprios crentes ou se o assunto ainda satildeo os iacutempios que os oprimem mas eacute bastante plausiacutevel que estes uacuteltimos estejam em foco Do mesmo modo que os crentes do Antigo Testamento foram pacientes em meio ao sofrimento os cristatildeos deveriam ser agora ldquoIrmatildeos tomai por modelo no sofrimento e na paciecircncia os profetas os quais falaram em nome do Senhor Eis que temos por felizes os que perseveram firmes Tendes ouvido da paciecircncia de Joacute e vistes que fim o Senhor lhe deu porque o Senhor eacute cheio de terna misericoacuterdia e compassivordquo (Tg 51011)

A paciecircncia dos santos do passado especialmente o mais conhecido de todos neste sentido Joacute eacute evocada como exemplo de que o Senhor faz justiccedila aos seus Tiago natildeo entende que os cristatildeos devem demonstrar uma paciecircncia moacuterbida mas insiste que eles tecircm em suas matildeos uma arma poderosa a oraccedilatildeo Ele diz ldquoEstaacute algueacutem entre voacutes sofrendo Faccedila oraccedilatildeordquo (Tg 513) A oraccedilatildeo eacute o instrumento dos crentes em meio a tribulaccedilatildeo A oraccedilatildeo pode trazer cura (Tg 515) e perdatildeo (Tg 516) Para comprovar que a oraccedilatildeo tem muito poder Tiago cita Elias reconhecido como um dos profetas mais poderosos ldquoElias era homem semelhante a noacutes sujeito aos mesmos sentimentos e orou com muita insistecircncia para que natildeo chovesse sobre a terra e por trecircs anos e seis meses natildeo choveu E orou de novo e o ceacuteu deu chuva e a terra fez germinar seus frutosrdquo (Tg 51718)

Tiago enfatiza que Elias era um homem sujeito aos mesmos sofrimentos e limitaccedilotildees que os seus leitores mas pela oraccedilatildeo realizou

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

142

feitos formidaacuteveis Os crentes devem ter paciecircncia orar pois Deus pode mudar as situaccedilotildees dramaacuteticas por intermeacutedio da oraccedilatildeo As uacuteltimas palavras de Tiago satildeo um lembrete aos crentes de que devem se preocupar com os desviados dos caminhos de Deus (Tg 51920)

Haacute outros temas mais mas a relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus (que seraacute apresentada a seguir) poderaacute completar aleacutem de recordar alguns pontos jaacute tratados

A relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus

Tiago pode natildeo ter o brilho intelectual de Paulo mas seu conteuacutedo em nada difere do que o Salvador ensinou E dos apoacutestolos ele foi o que mais tempo viveu com Jesus Pelo menos a infacircncia e a adolescecircncia dos dois foram juntas O ensinamento de Jesus pode ser visto em toda a epiacutestola de Tiago

1 O cristatildeo que sofre provaccedilotildees eacute abenccediloado Tiago 12 e Mateus 510-12

2 Deus deseja que sejamos perfeitos Tiago 14 e Mateus 548

3 Ele daacute generosamente aos que lhe pedem Tiago 15 e 42 Mateus 77-8

4 Mas somente o Pai tem poder para dar boas daacutedivas Tiago 117 e Mateus 79 -11

5 E neste caso ele daacute somente aos quem tecircm feacute Tiago 16 e Marcos 11 22-24

6 Devemos natildeo apenas ouvir a palavra Mas praticaacute-la Tiago 122-25 e Mateus 7 21-27

7 Devemos tomar cuidado com as riquezas porque os pobres eacute que herdam o reino de Deus Tiago 25 e Mateus 53 Lucas 620

8 Devemos amar o proacuteximo como a noacutes mesmos Tiago 28 e Marcos 1231

9 Devemos guardar os mandamentos Tiago 210 e Mateus 519

10 Devemos mostrar misericoacuterdia para recebermos misericoacuterdia Tiago 213 e Mateus 57 1833-35

11 Eacute a aacutervore que determina o fruto Tiago 312 e Mateus 715-20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

143

12 Os pacificadores seratildeo abenccediloados Tiago 318 e Mateus 59

13 Natildeo eacute possiacutevel servir a dois senhores Cada um deve escolher entre Deus e o dinheiro Tiago 44 413-15 e Mateus 624

14 Quem se humilha seraacute exaltado Tiago 46 e 10 e Lucas 1814 Comparar isto com Tiago 19-10 e Lucas 152

15 Natildeo devemos falar mal uns dou outros ou julgar uns aos outros Tiago 412 e Mateus 71

16 Natildeo devemos elaborar planos gananciosos e mundanos para obter ganhos esquecendo-nos de Deus ou do proacuteximo Tiago 413-17 e Lucas 1216-21

17 As riquezas natildeo duram Elas se corroem as roupas satildeo consu-midas pelas traccedilas e o ouro fica embaccedilado com a ferrugem Tiago 51-3 e Mateus 619-21

18 Por isso ai dos ricos Tiago 51 e Lucas 624

19 Quem crecirc que espere pacientemente e esteja pronto para a vinda do Senhor pois ele estaacute perto agraves portas Tiago 57-9 e Lucas 1235-40 Marcos 1329

20 Os cristatildeos natildeo devem jurar nem pelo ceacuteu nem pela terra nem por qualquer outro meio de juramento Sua palavra deve ser confiaacutevel Seu sim deve ser sim e seu natildeo deve ser natildeo Suas palavras natildeo podem ter duplo sentido Tiago 512 e Mateus 533

Tiago reafirma Jesus como um homem com um ensino praacutetico e praticaacutevel O cristianismo eacute vida e natildeo sensaccedilotildees Vida correta com Deus que se evidencia em vida correta com os homens

Consideraccedilotildees finais

Percebe-se que a mensagem de Tiago eacute clara e simples Ele fala sobre a feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica pelas obras Esta feacute leva os crentes a suportarem todo tipo de sofrimento a demonstrarem a conversatildeo pelas boas obras e a esperarem em oraccedilatildeo pelo retorno de Jesus ou pela manifestaccedilatildeo libertadora de Deus

Mesmo simples a carta de Tiago eacute rica e teologicamente impor-tante de modo que natildeo concordamos com a ideia de Richardson (e de Lutero) de que eacute uma ldquoepiacutestola de palhardquo (RICHARDSON 1966 p 240

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

144

BACLAY 1974 p 16) em comparaccedilatildeo com a profunda solidez da Epiacutestola aos Romanos Ela ocupa um lugar importante no cacircnon e na Teologia do Novo Testamento responsaacutevel pela ampliaccedilatildeo do entendi-mento de um conceito essencial para a feacute do Novo Testamento o relacionamento entre feacute e obras

Termino deixando uma pergunta Se Tiago ocupasse o puacutelpito contemporacircneo que diria ele aos membros e liacutederes de nossas igrejas

Referecircncias Bibliograacuteficas

BACLAY W S I y II Pedro Buenos Aires Editorial La Aurora 1974

BAXTER S J Examinai as escrituras ndash atos a apocalipse Satildeo Paulo Ediccedilotildees vida Nova 1989

CALVIN J Commentary on the espistole of the James Albany Books for the Ages 1998

CARBALLOSA E L Tiago Una fe em accioacuten 6 ed Grand Rapids Editorial Portavoz 1994

CHAMPLIN R N Enciclopeacutedia de Biacuteblia teologia e filosofia v 6 Satildeo Paulo Editora e Distribuidora Candeia 1991

CONNER W T La fe del nuevo testamento Nashvill Casa Bautista de Publicaccedilotildees 1951

GEORGE T In ldquoA rigth strawy epistle reformation perspective on Jamesrdquo Louisville Review and Expositor ndash a baptist theological journal v LXXXIII n 3 1986

KUumlMMEL W G Introduction to the new testament Nashvill Abingdon Press 1975

LADD G E Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Exodus 1997

LUTERO Martinho Da liberdade do cristatildeo ndash prefaacutecio agrave Biacuteblia (Ediccedilatildeo Biliacutengue) Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo da Editora Unesp 1997

MARTIN R P Word biblical commentary v 48 James Dallas Texas Word Books Publisher 1998

MEARS H C Estudo panoracircmico da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida 1993

MORRIS Leon Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2003

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

145

NICHOL F D (ed) Comentario biblico adventista del septimo dia Tomo 7 Buenos Aires Asociacion Casa Editora Sudamericana 1995

PEARLMAN M Atraveacutes da Biacuteblia livro por livro Satildeo Paulo Vida 1997

PFEIFER F C HARRISON E F Comentaacuterio biacuteblico Moody v IV Satildeo Paulo Imprensa Batista Regular 1983

RICHARDSON Alan Introduccedilatildeo agrave teologia do novo testamento Satildeo Paulo ASTE 1966

SHEDD R P (ed) O novo comentaacuterio da Biacuteblia v III Satildeo Paulo Ediccedilotildees Vida Nova 1979

SHEDD R P BIZERRA E F Uma exposiccedilatildeo de Tiago a sabedoria de Deus Satildeo Paulo Shedd Publicaccedilotildees 2010

STOTT J Homens com uma mensagem Campinas Editora Cristatilde Unida 1996

WHITE E G Signs of the times 5 de setembro de 1892

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier Doutor em Teologia e professor nos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graducaccedilatildeo

do Seminaacuterio Adventista Latino Americano de Teologia ndash Cachoeira BA

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

146

A VOCACcedilAtildeO NAtildeO Eacute UMA ESCOLHA MAS UMA RESPOSTA

Ir Graccedila Disingakala Nunes

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo Tentativa de responder a trecircs questotildees fundamentais sobre a vocaccedilatildeo entendida como chamado de Deus valendo-se de muitos autores mas principalmente da contribuiccedilatildeo de Gianfranco Poli Natildeo vai certamente exaurir o assunto mas eacute uma chamada de atenccedilatildeo agraves escolas teoloacutegicas para que trabalhem este argumento de um modo mais aprofundado O tema pesquisado eacute a vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta Discorre-se entatildeo acerca de sua origem e significado o porquecirc de uma teologia da vocaccedilatildeo as caracteriacutesticas do chamado a relaccedilatildeo de intimidade com a pessoa de Jesus Cristo a resposta incondicional do homem Evidenciam-se tambeacutem os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde o discernimento as exigecircncias que o chamado comporta e de modo muito breve as dimensotildees que compotildeem fundamentalmente a resposta do homem e as consideraccedilotildees finais Toda essa dinacircmica eacute realizada mediante uma relaccedilatildeo dialogal entre as duas liberdades a de Deus que chama e a do homem que responde

Palavras-chave Deus-Trindade Vocaccedilatildeo ou Chamado Homem Encontro Igreja

Riassunto Questo articolo egrave un tentativo di rispondere a ter domande fondamentali sulla vocazione intesa come chiamata di Dio servendosi di tanti autori ma sopratutto dela contribuizione di Gianfranco Poli Non va sicuramente esaurire lrsquoassunto ma visa a scuotere lrsquoattenzione dele scuole teologiche percheacute lavorino la questione vocazione in modo piugrave profondo Il tema svolto egrave la vocazione non `e una scelta ma una risposta Si sviluppa quindi sua origine e significato il perchegrave di una teologia dela vocazione le caratteristiche della chiamata la relazione di intimitagrave com la persona di Cristo Gesugrave la risposta incondizionata dellrsquouomo Sono noti anche gli elementi centrali dela vocazione cristiana il discernimento le esigenze che la chiamata di Dio comporta e si fa cenno alle dimensioni che essenzialmente compongono la risposta dellrsquouomo e per ultimo le considerazioni finali Tutta la dinamica egrave svolta attraverso una relazione dialogica tra le due libertagrave di Dio che chiama e dellrsquouomo che risponde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

147

Parole chiavi Dio-Trinitagrave Vocazione o Chiamata Uomo Incontro Chiesa

1 Introduccedilatildeo

Haacute no Brasil e no mundo muitos escritos sobre vocaccedilatildeo mas falta uma teologia da vocaccedilatildeo ldquoFalta ainda um estudo sistemaacuteticordquo deste argumento Haacute pouco interesse nas escolas teoloacutegicas e entre os teoacutelogos no sentido de aprofundar este assunto1 A ausecircncia de fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica das vocaccedilotildees eacute negativa enquanto a praacutexis permanece sem fundamentaccedilatildeo conforme constatou Joseacute Lisboa Moreira de Oliveira na sua Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo2 Eacute tatildeo verdade o fato de o tema vocaccedilatildeo carecer de estudo sistemaacutetico que outros autores fazem esta constataccedilatildeo Exemplo Gianfranco Poli na sua exposiccedilatildeo sobre o assunto Tra vocazione e domanda di senso natildeo hesita em afirmar que a palavra vocaccedilatildeo eacute muitas vezes usada e repetidamente mas raramente se precisa o seu conteuacutedo

Advertimos para a necessidade natildeo soacute no Brasil mas tambeacutem no mundo de explicitar o que entendemos acerca de vocaccedilatildeo Para isso Gianfranco Poli trata a vocaccedilatildeo em trecircs momentos esclarecer o sujeito que chama colocar em realce os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde oferecer algumas indicaccedilotildees a respeito do homem que responde ou simplesmente eacute possiacutevel indicar estes trecircs momentos formulando trecircs perguntas quem chama A que coisa chama Em que modo se responde3

Eacute a essas perguntas que tentaremos responder com suporte na abordagem de Gianfranco Poli oferecendo ao assunto vocaccedilatildeo mais um subsiacutedio sem a pretensatildeo de exauri-lo

O tema eacute estruturado com uma introduccedilatildeo cinco partes e suas subdivisotildees Iordf parte Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo Por que teologia da vocaccedilatildeo Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo IIordf parte Dimensatildeo Trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde A vocaccedilatildeo do homem Quem chama Por que chama Para que chama Como chama IIIordf parte Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde Como saber que eacute Deus quem me chama A vocaccedilatildeo natildeo eacute 1 Cf DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992 nordm 244 2 OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996) p 22-31 3 Cf POLI Gianfranco ldquoLa cultura della vocazione tra vocazione e domanda di sensordquo in BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teologica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010 p 20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

148

uma escolha mas uma resposta Como responder Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees Consideraccedilotildees finais

2 Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo

Vocaccedilatildeo eacute um termo derivado do verbo latino vocare que significa chamar Vocaccedilatildeo eacute assim chamado convite apelo Eacute ato de chamar da parte de Deus eacute um estado de relaccedilatildeo entre Deus e o homem eacute diaacutelogo porque haacute atenccedilatildeo para com o outro Vocaccedilatildeo eacute encontro de duas liberdades a liberdade absoluta de Deus que chama e a liberdade do homem que responde Vocaccedilatildeo eacute um dom que exige resposta de feacute

Sendo um ato que brota do mais profundo do ser a vocaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com a inclinaccedilatildeo para exercer determinada profissatildeo ou um talento (aptidatildeo natural) para executar algo alguma atividade A vocaccedilatildeo eacute um chamado para amar eacute chamado ao serviccedilo (1Jo 47-21 Mc 1045) eacute a realizaccedilatildeo de um sonho

Na Biacuteblia vocaccedilatildeo estaacute em estreita relaccedilatildeo com eleiccedilatildeo e missatildeo4 Eleiccedilatildeo significa escolher um ou alguns entre tantos eacute uma predileccedilatildeo De tal maneira vocaccedilatildeo eacute um dom com o qual Deus preferiu a mim a vocecirc e natildeo a outro natildeo por merecimentos nossos mas por puro amor e em vista de uma missatildeo especiacutefica que a pessoa chamada vai desccedilo-brindo ao longo da sua vida visto que vocaccedilatildeo eacute um estado de relaccedilatildeo com Deus

21 Por que uma teologia da vocaccedilatildeo

A vocaccedilatildeo eacute um ato teoloacutegico e antropoloacutegico porque envolve Deus e o homem Eacute dom que vem do Alto iniciativa do Pai ldquoque atrai a Si uma criatura sua por um amor de predileccedilatildeo e em ordem a uma missatildeo especialrdquo5 Eacute Deus que no iacutentimo inspira agrave alma o desejo de abraccedilar o projeto de Deus seja no matrimocircnio como na vida consagrada O fato de Deus escolher algueacutem com amor de predileccedilatildeo no entanto natildeo obriga a pessoa escolhida porque sua eleiccedilatildeo se torna convite diante do qual ela eacute livre para responder sim ou natildeo Ao mesmo tempo poreacutem Deus tem um jeito todo particular de se aproximar do homem que quase

4 VOCACcedilAtildeO in CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997 5 Cf JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996 n 17

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

149

ningueacutem resiste em responder sim Acontece exatamente o que acentua Jeremias ldquoseduzistes-me Senhor e eu me deixei seduzirrdquo (cf Jr 207)

22 Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo

Pela sua natureza dialoacutegica a vocaccedilatildeo eacute relacional comunitaacuteria missionaacuteria e dinacircmica A origem de toda a vocaccedilatildeo estaacute na relaccedilatildeo com a Santiacutessima Trindade ()6 Soacute quem ficou seduzido (Jr 207) e permanece na intimidade (Os 216 1Ts 417 Jo 1724 1Pd 51) pode entender a beleza e a riqueza desta peacuterola preciosa

O diaacutelogo pessoal com Deus tambeacutem eacute comunitaacuterio nos dois sentidos de um lado acontece numa comunidade bem concreta (Mt 2531-46) de outro Deus chama mediante o ldquoclamorrdquo do povo que sofre (cf Ex 31-10 Jr 114-10) A vocaccedilatildeo eacute comunhatildeo com a Trindade que se traduz concretamente na experiecircncia de verdadeira irmandade Ela eacute comunicaccedilatildeo isto eacute vida de comunhatildeo e de participaccedilatildeo Responder ao chamado eacute inserir-se na vida da comunidade com uma missatildeo bem precisa tomar parte ativa na construccedilatildeo do Reino Vocaccedilatildeo natildeo eacute isolamento busca de satisfaccedilotildees de ldquorealizaccedilatildeo pessoalrdquo Natildeo eacute realizar ldquoprojetos pessoaisrdquo mas dar a vida pela defesa da vida (Jo 1011 1513)

3 Dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde

Desde o Concilio Vaticano II a vocaccedilatildeo eacute vista como chamado agrave comunhatildeo com o Pai pelo Filho no Espiacuterito Santo7 O segundo Congresso Internacional das vocaccedilotildees (Roma 1981) no seu documento conclusivo explicita de forma definitiva e muito clara esta dimensatildeo trinitaacuteria ldquoCada vocaccedilatildeo estaacute ligada ao desiacutegnio do Pai agrave missatildeo do Filho agrave obra do Espiacuterito Santo Cada vocaccedilatildeo eacute iluminada e fortalecida agrave luz do misteacuterio de Deusrdquo8

O Papa Bento XVI ressalta esta dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo quando afirma logo no iniacutecio de sua primeira mensagem vocacional que ldquoo Pai do ceacuteu nos escolheu pessoalmente para nos chamar a entrar em

6 CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla Satildeo Paulo Paulinas 2004 13 Ed nordm 212 7 Cf VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM Satildeo Paulo Paulinas 1999 13ordf Ed nordm 4 8 II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Vocacional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982 nordm 7

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

150

relaccedilatildeo filial com Ele por meio de Jesus Verbo feito carne sob a guia do Espiacuterito Santo9rdquo 31 A vocaccedilatildeo do homem

O homem existe porque Deus lhe dirigiu a palavra o chamou agrave existecircncia convocando-o para ser Seu interlocutor A vocaccedilatildeo eacute a palavra que Deus dirige ao homem e que o faz existir imprimindo nele a marca dialogal Se o homem foi criado pela conversaccedilatildeo com Deus e eacute assim aquele que eacute chamado a falar a expressar-se a comunicar-se a responder o tempo que tem a disposiccedilatildeo pode ser entendido como o tempo para realizar sua vocaccedilatildeo

Ora em que consiste a vocaccedilatildeo do homem senatildeo na sua plena realizaccedilatildeo no amor ao interno do princiacutepio dialoacutegico no qual foi criado com Deus como primeiro interlocutor ldquoVocaccedilatildeo entatildeo eacute um processo de maturaccedilatildeo de relaccedilotildees que culmina no amor a Cristo que eacute a plena realizaccedilatildeo do amor na sua pessoa10rdquo Em satildeo Paulo encontramos a confirmaccedilatildeo desta verdade ldquoqualquer coisa o homem faccedila fora do seu amor natildeo serve a nada aliaacutes eacute vatilde e esperdiacutecio de tempordquo (1Cor 13)

32 Quem chama

O sujeito e autor de todo o chamado eacute Deus Eacute preciso poreacutem entender por que Deus chama qual intenccedilatildeo O move de qual vontade eacute animado Um texto de Paulo aos Efeacutesios nos abre horizontes infinitos

Bendito seja Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que do alto do ceacuteu nos abenccediloou com toda a becircnccedilatildeo espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criaccedilatildeo do mundo para sermos santos e irrepreensiacuteveis diante de seus olhos No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo segundo o beneplaacutecito de sua livre vontade (Ef 13-5)

Nossa existecircncia tem raiz no coraccedilatildeo de Deus que nos desejou ldquofaccedilamos o homem agrave nossa imagem como nossa semelhanccedilardquo (Gn 1 26a) que desde a eternidade nos quis como ldquofilhos adotivosrdquo agrave imagem do seu Filho Jesus Existir eacute a primeira e fundamental vocaccedilatildeo do ser humano (cf Gn 27) As outras vocaccedilotildees dela decorrem e nela se sustentam Eacute o amor agrave

9 BENTO XVI A primeira mensagem vocacional in httpwwwportalcatolicoorgbr portala-primeira-mensagem-vocacional-de-bento-xvi Acesso em 040452015 10Cf RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000 p 21-22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

151

vida que possibilita se empenhar em tantas outras dimensotildees da existecircncia humana

33 Por que chama Os motivos do chamado

Vocaccedilatildeo eacute accedilatildeo de chamar por parte de Deus como sua iniciativa de amor corresponsaacutevel (Is 591 Jr 15 Rm 912 Gl 115 58) Deus chama porque ama (cf Dt 76-8 236 Jo 1516 Mc 312) Segundo a Biacuteblia missatildeo eacute o elemento central da vocaccedilatildeo11 Quando Deus chama algueacutem o faz para uma missatildeo a fim de fazer alguma coisa em funccedilatildeo de uma pessoa ou de uma comunidade A missatildeo eacute sempre um encargo

ldquoDeus criou-nos para compartilhar a sua proacutepria vida chama-nos para sermos seus filhos membros vivos do Corpo miacutestico de Cristo templos luminosos do Espiacuterito do Amor Chama-nos para ser ldquoseusrdquo quer que todos sejam santos12rdquo

Ante o chamado que Deus faz a cada um de noacutes eacute preciso ter coragem para deixar tudo se abandonar por inteiro ir aonde Ele mandar e fazer aquilo que Ele pedir Coragem eacute um dos passos mais importantes para um caminho vocacional bem-sucedido Eacute preciso ter coragem para entregar-se nas matildeos do bom oleiro e deixar-se moldar para enfrentar todas as tempestades do caminho todas as vicissitudes Coragem pra deixar tudo e dizer Sim a Deus

Natildeo temas ldquoCoragem Levanta-te ele te chamardquo (Mc 10 49) Ama-te e conta contigo para estabelecimento de um Reino de amor que jamais teraacute fim Amor eacute a origem e o fim de toda vocaccedilatildeo e o Deus que nos criou sem noacutes natildeo nos salva sem noacutes constata Santo Agostinho Somos chamados a colaborar no plano da salvaccedilatildeo Ele precisa do teu sim generoso e gratuito

34 Para que chama

A autoria de Deus sobre o chamado eacute contiacutenua Todos os dias Deus chama o homem para uma vida de relaccedilatildeo filial para elevaacute-lo agrave comunhatildeo com a Trindade

11wwwparoquiasaobeneditongorgbrblogp=1087 Acesso em 29102015 12JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iiptmessagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes _29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em em 29102015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

152

O uacutenico e mesmo Espiacuterito distribui seus dons a cada um conforme quer para que todo dom sem exceccedilatildeo seja para utilidade de todos para o bem da comunidade (cf 1Cor 127 11)Todo chamado eacute voltado para servir para dar sentido agrave proacutepria existecircncia doando-se

Ao se falar da vocaccedilatildeo a palavra sentido pode significar possibi-lidade e capacidade de siacutentese na proacutepria accedilatildeo cotidiana como tambeacutem abertura a um futuro em que o sentido da proacutepria vida seja menos contraditoacuterio ou contudo mais feliz e harmonioso Entatildeo a finalidade do chamado eacute de um movimento rotatoacuterio que tem como eixo Deus O ponto de partida e de chegada eacute Deus

Quanto mais o homem se relaciona com Deus mais se sente realizado e se torna capaz de doar-se sair de si e ir ao encontro do outro A realizaccedilatildeo de que se fala eacute no sentido de ser feliz do que se eacute e se faz Acreditamos ser esta a condiccedilatildeo de servir gratuitamente Assim sendo a vocaccedilatildeo visa em primeiro lugar agrave realizaccedilatildeo pessoal daquele que eacute chamado que busca um sentido da sua vida na descoberta do propoacutesito de Deus para si mediante o serviccedilo agrave comunidade de irmatildeos Na medida em que a pessoa se acha realizada em certa opccedilatildeo sente a exigecircncia de responder por via do serviccedilo E seraacute realmente um serviccedilo gratuito que natildeo espera outro em troca porque se sente bem servindo e o amor ao proacuteximo por sua vez eacute inseparaacutevel do amor a Deus A verdadeira felicidade estaacute em servirmos ao outro e a Deus 13

Sendo a vocaccedilatildeo antes de tudo um relacionamento com Jesus Cristo eacute inconcebiacutevel falar de uma vocaccedilatildeo cristatilde fora da Igreja pois eacute nela e por seu intermeacutedio que Cristo realiza e revela o proacuteprio misteacuterio como meta do desiacutegnio de Deus ldquoRecapitular tudo nelerdquo (Ef 110)

35 Como chama O modo

DeusndashPai nos chama pelo nome e sua voz chega ao homem em dois modos imediato e mediato Imediato Deus chama por meio de um desejo iacutentimo e profundo a inspiraccedilatildeo divina que impele para um estado de vida Costuma haver no mais iacutentimo da pessoa uma atraccedilatildeo essencial para formas de ser e de viver fundamentais por intermeacutedio do ambiente isto eacute das relaccedilotildees pessoais que vatildeo despertando o chamado por meio da histoacuteria pessoal (muito relevante) Mediato Deus fala pelas mediaccedilotildees Palavra escrita (e a falada) a vida de Cristo por meio da histoacuteria

13 httpformacaocancaonovacomdiversosa-vocacao-profissional Acesso em 05112015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

153

situaccedilotildees acontecimentos definidos sinais dos tempos e das pessoas (cf 1Sm 38-9)

Deus natildeo chama os homens do mesmo modo porque Ele chama por nome numa certa histoacuteria situaccedilatildeo cultura Nos relatos da Biacuteblia esta diferenccedila eacute notoacuteria algumas personagens satildeo demoradas em dizer sim e Deus tem paciecircncia e pelo diaacutelogo vai levando o chamado a uma resposta consciente como eacute o caso de Gedeatildeo (cf Jz 611-40) pois foi necessaacuterio trecircs vezes Deus prometer a sua presenccedila para se sentir seguro ao passo que natildeo foi assim com o disciacutepulo que pede para enterrar primeiro seu pai (Mt 821-22) a quem Jesus responde ldquoSegue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortosrdquo

Deus chama mediante Sua Palavra da natureza dos acontecimentos da histoacuteria significa que para escutaacute-Lo devemos estar atentos e cultivar uma atitude interior de silecircncio de escuta de meditaccedilatildeo de contemplaccedilatildeo No Novo Testamento a primeira accedilatildeo que Jesus desenvolveu no seu ministeacuterio de vida puacuteblica eacute uma ldquovocaccedilatildeordquo eacute a chamada de dois dos seus disciacutepulos Antes de tudo o chamado pede conversatildeo isto eacute seguir Jesus com o desejo de conformar-se agrave Sua pessoa

Nossa vocaccedilatildeo encontra jaacute a primeira revelaccedilatildeo no nome de cada um por isso Jesus chamaraacute Simatildeo de Pedro porque a sua missatildeo e a sua chamada seraacute aquela de ser rocha sobre a qual fundar a Igreja de Cristo Aleacutem disso os apoacutestolos satildeo chamados um a um e por nome para serem identificados na sua unicidade

4 Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde

Na Biacuteblia a vocaccedilatildeo eacute sempre de autoria do proacuteprio Deus que chama escolhe cada homem e mulher Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento o chamado pode se manifestar de modo mediato ou imediato

Segundo o esquema biacuteblico-literaacuterio satildeo elementos essenciais da vocaccedilatildeo iniciativa de Deus obediecircncia pela feacute temor e tremor investidura ou missatildeo Apesar de nem todas as caracteriacutesticas existirem em todas as vocaccedilotildees em todo tipo de vocaccedilatildeo haacute iniciativa de Deus o seguimento e a Missatildeo14

No Novo Testamento assim como no Velho Testamento a iniciativa de chamar algueacutem eacute sempre de Deus (Mt 99 101 Mc 1 1719-20 313 511 14 Cf Biacuteblia Sagrada Ediccedilatildeo da Famiacutelia Petroacutepolis Vozes 2005 p 1545

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

154

At 9 3-6) A iniciativa de Deus no entanto natildeo elimina nem substitui a resposta do homem jamais anula a participaccedilatildeo e a responsabilidade da pessoa chamada15 Natildeo eacute contudo por meio de uma manifestaccedilatildeo velada pela Palavra do Senhor nem da mediaccedilatildeo de outro homem que Deus age pois antes Ele atua na histoacuteria pessoalmente intermediado por Seu Filho que se fez carne (Jo 114)

Em ambos os Testamentos os escolhidos satildeo designados para uma missatildeo ldquoTal missatildeo eacute a participaccedilatildeo na compaixatildeo pastoral de Jesus ajudaacute-lo na sua missatildeo de serviccedilo agrave necessidade mais profunda das pessoasrdquo 16 Aquele que eacute chamado a seguir Jesus eacute convidado a ter aquilo que Satildeo Paulo pede aos filipenses isto eacute os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 25ss) que eacute a praacutetica da feacute esperanccedila e caridade ldquoNa vivecircncia dessas trecircs virtudes teologais se encontra a fundamental explicitaccedilatildeo da opccedilatildeo fundamental de seguir Cristo17rdquo

O esquema literaacuterio das narrativas vocacionais se repete em muitos casos no Antigo e no Novo Testamento chamado rejeiccedilatildeo ao chamado explicitaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo da missatildeo A novidade estaacute no Segundo Testamento que entende a vocaccedilatildeo agrave santidade e consagraccedilatildeo a Deus em relaccedilatildeo ao Espiacuterito Santo e Jesus

O singular do chamado no Novo Testamento eacute que todos satildeo realizados sob o signo da Nova Alianccedila isto eacute sob o signo da figura de Jesus Eles satildeo enviados e convidados a levar ao povo a presenccedila do proacuteprio Senhor18

A realizaccedilatildeo da vocaccedilatildeo de Jesus para o serviccedilo do Reino eacute expressa de modo claro em Lc 4 14-22 remir os presos recuperar a vista 15 MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro tostado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001 p 26 e 29 16 Cf PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991 p 400 17 Cf GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998 p 20 18 Alguns exemplos do chamado nos quais o aspecto missionaacuterio eacute evidente Abraatildeo e Sara chamados para formar um povo (Gn 121-9 Sb 105 At 7 2-3 e Hb 11 8) Moiseacutes a vocaccedilatildeo de um libertador (Ex 3 1-15 4 1-17 6 2-13 6 28-30 71-7 5) Isaiacuteas vocaccedilatildeo para denunciar e anunciar (Is 6 1-10) Maria vocaccedilatildeo para ser a matildee de Deus Apoacutestolos vocaccedilatildeo de propagar os ensinamentos de Jesus (Jo 135-394051 Lc 54-10 Lc 612-16 Mc 117-20 Mc 2 13-17 Mt 412-22 At 115-26) Paulo vocaccedilatildeo de continuar a missatildeo de Jesus ressuscitado (At 91-19 221-21 262-18) Jesus siacutentese da vocaccedilatildeo profeacutetica (Lc 4 14-22 Hb 51-10 Ap 1913 Jo 11-83036 314-19 331-34 4252634 442 530363843 62938-40 64450-5157 71628-2933 81618 11274252 1213273746-49 1424311521 16527 17468 171418212325 181137 19 2021-22)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

155

dos cegos restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graccedila do Senhor

41 Como saber que eacute Deus quem me chama

Vocaccedilatildeo eacute um chamado ao diaacutelogo com Deus em Jesus no Espiacuterito Santo Deus fala chama e pede ao homem de escutaacute-Lo (cf Mc 97) Escutar significa dar atenccedilatildeo ouvir e interiorizar o conteuacutedo da conversa interagir dar adesatildeo uma resposta Vocaccedilatildeo eacute um conhecer e deixar-se conhecer mediante o diaacutelogo com a Trindade Estes dois atos satildeo feitos simultacircnea e cotidianamente A vocaccedilatildeo nasce de um encontro pessoal com Cristo Deus-Amor nos chama em Cristo e o Espiacuterito Santo faz o homem participar desse amor do Pai Uma autecircntica experiecircncia de ser salvado pelo Senhor habilita a compreensatildeo de que eacute o Senhor que chama19

A descoberta da proacutepria vocaccedilatildeo eacute um processo que dura por toda a vida eacute um trabalho de elaboraccedilatildeo de si da proacutepria identidade um trabalho que exige atenccedilatildeo paciecircncia docilidade para acolher a palavra de Deus sensibilidade discernimento e tambeacutem a ajuda de um orientador ou diretor espiritual O chamado eacute entendido e decifrado com base numa ldquoexperiecircncia pessoal com Deusrdquo Nessa experiecircncia Ele revela o seu projeto para noacutes assim como fez com Moiseacutes (cf Ex3 4) e Pedro (Jo 2115-19)

42 A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta

O seguimento de Jesus Cristo comporta trecircs implicaccedilotildees encontro chamado e caminho O encontro suscita um desejo um deixar-se seduzir pelo amor O chamado sustenta esse desejo ou correspondecircncia e ainda este se desenvolve numa inquietaccedilatildeo constante sempre crescente ateacute responder E o caminho eacute o carisma ou a maneira de realizar esse projeto Estes trecircs passos se realizam numa simbiose vocacional surpreendente

Um olhar superficial dos relatos biacuteblicos sobre a vocaccedilatildeo pode levar-nos a concluir que vocaccedilatildeo eacute uma escolha pessoal iniciativa daquele que busca realizar suas inclinaccedilotildees mais profundas Uma anaacutelise mais percuciente no entanto nos desarma ao revelar que apesar de toda a nossa boa vontade e empenho pessoal num determinado chamado a nossa accedilatildeo natildeo passa de uma resposta agrave iniciativa de Deus que quis da nossa existecircncia e felicidade desde sempre (cf Jr 15)

19 Cf RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001 p 116 e 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

156

Nos Evangelhos Jesus chama a Si aqueles aos quais depois faraacute seus disciacutepulos ldquoNatildeo fostes voacutes que me escolhestes mas eu escolhi a voacutes e vos constitui para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneccedilardquo (Jo 1516)

Na origem de cada autecircntica chamada portanto estaacute o Senhor que escolhe e convida ao seu seguimento A Igreja manifesta na diversidade e na multiplicidade das vocaccedilotildees a riqueza do Espiacuterito que distribui livremente os seus dons segundo o projeto divino () A vocaccedilatildeo natildeo se constroacutei se recebe de Deus e sua realizaccedilatildeo depende da resposta que cada um sabe dar Viver de fato eacute responder20

A vocaccedilatildeo poreacutem natildeo eacute predestinaccedilatildeo (Ef 14 Jr 15) mas apelo do Pai dirigido agrave pessoa humana livre (Mt 1921 Gn 128-31)O projeto de Deus para a pessoa natildeo eacute algo estaacutetico predeterminado preestabelecido mas um apelo que se faz por via de mediaccedilotildees bem concretas (Jo 135-50) Deste modo a pessoa pode dizer ldquosimrdquo como Maria (Lc 138) fazendo acontecer a histoacuteria da salvaccedilatildeo ou dizer ldquonatildeordquo como o jovem rico (Mt 1922) frustrando o projeto de amor do Pai Da nossa resposta ao chamado de Deus depende a nossa felicidade O homem que diz sim se reencontra encontrando Deus e o que diz natildeo se perde

43 Como responder

A vocaccedilatildeo eacute um convite que se transforma em apelo o qual exprime uma proposta propositura que se torna eleiccedilatildeo escolha que solicita uma resposta21 O significado de cada um desses termos eacute muito profundo Convite eacute o ato de fazer uma proposta que se supotildee agradaacutevel Apelo eacute chamar algueacutem por nome Proposta eacute quanto vem apresentado agrave atenccedilatildeo e agrave aceitaccedilatildeo do outro um projeto Eleiccedilatildeo eacute o processo pelo qual um grupo designa um de seus integrantes para ocupar um determinado cargo com apelo a uma votaccedilatildeo Resposta eacute o ato de satisfazer uma chamada Deus espera uma resposta da nossa parte uma adesatildeo ao cumprimento da sua vontade sobre noacutes Deveriacuteamos ser agradecidos e sentir-nos honrados quando Deus se digna a nos chamar a colaborar da Sua missatildeo salviacutefica

20 httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa-non-ehtml Acesso em 29052015 21Cf PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus p 1385

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

157

44 Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A vida do cristatildeo eacute ldquosequela Christirdquo seguimento de Cristo em busca do caminho traccedilado por Ele para ser na Igreja e no mundo sinal inconfundiacutevel de amor e modelo de vida generosa e exemplar

A dimensatildeo do dom eacute a totalidade que prende a vida plenamente radicando-a no uacutenico absoluto que eacute Deus Instaura-se uma relaccedilatildeo que interessa o profundo do ser e que natildeo se confunde no anonimato Jesus busca a mim proacuteprio a mim Como um dia chamou por nome Abraatildeo Samuel Pedro Saulo assim ainda hoje o Pastor divino tem para cada ovelhinha nome uacutenico ldquoirrepetiacutevelrdquo22 distinto de qualquer outro nome ou som e que somente aquele que eacute chamado eacute capaz de perceber O ldquodeixa os mortos sepultar os seus mortosrdquo (Mt 822) o ldquoSegue-merdquo (Jo 2122) e o ldquonatildeo eacute digno do reino de Deusrdquo (Lc 959-62) mostram que as exigecircncias do chamado satildeo totais e natildeo admitem condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A radicalidade da resposta eacute uma exigecircncia fundamental do seguimento Natildeo se consente algum tipo de reenvio ou prorrogaccedilatildeo nem mesmo se nos encontraacutessemos diante de um motivo de grande valor moral e social como a necessidade de ldquosepultar o pairdquo a pessoa de Jesus exige uma prioridade absoluta e incondicionada ainda mais que Ele convida a anunciar ldquoo reino de Deusrdquo ao qual tudo eacute subordinado (cf Mt 633)

Trecircs dimensotildees satildeo necessaacuterias para uma resposta total liberdade como possibilidade de escolha de ausecircncia de constriccedilatildeo exterior e interior que permite de fazer uma eleiccedilatildeo autocircnoma gratuidade como alegria de servir no amor e sem esperar nada em troca eacute ter os sentimentos de Cristo Jesus (cf Fl 25) e dom ldquo o dom entra em cena quando descubro a dimensatildeo do outro como sujeito quando a categoria da gratuidade se torna a mola do meu agir e tambeacutem a descoberta do meu ser da minha dignidade e a do outro como pessoa humana pelo que viver a experiecircncia do dom significa substancialmente fazer experiecircncia de liberdaderdquo23

22 Cf CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006 p 61 23 Cf POLI Gianfranco La cultura della vocazione p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

158

5 Consideraccedilotildees finais

O objetivo geral do trabalho eacute mostrar que o argumento lsquovocaccedilatildeorsquo carece de um estudo sistemaacutetico de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica Com este escrito constatamos a necessidade de um estudo sistemaacutetico que esclareccedila o que entendemos quando falamos de vocaccedilatildeo Isto porque efetivar uma vocaccedilatildeo segundo o projeto de Deus contribui para o bem natildeo somente pessoal ou da instituiccedilatildeo a que se pertence mas do corpo como todo a Igreja Entatildeo vale muito despertar as escolas teoloacutegicas a abraccedilarem esta causa como questatildeo urgente levando seus teoacutelogos a reflexotildees mais aprofundadas com embasamento biacuteblico

Durante a realizaccedilatildeo do trabalho assumimos os desafios de ler textos em liacutengua italiana e de individuar entre o abundante conteuacutedo pesquisado qual responderia melhor ao tema Natildeo foi faacutecil descartarmos tantos conceitos e tentarmos nos ater ao tema com poucas paacuteginas

No desenvolvimento do assunto vimos que a vocaccedilatildeo eacute um ato dinacircmico um procedimento gradual uma histoacuteria de amor um relaciona-mento profundo com Deus por meio do Filho no Espiacuterito Santo e que por isso requer entrar na intimidade com Deus estar a soacutes na escola do Mestre pois a vocaccedilatildeo como ato de chamar conta com o envolvimento de dois sujeitos Deus que chama e o homem que responde

A iniciativa eacute sempre de Deus que chama para uma missatildeo especiacutefica na comunidade eclesial de onde nasce e cresce a mesma Deus se manifesta por intermeacutedio dos acontecimentos do mundo e da histoacuteria pessoal Ele precisa da nossa resposta concreta generosa e sem condicionamentos para continuar Sua obra da salvaccedilatildeo hoje

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

159

Referecircncias Bibliograacuteficas

ALBERTO Cosegrave la vocazione Cosa non egrave httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa -non-ehtml Acesso 29052015

BENTO XVI A primeira mensagem vocacional httpwwwportalcatolicoorgbrportala-primeira-mensagem-vocacio nal-de-bento-xvi Acesso em 040452015

BIacuteBLIA SAGRADA EDICcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA Petroacutepolis Vozes 2005

CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997

CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 2004

CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006

DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992

GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998

II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Voca-cional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982

JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996

JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iipt messagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes_29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em 29102015

MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro testado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001

OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996)

PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus 1999

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

160

PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991

POLI Gianfranco La cultura della vocazione tra vocazione e domanda di senso In BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teoloacutegica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010

RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000

RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001

VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 1999

Ir Graccedila Disingakala Nunes Aluna do Curso de Especializaccedilatildeo para qualificaccedilatildeo de formadores

na Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Artigo escrito sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

161

A EacuteTICA POLIacuteTICA EM MAQUIAVEL

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

Resumo

Na obra maquiaveliana encontra-se uma nova concepccedilatildeo da poliacutetica que se distancia das concepccedilotildees claacutessica patriacutestica e escolaacutestica Suas fontes satildeo as praticas poliacuteticas contemporacircneas e os escritos do historiador Tito Liacutevio O objetivo do seu estudo eacute uma Itaacutelia unida Nesta nova abordagem ganha interesse e destaque a relaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica assunto tratado especialmente na obra O Priacutencipe

Palavras-chave Renascimento Itaacutelia Maquiavel Eacutetica Poliacutetica

Abstract In the Machiavellian work we find is a new conception of politics which moves away from the classical patristic and scholastic conceptions His sources are contemporary political practices and the writings of the historian Titus Livius The purpose of his study is a united Italy In this new vision great interest and highlight are given to the relationship between ethics and politics specially treated in the work De Principe

Keywords Renaissance Italy Machiavelli Ethics Politics

1 Introduccedilatildeo

Satildeo conhecidos o vigor e a profundidade do pensamento do filoacutesofo poliacutetico Maquiavel1 Entre as suas obras que satildeo muacuteltiplas e de variados

1 Niccoloacute di Bernardo del Machiaveli nasceu na cidade de Florenccedila no dia 3 de maio de 1469 Sua vida desenvolveu sob o signo da poliacutetica a que dedicou tanto no campo teoacuterico como no praacutetico todos os seus esforccedilos materiais e intelectuais A poliacutetica como ele confessa estava no seu sangue Desde cedo Maquiavel foi incentivado por seu pai a se dedicar aacute leitura dos autores da Antiguidade Claacutessica como Virgiacutelio e Tito Liacutevio Sua juventude foi marcada pelos acontecimentos turbulentos da sua cidade natal que fazia parte de uma Itaacutelia assolada e perturbada por disputas poliacuteticas natildeo somente de acircmbito local como tambeacutem de forccedilas estrangeiras como Franccedila e Espanha que se aproveitaram das lutas internas da Peniacutensula Apeninica e da cidade de Florenccedila para sobretudo aumen-tarem a sua influecircncia Conta-se que Maquiavel aos nove anos assistiu ao assasinato de Juliano de Meacutedici e ao ferimento de Lourenccedilo de Meacutedici O ano de 1498 que viu a execuccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

162

gecircneros a De Principe eacute de longe a mais conhecida e analisada2 As outras de cunho poliacutetico natildeo deixam se ter interesse e importacircncia mas natildeo desenvolvem com a mesma clareza e pujanccedila o nuacutecleo do seu pensamento poliacutetico de modo especial o seu carter moral e eacutetico

O estudo ora expresso intenta com suporte nessa obra e preferen-cialmente nela comentar e descrever a eacutetica poliacutetica maquiaveliana que significa uma reviravolta em comparaccedilatildeo com a ideia natildeo somente a claacutessica mas tambeacutem cristatilde que quase sem exceccedilatildeo ateacute agrave eacutepoca da Baixa Idade Meacutedia se baseia quase exclusivamente no pensamento bem ou mal interpretado de SantrsquoAgostinho

2 As fontes da formaccedilatildeo de Maquiavel como pensador poliacutetico

Ao ler e refletir o pensamento poliacutetico de Maquiavel saltam aos olhos natildeo somente o seu profundo conhecimento a respeito da histoacuteria da Itaacutelia especificamente quando da eacutepoca do Impeacuterio Romano como tambeacutem os vestiacutegios de uma profiacutecua e intensa atividade diplomaacutetica Neste aspecto destacou-se por intermeacutedio de missotildees diplomaacuteticas vitoriosas ndash umas mais outras menos importantes - em vaacuterios estados da Peniacutensula Italiana inclusive em centros de poder nacional de grande envergadura tais como a Franccedila e a Alemanha

21 A atividade diplomaacutetica de Maquiavel

Logo apoacutes o dantesco e triste espetaacuteculo do julgamento da conde-naccedilatildeo e da execuccedilatildeo na fogueira do profeacutetico Jerocircnimo Savanarola na Praccedila da Senhoria reinstala-se em Florenccedila a Repuacuteblica Livre para alguns

de Savanarola pode ser considerado como a entrada de Maquiavel na poliacutetica sendo ele chamado a exercer o cargo de secretaacuterio da Segunda Chancelaria da Repuacuteblica de Florenccedila Em seguida ele se tornou um dos principais auxiliares do gonfaloniero vitaliacutecio Piero Soderini sendo encarregado dos assuntos diplomaacuteticos Quando Soderini caiu Maquiavel perdeu o cargo destituiacutedo pelos novos donos do poder ateacute a sua anistia concedida pelo Papa Leatildeo X da famiacutelia dos Meacutedicis Maquiavel esforccedilou-se ao maacuteximo para cair nas graccedilas dos Meacutedicis Quando estes caiacuteram e a Repuacuteblica foi reinstalada em Florenccedila Maquiavel visto com desconfianccedila retirou-se da vida publica Morreu no dia 21 de junho de 1527 2 Pode-se dividir a obra de Maquiavel em trecircs grandes setores que facilitam e ajudam na sua vasta atividade literaacuteria 1- Correspondecircncia tanto particular como oficial 2- obras literaacuterias poesia (eg) a famosa obra inacabada o Asno de Ouro) prosa (Discurso Moral que exorta a penitecircncia) teatro e novelas (vg Mandraacutegora em que se expotildee a degradaccedilatildeo moral e religiosa e se afirma a corrupccedilatildeo como inerente aacute natureza humana) 3- obras poliacutetico-histoacutericas (eo Discurso sobre a primeira deacutecada de Tito Livio)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

163

uma dinastia camuflada Suprime-se a teocracia e retoma-se o regime aristocraacutetico Foi aiacute em 1498 que Maquiavel com quase 30 anos de idade foi sorteado para exercer o cargo de secretaacuterio da 2ordf Chancelaria do Estado Livre da Repuacuteblica de Florenccedila E logo depois passou a realizar tambeacutem tarefas para a comissatildeo dos Dez do Poder ou Dez da Guerra

Como chanceler Maquiavel realizou a primeira legaccedilatildeo junto agrave Duquesa de Imola e Forli onde renegociou o soldo pago pelo Governo Florentino ao ldquocondottiererdquo3 Otaviano Florenccedila contratara o filho da Duquesa por 15 mil ducados soma considerada exorbitante por Florenccedila Maquiavel teve ecircxito conseguiu reduzir o soldo como tambeacutem recebeu auxiacutelio militar da duquesa - na forma de tropas de soldados e artilharia ndash de grande valor na ocupaccedilatildeo de Pisa4 Desde entatildeo o Diplomata Florentino comeccedilou a ser considerado e tratado como um haacutebil conciliador Entusiasmado com o prestiacutegio e a experiecircncia adquiridos escreveu o primeiro texto poliacutetico Discorso fatto a Magistrato dei Dieci sopra le cose de Pisa

Nuvens negras e sombrias no entanto continuaram a se espalhar e ameaccedilaram empanar o brilho do cenaacuterio poliacutetico florentino Segundo relato5 Pisa rebelara-se mais uma vez cortando o acesso de Florenccedila ao mar pelo rio Arno O rei Luis XII de Franccedila concordara em apoiar Florenccedila na guerra contra Pisa As tropas mercenaacuterias que o Monarca enviara no entanto natildeo cumpriram bem o seu papel acarretando seacuterios problemas ao Estado de Florenccedila Aqui estava uma delicada situaccedilatildeo expor tal reclamaccedilatildeo ao Governo Francecircs e declinar a sua oferta sem ferir a honra do rei Os representantes Maquiavel e Francisco della Casa foram enviados agrave Franccedila para a cidade de Nevers Com muita maestria os dois diplomatas resolveram a difiacutecil tarefa O perigo passou e embora Florenccedila natildeo tenha recuperado Pisa continua com a sua independecircncia

Maquiavel foi ainda encarregado de vaacuterias outras missotildees diplo-maacuteticas junto agrave Franccedila Conveacutem lembrar que Luis XII rei de Franccedila tinha como aliado o Papa Alexandre VI cujo filho se chamava Ceacutesar Boacutergia conforme a opiniatildeo de alguns um ldquocondottiererdquo de muita bravura poliacutetico

3 ldquoCondottiererdquo era ndash na histoacuteria da Itaacutelia ndash chamada o senhor feudal que tinha sob o seu absoluto controle uma miliacutecia que ele podia colocar agrave disposiccedilatildeo de quem o quisesse ou pagasse mais Era entatildeo uma espeacutecie de capitatildeo de soldados mercenaacuterios Assume tambeacutem o sentido de aventureiro 4 Florenccedila e Pisa alternaram periacuteodos de amizade com tempos em que a inimizade explodia em conflitos seacuterios muitas vezes armados 5Cf LARIVAILLE PAUL A Itaacutelia no tempo de Maquiavel Op Cit pg 75-79

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

164

de excelente habilidade mas por outro lado extremamente cruel6 Com a dupla proteccedilatildeo de seu pai e das armas francesas Ceacutesar Boacutergia vinha desempenhando uma accedilatildeo militar avassaladora sobre as possessotildees italianas

No que concerne agrave situaccedilatildeo alarmante de Florenccedila ante o turbulento protegido de Luis XII eacute esclarecedora a descriccedilatildeo desses acontecimentos expressos por JF Duvernoy

Florenccedila tem medo ela se entrega ela cuja doutrina consiste em fugir da submissatildeo de um senhor de um gonfaloneiro vitaliacutecio Eacute verdade que ela o escolheu ldquodemocratardquo na pessoa de Piero Soderini Envia Maquiavel para junto de Ceacutesar Boacutergia para observaacute-lo medir suas forccedilas e seus apetites Ele de fato observa vecirc em Sinigalia como Ceacutesar reprimiu num soacute golpe todos os seus antigos aliados Ele traz de sua missatildeo algo de muito confuso uma vontade indomaacutevel de trabalhar para natildeo ser conquistado e uma admiraccedilatildeo pela poliacutetica de alto vocirco que ele viu em accedilatildeordquo7

Em 1503 o perigo iminente cessou com a morte do Papa Alexandre VI e com a derrota de Ceacutesar Boacutergia Gravemente enfermo e sem apoio nada mais restou ao valoroso Duque de Valentinois senatildeo capitular Conta-se que morreu na Espanha como ldquocondottiererdquo mediacuteocre

A Repuacuteblica de Florenccedila procurou entatildeo evitar cair sob a autori-dade do novo Pontiacutefice Juacutelio II della Rovere o qual pretendia colocar sob a jurisdiccedilatildeo da Santa Seacute todas as antigas cidades regiotildees e possessotildees que antes pertenciam ao Ducado de Valentinois Imediatamente a desas-sossegada Senhoria envia Maquiavel para prestar ao Papa serviccedilos de chancelaria Durante a segunda legaccedilatildeo a Juacutelio II Maquiavel pocircde avaliar de perto o poder temporal do Sumo Pontiacutefice aleacutem de fortemente tomar consciecircncia de como o sentimento religioso ainda se encontrava arraigado no espiacuterito dos homens Essas duas realidades levam-no ao convencimento que ele descreve no seu livro O Priacutencipe

[] os principados eclesiaacutesticos [] satildeo mantidos pela grande antiguidade que existe nas instituiccedilotildees da religiatildeo as quais satildeo tatildeo poderosas e de tal

6 Cf por exemplo Dicionario da Idade Meacutedia organizado por Henry R Lyon Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990 pg 56 [] Era totalmente inescrupuloso a fim de proteger suas fronteiras setentrionais assassinou o marido de sua irmatilde Lucreacutecia e casou-a com o futuro duque de Ferrara 7 DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores 1984 pg 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

165

natureza que seus priacutencipes permanecem no lugar de qualquer maneira que eles se comportam e que vivam8

De fato as tropas mercenaacuterias quando se batiam contra o Papa embora dispusessem de poderio beacutelico suficiente para vencecirc-lo rendiam-se facilmente preferindo assim reverenciar o Chefe da Igreja

A tempestade poliacutetica se avolumava sobre a Itaacutelia ameaccedilando o equiliacutebrio do poder Em Florenccedila a ameaccedila provinha de dois poderosos vizinhos de um lado o Papado do outro o Santo Impeacuterio Maquiavel tendo agora seus dotes conciliadores reconhecidos foi enviado agrave Alemanha e conseguiu perante o Imperador Maximiano I defender a neutralidade de Florenccedila no conflito contra Veneza

Em 1510 poreacutem a Igreja Veneza e a Espanha declaram guerra ao Governo Francecircs Havia muito tempo a Franccedila ocupava o lugar de tradi-cional aliada de Florenccedila Portanto Maquiavel em uma de suas uacuteltimas missotildees diplomaacuteticas conseguiu com muita habilidade e perspicaacutecia que mais uma vez Florenccedila ficasse neutra ou seja liberada de participar daquele conflito

Por natildeo ter apoiado todavia a Igreja na guerra contra a Franccedila o Governo Florentino se viu em maus lenccediloacuteis Em 1512 Florenccedila foi saqueada pelas tropas imperiais de Ferdinando II O Papa destituiu o liacuteder Soderini e a famiacutelia poderosa dos Meacutedicis retornou ao poder Era o fim das instituiccedilotildees democraacuteticas da Repuacuteblica Livre de Florenccedila

Aquele ano assinala igualmente o capiacutetulo final da carreira poliacutetica de Maquiavel Durante os 15 anos do exiacutelio no reinado dos Meacutedicis vive na sua propriedade interiorana trabalhando duro sem se queixar nem se lastimar porque tinha prazer de trabalhar em favor de sua querida e estimada Florenccedila Quando jaacute em desgraccedila escreveu no dia 10 de outubro de 1513 uma carta dirigida a seu amigo Francesco Vettori em que afirma ldquoforam quinze anos dedicados a cultivar a Arte do Estado em que natildeo dormi nem tive folgardquo9

Os autores em grande parte consideram Maquiavel como um excelente diplomata trabalhando sempre com muito empenho lealdade e dedicaccedilatildeo Suas cartas escritas na cidade francesa de Blois quando efetuava suas uacuteltimas atividades de diplomacia na Franccedila constituem documentos 8 MAQUIAVEL Niccolo O Priacutencipe cap XI 9 MAQUIAVELLI N Tutte Le Opere Firenze Sansoni 1992 Citado em RODRIGO Lidia Maria Maquiavel op cit p 23

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

166

que comprovam definitivamente a habilidade poliacutetica do Pensador Floren-tino que atinge alguns momentos insuperaacuteveis Acrescenta-se ainda que no bloqueio rigoroso de Pisa o papel de comissaacuterio desempenhado por Maquiavel foi determinante na retomada dessa cidade

A importacircncia da atividade diplomaacutetica na formaccedilatildeo do pensa-mento poliacutetico de Maquiavel eacute assim analisada por Bronowski e Mazlish

o seu posto natildeo lhe desse grande poder na definiccedilatildeo da poliacutetica deu-lhe uma visatildeo directa do processo poliacutetico das cidades-estado italianas E como esses processos poliacuteticos variavam desde a oligarquia em Veneza agrave monarquia em Naacutepoles e agrave democracia em Florenccedila forneciam uma verdadeira escola de poliacutetica para um observador atento10

Foi nessa atividade diplomaacutetica que Maquiavel chegou agrave conclusatildeo de que o mais importante na poliacutetica eacute

[] o Estado natildeo aquele imaginaacuterio e que nunca existiu mas aquele que eacute capaz de impor a ordem O ponto de partida e da chegada eacute a realidade corrente ndash por isto a ecircnfase na veritagrave effetuale ndash ou seja ver e examinar a realidade como ela eacute e natildeo como se gostaria que fosse11

Isto se aplica agrave imagem que Maquiavel formou dos priacutencipes nos seus contatos diretos com os detentores do poder durante tantos anos o descobriu que

[] o priacutencipe que os humanistas do Renascimento apresentavam como modelo aos governantes natildeo passava de uma construccedilatildeo do espiacuterito de uma formulaccedilatildeo abstrata e ideal desvinculada de qualquer possibilidade e em contraste chocante com a realidade crua e aacutespera da eacutepoca quinhentista O priacutencipe ideal do humanismo era o siacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilotildees religiosas cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudente ndash compendio enfim de todas as perfeiccedilotildees fiacutesicas intelectuais e morais 12

Assim surge um personagem viril audaz destemido cuja maacutexima mais importante era ater-se aacute verdade efetiva das coisas sem ficar pensando em repuacuteblicas e monarquias imaginaacuterias com seus princiacutepios inspirados por altos ideais longe da realidade concreta da poliacutetica praticada naqueles dias ndash e em tempos anteriores

10 BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 pg 47 11 Disponiacutevel em www palmirarjnet Acesso em 25-10-2010 12 ESCOREL Lauro O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades Cadernos da UnB Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 pg 18

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

167

2 2 O estudo da histoacuteria

Como Maquiavel se inspirou na histoacuteria encontrando nela valiosas pistas para a accedilatildeo poliacutetica manifesta-se sobretudo na sua obra Discursos sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio A obra caracteriza-se como um diaacutelogo com o historiador Tito Liacutevio que viveu de 58 aC ateacute 12 dC o turbu-lento periacuteodo que acusa o fim da era da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Romano13 Uma das propriedades desta grandiosa obra foi entre outras o enfoque da histoacuteria sob o ponto de vista da moral ao fazer com que Maquiavel apontasse a Repuacuteblica Romana como um verdadeiro modelo de sociedade cuja virtugrave deveria servir como exemplo para os seus contem-poracircneos

Os Discorsi satildeo uma elaboraccedilatildeo ideal uma obra de educaccedilatildeo poliacutetica uma sistematizaccedilatildeo mais refletida uma projeccedilatildeo na histoacuteria passada e futura das liccedilotildees ldquodas coisas do mundordquo Eacute uma procura das razotildees que explicam o nascimento a prosperidade e a decadecircncia das naccedilotildees com o intuito de descobrir ndash no exemplo eminente da Roma Claacutessica ndash qual o segredo da forccedila e da estabilidade dos Estados Os Discorsi satildeo compostos de trecircs livros

1o Livro trata dos modos pelos quais se fundam os Estados e da organizaccedilatildeo e modalidades de Governo

2o Livro examina os processos de engrandecimento dos Estados e de conquista de novos Estados

3o Livro tece consideraccedilotildees sobre o crescimento e a decadecircncia dos Estados e seus modos de transformaccedilatildeo e uma anaacutelise da natureza das conjuraccedilotildees que ameaccedilam os detentores do poder

Tudo o que Maquiavel exprime nestes livros eacute inspirado pela ideia que se tornou para ele um axioma de que a imitaccedilatildeo da histoacuteria antiga e de modo peculiar a da Repuacuteblica Romana constitui a fonte por excelecircncia da sabedoria poliacutetica Sob tal perspectiva vaacutelida antes de tudo para a Peniacutensula Italiana ndash outrora sede do nuacutecleo do Impeacuterio Romano ndash o que ocorrera no passado tendia inevitavelmente a se repetir no presente e no futuro Assim sendo o estudo da histoacuteria impunha-se quase como uma condiccedilatildeo sine qua non para a formulaccedilatildeo da teoria do Estado e da descriccedilatildeo das qualidades dos priacutencipes

13 Tito Liacutevio escreveu a monumental obra Ab Urbe Condita ndash a partir da Fundaccedilatildeo da Cidade constando de 142 livros do quais 35 chegaram ateacute noacutes entre eles os dez primeiros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

168

Curiosamente nessa obra Maquiavel exprime uma altamente positiva apreciaccedilatildeo da Repuacuteblica vista por ele como mais apta e equili-brada a tomar decisotildees e realizar o bem comum Ao lado dela - e aqui jaacute se veem as linhas de O Priacutencipe ndash Maquiavel destaca a Monarquia como a melhor forma de se conseguir a formaccedilatildeo do Estado na Peniacutensula da Itaacutelia Concluindo o mesmo raciociacutenio rejeita a tirania e a oligarquia de que eacute afirmado que se trata de uma relaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude Para Maquiavel poreacutem tanto as boas como as maacutes formas de governo teratildeo pouca duraccedilatildeo e por isso defende a maneira mista opiniatildeo que se reflete na descriccedilatildeo dos tipos de principados (Estados) no O Priacutencipe e na postura exigida dos priacutencipes

Resumindo pode-se afirmar que em decorrecircncia da leitura de autores claacutessicos como Tito Liacutevio e Poliacutebio14 aleacutem da recente histoacuteria e da vasta experiecircncia junto a poliacuteticos de sua eacutepoca Maquiavel chega aacute seguinte conclusatildeo O priacutencipe (irreal) estaacute longe de como se vive e de como se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da proacutepria ruiacutena do que de sua conservaccedilatildeo porque um homem que queira em todo lugar parecer bom atrai ruiacutena entre tantos que natildeo satildeo bons15

3 O Priacutencipe

31 Introduccedilatildeo

O Priacutencipe incontestavelmente a obra mais conhecida de Maquiavel foi publicada no ano de 1532 e eacute portanto poacutestuma Antes de sua publicaccedilatildeo impressa jaacute circularam algumas coacutepias manuscritas que natildeo tinham causado nenhum escacircndalo Pelo contraacuterio Maquiavel ficou desapontado pela frieza de Lourenccedilo de Meacutedici em relaccedilatildeo a sua obra que lhe foi dedicada Outro fator que causa certa espeacutecie foi o fato de que na eacutepoca natildeo foi negada agrave obra a licenccedila de imprimiacute-la o assim chamado ldquoimprimaturrdquo Parece que a postergaccedilatildeo da impressatildeo decorre das circunstacircncias poliacuteticas de 1513 ndash 1527 eacutepoca em que Maquiavel vivia isolado no seu exiacutelio Aleacutem disso acredita-se que ele queria reservar a publicaccedilatildeo da obra para uma conjuntura mais propiacutecia no intuito de

14 Historiador nascido na Greacutecia Antiga viveu de 203 aC ateacute 120 a C tomando na sua juventude parte ativa na luta dos gregos contra os romanos Feito prisioneiro foi levado para Roma ficando nesta cidade 17 anos como refeacutem Depois do seu retorno auml Greacutecia voltou algumas vezes a Roma e dedicou-se agrave histoacuteria dos acontecimentos ocorridos durante a sua vida procurando aleacutem do rigor cientiacutefico a valorizaccedilatildeo dos testemunhos de seus contemporacircneos Cf Biografia y Vidascombiografiaenlinea acesso em 10022011 15 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe cap XV-XVII

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

169

produzir um efeito maior Soacute mais tarde o cardeal Reginald Pole 1500-1588 constatando a ldquomaleacutefica influecircnciardquo16 da obra sobre Oliver Cromwell denunciou Maquiavel como um espiacuterito satacircnico defensor do despotismo e justificador de todas as arbitrariedades e violecircncias

Ademais a obra e seu autor enfrentaram a oposiccedilatildeo dos Jesuiacutetas que aleacutem de queimarem a efiacutegie de Maquiavel em Ingolstat em 1559 convenceram o papa Paulo IV a colocar o livro no Index por decreto o que foi confirmado pelo Concilio Tridentino em 1564 A oposiccedilatildeo ao escrito do Maquiavel entretanto natildeo foi proveniente apenas dos catoacutelicos pois tambeacutem os calvinistas como por exemplo Inocecircncio Gentillet que em 1576 publicou Contre Nicolas florentin

[] em que natildeo soacute qualificou o escritor de puant atheacuteiste mas tambeacutem denunciou suas doutrinas como instigadoras da ldquoNoite de Satildeo Bartolomeurdquo acusando-as de haver insuflado no espiacuterito de Catarina de Meacutedici a ideacuteia do massacre e de haver introduzido meacutetodos alieniacutegenas isto eacute italianos na poliacutetica francesa17

Embora importante no conjunto de seus escritos a obra de Maquiavel e sua filosofia poliacutetica natildeo se restringem soacute ao Priacutencipe devendo ser esse escrito visto no contexto de sua obra Com isto entretanto natildeo se pode nem se deve negar o lugar central que este livro ocupa no conjunto da obra maquiaveliana e eacute esta a razatildeo por que neste trabalho dedicado agrave anaacutelise da moral em Maquiavel e de modo especial no O Priacutencipe se lhe dedica um estudo especial

32 A Gecircnese de O Priacutencipe

Segundo Vilari18 deve-se buscar o conceito de O Priacutencipe no papa Leatildeo X 1513-1521 que lanccedilou a ideia de fundar um outro Estado abrangendo Parma Modena Urbino e Ferrara entregando o seu governo a Juliano de Meacutedici Desta forma realizar-se-ia o grande sonho de Maquiavel de um grande Estado monaacuterquico italiano superando a sua divisatildeo em inuacutemeros estados pequenos com um poder central suficiente tanto para unificaacute-la como para mantecirc-la unificada

16 ESCOREL Lauro O pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades VII Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1984 nordm 8 pg 18-52 17 ESCOREL Lauro op cit p 19 18 VILARI P Niccolograve Macchiavelli e i suoi tempi 3 vls Firenze 1877 p 294 vol II citado em ESCOREL Lauro op cit p 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

170

Maquiavel entusiasta defensor dessa ideia se distancia dela quanto agrave sua realizaccedilatildeo concreta como um poder monaacuterquico central e absoluto baseado nos ideais da tradiccedilatildeo cristatilde e se opotildee contra o priacutencipe ideal renascentista ldquosiacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilatildeo religiosa cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudenterdquo19 Pelo contraacuterio o priacutencipe com o qual Maquiavel sonha eacute um teacutecnico poliacutetico realista plasmado nos moldes do passado sobretudo da antiga Repuacuteblica Romana nos seus melhores dias de gloacuteria

[] para o qual o importante era ater-se agrave veritaacute effetuale delle cose [] O priacutencipe maquiaveacutelico natildeo emerge do pensamento do seu autor aureolado pelas virtudes da eacutetica tradicional como produto de uma elaboraccedilatildeo mental utoacutepica [] Plasma-o ao contraacuterio indutivamente com base nos dados de sua experiecircncia e inspirado nos exemplos da Antiguidade Claacutessica investindo-o de uma loacutegica inexoraacutevel para a consecuccedilatildeo de seu objetivo supremo a conquista e a preservaccedilatildeo do poder poliacutetico absoluto 20

Eacute nesta inspiraccedilatildeo que residem a grandiosidade e o gecircnio de Maquiavel que o fizeram descobrir e penetrar a essecircncia da accedilatildeo poliacutetica do homem revelando as leis proacuteprias e analisando dividindo e avaliando friamente a forccedila das paixotildees humanas Foi sob esse prisma que o seu livro auferiu validade permanente

33 A Estrutura do livro21

O livro que consta de 26 capiacutetulos comeccedila com uma carta dedicatoacuteria ao magniacutefico Lorenzo filho de Piero de Meacutedici neto de Lorenzo o Magniacutefico (1449-1492) Originalmente o livro seria dedicado a outro membro da famiacutelia Meacutedici Giuliano filho de Lorenzo mas este morreu em 1516

Do primeiro ao deacutecimo capiacutetulo eacute procedida agrave discriminaccedilatildeo dos vaacuterios tipos de principados Aleacutem disso Maquiavel desenvolveu as caracteriacutesticas e qualidades dos mencionados principados Central estaacute o problema da conquista do poder em geral e especialmente no

19 ESCOREL Lauro op cit p 23 20 ESCOREL Lauro op cit p 23 21 Cf Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Grupo de Estudos de Filosofia ndash GEFIL Aula I BATISTA Flaacutevio Donizete http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 15 de agosto de 2010 BATH Sergio A praacutetica poliacutetica segundo Nicolau Maquiavel Satildeo Paulo Aacutetica 2009 CHEVALLIER J J As grandes obras poliacuteticas de Maquiavel a nossos dias Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 pg 17-48

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

171

principado novo Tudo eacute visto sob a grande perspectiva da unificaccedilatildeo da Itaacutelia que deve ser fundada nas conquistas e na virtugrave do governante

Do deacutecimo ao deacutecimo quinto capiacutetulo preocupa-se em argumentar e mostrar que a base de qualquer Estado estaacute na sua autarquia militar Trata de maneira especial no capiacutetulo 11 dos Estados eclesiaacutesticos e como chegaram ao poder que ostentam

A parte principal da obra eacute formada pelos capiacutetulos deacutecimo quinto ateacute o vigeacutesimo sexto Aqui se trata do exame do problema do governo de um povo como um priacutencipe deve conduzir-se com os seus suacuteditos e seus aliados Quanto agrave imagem do priacutencipe formulada por Maquiavel merecem destaque especial os quatro conceitos por ele considerados fundamentais virtugrave ocasiatildeo fortuna e necessidade Por todos os capiacutetulos especialmente a partir do deacutecimo nono encontramos Maquiavel insiste na necessidade da reformulaccedilatildeo da imagem tradicional do priacutencipe acentuando a obrigaccedilatildeo de ele sempre se esforccedilar para ter o povo ao seu lado porque sem o apoio do povo o priacutencipe natildeo resistiraacute agraves dificuldades que sobreviratildeo

Do capiacutetulo 23 ateacute o 25 Maquiavel constatando porque os priacutencipes italianos perderam seus Estados afirma o poder da vontade humana de domar e vencer a proacutepria fortuna pela razatildeo e pela virtude

O uacuteltimo capiacutetulo ndash o 26 - eacute uma eloquente exortaccedilatildeo agrave redenccedilatildeo e libertaccedilatildeo da Itaacutelia do domiacutenio das potecircncias estrangeiras ndash Franccedila Espanha e o Impeacuterio Alematildeo ndash e consiste num convite ao priacutencipe de ser audaz e feroz a fim de alcanccedilar ecircxito Termina com as belas palavras de Petrarca

Virtugrave contro a furore Prenderaacute lrsquoarmi e fia el combatter corto Che lrsquoantico valore Nellrsquoitalici cor non egrave ancor morto22

4 Moral e Eacutetica na poliacutetica de Maquiavel

Agrave primeira vista pode parecer fora de propoacutesito falar de Moral E Eacutetica em Maquiavel Para muitos autores e sobretudo para muitas pessoas no seu dia a dia os dois conceitos significam a mesma coisa e dizem 22 O valor tomaraacute armas contra o furor e que seja curto o combate pois a coragem antiga ainda natildeo morreu no coraccedilatildeo dos italianos PETRARCA Francesco Rime Esparse (sem maiores referecircncias) em O Priacutencipe comentado por Napoleatildeo Bonaparte MAQUIAVEL texto integral Traduccedilatildeo NASSETTI Pietro Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

172

respeito ao comportamento humano Por que e para que entatildeo fazer uma distinccedilatildeo Leonardo Boff no seu livro Ethos Mundial diz o seguinte

[] precisamos voltar ao sentido originaacuterio da eacutetica e da moralidade Todas as morais por mais diversas nascem de um transfundo comum que eacute a eacutetica Eacutetica somente existe no singular pois pertence aacute natureza humana presente em cada pessoa enquanto moral estaacute sempre no plural porque satildeo distintas formas de expressatildeo cultural e histoacuterica da eacutetica 23

Um olhar sobre o sentido original da palavra eacutetica pode esclarecer o seu rico e profundo sentido proacuteprio Na sua liacutengua de origem a grega eacutetica vem de ethos que tem duas grafias com letra e pequena ou grande e conforme o tamanho muda o sentido Ethos com letra pequena indica a morada abrigo permanente tanto dos animais como dos humanos Ela tem que ser construiacuteda pela atividade humana e por isso deve ser sempre reformada melhorada e aperfeiccediloada Assim pode-se dizer que a eacutetica tem por fim morar bem e para isto constituir objetivos fundamentais e valores e princiacutepios que norteiam a accedilatildeo humana Para os antigos entatildeo a eacutetica estaacute ligada ao bem ou aacute felicidade que devem ser perseguidos por meios que levem a esta bondade e felicidade Estes meios eram tambeacutem chamados de ethos mas com e grande e significam os costumes ou ldquoo conjunto de valores e de haacutebitos consagrados pela tradiccedilatildeo cultural de um povordquo24

Ao dizer-se que algueacutem natildeo tem eacutetica significa a ausecircncia nesta pessoa de princiacutepios norteadores para sua accedilatildeo que se desenvolve pois de acordo com as vantagens que possa conseguir e consequentemente coerecircncia e princiacutepios fazem falta na sua vida Por outro lado quando se garante que algueacutem natildeo possui moral indica-se que esta pessoa natildeo possui virtudes que a ajudem a ldquoconstruir sua moradardquo sua felicidade e age erradamente mentindo roubando explorando

Resumindo

[] moral eacute o conjunto de haacutebitos e costumes efetivamente vivenciados por um grupo humano Nas culturas dos grupos humanos estatildeo presentes haacutebitos e costumes considerados vaacutelidos porque bons bons porque justos justos porque contribuem para a realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

[] eacutetica eacute a reflexatildeo sobre a accedilatildeo humana para extrair dela o conjunto excelente de accedilotildees Eacute uma ciecircncia que tem por objeto a moral e a lei e pretende aprimorar

23 BOFF Leonardo Ethos Mundial Um consenso miacutenimo entre os humanos SI Letraviva Editorial Ltda 2000 pg 34 24 BOFF Leonardo op cit pg 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

173

as ldquoatividades realizadoras de sirdquo desenvolvidas pelos indiviacuteduos em busca do excelente25

41 A Eacutetica maquiaveliana

Com a difusatildeo do livro O Priacutencipe as ideacuteias de Nicolau Maquiavel se tornaram conhecidas mas tambeacutem quase de imediato foram atingidas por uma forte onda de severas criacuteticas A obra que pode ser considerada como a principal de Maquiavel foi qualificada de imoral e sem eacutetica Qual a razatildeo de tatildeo severo juiacutezo Ricardo Rodrigues responde a esta indagaccedilatildeo quando esclarece

[] Maquiavel simplesmente documentou verdades jaacute conhecidas pelos homens embora natildeo admitidas Tudo o que fez foi construir uma teoria poliacutetica a partir da combinaccedilatildeo de experiecircncia concreta no trato da coisa puacuteblica com a observaccedilatildeo aguda do processo poliacutetico aliada ainda ao estudo da histoacuteria26

Em verdade Maquiavel faz uma anaacutelise nua e crua da praacutetica poliacutetica do seu tempo como realmente era e natildeo como deveria ser Em primeira instacircncia estaacute o realismo poliacutetico por ele descrito como sendo a uacutenica maneira de algueacutem se tornar vitorioso no jogo pelo poder Este realismo poliacutetico que natildeo raro desprezava a moral vigente e a eacutetica tradicional feria em muitos aspectos os padrotildees escolaacutesticos da eacutepoca baseados nos estudos teoloacutegicos agostinianos e tomistas Esses estudos denotaram ideias que deveriam conduzir a accedilatildeo poliacutetica em vista da construccedilatildeo de uma sociedade baseada em princiacutepios cristatildeos conduzindo desta forma agrave construccedilatildeo da Cidade Justa ou de Deus sobre a terra27 defendendo neste sentido a consecuccedilatildeo do Bem Comum entendido em sentido cristatildeo Em outras palavras haacute um ideal a ser atingido e a eacutetica igual agrave praacutetica moral consequecircncia dela eacute julgada agrave luz deste ideaacuterio Esta posiccedilatildeo defendida embora com algumas pequenas diferenccedilas pelo pensamento da Igreja Catoacutelica de entatildeo tambeacutem se encontrava na visatildeo

25 DOS SANTOS Antonio Raimundo Eacutetica Caminhos da realizaccedilatildeo humana 4 ed Satildeo Paulo Editora Ave Maria 2004 pg 11 e 15 26 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Simposion Unicap no 2 1986 pg 44 27 Cf a grande corrente teoloacutegica que tem em Santo Agostinho o eu grande defensor e propagador especialmente na sua obra De Civitate Dei ndash (Sobre a Cidade de Deus ) que ateacute o seacuteculo XII-XIII foi a inspiraccedilatildeo maior para o ideal poliacutetico da Idade Meacutedia muitas vezes apresentada como o ideal da assim chamada Cristandade Santo Tomaacutes de Aquino natildeo negando a influecircncia agostiniana recebe grande aporte das ideias aristoteacutelicas como resta claro natildeo somente no seu pequeno tratado De Regno mas tambeacutem no extenso e inacabado comentaacuterio sobre a Poliacutetica e a Eacutetica do Nicocircmaco de Aristoacuteteles

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

174

filosoacutefica da poliacutetica baseada na teoria platocircnica com a sua cidade ideal regida pela justiccedila e aristoteacutelica em que o ideal da felicidade estaacute central o que foi intensamente estudado pelos saacutebios da eacutepoca Em outras palavras existem conceitos ideias de bem e de mal que servem como paradigma para a accedilatildeo humana uma ideia a que a accedilatildeo humana deve obedecer ou a qual se adaptar Satildeo os assim chamados valores eternos que transcendem tempo e lugar isto eacute possuem validade universal

Como consequumlecircncia da anaacutelise e descriccedilatildeo da poliacutetica de acordo com as ideacuteias de Maquiavel surge o assim chamado maquiavelismo teoria que procura ligar as ideias do Pensador de Florenccedila a procedimentos nocivos que lembram perfiacutedia astuacutecia crueldade e traiccedilatildeo E o que eacute pior para alguns estas expressotildees pejorativas continuam sobrevivendo no tempo e no espaccedilo e proliferam ainda hoje tanto na esfera poliacutetica como nas desavenccedilas do cotidiano

Eacute bem verdade que no acervo de qualidades do bom governante aceito por Maquiavel constavam a fraude e a mentira a dissimulaccedilatildeo e ateacute mesmo a crueldade 28 Isto natildeo significa todavia que Maquiavel defen-desse ou aconselhasse um estado turbulento de constantes lutas contra usurpadores gananciosos anarquicamente cruel em que os governantes poderosos mantivessem seus suacuteditos em regime de servidatildeo de tortura e perversidade

Por outro lado o Escritor Florentino nunca deixava de louvar a honestidade e a integridade em governantes29 Pelo estudo de fatos paacutes-sados entretanto e de outros da histoacuteria de entatildeo que havia presenciado e testemunhado enfatizava que o poliacutetico dependia de qualidades bem diversas Fazendo distinccedilatildeo entre honestidade e ingenuidade acreditava ele que praticar a honestidade sem levar em conta os efeitos prejudiciais para toda uma coletividade ou para a naccedilatildeo eacute de fato mera ingenuidade defeito maacuteximo de maus governantes

Discorrendo ainda sobre integridade Maquiavel considerava lou-vavel o fato de que o priacutencipe fosse um homem iacutentegro e mantivesse a palavra empenhada30 Ao mesmo tempo poreacutem alertava para o fato de que conforme a necessidade ele poderia abandonar a boa feacute desfazendo assim a palavra dada 28 Cf O Priacutencipe op cit cap XVII 29 Cf RODRIGUES RICARDO Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no 2 Recife Unicap 1986 pg 48 30 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

175

Um priacutencipe prudente natildeo deveraacute pois agir de boa feacute quando para fazecirc-lo precise agir contra seus interesses e quando os motivos que o levaram a empenhar a palavra deixarem de existir31

Em circunstacircncias adversas este poderia utilizar-se igualmente da dissimulaccedilatildeo porquanto os homens em geral satildeo tolos e sempre acreditam em quem lhes faz promessas ou lhes promete benefiacutecios Usando uma linguagem coloquial contemporacircnea ldquopara cada bobo haacute sempre um espertordquo

A argumentaccedilatildeo do Escritor Florentino sobre a crueldade reflete-se nos louvores e elogios feitos por ele ao Duque de Valentino citado como exemplo de um autecircntico e renomeado estadista

Ceacutesar Boacutergia era considerado cruel mas sua crueldade impocircs ordem agrave Romanha unificou-a reduzindo-a agrave paz e agrave fidelidade Se examinarmos bem este ponto veremos que na verdade ele foi muito mais clemente que o povo de Florenccedila que para fugir agrave reputaccedilatildeo de cruel permitiu a destruiccedilatildeo de Pistoia32

Eacute interessante esclarecer que a admiraccedilatildeo de Maquiavel por Ceacutesar Boacutergia natildeo emergiu do fato de ser este um homem perverso e cruel Em sua oacuteptica Ceacutesar Boacutergia surgiu como um governante eficiente destemido saacutebio capaz de comportar-se como priacutencipe em toda e qualquer situaccedilatildeo

Em virtude destas e de outras afirmaccedilotildees em torno do caraacuteter poliacutetico e do jogo pelo poder Maquiavel atraiu para si muitas criacuteticas atraveacutes dos tempos Seus conceitos e teorias foram analisados de vaacuterias maneiras e muito mal interpretados Como expresso anteriormente sua obra foi qualificada de imoral e sem eacutetica Impuseram ao Escritor a condiccedilatildeo de advogado da poliacutetica sem moralidade

Lauro Escorel refuta esta ideia quando diz que rdquoOs princiacutepios do poliacutetico florentino podem natildeo ser cristatildeos mas satildeo eacuteticosrdquo33

Natildeo partilhando igualmente daquela opiniatildeo que o Professor Cranston projeta o Escritor para uma dimensatildeo contraacuteria quando sugere que ldquoO argumento de Maquiavel parece-me ser o de que apenas existe uma verdadeira moralidade mas que por vezes o governante tem que a

31 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 32 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 33 ECSOREL Lauro O Pensamento Poliacutetico em Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

176

desrespeitarrdquo34 Cranston propotildee ainda que a principal razatildeo de o Florentino ser continuamente hostilizado

[] eacute a de que ele aconselha (os governantes) a fazerem consciente e deliberadamente o que muitos estatildeo fazendo de modo natural preferindo natildeo pensar no assunto [] Maquiavel nunca endossou o uso da fraude para a proteccedilatildeo de carreiras poliacuteticas aconselhando-a apenas para encobrir aqueles atos de Estado necessaacuterios que violam a moralidade35

Daiacute conclui-se que estes atos de Estado necessaacuterios correspondiam ao conceito maquiaveliano de ldquoragione di statordquo e agrave consciecircncia de que a poliacutetica eacute uma atividade autocircnoma do Estado e no Estado sem recurso ou associaccedilatildeo agrave eacutetica agrave jurisprudecircncia agrave moralidade cristatilde ou pagatilde Seria mais justo e claro dizer que haacute para Maquiavel uma mudanccedila no conceito da eacutetica Ele aceita que a accedilatildeo poliacutetica deve ser orientada por valores mas estes assumem caraacuteter totalmente diferente distanciando-se do ideal teoloacutegico filosoacutefico e sobretudo da ideaccedilatildeo da felicidade pessoal Para o Secretaacuterio Florentino o Estado eacute sem duacutevida o valor mais alto aleacutem do qual natildeo existe um limite Para ele a poliacutetica resumia-se numa coisa conquistar e manter o poder ou a autoridade no domiacutenio conquistado Portanto a religiatildeo a moral e outros valores que os humanistas pretendiam associar agrave poliacutetica nada tinham de relaccedilatildeo com aquele ponto fundamental Permitia-se a exceccedilatildeo apenas nos casos em que a religiatildeo e a moral contribuiacutessem para a conquista e a manutenccedilatildeo do poder quando entatildeo se tornam meios para a grandeza do Estado

Eacute preciso natildeo esquecer de que a razatildeo de Estado implica um cunho social Isto quer dizer que embora o Estado representasse poder pessoal prestiacutegio e forccedila para o governante focalizava e visava tambeacutem aos suacuteditos toda uma comunidade de homens para gerenciar e prover Para Maquiavel isto era um ponto de capital importacircncia visto que ele deixa transparecer nos seus escritos a opiniatildeo que considera os homens maus de nascenccedila e iacutendole Por conseguinte de nada adiantariam a boa-feacute a integridade e a honestidade do priacutencipe se estas virtudes natildeo impedissem a sua ruiacutena levando o Estado agrave fraqueza e agrave derrota que tem como consequecircncia o domiacutenio inimigo o qual provocaria natildeo soacute a inquietaccedilatildeo mas tambeacutem o sofrimento de toda a coletividade Esta inquietaccedilatildeo e o concomitante sofrimento por sua vez causariam a desconfianccedila e ateacute a 34 CRANSTON Maurice Poliacutetica e eacutetica Em KING PRESTON O Estudo da Poliacutetica Brasilia Universidade de Brasiacutelia 1980 Citado em RICARDO Rodrigues Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p 49 35 Cranston OC Em RODRIGUES op cit p 50

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

177

revolta dos cidadatildeos e enfraqueceriam o Estado Por isso o aspecto eacutetico para Maquiavel estaacute nas mais elevadas regras de grandeza de Estado manutenccedilatildeo do poder governabilidade e defesa custe o que custar do Estado ou do domiacutenio do priacutencipe Eacute na histoacuteria e tambeacutem nas suas aventuras diplomaacuteticas que Maquiavel viu estes princiacutepios sendo praticados ndash para o bem do Estado e do seu priacutencipe e suacuteditos - ou negli-genciados ndash para a sua ruiacutena e fraqueza

Ricardo Rodrigues aprecia e tenta justificar esta doutrina maquiave-liana quando destaca ldquoEacute necessaacuterio poreacutem perguntar desapaixonadamente se Maquiavel realmente merece ser considerado ldquomaquiaveacutelicordquordquo36 O autor reaviva a polecircmica em cima de Maquiavel e chega aacute conclusatildeo de que o Florentino natildeo quis propriamente sugerir como os priacutencipes deveriam se comportar para que sua poliacutetica se adequasse ao ideal eacutetico da sociedade mas apenas registrou como realmente procediam de modo que um entre os outros natildeo poderia se comportar diferentemente caso quisesse se conservar no trono e natildeo passar por ingecircnuo

Vasquez eacute outro autor que se inclina para separar a eacutetica da poliacutetica e declara

Na poliacutetica o indiviacuteduo encarna uma funccedilatildeo coletiva e a sua atuaccedilatildeo diz respeito a um interesse comum Na moral pelo contraacuterio ainda que o coletivo esteja sempre presente o elemento iacutentimo pessoal desempenha o papel importante [] interiorizando as normas gerais e assumindo responsabilidades pessoais37

Na realidade o fato mais notoacuterio eacute que ainda nos dias de hoje os estudiosos que procuram abordar ou elucidar o mesmo tema ou seja comprovar ou natildeo a identificaccedilatildeo da poliacutetica com a moral e a eacutetica sempre tentam se basear nos pressupostos constantes da filosofia poliacutetica do famoso Escritor Florentino

42 A moral em Maquiavel

Sabe-se que vaacuterios pensadores contemporacircneos de Maquiavel escre-veram tambeacutem como este manuais da linha ldquoEspelho dos Priacutencipesrdquo38 com o intuito de oferecer um norteamento comportamental para aquele que governa pautado tatildeo somente numa moral cristatilde 36 RODRIQUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na poliacutetica Op cit p 43-53 37 VASQUEZ Adolfo Sanchez Eacutetica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 pg 77 38 Eacute um gecircnero literaacuterio antigo que se espalhou sobre a Europa Medieval com base em fontes orientais nos seacuteculos XII a XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

178

A corrente filosoacutefica tradicional enfatiza a tese de que a virtugrave caracterizada por qualidades morais individuais como a justiccedila devia ser completada pelas qualidades ou virtudes cristatildes como a bondade e a feacute

Ao contraacuterio Maquiavel prefere romper com as tendecircncias medie-vais Resolve apresentar o seu ldquoEspelhordquo com caracteriacutesticas diferentes deixando de lado princiacutepios de uma moral cristatilde Rejeita imperativos categoacutericos como leis morais natildeo relativizaacuteveis por consideraacute-los belos ou atraentes como conceitos teoacutericos mas ineficazes na praacutetica da vida puacuteblica Estudiosos do universo maquiaveliano como Berlin39 e Skinner40 compartilham da ideacuteia de que essa preocupaccedilatildeo em romper e ateacute mesmo denunciar a ingenuidade das teorias poliacuteticas reflete o traccedilo de maior originalidade de Maquiavel

O Florentino rejeita a filosofia poliacutetica tradicional acreditando que os comentadores de sua eacutepoca natildeo haviam conseguido perceber a incompati-bilidade de uma ldquomoral cristatilderdquo que atenda agrave pessoa e uma ldquomoral poliacute-ticardquo que atenda ao coletivo no caso o Estado

Essa incompatibilidade reside na natureza humana representada por homens maus levianos covardes e gananciosos Na tentativa de comprovar a sua tese Maquiavel resume seu pensamento numa frase lapidar

[] Seria muito louvaacutevel que um priacutencipe possuiacutesse todas as qualidades consideradas boas Natildeo sendo isto poreacutem inteiramente possiacutevel devido agraves proacuteprias condiccedilotildees humanas eacute necessaacuterio a um priacutencipe aprender a natildeo ser bom41

Acredita Maquiavel que a histoacuteria eacute ciacuteclica e que os costumes variam de regiatildeo para regiatildeo de eacutepoca para eacutepoca Assim sendo como eacute impos-siacutevel frear as paixotildees e os instintos humanos os conflitos e as desordens aconteceriam indefinidamente Continuamente estariam presentes os mesmos viacutecios ou as mesmas virtudes

Para o Pensador Florentino entretanto cujo sonho era ver a Itaacutelia renascida como um Estado forte como outrora o Impeacuterio Romano era fundamental acabar com a desordem causadora de uma situaccedilatildeo poliacutetica tatildeo caoacutetica como a da Peniacutensula Italiana do seu tempo Realmente 39 BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees internacionais Textos de Aula Brasilia UnB sd 40 SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988 41 MAQUIAVEL O Priacutencipe Cap XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

179

parafraseando Rodrigues42 eacute possiacutevel dizer que a visatildeo histoacuterica poliacutetica dominante nesta parte da Europa expressava um exemplo significativo dessa malignidade humana a Peniacutensula dividida a ausecircncia de um poder central lutas fratricidas conflitos violentos entre pequenas naccedilotildees ou principados italianos invasotildees promovidas por impeacuterios ou grandes reinos vizinhos o poder temporal da Igreja tantas vezes se transformando em outro obstaacuteculo Afinal um quadro desolador de fraqueza total e de insignificacircncia poliacutetica

Preocupado angustiado mesmo com esse alarmante contexto histoacute-rico em que a Itaacutelia (inclusive Florenccedila) se encontrava envolvida Maquiavel fortifica cada vez mais a sua visatildeo sonhadora de uma paacutetria forte unida eficiente e eficaz Nesta perspectiva munido por um espiacuterito empiacuterico tambeacutem realista o Pensador Florentino assume posiccedilatildeo ideoloacutegica isto eacute pragmaacutetica poliacutetica e para muitos revolucionaacuteria

Vaacuterios inteacuterpretes concordam com a noccedilatildeo de que Maquiavel levado naturalmente por seu empirismo toma aquela dura e cruel conjun-tura poliacutetica como um desafio43 Em decorrecircncia passa a conceber um priacutencipe heroacutei um priacutencipe valoroso determinado capaz de ir ateacute as uacuteltimas consequumlecircncias a fim de alcanccedilar seus objetivos que era ndash nada mais nada menos ndash a regeneraccedilatildeo da Repuacuteblica Conforme o pensamento de Liacutedia Maria ldquoo projeto poliacutetico do secretaacuterio florentino apontava essencialmente para a construccedilatildeo de um Estado forte unificado e voltado para o bem comumrdquo 44

Levando em conta o contexto histoacuterico sobre o qual se discorreu anteriormente pocircr em praacutetica semelhante projeto poliacutetico natildeo era tarefa simples Daiacute por que o priacutencipe idealizado por Maquiavel deveria ser virtuoso ou pelo menos parecer ser e aleacutem disso deveria possuir muita astuacutecia esperteza e sabedoria para pautar as suas accedilotildees com vistas agraves circunstacircncias Neste sentido a visatildeo do Florentino eacute incisiva haacute viacutecios que satildeo virtudes Natildeo tema pois o priacutencipe que deseje se manter no poder incorrer no oproacutebrio dos defeitos mencionados se tal for indispen-saacutevel para salvar o Estado Aconselhava ainda ao priacutencipe saacutebio que devia se aproveitar sempre das oportunidades (ocasione) ldquoaprender os meios de natildeo ser bom e a fazer uso ou natildeo deles de acordo com as

42 Cf RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p49-52 43 Cf por exemplo Paul Larivaille e Newton Bigotto 44 RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel ndash Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002 pg 31

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

180

necessidadesrdquo45 De conformidade com a teoria poliacutetica maquiaveliana o priacutencipe poderia ateacute praticar o mal desde que seu ato fosse justificaacutevel ou melhor que resultasse num bem maior para todos a estabilidade do Estado

Interpretando a filosofia poliacutetica de Maquiavel dentro dessa oacuteptica Rodrigues conclui

Eacute assim que a poliacutetica maquiaveliana se faz autocircnoma A finalidade eacute excelsa e imperativa porque necessaacuteria inevitaacutevel originaacuteria e fundamental eacute uma legitimaccedilatildeo tatildeo forte que pode atropelar qualquer consideraccedilatildeo eacutetica O absolutismo eacute justificado 46

Assumindo posicionamento tatildeo radical era loacutegico pois que a concepccedilatildeo maquiveliana entrasse fundamentalmente em choque com a consciecircncia moral da tradiccedilatildeo poliacutetica cristatilde De fato dos pensadores cristatildeos dos liberais e dos teoacutericos do Estado beneficente emerge uma contundente onda de criacuteticas contra o Pensador Florentino Eacute tachado de ciacutenico imoral inescrupuloso democircnio espiacuterito satacircnico autor maldito e outros adjetivos do mesmo gecircnero

Como consequecircncia deste panorama Maquiavel passou a ser deveras incompreendido incompreensatildeo que perdura ateacute os dias atuais Um comen-tador recente jaacute o compreendeu ldquocomo uma das figuras mais emblemaacuteticas sendo odiado por muitos amado por outros e incompreendido pela grande maioriardquo47

Consideraacutevel nuacutemero de leitores desinformados alguns deles em total ignoracircncia a respeito das obras de Maquiavel ainda hoje evocam a figura do Secretaacuterio Florentino ou associam o seu nome a dois termos que assumiram sentido pejorativo maquiaveacutelico e maquiavelismo Nas duas acepccedilotildees datildeo ideia de indiviacuteduos traiccediloeiros auspiciosos caloteiros

Quem de noacutes por exemplo natildeo presenciou algueacutem se utilizando do termo maquiaveacutelico para criticar ou denunciar uma pessoa desleal corrupta que para conseguir vantagens pessoais sai atropelando tudo e todos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer aspecto eacutetico ou moral

45 MAQUIAVEL O priacutencipe cap XV 46 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a eacutetica na poliacutetica Op cit pg 71 47 AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e Razatildeo de Estado Faculdade Autocircnoma de Direito SDatildeo Paulo dezembro de 2008

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

181

Portanto neste trabalho evitou-se de propoacutesito o adjetivo maquia-veacutelico irremediavelmente distorcido por interpretaccedilatildeo errocircnea usando em seu lugar a expressatildeo maquiaveliana

Ainda em decorrecircncia desta atitude objetiva e desapaixonada assumida por Maquiavel fugindo dos padrotildees escolaacutesticos do seu tempo ateacute o seacuteculo XVII eram poucos os doutrinadores que aceitavam aberta-mente os seus pressupostos E no seacuteculo XIX desenterraram a ceacutelebre frase que lhe eacute igualmente atribuiacuteda os fins justificam os meios a qual natildeo consta dos seus escritos sentenccedila cujo uso se faz geralmente isolada do contexto unidade de ideia que jamais algueacutem comprovou tecirc-lo ouvido pronunciar E se realmente o Poliacutetico Florentino a abordava os fins eram tatildeo admiraacuteveis que natildeo poderia ningueacutem deixar de o louvar

Na Modernidade poreacutem as obras do Grande Pensador passaram a ser efetivamente analisadas discutidas e apreciadas Atingiu-se a essecircncia de sua filosofia poliacutetica e Maquiavel com a imagem resgatada aparece cintilante no universo de autores bem-sucedidos

Atualmente comentadores de renome de todos os cantos se arvoraram em defensores do Autor Florentino tecendo-lhes referecircncias honrosas e louvores Entre os que concordam com opiniotildees conclusotildees e interpretaccedilotildees de Maquiavel aponta-se o nome de Mounin

Pode-se afirmar que o secretaacuterio teve honroso papel na poliacutetica da eacutepoca com os meios da eacutepoca agrave medida da eacutepoca - no seu lugar Florenccedila e com as cartas que tinha em matildeo as cartas florentinas que natildeo constituiacuteam um jogo famoso Na histoacuteria do seu tempo Maquiavel eacute vencido natildeo um falhado48

E na tentativa de defender Maquiavel contra seus adversaacuterios Mounin acrescenta

Maquiavel foi realmente um poliacutetico que se alimentou de fatos apaixonado por fatos incansaacutevel na anaacutelise dos fatos [] Pode mesmo afirmar-se um dos mais certos meacuteritos de Maquiavel e um dos menos notados dos menos ceacutelebres tambeacutem eacute a paciecircncia incansaacutevel com que pinta com minuacutecia o espetaacuteculo infinito da complexidade dos fatos Mesmo se quase nunca estamos de acordo com ele acerca das causas e conexotildees a leitura de Maquiavel eacute um antiacutedoto salutar sem disso fazer um dogma unicamente devido ao cuidado que potildee na descriccedilatildeo ensina a cada linha que em poliacutetica nada eacute tatildeo simples como parece49

48 MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 p 15 49 MOUNIN Georges Maquiavel op cit p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

182

Nos tempos modernos outro doutrinador que merece igualmente ter seu nome incluiacutedo na lista dos defensores de Maquiavel eacute Lauro Escorel quando expressa

Maquiavel natildeo traccedilou portanto regras poliacuteticas que estivessem em contradiccedilatildeo com o seu tempo e que passassem desde entatildeo a ser germes de corrupccedilatildeo ou incentivos ao absolutismo como seus adversaacuterios quiseram fazer crer limitou-se a registrar dados de fato normas empiacutericas de conduta que explicaram no passado e no presente os ecircxitos e fracassos poliacuteticos Ao mesmo tempo interpretou ele as tendecircncias poliacuteticas da eacutepoca que era o absolutismo real e o secularismo sob cujos auspiacutecios nascia o Estado Moderno [] Se alguma responsabilidade moral lhe pode ser atribuiacuteda seraacute a de natildeo se ter preocupado em submeter a praacutetica poliacutetica ao crivo de um coacutedigo moral meta-histoacuterico mas isto resulta do meacutetodo indutivo-empiacuterico que o espiacuterito da Renascenccedila lhe inspirou50

Encontra-se nos escritos de Bertrand Russel talvez uma das mais ardorosas e eloquentes defesas de Maquiavel contra as criacuteticas dos anti-maquiavelistas Suas palavras comprovam esta afirmaccedilatildeo

A Renascenccedila embora natildeo haja produzido nenhum filoacutesofo teoacuterico importante produziu um homem de suprema eminecircncia na filosofia poliacutetica Maquiavel Eacute costume sentir-se a gente chocada por ele e natildeo haacute duacutevida de que agraves vezes ele realmente eacute chocante Mas muitos outros homens tambeacutem o seriam se fossem igualmente livres de hipocrisia Sua filosofia poliacutetica eacute cientiacutefica e empiacuterica baseada em sua proacutepria experiecircncia dos assuntos preocupada em declarar os meios de se chegar a determinados fins sem se preocupar de se saber se tais meios satildeo considerados bons ou maus Quando em certas ocasiotildees se permite mencionar os fins que deseja estes satildeo de tal natureza que natildeo podemos senatildeo aplaudi-los Grande parte da difamaccedilatildeo convencional ligada ao seu nome deve-se agrave indignaccedilatildeo dos hipoacutecritas que odeiam o franco reconhecimento das maacutes accedilotildees Resta eacute certo uma boa parte que realmente exige criacutetica mas nisto ele eacute uma expressatildeo de sua eacutepoca Tal honestidade intelectual a respeito da desonestidade poliacutetica dificilmente teria sido possiacutevel em qualquer outra eacutepoca e em qualquer outro paiacutes exceto talvez na Greacutecia entre os homens que deviam sua educaccedilatildeo teoacuterica aos sofistas e seu adestramento praacutetico agraves guerra de minuacutesculos Estados que tanto na Greacutecia claacutessica como na Itaacutelia da Renascenccedila eram o acompanhamento poliacutetico do gecircnio individual51

50 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 20 51 RUSSEL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969 p20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

183

A tendecircncia moderna diz que natildeo se deve simplesmente ldquodenegrir a imagem de Maquiavel e nem tatildeo pouco louvaacute-lo indiscriminadamenterdquo52 Concorda-se em gecircnero e nuacutemero com esta afirmaccedilatildeo predominante nos dias atuais Natildeo haacute duacutevida de que o Autor Florentino cometeu erros mas acertou muito mais Jamais se deve esquecer de que ele foi um produto do meio O peixe natildeo vive fora drsquoaacutegua E para Maquiavel era quase impos-siacutevel emergir da turbulecircncia histoacuterica em que viveu O Poliacutetico de Florenccedila foi praticamente nocauteado Seu espiacuterito confrontou-se com um dilema de escolha viver ou morrer E quem preferia morrer O que faz um homem todo dia senatildeo lutar pela sobrevivecircncia O poder poliacutetico era uma loteria Para ganhar qualquer priacutencipe teria de jogar Na luta pelo poder Maquiavel justificava o uso das armas ou da crueldade Por outro lado sempre dava liccedilotildees ao povo para se livrar dos tiranos53

5 Consideraccedilotildees finais

Maquiavel ao expor o pensamento ou ideias sobre a poliacutetica o fez de modo genial sem se deixar aprisionar por nenhuma corrente literaacuteria ou doutrinaacuteria Criou estilo proacuteprio pessoal Como consequumlecircncia seus escritos foram analisados de maneiras diversas inclusive mal interpretados Nos nossos dias ainda haacute algueacutem que natildeo consegue interpretaacute-lo com clareza coerecircncia e plena nitidez

Para uns Maquiavel parece ser o protoacutetipo do poliacutetico sem escruacute-pulos sem eacutetica que age de acordo com as circunstacircncias que se lhe apresentam Destarte eacute considerado um escritor e pensador nocivo cujas ideias devem ser banidas da praacutetica poliacutetica e substituiacutedas por uma ldquoverdadeirardquo atitude eacutetica

Para uns Maquiavel eacute considerado um elitista ao contraacuterio de outros que o tecircm em conta como um democrata autecircntico que natildeo via outro fator capaz de sustentar a estabilidade de todo e qualquer regime senatildeo a forccedila e o apoio popular E ainda hoje este axioma converge na poliacutetica moderna onde nenhuma autoridade se conserva no jogo do poder quando natildeo goza de boa reputaccedilatildeo e grande simpatia junto ao povo

52 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 21 53 Biografia Niccoloacute Machiavelli ndash 1469-1527 Disponiacutevel em wwwplmitorjnet Acessado em 15 de dezembro de 2010

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

184

Ainda haacute pessoas que o apresentam como defensor da forccedila e do absolutismo enquanto outras o exaltam na qualidade de conselheiro dos governantes republicano e amigo das leis

Natildeo obstante todas estas controveacutersias e talvez exatamente por causa delas a filosofia empiacuterica e cientiacutefica de Maquiavel se tornou um marco inestimaacutevel na trajetoacuteria da ciecircncia poliacutetica e universal

Como explicar que Maquiavel poreacutem eacute um verdadeiro ponto de referecircncia no desenvolvimento da ciecircncia poliacutetica O fato eacute que em decorrecircncia dos ensinamentos dele a arte da poliacutetica natildeo estaacute mais ligada agrave formulaccedilatildeo de ideais abstratos e por muitas vezes utoacutepicos de um bem comum formulado com suporte num ideal cristatildeo mas na observaccedilatildeo da praacutetica da accedilatildeo poliacutetica e na formulaccedilatildeo clara dos objetivos que se intente alcanccedilar Tambeacutem estaacute se vendo que a eacutetica na poliacutetica natildeo deve ser concebida e avaliada nos mesmos termos que a eacutetica individual com suas normas do bem e do mal A filosofia contemporacircnea fundamenta-se na efetiva perseguiccedilatildeo de eficaacutecia vigor patrioacutetico anaacutelise aguda das circunstacircncias na procura do fortalecimento e conservaccedilatildeo da paacutetria

Natildeo deve ser esquecido o fato de que nos primeiros tempos Maquiavel foi incompreendido por ser aquele expectador objetivo do processo poliacutetico que se manifesta nos seus escritos Na verdade a arte poliacutetica maquiveliana sempre procurou assentar-se na verdade efetiva das coisas ignorando a busca de como as coisas deveriam ser Com o realismo que lhe eacute peculiar o autor florentino pretendia apenas ensinar ao priacutencipe a fugir do imaginaacuterio recusando imagens idealizadas pela natureza humana mas irreais e que nunca existiram Para evitar a ruiacutena e tornar-se vitorioso o detentor do poder deveria se fixar no real e considerar os homens como eles realmente satildeo

Desempenhando o papel de mestre dos priacutencipes legou agrave contempo-raneidade um dos seus mais relevantes ensinamentos O caminho para o governante se tornar eficaz e tambeacutem responsaacutevel eacute basear seus empreen-dimentos em informaccedilatildeo correta previsatildeo de futuros imprevistos diagnoacutestico oportuno caacutelculo exato dos resultados previsiacuteveis tomada de decisatildeo na hora certa e muita sabedoria

Pretendendo dar conselhos aos priacutencipes prestou um excelente serviccedilo agrave humanidade Aconselhou a prudecircncia para todas as geraccedilotildees Sendo cauteloso o homem procura logo a cura de seus males em vez de tomar providecircncias tardias muitas vezes sem chances de remediaacute-los

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

185

Ensinou a todos a ver aleacutem das aparecircncias e descobrir o essencial aquilo que fica escondido sob os bastidores do teatro da vida

Evitar sempre a neutralidade e a dubiedade foi outra importante liccedilatildeo A pessoa que natildeo assume corajosamente sua verdadeira posiccedilatildeo natildeo inspira credibilidade e jamais conseguiraacute a confianccedila a lealdade e a afeiccedilatildeo de outrem

Conclamou Maquiavel as geraccedilotildees a natildeo se deixarem abater diante das crises ou dos momentos de infortuacutenio Ao contraacuterio eacute preciso lutar sempre pelas suas convicccedilotildees e acreditar firmemente que vencer sem luta eacute triunfar sem gloacuteria

Apoacutes a divulgaccedilatildeo de sua obra mais importante O Priacutencipe Maquiavel teve suas reflexotildees poliacuteticas muito mal interpretadas confor-me jaacute expresso E esta incompreensatildeo perdura por seacuteculos ateacute os dias atuais Basta que se procure num dicionaacuterio o significado do vocaacutebulo maquiaveacutelico e logo se encontra como sinocircnimo deste termo rdquoindiviacuteduo que age com astuacutecia perfiacutedia ou malvadezardquo Interpretaccedilotildees dessa natureza nada tecircm de verdadeiro Sempre satildeo resultantes de leigos desinformados ou mesmo acadecircmicos que natildeo efetuam uma anaacutelise mais atenta e cuidadosa sobre as posiccedilotildees poliacuteticas de Maquiavel E destarte natildeo atingem a profundidade do complexo ideaacuterio maquiveliano Nesta perspectiva acredita-se que a maior ofensa que se possa cometer contra o Notaacutevel Escritor Florentino eacute essa heranccedila maldita em torno de seu nome

O Priacutencipe eacute na atualidade um dos livros mais polecircmicos e mais lidos do mundo Sem qualquer duacutevida um verdadeiro best-seller Conteacutem subsiacutedios para todo e qualquer leitor que queira se aprofundar no conhecimento das regras e artiacutefices da arte de governar Considerado como um verdadeiro breviaacuterio sobre poliacutetica tornou-se livro de cabeceira para vaacuterios governantes Determinar o fim da influecircncia doutrinaacuteria medieval sobre a investigaccedilatildeo poliacutetica contemporacircnea foi sua importacircncia funda-mental

Apesar do seu intenso vigor patrioacutetico o Diplomata Florentino morreu sem presenciar a realizaccedilatildeo do seu sonho maior ver sua paacutetria - a Itaacutelia renascentista ndash cintilando no panorama das naccedilotildees fortes unidas estaacuteveis e desenvolvidas E poreacutem por meio das paacuteginas de O Priacutencipe transmitiu um admiraacutevel cabedal de conhecimentos sobre a loacutegica que rege a conquista e a manutenccedilatildeo do poder

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

186

Por tudo o que se abordou neste trabalho acredita-se firmemente que com justa razatildeo Maquiavel merece o cognome de ldquopai da ciecircncia poliacutetica modernardquo

Referecircncias Bibliograacuteficas

AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e razatildeo de Estado Satildeo Paulo sEd dezembro de 2008

BATISTA Flaacutevio Donizete Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Disponiacutevel em http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 25 de ou-tubro de 2010

BELLOZO Edson Maquiavel e as origens do pensamento poliacutetico moderno Disponiacutevel em wwwminiwebcombrcienciasartigosmaquiavel Aces-so em 15-09-2010

BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Textos de Aula Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Internacionais Brasiacutelia UnB sd

BIRARDI A e Castelani G R Desmistificando Maquiavel Ensaio acerca de sua histoacuteria obras e conceitos Disponiacutevel em httpwwwklepsidra netklepsidra4maquiavelhtn Acessado em 18092010

BIGNOTTO Newton Maquiavel Republicano Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1991

BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

CAILLEacute Alain LAZZERI Christian SENELLART Michel (organizado-res) Histoacuteria argumentada da Filosofia Moral e Poliacutetica Satildeo Leopoldo Editora UNISINOS 2003

BARROS Vinicius Soares de Campos 10 liccedilotildees sobre Maquiavel Petroacute-polis Editora Vozes 2010

FRANCO Afonso Arinos de Mello O Pensamento poliacutetico na Renas-cenccedila Cadernos da UnB Humanidades Brasiacutelia UnB 1980 p 19-27

DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores Ltda 1984

ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao pensamento poliacutetico de Maquiavel Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1979

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

187

______ O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 18-52

GREGORIO Fernando Ceacutesar Aplicando Maquiavel no dia a dia Satildeo Paulo Madras Editora Ltda 2008

GRUPPI Luciano Tudo comeccedilou com Maquiavel Porto Alegre L amp PM Editores 1988

LARIVAILLE Paul A Itaacutelia no tempo de Maquiavel (Florenccedila e Roma) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

MAQUIAVEL O Priacutencipe Comentado por Napoleatildeo Bonaparte Traduccedilatildeo Pietro Nassetti Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

MAQUIAVEL Nicolau Comentaacuterios sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1992

MOREIRA Marcilio Marques O Pensamento Poliacutetico de Maquiavel Textos de aula Brasiacutelia Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Interna-cionais sd

MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984

REALE Giovanni e ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Do Huma-nismo a Descartes Satildeo Paulo Paulus 2004

RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002

RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no2 Recife Unicap 1986 p 43-53

RODRIGUES Ruy Martinho Priacutencipe Lobo e Homem Comum (Anaacutelise das Ideacuteias de Maquiavel Hobbes e Locke) Fortaleza UFC 1997

RUSSELL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969

SANTOS Vivian Matias dos Niccolo Machiavelli moralista ou intelec-tual orgacircnico Em Mediaccedilotildees v12 n2 p 175-187 juldez 2007

SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988

STRATHERN Paul Maquiavel (em 90 minutos) Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

188

WEBER Hingo O priacutencipe amp Maquiavel sem ideologias Petroacutepolis Editora Vozes 2007

SADEK Maria Nicolau Maquiavel o cidadatildeo sem Fortuna e o intelectual de virtugrave Em WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2003

WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Licenciada em Filosofia e Histoacuteria pela Faculdade de Filosofia do Cearaacute e

Especialista em Gestatildeo Puacuteblica pela Universidade Vale do Acarauacute

Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos Doutor em Teologia pela Pontiacutefica Universidade Gregoriana

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

189

SOBRE A RELACcedilAtildeO DINAcircMICA DA REALIDADE SUPRA-SENSIacuteVEL SEGUNDO PROCLO

SUR LA RELATION DYNAMIQUE DE LA REacuteALITEacute

SUPRASENSIBLE SELON PROCLUS

Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha

Resumo

O presente artigo tem por objetivo demonstrar porque as relaccedilotildees dinacircmicas satildeo imprescindiacuteveis na filosofia procleana Para tanto parte-se da problemaacutetica da inexis-tecircncia de movimento na realidade supra-sensiacutevel mostrando que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento de deslocamento Defende-se pois que natildeo se trata em Proclo (412 ndash 485 dC) de uma sucessatildeo de eventos e nem de uma mudanccedila na substacircncia Desta forma apoacutes a anaacutelise do movimento de processatildeo parte-se para a consideraccedilatildeo do papel das triacuteades da realidade incorpoacuterea para soacute entatildeo verificar a importacircncia das relaccedilotildees dinacircmicas na multiplicaccedilatildeo e diversidade dos seres Apoacutes ser estudado o papel das triacuteades seraacute possiacutevel perceber que natildeo eacute o movimento o responsaacutevel pela diversidade mas a relaccedilatildeo dinacircmica que a possibilita Assim este trabalho se fundamenta nos Elementos Teoloacutegicos de Proclo

Palavras-chave Proclo Triades Relaccedilatildeo Dinacircmica

Resumeacute Lrsquoobjectif de cette recherche est montrer que les relations dynamiques sont indispensables dans la philosophie proclienne Alors il part de la question de lrsquoabsence du mouvement dans les reacutealiteacutes suprasensibles montrant que le mouvement de oprocession nrsquoest ni une sucession drsquoeacuteveacutenements ni un changement dans la substance Apregraves analyser le mouvement de procession il fait lrsquoexamen de la function des triades dans la reacutealiteacute incorporelle et veacuterifie lrsquoimportance des relations dynamiques dans la multiplication et dans la diversiteacute des ecirctres Apregraves lrsquoeacutetude de la function des triades il sera possible comprendre que nrsquoest pas le mouvement le responsable pour la diversiteacute mais la relation dynamique qui la rend possible Cet eacutetude est fondamenteacutee dans lrsquooeuvre Eacuteleacutements de Theacuteologie de Proclus (412-485 a C)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

190

Mots-cleacutes Proclus Triades Relation Dynamique

Introduccedilatildeo

Herdeiro da filosofia pagatilde Proclo (412-485 dC) eacute considerado o uacuteltimo expoente de destaque da filosofia antiga a atuar na escola de Atenas1 Como neoplatocircnico as teses do Bizantino satildeo marcadas pela tentativa de conciliaccedilatildeo das doutrinas platocircnicas aristoteacutelicas e pitagoacutericas Por estar inserido no contexto das escolas da Antiguidade Tardia os escritos do filoacutesofo satildeo caracterizados por sua sistematicidade Neste sentido o pensador ao expor a passagem da unidade agrave multiplicidade natildeo admite passagens abruptas e portanto natildeo concebe que do Uno surja imediatamente a multiplicidade em sua complexidade isto eacute ele natildeo concebe uma passagem imediata do Uno ao Noucircs

Entretanto ainda que a passagem do Uno ao muacuteltiplo seja algo fundamental na filosofia procleana ela encerra um problema Acontece que Proclo na realidade supra-sensiacutevel natildeo admite movimento na substacircncia Diante disto partindo da ideia platocircnica de que ldquomudanccedila eacute movimentordquo2 a diferenccedila entre os seres da realidade imaterial natildeo pode ser explicada Uma vez que sem movimento natildeo haacute produccedilatildeo Assim para solucionar tal problemaacutetica parte-se da hipoacutetese de que a diferenccedila na realidade imaterial natildeo eacute o resultado de um movimento de deslocamento ou da proacutepria substacircncia dos seres mas da relaccedilatildeo entre os princiacutepios que os constituem Para verificar tal hipoacutetese eacute preciso iniciar a anaacutelise com o

1 Fechada em 529 por Justiniano de acordo com o decreto que afirma ldquoNingueacutem que tenha sido contagiado por tais heresias poderaacute desempenhar grau no exeacutercito ou exercer ofiacutecios puacuteblicos nem na condiccedilatildeo de professor que se ocupe de alguma disciplina () Proibimos que seja ensinada qualquer doutrina da parte daqueles que satildeo afetados pela insacircnia dos iacutempios pagatildeosrdquo (REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008 p 206-208)Tal decreto que afetou profundamente as escolas de vertente pagatilde fez com que pensadores da Academia como Simpliacutecio (490 ndash 560 dC) e Damascius (458 ndash 583 dC) fugissem para Peacutersia A fim de dar continuidade aos estudos permaneceram por volta de 531532 na corte de Khussraw I pois o rei da Peacutersia se mostrava simpatizante do pensamento grego Somente em 533 por ocasiatildeo do ldquotratado de paz eternardquo assinado entre os persas e os bizantinos retornaram ao Ocidente Sobre a fuga dos pensadores pagatildeos para a Peacutersia ver SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012 paacuteg 62-74 2 Parmecircnides 162c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

191

movimento de processatildeo pois eacute por ele que primeiramente Proclo explica a saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade

1 O movimento de processatildeo

De acordo com a filosofia procleana a multiplicidade soacute pode ser pensada se a unidade for pressuposta Assim toda multiplicidade participa de tal forma da unidade que a sua natildeo participaccedilatildeo implicaria em uma multiplicaccedilatildeo infinita o que seria um engano Pois se a multiplicidade natildeo participasse da unidade ou a proacutepria multiplicidade seria una ou natildeo-una e no caso de ser natildeo-una ou seria muitas ou nada Admitir que ela eacute nada eacute cair num contrassenso pois como algo (um existente) poderia ser nada Ou ainda como pode haver geraccedilatildeo se o ser natildeo pode advir do nada Por outro lado a tese de que a multiplicidade existe precisa de uma anaacutelise cuidadosa uma vez que afirmar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla pode levar a aporias jaacute que sua gecircnese natildeo seria explicada fazendo com que se caia numa regressatildeo infinita3

A regressatildeo aconteceria porque ao sustentar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla e natildeo una se admite que cada parte que a compotildee tambeacutem eacute muacuteltipla de modo que nunca se chega a um princiacutepio Logo haacute uma necessidade de contornar a ideia da regressatildeo ad infinitum Para tanto o princiacutepio como unidade eacute posto como indispensaacutevel mediante a ideia de que se fossem dois ou eles seriam iguais ou diferentes Sendo iguais se trataria de apenas uma substacircncia ou seja seriam um sendo diferentes um teria de ser o primeiro derivando entatildeo um do outro Se os dois estivessem no mesmo patamar nenhum seria o primeiro o que significaria a existecircncia de algo acima deles que os deu origem Entatildeo o que pode se perceber eacute que natildeo importa o caminho seguido a razatildeo sempre leva a um primeiro que eacute fundamentalmente um4 Assim este Um no neoplatonismo eacute posto como unidade absolutamente simples da qual toda multiplicidade participa

Proclo entatildeo faz surgir da unidade toda multiplicidade Esta multiplicaccedilatildeo da unidade originaacuteria se daacute por meio do movimento de processatildeo que eacute composto por trecircs momentos muito distintos mas que

3 PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995 Proposiccedilatildeo 1 4 Cf op cit Proposiccedilatildeo 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

192

estatildeo estreitamente interligados Satildeo eles Processatildeo (πρooacuteδος) Perma-necircncia (μονή) e Retorno (ἐπιστροφή) Os trecircs momentos se distinguem pelo fato de que no primeiro (πρooacuteδος) haacute uma separaccedilatildeo entre a causa e seu efeito no segundo (μονή) tem-se que mesmo que haja a processatildeo eacute preciso que o produto permaneccedila em sua causa e no terceiro (ἐπιστροφή) o efeito retorne agrave causa pelo desejo de nela participar Entretanto a ligaccedilatildeo entre estes eventos natildeo acontecem em uma ordem linear mas se datildeo simultaneamente5 Posto que se soacute procedesse natildeo haveria qualquer comunicaccedilatildeo entre o que produz e o que eacute produzido se soacute permanecesse natildeo haveria produccedilatildeo e como pode haver retorno sem que haja separaccedilatildeo6 Portanto por exigir tanto o sair como o permanecer na causa o movimento de processatildeo acontece de modo circular

A processatildeo guarda entatildeo algumas leis inviolaacuteveis que garantem que todas as etapas aconteccedilam A primeira lei atesta que toda causa produtiva produz por super abundacircncia de potecircncia Neste sentido Proclo sustenta que ldquo[] tout ce qui produit demeure tel qursquoil est et parce qursquoil demeure tel son deacuteriveacute procegravede Crsquoest donc par la pleacutenitude et la perfection dont il jouit qursquoil fait subsister ses deacuteriveacutes sans se mouvoir ni srsquoamoindrirrdquo7 A segunda que estaacute em concordacircncia com a primeira defende que devido agrave super abundacircncia de potecircncia o produtor natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo ao engendrar seus efeitos8 A terceira legitimando todo o momento da processatildeo defende a tese de que toda produccedilatildeo soacute se efetiva por meio da semelhanccedila9 entre produto e produtor10

A menccedilatildeo agraves leis de processatildeo prepararam o terreno para o esclarecimento da multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases por meio da unidade Isto

5 Para Caram a simultaneidade dos momentos da processatildeo se daacute porque para os neoplatocircnicos a categoria da causalidade natildeo envolve uma sequecircncia temporal ou mesmo a noccedilatildeo moderna de eventos sucessivos que pressuporia um lsquoantes e depoisrsquo jaacute que a relaccedilatildeo natildeo eacute entre eventos mas substacircncias CfCARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesrevistasthemata 49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015 p108 6 PROCLUS Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 30 7 Op cit Proposiccedilatildeo 27 8 Segundo Proclo ldquoToute cause qui produit autre qursquoelle-mecircme produit ses deacuteriveacutes et ce qui les suit en demeurant en elle-mecircmerdquo Op cit Proposiccedilatildeo 26 9 Cf Caram A semelhanccedila em Proclo eacute a capacidade de manter a caracteriacutestica do ser originaacuterio poreacutem em um grau menor CARAM op cit 2014 p 108 10 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 28-29

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

193

porque de acordo com tais leis o produtor eacute sempre superior a tudo o que vem depois dele tendo em vista que natildeo sofre qualquer diminuiccedilatildeo assegurando assim a continuidade do movimento e permite que aquilo que eacute produzido seja semelhante11 ao produtor A semelhanccedila se daacute desta forma porque o ser do produzido adveacutem do proacuteprio produtor ao dar ao produzido da sua proacutepria substacircncia Neste sentido o Diadoco sustenta que ldquoTout dispensateur qui agit par son ecirctre (τὸτῷεἰναιχορηγοῦν) est lui-mecircme de faccedilon primordiale ce qursquoil communique aux beacuteneacuteficiaires de ses dispensationsrdquo12 Partindo de tal proposiccedilatildeo o sucessor do pensamento platocircnico demonstra no que consiste a semelhanccedila entre causa e efeito Ainda eacute preciso contudo apontar as implicaccedilotildees da semelhanccedila no movimento de processatildeo

Quando se fala em semelhanccedila a primeira coisa a ser vista eacute que na processatildeo o que se revela no efeito eacute a proacutepria manifestaccedilatildeo da causa uma vez que como mencionado o produto possui o mesmo ser do produtor dado que ele eacute a continuidade ontoloacutegica da sua causa A semelhanccedila leva o produto a desejar retornar ao produtor pois soacute na causa que eacute superior pode encontrar perfeiccedilatildeo O desejo de retornar soacute existe porque haacute uma comunicaccedilatildeo ininterrupta entre eles Tal comunicaccedilatildeo eacute tambeacutem conexatildeo que na processatildeo estrutura o cosmo permitindo que a causa esteja sempre em contato com seus efeitos Deste modo o movimento acontece de modo circular no qual o efeito sai da causa ao mesmo tempo em que permanece nela e a ela retorna em um ciclo interrupto onde o princiacutepio e o fim satildeo o mesmo Sobre isto Proclo assevera

Tout ecirctre qui procegravede drsquoun principe et se convertit vers lui a une activiteacute cyclique Si cet ecirctre se convertitvers ce dont il procegravede il fait coiumlncider sa fin avec son principe et son mouvement est unique et continu qursquoil srsquoeacutecarte du repos originel ou qursquoil srsquoy rapporte Crsquoest pourquoi tous les ecirctres accomplissent un processus cyclique qui va de leurs causes agrave leurs causes Il est des cycles plus amples et il en est de plus court selon que les conversions se portent aux cause immeacutediatement supeacuterieures ou agrave de plus eacuteleveacutees jusqursquoau principe universal13

11 Platatildeo define semelhanccedila como aquilo que eacute outro mas imita o objeto ao qual eacute semelhante a fim de conservar sua beleza No entanto o faz mudando de proporccedilatildeo Cf Platatildeo Sofiacutesta 136 a 12 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 18 13 Op cit Proposiccedilatildeo 33

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

194

Na processatildeo a semelhanccedila vem em primeiro lugar sendo ela quem proporciona a conversatildeo e permanecircncia do causado na causa Todavia natildeo haacute multiplicaccedilatildeo somente com semelhantes pois neste caso o que diferiria o produto do produtor a causa do causado Para que haja distinccedilatildeo entre os elementos eacute preciso que exista alguma caracteriacutestica diferente entre eles e uma vez que a processatildeo se daacute pela multiplicaccedilatildeo do ser do produtor natildeo pode haver diferenccedila entre a constituiccedilatildeo do ser da causa e do causado Assim a priori a diferenccedila entre causa e efeito se apresenta como diferenccedila de potencialidade14 Isto porque para Proclo eacute imprescindiacutevel que o produto seja inferior em potecircncia ao seu produtor Portanto se por um lado na multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases a semelhanccedila eacute necessaacuteria por outro a dessemelhanccedila tambeacutem o eacute15

A diferenccedila entatildeo consiste em potecircncias diferentes que faz com que os elementos que compotildeem o sistema procleano faccedilam parte de uma hierarquia na qual quanto mais proacuteximo o produto estiver da sua causa mais perfeito e potente ele eacute16 Isso porque aqueles que estatildeo mais proacuteximo recebem em maior grau a potecircncia produtiva e no mesmo grau em que recebe a potecircncia recebem o ser da mocircnada originaacuteria Ao ter um maior grau de ser e de potecircncia o produtor eacute para o que vem em seguida causa bem e perfeiccedilatildeo fazendo com que este segundo deseje dele participar e natildeo somente o deseje mas necessite de tal participaccedilatildeo para alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Logo a correspondecircncia entre perfeiccedilatildeo constituiccedilatildeo e partici-paccedilatildeo se estabelece partindo de uma hierarquia na qual os seres que estatildeo mais proacuteximos do princiacutepio de sua seacuterie satildeo superiores e servem como degraus para perfeiccedilatildeo daqueles que satildeo produzidos por uacuteltimo

A perfeiccedilatildeo que se daacute mediante a participaccedilatildeo na causa como jaacute foi dito soacute eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre os termos Assim o desejo do produto de participar do seu produtor eleva o produtor ao patamar de bem No entanto se o primeiro bem de cada seacuterie natildeo pode ser partici-pado entatildeo como aquele que soacute existe por meio da participaccedilatildeo em outro pode participar daquele que eacute imparticipado Tal possibilidade se daacute pela existecircncia de um elemento intermediaacuterio que na filosofia procleana eacute sempre fundamental O intermediaacuterio no que diz respeito agrave participaccedilatildeo eacute

14ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur est drsquoordre supeacuterieur agrave son produit PROCLUS Op cit Proposiccedilatildeo 7 15 ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur esr drsquoordre supeacuterieur agrave son produitrdquoop cit 1995 Proposiccedilatildeo 7 16 Op cit Proposiccedilatildeo 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

195

posto como participado aquele pelo qual o participante adquire sua perfeiccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoPuisqursquoil eacutetait imparfait avant la participation et est devenu parfait par la participation le participant est entiegraverement subordonneacute au participeacute dans lrsquoordre de la perfection anteacuterieure il est infeacuterieur au participeacute qui le rend parfaitrdquo17

Tem-se entatildeo a existecircncia de uma triacuteade composta por hipoacutestases por meio de uma causa uacutenica satildeo elas o imparticipado o participado e o participante O imparticipado eacute segundo Proclo aquele que tem em si a razatildeo de sua proacutepria unidade18 Nele estaacute toda a potecircncia e capacidade de produzir ou seja eacute a mocircnada19 de uma seacuterie que surge mediante ele mesmo O que eacute produzido imediatamente pelo imparticipado eacute o partici-pado e o que eacute produzido em seguida participante Ambos participante e participado satildeo semelhantes ao imparticipado pois dele recebem sua substacircncia Entretanto satildeo dessemelhantes porque na medida em que saem de sua causa satildeo potencialmente inferiores a ela A inferioridade de sua potecircncia eacute determinante em sua imperfeiccedilatildeo No entanto eacute exatamente na imperfeiccedilatildeo e contemplaccedilatildeo do perfeito que estaacute o desejo de participar

A triacuteade referente agrave participaccedilatildeo estaacute diretamente associada agravequela referente agrave perfeiccedilatildeo pois a medida de perfeiccedilatildeo eacute a mesma da participaccedilatildeo Assim o ser imparticipado corresponde ao Bem o participado ao autohipostaacutetico20 e os outros seres aqueles que tecircm sua existecircncia partindo de outros ao participante Estas triacuteades por sua vez equivalem agravequela referente ao Imoacutevel Automotor e Heteromotor O que torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que sejam utilizados termos diferentes levando em consideraccedilatildeo um predicado o pensador estaacute sempre se referindo ao mesmo elemento dentro de uma seacuterie Ou seja natildeo importa se remete ao Imoacutevel Imparticipado ou Bem quando se evoca um destes termos a referecircncia eacute sempre ao princiacutepio da seacuterie e o mesmo acontece com os outros elementos21 Por esta razatildeo por meio de uma unidade que aparece como Bem Imoacutevel ou

17 PROCLUS op cit Proposiccedilatildeo 24 18 Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 23 19 Cf Proclo A Mocircnada na filosofia procleana eacute o princiacutepio originaacuterio de toda seacuterie Eacute dela que toda multiplicidade mediante a semelhanccedila tem origem op cit Proposiccedilatildeo 21 20 Autohipostaacutetico eacute todo aquele que existe em si e por si ou seja tem em si mesmo a razatildeo de sua existecircncia e constituiccedilatildeo sendo portanto perfeito 21 A saber quando se fala em participado automotor ou autohipostaacutetico do termo intermediaacuterio que faz a ligaccedilatildeo entre o princiacutepio Quando cita os seres cuja existecircncia dependente de outros estaacute sempre se referindo ao uacuteltimo termo da seacuterie ou seja o participante que eacute tambeacutem heteromotor e natildeo eacute causa de sua proacutepria perfeiccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

196

Imparticipado surge um elemento que eacute estreitamente semelhante a ela pois dele recebe o seu ser

Agrave vista do exposto nesta primeira anaacutelise a diferenccedila caracteriacutestica da multiplicidade se mostrou tatildeo somente como resultado da diferenccedila de potencialidade entre produto e produtor O que se observa entretanto ao investigar a multiplicidade ou mesmo a sua relaccedilatildeo com a unidade eacute que a diferenccedila que existe nela natildeo se limita a uma desigualdade de potecircncia como bem se observa na constituiccedilatildeo do Noucircs e na proacutepria diversidade dos seres Por isto eacute preciso ir mais a fundo na investigaccedilatildeo a fim de descobrir a gecircnese da diferenccedila Afinal quando se fala da dessemelhanccedila mediante os graus de potencialidade tem-se jaacute anteriormente uma diver-sidade presente nas mocircnadas pelas quais as seacuteries satildeo derivadas Com o intuito de aprofundar o exame referente agrave origem da diferenccedila portanto eacute necessaacuterio analisar o papel das triacuteades na geraccedilatildeo dos seres

2 A organizaccedilatildeo triaacutedica da realidade sobre o papel de Peacuteras Apeiacuteron e Mixto

O sistema procleano de hipoacutestases eacute disposto em triacuteadas Natildeo satildeo somente as hipoacutestases que satildeo ordenadas triadicamente pois esta forma de organizar perpassa todos os acircmbitos da filosofia do Bizantino Prova disto eacute a relaccedilatildeo que daacute origem a toda realidade a saber o movimento de processatildeo que como visto eacute constituiacutedo por trecircs momentos indispensaacuteveis e indissociaacuteveis Aleacutem da triacuteade presente no movimento de processatildeo a proacutepria realidade incorpoacuterea eacute sistematizada desta forma sendo composta por trecircs hipoacutestases divina inteligiacutevel e psiacutequica Cada uma das realidades mencionadas guarda particularidades que soacute dizem respeito a elas mesmas Poreacutem satildeo semelhantes na perspectiva de ser cada uma subdivi-dida em triacuteades

Por estar presente em todos os momentos da teoria do Diadoco o entendimento das triacuteades eacute essencial para que o pensamento do autor seja compreendido principalmente quando se trata da concepccedilatildeo do desdobra-mento da multiplicidade mediante a unidade Sobre a importacircncia das triacuteades na tese procleana Bezerra faz a seguinte afirmaccedilatildeo ldquochegamos assim agrave ideia das triacuteades como mediaccedilatildeo entre a multiplicidade constante das coisas e a unidade superior a todo devirrdquo22 A triacuteade como movimento de processatildeo eacute o

22 BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006 p 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

197

elemento motor da participaccedilatildeo haja vista ser determinante na constituiccedilatildeo dos seres Tal constituiccedilatildeo por sua vez estaacute diretamente relacionada agrave mobilidade dos termos que compotildee a realidade incorpoacuterea e corpoacuterea A estrutura triaacutedica portanto faz existir uma mediaccedilatildeo dinacircmica que proporciona a continuidade ontoloacutegica daquilo que eacute produzido permitindo o contato do Uno com tudo o que vem em seguida Neste sentido Caram assegura que ldquoo sistema procleano eacute uma trama de relaccedilotildeesrdquo23

Eacute esse complexo de relaccedilotildees que permite a causalidade pois os encadeamentos natildeo possuem um caraacuteter temporal uma vez que natildeo se trata de um antes e depois relativo ao vir-a-ser mas tatildeo somente a uma questatildeo loacutegica explicativa Assim a passagem da unidade agrave multiplicidade eacute feita mediante o estabelecimento de um sistema no qual partindo da unidade um atributo eacute gerado e mantido por meio das triacuteades permitindo que a comunicaccedilatildeo se estenda do primeiro ao uacuteltimo termo de uma ordem Eacute importante observar entretanto que sendo o Uno a Causa Prima ele transcende a todas as realidades de maneira a estar separado de qualquer ordem Ou seja natildeo se pode dizer que o Uno faz parte de qualquer seacuterie da realidade incorpoacuterea pois transcende a todas Trouillard neste sentido defende que o Uno natildeo estaacute em nenhuma ordem a qual produz24 diferente das demais causas que satildeo o centro de suas ordens

No que respeita agrave realidade supra-sensiacutevel a primeira hipoacutestase que descende diretamente do Uno eacute a divina o universo das heacutenadas Depois delas haacute a realidade inteligiacutevel e em seguida a psiacutequica A hipoacutestase divina eacute aquela na qual se encontra o iniacutecio da multiplicidade embora seja apenas uma multiplicidade quantitativa E mesmo que sejam muitas elas se caracterizam pela unidade dado que eacute a primeira esfera que surge atraveacutes do Uno Neste sentido com base na ideia de que o Uno eacute Deus25 e Bem Proclo defende que a multiplicidade dos deuses eacute unitaacuteria26 tendo

23 CARAM op cit 2014 p 105 24 Cf TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982 p 54 25 Eacute valido lembrar que apesar de ser denominado Deus o Uno soacute possui esta nomenclatura por ser causa e portanto dar origem e manter todos os seres aleacutem de ser objeto de desejo de todos uma vez que eacute o Sumo Bem 26 O caraacuteter transcendente do Uno o leva a ser considerado como Deus mas um deus que transcende a todos os deuses por ser Causa Primeira e objeto de desejo de todas as coisas de modo a estar acima de toda ordem Os primeiros elementos que satildeo deles originados satildeo as Heacutenadas que embora extremamente semelhantes a ele lhe satildeo potencialmente inferior Elas tecircm assim o papel intermediaacuterio entre a realidade divina e inteligiacutevel sendo assim

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

198

em vista que o Diadoco natildeo concebe saltos entre os termos da processatildeo e as Heacutenadas satildeo as primeiras coisas produzidas Apoacutes as Heacutenadas haacute a realidade inteligiacutevel onde se encontra a diversidade de maneira mais concreta tendo em vista que nela haacute inuacutemeras organizaccedilotildees nas quais o iniacutecio da diversidade dos seres eacute manifesto

A estrutura loacutegica da realidade inteligiacutevel procleana eacute interpretada por Caram27 como o fundamento de toda hipoacutestase pois a divisatildeo em Ser Vida e Intelecto tanto reflete os momentos da processatildeo quanto o ciclo das almas28 e o mundo do devir29 Assim a indispensabilidade da triacuteade inteli-giacutevel natildeo se refere somente agrave sua influecircncia no que eacute engendrado em seguida mas agrave unidade presente no Espiacuterito e na totalidade do cosmo Por esta razatildeo a ordem inteligiacutevel encontra na triacuteade Ser Vida e Pensamento sua unidade fundamental na medida em que pensamento e ser estatildeo unidos de tal forma que o pensamento eacute sempre pensamento do ser e o ser eacute sempre ser do pensamento Deste modo ldquo[] na Inteligecircncia estatildeo ambos Ser e Vida por participaccedilatildeo e cada um deles intelectualmente pois o ser da inteligecircncia eacute cognoscitivo e sua vida eacute conhecimentordquo30 A unidade entre Ser e Pensamento daacute ao Noucircs a dinacircmica que se manifesta como a vida que se faz presente no Espiacuterito e que medeia a relaccedilatildeo entre aqueles dois termos31

Proclo assegura a unidade do Espiacuterito ao declarar que cada um dos elementos que o compotildee estaacute presente nos demais embora chame atenccedilatildeo ao fato de que mesmo que tudo esteja em tudo cada um estaacute em seu modo proacuteprio O Diadoco entatildeo apresenta trecircs maneiras de existir essencial-mente vitalmente e intelectualmente32 Cada modo corresponde a um elemento que faz parte da esfera inteligiacutevel e a ligaccedilatildeo entre os trecircs soacute eacute

muacuteltiplas quanto sua quantidade mas unitaacuterias quanto aos seus atributos pois os uacutenicos que podem ser percebidos satildeo bondade e unidade PROCLO Op cit Proposiccedilatildeo 113 27 Cf CARAM op cit 2014 p 107 28 Para Proclo ldquoToda alma eacute uma substacircncia vital e cognoscitiva um princiacutepio de vida substancial e cognoscitiva e um principio de conhecimento por ser uma substacircncia e um princiacutepio de vidardquo PROCLO op cit proposiccedilatildeo 197 (traduccedilatildeo nossa) Cf TRUILLARD O ciclo da alma eacute composto por ser ou substacircncia vida ou potecircncia e pensamento ou atividade p 60 68 29 Cf TRUILLARD op cit 1982p 60 As ordens do reino do devir satildeo mineral vegetal e sensitivo 30 PROCLO op cit Proposiccedilatildeo 103 (traduccedilatildeo nossa) 31 ldquoSin el acto de la vida que opera la mediacioacuten entre los dos elementos el espiacuterito no tendria ninguna conciencia del proacuteprio ser e de la proacutepria esencia [] Ella en cuanto pensante e y existente funda el acto de identida que ocurre entre el ser y el espiacuterito y deviene mediadora dela triadicidad del νοῦςrdquo CARAM op cit 2014 p 117 32 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 103

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

199

possiacutevel porque cada um deles eacute formado pelos mesmos princiacutepios Limite e Ilimitado Desta maneira eacute possiacutevel dizer que cada elemento que faz existir a triacuteade do Espiacuterito eacute formado por outra triacuteade cujos princiacutepios satildeo comuns Ou seja 1) finito infinito e Ser 2) finito infinito e vida e 3) finito infinito e pensamento33 satildeo triacuteades que produzem triacuteades

Limite e Ilimitado satildeo a diacuteade pela qual se manifesta o Uno Satildeo o princiacutepio de todo ser e por esta razatildeo satildeo os elementos centrais para a explicaccedilatildeo da produccedilatildeo da multiplicidade haja vista o Uno soacute produzir semelhantes34 Esses dois princiacutepios satildeo causa de todo ser aleacutem de serem a primeira manifestaccedilatildeo do Uno de maneira que tudo que se segue eacute composto por eles Neste sentido DrsquoAncona atesta que ldquoCes deux priacutencipes consideres par Proclos comme Supremes en tant que responsables de chaque manifestation de stabiliteacute et de changement dans lrsquounivers tout entierrdquo35 Para Proclo ateacute as Heacutenadas que estatildeo no mesmo plano do Uno por fazerem parte da realidade divina procedem dos dois princiacutepios36 Mesmo que os dois princiacutepios soacute sejam percebidos nos seres ou seja como mistura entretanto cada princiacutepio existe por si mesmo e independente um do outro37 - o que leva agrave necessidade de analisar cada um isoladamente

Peraacutes ou o Limite eacute a causa da semelhanccedila com o Uno que segundo Berger representa o Primeiro Princiacutepio por sua estabilidade e concentraccedilatildeo em si mesmo dando a todos que dele participa integridade unidade e estabilidade Por tais donativos que concernem a suas proacuteprias caracteriacutes-ticas ele eacute anaacutelogo ao uno e ao mesmo38 Assim a accedilatildeo do limite por tambeacutem ser entendido como determinante consiste na unificaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas satildeo do Limite como existente em si e por si separado do Ilimitado39 O que acontece eacute que Limite e Ilimitado no entanto na esfera do real soacute podem ser encontrados unidos pois soacute sua uniatildeo ocasiona o primeiro ser o Ser verdadeiramente ser40 Poreacutem antes da mistura como assegura Proclo eacute necessaacuterio que tais princiacutepios existam em si e por si mesmos ainda que sua accedilatildeo soacute se realize na mistura Mas antes de passar

33 Cf BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840 p 44 34 Cf BEZERRA op cit 2006 p 120 35 COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995 p 60 36 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 159 37 Cf Ibid proposiccedilatildeo 90 38 Cf BERGER op cit 1840p 41 39 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 90 40 Cf COSTA Op cit 1995p 61

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

200

para o exame da mistura e sua necessidade eacute preciso discorrer sobre o Ilimitado

Sendo o Limite responsaacutevel pela estabilidade e unidade do ser o Ilimitado ou apeiacuteron diz respeito agrave potecircncia (dynamis) Eacute ele que possibilita o sair da unidade para a multiplicidade por ser uma potecircncia geradora sendo imagem da fecundidade do Uno De acordo com Berger o ilimitado eacute anaacutelogo ao muacuteltiplo e ao outro41 Semelhante ao Limite ainda que o Ilimitado exista substancialmente diferente e separado de qualquer mistura ele natildeo se manifesta separado do seu oposto pois ao ser indeter-minaccedilatildeo necessita de um objeto pelo qual ocorre sua manifestaccedilatildeo Ressaltando entatildeo o caraacuteter de inseparabilidade destes princiacutepios nos seres Caram assevera que ldquoLa ilimitacioacuten nunca existe apartado del liacutemite liacutemite ilimitacioacuten y su combinacioacuten reaparecen en todos los niveles de la realidadrdquo42 Desta feita o que se evidencia eacute que toda existecircncia na esfera inteligiacutevel assim como o que vem depois dela soacute eacute compreendido atraveacutes desses dois princiacutepios

Limite e Ilimitado por serem os primeiros derivados do Uno engendram a esfera Inteligiacutevel e consequentemente toda diversidade dos seres Isto ocorre porque mesmo que o Uno soacute produza unidades tais unidades se singularizam mediante a accedilatildeo do Limite que por sua vez soacute pode atuar no sentido de causar novos seres atraveacutes da accedilatildeo do Ilimitado E o Ilimitado ainda que relativo agrave potecircncia geradora soacute se manifesta quando presente nos seres ou seja quando sofre a do limite43 Eacute portanto partindo do Limite e do Ilimitado que todas as realidades sejam da esfera corpoacuterea ou incorpoacuterea vem agrave existecircncia poreacutem o limite que se encontra nos seres natildeo eacute um Limite puro e com o Ilimitado acontece o mesmo Tem-se agora a triacuteade que compotildee o universo Limite Ilimitado e Mistura

Os dois princiacutepios natildeo se manifestam na esfera do real em sua substacircncia pura o que os leva a dar origem a um terceiro que eacute na verdade a siacutentese dos seus antecessores Assim o terceiro termo como elemento de mediaccedilatildeo e siacutentese do que vem anteriormente estaacute presente em todas as relaccedilotildees triaacutedicas No caso de peacuteras e apeiacuteron tem-se a mistura que na filosofia procleana aparece como o verdadeiro ser Eacute portanto no Ser verda-deiro que a unidade caracteriacutestica do Primeiro princiacutepio eacute salvaguardada

41 Cf BERGER op cit 1840p 41 42 CARAM op cit 2014 p 114 43 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 92

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

201

sem que a diversidade do que vem em seguida seja posta em xeque44 No entanto como jaacute mencionado o reino divino ou seja das Heacutenadas tambeacutem eacute formado atraveacutes dos dois princiacutepios Desta maneira a diversidade dos seres para ser compreendida deve ser analisada nestes dois elementos a saber nas Heacutenadas e no Ser verdadeiramente ser pois eles natildeo satildeo apenas manifestaccedilotildees do Uno mas dos princiacutepios pelo qual satildeo formados

3 A origem da diversidade dos seres

O Ser como siacutentese de limite e ilimitado mesmo que encerre em si a unidade apresenta os dois princiacutepios em relaccedilatildeo pondo em evidecircncia a dualidade que adveacutem de seus componentes45 A dualidade faz do primeiro ser como tudo o que vem em seguida uma triacuteade que mesmo sendo encabeccedilada pelo Ser tem em sua substacircncia Identidade e Diferenccedila Logo o Ser nesta perspectiva se apresenta como uma unidade de contrapo-siccedilotildees dado que natildeo possuir somente o Limite e Ilimitado como perten-centes a si mas tambeacutem Identidade e Diferenccedila o que leva a ter em sua constituiccedilatildeo ser e natildeo-ser46 Eacute importante observar poreacutem que Platatildeo jaacute havia apresentado um natildeo-ser que natildeo dizia respeito a um inexistente

Platatildeo no diaacutelogo Sofista ao investigar a natureza do Ser chega agrave conclusatildeo de que tudo pela participaccedilatildeo eacute ser e simultaneamente natildeo-ser Para tanto considera que o Ser pode ser participado por inuacutemeros gecircneros dos quais o fundador da Academia lista movimento repouso diferente e idecircntico O sentido do ser e natildeo-ser ocorre porque todos os gecircneros satildeo seres pela participaccedilatildeo no Ser e ao mesmo tempo satildeo natildeo-ser por serem diferentes dele47 Com este raciociacutenio Platatildeo chega agrave tese de que o natildeo-ser natildeo eacute pura nulidade sendo portanto algo diferente do Ser embora participe dele48 Proclo segue uma teoria semelhante Nos Elementos de Teologia o Bizantino classifica todas as coisas em unas unas

44 Cf CARAM op cit 2014 p 114-115 45 De acordo com o Diadoco o ser por caracterizar-se como misto de limite e ilimitado tem em si estas duas caracteriacutesticas que nele satildeo indissociaacuteveis Eacute dito ldquoSrsquoil a une infinite puissance il est eacutevidemment infini et sous ce rapport il est forme drsquoinfini Srsquoil est indivisible et semblable agrave lrsquoum sous ce rapport il a parta u deacuteterminatrdquo PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 89 46 Cf CARAM op cit 2014 p 114 47 Sofista 255e-256e 48 Eacute necessaacuterio para Platatildeo que todos os gecircneros participem do Ser sob a pena de sua natildeo existecircncia Neste sentido ao passo que todos os outros gecircneros satildeo ser pela participaccedilatildeo o Ser natildeo participa de nenhum outro gecircnero pois ele eacute causa e se participasse de algo mais seria diferente de si mesmo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

202

e natildeo-unas e natildeo-unas e unas de acordo com a participaccedilatildeo na unidade Ao fazer isto ele natildeo considera aquilo que eacute denominado como natildeo-uno como nada49 de modo a somente estabelecer uma diferenccedila entre o que eacute pura unidade e o que de alguma maneira participa da multiplicidade Platatildeo sobre o sentido da negaccedilatildeo em casos como o do natildeo-ser e natildeo-uno esclarece

Estrangeiro Quando dizemos natildeo-ser nos referimos suponho natildeo a algo que seja o oposto do ser mas somente a algo diferente [] Portanto quando nos disserem que o negativo significa o oposto discordaremos Somente admitiremos que a partiacutecula natildeo indica algo diferente das palavras agraves quais serve de prefixo ou melhor diferente das coisas agraves quais os nomes que se seguem agrave negaccedilatildeo satildeo aplicados50

Platatildeo ainda no Sofista assegura que a natureza do Diferente eacute fragmentada pois quando manifesta nos seres natildeo se revela como diferenccedila Isto significa que o Diferente quando buscado em algo que eacute analisado por si mesmo se mostra como seu contraacuterio ou seja como idecircntico fato que soacute natildeo ocorre quando ponderado por meio da negaccedilatildeo Como exemplo tem-se o momento que objetiva investigar o diferente do branco e para esta razatildeo passa a investigar o preto Este por sua vez natildeo soacute o seu diferente mas o seu oposto ou seja o preto quando visto fora de sua relaccedilatildeo com o branco natildeo aparece como diferente dele mas como idecircntico a si mesmo Desta feita a diferenccedila ao ser estudada nas coisas natildeo se encontra como tal jaacute que o que se manifesta eacute o ser da coisa investigada O sentido do Diferente soacute eacute alcanccedilado quando na busca por ele natildeo se predica os atributos daquilo que se entende por diferente mas o anuncia mediante a negaccedilatildeo

Ao buscar a natureza do diferente se chega ao Idecircntico devido o caraacuteter positivo da afirmaccedilatildeo de sorte que o Diferente soacute pode ser compreendido na negaccedilatildeo Deste modo em Proclo ao estudar a triacuteade que corresponde ao Ser Identidade e Diferenccedila levando em consideraccedilatildeo que Identidade e Diferenccedila satildeo inerentes ao Ser a causa da diferenccedila entre os seres se revela como o princiacutepio do Limite dado que ele eacute quem daacute singularidade atraveacutes do ato de determinar Proclo sobre o

49 A unidade para Proclo eacute o que faz existir todas as coisas neste sentido negar a unidade do que quer que seja significaria negar a existecircncia da coisa Quando o Diadoco todavia se refere ao natildeo-uno ele segue a mesma linha de raciociacutenio que Platatildeo quando se refere ao natildeo-ser 50 Sofista 257b-c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

203

papel do Limite argumenta ldquo[] pero el liacutemite define circunscribe y situacutea cada cosa en sus propios confines [] de suerte que cada uno de los seres tiene una cierta naturaleza una definicioacuten una propiedad y un orden propios por el primer liacutemiterdquo51 Tornado clara a correspondecircncia do Limite na singularidade e particularizaccedilatildeo dos seres tem-se a seguinte questatildeo se eacute o Limite que daacute singularidade ao ser qual o papel do Ilimitado

O Ilimitado natildeo diz respeito ao estado dos seres mas de sua potecircncia Neste sentido Proclo assegura que o grau de potencialidade eacute proporcional ao de Unidade Esta potecircncia no ser natildeo eacute pura pois por ordem de necessidade participa do Limite Logo se pode dizer que por ser potecircncia ela soacute existe atraveacutes daquilo que jaacute estaacute em ato O Diadoco menciona assim dois tipos de potecircncias as infinitas e as finitas sendo as infinitas aquelas que estatildeo nos seres que tem maior participaccedilatildeo no limite O Sucessor Platocircnico no entanto chama atenccedilatildeo ao fato de que apesar de se falar em potecircncias infinitas estas soacute o satildeo para os seres inferiores pois para o ser de potecircncia infinita e para os seus superiores tais potecircncias natildeo satildeo infinitas Isto se daacute porque os inferiores natildeo conseguem compreender a totalidade dos seres que o satildeo superiores jaacute o ser ao qual a potecircncia lsquoinfinitarsquo pertence sabe seu limite assim como o sabem os que lhe satildeo superiores ou seja uma potecircncia soacute aparece como infinita para os seres inferiores que natildeo conseguem compreender seus limites52

O Ilimitado na qualidade de potecircncia proporciona a saiacuteda do Uno em direccedilatildeo agrave multiplicidade provocando a comunhatildeo e conexatildeo entre tudo que existe Pois eacute a potecircncia geradora ao ser indeterminada ou seja natildeo tendo nenhuma caracteriacutestica especiacutefica que perpassa todas as coisas estando portanto presente em todas Ao estar presente em tudo daacute a possibilidade de reunificaccedilatildeo de tudo o que existe Isto posto a identidade pode ser analisada em dois sentidos 1) como potecircncia que atravessa todos os seres dando a todos um caraacuteter comum e 2) como identidade dos seres consigo mesmos O primeiro sentido eacute oriundo do Ilimitado o segundo do Limite que particulariza cada ser Logo o duplo caraacuteter da identidade torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que opostos Identidade e Diferenccedila natildeo se anulam

51 PROCLO Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999 XLII13P 20 - 25 52 Cf PROCLO op cit proposiccedilatildeo 91 93

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

204

A diversidade aparece na hipoacutestase inteligiacutevel mediante a accedilatildeo dos princiacutepios do limite e do ilimitado que fazem da potecircncia que sai do Uno uma unidade delimitando-a e singularizando-a frente ao todo Fica todavia a questatildeo porque haacute diferenccedilas entre os seres que satildeo particularizados pela accedilatildeo dos dois princiacutepios Com a explicaccedilatildeo da diferenccedila como parte integrante do ser fica claro que a diferenccedila tem sua primeira expressatildeo nele porque o limite determina aquilo que jaacute eacute pela possibilidade ou seja age como uma atualizaccedilatildeo Os princiacutepios satildeo pois responsaacuteveis pela forma natildeo pela diversidade da multiplicidade propriamente dita Logo se o Ser eacute o primeiro componente do inteligiacutevel soacute resta recorrer ao primeiro elemento incorpoacutereo ou seja elevar a anaacutelise para o plano divino jaacute que o inteligiacutevel eacute a consumaccedilatildeo daquilo que jaacute existe como causa no divino

De fato toda multiplicidade Proclo repete enquanto tal faz tudo dessemelhante do Uno por consequecircncia ela eacute derivada do Uno natildeo diretamente mas atraveacutes de um princiacutepio de mediaccedilatildeo Este princiacutepio se assemelha ao Uno enquanto unidade que engendra certa multiplicidade particular e se assemelha agrave multiplicidade enquanto possui as caracteriacutesticas de modo arquetiacutepico 53

As Heacutenadas ou unidades divinas satildeo este princiacutepio e portanto a primeira multiplicidade Elas natildeo possuem poreacutem atributos de forma que esta passagem soacute pode ser constatada numericamente Assim a multiplicidade surge na proacutepria realidade divina uma vez que as Heacutenadas satildeo determinaccedilotildees divinas e como tal cooperam com o Uno que estaacute acima de toda ordem na produccedilatildeo dos seres Consequen-temente do Uno os seres recebem sua existecircncia e das Heacutenadas seus predicados atraveacutes da participaccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoasiacute es la heacutenade la que impone su propio caraacutecter a los existentes participantes y despliega existencialmente en el uacuteltimo la cualidad que eacutel mismo posee supra-existencialmente54 Por conseguinte toda diversidade existente na esfera do real jaacute se encontra nas Heacutenadas de maneira germinal Agrave vista disto para cada Heacutenada participaacutevel existe um ser participante o que

53 ldquoDe fait toute multipliciteacute Proclus le reacutepegravete est en tant que telle tout agrave fait dissemblable de lrsquoUn par conseacutequent elle deacuterive de lrsquoUn non directement mais agrave travers un principe de meacutediation Ce dernier ressemble agrave lrsquoun en tant qursquoil est lrsquouniteacute qui engendre cette multipliciteacute particuliegravere et ressemble agrave la multipliciteacute en tant qursquoil en possegravede les caractegraveres de faccedilon archeacutetypiquerdquo COSTA Op cit 1995p 87 54 PROCLO op cit proposiccedilatildeo 137

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

205

proporciona o desenvolvimento da caracteriacutestica fundamental de cada seacuterie55

A diversidade dos seres portanto na esfera incorpoacuterea natildeo se trata da accedilatildeo do movimento de geraccedilatildeo como acontece na realidade corpoacuterea A diversidade nasce como realizar-se daquilo que jaacute existe como causa nas Heacutenadas por intermeacutedio da accedilatildeo dos princiacutepios do Limite e Ilimitado Logo natildeo se pode dizer que haacute uma mudanccedila nos seres no domiacutenio da inteligibilidade mas uma passagem da potecircncia ao ato possibilitada pelo mister de limite e ilimitado Desta forma o Uno por ser causa Suma daacute existecircncia a tudo e as Heacutenadas pela participaccedilatildeo daacute os atributos que jaacute existem nelas mesmas em forma de causa Quanto aos princiacutepios do Limite e Ilimitado a eles cabe o papel de manifestar tais atributos na medida em que delimitam o ser singularizando-o Com isso tais seres seratildeo idecircnticos agrave mocircnada de sua ordem e agrave totalidade das coisas por possuiacuterem unidade e tambeacutem satildeo diferentes por sua particularizaccedilatildeo Tal diferenccedila contudo soacute pode ser percebida quando analisada a totalidade dos seres

Conclusatildeo

Ante o exposto o que pode ser concluiacutedo eacute que ainda que o sistema procleano seja regido por multiplicaccedilatildeo pela semelhanccedila pois eacute do Uno que toda multiplicidade tem origem isto soacute eacute possiacutevel porque seu sistema consiste em uma trama de relaccedilotildees Ocorre que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento ontoloacutegico isto eacute natildeo se trata de uma saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade por meio de uma sucessatildeo de eventos O que pode ser percebido quando eacute dito que natildeo haacute um antes ou depois relativo aos momentos da processatildeo O fato de natildeo existir um antes ou depois no movimento de processatildeo todavia natildeo implica em uma estabilidade no sistema do Bizantino pelo contraacuterio seu sistema eacute marcado pelas relaccedilotildees entres os termos Sendo por meio das triacuteades que tal relaccedilatildeo adquire dinamicidade

Assim se por um lado a realidade supra-sensiacutevel eacute marcada pela imobilidade com exceccedilatildeo da Alma que eacute automotora por outro ela tambeacutem eacute marcado por triacuteades que permanecem em constante relaccedilatildeo De modo que a relaccedilatildeo dialeacutetica existente entre os termos das triacuteades eacute o que possibilita a origem da diferenccedila na hipoacutestase inteligiacutevel dando a ela

55 Op cit proposiccedilotildees 131 135

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

206

um caraacuteter dinacircmico que lhe possibilita atributos aleacutem da unidade e bondade Porquanto ainda que a imobilidade esteja presente na realidade supra-sensiacutevel no sentido de natildeo existir um movimento de geraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre os princiacutepios oriundos diretamente do Uno peacuteras e apeiacuteron possibilita tanto a passagem da unidade agrave multiplicidade quanto a diversidade de seres existente Ou seja eacute a relaccedilatildeo dinacircmica que permite a existecircncia do diferente e ao passo que proporciona o diferente viabiliza tambeacutem o idecircntico

Logo o que se pode concluir eacute que no que concerne agrave realidade sensiacutevel toda a diversidade adveacutem do movimento seja o de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seja o de deslocamento jaacute na realidade supra-sensiacutevel a diversidade eacute oriunda das relaccedilotildees Considerando que eacute na relaccedilatildeo dos princiacutepios que constitui os seres que os predicados passam da potecircncia ao ato conservando caracteriacutestica dos princiacutepios que o constitui Neste sentido todo ser eacute ao mesmo tempo o resultado de seus princiacutepios e algo diferente deles De modo que eacute na relaccedilatildeo que o Outro e o Mesmo tecircm existecircncia sendo tambeacutem por ela que eacute possiacutevel chegar natildeo soacute ao ser em particular mas a totalidade dos seres

Referecircncias Bibliograacuteficas

BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006

CARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 pp 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesre vistasthemata49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015

COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995

REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008

PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

207

________ Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999

PLATAtildeO Parmecircnides In Diaacutelogos IV Parmecircnides (ou formas) Poliacutetico (ou da realeza) Filebo (ou do prazzer) Liacutesis (ou da amizade) Traduccedilatildeo textos complementares e notas de Edson Bini Bauro SP EDIPRO 2009

__________ Sofista In Diaacutelogos I Teeteto (ou sobre o conhecimento) Sofista (ou do ser) Protaacutegoras (ou sofista) Traduccedilatildeo textos complemen-tares e notas Edson Bini ndash Bauru SP EDIPRO 2007

SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012

TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982

Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Doutora pela Universidad Complutense de Madrid

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza soeudaimoniahotmailcom

Jan Gerard Joseph ter Reegen Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Professor emeacuterito da Universidade Estadual do Cearaacute e Coordenador de Pos-Graduaccedilatildeo e Extensatildeo da FCF

jangjtrgmailcom

Suelen Pereira da Cunha Mestranda pela Universidade Federal do Cearaacute

suelenldp2011gmailcom

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

208

ENSAIO

AS FONTES MIacuteSTICAS E COSMOLOacuteGICAS DO ldquoCASTELO INTERIORrdquo DE TERESA DrsquoAacuteVILA

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo

Na obra Castelo Interior ou Moradas Teresa de Jesus miacutestica do Renascimento espanhol encarou a tarefa de descrever suas experiecircncias extaacuteticas Semelhante a outros miacutesticos natildeo o poderia fazer sem interpretar e mediatizar uma experiecircncia que eacute supralinguiacutestica Por isso recorreu ao simbolismo Comparou a alma a sete castelos ou globos concecircntricos de cristal ou diamante Esses castelos simbolizam as etapas da ascensatildeo da alma O Castelo Interior eacute ldquoa aacutervore da vida que estaacute plantada nas mesmas aacuteguas vivas que eacute Deusrdquo (1M 21) Eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a cabala mais especificamente com a literatura judaica conhecida como Hechalot (Palaacutecios)

Palavras-chave Teresa de Jesus Miacutestica Renascentista Moradas Hechalot

1 Introduccedilatildeo

Santa Teresa de Jesus ou simplesmente Santa Teresa DrsquoAacutevila (1515 ndash 1582) miacutestica carmelita e escritora foi uma das mais eminentes contem-plantes do Renascimento espanhol A reformadora do Carmelo por moti-vos de obediecircncia agrave autoridade da igreja enfrentou a tarefa de colocar por escrito seus ecircxtases com o objetivo de instruir as monjas que estavam sob sua tutela a respeito do caminho interior para alcanccedilar a uniatildeo miacutestica Ela proacutepria definiu seu empenho como difiacutecil quase impossiacutevel porque nas operaccedilotildees iacutentimas da alma se adere agrave secreta ldquolinguagem de Deusrdquo Natildeo sabendo nem como comeccedilar sua empreitada Teresa acreditou ter recebido de Deus a inspiraccedilatildeo de considerar a alma como um castelo1 de diamante

1 Castelo Interior ou Moradas eacute sua obra mestra escrita em 1577 cinco anos antes da morte de Teresa

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

209

ou de cristal com muitos aposentos da mesma forma que no ceacuteu haacute muitas moradas (1M 11)

A alma humana eacute considerada agrave maneira de sete moradas ou globos concecircntricos de fino cristal ou diamante que marcam as etapas progres-sivas do desenvolvimento miacutestico O progresso espiritual descrito por meio das sete moradas resume as trecircs etapas principais da vida interior e da oraccedilatildeo

Trecircs das moradas enfocam o que se pode fazer para avanccedilar ateacute as moradas interiores nas quais estaacute Deus Exigem o desenvolvimento do amor ao proacuteximo da renuacutencia a julgar os outros do conhecimento de si da humildade do processo de interiorizaccedilatildeo e ativaccedilatildeo do desejo por Deus

A quarta eacute uma etapa de transiccedilatildeo na qual se comeccedila a responder ao chamado de Deus e eacute quando Ele comeccedila a assumir o controle de tudo Nas moradas mais interiores Deus purifica a alma cada vez mais e a vai tornando a Sua semelhanccedila ateacute a etapa do matrimocircnio espiritual

A quinta morada eacute a da santidade A esse ponto Teresa dedica quase a metade do Castelo Interior pois essas etapas mais profundas requerem orientaccedilatildeo mais cuidadosa A transformaccedilatildeo interior estaacute cada vez mais intensa e soacutelida e o coraccedilatildeo vai ficando sempre mais inundado pela radiante luz divina

Na sexta morada Teresa disserta sobre as provas exteriores e interiores acerca dos trabalhos os obstaacuteculos e as adversidades agrave santificaccedilatildeo que satildeo cada vez mais numerosos fortes e sutis e exigem maior capacidade de discernimento

A uacuteltima morada a mais interior eacute diferente de todas pois nesse estado acontece a uniatildeo miacutestica Ali estaacute Deus com quem a alma se une pois fica cheia de luz tendo deixado para traacutes o democircnio na forma de vaacuterios animais ferozes e peccedilonhentos (4M 19) Haacute uma fusatildeo entre a alma e a Luz divina Eacute o matrimocircnio miacutestico

[] eacute como se a aacutegua caindo do ceacuteu em um rio ou fonte onde estiver toda a aacutegua jaacute natildeo se pode separar nem distinguir qual eacute a aacutegua a do rio ou a que caiu do ceacuteu (7M 24)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

210

2 Os limites da linguagem humana

Michael Gerli nos mostra que muitas metaacuteforas espirituais especial-mente as arquitetocircnicas se tornaram populares na espiritualidade euro-peacuteia precisamente por seu caraacuteter mnemoteacutecnico2 que as tornava atraentes (GERLI 1982 p 154-163) Eacute notoacuterio que isso ocorreu com a metaacutefora usada por Teresa pois esta pedia agraves filhas espirituais que o trouxessem sempre agrave memoacuteria (1M 26 7M 39)

Agrave primeira vista o esquema simboacutelico usado por Teresa parece original contudo eacute impossiacutevel expressar literariamente uma experiecircncia dessa natureza sem recorrer aos siacutembolos disponiacuteveis no contexto cultural e religioso no qual o miacutestico estaacute inserido

Conforme Barbara Kurtz a linguagem dos miacutesticos natildeo pode transcrever uma experiecircncia sem interpretaacute-la e mediatizaacute-la por mais que se lute contra os limites da linguagem humana incapaz de abordar a transcendecircncia (KURTZ 1992 p 32)

Nesse sentido Teresa confessa natildeo saber como expressar a miste-riosa vivecircncia miacutestica que teve por isso eacute que se utiliza de metaacuteforas O castelo interior tal como o descreve Teresa eacute tanto uma figura de grande beleza plaacutestica quanto algo muito faacutecil de recordar Portanto deve pertencer ao contexto da autora Por ser uma metaacutefora entretanto pouco usada torna-se difiacutecil rastrear as possiacuteveis origens desse simbolismo

O contexto cultural no qual o miacutestico vive ajuda a dar forma simboacutelica agrave sua experiecircncia transcendente que eacute em si supralinguiacutestica O ecircxtase eacute por definiccedilatildeo inefaacutevel por isso o miacutestico sempre recorre a metaacuteforas que satildeo comuns em seu ambiente cultural para explicitar de alguma maneira o que aconteceu nas fronteiras espaciotemporais da razatildeo e da linguagem

Sendo assim haacute o seguinte problema de onde Teresa tira o simbo-lismo com o qual descreve a experiecircncia miacutestica Seus estranhos castelos concecircntricos natildeo pertencem agrave tradiccedilatildeo cristatilde ocidental Em qualquer outro escrito de espiritualidade encontramos o avanccedilo miacutestico da alma claramente estruturado ao longo de sete moradas (ou castelos) cada vez mais interiores

2 Teacutecnica de estimulaccedilatildeo da memoacuteria sinocircnimo de arte de memorizaccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

211

3 Busca das fontes Teresianas

A busca miacutestica da uniatildeo com Deus foi simbolizada tradicional-mente por uma viagem um trajeto percorrido pela alma Isso faz parte de um conjunto de siacutembolos religiosos adotados por cristatildeos judeus e mulccedilumanos ao longo da histoacuteria Muitas tradiccedilotildees mencionam um itineraacuterio e um desejo intenso da alma por Deus Falam da entrega e da purificaccedilatildeo da renuacutencia e do abandono resultantes da uniatildeo miacutestica

Gaston Etchegoyen propotildee que Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna ambos autores muito apreciados pela Carmelita sejam as princi-pais fontes para o Castelo Interior (ETCHEGOYEN 1923 15) Mas o proacuteprio Etchegoyen admite que os esboccedilos de ambos natildeo satildeo suficientes para explicar os pormenores do siacutembolo usado por ela

Francisco de Osuna se limita a um esquema muito restrito agraves alegorias medievais no qual os inimigos tradicionais (a carne o mundo e o democircnio) tentam penetrar o castelo da alma Bernardino Laredo com seu modo de compreender a civitas sancta assentada em um campo quadrado de fundamento de cristal com muros de pedras preciosas e com um ciacuterio pascal no centro que simboliza Cristo eacute mais distante ainda do esquema teresiano

Outros propotildeem como antecedentes teresianos os romances de cavalaria do Renascimento espanhol que a Santa admite ter lido com grande paixatildeo juvenil Quando examinamos esses livros somos forccedilados a concluir que eles natildeo nos datildeo a chave do siacutembolo imaginado pela Monja de Aacutevila Em nenhum romance da eacutepoca os castelos satildeo sete vezes concecircntricos nem celebram a uniatildeo teopaacutetica3 em seu recinto mais interno Nem na arquitetura dos castelos espanhoacuteis os quais ainda se podem visitar constam de sete moradas cada vez mais interiores (PEERS 1951 p 17)

4 Recurso agrave miacutestica judaica

A fase primitiva da miacutestica judaica antes de se cristalizar na Cabala medieval que eacute a mais longa e se estende desde o seacuteculo I aC ateacute o seacuteculo X eacute conhecida indistintamente como a tradiccedilatildeo da Merkavah ou miacutestica Carruagem ou do Trono de Deus A literatura da Merkavah se desenvolveu com suporte em especulaccedilotildees sobre visotildees profeacuteticas do Antigo Testamento O termo hebraico merkabah refere-se ao trono-

3 Sensiacutevel agrave divina influecircncia ser profundamente afetado por Deus

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

212

carruagem de Deus na visatildeo de Ez 1 O corpus principal da literatura Merkabah foi composto no periacuteodo de 200-700 dC

Na fase mais antiga o visionaacuterio o miacutestico era arrebatado geral-mente ateacute agraves esferas celestes e vislumbrava Deus como rei sentado em um trono sustentado por uma carruagem em um firmamento de cristal rodeado de raios com querubins e quatro seres vivos junto a Ele

A primeira apresentaccedilatildeo da escala completa da Merkavah a miacutestica da carruagem do Senhor aparece nos escritos visionaacuterios conhecidos como os livros de Hechalot Esses escritos consistem em descriccedilotildees Hechalot salas o palaacutecios celestiais O desejo mais profundo do miacutestico era alcanccedilar a sala do trono durante a ascensatildeo aos ceacuteus para contemplar o esplendor da majestade de Deus A literatura Hechalot dedica-se a discutir os detalhes desses ceacuteus agraves vezes em conexatildeo com as tradiccedilotildees relacionadas com a apocaliacuteptica dos ciacuterculos de Henoque (SCHOLEM 1965 p 9-13)

Para alguns estudiosos a literatura Hechalot eacute um gecircnero de textos esoteacutericos e apocaliacutepticos judaicos que se estendem ateacute o iniacutecio da Idade Meacutedia Os sete Hechalot ou sete ceacuteus fazem parte da cosmologia religiosa encontrada nas grandes religiotildees como o judaiacutesmo o hinduiacutesmo e o islamismo bem como em algumas religiotildees menores como o hermetismo e gnosticismo Segundo essa cosmologia o trono de Deus estaacute acima do seacutetimo ceacuteu

Vaacuterias religiotildees atribuem ao nuacutemero sete a perfeiccedilatildeo uacuteltima tampouco a miacutestica judaica o ignorou estaacute em obras como os Sete Hechalot ou Sete Palaacutecios a que o israelita recorria simbolicamente para falar do arrebatamento do vidente ateacute ascender ao Trono de Deus conforme o texto do Sefer Hechalot4 ou Terceiro Livro de Henoque muito considerado pela cabala judaica Essa obra se mostra como tendo sido escrita no seacuteculo II dC mas suas origens soacute podem ser rastreadas ateacute o seacuteculo V O autor se faz passar pelo Rabi Ismael o qual teria se tornado um ldquosumo sacerdoterdquo depois das visotildees decorrentes de seu arrebatamento ao ceacuteu Os principais temas abordados pelo Sefer Hechalot satildeo a ascensatildeo de Henoque ao ceacuteu e sua transformaccedilatildeo no anjo Metatron (DAN 1993 p 7-24)

No final do seacuteculo XIII Moiseacutes de Leoacuten compilou uma obra atribuiacuteda ao rabino Simeon ben Yohai que viveu na Palestina no seacuteculo II

4 Sefer significa livro e Hechalot quer dizer Palaacutecios ou Templos

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

213

Na citada obra conta-se uma experiecircncia visionaacuteria do suposto rabino no momento em que a alma dele se libera momentaneamente do corpo e experimenta una revelaccedilatildeo magniacutefica sob a forma de sete palaacutecios do paraiacuteso e em contrapartida sete palaacutecios do inferno Isso significa que ainda existe um sistema de siacutembolos essenciais dos ensinamentos dos Hechalot unido a novas ideias desenvolvidas posteriormente com origens nas especulaccedilotildees sobre a merkavah ou carruagem do Senhor

A obra compilada por Moiseacutes de Leoacuten recebeu o nome Zoha ou Livro do Esplendor o grande comentaacuterio miacutestico judaico que compendiou a Cabala No Zohar os sete palaacutecios estatildeo povoados de anjos que irradiam luz Em contraste com o objetivo dos primeiros miacutesticos da merkavah que era ver a sala do trono de Deus o desejo do miacutestico apresentado pelo Zohar eacute chegar a uma comunhatildeo com Deus ou seja a uma fusatildeo entre as vontades divina e humana que se realiza no ecircxtase e eacute simbolizada no ldquobeijo do Amorrdquo Conforme o Zohar o beijo que une a alma a Deus eacute descrito no seacutetimo palaacutecio e sua intensidade eacute tal que pode extrair a alma do corpo e levaacute-la para Deus provocando a morte fiacutesica

Santa Teresa tambeacutem menciona como o Zohar o beijo com que o Rei divino consuma o matrimocircnio espiritual na seacutetima morada de seu Castelo Interior Refere-se tambeacutem a experiecircncias extaacuteticas intensas nas quais a alma parece ser arrebatada do corpo e raptada ateacute uma comunhatildeo com Deus Teresa caracteriza essas experiecircncias como suficientes para levar o miacutestico agrave morte (7M 25 36)

5 Influecircncias da cosmologia aristoteacutelica

Aleacutem das fontes judaicas eacute possiacutevel encontrar outras influecircncias para o simbolismo teresiano As versotildees latinas das obras aristoteacutelicas Estavam amplamente divulgadas no contexto no qual Teresa viveu No livro De Caelo Aristoacuteteles imaginou o universo na forma de esferas concecircntricas que giram em movimento circular Este esquema coacutesmico se transformou em um siacutembolo que dava um transfundo para o caminho espiritual do ser humano (LOacutePEZ-BARALT 2010 p 180)

Salta agrave ideia de que Santa Teresa ao falar da alma na forma de sete ciacuterculos ou castelos concecircntricos alude de maneira obliqua agraves sete esferas planetaacuterias da cosmovisatildeo medieval herdada de Aristoacuteteles e da literatura de Hechalot A Carmelita estaria visualizando a alma como um reflexo microcoacutesmico do macrocosmo celestial estaria comparando as moradas espirituais natildeo somente com castelos mas tambeacutem com as

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

214

esferas do ceacuteu Nesse caso o ser humano teria dentro de si todas as esferas celestes

6 Conclusatildeo

Conclui-se que Teresa natildeo criou a formosa imagem plaacutestica dos castelos interiores Por mais inusitado que isto pareccedila agrave sensibilidade do cristatildeo ocidental ela simplesmente a elaborou em detalhes geniais a cristianizou e a adaptou aos seus fins

Igual a muitos filoacutesofos poetas e humanistas da Eacutepoca Renascen-tista miacutesticos cristatildeos foram profundamente influenciados pela literatura da Cabala no seacuteculo XIII Reconheceram na miacutestica judaica em geral um caminho seguro para compreender melhor suas experiecircncias com procedecircncia em raiacutezes miacutesticas mais antigas

Swietlicki orienta contudo a natildeo se ter a pretensatildeo de que a influecircncia da cabala judaica sobre os miacutesticos cristatildeos nos temas e siacutembolos usados por estes sejam resultado de influecircncia literaacuteria mas apenas supotildee-se que os traccedilos de cabala foram persistentes em ciacuterculos populares mesmo apoacutes a expulsatildeo dos judeus da Espanha (SWIETLICKI 1986 p 28) Dessa forma a miacutestica cristatilde teria se tornado um importante veiacuteculo para a transmissatildeo da Cabala judaica mesmo no seacuteculo XVI Eacute fato inegaacutevel entretanto a influecircncia da cabala sobre estas figuras importantes

Referecircncias Bibliograacuteficas

BENSION Ariel O Zohar o livro do esplendor Satildeo Paulo Polar Edito-rial 2006

DAN Joseph The Ancient Jewish Mysticism Tel Aviv Mod Books 1993

ETCHEGOYEN Gaston Lrsquoamour divin Essai sur les sources de Sainte-Theacuteregravese Bordeaux Feret 1923

GERLI Michael ldquoEl castillo interior y el arte de la memoriardquo Bulletin Hispanique 861-2 (1982) 154-163

KURTZ Barbara ldquoThe Small Castle of the Soul Mysticism and Metaphor in the European Middle Agesrdquo Studia Mystica XV (1992) 28-35

LOacutePEZ-BARALT Luce ldquoTeresa of Jesus and Islam The Simile of the Seven Concentric Castles of the Soulrdquo in Hilaire KALLENDORF (ed) A New Companion to Hispanic Mysticism Danvers BRILL 2010 p 175-199

PEERS Edgar Allison Study of the Spanish Mystics London SPCK 1951

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

215

SCHOLEM Gershom Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and the Talmudic Tradition New York Jewish Theological Seminary of America 1965

SWIETLICKI Catherine Spanish Christian Cabala The works of Luis de Leoacuten Santa Teresa de Jesus and San Juan de la Cruz Columbia Missouri University of Missouri Press 1986

TERESA DE JESUacuteS Santa Moradas del Castillo Interior in Obras Completas Madrid Editorial Catoacutelica 1951

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

216

TRADUCcedilAtildeO

COMECcedilAM OS ERROS DOS FILOacuteSOFOS ARISTOacuteTELES AVERROacuteIS AVICENA ALGAZEL

AL-KINDI MAIMONIDES COLETADOS POR IRMAtildeO EGIacuteDIO DA ORDEM DE SANTrsquo AGOSTINHO1

Introduccedilatildeo I Vida de Egiacutedio Romano ndash Aegiacutedius Romanus

Aegiacutedius Romanus ndash Egiacutedio Romanos ndash tambeacutem conhecido por seu nome francecircs Giles de Rome nasceu em Roma em 1243

Depois de sua entrada na ordem dos Agostinianos estudou em Paris de 1269 ndash 1272 com Tomaacutes de Aquino Com Tomaacutes aproveitou o pensa-mento aristoteacutelico que comeccedilou a se afirmar nos estudos filosoacuteficos com reflexos na Faculdade Teoloacutegica da Universidade de Paris Em consequecircncia das 219 teses ligadas agrave Filosofia e Teologia aristoteacutelicas publicadas em 7 de marccedilo de 1277 e que foram consideradas levianas ou hereacuteticas e como tais em desacordo com os dados da Revelaccedilatildeo pelo bispo de Paris Etienne Tempier Egiacutedio foi obrigado a deixar Paris e por enquanto natildeo conseguiu permanecer na Universidade Em Paris produziu a sua obra poliacutetica De Regimine Principum Em 1285 Egiacutedio refutou as teses que foram condenadas pela maioria da comunidade acadecircmica da universidade parisiense e como consequecircncia lhe foi possiacutevel a sua carreira acadecircmica

A partir de 1292 Egidio assume tanto na ordem dos Agostinianos como na Igreja uma posiccedilatildeo de destaque A sua atuaccedilatildeo desenvolveu-se de modo especial na aacuterea poliacutetica do papa Bonifaacutecio VIII cujas teorias 1 Incipiunt Errores philosophorum Aristotelis Averrois Avicenna Algazelis Alkindi Rabbi Moysis A fratre Aegido collecti ord S Augustini Traduccedilatildeo elaborada a partir do texto latino publicado em Giles of Rome Errores Philosophorum Critical Text with Notes and Introduction by Joseph Koch English Translation by John O Riedl Milwaukee Wisconsin Marquette University Press 1944 Neste Trabalho soacute se apresenta a versatildeo da parte sobre Aristoacuteteles cap 1-2-3 Oportuna-mente apresentar-se-atildeo os outros autores mencionados

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

217

entraram em choque com as praacuteticas e pensamentos do Rei Philippe IV o que levou agrave uma tensatildeo profunda na Igreja do Ocidente

Egidio morreu em 1316 em Avignon Agrave sua mente fina deve o apelido ldquodoctor fundatissimusrdquo ndash doutor profundo mas em razatildeo de certa prolixidade de suas obras o chamam ldquodoctor verbo-susrdquo ndash doutor tagarela

II Autoria e data

Embora sob a autoridade de Mandonnet o texto em estudo tenha sido longamente considerado como espuacuterio estudos posteriores poreacutem dos principais mestres comprovaram a autenticidade da autoria de Egidio Aleacutem disso a comprovaccedilatildeo eacute encontrada em alguns comentaacuterios antigos como tambeacutem nas primeiras ediccedilotildees impressas em 1428 e 1581 editadas em Veneza

Uma anaacutelise da obra comprova assim Koch uma concordacircncia quanto ao estilo e conteuacutedo da Incipiunt com outros escritos do Egiacutedio Mais peso entretanto eacute atribuiacutedo agrave concordacircncia de estilo entre a Incipiunt e outras obras egidianas Cita-se entre outros os seus comentaacuterios sobre a De Generatione et corruptine a Physica que lembram imediatamente os nordm 6-7-8-12 e 14 da Incipiunt (para maiores detalhes cf Koch p XXXIV e XXXV)

E Incipiunt pertence agraves primeiras obras de Egidio e deve ser situada ao redor do ano 1268 visto que no momento em que compocircs este trabalho ele jaacute tinha completado a sua formaccedilatildeo filosoacutefica e como tudo indica tambeacutem uma parte da formaccedilatildeo teoloacutegica

O termino da obra eacute o comentaacuterio da De Generatione et corruptione que cuja data deve se situar entre 1273 e 1274

Isto leva a considerar que a obra deve ser composta ao redor do ano de 1270

III Traduccedilatildeo do Texto

Afirma-se em primeiro lugar

Capiacutetulo I Sobre a lista de erros de Aristoacuteteles

Porque de um dado errado derivam muitas consequumlecircncias de um fundamento falso o Filoacutesofo tirou muitos erros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

218

1 Acreditou pois que nada estaacute numa determinada situaccedilatildeo em que anteriormente natildeo estava senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Avaliou portanto que soacute haveria novidade aonde tivesse uma mudanccedila propriamente dita Consequumlentemente como toda mudanccedila propriamente falando eacute o fim de um movimento natildeo poderaacute haver novidade sem um movimento precedente Deste argumento entatildeo concluiu que o movimento nunca comeccedilou porque se o movimento se iniciasse seria algo novo Mas natildeo existe coisa nova senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Entatildeo antes do primeiro movimento houve algum movimento O que eacute incoerente

2 Aleacutem disso errou ao afirmar que o tempo nunca comeccedilou porque o tempo sempre segue o movimento Se entatildeo o movimento natildeo comeccedilou nem o tempo iniciara Pareceu-lhe que a razatildeo teria uma difi-culdade especial em relaccedilatildeo ao tempo Visto que o instante eacute sempre o fim do passado e o comeccedilo do futuro natildeo se pode falar de um primeiro momento Por isso antes de todo e qualquer momento houve algum tempo e antes de qualquer tempo dado houve um momento Entatildeo o tempo natildeo comeccedilou mas eacute eterno

3 Aleacutem disso por causa daquilo que foi dito foi obrigado a afirmar que aquilo que se move eacute eterno e que tambeacutem o mundo eacute eterno porque uma vez que natildeo haacute tempo sem movimento e nem movimento sem algo moacutevel se tempo e movimento satildeo eternos o que se move seraacute eterno e assim o mundo nunca comeccedilou Tudo isso fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica

4 E mais Foi obrigado a afirmar que o ceacuteu natildeo eacute gerado e eacute incorruptiacutevel e que nunca foi feito mas que sempre existiu Como entre os outros movimentos soacute o movimento circular eacute contiacutenuo como fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica se qualquer movimento eacute eterno o circular seraacute eterno E porque a movimento circular eacute proacuteprio do ceacuteu como se prova no 1ordm livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo conclui-se da mesma forma que o ceacuteu eacute ingecircnito e que nunca foi feito Tinha ele uma razatildeo especial para dizer que o ceacuteu natildeo comeccedilou porque qualquer coisa que possui o poder de sempre existir no futuro tambeacutem teraacute o poder de ter existido sempre no passado E porque o ceacuteu natildeo termina natildeo comeccedilou a existir

5 E ainda visto que na opiniatildeo dele qualquer coisa que eacute feita eacute feita de mateacuteria preexistente assim opinou que Deus natildeo poderaacute fazer um outro mundo porque este o atual eacute feito de toda a mateacuteria Este erro tambeacutem pode ser encontrado no 1ordm Livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

219

6 Argumentou ainda que a geraccedilatildeo das coisas inferiores nunca cessaraacute como tambeacutem nunca tem comeccedilado Porque a corrupccedilatildeo antecede e segue toda a geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo antecede e segue toda a corrupccedilatildeo Por isso visto que a corrupccedilatildeo precede qualquer geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo qualquer corrupccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a corrupccedilatildeo e a geraccedilatildeo terem tido iniacutecio nem eacute possiacutevel elas terminarem porque a qualquer geraccedilatildeo segue a corrupccedilatildeo e a qualquer corrupccedilatildeo segue a geraccedilatildeo Se entatildeo a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo terminassem depois da uacuteltima geraccedilatildeo teria uma geraccedilatildeo e depois da uacuteltima corrupccedilatildeo uma corrupccedilatildeo Que a corrupccedilatildeo precede e segue a geraccedilatildeo ele provou pelo caminho do movimento Porque natildeo existe nada gerado sem que haja algo corrompido e desta forma a corrupccedilatildeo precede a geraccedilatildeo e tambeacutem a segue porque tudo que eacute gerado eacute corruptiacutevel e todo corruptiacutevel e corrompido por necessidade Assim tambeacutem a geraccedilatildeo precede a corrupccedilatildeo Porque nada eacute corrompido que natildeo foi gerado antes e segue a geraccedilatildeo porque a corrupccedilatildeo de um eacute a geraccedilatildeo de outro Este erro pois que a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo natildeo comeccedilam nem terminam pode se achar no 1ordm Livro de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) e de forma mais expliacutecita no Livro 2ordm

7 Ainda em razatildeo de a geraccedilatildeo neste mundo inferior acontecer pelo sol Aristoacuteteles foi obrigado de afirmar que o sol ldquonunca deixaraacute de gerar plantas e animaisrdquo como fica evidente do Livro 1ordm de De Vegetalibus (Sobre os Vegetais)

8 Ainda visto que natildeo existe novidade sem movimento anterior conforme o argumento apresentado ele errou querendo que de Deus natildeo possa proceder de forma imediata algo novo como fica claro do Livro 2ordm de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) onde diz que ldquoaquilo que permanece o mesmo sempre produziraacute o mesmordquo

9 Ainda foi obrigado a negar a ressurreiccedilatildeo dos mortos Por isso considera improvaacutevel como fica claro do Livro 1 de De Anima (Sobre a Alma) que os mortos ressurjam Porque no Livro VIIIordm da Metaphysica quer que aquilo que estaacute morto natildeo se torne vivo de novo senatildeo atraveacutes de muitos meios e se reviver natildeo revive o mesmo numericamente porque aquelas coisas cuja substacircncia se perdeu natildeo voltam as mesmas numericamente como afirma no fim do Livro IIordm de De Generatione

Natildeo tem validade que alguns tentam desculpa-lo dizendo que ele fala pela via da natureza quando acredita que nada de novo possa imediatamente proceder de Deus mas que toda coisa nova acontece por meio do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

220

10 Ainda visto que acreditou que nada de novo possa acontecer senatildeo atraveacutes do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza acreditou como se revela no Livro Iordm de Physicae (Fiacutesica) quando argumenta contra Anaxaacutegoras que um intelecto que procura separar paixotildees e acidentes da substacircncia eacute ldquoum intelecto que procura o impossiacutevelrdquo

Desta opiniatildeo parece seguir que Deus natildeo pode fazer um acidente sem substacircncia

11 Ainda visto que atraveacutes do caminho do movimento nunca haacute geraccedilatildeo de alguma coisa se natildeo houver corrupccedilatildeo de outra e que nunca eacute introduzida uma forma substancial se outra natildeo for expulsa porque a mateacuteria eacute a mesma para todas que a possuem disto se segue que natildeo haacute mais formas substanciais num composto do que em outro De fato aquele que prossegue bem neste caminho veraacute que deve ser colocada em todo composto somente uma forma substancial e assim parece ser a posiccedilatildeo do Filoacutesofo Por isso no Livro VIIordm da Metaphysica no capiacutetulo De unitate diffinitionis (Sobre a Unidade da definiccedilatildeo) afirma que as partes de uma definiccedilatildeo natildeo satildeo uno ldquoporque estatildeo num unordquo mas porque indicam uma natureza

Entatildeo se entender uma natureza composta de vaacuterias formas isto eacute toleraacutevel mas se entender uma natureza simples e que num composto haja somente uma forma isto eacute falso

12 Ele afirma ainda que onde haacute agora pacircntano e mar uma vez existiu terra seca e vice versa porque o tempo natildeo para mas eacute eterno como fica claro do Livro Iordm Meteoreorum Consequentemente tambeacutem lhe foi necessaacuterio afirmar que natildeo houve um primeiro homem nem uma primeira chuva

13 Ainda deste modo querendo proceder pela via da natureza acreditou visto que dois corpos natildeo podem existir simultaneamente no mesmo lugar como eacute revelado no Livro IVordm da Physica que era tatildeo absolu-tamente essencial ldquoper serdquo agraves dimensotildees resistir a dimensotildees e que eacute impossiacutevel as dimensotildees continuarem existindo e entretanto natildeo resistir aacutes dimensotildees

Disto se segue que Deus natildeo pode fazer que dois corpos ocupem o mesmo lugar

14 Ainda porque natildeo pertence agrave inteligecircncia o poder de se mover sem se mover em ato porque as inteligecircncias enquanto se movem satildeo colocadas na melhor disposiccedilatildeo ele afirmou que existem tantos anjos e

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

221

tantas inteligecircncias que existem mundos como fica claro no Livro XIIordm da Metaphysica

Mas a Sagrada Escritura contradiz esta posiccedilatildeo quando afirma ldquoMil milhares o serviram e miriacuteades e mais miriacuteades diante delerdquo

Capiacutetulo II Em que num sumaacuterio satildeo reunidos os erros de Aristoacuteteles

Estes entatildeo de forma sumaacuteria satildeo todos os seus erros

1 Que o movimento natildeo tem comeccedilo 2 Que o tempo eacute eterno 3 Que o mundo natildeo teve um comeccedilo 4 Que o ceacuteu natildeo foi feito 5 Que Deus natildeo poderia fazer um mundo diferente 6 Que geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo natildeo tiveram comeccedilo e natildeo teratildeo fim 7 Que o sol sempre causaraacute geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo no mundo

sublunar 8 Que nada de novo pode proceder diretamente de Deus 9 Que a ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute impossiacutevel 10 Que Deus natildeo poderaacute fazer um acidente sem a substacircncia 11 Que em qualquer composto soacute existe uma forma substancial 12 Que natildeo se pode admitir um primeiro homem e uma primeira

chuva 13 Que de maneira alguma podem existir dois corpos num mesmo

lugar 14 Que existem tantos anjos como haacute mundos Por isso concluir-

se-aacute que haacute cinquumlenta e cinco ou quarenta e sete somente

Alguns poreacutem queriam desculpar o Filoacutesofo na questatildeo sobre a eternidade do mundo Mas isto natildeo tem cabimento porque ele - para mostrar as verdades filosoacuteficas - se baseia no mencionado princiacutepio ateacute mesmo natildeo escreveu praticamente nenhum livro sobre filosofia em que natildeo coloca algo ligado a este princiacutepio

Em seguida aleacutem dos erros supramencionados alguns queriam colocar nele (a opiniatildeo) que Deus nada conhece fora de si de tal maneira que natildeo Lhe eacute conhecida este mundo inferior baseando o seu argumento nas palavras que satildeo apresentadas no XIIordm da Metafiacutesica naquele capiacutetulo Sententia Patrum (A opiniatildeo dos Padres) Mas que aqueles que afirmam isto natildeo entendem o Filoacutesofo E que natildeo eacute esta a sua intenccedilatildeo fica claro pelo que se diz no capiacutetulo De Bona Fortuna (Sobre a boa sorte) onde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

222

afirma que para Deus tanto o passado como o futuro satildeo por si conhecidos Haacute outros erros que lhe satildeo atribuiacutedos com que natildeo nos ocupamos aqui porque satildeo oriundos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea

Capiacutetulo III Em que eacute anulada aquela afirmaccedilatildeo que o Filoacutesofo eacute a base de seus erros

Todos os seus erros entretanto se algueacutem o investigar cuidadosa-mente satildeo consequumlecircncias desta sua posiccedilatildeo que no ser nada de novo acontece senatildeo por movimento anterior Poreacutem como isto eacute falso porque Deus em razatildeo de ser o primeiro agente que natildeo age como instrumento poderaacute produzir as coisas sem movimento anterior Aquele que age por natureza tambeacutem age como instrumento porque eacute do modo de ser do instrumento que move movido e necessariamente pressupotildee na sua accedilatildeo o movido A accedilatildeo entatildeo ou a produccedilatildeo do primeiro agente pode ser sem aquele movimento Criaccedilatildeo por isso natildeo eacute um movimento porque o movimento pressupotildee o moacutevel a criaccedilatildeo de fato natildeo pressupotildee nada nem eacute propriamente falando uma mudanccedila porque toda mudanccedila eacute o fim de um movimento mas como se afirma comumente ela eacute uma simples deduccedilatildeo das coisas do primeiro Qualquer coisa por isso que eacute formulada contra o iniacutecio do mundo e contra aquilo que a feacute afirma eacute totalmente sofiacutestica2

Traduccedilatildeo de

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

2 No capiacutetulo IV inicia-se a apresentaccedilatildeo dos erros de Averroacuteis

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

223

RESENHA

MIacuteSTICA DE OLHOS ABERTOS

METZ Johann Baptist Miacutestica de olhos abertos Traduccedilatildeo de Inecircs Antonia Lohbauer Satildeo Paulo Paulus 2013 Coleccedilatildeo Amantes do Misteacuterio 293 p 135 x 21 cm ISBN 978-85-349-3649-1

Johann Baptist Metz eacute um dos teoacutelogos catoacutelicos alematildees mais influentes do poacutes-Vaticano II Eacute membro da Diretoria do Instituto de Ciecircncias Humanas de Viena desde 1983 cofundador e editor da revista Concilium e professor emeacuterito de Teologia Fundamental na Universidade de Muumlnster Ex-aluno do teoacutelogo jesuiacuteta Karl Rahner rompeu com a Teologia Transcendental do mestre para assumir segundo assinala uma teologia arraigada na praacutexis (p191-211) Metz estaacute no centro de uma escola de Teologia Poliacutetica que exerceu intensa influecircncia sobre a Teologia da Libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina A teologia de Metz centraliza-se na atenccedilatildeo ao sofrimento pois natildeo haacute sofrimento no mundo que natildeo diga respeito ao cristatildeo ldquoComo podemos virar as costas para todo esse sofrimento e nos preocuparmos apenas com nossa salvaccedilatildeo e nossa redenccedilatildeordquo (P 16)

A obra sob comentaacuterio eacute uma coleccedilatildeo de textos mais antigos atualizados e recompilados Alguns dos ensaios foram escritos haacute deacutecadas mas suas preocupaccedilotildees ainda satildeo oportunas ou talvez muito mais importantes do que antes Isto porque conforme Metz o Cristianismo eacute cada vez mais uma exigecircncia e um estiacutemulo para uma accedilatildeo em favor de um mundo melhor e mais justo Notaacutevel eacute a maneira pela qual o A chama a atenccedilatildeo para a espiritualidade cristatilde como revoluccedilatildeo da esperanccedila Enquanto o contexto atual enfatiza o aspecto da introspecccedilatildeo da espiritualidade com suas teacutecnicas de meditaccedilatildeo de olhos fechados a Biacuteblia chama a atenccedilatildeo para um aspecto totalmente diferente a Escritura nos acorda e nos manteacutem de olhos abertos O objetivo da espiritualidade biacuteblica eacute nos encaminhar para o outro A biacuteblia nos ensina uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

224

espiritualidade de olhos abertos porque natildeo existe experiecircncia de Deus sem passar pelo outro o qual na maioria das vezes estaacute sofrendo por causa do que Metz chama de ldquocapitalismo predatoacuteriordquo

A primeira parte da obra ldquoPerspectivas Teoloacutegicasrdquo (P 13-49) lembra que o olhar messiacircnico de Jesus (P 19) natildeo eacute dirigido para o pecado mas para o sofrimento do outro (cf Lc 416-21) ldquoEssa sensibilidade messiacircnica ao sofrimento natildeo tem nada a ver com plangecircnciardquo mas com a miacutestica biacuteblica de justiccedila ldquopaixatildeo por Deus como empatia pelo sofrimento alheio como miacutestica praacutetica da compaixatildeordquo (P 19) situando em primeiro lugar natildeo a culpabilidade mas o sofrimento Esse eacute sentido do discurso apocaliacuteptico como tentativa de dar esperanccedila aos sofredores ldquoO apocalipse biacuteblico ldquodesvelardquo a trilha dos sofredores na histoacuteria da humanidaderdquo (P 17) Lamenta-se que os cristatildeos tenham se afastado tanto desse ponto ldquoA doutrina cristatilde da salvaccedilatildeo dramatizou a questatildeo do pecado e negligenciou a questatildeo do sofrimentordquo (P20)

Na segunda parte da obra ldquoMiacutestica do Face-a-face tentativas de aproximaccedilatildeordquo (P 53-211) Metz reuacutene textos variados no estilo de pequenas meditaccedilotildees que objetivam conduzir o leitor para o centro da feacute cristatilde a saber a abertura para Deus que leva a servir o proacuteximo

Na terceira parte intitulada ldquoUma Igreja sem interesse em aprenderrdquo (P 215-250) o Autor trata de modo muito significativo a respeito da crise na Igreja Conforme Metz ateacute mesmo cristatildeos muito engajados nas comuni-dades e na luta pela justiccedila sentem-se cada vez mais incapazes (ou sem vontade) de aprender Eacute no entanto uma igreja aprendiz (disciacutepula) sempre pronta a se abrir para outras perspectivas

Essa obra eacute sem duacutevida fruto de uma rica experiecircncia de vida do velho Teoacutelogo E uma importante contribuiccedilatildeo para o estudo da Teologia da espiritualidade cristatilde Ao fundamentar-se na exigecircncia de partir dos textos biacuteblicos e da praacutexis de Jesus o A retoma a significaccedilatildeo original e o teor teoloacutegico genuiacuteno da espiritualidade cristatilde bem como a atualidade desse tema tatildeo em moda nos nossos dias e tatildeo pouco compreendido

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

225

Apesar de algumas paacuteginas pressuporem debates teoloacutegicos que jaacute natildeo correspondem agraves experiecircncias das geraccedilotildees recentes vale a pena ler esse livro e seguir os conselhos do velho Mestre segundo o qual uma Igreja que quer se renovar deve saber quem ela eacute e a que eacute destinada

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Page 6: Revista Acadêmica da Prainha

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 125-126 2013

125

EDITORIAL

Eacute com satisfaccedilatildeo que apresentamos esta ediccedilatildeo da KAIROacuteS Revista Acadecircmica da Prainha Aleacutem de ser uma manifestaccedilatildeo das pesquisas e estudos do nosso corpo docente eacute um prazer receber contribuiccedilotildees de outros estudiosos - um fator de enriquecimento para a Revista

A Seccedilatildeo Teoloacutegica traz uma rica e austera reflexatildeo sobre os ministros da Igreja o que se deve e se pode esperara deles neste tempo

Como conciliar e unir feacute e accedilatildeo chama a atenccedilatildeo para a carta de Tiago

O artigo sobre vocaccedilatildeo como resposta e natildeo como uma escolha eacute como se fosse uma conclusatildeo dos artigos anteriores

A Seccedilatildeo filosoacutefica traz um bem fundamentado artigo sobre a Eacutetica Poliacutetica em Maquiavel tentando esclarecer seu contexto e significado Um estudo sobre Proclo e sua doutrina a realidade supra-sensiacutevel e seu dinamismo encerra esta seccedilatildeo

No contexto da Miacutestica eacute apresentado um ensaio sobre as fontes miacutesticas e cosmoloacutegicas da obra ldquoCastelo Interiorrdquo de Teresa DrsquoAacutevila

Na Seccedilatildeo traduccedilatildeo um texto de Egiacutedio de Roma que continua o contexto da traduccedilatildeo anterior a aceitaccedilatildeo de Aristoacuteteles na segunda metade do Seacuteculo XIII

Uma Resenha do Livro conhecido teoacutelogo Johanns Metz Miacutestica de olhos abertos encerra este nuacutemero

A todos uma proveitosa leitura

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

126

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

127

OS MINISTROS DA IGREJA CARACTERIacuteSTICAS E EXIGENCIAS1

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

1 O padre servidor do povo

O documento da CNBB nordm 100 ndash Comunidade de comunidades ndash uma nova paroacutequia ndash A conversatildeo pastoral da paroacutequia em seu capiacutetulo 5 tem como tiacutetulo ndash Sujeitos e Tarefas da Conversatildeo Pastoral Reuacutene quais satildeo os sujeitos da referida conversatildeo (bispos presbiacuteteros diaacuteconos permanentes os consagrados e os leigos) Deter-me-ei nos sete nuacutemeros que fazem alusatildeo agrave figura do presbiacutetero (nordm199-205)

Esta parte comeccedila afirmando que o presbiacutetero eacute chamado a ser padre-pastor exprimindo quais suas caracteriacutesticas dedicado generoso acolhedor e aberto ao serviccedilo da comunidade faz referecircncia ao excesso de atividades como um sinal preocupante que pode prejudicar o equiliacutebrio pessoal do padre (cfn 199)

Em algumas comunidades encontram-se presbiacuteteros desencantados cansados Nesta ocasiatildeo o documento em apreccedilo chama a atenccedilatildeo para algo que eacute muito grave e que merece de noacutes presbiacuteteros em especial aos paacuterocos a atenccedilatildeo

A sobrecarga de trabalhos pode dificultar a capacidade de relacionamento dos presbiacuteteros tornando-os apaacuteticos aos sofrimentos dos outros insensiacuteveis aos pobres rude no tratamento de seus paroquianos e incapazes de manifestar a misericoacuterdia e a bondade de Cristo do qual satildeo ministros Eles precisam ser ajudados (nordm 200)

1 Constantes satildeo os apelos do Magisteacuterio da Igreja tanto do Bispo de Roma como dos bispos do Brasil sobre os ministros ordenados Denotam-se caracteriacutesticas agraves quais estes ldquoservidoresrdquo do povo devem corresponder Em trecircs artigos escritos em ocasiotildees diferentes o Padre Almir Magalhatildees faz uma descriccedilatildeo e siacutentese geral das exigecircncias que satildeo a base de um ministeacuterio evangeacutelico adaptado aos nossos dias

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

128

Vivemos numa sociedade do vazio da superficialidade e neste contexto somos entre outras realidades formadores de opiniatildeo com um papel importante na sociedade de fazer a contraposiccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser considerado manipulaccedilatildeo das consciecircncias O documento tambeacutem contribui neste aspecto quando afirma que ldquoOutra preocupaccedilatildeo se refere agrave atualizaccedilatildeo do padre diante das aceleradas mudanccedilas que ocorrem na modernidade Ele pode ficar atrasado no tempo e afastado da realidade No ativismo pode ser que natildeo se dedique ao estudo e natildeo se prepare melhor para escutar e entender os anseios dos que o procuramrdquo (Nordm 201) Afinal de contas apesar de o modelo eclesioloacutegico do Vaticano II ser trinitaacuterio uma eclesiologia de comunhatildeo sob a qual todos satildeo responsaacuteveis pela accedilatildeo evangelizadora ldquoA conversatildeo pastoral da paroacutequia depende muito da postura do presbiacutetero na comunidaderdquo (Nordm 202)

Para que boa parte destas realidades aconteccedila seraacute de fundamental importacircncia que o presbiacutetero acolha bem as pessoas exerccedila a paternidade espiritual sem distinccedilotildees evitando atitude seletiva de privileacutegios a grupos A ou B renovando sua espiritualidade para ajudar tantos irmatildeos que buscam a paroacutequia (Cfnordm 202) Identicamente eacute preciso evitar-se que paroacutequias possam projetar uma imagem contraacuteria daquilo falado ateacute aqui a imagem de uma Igreja distante burocraacutetica e sancionadora (Cfnordm 37)

Devemos melhorar nosso atendimento e a paroacutequia haacute de estabelecer o diverso neste item comeccedilando pelo padre Isto requer que o presbiacutetero cultive profunda experiecircncia de Cristo vivo com espiacuterito missionaacuterio coraccedilatildeo paterno que seja animador da vida espiritual e evangelizador capaz de promover a participaccedilatildeordquo (Nordm 203)

Finalmente o padre deve ser formado para ser servidor do seu povo Eacute por este motivo que deve existir cuidado com o preparo permanente e a formaccedilatildeo nos seminaacuterios de acordo com esta visatildeo pastoral que considera a paroacutequia uma comunidade de comunidades tal como insiste a Igreja no Brasil a respeito da formaccedilatildeo presbiteral (Nordm 205 e Doc 93 da CNBB)

A questatildeo fundamental eacute como superar o ldquomodelordquo atual de paroacute-quia muito mais voltada para a sacramentalizaccedilatildeo conservaccedilatildeo para o modelo expresso no documento aqui refletido ldquoO ministeacuterio sacerdotal tem uma forma comunitaacuteria radical e soacute pode se desenvolver como tarefa coletivardquo (Nordm 204)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

129

2 Tentaccedilotildees dos agentes de pastorais

O tiacutetulo desta reflexatildeo eacute retirado da segunda parte do Capiacutetulo II da Exortaccedilatildeo Apostoacutelica A Alegria do Evangelho do Papa Francisco (Na crise do compromisso comunitaacuterio) Admito que muitos agentes jaacute tiveram acesso a esta Exortaccedilatildeo mas considero que a maioria ainda natildeo teve acesso e desta forma socializo algumas questotildees relevantes desta parte e que tecircm incidecircncia na vida dos agentes de pastoral Uma avaliaccedilatildeo eacute incontestaacutevel o Papa sempre desconcerta

Logo no iniacutecio afirma o Pontiacutefice sua gratidatildeo pela tarefa de quantos trabalham na Igreja e que a nossa tristeza e a vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja natildeo devem fazer esquecer os inuacutemeros cristatildeos que datildeo a vida por amor e agradece o belo exemplo de que datildeo tantos cristatildeos que oferecem sua vida e o seu tempo com alegria (Cfnordm 76)

Em seguida convoca a uma espiritualidade missionaacuteria chamando a atenccedilatildeo para algo que particularmente considero uma peacuterola em termos de anaacutelise da situaccedilatildeo atual ao assinalar que a vida espiritual de muitos agentes se confunde com alguns momentos religiosos que proporcionam algum aliacutevio mas natildeo alimentam o encontro com os outros o compromisso no mundo a paixatildeo pela evangelizaccedilatildeo (Cf nordm 78) Saliento que jaacute vi esta observaccedilatildeo ser feita por outros pastoralistas entretanto quando parte de teoacutelogos geralmente eacute avaliada como tendenciosa fechando-se Agora eacute o Papa Francisco quem faz a afirmaccedilatildeo

Uma tocircnica sua no diaacutelogo com o mundo eacute o encontro com o outro o que natildeo faltou tambeacutem nessa Exortaccedilatildeo ldquoO ideal cristatildeo convidaraacute sempre a superar a suspeita a desconfianccedila permanente o medo de sermos invadidos as atitudes defensivas que nos impotildee o mundo atual Muitos tentam escapar dos outros se fechando na sua privacidade confortaacutevel ou no ciacuterculo reduzido dos mais iacutentimos e renunciam ao realismo da dimensatildeo social do Evangelhordquo (Nordm88) Ele trata deste assunto na mesma Exortaccedilatildeo no Cap IV

Relevante eacute como ele conclui este mesmo nordm 88

ldquoPorque assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual sem carne nem cruz tambeacutem se pretendem relaccedilotildees interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos por eacutecrans e sistemas que se podem acender e apagar agrave vontade Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraccedilar o risco do encontro com o rosto do outro com a sua presenccedila fiacutesica que interpela com os seus sofrimentos e suas reivindicaccedilotildees A verdadeira feacute no Filho de Deus feito carne eacute inseparaacutevel do dom de si mesmo da

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

130

pertenccedila agrave comunidade do serviccedilo da reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros Na sua encarnaccedilatildeo o Filho de Deus convidou-nos agrave revoluccedilatildeo da ternurardquo

Percebam que neste pequeno trecho o Papa nos daacute material para um retiro de no miacutenimo 7(sete) dias pois relembra uma heresia do seacutec II ndash o docetismo que nega a humanidade de Cristo afirmando em outras palavras que hoje tambeacutem faltam nos cristatildeos as relaccedilotildees interpessoais substituiacutedas pela ldquotelinhardquo portanto sem cruz sem encontro na comodi-dade Estamos conectados quase que permanentemente sem preocupaccedilatildeo com o sofrimento dos outros Analisem minuciosamente e comparem com a realidade em que o Papa confere autenticidade da feacute Ela se revela em quatro pontos dom de si mesmo pertenccedila agrave comunidade serviccedilo e reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros

Concluo esta reflexatildeo em primeiro lugar exprimindo que natildeo estou somente me dirigindo aos outros sou um agente de pastoral e vou me confrontando com toda a Exortaccedilatildeo O grande objetivo mesmo eacute convidar a todos os agentes de pastoral a natildeo perderem de vista estes 33 (trinta e trecircs) nuacutemeros e 13 paacuteginas de cunho eminentemente pastoral-espiritual Natildeo seria bom para noacutes neste final de Quaresma ou quem sabe iniacutecio da Paacutescoa visitar estes nuacutemeros dos quais esta reflexatildeo foi apenas uma motivaccedilatildeo

3 ldquoAi de voacutesrdquo

Ao realizar sua missatildeo Jesus teve de enfrentar alguns conflitos e ateacute mesmo provocaacute-los na fidelidade e obediecircncia agrave realizaccedilatildeo da vontade do Pai Via de regra encontramos estes confrontos junto a alguns grupos de seu tempo destacando-se os escribas ou doutores da lei e os fariseus estes uacuteltimos gozando de muita credibilidade junto ao povo de Deus Tal creacutedito se dava pela loacutegica defendida por eles na medida em que pelo cumprimento da lei se visibilizava maior aproximaccedilatildeo a Deus ou natildeo a isto chamamos de legalismo farisaico pois a questatildeo principal de estar proacuteximo a Deus ou natildeo era simplesmente cumprir a lei (Cf todo o confronto sobre o saacutebado comer com as matildeos impuras Cf Mc 7)

O sistema se baseava nos polos ndash puros e impuros A pureza indicava as condiccedilotildees necessaacuterias para algueacutem poder comparecer diante de Deus no Templo (Cf C Mesters Com Jesus na contramatildeo p 24) Neste sentido o povo tinha grande preocupaccedilatildeo com a pureza pois quem natildeo era puro natildeo podia chegar perto de Deus (Mt 99-12)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

131

No capiacutetulo 23 do Evangelho de Mateus (precisamente 23 13-36) Jesus pronuncia os famosos sete ldquoaisrdquo todos eles dirigidos a estes dois grupos e de forma ousada e profeacutetica nesta seccedilatildeo chama-os ora de ldquohipoacutecritasrdquo ora de ldquoguias cegosrdquo de ldquoinsensatosrdquo e de ldquosepulcros caiadosrdquo predomina o adjetivo hipoacutecrita

Evidentemente Jesus natildeo age desta forma manifestando oacutedio para com eles mas fazendo uma catequese para que eles pudessem entrar na dinacircmica da conversatildeo e consequentemente do Reino de Deus na novidade do que ele representava jaacute que o rosto de Deus que eles mani-festavam contradizia frontalmente o Deus que Jesus representava

Do conjunto da coletacircnea de advertecircncias contra escribas e fariseus o termo mais usado eacute hipocrisia por ser uma atitude do sistema religioso que eles representavam fechando-se no seu prestiacutegio e poder julgavam-se justos e santos e disto os Evangelhos datildeo conta (Cf o ex da cena do fariseu e do publicano ndash Lc 18 9-14 a questatildeo do jejum em Mc 218ss) No sistema por eles defendido o que prevalecia de fato eram os ritos externos a formalidade

Com suporte no texto aqui referenciado destaco o versiacuteculo 23 citando-o ldquoAi de voacutes escribas e fariseus hipoacutecritas que pagais o dizimo da hortelatilde da erva-doce e do cominho enquanto descuidais o que haacute de mais grave na lei a justiccedila a misericoacuterdia e a fidelidade eacute isto que era preciso fazer sem omitir aquilordquo

A referecircncia eacute muito clara e natildeo precisa de grandes comentaacuterios acadecircmicos ndash os interlocutores de Jesus como jaacute se sabe viviam da exterioridade da formalidade do cumprimento da lei amplamente denunciado neste capiacutetulo de Mateus Na sequumlecircncia Jesus daacute um ensinamento novo como origem tambeacutem em suas praacuteticas por exemplo confraternizando-se com pessoas impuras como eram os publicanos e pecadores (Mc 2 15-17) tocar em leprosos comer sem lavar as matildeos tocar em cadaacutever e isto evidentemente tornava Jesus na concepccedilatildeo da eacutepoca uma pessoa impura pelo contato com estes pecadores e isto impedia a presenccedila de Deus

Agora vamos puxar a reflexatildeo construindo uma ponte entre a abordagem ateacute aqui desenvolvida e o nosso tempo prefiro proceder assim em primeiro lugar fazendo duas perguntas para vocecirc caro leitor existe algo parecido hoje em dia

Por gentileza interessante natildeo fazer uma interpretaccedilatildeo fundamenta-lista mas levar em consideraccedilatildeo a formalidade as questotildees de visibilidade

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

132

que a Igreja tem hoje por meio de grandes eventos de massa da miacutedia catoacutelica do estilo neopentecostal e a outra indagaccedilatildeo como estaacute sendo considerada a praacutetica da misericoacuterdia ndash a praacutetica da justiccedila e da fidelidade no seguimento de Jesus Cristo Seraacute que estamos na linha da exterioridade e sem esquecer isto estamos deletando a justiccedila da praacutetica de nossos grupos paroacutequias e idem com a misericoacuterdia e a fidelidade

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira eacute padre da Arquidiocese de Fortaleza

Diretor e Professor da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza - FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

133

A TEOLOGIA DE TIAGO FEacute EM ACcedilAtildeO

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier

Resumo A Epiacutestola de Tiago apresenta ensinos praacuteticos e eacuteticos para a vida cristatilde da mesma maneira como o proacuteprio Jesus mostrou que a feacute deveria vir acompanhada de atitudes Poreacutem alguns estudiosos biacuteblicos levantaram criacuteticas agrave epiacutestola de Tiago como se essa fosse contraacuteria agrave justificaccedilatildeo pela feacute Nesse artigo demonstra-se que a feacute e as obras natildeo se contrapotildeem na epiacutestola de Tiago sendo necessaacuterio compreender o contexto da mesma e sua importacircncia para os cristatildeos nos dias de hoje

Palavras-chave Tiago Conduta Cristatilde Feacute e Praacutetica

Abstract The Epistle of James has practical and ethical teachings for the Christian life just as Jesus himself showed that faith should be accompanied by actions However some scholars have raised criticism of the Epistle of James as if this was contrary to the justification by faith In this paper we show that faith and works are not opposed in the Epistle of James it is necessary to understand the context of the same and its importance for Christians today

Keywords James Christian Conduct Faith and Practice Introduccedilatildeo

A epiacutestola de Tiago difere das outras epiacutestolas do Novo Testamento pelo seu estilo conteuacutedo e apresentaccedilatildeo Tiago trata de religiatildeo praacutetica de eacutetica de solidariedade de religiatildeo vivencial A epiacutestola exatamente como Hebreus eacute mais um sermatildeo que uma carta propriamente dita Eacute um sermatildeo ou um ensino ou um tratado e ldquoas indicaccedilotildees satildeo de que foi o primeiro de todos os documentos escritos do Novo Testamentordquo (BAXTER 1989 p 309) O livro foi escrito aproximadamente entre 10 a 15 anos apoacutes a morte de Jesus (SHIDD BIZERRA 2010 p 7) Francis Nichol (1995 p 516) diz que natildeo haacute uma maneira segura para determinar a data da epiacutestola mas aponta a possibilidade da mesma ter sido escrita apoacutes o ano 44 dC

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

134

Neste artigo apresenta-se um panorama da teologia de Tiago com vistas a demonstrar como a feacute pode e deve ser praticada em atos e pala-vras em conformidade com a doutrina de Cristo

Sobre o autor

A Carta de Tiago jaacute provocou muitas discussotildees na histoacuteria da Teologia Uma das principais estaacute relacionada com o seu autor O prefaacutecio indica que o autor foi Tiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo (Tg 11) Mas no Novo Testamento haacute cinco homens chamados Tiago O primeiro eacute o pai de Judas (Lc 616) O segundo eacute um disciacutepulo filho de Alfeu (Mt 103) Este Tiago eacute o irmatildeo de Mateus (Mt 99 e Mc 214) O terceiro eacute chamado Tiago menor (Mc 1540) Talvez fosse chamado ldquomenorrdquo por causa do seu tamanho ou como substituto de Juacutenior (haacute pais que gostam de colocar seus nomes nos filhos) O quarto eacute o irmatildeo de Joatildeo e filho de Zebedeu (Mt 102) Este eacute o que os espanhoacuteis gostam de dizer que eacute o Tiago de Compostela Mas esse foi morto no iniacutecio dos anos quarenta conforme Atos 122 O quinto eacute chamado de ldquoirmatildeo do Senhorrdquo (Gl 119) Jesus possuiacutea um irmatildeo com este nome como aparece em Mateus 1355 Poreacutem apenas dois desses foram apresentados como possiacuteveis autores desta epiacutestola ndash Tiago filho de Zebedeu e Tiago o irmatildeo do Senhor

O primeiro eacute um candidato improvaacutevel Sofreu o martiacuterio em 44 AD e natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que ocupasse posiccedilatildeo de lideranccedila na igreja que lhe desse a autoridade de escrever esta carta geral Embora Isidoro de Sevilha e Dante achassem que ele foi o autor do livro esta identidade natildeo tem sido largamente aceita em nenhum periacuteodo da igreja A opiniatildeo tradicional identifica o autor como sendo Tiago o irmatildeo do Senhor A semelhanccedila da linguagem da epiacutestola com as palavras de Tiago em Atos 15 a forte dependecircncia do escritor da tradiccedilatildeo judia e a consistecircncia do conteuacutedo de sua carta com as notiacutecias histoacutericas que o Novo Testamento daacute em relaccedilatildeo a Tiago o irmatildeo do Senhor tudo tende a apoiar a autoria tradicional (PFEIFER HARRISON 1983 p 325)

Assim pode-se inferir que o autor da epiacutestola seja Tiago irmatildeo de Jesus

Criacuteticas agrave carta de Tiago

Esta epiacutestola tem sido alvo de criacuteticas e comentaacuterios injustos desde o iniacutecio do movimento protestante com Martinho Lutero (1522)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

135

Preocupado em afirmar a doutrina da justificaccedilatildeo pela feacute Lutero foi duro com a carta de Tiago Chamou-a de ldquoepiacutestola de palhardquo (eyne rechte stroerne Epistel) por causa de seu entendimento equivocado do capiacutetulo 2 versos 14 a 16 onde presumiu haver o ensino de justificaccedilatildeo pelas obras (STOTT 1996 p 18) Este pensamento errocircneo de Lutero ainda permanece em muitas mentes Mas deve ser entendido dentro do contexto em que as palavras dele foram proferidas Elas constam de seu prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo da Biacuteblia Alematilde onde ele se expressa sobre os livros que mais mostram a pessoa de Cristo Apoacutes nomeaacute-los disse Lutero ldquoPor isso a epiacutestola de Satildeo Tiago eacute uma epiacutestola bem insiacutepida (eyne rechte stroerne Epistel) se comparada agraves demais [] (LUTERO 1997 p 81)

Este reformador mais tarde modificou sua posiccedilatildeo Assim se expressou Lutero conforme nos diz George (1986 p 371) ldquoQuando Satildeo Tiago e Paulo dizem que um homem eacute justificado pelas obras eles estatildeo combatendo a noccedilatildeo errocircnea daqueles que pensam que a feacute sem obras eacute suficienterdquo

Outro que pode ser considerado injusto com Tiago eacute Champlin (1991 p 536) quando diz que ldquoA epiacutestola de Tiago certamente eacute um documento que representa o cristianismo judaico e natildeo erramos por dizer representa o cristianismo legalistaldquo

Paulo e Tiago

Muitas das criacuteticas se devem agrave aparente contradiccedilatildeo entre Tiago e Paulo no assunto ldquofeacute e obrasrdquo (KUMMEL 1975 p 414-41) Kuumlmmel lista cinco aparentes contradiccedilotildees A mais famosa declaraccedilatildeo de Tiago ldquoa feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) gerou discussatildeo nos primoacuterdios da Reforma Lutero natildeo conseguia conciliar esta declaraccedilatildeo com o que Paulo escreveu ldquoConcluiacutemos pois que o homem eacute justificado pela feacute independente de obras da leirdquo (Rm 328) Especialmente outra declaraccedilatildeo de Tiago estaacute em aparente oposiccedilatildeo ao ensino de Paulo ldquoVerificais que uma pessoa eacute justificada por obras e natildeo por feacute somenterdquo (Tg 224) O curioso eacute que os dois apoacutestolos tardios (isto eacute que natildeo estavam entre os doze) utilizam o mesmo personagem biacuteblico (Abraatildeo) para defender posiccedilotildees aparentemente contraditoacuterias Paulo diz ldquoQue pois diremos ter alcanccedilado Abraatildeo nosso pai segundo a carne Porque se Abraatildeo foi justificado por obras tem de que se gloriar poreacutem natildeo diante de Deus Pois que diz a Escritura Abraatildeo creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo (Rm 41-3) Tiago em contrapartida diz ldquoNatildeo foi por obras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

136

que Abraatildeo o nosso pai foi justificado quando ofereceu sobre o altar o proacuteprio filho Isaquerdquo (Tg 221) Aqui haacute pelo menos uma contradiccedilatildeo verbal (LADD 1997 p 546 MORRIS 2003 p 379) mas seraacute que haacute uma contradiccedilatildeo teoloacutegica

Uma siacutentese da diferenccedila entre Paulo e Tiago dada por Mears (1993) poderaacute resolver essa questatildeo

Tiago eacute a mais praacutetica de todas as epiacutestolas e tem sido chamada ldquoGuia Praacutetico para a Vida e a Conduta Cristatilderdquo Eacute o livro de Proveacuterbios do Novo Testamento Estaacute repleto de preceitos morais Expotildee a eacutetica do Cristianismo Eacute cheio de figuras e metaacuteforas Seu estilo eacute muitas vezes bastante dramaacutetico Obriga a pensar realmente Hebreus apresenta doutrina Tiago apresenta obras Eles se completam num Cristianismo vital Natildeo haacute conflito entre Paulo e Tiago Soacute uma leitura superficial de ambos levaria a essa conclusatildeo Paulo diz ldquoRecebam o Evangelhordquo Tiago diz ldquoVivam o Evangelhordquo Paulo viu Cristo no ceacuteu estabelecendo a nossa justiccedila Tiago viu-o na terra dizendo-nos que sejamos perfeitos como eacute perfeito o seu Pai que estaacute no ceacuteu Paulo deteacutem-se na fonte da nossa feacute Tiago fala do fruto da nossa feacute Eacute preciso natildeo soacute crer mas viver Ainda que Paulo saliente a justificaccedilatildeo pela feacute vemos em suas epiacutestolas especialmente em Tito que ele daacute grande realce agraves boas obras (1 Tm 618) enquanto Tiago fala em ser ricos em feacute (25) Conveacutem notar tambeacutem que quando Tiago parece menosprezar a feacute ele estaacute-se referindo a uma simples crenccedila intelectual e natildeo agrave ldquofeacute salvadorardquo que eacute tatildeo essencial Tiago exalta a feacute Ele diz que a prova dela opera a paciecircncia Sua carta comeccedila e termina com um forte estiacutemulo agrave feacute (16 514-18) Ele denuncia a feacute espuacuteria que natildeo produz obras (MEARS 1993 p 511-512)

Uma siacutentese menor seria

Paulo responde a pergunta Sob que condiccedilatildeo ou condiccedilotildees um pecador pode ser justificado diante de Deus Sua resposta eacute Sob a condiccedilatildeo da feacute a confianccedila de todo coraccedilatildeo em Cristo como Salvador Tiago contesta a pergunta Que classe de feacute salvaraacute a um homem Sua resposta eacute Nenhuma feacute ou credo somente nem sinceramente a crenccedila em Deus como uacutenico mas uma feacute que produz vida reta (CONNER 1951 p 221)

O resumo de Tiago sobre a feacute inoperante eacute ldquoporque assim como o corpo sem espiacuterito eacute morto assim tambeacutem a feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) Foi deste modo que Calvino resolveu a questatildeo O Reformador de Genebra natildeo viu contradiccedilatildeo entre Paulo e Tiago pois entendeu que Tiago falava de uma feacute falsa ldquoPois transparece desde as primeiras palavras que ele fala de uma falsa profissatildeo de feacute pois ele natildeo comeccedila assim lsquose algueacutem tem feacutersquo mas lsquose algueacutem diz que tem feacuterdquo (CALVIN

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

137

1998 Tg 2-14) Calvino portanto natildeo teve a mesma duacutevida de Lutero mas compreendeu o sentido especiacutefico e claro a que Tiago se referia

Os grandes temas de Tiago

O caraacuteter cristatildeo eacute o tema central da epiacutestola Tiago nada fala do Espiacuterito Santo nem mesmo da doutrina da salvaccedilatildeo O autor natildeo trata de doutrinas mas de conduta Natildeo haacute menccedilatildeo alguma a Missotildees Batismo Santa Ceia Cruz e suas implicaccedilotildees A epiacutestola eacute predominantemente eacutetica Dentre os muitos assuntos tratados por Tiago podemos destacar os seguintes

Provas e tentaccedilotildees

A carta dirige-se especialmente aos judeus cristatildeos que viviam entre gentios fora dos limites da Palestina e que sofriam devido as suas convicccedilotildees religiosas (MARTIN 1998)

Tiago escreveu ldquoMeus irmatildeos tende por motivo de toda alegria o passardes por vaacuterias provaccedilotildeesrdquo (Tg 12) Ele completa ldquoBem-aventurado o homem que suporta com perseveranccedila a provaccedilatildeo porque depois de ter sido aprovado receberaacute a coroa da vida a qual o Senhor prometeu aos que o amamrdquo (Tg 112) Soacute a recompensa eterna compensa os sofrimentos desta vida e o cristatildeo deve olhar para aquele dia futuro quando receberaacute o galardatildeo em troca das vicissitudes e isto deve fazer com que se alegre no presente seacuteculo ainda que seja pobre e necessitado

A palavra ldquotentaccedilatildeordquo eacute usada num sentido mais amplo incluindo perseguiccedilotildees externas e solicitaccedilotildees internas ao mal Tiago ensina aos leitores como transformar a tentaccedilatildeo em becircnccedilatildeo fazendo dela uma fonte de paciecircncia e usando-a como o fogo que prova o ouro (PEARLMAN 1997 p 319)

A esse respeito o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia define ldquoTentaccedilotildees (gr Peirasmos) significa provaccedilotildees com um propoacutesito e efeito beneacuteficos ou sejam provaccedilotildees ou tentaccedilotildees divinamente permitidas ou enviadasrdquo (SHEDD 1979 p 1388)

A ecircnfase eacute que a tentaccedilatildeo em si natildeo vem de Deus ldquoNingueacutem ao ser tentado diga Sou tentado por Deus porque Deus natildeo pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo a ningueacutem tentardquo (Tg 113) O verdadeiro instrumento da tentaccedilatildeo segundo Tiago eacute a cobiccedila (Tg 114) Ele diz ldquoEntatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute aacute luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morterdquo (Tg 115) A antropologia de

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

138

Tiago estaacute em perfeita harmonia com o Antigo Testamento e com os demais escritos do Novo Testamento Deus natildeo eacute o autor do mal O pecado surge no ser humano e gera morte O fato de Tiago natildeo mencionar Satanaacutes como tentador natildeo significa que ele natildeo julgasse importante no processo da tentaccedilatildeo e do pecado (Tg 47)

Tiago expotildee como a feacute verdadeira reage em meio aos sofrimentos decorrentes das provaccedilotildees e das tentaccedilotildees A feacute verdadeira gera alegria nas provaccedilotildees e eacute fortalecida em Deus nas tentaccedilotildees

Feacute e obediecircncia

A feacute verdadeira segundo Tiago eacute aquela que implica em obediecircn-cia ou seja a praacutetica da Palavra Ele diz ldquoPortanto despojando-vos de toda impureza e acuacutemulo de maldade acolhei com mansidatildeo a palavra em voacutes implantada a qual eacute poderosa para salvar vossa alma Tornai-vos pois praticantes da palavra e natildeo somente ouvintes enganando-vos a voacutes mesmosrdquo (Tg 12122)

Haacute um eco entre estas palavras e as que Jesus proferiu no final do sermatildeo do monte que compara o ouvir sem praticar a palavra como uma atitude de construir uma casa sobre a areia (Mt 724-27) Ouvir sem praticar eacute como se olhar num espelho e esquecer-se de como se eacute Os espelhos eram de bronze e refletiam mal a imagem da pessoa aleacutem de serem raros Uma pessoa pobre passava meses sem se ver ao espelho Quem ouve e pratica seraacute bem-aventurado (Tg 125) Natildeo praticar a Palavra de Deus eacute um ato de auto-engano pois a proacutepria pessoa seraacute a uacutenica prejudicada A feacute verdadeira eacute a que demonstra a Palavra de Deus na praacutetica A guarda da liacutengua

Tiago preocupado com a questatildeo da liacutengua no sentido de ldquofalar o que natildeo se deverdquo antecipa um pouco do que vai dizer adiante ldquoSe algueacutem supotildee ser religioso deixando de se refrear a liacutengua antes enganando o proacuteprio coraccedilatildeo a sua religiatildeo eacute vatilderdquo (Tg 126) Esclarece o que entende ser a verdadeira religiatildeo ldquoA religiatildeo pura e sem maacutecula para com o nosso Deus e Pai eacute essa visitar os oacuterfatildeos e as viuacutevas nas suas atribulaccedilotildees e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundordquo (Tg 127)

Com o objetivo de exemplificar de modo praacutetico o que considera uma feacute em accedilatildeo Tiago trata sobre o problema da liacutengua Agora ele tem em mente os mestres pois fala sobre o perigo de algueacutem utilizar a liacutengua

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

139

de modo errado neste sentido (Tg 31-12) Do mesmo modo expotildee sobre as dissensotildees dentro da comunidade como algo contraacuterio aacute feacute (Tg 313-18) Trata novamente sobre a cobiccedila (Tg 41-3) da vida mundana e da necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 44-10) Enfatiza os relacionamentos pessoais na igreja e na necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 411-17) A feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica de obras eacute uma feacute em accedilatildeo

Natildeo fazer acepccedilatildeo

Tiago analisa a incompatibilidade de algueacutem crer em Jesus e fazer acepccedilatildeo de pessoas

Meus irmatildeos natildeo tenhais a feacute em nosso Senhor Jesus Cristo Senhor da gloacuteria em acepccedilatildeo de pessoas Se portanto entrar na vossa sinagoga algum homem com aneacuteis de ouro nos dedos em trajos de luxo e entrar tambeacutem algum pobre andrajoso e tratardes com deferecircncia o que tecircm trajos de luxo e lhe disserdes Tu assenta-te aqui em lugar de honra e disserdes pobre Tu fica ali em peacute natildeo fizestes distinccedilatildeo entre voacutes mesmos e natildeo vos tornastes juiacutezes tomados de perversos pensamentos (Tg 21-4)

Apesar da maioria dos crentes para os quais Tiago ensinava ser de classe baixa parece que eles como eacute proacuteprio agraves vezes dos pobres tratavam bem os ricos e mal os pobres Tiago diz que isto eacute uma feacute incoerente No texto ele fala da ldquosinagogardquo e natildeo da igreja o que evidencia o aspecto judaico da carta e aponta para sua antiguidade Para Tiago fazer acepccedilatildeo de pessoas eacute quebrar a lei (Tg 2 9-10) A questatildeo polecircmica da carta

Jaacute tratamos disto em momentos anteriores e podemos deixar de emitir mais consideraccedilotildees Vamos apenas acrescentar isto a preocupaccedilatildeo de Tiago eacute primariamente praacutetica (CARBALLOSA 1994 p 70) e parece oacutebvio que ele respondia a algum tipo de questionamento antinomista pois rebatia a crenccedila de que uma pessoa pode ser salva sem que demonstre qualquer mudanccedila de vida

Por isso ele diz que no caso de Abraatildeo ldquofoi pelas obras que a feacute se consumourdquo (Tg 222) Paulo por outro lado estaacute respondendo a outro tipo de questionamento Ele combate a noccedilatildeo judaica daqueles dias de que uma pessoa era salva pela feacute e pelas obras como se as obras natildeo fossem apenas uma evidecircncia da feacute mas um instrumento real de salvaccedilatildeo Eacute oacutebvio que se algueacutem lhe dissesse que uma pessoa pode ser salva sem experimentar uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

140

transformaccedilatildeo Paulo certamente responderia ldquonatildeordquo pois embora sejamos salvos pela graccedila Deus tem preparado uma vida de boas obras para que andemos nelas (Ef 28-10) Ellen G White (1892) declarou que ldquoas boas obras se seguiratildeo como as floraccedilotildees e frutos da feacute A apropriaccedilatildeo da justiccedila de Cristo seraacute manifestada numa vida bem ordenada e na conversaccedilatildeo santardquo

Do mesmo modo se perguntassem a Tiago se a lei precisa ser obedecida para que algueacutem seja salvo como um meio de completar a feacute certamente ele diria que somos salvos pela feacute e que as obras satildeo apenas a evidecircncia de que ela existe Natildeo haacute contradiccedilatildeo teoloacutegica entre Paulo e Tiago suas respostas aparentemente divergentes explicam a razatildeo dos propoacutesitos de cada autor Assim a Reforma Protestante resolve o conflito quando declara ldquoEacute a feacute que salva sozinha mas a feacute que salva nunca estaacute sozinhardquo

Denuacutencia contra os ricos

ldquoPaciecircnciardquo eacute a palavra chave para resumir o ensino do capiacutetulo 51-6 sendo um dos temas predominantes de toda a carta de Tiago ldquoEvidentemente muitas das pessoas humildes dentre os judeus cristatildeos estavam sendo oprimidos pelos ricos e seus salaacuterios eram retidos com fraude (54)rdquo (MEARS 1993 p 517-518) Os cristatildeos pobres daqueles dias deveriam ter paciecircncia e esperar o momento da libertaccedilatildeo que viria de Deus e viver na praacutetica a feacute que salva

Sobre a denuacutencia de Tiago contra os ricos assim se expressa o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia ldquoEsta seccedilatildeo apresenta uma severa denuacutencia contra os ricos que tecircm granjeado prosperidade mediante opressatildeo Os tais satildeo condenados natildeo por serem ricos mas porque suas riquezas foram mal adquiridas permanecendo sobre elas as marcas da corrupccedilatildeordquo (SHEDD 1979 p 1388)

Jaacute o Comentaacuterio Biacuteblico Adventista por sua vez esclarece ldquoO contexto imediato implica que os ldquoricosrdquo satildeo exemplos notaacuteveis de quem tecircm muitas oportunidades para fazer o bem mas evitam fazecirc-lo Estes ldquoricosrdquo podem ser ou natildeo membros da igrejardquo (NICHOL 1995 p 553)

A mensagem de Tiago era evidente para seus leitores ldquoos opressores ainda pagaratildeo por tudo o que tecircm feitordquo Mas o povo de Deus deveria ser paciente pois natildeo haacute como antecipar o juiacutezo de Deus ldquoSede pois irmatildeos pacientes ateacute a vinda do Senhor Eis que o lavrador aguarda com paciecircncia o precioso fruto da terra ateacute receber as primeiras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

141

e as uacuteltimas chuvas Sede voacutes tambeacutem pacientes e fortalecei o vosso coraccedilatildeo pois a vinda do Senhor estaacute proacuteximardquo (Tg 578)

As chuvas do fim do outono e do comeccedilo da primavera que datildeo condiccedilotildees agrave terra de produzir natildeo podem ser antecipadas por causa do desejo ou da ira do homem Elas vecircm no tempo certo Resta ao lavrador esperar que a chuva venha e de nada adiantaraacute ele se agitar se irar ou fazer qualquer outra coisa pois seraacute apenas perda de tempo de energia e mais acuacutemulo de sofrimento Como o agricultor tem certeza de que a chuva viraacute ele deve descansar pois deve ter uma esperanccedila confiante Do mesmo modo o cristatildeo sabe que Jesus voltaraacute e ainda que ele natildeo saiba quando deve esperar confiantemente pois Jesus viraacute

Julgamentos precipitados

Tiago orienta os crentes a se absterem de julgamentos precipitados ldquoIrmatildeos natildeo vos queixeis uns dos outros para natildeo serdes julgados Eis que o juiz estaacute agraves portasrdquo (Tg 59) Natildeo eacute totalmente certo se ele fala em relaccedilatildeo aos proacuteprios crentes ou se o assunto ainda satildeo os iacutempios que os oprimem mas eacute bastante plausiacutevel que estes uacuteltimos estejam em foco Do mesmo modo que os crentes do Antigo Testamento foram pacientes em meio ao sofrimento os cristatildeos deveriam ser agora ldquoIrmatildeos tomai por modelo no sofrimento e na paciecircncia os profetas os quais falaram em nome do Senhor Eis que temos por felizes os que perseveram firmes Tendes ouvido da paciecircncia de Joacute e vistes que fim o Senhor lhe deu porque o Senhor eacute cheio de terna misericoacuterdia e compassivordquo (Tg 51011)

A paciecircncia dos santos do passado especialmente o mais conhecido de todos neste sentido Joacute eacute evocada como exemplo de que o Senhor faz justiccedila aos seus Tiago natildeo entende que os cristatildeos devem demonstrar uma paciecircncia moacuterbida mas insiste que eles tecircm em suas matildeos uma arma poderosa a oraccedilatildeo Ele diz ldquoEstaacute algueacutem entre voacutes sofrendo Faccedila oraccedilatildeordquo (Tg 513) A oraccedilatildeo eacute o instrumento dos crentes em meio a tribulaccedilatildeo A oraccedilatildeo pode trazer cura (Tg 515) e perdatildeo (Tg 516) Para comprovar que a oraccedilatildeo tem muito poder Tiago cita Elias reconhecido como um dos profetas mais poderosos ldquoElias era homem semelhante a noacutes sujeito aos mesmos sentimentos e orou com muita insistecircncia para que natildeo chovesse sobre a terra e por trecircs anos e seis meses natildeo choveu E orou de novo e o ceacuteu deu chuva e a terra fez germinar seus frutosrdquo (Tg 51718)

Tiago enfatiza que Elias era um homem sujeito aos mesmos sofrimentos e limitaccedilotildees que os seus leitores mas pela oraccedilatildeo realizou

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

142

feitos formidaacuteveis Os crentes devem ter paciecircncia orar pois Deus pode mudar as situaccedilotildees dramaacuteticas por intermeacutedio da oraccedilatildeo As uacuteltimas palavras de Tiago satildeo um lembrete aos crentes de que devem se preocupar com os desviados dos caminhos de Deus (Tg 51920)

Haacute outros temas mais mas a relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus (que seraacute apresentada a seguir) poderaacute completar aleacutem de recordar alguns pontos jaacute tratados

A relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus

Tiago pode natildeo ter o brilho intelectual de Paulo mas seu conteuacutedo em nada difere do que o Salvador ensinou E dos apoacutestolos ele foi o que mais tempo viveu com Jesus Pelo menos a infacircncia e a adolescecircncia dos dois foram juntas O ensinamento de Jesus pode ser visto em toda a epiacutestola de Tiago

1 O cristatildeo que sofre provaccedilotildees eacute abenccediloado Tiago 12 e Mateus 510-12

2 Deus deseja que sejamos perfeitos Tiago 14 e Mateus 548

3 Ele daacute generosamente aos que lhe pedem Tiago 15 e 42 Mateus 77-8

4 Mas somente o Pai tem poder para dar boas daacutedivas Tiago 117 e Mateus 79 -11

5 E neste caso ele daacute somente aos quem tecircm feacute Tiago 16 e Marcos 11 22-24

6 Devemos natildeo apenas ouvir a palavra Mas praticaacute-la Tiago 122-25 e Mateus 7 21-27

7 Devemos tomar cuidado com as riquezas porque os pobres eacute que herdam o reino de Deus Tiago 25 e Mateus 53 Lucas 620

8 Devemos amar o proacuteximo como a noacutes mesmos Tiago 28 e Marcos 1231

9 Devemos guardar os mandamentos Tiago 210 e Mateus 519

10 Devemos mostrar misericoacuterdia para recebermos misericoacuterdia Tiago 213 e Mateus 57 1833-35

11 Eacute a aacutervore que determina o fruto Tiago 312 e Mateus 715-20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

143

12 Os pacificadores seratildeo abenccediloados Tiago 318 e Mateus 59

13 Natildeo eacute possiacutevel servir a dois senhores Cada um deve escolher entre Deus e o dinheiro Tiago 44 413-15 e Mateus 624

14 Quem se humilha seraacute exaltado Tiago 46 e 10 e Lucas 1814 Comparar isto com Tiago 19-10 e Lucas 152

15 Natildeo devemos falar mal uns dou outros ou julgar uns aos outros Tiago 412 e Mateus 71

16 Natildeo devemos elaborar planos gananciosos e mundanos para obter ganhos esquecendo-nos de Deus ou do proacuteximo Tiago 413-17 e Lucas 1216-21

17 As riquezas natildeo duram Elas se corroem as roupas satildeo consu-midas pelas traccedilas e o ouro fica embaccedilado com a ferrugem Tiago 51-3 e Mateus 619-21

18 Por isso ai dos ricos Tiago 51 e Lucas 624

19 Quem crecirc que espere pacientemente e esteja pronto para a vinda do Senhor pois ele estaacute perto agraves portas Tiago 57-9 e Lucas 1235-40 Marcos 1329

20 Os cristatildeos natildeo devem jurar nem pelo ceacuteu nem pela terra nem por qualquer outro meio de juramento Sua palavra deve ser confiaacutevel Seu sim deve ser sim e seu natildeo deve ser natildeo Suas palavras natildeo podem ter duplo sentido Tiago 512 e Mateus 533

Tiago reafirma Jesus como um homem com um ensino praacutetico e praticaacutevel O cristianismo eacute vida e natildeo sensaccedilotildees Vida correta com Deus que se evidencia em vida correta com os homens

Consideraccedilotildees finais

Percebe-se que a mensagem de Tiago eacute clara e simples Ele fala sobre a feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica pelas obras Esta feacute leva os crentes a suportarem todo tipo de sofrimento a demonstrarem a conversatildeo pelas boas obras e a esperarem em oraccedilatildeo pelo retorno de Jesus ou pela manifestaccedilatildeo libertadora de Deus

Mesmo simples a carta de Tiago eacute rica e teologicamente impor-tante de modo que natildeo concordamos com a ideia de Richardson (e de Lutero) de que eacute uma ldquoepiacutestola de palhardquo (RICHARDSON 1966 p 240

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

144

BACLAY 1974 p 16) em comparaccedilatildeo com a profunda solidez da Epiacutestola aos Romanos Ela ocupa um lugar importante no cacircnon e na Teologia do Novo Testamento responsaacutevel pela ampliaccedilatildeo do entendi-mento de um conceito essencial para a feacute do Novo Testamento o relacionamento entre feacute e obras

Termino deixando uma pergunta Se Tiago ocupasse o puacutelpito contemporacircneo que diria ele aos membros e liacutederes de nossas igrejas

Referecircncias Bibliograacuteficas

BACLAY W S I y II Pedro Buenos Aires Editorial La Aurora 1974

BAXTER S J Examinai as escrituras ndash atos a apocalipse Satildeo Paulo Ediccedilotildees vida Nova 1989

CALVIN J Commentary on the espistole of the James Albany Books for the Ages 1998

CARBALLOSA E L Tiago Una fe em accioacuten 6 ed Grand Rapids Editorial Portavoz 1994

CHAMPLIN R N Enciclopeacutedia de Biacuteblia teologia e filosofia v 6 Satildeo Paulo Editora e Distribuidora Candeia 1991

CONNER W T La fe del nuevo testamento Nashvill Casa Bautista de Publicaccedilotildees 1951

GEORGE T In ldquoA rigth strawy epistle reformation perspective on Jamesrdquo Louisville Review and Expositor ndash a baptist theological journal v LXXXIII n 3 1986

KUumlMMEL W G Introduction to the new testament Nashvill Abingdon Press 1975

LADD G E Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Exodus 1997

LUTERO Martinho Da liberdade do cristatildeo ndash prefaacutecio agrave Biacuteblia (Ediccedilatildeo Biliacutengue) Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo da Editora Unesp 1997

MARTIN R P Word biblical commentary v 48 James Dallas Texas Word Books Publisher 1998

MEARS H C Estudo panoracircmico da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida 1993

MORRIS Leon Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2003

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

145

NICHOL F D (ed) Comentario biblico adventista del septimo dia Tomo 7 Buenos Aires Asociacion Casa Editora Sudamericana 1995

PEARLMAN M Atraveacutes da Biacuteblia livro por livro Satildeo Paulo Vida 1997

PFEIFER F C HARRISON E F Comentaacuterio biacuteblico Moody v IV Satildeo Paulo Imprensa Batista Regular 1983

RICHARDSON Alan Introduccedilatildeo agrave teologia do novo testamento Satildeo Paulo ASTE 1966

SHEDD R P (ed) O novo comentaacuterio da Biacuteblia v III Satildeo Paulo Ediccedilotildees Vida Nova 1979

SHEDD R P BIZERRA E F Uma exposiccedilatildeo de Tiago a sabedoria de Deus Satildeo Paulo Shedd Publicaccedilotildees 2010

STOTT J Homens com uma mensagem Campinas Editora Cristatilde Unida 1996

WHITE E G Signs of the times 5 de setembro de 1892

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier Doutor em Teologia e professor nos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graducaccedilatildeo

do Seminaacuterio Adventista Latino Americano de Teologia ndash Cachoeira BA

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

146

A VOCACcedilAtildeO NAtildeO Eacute UMA ESCOLHA MAS UMA RESPOSTA

Ir Graccedila Disingakala Nunes

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo Tentativa de responder a trecircs questotildees fundamentais sobre a vocaccedilatildeo entendida como chamado de Deus valendo-se de muitos autores mas principalmente da contribuiccedilatildeo de Gianfranco Poli Natildeo vai certamente exaurir o assunto mas eacute uma chamada de atenccedilatildeo agraves escolas teoloacutegicas para que trabalhem este argumento de um modo mais aprofundado O tema pesquisado eacute a vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta Discorre-se entatildeo acerca de sua origem e significado o porquecirc de uma teologia da vocaccedilatildeo as caracteriacutesticas do chamado a relaccedilatildeo de intimidade com a pessoa de Jesus Cristo a resposta incondicional do homem Evidenciam-se tambeacutem os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde o discernimento as exigecircncias que o chamado comporta e de modo muito breve as dimensotildees que compotildeem fundamentalmente a resposta do homem e as consideraccedilotildees finais Toda essa dinacircmica eacute realizada mediante uma relaccedilatildeo dialogal entre as duas liberdades a de Deus que chama e a do homem que responde

Palavras-chave Deus-Trindade Vocaccedilatildeo ou Chamado Homem Encontro Igreja

Riassunto Questo articolo egrave un tentativo di rispondere a ter domande fondamentali sulla vocazione intesa come chiamata di Dio servendosi di tanti autori ma sopratutto dela contribuizione di Gianfranco Poli Non va sicuramente esaurire lrsquoassunto ma visa a scuotere lrsquoattenzione dele scuole teologiche percheacute lavorino la questione vocazione in modo piugrave profondo Il tema svolto egrave la vocazione non `e una scelta ma una risposta Si sviluppa quindi sua origine e significato il perchegrave di una teologia dela vocazione le caratteristiche della chiamata la relazione di intimitagrave com la persona di Cristo Gesugrave la risposta incondizionata dellrsquouomo Sono noti anche gli elementi centrali dela vocazione cristiana il discernimento le esigenze che la chiamata di Dio comporta e si fa cenno alle dimensioni che essenzialmente compongono la risposta dellrsquouomo e per ultimo le considerazioni finali Tutta la dinamica egrave svolta attraverso una relazione dialogica tra le due libertagrave di Dio che chiama e dellrsquouomo che risponde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

147

Parole chiavi Dio-Trinitagrave Vocazione o Chiamata Uomo Incontro Chiesa

1 Introduccedilatildeo

Haacute no Brasil e no mundo muitos escritos sobre vocaccedilatildeo mas falta uma teologia da vocaccedilatildeo ldquoFalta ainda um estudo sistemaacuteticordquo deste argumento Haacute pouco interesse nas escolas teoloacutegicas e entre os teoacutelogos no sentido de aprofundar este assunto1 A ausecircncia de fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica das vocaccedilotildees eacute negativa enquanto a praacutexis permanece sem fundamentaccedilatildeo conforme constatou Joseacute Lisboa Moreira de Oliveira na sua Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo2 Eacute tatildeo verdade o fato de o tema vocaccedilatildeo carecer de estudo sistemaacutetico que outros autores fazem esta constataccedilatildeo Exemplo Gianfranco Poli na sua exposiccedilatildeo sobre o assunto Tra vocazione e domanda di senso natildeo hesita em afirmar que a palavra vocaccedilatildeo eacute muitas vezes usada e repetidamente mas raramente se precisa o seu conteuacutedo

Advertimos para a necessidade natildeo soacute no Brasil mas tambeacutem no mundo de explicitar o que entendemos acerca de vocaccedilatildeo Para isso Gianfranco Poli trata a vocaccedilatildeo em trecircs momentos esclarecer o sujeito que chama colocar em realce os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde oferecer algumas indicaccedilotildees a respeito do homem que responde ou simplesmente eacute possiacutevel indicar estes trecircs momentos formulando trecircs perguntas quem chama A que coisa chama Em que modo se responde3

Eacute a essas perguntas que tentaremos responder com suporte na abordagem de Gianfranco Poli oferecendo ao assunto vocaccedilatildeo mais um subsiacutedio sem a pretensatildeo de exauri-lo

O tema eacute estruturado com uma introduccedilatildeo cinco partes e suas subdivisotildees Iordf parte Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo Por que teologia da vocaccedilatildeo Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo IIordf parte Dimensatildeo Trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde A vocaccedilatildeo do homem Quem chama Por que chama Para que chama Como chama IIIordf parte Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde Como saber que eacute Deus quem me chama A vocaccedilatildeo natildeo eacute 1 Cf DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992 nordm 244 2 OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996) p 22-31 3 Cf POLI Gianfranco ldquoLa cultura della vocazione tra vocazione e domanda di sensordquo in BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teologica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010 p 20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

148

uma escolha mas uma resposta Como responder Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees Consideraccedilotildees finais

2 Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo

Vocaccedilatildeo eacute um termo derivado do verbo latino vocare que significa chamar Vocaccedilatildeo eacute assim chamado convite apelo Eacute ato de chamar da parte de Deus eacute um estado de relaccedilatildeo entre Deus e o homem eacute diaacutelogo porque haacute atenccedilatildeo para com o outro Vocaccedilatildeo eacute encontro de duas liberdades a liberdade absoluta de Deus que chama e a liberdade do homem que responde Vocaccedilatildeo eacute um dom que exige resposta de feacute

Sendo um ato que brota do mais profundo do ser a vocaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com a inclinaccedilatildeo para exercer determinada profissatildeo ou um talento (aptidatildeo natural) para executar algo alguma atividade A vocaccedilatildeo eacute um chamado para amar eacute chamado ao serviccedilo (1Jo 47-21 Mc 1045) eacute a realizaccedilatildeo de um sonho

Na Biacuteblia vocaccedilatildeo estaacute em estreita relaccedilatildeo com eleiccedilatildeo e missatildeo4 Eleiccedilatildeo significa escolher um ou alguns entre tantos eacute uma predileccedilatildeo De tal maneira vocaccedilatildeo eacute um dom com o qual Deus preferiu a mim a vocecirc e natildeo a outro natildeo por merecimentos nossos mas por puro amor e em vista de uma missatildeo especiacutefica que a pessoa chamada vai desccedilo-brindo ao longo da sua vida visto que vocaccedilatildeo eacute um estado de relaccedilatildeo com Deus

21 Por que uma teologia da vocaccedilatildeo

A vocaccedilatildeo eacute um ato teoloacutegico e antropoloacutegico porque envolve Deus e o homem Eacute dom que vem do Alto iniciativa do Pai ldquoque atrai a Si uma criatura sua por um amor de predileccedilatildeo e em ordem a uma missatildeo especialrdquo5 Eacute Deus que no iacutentimo inspira agrave alma o desejo de abraccedilar o projeto de Deus seja no matrimocircnio como na vida consagrada O fato de Deus escolher algueacutem com amor de predileccedilatildeo no entanto natildeo obriga a pessoa escolhida porque sua eleiccedilatildeo se torna convite diante do qual ela eacute livre para responder sim ou natildeo Ao mesmo tempo poreacutem Deus tem um jeito todo particular de se aproximar do homem que quase

4 VOCACcedilAtildeO in CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997 5 Cf JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996 n 17

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

149

ningueacutem resiste em responder sim Acontece exatamente o que acentua Jeremias ldquoseduzistes-me Senhor e eu me deixei seduzirrdquo (cf Jr 207)

22 Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo

Pela sua natureza dialoacutegica a vocaccedilatildeo eacute relacional comunitaacuteria missionaacuteria e dinacircmica A origem de toda a vocaccedilatildeo estaacute na relaccedilatildeo com a Santiacutessima Trindade ()6 Soacute quem ficou seduzido (Jr 207) e permanece na intimidade (Os 216 1Ts 417 Jo 1724 1Pd 51) pode entender a beleza e a riqueza desta peacuterola preciosa

O diaacutelogo pessoal com Deus tambeacutem eacute comunitaacuterio nos dois sentidos de um lado acontece numa comunidade bem concreta (Mt 2531-46) de outro Deus chama mediante o ldquoclamorrdquo do povo que sofre (cf Ex 31-10 Jr 114-10) A vocaccedilatildeo eacute comunhatildeo com a Trindade que se traduz concretamente na experiecircncia de verdadeira irmandade Ela eacute comunicaccedilatildeo isto eacute vida de comunhatildeo e de participaccedilatildeo Responder ao chamado eacute inserir-se na vida da comunidade com uma missatildeo bem precisa tomar parte ativa na construccedilatildeo do Reino Vocaccedilatildeo natildeo eacute isolamento busca de satisfaccedilotildees de ldquorealizaccedilatildeo pessoalrdquo Natildeo eacute realizar ldquoprojetos pessoaisrdquo mas dar a vida pela defesa da vida (Jo 1011 1513)

3 Dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde

Desde o Concilio Vaticano II a vocaccedilatildeo eacute vista como chamado agrave comunhatildeo com o Pai pelo Filho no Espiacuterito Santo7 O segundo Congresso Internacional das vocaccedilotildees (Roma 1981) no seu documento conclusivo explicita de forma definitiva e muito clara esta dimensatildeo trinitaacuteria ldquoCada vocaccedilatildeo estaacute ligada ao desiacutegnio do Pai agrave missatildeo do Filho agrave obra do Espiacuterito Santo Cada vocaccedilatildeo eacute iluminada e fortalecida agrave luz do misteacuterio de Deusrdquo8

O Papa Bento XVI ressalta esta dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo quando afirma logo no iniacutecio de sua primeira mensagem vocacional que ldquoo Pai do ceacuteu nos escolheu pessoalmente para nos chamar a entrar em

6 CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla Satildeo Paulo Paulinas 2004 13 Ed nordm 212 7 Cf VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM Satildeo Paulo Paulinas 1999 13ordf Ed nordm 4 8 II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Vocacional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982 nordm 7

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

150

relaccedilatildeo filial com Ele por meio de Jesus Verbo feito carne sob a guia do Espiacuterito Santo9rdquo 31 A vocaccedilatildeo do homem

O homem existe porque Deus lhe dirigiu a palavra o chamou agrave existecircncia convocando-o para ser Seu interlocutor A vocaccedilatildeo eacute a palavra que Deus dirige ao homem e que o faz existir imprimindo nele a marca dialogal Se o homem foi criado pela conversaccedilatildeo com Deus e eacute assim aquele que eacute chamado a falar a expressar-se a comunicar-se a responder o tempo que tem a disposiccedilatildeo pode ser entendido como o tempo para realizar sua vocaccedilatildeo

Ora em que consiste a vocaccedilatildeo do homem senatildeo na sua plena realizaccedilatildeo no amor ao interno do princiacutepio dialoacutegico no qual foi criado com Deus como primeiro interlocutor ldquoVocaccedilatildeo entatildeo eacute um processo de maturaccedilatildeo de relaccedilotildees que culmina no amor a Cristo que eacute a plena realizaccedilatildeo do amor na sua pessoa10rdquo Em satildeo Paulo encontramos a confirmaccedilatildeo desta verdade ldquoqualquer coisa o homem faccedila fora do seu amor natildeo serve a nada aliaacutes eacute vatilde e esperdiacutecio de tempordquo (1Cor 13)

32 Quem chama

O sujeito e autor de todo o chamado eacute Deus Eacute preciso poreacutem entender por que Deus chama qual intenccedilatildeo O move de qual vontade eacute animado Um texto de Paulo aos Efeacutesios nos abre horizontes infinitos

Bendito seja Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que do alto do ceacuteu nos abenccediloou com toda a becircnccedilatildeo espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criaccedilatildeo do mundo para sermos santos e irrepreensiacuteveis diante de seus olhos No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo segundo o beneplaacutecito de sua livre vontade (Ef 13-5)

Nossa existecircncia tem raiz no coraccedilatildeo de Deus que nos desejou ldquofaccedilamos o homem agrave nossa imagem como nossa semelhanccedilardquo (Gn 1 26a) que desde a eternidade nos quis como ldquofilhos adotivosrdquo agrave imagem do seu Filho Jesus Existir eacute a primeira e fundamental vocaccedilatildeo do ser humano (cf Gn 27) As outras vocaccedilotildees dela decorrem e nela se sustentam Eacute o amor agrave

9 BENTO XVI A primeira mensagem vocacional in httpwwwportalcatolicoorgbr portala-primeira-mensagem-vocacional-de-bento-xvi Acesso em 040452015 10Cf RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000 p 21-22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

151

vida que possibilita se empenhar em tantas outras dimensotildees da existecircncia humana

33 Por que chama Os motivos do chamado

Vocaccedilatildeo eacute accedilatildeo de chamar por parte de Deus como sua iniciativa de amor corresponsaacutevel (Is 591 Jr 15 Rm 912 Gl 115 58) Deus chama porque ama (cf Dt 76-8 236 Jo 1516 Mc 312) Segundo a Biacuteblia missatildeo eacute o elemento central da vocaccedilatildeo11 Quando Deus chama algueacutem o faz para uma missatildeo a fim de fazer alguma coisa em funccedilatildeo de uma pessoa ou de uma comunidade A missatildeo eacute sempre um encargo

ldquoDeus criou-nos para compartilhar a sua proacutepria vida chama-nos para sermos seus filhos membros vivos do Corpo miacutestico de Cristo templos luminosos do Espiacuterito do Amor Chama-nos para ser ldquoseusrdquo quer que todos sejam santos12rdquo

Ante o chamado que Deus faz a cada um de noacutes eacute preciso ter coragem para deixar tudo se abandonar por inteiro ir aonde Ele mandar e fazer aquilo que Ele pedir Coragem eacute um dos passos mais importantes para um caminho vocacional bem-sucedido Eacute preciso ter coragem para entregar-se nas matildeos do bom oleiro e deixar-se moldar para enfrentar todas as tempestades do caminho todas as vicissitudes Coragem pra deixar tudo e dizer Sim a Deus

Natildeo temas ldquoCoragem Levanta-te ele te chamardquo (Mc 10 49) Ama-te e conta contigo para estabelecimento de um Reino de amor que jamais teraacute fim Amor eacute a origem e o fim de toda vocaccedilatildeo e o Deus que nos criou sem noacutes natildeo nos salva sem noacutes constata Santo Agostinho Somos chamados a colaborar no plano da salvaccedilatildeo Ele precisa do teu sim generoso e gratuito

34 Para que chama

A autoria de Deus sobre o chamado eacute contiacutenua Todos os dias Deus chama o homem para uma vida de relaccedilatildeo filial para elevaacute-lo agrave comunhatildeo com a Trindade

11wwwparoquiasaobeneditongorgbrblogp=1087 Acesso em 29102015 12JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iiptmessagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes _29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em em 29102015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

152

O uacutenico e mesmo Espiacuterito distribui seus dons a cada um conforme quer para que todo dom sem exceccedilatildeo seja para utilidade de todos para o bem da comunidade (cf 1Cor 127 11)Todo chamado eacute voltado para servir para dar sentido agrave proacutepria existecircncia doando-se

Ao se falar da vocaccedilatildeo a palavra sentido pode significar possibi-lidade e capacidade de siacutentese na proacutepria accedilatildeo cotidiana como tambeacutem abertura a um futuro em que o sentido da proacutepria vida seja menos contraditoacuterio ou contudo mais feliz e harmonioso Entatildeo a finalidade do chamado eacute de um movimento rotatoacuterio que tem como eixo Deus O ponto de partida e de chegada eacute Deus

Quanto mais o homem se relaciona com Deus mais se sente realizado e se torna capaz de doar-se sair de si e ir ao encontro do outro A realizaccedilatildeo de que se fala eacute no sentido de ser feliz do que se eacute e se faz Acreditamos ser esta a condiccedilatildeo de servir gratuitamente Assim sendo a vocaccedilatildeo visa em primeiro lugar agrave realizaccedilatildeo pessoal daquele que eacute chamado que busca um sentido da sua vida na descoberta do propoacutesito de Deus para si mediante o serviccedilo agrave comunidade de irmatildeos Na medida em que a pessoa se acha realizada em certa opccedilatildeo sente a exigecircncia de responder por via do serviccedilo E seraacute realmente um serviccedilo gratuito que natildeo espera outro em troca porque se sente bem servindo e o amor ao proacuteximo por sua vez eacute inseparaacutevel do amor a Deus A verdadeira felicidade estaacute em servirmos ao outro e a Deus 13

Sendo a vocaccedilatildeo antes de tudo um relacionamento com Jesus Cristo eacute inconcebiacutevel falar de uma vocaccedilatildeo cristatilde fora da Igreja pois eacute nela e por seu intermeacutedio que Cristo realiza e revela o proacuteprio misteacuterio como meta do desiacutegnio de Deus ldquoRecapitular tudo nelerdquo (Ef 110)

35 Como chama O modo

DeusndashPai nos chama pelo nome e sua voz chega ao homem em dois modos imediato e mediato Imediato Deus chama por meio de um desejo iacutentimo e profundo a inspiraccedilatildeo divina que impele para um estado de vida Costuma haver no mais iacutentimo da pessoa uma atraccedilatildeo essencial para formas de ser e de viver fundamentais por intermeacutedio do ambiente isto eacute das relaccedilotildees pessoais que vatildeo despertando o chamado por meio da histoacuteria pessoal (muito relevante) Mediato Deus fala pelas mediaccedilotildees Palavra escrita (e a falada) a vida de Cristo por meio da histoacuteria

13 httpformacaocancaonovacomdiversosa-vocacao-profissional Acesso em 05112015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

153

situaccedilotildees acontecimentos definidos sinais dos tempos e das pessoas (cf 1Sm 38-9)

Deus natildeo chama os homens do mesmo modo porque Ele chama por nome numa certa histoacuteria situaccedilatildeo cultura Nos relatos da Biacuteblia esta diferenccedila eacute notoacuteria algumas personagens satildeo demoradas em dizer sim e Deus tem paciecircncia e pelo diaacutelogo vai levando o chamado a uma resposta consciente como eacute o caso de Gedeatildeo (cf Jz 611-40) pois foi necessaacuterio trecircs vezes Deus prometer a sua presenccedila para se sentir seguro ao passo que natildeo foi assim com o disciacutepulo que pede para enterrar primeiro seu pai (Mt 821-22) a quem Jesus responde ldquoSegue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortosrdquo

Deus chama mediante Sua Palavra da natureza dos acontecimentos da histoacuteria significa que para escutaacute-Lo devemos estar atentos e cultivar uma atitude interior de silecircncio de escuta de meditaccedilatildeo de contemplaccedilatildeo No Novo Testamento a primeira accedilatildeo que Jesus desenvolveu no seu ministeacuterio de vida puacuteblica eacute uma ldquovocaccedilatildeordquo eacute a chamada de dois dos seus disciacutepulos Antes de tudo o chamado pede conversatildeo isto eacute seguir Jesus com o desejo de conformar-se agrave Sua pessoa

Nossa vocaccedilatildeo encontra jaacute a primeira revelaccedilatildeo no nome de cada um por isso Jesus chamaraacute Simatildeo de Pedro porque a sua missatildeo e a sua chamada seraacute aquela de ser rocha sobre a qual fundar a Igreja de Cristo Aleacutem disso os apoacutestolos satildeo chamados um a um e por nome para serem identificados na sua unicidade

4 Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde

Na Biacuteblia a vocaccedilatildeo eacute sempre de autoria do proacuteprio Deus que chama escolhe cada homem e mulher Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento o chamado pode se manifestar de modo mediato ou imediato

Segundo o esquema biacuteblico-literaacuterio satildeo elementos essenciais da vocaccedilatildeo iniciativa de Deus obediecircncia pela feacute temor e tremor investidura ou missatildeo Apesar de nem todas as caracteriacutesticas existirem em todas as vocaccedilotildees em todo tipo de vocaccedilatildeo haacute iniciativa de Deus o seguimento e a Missatildeo14

No Novo Testamento assim como no Velho Testamento a iniciativa de chamar algueacutem eacute sempre de Deus (Mt 99 101 Mc 1 1719-20 313 511 14 Cf Biacuteblia Sagrada Ediccedilatildeo da Famiacutelia Petroacutepolis Vozes 2005 p 1545

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

154

At 9 3-6) A iniciativa de Deus no entanto natildeo elimina nem substitui a resposta do homem jamais anula a participaccedilatildeo e a responsabilidade da pessoa chamada15 Natildeo eacute contudo por meio de uma manifestaccedilatildeo velada pela Palavra do Senhor nem da mediaccedilatildeo de outro homem que Deus age pois antes Ele atua na histoacuteria pessoalmente intermediado por Seu Filho que se fez carne (Jo 114)

Em ambos os Testamentos os escolhidos satildeo designados para uma missatildeo ldquoTal missatildeo eacute a participaccedilatildeo na compaixatildeo pastoral de Jesus ajudaacute-lo na sua missatildeo de serviccedilo agrave necessidade mais profunda das pessoasrdquo 16 Aquele que eacute chamado a seguir Jesus eacute convidado a ter aquilo que Satildeo Paulo pede aos filipenses isto eacute os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 25ss) que eacute a praacutetica da feacute esperanccedila e caridade ldquoNa vivecircncia dessas trecircs virtudes teologais se encontra a fundamental explicitaccedilatildeo da opccedilatildeo fundamental de seguir Cristo17rdquo

O esquema literaacuterio das narrativas vocacionais se repete em muitos casos no Antigo e no Novo Testamento chamado rejeiccedilatildeo ao chamado explicitaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo da missatildeo A novidade estaacute no Segundo Testamento que entende a vocaccedilatildeo agrave santidade e consagraccedilatildeo a Deus em relaccedilatildeo ao Espiacuterito Santo e Jesus

O singular do chamado no Novo Testamento eacute que todos satildeo realizados sob o signo da Nova Alianccedila isto eacute sob o signo da figura de Jesus Eles satildeo enviados e convidados a levar ao povo a presenccedila do proacuteprio Senhor18

A realizaccedilatildeo da vocaccedilatildeo de Jesus para o serviccedilo do Reino eacute expressa de modo claro em Lc 4 14-22 remir os presos recuperar a vista 15 MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro tostado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001 p 26 e 29 16 Cf PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991 p 400 17 Cf GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998 p 20 18 Alguns exemplos do chamado nos quais o aspecto missionaacuterio eacute evidente Abraatildeo e Sara chamados para formar um povo (Gn 121-9 Sb 105 At 7 2-3 e Hb 11 8) Moiseacutes a vocaccedilatildeo de um libertador (Ex 3 1-15 4 1-17 6 2-13 6 28-30 71-7 5) Isaiacuteas vocaccedilatildeo para denunciar e anunciar (Is 6 1-10) Maria vocaccedilatildeo para ser a matildee de Deus Apoacutestolos vocaccedilatildeo de propagar os ensinamentos de Jesus (Jo 135-394051 Lc 54-10 Lc 612-16 Mc 117-20 Mc 2 13-17 Mt 412-22 At 115-26) Paulo vocaccedilatildeo de continuar a missatildeo de Jesus ressuscitado (At 91-19 221-21 262-18) Jesus siacutentese da vocaccedilatildeo profeacutetica (Lc 4 14-22 Hb 51-10 Ap 1913 Jo 11-83036 314-19 331-34 4252634 442 530363843 62938-40 64450-5157 71628-2933 81618 11274252 1213273746-49 1424311521 16527 17468 171418212325 181137 19 2021-22)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

155

dos cegos restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graccedila do Senhor

41 Como saber que eacute Deus quem me chama

Vocaccedilatildeo eacute um chamado ao diaacutelogo com Deus em Jesus no Espiacuterito Santo Deus fala chama e pede ao homem de escutaacute-Lo (cf Mc 97) Escutar significa dar atenccedilatildeo ouvir e interiorizar o conteuacutedo da conversa interagir dar adesatildeo uma resposta Vocaccedilatildeo eacute um conhecer e deixar-se conhecer mediante o diaacutelogo com a Trindade Estes dois atos satildeo feitos simultacircnea e cotidianamente A vocaccedilatildeo nasce de um encontro pessoal com Cristo Deus-Amor nos chama em Cristo e o Espiacuterito Santo faz o homem participar desse amor do Pai Uma autecircntica experiecircncia de ser salvado pelo Senhor habilita a compreensatildeo de que eacute o Senhor que chama19

A descoberta da proacutepria vocaccedilatildeo eacute um processo que dura por toda a vida eacute um trabalho de elaboraccedilatildeo de si da proacutepria identidade um trabalho que exige atenccedilatildeo paciecircncia docilidade para acolher a palavra de Deus sensibilidade discernimento e tambeacutem a ajuda de um orientador ou diretor espiritual O chamado eacute entendido e decifrado com base numa ldquoexperiecircncia pessoal com Deusrdquo Nessa experiecircncia Ele revela o seu projeto para noacutes assim como fez com Moiseacutes (cf Ex3 4) e Pedro (Jo 2115-19)

42 A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta

O seguimento de Jesus Cristo comporta trecircs implicaccedilotildees encontro chamado e caminho O encontro suscita um desejo um deixar-se seduzir pelo amor O chamado sustenta esse desejo ou correspondecircncia e ainda este se desenvolve numa inquietaccedilatildeo constante sempre crescente ateacute responder E o caminho eacute o carisma ou a maneira de realizar esse projeto Estes trecircs passos se realizam numa simbiose vocacional surpreendente

Um olhar superficial dos relatos biacuteblicos sobre a vocaccedilatildeo pode levar-nos a concluir que vocaccedilatildeo eacute uma escolha pessoal iniciativa daquele que busca realizar suas inclinaccedilotildees mais profundas Uma anaacutelise mais percuciente no entanto nos desarma ao revelar que apesar de toda a nossa boa vontade e empenho pessoal num determinado chamado a nossa accedilatildeo natildeo passa de uma resposta agrave iniciativa de Deus que quis da nossa existecircncia e felicidade desde sempre (cf Jr 15)

19 Cf RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001 p 116 e 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

156

Nos Evangelhos Jesus chama a Si aqueles aos quais depois faraacute seus disciacutepulos ldquoNatildeo fostes voacutes que me escolhestes mas eu escolhi a voacutes e vos constitui para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneccedilardquo (Jo 1516)

Na origem de cada autecircntica chamada portanto estaacute o Senhor que escolhe e convida ao seu seguimento A Igreja manifesta na diversidade e na multiplicidade das vocaccedilotildees a riqueza do Espiacuterito que distribui livremente os seus dons segundo o projeto divino () A vocaccedilatildeo natildeo se constroacutei se recebe de Deus e sua realizaccedilatildeo depende da resposta que cada um sabe dar Viver de fato eacute responder20

A vocaccedilatildeo poreacutem natildeo eacute predestinaccedilatildeo (Ef 14 Jr 15) mas apelo do Pai dirigido agrave pessoa humana livre (Mt 1921 Gn 128-31)O projeto de Deus para a pessoa natildeo eacute algo estaacutetico predeterminado preestabelecido mas um apelo que se faz por via de mediaccedilotildees bem concretas (Jo 135-50) Deste modo a pessoa pode dizer ldquosimrdquo como Maria (Lc 138) fazendo acontecer a histoacuteria da salvaccedilatildeo ou dizer ldquonatildeordquo como o jovem rico (Mt 1922) frustrando o projeto de amor do Pai Da nossa resposta ao chamado de Deus depende a nossa felicidade O homem que diz sim se reencontra encontrando Deus e o que diz natildeo se perde

43 Como responder

A vocaccedilatildeo eacute um convite que se transforma em apelo o qual exprime uma proposta propositura que se torna eleiccedilatildeo escolha que solicita uma resposta21 O significado de cada um desses termos eacute muito profundo Convite eacute o ato de fazer uma proposta que se supotildee agradaacutevel Apelo eacute chamar algueacutem por nome Proposta eacute quanto vem apresentado agrave atenccedilatildeo e agrave aceitaccedilatildeo do outro um projeto Eleiccedilatildeo eacute o processo pelo qual um grupo designa um de seus integrantes para ocupar um determinado cargo com apelo a uma votaccedilatildeo Resposta eacute o ato de satisfazer uma chamada Deus espera uma resposta da nossa parte uma adesatildeo ao cumprimento da sua vontade sobre noacutes Deveriacuteamos ser agradecidos e sentir-nos honrados quando Deus se digna a nos chamar a colaborar da Sua missatildeo salviacutefica

20 httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa-non-ehtml Acesso em 29052015 21Cf PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus p 1385

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

157

44 Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A vida do cristatildeo eacute ldquosequela Christirdquo seguimento de Cristo em busca do caminho traccedilado por Ele para ser na Igreja e no mundo sinal inconfundiacutevel de amor e modelo de vida generosa e exemplar

A dimensatildeo do dom eacute a totalidade que prende a vida plenamente radicando-a no uacutenico absoluto que eacute Deus Instaura-se uma relaccedilatildeo que interessa o profundo do ser e que natildeo se confunde no anonimato Jesus busca a mim proacuteprio a mim Como um dia chamou por nome Abraatildeo Samuel Pedro Saulo assim ainda hoje o Pastor divino tem para cada ovelhinha nome uacutenico ldquoirrepetiacutevelrdquo22 distinto de qualquer outro nome ou som e que somente aquele que eacute chamado eacute capaz de perceber O ldquodeixa os mortos sepultar os seus mortosrdquo (Mt 822) o ldquoSegue-merdquo (Jo 2122) e o ldquonatildeo eacute digno do reino de Deusrdquo (Lc 959-62) mostram que as exigecircncias do chamado satildeo totais e natildeo admitem condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A radicalidade da resposta eacute uma exigecircncia fundamental do seguimento Natildeo se consente algum tipo de reenvio ou prorrogaccedilatildeo nem mesmo se nos encontraacutessemos diante de um motivo de grande valor moral e social como a necessidade de ldquosepultar o pairdquo a pessoa de Jesus exige uma prioridade absoluta e incondicionada ainda mais que Ele convida a anunciar ldquoo reino de Deusrdquo ao qual tudo eacute subordinado (cf Mt 633)

Trecircs dimensotildees satildeo necessaacuterias para uma resposta total liberdade como possibilidade de escolha de ausecircncia de constriccedilatildeo exterior e interior que permite de fazer uma eleiccedilatildeo autocircnoma gratuidade como alegria de servir no amor e sem esperar nada em troca eacute ter os sentimentos de Cristo Jesus (cf Fl 25) e dom ldquo o dom entra em cena quando descubro a dimensatildeo do outro como sujeito quando a categoria da gratuidade se torna a mola do meu agir e tambeacutem a descoberta do meu ser da minha dignidade e a do outro como pessoa humana pelo que viver a experiecircncia do dom significa substancialmente fazer experiecircncia de liberdaderdquo23

22 Cf CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006 p 61 23 Cf POLI Gianfranco La cultura della vocazione p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

158

5 Consideraccedilotildees finais

O objetivo geral do trabalho eacute mostrar que o argumento lsquovocaccedilatildeorsquo carece de um estudo sistemaacutetico de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica Com este escrito constatamos a necessidade de um estudo sistemaacutetico que esclareccedila o que entendemos quando falamos de vocaccedilatildeo Isto porque efetivar uma vocaccedilatildeo segundo o projeto de Deus contribui para o bem natildeo somente pessoal ou da instituiccedilatildeo a que se pertence mas do corpo como todo a Igreja Entatildeo vale muito despertar as escolas teoloacutegicas a abraccedilarem esta causa como questatildeo urgente levando seus teoacutelogos a reflexotildees mais aprofundadas com embasamento biacuteblico

Durante a realizaccedilatildeo do trabalho assumimos os desafios de ler textos em liacutengua italiana e de individuar entre o abundante conteuacutedo pesquisado qual responderia melhor ao tema Natildeo foi faacutecil descartarmos tantos conceitos e tentarmos nos ater ao tema com poucas paacuteginas

No desenvolvimento do assunto vimos que a vocaccedilatildeo eacute um ato dinacircmico um procedimento gradual uma histoacuteria de amor um relaciona-mento profundo com Deus por meio do Filho no Espiacuterito Santo e que por isso requer entrar na intimidade com Deus estar a soacutes na escola do Mestre pois a vocaccedilatildeo como ato de chamar conta com o envolvimento de dois sujeitos Deus que chama e o homem que responde

A iniciativa eacute sempre de Deus que chama para uma missatildeo especiacutefica na comunidade eclesial de onde nasce e cresce a mesma Deus se manifesta por intermeacutedio dos acontecimentos do mundo e da histoacuteria pessoal Ele precisa da nossa resposta concreta generosa e sem condicionamentos para continuar Sua obra da salvaccedilatildeo hoje

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

159

Referecircncias Bibliograacuteficas

ALBERTO Cosegrave la vocazione Cosa non egrave httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa -non-ehtml Acesso 29052015

BENTO XVI A primeira mensagem vocacional httpwwwportalcatolicoorgbrportala-primeira-mensagem-vocacio nal-de-bento-xvi Acesso em 040452015

BIacuteBLIA SAGRADA EDICcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA Petroacutepolis Vozes 2005

CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997

CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 2004

CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006

DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992

GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998

II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Voca-cional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982

JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996

JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iipt messagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes_29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em 29102015

MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro testado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001

OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996)

PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus 1999

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

160

PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991

POLI Gianfranco La cultura della vocazione tra vocazione e domanda di senso In BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teoloacutegica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010

RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000

RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001

VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 1999

Ir Graccedila Disingakala Nunes Aluna do Curso de Especializaccedilatildeo para qualificaccedilatildeo de formadores

na Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Artigo escrito sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

161

A EacuteTICA POLIacuteTICA EM MAQUIAVEL

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

Resumo

Na obra maquiaveliana encontra-se uma nova concepccedilatildeo da poliacutetica que se distancia das concepccedilotildees claacutessica patriacutestica e escolaacutestica Suas fontes satildeo as praticas poliacuteticas contemporacircneas e os escritos do historiador Tito Liacutevio O objetivo do seu estudo eacute uma Itaacutelia unida Nesta nova abordagem ganha interesse e destaque a relaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica assunto tratado especialmente na obra O Priacutencipe

Palavras-chave Renascimento Itaacutelia Maquiavel Eacutetica Poliacutetica

Abstract In the Machiavellian work we find is a new conception of politics which moves away from the classical patristic and scholastic conceptions His sources are contemporary political practices and the writings of the historian Titus Livius The purpose of his study is a united Italy In this new vision great interest and highlight are given to the relationship between ethics and politics specially treated in the work De Principe

Keywords Renaissance Italy Machiavelli Ethics Politics

1 Introduccedilatildeo

Satildeo conhecidos o vigor e a profundidade do pensamento do filoacutesofo poliacutetico Maquiavel1 Entre as suas obras que satildeo muacuteltiplas e de variados

1 Niccoloacute di Bernardo del Machiaveli nasceu na cidade de Florenccedila no dia 3 de maio de 1469 Sua vida desenvolveu sob o signo da poliacutetica a que dedicou tanto no campo teoacuterico como no praacutetico todos os seus esforccedilos materiais e intelectuais A poliacutetica como ele confessa estava no seu sangue Desde cedo Maquiavel foi incentivado por seu pai a se dedicar aacute leitura dos autores da Antiguidade Claacutessica como Virgiacutelio e Tito Liacutevio Sua juventude foi marcada pelos acontecimentos turbulentos da sua cidade natal que fazia parte de uma Itaacutelia assolada e perturbada por disputas poliacuteticas natildeo somente de acircmbito local como tambeacutem de forccedilas estrangeiras como Franccedila e Espanha que se aproveitaram das lutas internas da Peniacutensula Apeninica e da cidade de Florenccedila para sobretudo aumen-tarem a sua influecircncia Conta-se que Maquiavel aos nove anos assistiu ao assasinato de Juliano de Meacutedici e ao ferimento de Lourenccedilo de Meacutedici O ano de 1498 que viu a execuccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

162

gecircneros a De Principe eacute de longe a mais conhecida e analisada2 As outras de cunho poliacutetico natildeo deixam se ter interesse e importacircncia mas natildeo desenvolvem com a mesma clareza e pujanccedila o nuacutecleo do seu pensamento poliacutetico de modo especial o seu carter moral e eacutetico

O estudo ora expresso intenta com suporte nessa obra e preferen-cialmente nela comentar e descrever a eacutetica poliacutetica maquiaveliana que significa uma reviravolta em comparaccedilatildeo com a ideia natildeo somente a claacutessica mas tambeacutem cristatilde que quase sem exceccedilatildeo ateacute agrave eacutepoca da Baixa Idade Meacutedia se baseia quase exclusivamente no pensamento bem ou mal interpretado de SantrsquoAgostinho

2 As fontes da formaccedilatildeo de Maquiavel como pensador poliacutetico

Ao ler e refletir o pensamento poliacutetico de Maquiavel saltam aos olhos natildeo somente o seu profundo conhecimento a respeito da histoacuteria da Itaacutelia especificamente quando da eacutepoca do Impeacuterio Romano como tambeacutem os vestiacutegios de uma profiacutecua e intensa atividade diplomaacutetica Neste aspecto destacou-se por intermeacutedio de missotildees diplomaacuteticas vitoriosas ndash umas mais outras menos importantes - em vaacuterios estados da Peniacutensula Italiana inclusive em centros de poder nacional de grande envergadura tais como a Franccedila e a Alemanha

21 A atividade diplomaacutetica de Maquiavel

Logo apoacutes o dantesco e triste espetaacuteculo do julgamento da conde-naccedilatildeo e da execuccedilatildeo na fogueira do profeacutetico Jerocircnimo Savanarola na Praccedila da Senhoria reinstala-se em Florenccedila a Repuacuteblica Livre para alguns

de Savanarola pode ser considerado como a entrada de Maquiavel na poliacutetica sendo ele chamado a exercer o cargo de secretaacuterio da Segunda Chancelaria da Repuacuteblica de Florenccedila Em seguida ele se tornou um dos principais auxiliares do gonfaloniero vitaliacutecio Piero Soderini sendo encarregado dos assuntos diplomaacuteticos Quando Soderini caiu Maquiavel perdeu o cargo destituiacutedo pelos novos donos do poder ateacute a sua anistia concedida pelo Papa Leatildeo X da famiacutelia dos Meacutedicis Maquiavel esforccedilou-se ao maacuteximo para cair nas graccedilas dos Meacutedicis Quando estes caiacuteram e a Repuacuteblica foi reinstalada em Florenccedila Maquiavel visto com desconfianccedila retirou-se da vida publica Morreu no dia 21 de junho de 1527 2 Pode-se dividir a obra de Maquiavel em trecircs grandes setores que facilitam e ajudam na sua vasta atividade literaacuteria 1- Correspondecircncia tanto particular como oficial 2- obras literaacuterias poesia (eg) a famosa obra inacabada o Asno de Ouro) prosa (Discurso Moral que exorta a penitecircncia) teatro e novelas (vg Mandraacutegora em que se expotildee a degradaccedilatildeo moral e religiosa e se afirma a corrupccedilatildeo como inerente aacute natureza humana) 3- obras poliacutetico-histoacutericas (eo Discurso sobre a primeira deacutecada de Tito Livio)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

163

uma dinastia camuflada Suprime-se a teocracia e retoma-se o regime aristocraacutetico Foi aiacute em 1498 que Maquiavel com quase 30 anos de idade foi sorteado para exercer o cargo de secretaacuterio da 2ordf Chancelaria do Estado Livre da Repuacuteblica de Florenccedila E logo depois passou a realizar tambeacutem tarefas para a comissatildeo dos Dez do Poder ou Dez da Guerra

Como chanceler Maquiavel realizou a primeira legaccedilatildeo junto agrave Duquesa de Imola e Forli onde renegociou o soldo pago pelo Governo Florentino ao ldquocondottiererdquo3 Otaviano Florenccedila contratara o filho da Duquesa por 15 mil ducados soma considerada exorbitante por Florenccedila Maquiavel teve ecircxito conseguiu reduzir o soldo como tambeacutem recebeu auxiacutelio militar da duquesa - na forma de tropas de soldados e artilharia ndash de grande valor na ocupaccedilatildeo de Pisa4 Desde entatildeo o Diplomata Florentino comeccedilou a ser considerado e tratado como um haacutebil conciliador Entusiasmado com o prestiacutegio e a experiecircncia adquiridos escreveu o primeiro texto poliacutetico Discorso fatto a Magistrato dei Dieci sopra le cose de Pisa

Nuvens negras e sombrias no entanto continuaram a se espalhar e ameaccedilaram empanar o brilho do cenaacuterio poliacutetico florentino Segundo relato5 Pisa rebelara-se mais uma vez cortando o acesso de Florenccedila ao mar pelo rio Arno O rei Luis XII de Franccedila concordara em apoiar Florenccedila na guerra contra Pisa As tropas mercenaacuterias que o Monarca enviara no entanto natildeo cumpriram bem o seu papel acarretando seacuterios problemas ao Estado de Florenccedila Aqui estava uma delicada situaccedilatildeo expor tal reclamaccedilatildeo ao Governo Francecircs e declinar a sua oferta sem ferir a honra do rei Os representantes Maquiavel e Francisco della Casa foram enviados agrave Franccedila para a cidade de Nevers Com muita maestria os dois diplomatas resolveram a difiacutecil tarefa O perigo passou e embora Florenccedila natildeo tenha recuperado Pisa continua com a sua independecircncia

Maquiavel foi ainda encarregado de vaacuterias outras missotildees diplo-maacuteticas junto agrave Franccedila Conveacutem lembrar que Luis XII rei de Franccedila tinha como aliado o Papa Alexandre VI cujo filho se chamava Ceacutesar Boacutergia conforme a opiniatildeo de alguns um ldquocondottiererdquo de muita bravura poliacutetico

3 ldquoCondottiererdquo era ndash na histoacuteria da Itaacutelia ndash chamada o senhor feudal que tinha sob o seu absoluto controle uma miliacutecia que ele podia colocar agrave disposiccedilatildeo de quem o quisesse ou pagasse mais Era entatildeo uma espeacutecie de capitatildeo de soldados mercenaacuterios Assume tambeacutem o sentido de aventureiro 4 Florenccedila e Pisa alternaram periacuteodos de amizade com tempos em que a inimizade explodia em conflitos seacuterios muitas vezes armados 5Cf LARIVAILLE PAUL A Itaacutelia no tempo de Maquiavel Op Cit pg 75-79

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

164

de excelente habilidade mas por outro lado extremamente cruel6 Com a dupla proteccedilatildeo de seu pai e das armas francesas Ceacutesar Boacutergia vinha desempenhando uma accedilatildeo militar avassaladora sobre as possessotildees italianas

No que concerne agrave situaccedilatildeo alarmante de Florenccedila ante o turbulento protegido de Luis XII eacute esclarecedora a descriccedilatildeo desses acontecimentos expressos por JF Duvernoy

Florenccedila tem medo ela se entrega ela cuja doutrina consiste em fugir da submissatildeo de um senhor de um gonfaloneiro vitaliacutecio Eacute verdade que ela o escolheu ldquodemocratardquo na pessoa de Piero Soderini Envia Maquiavel para junto de Ceacutesar Boacutergia para observaacute-lo medir suas forccedilas e seus apetites Ele de fato observa vecirc em Sinigalia como Ceacutesar reprimiu num soacute golpe todos os seus antigos aliados Ele traz de sua missatildeo algo de muito confuso uma vontade indomaacutevel de trabalhar para natildeo ser conquistado e uma admiraccedilatildeo pela poliacutetica de alto vocirco que ele viu em accedilatildeordquo7

Em 1503 o perigo iminente cessou com a morte do Papa Alexandre VI e com a derrota de Ceacutesar Boacutergia Gravemente enfermo e sem apoio nada mais restou ao valoroso Duque de Valentinois senatildeo capitular Conta-se que morreu na Espanha como ldquocondottiererdquo mediacuteocre

A Repuacuteblica de Florenccedila procurou entatildeo evitar cair sob a autori-dade do novo Pontiacutefice Juacutelio II della Rovere o qual pretendia colocar sob a jurisdiccedilatildeo da Santa Seacute todas as antigas cidades regiotildees e possessotildees que antes pertenciam ao Ducado de Valentinois Imediatamente a desas-sossegada Senhoria envia Maquiavel para prestar ao Papa serviccedilos de chancelaria Durante a segunda legaccedilatildeo a Juacutelio II Maquiavel pocircde avaliar de perto o poder temporal do Sumo Pontiacutefice aleacutem de fortemente tomar consciecircncia de como o sentimento religioso ainda se encontrava arraigado no espiacuterito dos homens Essas duas realidades levam-no ao convencimento que ele descreve no seu livro O Priacutencipe

[] os principados eclesiaacutesticos [] satildeo mantidos pela grande antiguidade que existe nas instituiccedilotildees da religiatildeo as quais satildeo tatildeo poderosas e de tal

6 Cf por exemplo Dicionario da Idade Meacutedia organizado por Henry R Lyon Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990 pg 56 [] Era totalmente inescrupuloso a fim de proteger suas fronteiras setentrionais assassinou o marido de sua irmatilde Lucreacutecia e casou-a com o futuro duque de Ferrara 7 DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores 1984 pg 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

165

natureza que seus priacutencipes permanecem no lugar de qualquer maneira que eles se comportam e que vivam8

De fato as tropas mercenaacuterias quando se batiam contra o Papa embora dispusessem de poderio beacutelico suficiente para vencecirc-lo rendiam-se facilmente preferindo assim reverenciar o Chefe da Igreja

A tempestade poliacutetica se avolumava sobre a Itaacutelia ameaccedilando o equiliacutebrio do poder Em Florenccedila a ameaccedila provinha de dois poderosos vizinhos de um lado o Papado do outro o Santo Impeacuterio Maquiavel tendo agora seus dotes conciliadores reconhecidos foi enviado agrave Alemanha e conseguiu perante o Imperador Maximiano I defender a neutralidade de Florenccedila no conflito contra Veneza

Em 1510 poreacutem a Igreja Veneza e a Espanha declaram guerra ao Governo Francecircs Havia muito tempo a Franccedila ocupava o lugar de tradi-cional aliada de Florenccedila Portanto Maquiavel em uma de suas uacuteltimas missotildees diplomaacuteticas conseguiu com muita habilidade e perspicaacutecia que mais uma vez Florenccedila ficasse neutra ou seja liberada de participar daquele conflito

Por natildeo ter apoiado todavia a Igreja na guerra contra a Franccedila o Governo Florentino se viu em maus lenccediloacuteis Em 1512 Florenccedila foi saqueada pelas tropas imperiais de Ferdinando II O Papa destituiu o liacuteder Soderini e a famiacutelia poderosa dos Meacutedicis retornou ao poder Era o fim das instituiccedilotildees democraacuteticas da Repuacuteblica Livre de Florenccedila

Aquele ano assinala igualmente o capiacutetulo final da carreira poliacutetica de Maquiavel Durante os 15 anos do exiacutelio no reinado dos Meacutedicis vive na sua propriedade interiorana trabalhando duro sem se queixar nem se lastimar porque tinha prazer de trabalhar em favor de sua querida e estimada Florenccedila Quando jaacute em desgraccedila escreveu no dia 10 de outubro de 1513 uma carta dirigida a seu amigo Francesco Vettori em que afirma ldquoforam quinze anos dedicados a cultivar a Arte do Estado em que natildeo dormi nem tive folgardquo9

Os autores em grande parte consideram Maquiavel como um excelente diplomata trabalhando sempre com muito empenho lealdade e dedicaccedilatildeo Suas cartas escritas na cidade francesa de Blois quando efetuava suas uacuteltimas atividades de diplomacia na Franccedila constituem documentos 8 MAQUIAVEL Niccolo O Priacutencipe cap XI 9 MAQUIAVELLI N Tutte Le Opere Firenze Sansoni 1992 Citado em RODRIGO Lidia Maria Maquiavel op cit p 23

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

166

que comprovam definitivamente a habilidade poliacutetica do Pensador Floren-tino que atinge alguns momentos insuperaacuteveis Acrescenta-se ainda que no bloqueio rigoroso de Pisa o papel de comissaacuterio desempenhado por Maquiavel foi determinante na retomada dessa cidade

A importacircncia da atividade diplomaacutetica na formaccedilatildeo do pensa-mento poliacutetico de Maquiavel eacute assim analisada por Bronowski e Mazlish

o seu posto natildeo lhe desse grande poder na definiccedilatildeo da poliacutetica deu-lhe uma visatildeo directa do processo poliacutetico das cidades-estado italianas E como esses processos poliacuteticos variavam desde a oligarquia em Veneza agrave monarquia em Naacutepoles e agrave democracia em Florenccedila forneciam uma verdadeira escola de poliacutetica para um observador atento10

Foi nessa atividade diplomaacutetica que Maquiavel chegou agrave conclusatildeo de que o mais importante na poliacutetica eacute

[] o Estado natildeo aquele imaginaacuterio e que nunca existiu mas aquele que eacute capaz de impor a ordem O ponto de partida e da chegada eacute a realidade corrente ndash por isto a ecircnfase na veritagrave effetuale ndash ou seja ver e examinar a realidade como ela eacute e natildeo como se gostaria que fosse11

Isto se aplica agrave imagem que Maquiavel formou dos priacutencipes nos seus contatos diretos com os detentores do poder durante tantos anos o descobriu que

[] o priacutencipe que os humanistas do Renascimento apresentavam como modelo aos governantes natildeo passava de uma construccedilatildeo do espiacuterito de uma formulaccedilatildeo abstrata e ideal desvinculada de qualquer possibilidade e em contraste chocante com a realidade crua e aacutespera da eacutepoca quinhentista O priacutencipe ideal do humanismo era o siacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilotildees religiosas cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudente ndash compendio enfim de todas as perfeiccedilotildees fiacutesicas intelectuais e morais 12

Assim surge um personagem viril audaz destemido cuja maacutexima mais importante era ater-se aacute verdade efetiva das coisas sem ficar pensando em repuacuteblicas e monarquias imaginaacuterias com seus princiacutepios inspirados por altos ideais longe da realidade concreta da poliacutetica praticada naqueles dias ndash e em tempos anteriores

10 BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 pg 47 11 Disponiacutevel em www palmirarjnet Acesso em 25-10-2010 12 ESCOREL Lauro O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades Cadernos da UnB Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 pg 18

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

167

2 2 O estudo da histoacuteria

Como Maquiavel se inspirou na histoacuteria encontrando nela valiosas pistas para a accedilatildeo poliacutetica manifesta-se sobretudo na sua obra Discursos sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio A obra caracteriza-se como um diaacutelogo com o historiador Tito Liacutevio que viveu de 58 aC ateacute 12 dC o turbu-lento periacuteodo que acusa o fim da era da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Romano13 Uma das propriedades desta grandiosa obra foi entre outras o enfoque da histoacuteria sob o ponto de vista da moral ao fazer com que Maquiavel apontasse a Repuacuteblica Romana como um verdadeiro modelo de sociedade cuja virtugrave deveria servir como exemplo para os seus contem-poracircneos

Os Discorsi satildeo uma elaboraccedilatildeo ideal uma obra de educaccedilatildeo poliacutetica uma sistematizaccedilatildeo mais refletida uma projeccedilatildeo na histoacuteria passada e futura das liccedilotildees ldquodas coisas do mundordquo Eacute uma procura das razotildees que explicam o nascimento a prosperidade e a decadecircncia das naccedilotildees com o intuito de descobrir ndash no exemplo eminente da Roma Claacutessica ndash qual o segredo da forccedila e da estabilidade dos Estados Os Discorsi satildeo compostos de trecircs livros

1o Livro trata dos modos pelos quais se fundam os Estados e da organizaccedilatildeo e modalidades de Governo

2o Livro examina os processos de engrandecimento dos Estados e de conquista de novos Estados

3o Livro tece consideraccedilotildees sobre o crescimento e a decadecircncia dos Estados e seus modos de transformaccedilatildeo e uma anaacutelise da natureza das conjuraccedilotildees que ameaccedilam os detentores do poder

Tudo o que Maquiavel exprime nestes livros eacute inspirado pela ideia que se tornou para ele um axioma de que a imitaccedilatildeo da histoacuteria antiga e de modo peculiar a da Repuacuteblica Romana constitui a fonte por excelecircncia da sabedoria poliacutetica Sob tal perspectiva vaacutelida antes de tudo para a Peniacutensula Italiana ndash outrora sede do nuacutecleo do Impeacuterio Romano ndash o que ocorrera no passado tendia inevitavelmente a se repetir no presente e no futuro Assim sendo o estudo da histoacuteria impunha-se quase como uma condiccedilatildeo sine qua non para a formulaccedilatildeo da teoria do Estado e da descriccedilatildeo das qualidades dos priacutencipes

13 Tito Liacutevio escreveu a monumental obra Ab Urbe Condita ndash a partir da Fundaccedilatildeo da Cidade constando de 142 livros do quais 35 chegaram ateacute noacutes entre eles os dez primeiros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

168

Curiosamente nessa obra Maquiavel exprime uma altamente positiva apreciaccedilatildeo da Repuacuteblica vista por ele como mais apta e equili-brada a tomar decisotildees e realizar o bem comum Ao lado dela - e aqui jaacute se veem as linhas de O Priacutencipe ndash Maquiavel destaca a Monarquia como a melhor forma de se conseguir a formaccedilatildeo do Estado na Peniacutensula da Itaacutelia Concluindo o mesmo raciociacutenio rejeita a tirania e a oligarquia de que eacute afirmado que se trata de uma relaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude Para Maquiavel poreacutem tanto as boas como as maacutes formas de governo teratildeo pouca duraccedilatildeo e por isso defende a maneira mista opiniatildeo que se reflete na descriccedilatildeo dos tipos de principados (Estados) no O Priacutencipe e na postura exigida dos priacutencipes

Resumindo pode-se afirmar que em decorrecircncia da leitura de autores claacutessicos como Tito Liacutevio e Poliacutebio14 aleacutem da recente histoacuteria e da vasta experiecircncia junto a poliacuteticos de sua eacutepoca Maquiavel chega aacute seguinte conclusatildeo O priacutencipe (irreal) estaacute longe de como se vive e de como se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da proacutepria ruiacutena do que de sua conservaccedilatildeo porque um homem que queira em todo lugar parecer bom atrai ruiacutena entre tantos que natildeo satildeo bons15

3 O Priacutencipe

31 Introduccedilatildeo

O Priacutencipe incontestavelmente a obra mais conhecida de Maquiavel foi publicada no ano de 1532 e eacute portanto poacutestuma Antes de sua publicaccedilatildeo impressa jaacute circularam algumas coacutepias manuscritas que natildeo tinham causado nenhum escacircndalo Pelo contraacuterio Maquiavel ficou desapontado pela frieza de Lourenccedilo de Meacutedici em relaccedilatildeo a sua obra que lhe foi dedicada Outro fator que causa certa espeacutecie foi o fato de que na eacutepoca natildeo foi negada agrave obra a licenccedila de imprimiacute-la o assim chamado ldquoimprimaturrdquo Parece que a postergaccedilatildeo da impressatildeo decorre das circunstacircncias poliacuteticas de 1513 ndash 1527 eacutepoca em que Maquiavel vivia isolado no seu exiacutelio Aleacutem disso acredita-se que ele queria reservar a publicaccedilatildeo da obra para uma conjuntura mais propiacutecia no intuito de

14 Historiador nascido na Greacutecia Antiga viveu de 203 aC ateacute 120 a C tomando na sua juventude parte ativa na luta dos gregos contra os romanos Feito prisioneiro foi levado para Roma ficando nesta cidade 17 anos como refeacutem Depois do seu retorno auml Greacutecia voltou algumas vezes a Roma e dedicou-se agrave histoacuteria dos acontecimentos ocorridos durante a sua vida procurando aleacutem do rigor cientiacutefico a valorizaccedilatildeo dos testemunhos de seus contemporacircneos Cf Biografia y Vidascombiografiaenlinea acesso em 10022011 15 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe cap XV-XVII

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

169

produzir um efeito maior Soacute mais tarde o cardeal Reginald Pole 1500-1588 constatando a ldquomaleacutefica influecircnciardquo16 da obra sobre Oliver Cromwell denunciou Maquiavel como um espiacuterito satacircnico defensor do despotismo e justificador de todas as arbitrariedades e violecircncias

Ademais a obra e seu autor enfrentaram a oposiccedilatildeo dos Jesuiacutetas que aleacutem de queimarem a efiacutegie de Maquiavel em Ingolstat em 1559 convenceram o papa Paulo IV a colocar o livro no Index por decreto o que foi confirmado pelo Concilio Tridentino em 1564 A oposiccedilatildeo ao escrito do Maquiavel entretanto natildeo foi proveniente apenas dos catoacutelicos pois tambeacutem os calvinistas como por exemplo Inocecircncio Gentillet que em 1576 publicou Contre Nicolas florentin

[] em que natildeo soacute qualificou o escritor de puant atheacuteiste mas tambeacutem denunciou suas doutrinas como instigadoras da ldquoNoite de Satildeo Bartolomeurdquo acusando-as de haver insuflado no espiacuterito de Catarina de Meacutedici a ideacuteia do massacre e de haver introduzido meacutetodos alieniacutegenas isto eacute italianos na poliacutetica francesa17

Embora importante no conjunto de seus escritos a obra de Maquiavel e sua filosofia poliacutetica natildeo se restringem soacute ao Priacutencipe devendo ser esse escrito visto no contexto de sua obra Com isto entretanto natildeo se pode nem se deve negar o lugar central que este livro ocupa no conjunto da obra maquiaveliana e eacute esta a razatildeo por que neste trabalho dedicado agrave anaacutelise da moral em Maquiavel e de modo especial no O Priacutencipe se lhe dedica um estudo especial

32 A Gecircnese de O Priacutencipe

Segundo Vilari18 deve-se buscar o conceito de O Priacutencipe no papa Leatildeo X 1513-1521 que lanccedilou a ideia de fundar um outro Estado abrangendo Parma Modena Urbino e Ferrara entregando o seu governo a Juliano de Meacutedici Desta forma realizar-se-ia o grande sonho de Maquiavel de um grande Estado monaacuterquico italiano superando a sua divisatildeo em inuacutemeros estados pequenos com um poder central suficiente tanto para unificaacute-la como para mantecirc-la unificada

16 ESCOREL Lauro O pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades VII Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1984 nordm 8 pg 18-52 17 ESCOREL Lauro op cit p 19 18 VILARI P Niccolograve Macchiavelli e i suoi tempi 3 vls Firenze 1877 p 294 vol II citado em ESCOREL Lauro op cit p 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

170

Maquiavel entusiasta defensor dessa ideia se distancia dela quanto agrave sua realizaccedilatildeo concreta como um poder monaacuterquico central e absoluto baseado nos ideais da tradiccedilatildeo cristatilde e se opotildee contra o priacutencipe ideal renascentista ldquosiacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilatildeo religiosa cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudenterdquo19 Pelo contraacuterio o priacutencipe com o qual Maquiavel sonha eacute um teacutecnico poliacutetico realista plasmado nos moldes do passado sobretudo da antiga Repuacuteblica Romana nos seus melhores dias de gloacuteria

[] para o qual o importante era ater-se agrave veritaacute effetuale delle cose [] O priacutencipe maquiaveacutelico natildeo emerge do pensamento do seu autor aureolado pelas virtudes da eacutetica tradicional como produto de uma elaboraccedilatildeo mental utoacutepica [] Plasma-o ao contraacuterio indutivamente com base nos dados de sua experiecircncia e inspirado nos exemplos da Antiguidade Claacutessica investindo-o de uma loacutegica inexoraacutevel para a consecuccedilatildeo de seu objetivo supremo a conquista e a preservaccedilatildeo do poder poliacutetico absoluto 20

Eacute nesta inspiraccedilatildeo que residem a grandiosidade e o gecircnio de Maquiavel que o fizeram descobrir e penetrar a essecircncia da accedilatildeo poliacutetica do homem revelando as leis proacuteprias e analisando dividindo e avaliando friamente a forccedila das paixotildees humanas Foi sob esse prisma que o seu livro auferiu validade permanente

33 A Estrutura do livro21

O livro que consta de 26 capiacutetulos comeccedila com uma carta dedicatoacuteria ao magniacutefico Lorenzo filho de Piero de Meacutedici neto de Lorenzo o Magniacutefico (1449-1492) Originalmente o livro seria dedicado a outro membro da famiacutelia Meacutedici Giuliano filho de Lorenzo mas este morreu em 1516

Do primeiro ao deacutecimo capiacutetulo eacute procedida agrave discriminaccedilatildeo dos vaacuterios tipos de principados Aleacutem disso Maquiavel desenvolveu as caracteriacutesticas e qualidades dos mencionados principados Central estaacute o problema da conquista do poder em geral e especialmente no

19 ESCOREL Lauro op cit p 23 20 ESCOREL Lauro op cit p 23 21 Cf Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Grupo de Estudos de Filosofia ndash GEFIL Aula I BATISTA Flaacutevio Donizete http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 15 de agosto de 2010 BATH Sergio A praacutetica poliacutetica segundo Nicolau Maquiavel Satildeo Paulo Aacutetica 2009 CHEVALLIER J J As grandes obras poliacuteticas de Maquiavel a nossos dias Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 pg 17-48

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

171

principado novo Tudo eacute visto sob a grande perspectiva da unificaccedilatildeo da Itaacutelia que deve ser fundada nas conquistas e na virtugrave do governante

Do deacutecimo ao deacutecimo quinto capiacutetulo preocupa-se em argumentar e mostrar que a base de qualquer Estado estaacute na sua autarquia militar Trata de maneira especial no capiacutetulo 11 dos Estados eclesiaacutesticos e como chegaram ao poder que ostentam

A parte principal da obra eacute formada pelos capiacutetulos deacutecimo quinto ateacute o vigeacutesimo sexto Aqui se trata do exame do problema do governo de um povo como um priacutencipe deve conduzir-se com os seus suacuteditos e seus aliados Quanto agrave imagem do priacutencipe formulada por Maquiavel merecem destaque especial os quatro conceitos por ele considerados fundamentais virtugrave ocasiatildeo fortuna e necessidade Por todos os capiacutetulos especialmente a partir do deacutecimo nono encontramos Maquiavel insiste na necessidade da reformulaccedilatildeo da imagem tradicional do priacutencipe acentuando a obrigaccedilatildeo de ele sempre se esforccedilar para ter o povo ao seu lado porque sem o apoio do povo o priacutencipe natildeo resistiraacute agraves dificuldades que sobreviratildeo

Do capiacutetulo 23 ateacute o 25 Maquiavel constatando porque os priacutencipes italianos perderam seus Estados afirma o poder da vontade humana de domar e vencer a proacutepria fortuna pela razatildeo e pela virtude

O uacuteltimo capiacutetulo ndash o 26 - eacute uma eloquente exortaccedilatildeo agrave redenccedilatildeo e libertaccedilatildeo da Itaacutelia do domiacutenio das potecircncias estrangeiras ndash Franccedila Espanha e o Impeacuterio Alematildeo ndash e consiste num convite ao priacutencipe de ser audaz e feroz a fim de alcanccedilar ecircxito Termina com as belas palavras de Petrarca

Virtugrave contro a furore Prenderaacute lrsquoarmi e fia el combatter corto Che lrsquoantico valore Nellrsquoitalici cor non egrave ancor morto22

4 Moral e Eacutetica na poliacutetica de Maquiavel

Agrave primeira vista pode parecer fora de propoacutesito falar de Moral E Eacutetica em Maquiavel Para muitos autores e sobretudo para muitas pessoas no seu dia a dia os dois conceitos significam a mesma coisa e dizem 22 O valor tomaraacute armas contra o furor e que seja curto o combate pois a coragem antiga ainda natildeo morreu no coraccedilatildeo dos italianos PETRARCA Francesco Rime Esparse (sem maiores referecircncias) em O Priacutencipe comentado por Napoleatildeo Bonaparte MAQUIAVEL texto integral Traduccedilatildeo NASSETTI Pietro Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

172

respeito ao comportamento humano Por que e para que entatildeo fazer uma distinccedilatildeo Leonardo Boff no seu livro Ethos Mundial diz o seguinte

[] precisamos voltar ao sentido originaacuterio da eacutetica e da moralidade Todas as morais por mais diversas nascem de um transfundo comum que eacute a eacutetica Eacutetica somente existe no singular pois pertence aacute natureza humana presente em cada pessoa enquanto moral estaacute sempre no plural porque satildeo distintas formas de expressatildeo cultural e histoacuterica da eacutetica 23

Um olhar sobre o sentido original da palavra eacutetica pode esclarecer o seu rico e profundo sentido proacuteprio Na sua liacutengua de origem a grega eacutetica vem de ethos que tem duas grafias com letra e pequena ou grande e conforme o tamanho muda o sentido Ethos com letra pequena indica a morada abrigo permanente tanto dos animais como dos humanos Ela tem que ser construiacuteda pela atividade humana e por isso deve ser sempre reformada melhorada e aperfeiccediloada Assim pode-se dizer que a eacutetica tem por fim morar bem e para isto constituir objetivos fundamentais e valores e princiacutepios que norteiam a accedilatildeo humana Para os antigos entatildeo a eacutetica estaacute ligada ao bem ou aacute felicidade que devem ser perseguidos por meios que levem a esta bondade e felicidade Estes meios eram tambeacutem chamados de ethos mas com e grande e significam os costumes ou ldquoo conjunto de valores e de haacutebitos consagrados pela tradiccedilatildeo cultural de um povordquo24

Ao dizer-se que algueacutem natildeo tem eacutetica significa a ausecircncia nesta pessoa de princiacutepios norteadores para sua accedilatildeo que se desenvolve pois de acordo com as vantagens que possa conseguir e consequentemente coerecircncia e princiacutepios fazem falta na sua vida Por outro lado quando se garante que algueacutem natildeo possui moral indica-se que esta pessoa natildeo possui virtudes que a ajudem a ldquoconstruir sua moradardquo sua felicidade e age erradamente mentindo roubando explorando

Resumindo

[] moral eacute o conjunto de haacutebitos e costumes efetivamente vivenciados por um grupo humano Nas culturas dos grupos humanos estatildeo presentes haacutebitos e costumes considerados vaacutelidos porque bons bons porque justos justos porque contribuem para a realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

[] eacutetica eacute a reflexatildeo sobre a accedilatildeo humana para extrair dela o conjunto excelente de accedilotildees Eacute uma ciecircncia que tem por objeto a moral e a lei e pretende aprimorar

23 BOFF Leonardo Ethos Mundial Um consenso miacutenimo entre os humanos SI Letraviva Editorial Ltda 2000 pg 34 24 BOFF Leonardo op cit pg 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

173

as ldquoatividades realizadoras de sirdquo desenvolvidas pelos indiviacuteduos em busca do excelente25

41 A Eacutetica maquiaveliana

Com a difusatildeo do livro O Priacutencipe as ideacuteias de Nicolau Maquiavel se tornaram conhecidas mas tambeacutem quase de imediato foram atingidas por uma forte onda de severas criacuteticas A obra que pode ser considerada como a principal de Maquiavel foi qualificada de imoral e sem eacutetica Qual a razatildeo de tatildeo severo juiacutezo Ricardo Rodrigues responde a esta indagaccedilatildeo quando esclarece

[] Maquiavel simplesmente documentou verdades jaacute conhecidas pelos homens embora natildeo admitidas Tudo o que fez foi construir uma teoria poliacutetica a partir da combinaccedilatildeo de experiecircncia concreta no trato da coisa puacuteblica com a observaccedilatildeo aguda do processo poliacutetico aliada ainda ao estudo da histoacuteria26

Em verdade Maquiavel faz uma anaacutelise nua e crua da praacutetica poliacutetica do seu tempo como realmente era e natildeo como deveria ser Em primeira instacircncia estaacute o realismo poliacutetico por ele descrito como sendo a uacutenica maneira de algueacutem se tornar vitorioso no jogo pelo poder Este realismo poliacutetico que natildeo raro desprezava a moral vigente e a eacutetica tradicional feria em muitos aspectos os padrotildees escolaacutesticos da eacutepoca baseados nos estudos teoloacutegicos agostinianos e tomistas Esses estudos denotaram ideias que deveriam conduzir a accedilatildeo poliacutetica em vista da construccedilatildeo de uma sociedade baseada em princiacutepios cristatildeos conduzindo desta forma agrave construccedilatildeo da Cidade Justa ou de Deus sobre a terra27 defendendo neste sentido a consecuccedilatildeo do Bem Comum entendido em sentido cristatildeo Em outras palavras haacute um ideal a ser atingido e a eacutetica igual agrave praacutetica moral consequecircncia dela eacute julgada agrave luz deste ideaacuterio Esta posiccedilatildeo defendida embora com algumas pequenas diferenccedilas pelo pensamento da Igreja Catoacutelica de entatildeo tambeacutem se encontrava na visatildeo

25 DOS SANTOS Antonio Raimundo Eacutetica Caminhos da realizaccedilatildeo humana 4 ed Satildeo Paulo Editora Ave Maria 2004 pg 11 e 15 26 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Simposion Unicap no 2 1986 pg 44 27 Cf a grande corrente teoloacutegica que tem em Santo Agostinho o eu grande defensor e propagador especialmente na sua obra De Civitate Dei ndash (Sobre a Cidade de Deus ) que ateacute o seacuteculo XII-XIII foi a inspiraccedilatildeo maior para o ideal poliacutetico da Idade Meacutedia muitas vezes apresentada como o ideal da assim chamada Cristandade Santo Tomaacutes de Aquino natildeo negando a influecircncia agostiniana recebe grande aporte das ideias aristoteacutelicas como resta claro natildeo somente no seu pequeno tratado De Regno mas tambeacutem no extenso e inacabado comentaacuterio sobre a Poliacutetica e a Eacutetica do Nicocircmaco de Aristoacuteteles

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

174

filosoacutefica da poliacutetica baseada na teoria platocircnica com a sua cidade ideal regida pela justiccedila e aristoteacutelica em que o ideal da felicidade estaacute central o que foi intensamente estudado pelos saacutebios da eacutepoca Em outras palavras existem conceitos ideias de bem e de mal que servem como paradigma para a accedilatildeo humana uma ideia a que a accedilatildeo humana deve obedecer ou a qual se adaptar Satildeo os assim chamados valores eternos que transcendem tempo e lugar isto eacute possuem validade universal

Como consequumlecircncia da anaacutelise e descriccedilatildeo da poliacutetica de acordo com as ideacuteias de Maquiavel surge o assim chamado maquiavelismo teoria que procura ligar as ideias do Pensador de Florenccedila a procedimentos nocivos que lembram perfiacutedia astuacutecia crueldade e traiccedilatildeo E o que eacute pior para alguns estas expressotildees pejorativas continuam sobrevivendo no tempo e no espaccedilo e proliferam ainda hoje tanto na esfera poliacutetica como nas desavenccedilas do cotidiano

Eacute bem verdade que no acervo de qualidades do bom governante aceito por Maquiavel constavam a fraude e a mentira a dissimulaccedilatildeo e ateacute mesmo a crueldade 28 Isto natildeo significa todavia que Maquiavel defen-desse ou aconselhasse um estado turbulento de constantes lutas contra usurpadores gananciosos anarquicamente cruel em que os governantes poderosos mantivessem seus suacuteditos em regime de servidatildeo de tortura e perversidade

Por outro lado o Escritor Florentino nunca deixava de louvar a honestidade e a integridade em governantes29 Pelo estudo de fatos paacutes-sados entretanto e de outros da histoacuteria de entatildeo que havia presenciado e testemunhado enfatizava que o poliacutetico dependia de qualidades bem diversas Fazendo distinccedilatildeo entre honestidade e ingenuidade acreditava ele que praticar a honestidade sem levar em conta os efeitos prejudiciais para toda uma coletividade ou para a naccedilatildeo eacute de fato mera ingenuidade defeito maacuteximo de maus governantes

Discorrendo ainda sobre integridade Maquiavel considerava lou-vavel o fato de que o priacutencipe fosse um homem iacutentegro e mantivesse a palavra empenhada30 Ao mesmo tempo poreacutem alertava para o fato de que conforme a necessidade ele poderia abandonar a boa feacute desfazendo assim a palavra dada 28 Cf O Priacutencipe op cit cap XVII 29 Cf RODRIGUES RICARDO Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no 2 Recife Unicap 1986 pg 48 30 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

175

Um priacutencipe prudente natildeo deveraacute pois agir de boa feacute quando para fazecirc-lo precise agir contra seus interesses e quando os motivos que o levaram a empenhar a palavra deixarem de existir31

Em circunstacircncias adversas este poderia utilizar-se igualmente da dissimulaccedilatildeo porquanto os homens em geral satildeo tolos e sempre acreditam em quem lhes faz promessas ou lhes promete benefiacutecios Usando uma linguagem coloquial contemporacircnea ldquopara cada bobo haacute sempre um espertordquo

A argumentaccedilatildeo do Escritor Florentino sobre a crueldade reflete-se nos louvores e elogios feitos por ele ao Duque de Valentino citado como exemplo de um autecircntico e renomeado estadista

Ceacutesar Boacutergia era considerado cruel mas sua crueldade impocircs ordem agrave Romanha unificou-a reduzindo-a agrave paz e agrave fidelidade Se examinarmos bem este ponto veremos que na verdade ele foi muito mais clemente que o povo de Florenccedila que para fugir agrave reputaccedilatildeo de cruel permitiu a destruiccedilatildeo de Pistoia32

Eacute interessante esclarecer que a admiraccedilatildeo de Maquiavel por Ceacutesar Boacutergia natildeo emergiu do fato de ser este um homem perverso e cruel Em sua oacuteptica Ceacutesar Boacutergia surgiu como um governante eficiente destemido saacutebio capaz de comportar-se como priacutencipe em toda e qualquer situaccedilatildeo

Em virtude destas e de outras afirmaccedilotildees em torno do caraacuteter poliacutetico e do jogo pelo poder Maquiavel atraiu para si muitas criacuteticas atraveacutes dos tempos Seus conceitos e teorias foram analisados de vaacuterias maneiras e muito mal interpretados Como expresso anteriormente sua obra foi qualificada de imoral e sem eacutetica Impuseram ao Escritor a condiccedilatildeo de advogado da poliacutetica sem moralidade

Lauro Escorel refuta esta ideia quando diz que rdquoOs princiacutepios do poliacutetico florentino podem natildeo ser cristatildeos mas satildeo eacuteticosrdquo33

Natildeo partilhando igualmente daquela opiniatildeo que o Professor Cranston projeta o Escritor para uma dimensatildeo contraacuteria quando sugere que ldquoO argumento de Maquiavel parece-me ser o de que apenas existe uma verdadeira moralidade mas que por vezes o governante tem que a

31 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 32 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 33 ECSOREL Lauro O Pensamento Poliacutetico em Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

176

desrespeitarrdquo34 Cranston propotildee ainda que a principal razatildeo de o Florentino ser continuamente hostilizado

[] eacute a de que ele aconselha (os governantes) a fazerem consciente e deliberadamente o que muitos estatildeo fazendo de modo natural preferindo natildeo pensar no assunto [] Maquiavel nunca endossou o uso da fraude para a proteccedilatildeo de carreiras poliacuteticas aconselhando-a apenas para encobrir aqueles atos de Estado necessaacuterios que violam a moralidade35

Daiacute conclui-se que estes atos de Estado necessaacuterios correspondiam ao conceito maquiaveliano de ldquoragione di statordquo e agrave consciecircncia de que a poliacutetica eacute uma atividade autocircnoma do Estado e no Estado sem recurso ou associaccedilatildeo agrave eacutetica agrave jurisprudecircncia agrave moralidade cristatilde ou pagatilde Seria mais justo e claro dizer que haacute para Maquiavel uma mudanccedila no conceito da eacutetica Ele aceita que a accedilatildeo poliacutetica deve ser orientada por valores mas estes assumem caraacuteter totalmente diferente distanciando-se do ideal teoloacutegico filosoacutefico e sobretudo da ideaccedilatildeo da felicidade pessoal Para o Secretaacuterio Florentino o Estado eacute sem duacutevida o valor mais alto aleacutem do qual natildeo existe um limite Para ele a poliacutetica resumia-se numa coisa conquistar e manter o poder ou a autoridade no domiacutenio conquistado Portanto a religiatildeo a moral e outros valores que os humanistas pretendiam associar agrave poliacutetica nada tinham de relaccedilatildeo com aquele ponto fundamental Permitia-se a exceccedilatildeo apenas nos casos em que a religiatildeo e a moral contribuiacutessem para a conquista e a manutenccedilatildeo do poder quando entatildeo se tornam meios para a grandeza do Estado

Eacute preciso natildeo esquecer de que a razatildeo de Estado implica um cunho social Isto quer dizer que embora o Estado representasse poder pessoal prestiacutegio e forccedila para o governante focalizava e visava tambeacutem aos suacuteditos toda uma comunidade de homens para gerenciar e prover Para Maquiavel isto era um ponto de capital importacircncia visto que ele deixa transparecer nos seus escritos a opiniatildeo que considera os homens maus de nascenccedila e iacutendole Por conseguinte de nada adiantariam a boa-feacute a integridade e a honestidade do priacutencipe se estas virtudes natildeo impedissem a sua ruiacutena levando o Estado agrave fraqueza e agrave derrota que tem como consequecircncia o domiacutenio inimigo o qual provocaria natildeo soacute a inquietaccedilatildeo mas tambeacutem o sofrimento de toda a coletividade Esta inquietaccedilatildeo e o concomitante sofrimento por sua vez causariam a desconfianccedila e ateacute a 34 CRANSTON Maurice Poliacutetica e eacutetica Em KING PRESTON O Estudo da Poliacutetica Brasilia Universidade de Brasiacutelia 1980 Citado em RICARDO Rodrigues Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p 49 35 Cranston OC Em RODRIGUES op cit p 50

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

177

revolta dos cidadatildeos e enfraqueceriam o Estado Por isso o aspecto eacutetico para Maquiavel estaacute nas mais elevadas regras de grandeza de Estado manutenccedilatildeo do poder governabilidade e defesa custe o que custar do Estado ou do domiacutenio do priacutencipe Eacute na histoacuteria e tambeacutem nas suas aventuras diplomaacuteticas que Maquiavel viu estes princiacutepios sendo praticados ndash para o bem do Estado e do seu priacutencipe e suacuteditos - ou negli-genciados ndash para a sua ruiacutena e fraqueza

Ricardo Rodrigues aprecia e tenta justificar esta doutrina maquiave-liana quando destaca ldquoEacute necessaacuterio poreacutem perguntar desapaixonadamente se Maquiavel realmente merece ser considerado ldquomaquiaveacutelicordquordquo36 O autor reaviva a polecircmica em cima de Maquiavel e chega aacute conclusatildeo de que o Florentino natildeo quis propriamente sugerir como os priacutencipes deveriam se comportar para que sua poliacutetica se adequasse ao ideal eacutetico da sociedade mas apenas registrou como realmente procediam de modo que um entre os outros natildeo poderia se comportar diferentemente caso quisesse se conservar no trono e natildeo passar por ingecircnuo

Vasquez eacute outro autor que se inclina para separar a eacutetica da poliacutetica e declara

Na poliacutetica o indiviacuteduo encarna uma funccedilatildeo coletiva e a sua atuaccedilatildeo diz respeito a um interesse comum Na moral pelo contraacuterio ainda que o coletivo esteja sempre presente o elemento iacutentimo pessoal desempenha o papel importante [] interiorizando as normas gerais e assumindo responsabilidades pessoais37

Na realidade o fato mais notoacuterio eacute que ainda nos dias de hoje os estudiosos que procuram abordar ou elucidar o mesmo tema ou seja comprovar ou natildeo a identificaccedilatildeo da poliacutetica com a moral e a eacutetica sempre tentam se basear nos pressupostos constantes da filosofia poliacutetica do famoso Escritor Florentino

42 A moral em Maquiavel

Sabe-se que vaacuterios pensadores contemporacircneos de Maquiavel escre-veram tambeacutem como este manuais da linha ldquoEspelho dos Priacutencipesrdquo38 com o intuito de oferecer um norteamento comportamental para aquele que governa pautado tatildeo somente numa moral cristatilde 36 RODRIQUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na poliacutetica Op cit p 43-53 37 VASQUEZ Adolfo Sanchez Eacutetica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 pg 77 38 Eacute um gecircnero literaacuterio antigo que se espalhou sobre a Europa Medieval com base em fontes orientais nos seacuteculos XII a XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

178

A corrente filosoacutefica tradicional enfatiza a tese de que a virtugrave caracterizada por qualidades morais individuais como a justiccedila devia ser completada pelas qualidades ou virtudes cristatildes como a bondade e a feacute

Ao contraacuterio Maquiavel prefere romper com as tendecircncias medie-vais Resolve apresentar o seu ldquoEspelhordquo com caracteriacutesticas diferentes deixando de lado princiacutepios de uma moral cristatilde Rejeita imperativos categoacutericos como leis morais natildeo relativizaacuteveis por consideraacute-los belos ou atraentes como conceitos teoacutericos mas ineficazes na praacutetica da vida puacuteblica Estudiosos do universo maquiaveliano como Berlin39 e Skinner40 compartilham da ideacuteia de que essa preocupaccedilatildeo em romper e ateacute mesmo denunciar a ingenuidade das teorias poliacuteticas reflete o traccedilo de maior originalidade de Maquiavel

O Florentino rejeita a filosofia poliacutetica tradicional acreditando que os comentadores de sua eacutepoca natildeo haviam conseguido perceber a incompati-bilidade de uma ldquomoral cristatilderdquo que atenda agrave pessoa e uma ldquomoral poliacute-ticardquo que atenda ao coletivo no caso o Estado

Essa incompatibilidade reside na natureza humana representada por homens maus levianos covardes e gananciosos Na tentativa de comprovar a sua tese Maquiavel resume seu pensamento numa frase lapidar

[] Seria muito louvaacutevel que um priacutencipe possuiacutesse todas as qualidades consideradas boas Natildeo sendo isto poreacutem inteiramente possiacutevel devido agraves proacuteprias condiccedilotildees humanas eacute necessaacuterio a um priacutencipe aprender a natildeo ser bom41

Acredita Maquiavel que a histoacuteria eacute ciacuteclica e que os costumes variam de regiatildeo para regiatildeo de eacutepoca para eacutepoca Assim sendo como eacute impos-siacutevel frear as paixotildees e os instintos humanos os conflitos e as desordens aconteceriam indefinidamente Continuamente estariam presentes os mesmos viacutecios ou as mesmas virtudes

Para o Pensador Florentino entretanto cujo sonho era ver a Itaacutelia renascida como um Estado forte como outrora o Impeacuterio Romano era fundamental acabar com a desordem causadora de uma situaccedilatildeo poliacutetica tatildeo caoacutetica como a da Peniacutensula Italiana do seu tempo Realmente 39 BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees internacionais Textos de Aula Brasilia UnB sd 40 SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988 41 MAQUIAVEL O Priacutencipe Cap XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

179

parafraseando Rodrigues42 eacute possiacutevel dizer que a visatildeo histoacuterica poliacutetica dominante nesta parte da Europa expressava um exemplo significativo dessa malignidade humana a Peniacutensula dividida a ausecircncia de um poder central lutas fratricidas conflitos violentos entre pequenas naccedilotildees ou principados italianos invasotildees promovidas por impeacuterios ou grandes reinos vizinhos o poder temporal da Igreja tantas vezes se transformando em outro obstaacuteculo Afinal um quadro desolador de fraqueza total e de insignificacircncia poliacutetica

Preocupado angustiado mesmo com esse alarmante contexto histoacute-rico em que a Itaacutelia (inclusive Florenccedila) se encontrava envolvida Maquiavel fortifica cada vez mais a sua visatildeo sonhadora de uma paacutetria forte unida eficiente e eficaz Nesta perspectiva munido por um espiacuterito empiacuterico tambeacutem realista o Pensador Florentino assume posiccedilatildeo ideoloacutegica isto eacute pragmaacutetica poliacutetica e para muitos revolucionaacuteria

Vaacuterios inteacuterpretes concordam com a noccedilatildeo de que Maquiavel levado naturalmente por seu empirismo toma aquela dura e cruel conjun-tura poliacutetica como um desafio43 Em decorrecircncia passa a conceber um priacutencipe heroacutei um priacutencipe valoroso determinado capaz de ir ateacute as uacuteltimas consequumlecircncias a fim de alcanccedilar seus objetivos que era ndash nada mais nada menos ndash a regeneraccedilatildeo da Repuacuteblica Conforme o pensamento de Liacutedia Maria ldquoo projeto poliacutetico do secretaacuterio florentino apontava essencialmente para a construccedilatildeo de um Estado forte unificado e voltado para o bem comumrdquo 44

Levando em conta o contexto histoacuterico sobre o qual se discorreu anteriormente pocircr em praacutetica semelhante projeto poliacutetico natildeo era tarefa simples Daiacute por que o priacutencipe idealizado por Maquiavel deveria ser virtuoso ou pelo menos parecer ser e aleacutem disso deveria possuir muita astuacutecia esperteza e sabedoria para pautar as suas accedilotildees com vistas agraves circunstacircncias Neste sentido a visatildeo do Florentino eacute incisiva haacute viacutecios que satildeo virtudes Natildeo tema pois o priacutencipe que deseje se manter no poder incorrer no oproacutebrio dos defeitos mencionados se tal for indispen-saacutevel para salvar o Estado Aconselhava ainda ao priacutencipe saacutebio que devia se aproveitar sempre das oportunidades (ocasione) ldquoaprender os meios de natildeo ser bom e a fazer uso ou natildeo deles de acordo com as

42 Cf RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p49-52 43 Cf por exemplo Paul Larivaille e Newton Bigotto 44 RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel ndash Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002 pg 31

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

180

necessidadesrdquo45 De conformidade com a teoria poliacutetica maquiaveliana o priacutencipe poderia ateacute praticar o mal desde que seu ato fosse justificaacutevel ou melhor que resultasse num bem maior para todos a estabilidade do Estado

Interpretando a filosofia poliacutetica de Maquiavel dentro dessa oacuteptica Rodrigues conclui

Eacute assim que a poliacutetica maquiaveliana se faz autocircnoma A finalidade eacute excelsa e imperativa porque necessaacuteria inevitaacutevel originaacuteria e fundamental eacute uma legitimaccedilatildeo tatildeo forte que pode atropelar qualquer consideraccedilatildeo eacutetica O absolutismo eacute justificado 46

Assumindo posicionamento tatildeo radical era loacutegico pois que a concepccedilatildeo maquiveliana entrasse fundamentalmente em choque com a consciecircncia moral da tradiccedilatildeo poliacutetica cristatilde De fato dos pensadores cristatildeos dos liberais e dos teoacutericos do Estado beneficente emerge uma contundente onda de criacuteticas contra o Pensador Florentino Eacute tachado de ciacutenico imoral inescrupuloso democircnio espiacuterito satacircnico autor maldito e outros adjetivos do mesmo gecircnero

Como consequecircncia deste panorama Maquiavel passou a ser deveras incompreendido incompreensatildeo que perdura ateacute os dias atuais Um comen-tador recente jaacute o compreendeu ldquocomo uma das figuras mais emblemaacuteticas sendo odiado por muitos amado por outros e incompreendido pela grande maioriardquo47

Consideraacutevel nuacutemero de leitores desinformados alguns deles em total ignoracircncia a respeito das obras de Maquiavel ainda hoje evocam a figura do Secretaacuterio Florentino ou associam o seu nome a dois termos que assumiram sentido pejorativo maquiaveacutelico e maquiavelismo Nas duas acepccedilotildees datildeo ideia de indiviacuteduos traiccediloeiros auspiciosos caloteiros

Quem de noacutes por exemplo natildeo presenciou algueacutem se utilizando do termo maquiaveacutelico para criticar ou denunciar uma pessoa desleal corrupta que para conseguir vantagens pessoais sai atropelando tudo e todos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer aspecto eacutetico ou moral

45 MAQUIAVEL O priacutencipe cap XV 46 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a eacutetica na poliacutetica Op cit pg 71 47 AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e Razatildeo de Estado Faculdade Autocircnoma de Direito SDatildeo Paulo dezembro de 2008

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

181

Portanto neste trabalho evitou-se de propoacutesito o adjetivo maquia-veacutelico irremediavelmente distorcido por interpretaccedilatildeo errocircnea usando em seu lugar a expressatildeo maquiaveliana

Ainda em decorrecircncia desta atitude objetiva e desapaixonada assumida por Maquiavel fugindo dos padrotildees escolaacutesticos do seu tempo ateacute o seacuteculo XVII eram poucos os doutrinadores que aceitavam aberta-mente os seus pressupostos E no seacuteculo XIX desenterraram a ceacutelebre frase que lhe eacute igualmente atribuiacuteda os fins justificam os meios a qual natildeo consta dos seus escritos sentenccedila cujo uso se faz geralmente isolada do contexto unidade de ideia que jamais algueacutem comprovou tecirc-lo ouvido pronunciar E se realmente o Poliacutetico Florentino a abordava os fins eram tatildeo admiraacuteveis que natildeo poderia ningueacutem deixar de o louvar

Na Modernidade poreacutem as obras do Grande Pensador passaram a ser efetivamente analisadas discutidas e apreciadas Atingiu-se a essecircncia de sua filosofia poliacutetica e Maquiavel com a imagem resgatada aparece cintilante no universo de autores bem-sucedidos

Atualmente comentadores de renome de todos os cantos se arvoraram em defensores do Autor Florentino tecendo-lhes referecircncias honrosas e louvores Entre os que concordam com opiniotildees conclusotildees e interpretaccedilotildees de Maquiavel aponta-se o nome de Mounin

Pode-se afirmar que o secretaacuterio teve honroso papel na poliacutetica da eacutepoca com os meios da eacutepoca agrave medida da eacutepoca - no seu lugar Florenccedila e com as cartas que tinha em matildeo as cartas florentinas que natildeo constituiacuteam um jogo famoso Na histoacuteria do seu tempo Maquiavel eacute vencido natildeo um falhado48

E na tentativa de defender Maquiavel contra seus adversaacuterios Mounin acrescenta

Maquiavel foi realmente um poliacutetico que se alimentou de fatos apaixonado por fatos incansaacutevel na anaacutelise dos fatos [] Pode mesmo afirmar-se um dos mais certos meacuteritos de Maquiavel e um dos menos notados dos menos ceacutelebres tambeacutem eacute a paciecircncia incansaacutevel com que pinta com minuacutecia o espetaacuteculo infinito da complexidade dos fatos Mesmo se quase nunca estamos de acordo com ele acerca das causas e conexotildees a leitura de Maquiavel eacute um antiacutedoto salutar sem disso fazer um dogma unicamente devido ao cuidado que potildee na descriccedilatildeo ensina a cada linha que em poliacutetica nada eacute tatildeo simples como parece49

48 MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 p 15 49 MOUNIN Georges Maquiavel op cit p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

182

Nos tempos modernos outro doutrinador que merece igualmente ter seu nome incluiacutedo na lista dos defensores de Maquiavel eacute Lauro Escorel quando expressa

Maquiavel natildeo traccedilou portanto regras poliacuteticas que estivessem em contradiccedilatildeo com o seu tempo e que passassem desde entatildeo a ser germes de corrupccedilatildeo ou incentivos ao absolutismo como seus adversaacuterios quiseram fazer crer limitou-se a registrar dados de fato normas empiacutericas de conduta que explicaram no passado e no presente os ecircxitos e fracassos poliacuteticos Ao mesmo tempo interpretou ele as tendecircncias poliacuteticas da eacutepoca que era o absolutismo real e o secularismo sob cujos auspiacutecios nascia o Estado Moderno [] Se alguma responsabilidade moral lhe pode ser atribuiacuteda seraacute a de natildeo se ter preocupado em submeter a praacutetica poliacutetica ao crivo de um coacutedigo moral meta-histoacuterico mas isto resulta do meacutetodo indutivo-empiacuterico que o espiacuterito da Renascenccedila lhe inspirou50

Encontra-se nos escritos de Bertrand Russel talvez uma das mais ardorosas e eloquentes defesas de Maquiavel contra as criacuteticas dos anti-maquiavelistas Suas palavras comprovam esta afirmaccedilatildeo

A Renascenccedila embora natildeo haja produzido nenhum filoacutesofo teoacuterico importante produziu um homem de suprema eminecircncia na filosofia poliacutetica Maquiavel Eacute costume sentir-se a gente chocada por ele e natildeo haacute duacutevida de que agraves vezes ele realmente eacute chocante Mas muitos outros homens tambeacutem o seriam se fossem igualmente livres de hipocrisia Sua filosofia poliacutetica eacute cientiacutefica e empiacuterica baseada em sua proacutepria experiecircncia dos assuntos preocupada em declarar os meios de se chegar a determinados fins sem se preocupar de se saber se tais meios satildeo considerados bons ou maus Quando em certas ocasiotildees se permite mencionar os fins que deseja estes satildeo de tal natureza que natildeo podemos senatildeo aplaudi-los Grande parte da difamaccedilatildeo convencional ligada ao seu nome deve-se agrave indignaccedilatildeo dos hipoacutecritas que odeiam o franco reconhecimento das maacutes accedilotildees Resta eacute certo uma boa parte que realmente exige criacutetica mas nisto ele eacute uma expressatildeo de sua eacutepoca Tal honestidade intelectual a respeito da desonestidade poliacutetica dificilmente teria sido possiacutevel em qualquer outra eacutepoca e em qualquer outro paiacutes exceto talvez na Greacutecia entre os homens que deviam sua educaccedilatildeo teoacuterica aos sofistas e seu adestramento praacutetico agraves guerra de minuacutesculos Estados que tanto na Greacutecia claacutessica como na Itaacutelia da Renascenccedila eram o acompanhamento poliacutetico do gecircnio individual51

50 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 20 51 RUSSEL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969 p20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

183

A tendecircncia moderna diz que natildeo se deve simplesmente ldquodenegrir a imagem de Maquiavel e nem tatildeo pouco louvaacute-lo indiscriminadamenterdquo52 Concorda-se em gecircnero e nuacutemero com esta afirmaccedilatildeo predominante nos dias atuais Natildeo haacute duacutevida de que o Autor Florentino cometeu erros mas acertou muito mais Jamais se deve esquecer de que ele foi um produto do meio O peixe natildeo vive fora drsquoaacutegua E para Maquiavel era quase impos-siacutevel emergir da turbulecircncia histoacuterica em que viveu O Poliacutetico de Florenccedila foi praticamente nocauteado Seu espiacuterito confrontou-se com um dilema de escolha viver ou morrer E quem preferia morrer O que faz um homem todo dia senatildeo lutar pela sobrevivecircncia O poder poliacutetico era uma loteria Para ganhar qualquer priacutencipe teria de jogar Na luta pelo poder Maquiavel justificava o uso das armas ou da crueldade Por outro lado sempre dava liccedilotildees ao povo para se livrar dos tiranos53

5 Consideraccedilotildees finais

Maquiavel ao expor o pensamento ou ideias sobre a poliacutetica o fez de modo genial sem se deixar aprisionar por nenhuma corrente literaacuteria ou doutrinaacuteria Criou estilo proacuteprio pessoal Como consequumlecircncia seus escritos foram analisados de maneiras diversas inclusive mal interpretados Nos nossos dias ainda haacute algueacutem que natildeo consegue interpretaacute-lo com clareza coerecircncia e plena nitidez

Para uns Maquiavel parece ser o protoacutetipo do poliacutetico sem escruacute-pulos sem eacutetica que age de acordo com as circunstacircncias que se lhe apresentam Destarte eacute considerado um escritor e pensador nocivo cujas ideias devem ser banidas da praacutetica poliacutetica e substituiacutedas por uma ldquoverdadeirardquo atitude eacutetica

Para uns Maquiavel eacute considerado um elitista ao contraacuterio de outros que o tecircm em conta como um democrata autecircntico que natildeo via outro fator capaz de sustentar a estabilidade de todo e qualquer regime senatildeo a forccedila e o apoio popular E ainda hoje este axioma converge na poliacutetica moderna onde nenhuma autoridade se conserva no jogo do poder quando natildeo goza de boa reputaccedilatildeo e grande simpatia junto ao povo

52 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 21 53 Biografia Niccoloacute Machiavelli ndash 1469-1527 Disponiacutevel em wwwplmitorjnet Acessado em 15 de dezembro de 2010

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

184

Ainda haacute pessoas que o apresentam como defensor da forccedila e do absolutismo enquanto outras o exaltam na qualidade de conselheiro dos governantes republicano e amigo das leis

Natildeo obstante todas estas controveacutersias e talvez exatamente por causa delas a filosofia empiacuterica e cientiacutefica de Maquiavel se tornou um marco inestimaacutevel na trajetoacuteria da ciecircncia poliacutetica e universal

Como explicar que Maquiavel poreacutem eacute um verdadeiro ponto de referecircncia no desenvolvimento da ciecircncia poliacutetica O fato eacute que em decorrecircncia dos ensinamentos dele a arte da poliacutetica natildeo estaacute mais ligada agrave formulaccedilatildeo de ideais abstratos e por muitas vezes utoacutepicos de um bem comum formulado com suporte num ideal cristatildeo mas na observaccedilatildeo da praacutetica da accedilatildeo poliacutetica e na formulaccedilatildeo clara dos objetivos que se intente alcanccedilar Tambeacutem estaacute se vendo que a eacutetica na poliacutetica natildeo deve ser concebida e avaliada nos mesmos termos que a eacutetica individual com suas normas do bem e do mal A filosofia contemporacircnea fundamenta-se na efetiva perseguiccedilatildeo de eficaacutecia vigor patrioacutetico anaacutelise aguda das circunstacircncias na procura do fortalecimento e conservaccedilatildeo da paacutetria

Natildeo deve ser esquecido o fato de que nos primeiros tempos Maquiavel foi incompreendido por ser aquele expectador objetivo do processo poliacutetico que se manifesta nos seus escritos Na verdade a arte poliacutetica maquiveliana sempre procurou assentar-se na verdade efetiva das coisas ignorando a busca de como as coisas deveriam ser Com o realismo que lhe eacute peculiar o autor florentino pretendia apenas ensinar ao priacutencipe a fugir do imaginaacuterio recusando imagens idealizadas pela natureza humana mas irreais e que nunca existiram Para evitar a ruiacutena e tornar-se vitorioso o detentor do poder deveria se fixar no real e considerar os homens como eles realmente satildeo

Desempenhando o papel de mestre dos priacutencipes legou agrave contempo-raneidade um dos seus mais relevantes ensinamentos O caminho para o governante se tornar eficaz e tambeacutem responsaacutevel eacute basear seus empreen-dimentos em informaccedilatildeo correta previsatildeo de futuros imprevistos diagnoacutestico oportuno caacutelculo exato dos resultados previsiacuteveis tomada de decisatildeo na hora certa e muita sabedoria

Pretendendo dar conselhos aos priacutencipes prestou um excelente serviccedilo agrave humanidade Aconselhou a prudecircncia para todas as geraccedilotildees Sendo cauteloso o homem procura logo a cura de seus males em vez de tomar providecircncias tardias muitas vezes sem chances de remediaacute-los

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

185

Ensinou a todos a ver aleacutem das aparecircncias e descobrir o essencial aquilo que fica escondido sob os bastidores do teatro da vida

Evitar sempre a neutralidade e a dubiedade foi outra importante liccedilatildeo A pessoa que natildeo assume corajosamente sua verdadeira posiccedilatildeo natildeo inspira credibilidade e jamais conseguiraacute a confianccedila a lealdade e a afeiccedilatildeo de outrem

Conclamou Maquiavel as geraccedilotildees a natildeo se deixarem abater diante das crises ou dos momentos de infortuacutenio Ao contraacuterio eacute preciso lutar sempre pelas suas convicccedilotildees e acreditar firmemente que vencer sem luta eacute triunfar sem gloacuteria

Apoacutes a divulgaccedilatildeo de sua obra mais importante O Priacutencipe Maquiavel teve suas reflexotildees poliacuteticas muito mal interpretadas confor-me jaacute expresso E esta incompreensatildeo perdura por seacuteculos ateacute os dias atuais Basta que se procure num dicionaacuterio o significado do vocaacutebulo maquiaveacutelico e logo se encontra como sinocircnimo deste termo rdquoindiviacuteduo que age com astuacutecia perfiacutedia ou malvadezardquo Interpretaccedilotildees dessa natureza nada tecircm de verdadeiro Sempre satildeo resultantes de leigos desinformados ou mesmo acadecircmicos que natildeo efetuam uma anaacutelise mais atenta e cuidadosa sobre as posiccedilotildees poliacuteticas de Maquiavel E destarte natildeo atingem a profundidade do complexo ideaacuterio maquiveliano Nesta perspectiva acredita-se que a maior ofensa que se possa cometer contra o Notaacutevel Escritor Florentino eacute essa heranccedila maldita em torno de seu nome

O Priacutencipe eacute na atualidade um dos livros mais polecircmicos e mais lidos do mundo Sem qualquer duacutevida um verdadeiro best-seller Conteacutem subsiacutedios para todo e qualquer leitor que queira se aprofundar no conhecimento das regras e artiacutefices da arte de governar Considerado como um verdadeiro breviaacuterio sobre poliacutetica tornou-se livro de cabeceira para vaacuterios governantes Determinar o fim da influecircncia doutrinaacuteria medieval sobre a investigaccedilatildeo poliacutetica contemporacircnea foi sua importacircncia funda-mental

Apesar do seu intenso vigor patrioacutetico o Diplomata Florentino morreu sem presenciar a realizaccedilatildeo do seu sonho maior ver sua paacutetria - a Itaacutelia renascentista ndash cintilando no panorama das naccedilotildees fortes unidas estaacuteveis e desenvolvidas E poreacutem por meio das paacuteginas de O Priacutencipe transmitiu um admiraacutevel cabedal de conhecimentos sobre a loacutegica que rege a conquista e a manutenccedilatildeo do poder

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

186

Por tudo o que se abordou neste trabalho acredita-se firmemente que com justa razatildeo Maquiavel merece o cognome de ldquopai da ciecircncia poliacutetica modernardquo

Referecircncias Bibliograacuteficas

AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e razatildeo de Estado Satildeo Paulo sEd dezembro de 2008

BATISTA Flaacutevio Donizete Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Disponiacutevel em http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 25 de ou-tubro de 2010

BELLOZO Edson Maquiavel e as origens do pensamento poliacutetico moderno Disponiacutevel em wwwminiwebcombrcienciasartigosmaquiavel Aces-so em 15-09-2010

BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Textos de Aula Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Internacionais Brasiacutelia UnB sd

BIRARDI A e Castelani G R Desmistificando Maquiavel Ensaio acerca de sua histoacuteria obras e conceitos Disponiacutevel em httpwwwklepsidra netklepsidra4maquiavelhtn Acessado em 18092010

BIGNOTTO Newton Maquiavel Republicano Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1991

BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

CAILLEacute Alain LAZZERI Christian SENELLART Michel (organizado-res) Histoacuteria argumentada da Filosofia Moral e Poliacutetica Satildeo Leopoldo Editora UNISINOS 2003

BARROS Vinicius Soares de Campos 10 liccedilotildees sobre Maquiavel Petroacute-polis Editora Vozes 2010

FRANCO Afonso Arinos de Mello O Pensamento poliacutetico na Renas-cenccedila Cadernos da UnB Humanidades Brasiacutelia UnB 1980 p 19-27

DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores Ltda 1984

ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao pensamento poliacutetico de Maquiavel Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1979

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

187

______ O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 18-52

GREGORIO Fernando Ceacutesar Aplicando Maquiavel no dia a dia Satildeo Paulo Madras Editora Ltda 2008

GRUPPI Luciano Tudo comeccedilou com Maquiavel Porto Alegre L amp PM Editores 1988

LARIVAILLE Paul A Itaacutelia no tempo de Maquiavel (Florenccedila e Roma) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

MAQUIAVEL O Priacutencipe Comentado por Napoleatildeo Bonaparte Traduccedilatildeo Pietro Nassetti Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

MAQUIAVEL Nicolau Comentaacuterios sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1992

MOREIRA Marcilio Marques O Pensamento Poliacutetico de Maquiavel Textos de aula Brasiacutelia Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Interna-cionais sd

MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984

REALE Giovanni e ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Do Huma-nismo a Descartes Satildeo Paulo Paulus 2004

RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002

RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no2 Recife Unicap 1986 p 43-53

RODRIGUES Ruy Martinho Priacutencipe Lobo e Homem Comum (Anaacutelise das Ideacuteias de Maquiavel Hobbes e Locke) Fortaleza UFC 1997

RUSSELL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969

SANTOS Vivian Matias dos Niccolo Machiavelli moralista ou intelec-tual orgacircnico Em Mediaccedilotildees v12 n2 p 175-187 juldez 2007

SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988

STRATHERN Paul Maquiavel (em 90 minutos) Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

188

WEBER Hingo O priacutencipe amp Maquiavel sem ideologias Petroacutepolis Editora Vozes 2007

SADEK Maria Nicolau Maquiavel o cidadatildeo sem Fortuna e o intelectual de virtugrave Em WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2003

WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Licenciada em Filosofia e Histoacuteria pela Faculdade de Filosofia do Cearaacute e

Especialista em Gestatildeo Puacuteblica pela Universidade Vale do Acarauacute

Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos Doutor em Teologia pela Pontiacutefica Universidade Gregoriana

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

189

SOBRE A RELACcedilAtildeO DINAcircMICA DA REALIDADE SUPRA-SENSIacuteVEL SEGUNDO PROCLO

SUR LA RELATION DYNAMIQUE DE LA REacuteALITEacute

SUPRASENSIBLE SELON PROCLUS

Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha

Resumo

O presente artigo tem por objetivo demonstrar porque as relaccedilotildees dinacircmicas satildeo imprescindiacuteveis na filosofia procleana Para tanto parte-se da problemaacutetica da inexis-tecircncia de movimento na realidade supra-sensiacutevel mostrando que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento de deslocamento Defende-se pois que natildeo se trata em Proclo (412 ndash 485 dC) de uma sucessatildeo de eventos e nem de uma mudanccedila na substacircncia Desta forma apoacutes a anaacutelise do movimento de processatildeo parte-se para a consideraccedilatildeo do papel das triacuteades da realidade incorpoacuterea para soacute entatildeo verificar a importacircncia das relaccedilotildees dinacircmicas na multiplicaccedilatildeo e diversidade dos seres Apoacutes ser estudado o papel das triacuteades seraacute possiacutevel perceber que natildeo eacute o movimento o responsaacutevel pela diversidade mas a relaccedilatildeo dinacircmica que a possibilita Assim este trabalho se fundamenta nos Elementos Teoloacutegicos de Proclo

Palavras-chave Proclo Triades Relaccedilatildeo Dinacircmica

Resumeacute Lrsquoobjectif de cette recherche est montrer que les relations dynamiques sont indispensables dans la philosophie proclienne Alors il part de la question de lrsquoabsence du mouvement dans les reacutealiteacutes suprasensibles montrant que le mouvement de oprocession nrsquoest ni une sucession drsquoeacuteveacutenements ni un changement dans la substance Apregraves analyser le mouvement de procession il fait lrsquoexamen de la function des triades dans la reacutealiteacute incorporelle et veacuterifie lrsquoimportance des relations dynamiques dans la multiplication et dans la diversiteacute des ecirctres Apregraves lrsquoeacutetude de la function des triades il sera possible comprendre que nrsquoest pas le mouvement le responsable pour la diversiteacute mais la relation dynamique qui la rend possible Cet eacutetude est fondamenteacutee dans lrsquooeuvre Eacuteleacutements de Theacuteologie de Proclus (412-485 a C)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

190

Mots-cleacutes Proclus Triades Relation Dynamique

Introduccedilatildeo

Herdeiro da filosofia pagatilde Proclo (412-485 dC) eacute considerado o uacuteltimo expoente de destaque da filosofia antiga a atuar na escola de Atenas1 Como neoplatocircnico as teses do Bizantino satildeo marcadas pela tentativa de conciliaccedilatildeo das doutrinas platocircnicas aristoteacutelicas e pitagoacutericas Por estar inserido no contexto das escolas da Antiguidade Tardia os escritos do filoacutesofo satildeo caracterizados por sua sistematicidade Neste sentido o pensador ao expor a passagem da unidade agrave multiplicidade natildeo admite passagens abruptas e portanto natildeo concebe que do Uno surja imediatamente a multiplicidade em sua complexidade isto eacute ele natildeo concebe uma passagem imediata do Uno ao Noucircs

Entretanto ainda que a passagem do Uno ao muacuteltiplo seja algo fundamental na filosofia procleana ela encerra um problema Acontece que Proclo na realidade supra-sensiacutevel natildeo admite movimento na substacircncia Diante disto partindo da ideia platocircnica de que ldquomudanccedila eacute movimentordquo2 a diferenccedila entre os seres da realidade imaterial natildeo pode ser explicada Uma vez que sem movimento natildeo haacute produccedilatildeo Assim para solucionar tal problemaacutetica parte-se da hipoacutetese de que a diferenccedila na realidade imaterial natildeo eacute o resultado de um movimento de deslocamento ou da proacutepria substacircncia dos seres mas da relaccedilatildeo entre os princiacutepios que os constituem Para verificar tal hipoacutetese eacute preciso iniciar a anaacutelise com o

1 Fechada em 529 por Justiniano de acordo com o decreto que afirma ldquoNingueacutem que tenha sido contagiado por tais heresias poderaacute desempenhar grau no exeacutercito ou exercer ofiacutecios puacuteblicos nem na condiccedilatildeo de professor que se ocupe de alguma disciplina () Proibimos que seja ensinada qualquer doutrina da parte daqueles que satildeo afetados pela insacircnia dos iacutempios pagatildeosrdquo (REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008 p 206-208)Tal decreto que afetou profundamente as escolas de vertente pagatilde fez com que pensadores da Academia como Simpliacutecio (490 ndash 560 dC) e Damascius (458 ndash 583 dC) fugissem para Peacutersia A fim de dar continuidade aos estudos permaneceram por volta de 531532 na corte de Khussraw I pois o rei da Peacutersia se mostrava simpatizante do pensamento grego Somente em 533 por ocasiatildeo do ldquotratado de paz eternardquo assinado entre os persas e os bizantinos retornaram ao Ocidente Sobre a fuga dos pensadores pagatildeos para a Peacutersia ver SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012 paacuteg 62-74 2 Parmecircnides 162c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

191

movimento de processatildeo pois eacute por ele que primeiramente Proclo explica a saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade

1 O movimento de processatildeo

De acordo com a filosofia procleana a multiplicidade soacute pode ser pensada se a unidade for pressuposta Assim toda multiplicidade participa de tal forma da unidade que a sua natildeo participaccedilatildeo implicaria em uma multiplicaccedilatildeo infinita o que seria um engano Pois se a multiplicidade natildeo participasse da unidade ou a proacutepria multiplicidade seria una ou natildeo-una e no caso de ser natildeo-una ou seria muitas ou nada Admitir que ela eacute nada eacute cair num contrassenso pois como algo (um existente) poderia ser nada Ou ainda como pode haver geraccedilatildeo se o ser natildeo pode advir do nada Por outro lado a tese de que a multiplicidade existe precisa de uma anaacutelise cuidadosa uma vez que afirmar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla pode levar a aporias jaacute que sua gecircnese natildeo seria explicada fazendo com que se caia numa regressatildeo infinita3

A regressatildeo aconteceria porque ao sustentar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla e natildeo una se admite que cada parte que a compotildee tambeacutem eacute muacuteltipla de modo que nunca se chega a um princiacutepio Logo haacute uma necessidade de contornar a ideia da regressatildeo ad infinitum Para tanto o princiacutepio como unidade eacute posto como indispensaacutevel mediante a ideia de que se fossem dois ou eles seriam iguais ou diferentes Sendo iguais se trataria de apenas uma substacircncia ou seja seriam um sendo diferentes um teria de ser o primeiro derivando entatildeo um do outro Se os dois estivessem no mesmo patamar nenhum seria o primeiro o que significaria a existecircncia de algo acima deles que os deu origem Entatildeo o que pode se perceber eacute que natildeo importa o caminho seguido a razatildeo sempre leva a um primeiro que eacute fundamentalmente um4 Assim este Um no neoplatonismo eacute posto como unidade absolutamente simples da qual toda multiplicidade participa

Proclo entatildeo faz surgir da unidade toda multiplicidade Esta multiplicaccedilatildeo da unidade originaacuteria se daacute por meio do movimento de processatildeo que eacute composto por trecircs momentos muito distintos mas que

3 PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995 Proposiccedilatildeo 1 4 Cf op cit Proposiccedilatildeo 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

192

estatildeo estreitamente interligados Satildeo eles Processatildeo (πρooacuteδος) Perma-necircncia (μονή) e Retorno (ἐπιστροφή) Os trecircs momentos se distinguem pelo fato de que no primeiro (πρooacuteδος) haacute uma separaccedilatildeo entre a causa e seu efeito no segundo (μονή) tem-se que mesmo que haja a processatildeo eacute preciso que o produto permaneccedila em sua causa e no terceiro (ἐπιστροφή) o efeito retorne agrave causa pelo desejo de nela participar Entretanto a ligaccedilatildeo entre estes eventos natildeo acontecem em uma ordem linear mas se datildeo simultaneamente5 Posto que se soacute procedesse natildeo haveria qualquer comunicaccedilatildeo entre o que produz e o que eacute produzido se soacute permanecesse natildeo haveria produccedilatildeo e como pode haver retorno sem que haja separaccedilatildeo6 Portanto por exigir tanto o sair como o permanecer na causa o movimento de processatildeo acontece de modo circular

A processatildeo guarda entatildeo algumas leis inviolaacuteveis que garantem que todas as etapas aconteccedilam A primeira lei atesta que toda causa produtiva produz por super abundacircncia de potecircncia Neste sentido Proclo sustenta que ldquo[] tout ce qui produit demeure tel qursquoil est et parce qursquoil demeure tel son deacuteriveacute procegravede Crsquoest donc par la pleacutenitude et la perfection dont il jouit qursquoil fait subsister ses deacuteriveacutes sans se mouvoir ni srsquoamoindrirrdquo7 A segunda que estaacute em concordacircncia com a primeira defende que devido agrave super abundacircncia de potecircncia o produtor natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo ao engendrar seus efeitos8 A terceira legitimando todo o momento da processatildeo defende a tese de que toda produccedilatildeo soacute se efetiva por meio da semelhanccedila9 entre produto e produtor10

A menccedilatildeo agraves leis de processatildeo prepararam o terreno para o esclarecimento da multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases por meio da unidade Isto

5 Para Caram a simultaneidade dos momentos da processatildeo se daacute porque para os neoplatocircnicos a categoria da causalidade natildeo envolve uma sequecircncia temporal ou mesmo a noccedilatildeo moderna de eventos sucessivos que pressuporia um lsquoantes e depoisrsquo jaacute que a relaccedilatildeo natildeo eacute entre eventos mas substacircncias CfCARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesrevistasthemata 49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015 p108 6 PROCLUS Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 30 7 Op cit Proposiccedilatildeo 27 8 Segundo Proclo ldquoToute cause qui produit autre qursquoelle-mecircme produit ses deacuteriveacutes et ce qui les suit en demeurant en elle-mecircmerdquo Op cit Proposiccedilatildeo 26 9 Cf Caram A semelhanccedila em Proclo eacute a capacidade de manter a caracteriacutestica do ser originaacuterio poreacutem em um grau menor CARAM op cit 2014 p 108 10 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 28-29

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

193

porque de acordo com tais leis o produtor eacute sempre superior a tudo o que vem depois dele tendo em vista que natildeo sofre qualquer diminuiccedilatildeo assegurando assim a continuidade do movimento e permite que aquilo que eacute produzido seja semelhante11 ao produtor A semelhanccedila se daacute desta forma porque o ser do produzido adveacutem do proacuteprio produtor ao dar ao produzido da sua proacutepria substacircncia Neste sentido o Diadoco sustenta que ldquoTout dispensateur qui agit par son ecirctre (τὸτῷεἰναιχορηγοῦν) est lui-mecircme de faccedilon primordiale ce qursquoil communique aux beacuteneacuteficiaires de ses dispensationsrdquo12 Partindo de tal proposiccedilatildeo o sucessor do pensamento platocircnico demonstra no que consiste a semelhanccedila entre causa e efeito Ainda eacute preciso contudo apontar as implicaccedilotildees da semelhanccedila no movimento de processatildeo

Quando se fala em semelhanccedila a primeira coisa a ser vista eacute que na processatildeo o que se revela no efeito eacute a proacutepria manifestaccedilatildeo da causa uma vez que como mencionado o produto possui o mesmo ser do produtor dado que ele eacute a continuidade ontoloacutegica da sua causa A semelhanccedila leva o produto a desejar retornar ao produtor pois soacute na causa que eacute superior pode encontrar perfeiccedilatildeo O desejo de retornar soacute existe porque haacute uma comunicaccedilatildeo ininterrupta entre eles Tal comunicaccedilatildeo eacute tambeacutem conexatildeo que na processatildeo estrutura o cosmo permitindo que a causa esteja sempre em contato com seus efeitos Deste modo o movimento acontece de modo circular no qual o efeito sai da causa ao mesmo tempo em que permanece nela e a ela retorna em um ciclo interrupto onde o princiacutepio e o fim satildeo o mesmo Sobre isto Proclo assevera

Tout ecirctre qui procegravede drsquoun principe et se convertit vers lui a une activiteacute cyclique Si cet ecirctre se convertitvers ce dont il procegravede il fait coiumlncider sa fin avec son principe et son mouvement est unique et continu qursquoil srsquoeacutecarte du repos originel ou qursquoil srsquoy rapporte Crsquoest pourquoi tous les ecirctres accomplissent un processus cyclique qui va de leurs causes agrave leurs causes Il est des cycles plus amples et il en est de plus court selon que les conversions se portent aux cause immeacutediatement supeacuterieures ou agrave de plus eacuteleveacutees jusqursquoau principe universal13

11 Platatildeo define semelhanccedila como aquilo que eacute outro mas imita o objeto ao qual eacute semelhante a fim de conservar sua beleza No entanto o faz mudando de proporccedilatildeo Cf Platatildeo Sofiacutesta 136 a 12 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 18 13 Op cit Proposiccedilatildeo 33

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

194

Na processatildeo a semelhanccedila vem em primeiro lugar sendo ela quem proporciona a conversatildeo e permanecircncia do causado na causa Todavia natildeo haacute multiplicaccedilatildeo somente com semelhantes pois neste caso o que diferiria o produto do produtor a causa do causado Para que haja distinccedilatildeo entre os elementos eacute preciso que exista alguma caracteriacutestica diferente entre eles e uma vez que a processatildeo se daacute pela multiplicaccedilatildeo do ser do produtor natildeo pode haver diferenccedila entre a constituiccedilatildeo do ser da causa e do causado Assim a priori a diferenccedila entre causa e efeito se apresenta como diferenccedila de potencialidade14 Isto porque para Proclo eacute imprescindiacutevel que o produto seja inferior em potecircncia ao seu produtor Portanto se por um lado na multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases a semelhanccedila eacute necessaacuteria por outro a dessemelhanccedila tambeacutem o eacute15

A diferenccedila entatildeo consiste em potecircncias diferentes que faz com que os elementos que compotildeem o sistema procleano faccedilam parte de uma hierarquia na qual quanto mais proacuteximo o produto estiver da sua causa mais perfeito e potente ele eacute16 Isso porque aqueles que estatildeo mais proacuteximo recebem em maior grau a potecircncia produtiva e no mesmo grau em que recebe a potecircncia recebem o ser da mocircnada originaacuteria Ao ter um maior grau de ser e de potecircncia o produtor eacute para o que vem em seguida causa bem e perfeiccedilatildeo fazendo com que este segundo deseje dele participar e natildeo somente o deseje mas necessite de tal participaccedilatildeo para alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Logo a correspondecircncia entre perfeiccedilatildeo constituiccedilatildeo e partici-paccedilatildeo se estabelece partindo de uma hierarquia na qual os seres que estatildeo mais proacuteximos do princiacutepio de sua seacuterie satildeo superiores e servem como degraus para perfeiccedilatildeo daqueles que satildeo produzidos por uacuteltimo

A perfeiccedilatildeo que se daacute mediante a participaccedilatildeo na causa como jaacute foi dito soacute eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre os termos Assim o desejo do produto de participar do seu produtor eleva o produtor ao patamar de bem No entanto se o primeiro bem de cada seacuterie natildeo pode ser partici-pado entatildeo como aquele que soacute existe por meio da participaccedilatildeo em outro pode participar daquele que eacute imparticipado Tal possibilidade se daacute pela existecircncia de um elemento intermediaacuterio que na filosofia procleana eacute sempre fundamental O intermediaacuterio no que diz respeito agrave participaccedilatildeo eacute

14ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur est drsquoordre supeacuterieur agrave son produit PROCLUS Op cit Proposiccedilatildeo 7 15 ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur esr drsquoordre supeacuterieur agrave son produitrdquoop cit 1995 Proposiccedilatildeo 7 16 Op cit Proposiccedilatildeo 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

195

posto como participado aquele pelo qual o participante adquire sua perfeiccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoPuisqursquoil eacutetait imparfait avant la participation et est devenu parfait par la participation le participant est entiegraverement subordonneacute au participeacute dans lrsquoordre de la perfection anteacuterieure il est infeacuterieur au participeacute qui le rend parfaitrdquo17

Tem-se entatildeo a existecircncia de uma triacuteade composta por hipoacutestases por meio de uma causa uacutenica satildeo elas o imparticipado o participado e o participante O imparticipado eacute segundo Proclo aquele que tem em si a razatildeo de sua proacutepria unidade18 Nele estaacute toda a potecircncia e capacidade de produzir ou seja eacute a mocircnada19 de uma seacuterie que surge mediante ele mesmo O que eacute produzido imediatamente pelo imparticipado eacute o partici-pado e o que eacute produzido em seguida participante Ambos participante e participado satildeo semelhantes ao imparticipado pois dele recebem sua substacircncia Entretanto satildeo dessemelhantes porque na medida em que saem de sua causa satildeo potencialmente inferiores a ela A inferioridade de sua potecircncia eacute determinante em sua imperfeiccedilatildeo No entanto eacute exatamente na imperfeiccedilatildeo e contemplaccedilatildeo do perfeito que estaacute o desejo de participar

A triacuteade referente agrave participaccedilatildeo estaacute diretamente associada agravequela referente agrave perfeiccedilatildeo pois a medida de perfeiccedilatildeo eacute a mesma da participaccedilatildeo Assim o ser imparticipado corresponde ao Bem o participado ao autohipostaacutetico20 e os outros seres aqueles que tecircm sua existecircncia partindo de outros ao participante Estas triacuteades por sua vez equivalem agravequela referente ao Imoacutevel Automotor e Heteromotor O que torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que sejam utilizados termos diferentes levando em consideraccedilatildeo um predicado o pensador estaacute sempre se referindo ao mesmo elemento dentro de uma seacuterie Ou seja natildeo importa se remete ao Imoacutevel Imparticipado ou Bem quando se evoca um destes termos a referecircncia eacute sempre ao princiacutepio da seacuterie e o mesmo acontece com os outros elementos21 Por esta razatildeo por meio de uma unidade que aparece como Bem Imoacutevel ou

17 PROCLUS op cit Proposiccedilatildeo 24 18 Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 23 19 Cf Proclo A Mocircnada na filosofia procleana eacute o princiacutepio originaacuterio de toda seacuterie Eacute dela que toda multiplicidade mediante a semelhanccedila tem origem op cit Proposiccedilatildeo 21 20 Autohipostaacutetico eacute todo aquele que existe em si e por si ou seja tem em si mesmo a razatildeo de sua existecircncia e constituiccedilatildeo sendo portanto perfeito 21 A saber quando se fala em participado automotor ou autohipostaacutetico do termo intermediaacuterio que faz a ligaccedilatildeo entre o princiacutepio Quando cita os seres cuja existecircncia dependente de outros estaacute sempre se referindo ao uacuteltimo termo da seacuterie ou seja o participante que eacute tambeacutem heteromotor e natildeo eacute causa de sua proacutepria perfeiccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

196

Imparticipado surge um elemento que eacute estreitamente semelhante a ela pois dele recebe o seu ser

Agrave vista do exposto nesta primeira anaacutelise a diferenccedila caracteriacutestica da multiplicidade se mostrou tatildeo somente como resultado da diferenccedila de potencialidade entre produto e produtor O que se observa entretanto ao investigar a multiplicidade ou mesmo a sua relaccedilatildeo com a unidade eacute que a diferenccedila que existe nela natildeo se limita a uma desigualdade de potecircncia como bem se observa na constituiccedilatildeo do Noucircs e na proacutepria diversidade dos seres Por isto eacute preciso ir mais a fundo na investigaccedilatildeo a fim de descobrir a gecircnese da diferenccedila Afinal quando se fala da dessemelhanccedila mediante os graus de potencialidade tem-se jaacute anteriormente uma diver-sidade presente nas mocircnadas pelas quais as seacuteries satildeo derivadas Com o intuito de aprofundar o exame referente agrave origem da diferenccedila portanto eacute necessaacuterio analisar o papel das triacuteades na geraccedilatildeo dos seres

2 A organizaccedilatildeo triaacutedica da realidade sobre o papel de Peacuteras Apeiacuteron e Mixto

O sistema procleano de hipoacutestases eacute disposto em triacuteadas Natildeo satildeo somente as hipoacutestases que satildeo ordenadas triadicamente pois esta forma de organizar perpassa todos os acircmbitos da filosofia do Bizantino Prova disto eacute a relaccedilatildeo que daacute origem a toda realidade a saber o movimento de processatildeo que como visto eacute constituiacutedo por trecircs momentos indispensaacuteveis e indissociaacuteveis Aleacutem da triacuteade presente no movimento de processatildeo a proacutepria realidade incorpoacuterea eacute sistematizada desta forma sendo composta por trecircs hipoacutestases divina inteligiacutevel e psiacutequica Cada uma das realidades mencionadas guarda particularidades que soacute dizem respeito a elas mesmas Poreacutem satildeo semelhantes na perspectiva de ser cada uma subdivi-dida em triacuteades

Por estar presente em todos os momentos da teoria do Diadoco o entendimento das triacuteades eacute essencial para que o pensamento do autor seja compreendido principalmente quando se trata da concepccedilatildeo do desdobra-mento da multiplicidade mediante a unidade Sobre a importacircncia das triacuteades na tese procleana Bezerra faz a seguinte afirmaccedilatildeo ldquochegamos assim agrave ideia das triacuteades como mediaccedilatildeo entre a multiplicidade constante das coisas e a unidade superior a todo devirrdquo22 A triacuteade como movimento de processatildeo eacute o

22 BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006 p 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

197

elemento motor da participaccedilatildeo haja vista ser determinante na constituiccedilatildeo dos seres Tal constituiccedilatildeo por sua vez estaacute diretamente relacionada agrave mobilidade dos termos que compotildee a realidade incorpoacuterea e corpoacuterea A estrutura triaacutedica portanto faz existir uma mediaccedilatildeo dinacircmica que proporciona a continuidade ontoloacutegica daquilo que eacute produzido permitindo o contato do Uno com tudo o que vem em seguida Neste sentido Caram assegura que ldquoo sistema procleano eacute uma trama de relaccedilotildeesrdquo23

Eacute esse complexo de relaccedilotildees que permite a causalidade pois os encadeamentos natildeo possuem um caraacuteter temporal uma vez que natildeo se trata de um antes e depois relativo ao vir-a-ser mas tatildeo somente a uma questatildeo loacutegica explicativa Assim a passagem da unidade agrave multiplicidade eacute feita mediante o estabelecimento de um sistema no qual partindo da unidade um atributo eacute gerado e mantido por meio das triacuteades permitindo que a comunicaccedilatildeo se estenda do primeiro ao uacuteltimo termo de uma ordem Eacute importante observar entretanto que sendo o Uno a Causa Prima ele transcende a todas as realidades de maneira a estar separado de qualquer ordem Ou seja natildeo se pode dizer que o Uno faz parte de qualquer seacuterie da realidade incorpoacuterea pois transcende a todas Trouillard neste sentido defende que o Uno natildeo estaacute em nenhuma ordem a qual produz24 diferente das demais causas que satildeo o centro de suas ordens

No que respeita agrave realidade supra-sensiacutevel a primeira hipoacutestase que descende diretamente do Uno eacute a divina o universo das heacutenadas Depois delas haacute a realidade inteligiacutevel e em seguida a psiacutequica A hipoacutestase divina eacute aquela na qual se encontra o iniacutecio da multiplicidade embora seja apenas uma multiplicidade quantitativa E mesmo que sejam muitas elas se caracterizam pela unidade dado que eacute a primeira esfera que surge atraveacutes do Uno Neste sentido com base na ideia de que o Uno eacute Deus25 e Bem Proclo defende que a multiplicidade dos deuses eacute unitaacuteria26 tendo

23 CARAM op cit 2014 p 105 24 Cf TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982 p 54 25 Eacute valido lembrar que apesar de ser denominado Deus o Uno soacute possui esta nomenclatura por ser causa e portanto dar origem e manter todos os seres aleacutem de ser objeto de desejo de todos uma vez que eacute o Sumo Bem 26 O caraacuteter transcendente do Uno o leva a ser considerado como Deus mas um deus que transcende a todos os deuses por ser Causa Primeira e objeto de desejo de todas as coisas de modo a estar acima de toda ordem Os primeiros elementos que satildeo deles originados satildeo as Heacutenadas que embora extremamente semelhantes a ele lhe satildeo potencialmente inferior Elas tecircm assim o papel intermediaacuterio entre a realidade divina e inteligiacutevel sendo assim

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

198

em vista que o Diadoco natildeo concebe saltos entre os termos da processatildeo e as Heacutenadas satildeo as primeiras coisas produzidas Apoacutes as Heacutenadas haacute a realidade inteligiacutevel onde se encontra a diversidade de maneira mais concreta tendo em vista que nela haacute inuacutemeras organizaccedilotildees nas quais o iniacutecio da diversidade dos seres eacute manifesto

A estrutura loacutegica da realidade inteligiacutevel procleana eacute interpretada por Caram27 como o fundamento de toda hipoacutestase pois a divisatildeo em Ser Vida e Intelecto tanto reflete os momentos da processatildeo quanto o ciclo das almas28 e o mundo do devir29 Assim a indispensabilidade da triacuteade inteli-giacutevel natildeo se refere somente agrave sua influecircncia no que eacute engendrado em seguida mas agrave unidade presente no Espiacuterito e na totalidade do cosmo Por esta razatildeo a ordem inteligiacutevel encontra na triacuteade Ser Vida e Pensamento sua unidade fundamental na medida em que pensamento e ser estatildeo unidos de tal forma que o pensamento eacute sempre pensamento do ser e o ser eacute sempre ser do pensamento Deste modo ldquo[] na Inteligecircncia estatildeo ambos Ser e Vida por participaccedilatildeo e cada um deles intelectualmente pois o ser da inteligecircncia eacute cognoscitivo e sua vida eacute conhecimentordquo30 A unidade entre Ser e Pensamento daacute ao Noucircs a dinacircmica que se manifesta como a vida que se faz presente no Espiacuterito e que medeia a relaccedilatildeo entre aqueles dois termos31

Proclo assegura a unidade do Espiacuterito ao declarar que cada um dos elementos que o compotildee estaacute presente nos demais embora chame atenccedilatildeo ao fato de que mesmo que tudo esteja em tudo cada um estaacute em seu modo proacuteprio O Diadoco entatildeo apresenta trecircs maneiras de existir essencial-mente vitalmente e intelectualmente32 Cada modo corresponde a um elemento que faz parte da esfera inteligiacutevel e a ligaccedilatildeo entre os trecircs soacute eacute

muacuteltiplas quanto sua quantidade mas unitaacuterias quanto aos seus atributos pois os uacutenicos que podem ser percebidos satildeo bondade e unidade PROCLO Op cit Proposiccedilatildeo 113 27 Cf CARAM op cit 2014 p 107 28 Para Proclo ldquoToda alma eacute uma substacircncia vital e cognoscitiva um princiacutepio de vida substancial e cognoscitiva e um principio de conhecimento por ser uma substacircncia e um princiacutepio de vidardquo PROCLO op cit proposiccedilatildeo 197 (traduccedilatildeo nossa) Cf TRUILLARD O ciclo da alma eacute composto por ser ou substacircncia vida ou potecircncia e pensamento ou atividade p 60 68 29 Cf TRUILLARD op cit 1982p 60 As ordens do reino do devir satildeo mineral vegetal e sensitivo 30 PROCLO op cit Proposiccedilatildeo 103 (traduccedilatildeo nossa) 31 ldquoSin el acto de la vida que opera la mediacioacuten entre los dos elementos el espiacuterito no tendria ninguna conciencia del proacuteprio ser e de la proacutepria esencia [] Ella en cuanto pensante e y existente funda el acto de identida que ocurre entre el ser y el espiacuterito y deviene mediadora dela triadicidad del νοῦςrdquo CARAM op cit 2014 p 117 32 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 103

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

199

possiacutevel porque cada um deles eacute formado pelos mesmos princiacutepios Limite e Ilimitado Desta maneira eacute possiacutevel dizer que cada elemento que faz existir a triacuteade do Espiacuterito eacute formado por outra triacuteade cujos princiacutepios satildeo comuns Ou seja 1) finito infinito e Ser 2) finito infinito e vida e 3) finito infinito e pensamento33 satildeo triacuteades que produzem triacuteades

Limite e Ilimitado satildeo a diacuteade pela qual se manifesta o Uno Satildeo o princiacutepio de todo ser e por esta razatildeo satildeo os elementos centrais para a explicaccedilatildeo da produccedilatildeo da multiplicidade haja vista o Uno soacute produzir semelhantes34 Esses dois princiacutepios satildeo causa de todo ser aleacutem de serem a primeira manifestaccedilatildeo do Uno de maneira que tudo que se segue eacute composto por eles Neste sentido DrsquoAncona atesta que ldquoCes deux priacutencipes consideres par Proclos comme Supremes en tant que responsables de chaque manifestation de stabiliteacute et de changement dans lrsquounivers tout entierrdquo35 Para Proclo ateacute as Heacutenadas que estatildeo no mesmo plano do Uno por fazerem parte da realidade divina procedem dos dois princiacutepios36 Mesmo que os dois princiacutepios soacute sejam percebidos nos seres ou seja como mistura entretanto cada princiacutepio existe por si mesmo e independente um do outro37 - o que leva agrave necessidade de analisar cada um isoladamente

Peraacutes ou o Limite eacute a causa da semelhanccedila com o Uno que segundo Berger representa o Primeiro Princiacutepio por sua estabilidade e concentraccedilatildeo em si mesmo dando a todos que dele participa integridade unidade e estabilidade Por tais donativos que concernem a suas proacuteprias caracteriacutes-ticas ele eacute anaacutelogo ao uno e ao mesmo38 Assim a accedilatildeo do limite por tambeacutem ser entendido como determinante consiste na unificaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas satildeo do Limite como existente em si e por si separado do Ilimitado39 O que acontece eacute que Limite e Ilimitado no entanto na esfera do real soacute podem ser encontrados unidos pois soacute sua uniatildeo ocasiona o primeiro ser o Ser verdadeiramente ser40 Poreacutem antes da mistura como assegura Proclo eacute necessaacuterio que tais princiacutepios existam em si e por si mesmos ainda que sua accedilatildeo soacute se realize na mistura Mas antes de passar

33 Cf BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840 p 44 34 Cf BEZERRA op cit 2006 p 120 35 COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995 p 60 36 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 159 37 Cf Ibid proposiccedilatildeo 90 38 Cf BERGER op cit 1840p 41 39 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 90 40 Cf COSTA Op cit 1995p 61

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

200

para o exame da mistura e sua necessidade eacute preciso discorrer sobre o Ilimitado

Sendo o Limite responsaacutevel pela estabilidade e unidade do ser o Ilimitado ou apeiacuteron diz respeito agrave potecircncia (dynamis) Eacute ele que possibilita o sair da unidade para a multiplicidade por ser uma potecircncia geradora sendo imagem da fecundidade do Uno De acordo com Berger o ilimitado eacute anaacutelogo ao muacuteltiplo e ao outro41 Semelhante ao Limite ainda que o Ilimitado exista substancialmente diferente e separado de qualquer mistura ele natildeo se manifesta separado do seu oposto pois ao ser indeter-minaccedilatildeo necessita de um objeto pelo qual ocorre sua manifestaccedilatildeo Ressaltando entatildeo o caraacuteter de inseparabilidade destes princiacutepios nos seres Caram assevera que ldquoLa ilimitacioacuten nunca existe apartado del liacutemite liacutemite ilimitacioacuten y su combinacioacuten reaparecen en todos los niveles de la realidadrdquo42 Desta feita o que se evidencia eacute que toda existecircncia na esfera inteligiacutevel assim como o que vem depois dela soacute eacute compreendido atraveacutes desses dois princiacutepios

Limite e Ilimitado por serem os primeiros derivados do Uno engendram a esfera Inteligiacutevel e consequentemente toda diversidade dos seres Isto ocorre porque mesmo que o Uno soacute produza unidades tais unidades se singularizam mediante a accedilatildeo do Limite que por sua vez soacute pode atuar no sentido de causar novos seres atraveacutes da accedilatildeo do Ilimitado E o Ilimitado ainda que relativo agrave potecircncia geradora soacute se manifesta quando presente nos seres ou seja quando sofre a do limite43 Eacute portanto partindo do Limite e do Ilimitado que todas as realidades sejam da esfera corpoacuterea ou incorpoacuterea vem agrave existecircncia poreacutem o limite que se encontra nos seres natildeo eacute um Limite puro e com o Ilimitado acontece o mesmo Tem-se agora a triacuteade que compotildee o universo Limite Ilimitado e Mistura

Os dois princiacutepios natildeo se manifestam na esfera do real em sua substacircncia pura o que os leva a dar origem a um terceiro que eacute na verdade a siacutentese dos seus antecessores Assim o terceiro termo como elemento de mediaccedilatildeo e siacutentese do que vem anteriormente estaacute presente em todas as relaccedilotildees triaacutedicas No caso de peacuteras e apeiacuteron tem-se a mistura que na filosofia procleana aparece como o verdadeiro ser Eacute portanto no Ser verda-deiro que a unidade caracteriacutestica do Primeiro princiacutepio eacute salvaguardada

41 Cf BERGER op cit 1840p 41 42 CARAM op cit 2014 p 114 43 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 92

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

201

sem que a diversidade do que vem em seguida seja posta em xeque44 No entanto como jaacute mencionado o reino divino ou seja das Heacutenadas tambeacutem eacute formado atraveacutes dos dois princiacutepios Desta maneira a diversidade dos seres para ser compreendida deve ser analisada nestes dois elementos a saber nas Heacutenadas e no Ser verdadeiramente ser pois eles natildeo satildeo apenas manifestaccedilotildees do Uno mas dos princiacutepios pelo qual satildeo formados

3 A origem da diversidade dos seres

O Ser como siacutentese de limite e ilimitado mesmo que encerre em si a unidade apresenta os dois princiacutepios em relaccedilatildeo pondo em evidecircncia a dualidade que adveacutem de seus componentes45 A dualidade faz do primeiro ser como tudo o que vem em seguida uma triacuteade que mesmo sendo encabeccedilada pelo Ser tem em sua substacircncia Identidade e Diferenccedila Logo o Ser nesta perspectiva se apresenta como uma unidade de contrapo-siccedilotildees dado que natildeo possuir somente o Limite e Ilimitado como perten-centes a si mas tambeacutem Identidade e Diferenccedila o que leva a ter em sua constituiccedilatildeo ser e natildeo-ser46 Eacute importante observar poreacutem que Platatildeo jaacute havia apresentado um natildeo-ser que natildeo dizia respeito a um inexistente

Platatildeo no diaacutelogo Sofista ao investigar a natureza do Ser chega agrave conclusatildeo de que tudo pela participaccedilatildeo eacute ser e simultaneamente natildeo-ser Para tanto considera que o Ser pode ser participado por inuacutemeros gecircneros dos quais o fundador da Academia lista movimento repouso diferente e idecircntico O sentido do ser e natildeo-ser ocorre porque todos os gecircneros satildeo seres pela participaccedilatildeo no Ser e ao mesmo tempo satildeo natildeo-ser por serem diferentes dele47 Com este raciociacutenio Platatildeo chega agrave tese de que o natildeo-ser natildeo eacute pura nulidade sendo portanto algo diferente do Ser embora participe dele48 Proclo segue uma teoria semelhante Nos Elementos de Teologia o Bizantino classifica todas as coisas em unas unas

44 Cf CARAM op cit 2014 p 114-115 45 De acordo com o Diadoco o ser por caracterizar-se como misto de limite e ilimitado tem em si estas duas caracteriacutesticas que nele satildeo indissociaacuteveis Eacute dito ldquoSrsquoil a une infinite puissance il est eacutevidemment infini et sous ce rapport il est forme drsquoinfini Srsquoil est indivisible et semblable agrave lrsquoum sous ce rapport il a parta u deacuteterminatrdquo PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 89 46 Cf CARAM op cit 2014 p 114 47 Sofista 255e-256e 48 Eacute necessaacuterio para Platatildeo que todos os gecircneros participem do Ser sob a pena de sua natildeo existecircncia Neste sentido ao passo que todos os outros gecircneros satildeo ser pela participaccedilatildeo o Ser natildeo participa de nenhum outro gecircnero pois ele eacute causa e se participasse de algo mais seria diferente de si mesmo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

202

e natildeo-unas e natildeo-unas e unas de acordo com a participaccedilatildeo na unidade Ao fazer isto ele natildeo considera aquilo que eacute denominado como natildeo-uno como nada49 de modo a somente estabelecer uma diferenccedila entre o que eacute pura unidade e o que de alguma maneira participa da multiplicidade Platatildeo sobre o sentido da negaccedilatildeo em casos como o do natildeo-ser e natildeo-uno esclarece

Estrangeiro Quando dizemos natildeo-ser nos referimos suponho natildeo a algo que seja o oposto do ser mas somente a algo diferente [] Portanto quando nos disserem que o negativo significa o oposto discordaremos Somente admitiremos que a partiacutecula natildeo indica algo diferente das palavras agraves quais serve de prefixo ou melhor diferente das coisas agraves quais os nomes que se seguem agrave negaccedilatildeo satildeo aplicados50

Platatildeo ainda no Sofista assegura que a natureza do Diferente eacute fragmentada pois quando manifesta nos seres natildeo se revela como diferenccedila Isto significa que o Diferente quando buscado em algo que eacute analisado por si mesmo se mostra como seu contraacuterio ou seja como idecircntico fato que soacute natildeo ocorre quando ponderado por meio da negaccedilatildeo Como exemplo tem-se o momento que objetiva investigar o diferente do branco e para esta razatildeo passa a investigar o preto Este por sua vez natildeo soacute o seu diferente mas o seu oposto ou seja o preto quando visto fora de sua relaccedilatildeo com o branco natildeo aparece como diferente dele mas como idecircntico a si mesmo Desta feita a diferenccedila ao ser estudada nas coisas natildeo se encontra como tal jaacute que o que se manifesta eacute o ser da coisa investigada O sentido do Diferente soacute eacute alcanccedilado quando na busca por ele natildeo se predica os atributos daquilo que se entende por diferente mas o anuncia mediante a negaccedilatildeo

Ao buscar a natureza do diferente se chega ao Idecircntico devido o caraacuteter positivo da afirmaccedilatildeo de sorte que o Diferente soacute pode ser compreendido na negaccedilatildeo Deste modo em Proclo ao estudar a triacuteade que corresponde ao Ser Identidade e Diferenccedila levando em consideraccedilatildeo que Identidade e Diferenccedila satildeo inerentes ao Ser a causa da diferenccedila entre os seres se revela como o princiacutepio do Limite dado que ele eacute quem daacute singularidade atraveacutes do ato de determinar Proclo sobre o

49 A unidade para Proclo eacute o que faz existir todas as coisas neste sentido negar a unidade do que quer que seja significaria negar a existecircncia da coisa Quando o Diadoco todavia se refere ao natildeo-uno ele segue a mesma linha de raciociacutenio que Platatildeo quando se refere ao natildeo-ser 50 Sofista 257b-c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

203

papel do Limite argumenta ldquo[] pero el liacutemite define circunscribe y situacutea cada cosa en sus propios confines [] de suerte que cada uno de los seres tiene una cierta naturaleza una definicioacuten una propiedad y un orden propios por el primer liacutemiterdquo51 Tornado clara a correspondecircncia do Limite na singularidade e particularizaccedilatildeo dos seres tem-se a seguinte questatildeo se eacute o Limite que daacute singularidade ao ser qual o papel do Ilimitado

O Ilimitado natildeo diz respeito ao estado dos seres mas de sua potecircncia Neste sentido Proclo assegura que o grau de potencialidade eacute proporcional ao de Unidade Esta potecircncia no ser natildeo eacute pura pois por ordem de necessidade participa do Limite Logo se pode dizer que por ser potecircncia ela soacute existe atraveacutes daquilo que jaacute estaacute em ato O Diadoco menciona assim dois tipos de potecircncias as infinitas e as finitas sendo as infinitas aquelas que estatildeo nos seres que tem maior participaccedilatildeo no limite O Sucessor Platocircnico no entanto chama atenccedilatildeo ao fato de que apesar de se falar em potecircncias infinitas estas soacute o satildeo para os seres inferiores pois para o ser de potecircncia infinita e para os seus superiores tais potecircncias natildeo satildeo infinitas Isto se daacute porque os inferiores natildeo conseguem compreender a totalidade dos seres que o satildeo superiores jaacute o ser ao qual a potecircncia lsquoinfinitarsquo pertence sabe seu limite assim como o sabem os que lhe satildeo superiores ou seja uma potecircncia soacute aparece como infinita para os seres inferiores que natildeo conseguem compreender seus limites52

O Ilimitado na qualidade de potecircncia proporciona a saiacuteda do Uno em direccedilatildeo agrave multiplicidade provocando a comunhatildeo e conexatildeo entre tudo que existe Pois eacute a potecircncia geradora ao ser indeterminada ou seja natildeo tendo nenhuma caracteriacutestica especiacutefica que perpassa todas as coisas estando portanto presente em todas Ao estar presente em tudo daacute a possibilidade de reunificaccedilatildeo de tudo o que existe Isto posto a identidade pode ser analisada em dois sentidos 1) como potecircncia que atravessa todos os seres dando a todos um caraacuteter comum e 2) como identidade dos seres consigo mesmos O primeiro sentido eacute oriundo do Ilimitado o segundo do Limite que particulariza cada ser Logo o duplo caraacuteter da identidade torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que opostos Identidade e Diferenccedila natildeo se anulam

51 PROCLO Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999 XLII13P 20 - 25 52 Cf PROCLO op cit proposiccedilatildeo 91 93

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

204

A diversidade aparece na hipoacutestase inteligiacutevel mediante a accedilatildeo dos princiacutepios do limite e do ilimitado que fazem da potecircncia que sai do Uno uma unidade delimitando-a e singularizando-a frente ao todo Fica todavia a questatildeo porque haacute diferenccedilas entre os seres que satildeo particularizados pela accedilatildeo dos dois princiacutepios Com a explicaccedilatildeo da diferenccedila como parte integrante do ser fica claro que a diferenccedila tem sua primeira expressatildeo nele porque o limite determina aquilo que jaacute eacute pela possibilidade ou seja age como uma atualizaccedilatildeo Os princiacutepios satildeo pois responsaacuteveis pela forma natildeo pela diversidade da multiplicidade propriamente dita Logo se o Ser eacute o primeiro componente do inteligiacutevel soacute resta recorrer ao primeiro elemento incorpoacutereo ou seja elevar a anaacutelise para o plano divino jaacute que o inteligiacutevel eacute a consumaccedilatildeo daquilo que jaacute existe como causa no divino

De fato toda multiplicidade Proclo repete enquanto tal faz tudo dessemelhante do Uno por consequecircncia ela eacute derivada do Uno natildeo diretamente mas atraveacutes de um princiacutepio de mediaccedilatildeo Este princiacutepio se assemelha ao Uno enquanto unidade que engendra certa multiplicidade particular e se assemelha agrave multiplicidade enquanto possui as caracteriacutesticas de modo arquetiacutepico 53

As Heacutenadas ou unidades divinas satildeo este princiacutepio e portanto a primeira multiplicidade Elas natildeo possuem poreacutem atributos de forma que esta passagem soacute pode ser constatada numericamente Assim a multiplicidade surge na proacutepria realidade divina uma vez que as Heacutenadas satildeo determinaccedilotildees divinas e como tal cooperam com o Uno que estaacute acima de toda ordem na produccedilatildeo dos seres Consequen-temente do Uno os seres recebem sua existecircncia e das Heacutenadas seus predicados atraveacutes da participaccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoasiacute es la heacutenade la que impone su propio caraacutecter a los existentes participantes y despliega existencialmente en el uacuteltimo la cualidad que eacutel mismo posee supra-existencialmente54 Por conseguinte toda diversidade existente na esfera do real jaacute se encontra nas Heacutenadas de maneira germinal Agrave vista disto para cada Heacutenada participaacutevel existe um ser participante o que

53 ldquoDe fait toute multipliciteacute Proclus le reacutepegravete est en tant que telle tout agrave fait dissemblable de lrsquoUn par conseacutequent elle deacuterive de lrsquoUn non directement mais agrave travers un principe de meacutediation Ce dernier ressemble agrave lrsquoun en tant qursquoil est lrsquouniteacute qui engendre cette multipliciteacute particuliegravere et ressemble agrave la multipliciteacute en tant qursquoil en possegravede les caractegraveres de faccedilon archeacutetypiquerdquo COSTA Op cit 1995p 87 54 PROCLO op cit proposiccedilatildeo 137

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

205

proporciona o desenvolvimento da caracteriacutestica fundamental de cada seacuterie55

A diversidade dos seres portanto na esfera incorpoacuterea natildeo se trata da accedilatildeo do movimento de geraccedilatildeo como acontece na realidade corpoacuterea A diversidade nasce como realizar-se daquilo que jaacute existe como causa nas Heacutenadas por intermeacutedio da accedilatildeo dos princiacutepios do Limite e Ilimitado Logo natildeo se pode dizer que haacute uma mudanccedila nos seres no domiacutenio da inteligibilidade mas uma passagem da potecircncia ao ato possibilitada pelo mister de limite e ilimitado Desta forma o Uno por ser causa Suma daacute existecircncia a tudo e as Heacutenadas pela participaccedilatildeo daacute os atributos que jaacute existem nelas mesmas em forma de causa Quanto aos princiacutepios do Limite e Ilimitado a eles cabe o papel de manifestar tais atributos na medida em que delimitam o ser singularizando-o Com isso tais seres seratildeo idecircnticos agrave mocircnada de sua ordem e agrave totalidade das coisas por possuiacuterem unidade e tambeacutem satildeo diferentes por sua particularizaccedilatildeo Tal diferenccedila contudo soacute pode ser percebida quando analisada a totalidade dos seres

Conclusatildeo

Ante o exposto o que pode ser concluiacutedo eacute que ainda que o sistema procleano seja regido por multiplicaccedilatildeo pela semelhanccedila pois eacute do Uno que toda multiplicidade tem origem isto soacute eacute possiacutevel porque seu sistema consiste em uma trama de relaccedilotildees Ocorre que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento ontoloacutegico isto eacute natildeo se trata de uma saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade por meio de uma sucessatildeo de eventos O que pode ser percebido quando eacute dito que natildeo haacute um antes ou depois relativo aos momentos da processatildeo O fato de natildeo existir um antes ou depois no movimento de processatildeo todavia natildeo implica em uma estabilidade no sistema do Bizantino pelo contraacuterio seu sistema eacute marcado pelas relaccedilotildees entres os termos Sendo por meio das triacuteades que tal relaccedilatildeo adquire dinamicidade

Assim se por um lado a realidade supra-sensiacutevel eacute marcada pela imobilidade com exceccedilatildeo da Alma que eacute automotora por outro ela tambeacutem eacute marcado por triacuteades que permanecem em constante relaccedilatildeo De modo que a relaccedilatildeo dialeacutetica existente entre os termos das triacuteades eacute o que possibilita a origem da diferenccedila na hipoacutestase inteligiacutevel dando a ela

55 Op cit proposiccedilotildees 131 135

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

206

um caraacuteter dinacircmico que lhe possibilita atributos aleacutem da unidade e bondade Porquanto ainda que a imobilidade esteja presente na realidade supra-sensiacutevel no sentido de natildeo existir um movimento de geraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre os princiacutepios oriundos diretamente do Uno peacuteras e apeiacuteron possibilita tanto a passagem da unidade agrave multiplicidade quanto a diversidade de seres existente Ou seja eacute a relaccedilatildeo dinacircmica que permite a existecircncia do diferente e ao passo que proporciona o diferente viabiliza tambeacutem o idecircntico

Logo o que se pode concluir eacute que no que concerne agrave realidade sensiacutevel toda a diversidade adveacutem do movimento seja o de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seja o de deslocamento jaacute na realidade supra-sensiacutevel a diversidade eacute oriunda das relaccedilotildees Considerando que eacute na relaccedilatildeo dos princiacutepios que constitui os seres que os predicados passam da potecircncia ao ato conservando caracteriacutestica dos princiacutepios que o constitui Neste sentido todo ser eacute ao mesmo tempo o resultado de seus princiacutepios e algo diferente deles De modo que eacute na relaccedilatildeo que o Outro e o Mesmo tecircm existecircncia sendo tambeacutem por ela que eacute possiacutevel chegar natildeo soacute ao ser em particular mas a totalidade dos seres

Referecircncias Bibliograacuteficas

BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006

CARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 pp 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesre vistasthemata49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015

COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995

REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008

PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

207

________ Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999

PLATAtildeO Parmecircnides In Diaacutelogos IV Parmecircnides (ou formas) Poliacutetico (ou da realeza) Filebo (ou do prazzer) Liacutesis (ou da amizade) Traduccedilatildeo textos complementares e notas de Edson Bini Bauro SP EDIPRO 2009

__________ Sofista In Diaacutelogos I Teeteto (ou sobre o conhecimento) Sofista (ou do ser) Protaacutegoras (ou sofista) Traduccedilatildeo textos complemen-tares e notas Edson Bini ndash Bauru SP EDIPRO 2007

SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012

TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982

Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Doutora pela Universidad Complutense de Madrid

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza soeudaimoniahotmailcom

Jan Gerard Joseph ter Reegen Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Professor emeacuterito da Universidade Estadual do Cearaacute e Coordenador de Pos-Graduaccedilatildeo e Extensatildeo da FCF

jangjtrgmailcom

Suelen Pereira da Cunha Mestranda pela Universidade Federal do Cearaacute

suelenldp2011gmailcom

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

208

ENSAIO

AS FONTES MIacuteSTICAS E COSMOLOacuteGICAS DO ldquoCASTELO INTERIORrdquo DE TERESA DrsquoAacuteVILA

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo

Na obra Castelo Interior ou Moradas Teresa de Jesus miacutestica do Renascimento espanhol encarou a tarefa de descrever suas experiecircncias extaacuteticas Semelhante a outros miacutesticos natildeo o poderia fazer sem interpretar e mediatizar uma experiecircncia que eacute supralinguiacutestica Por isso recorreu ao simbolismo Comparou a alma a sete castelos ou globos concecircntricos de cristal ou diamante Esses castelos simbolizam as etapas da ascensatildeo da alma O Castelo Interior eacute ldquoa aacutervore da vida que estaacute plantada nas mesmas aacuteguas vivas que eacute Deusrdquo (1M 21) Eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a cabala mais especificamente com a literatura judaica conhecida como Hechalot (Palaacutecios)

Palavras-chave Teresa de Jesus Miacutestica Renascentista Moradas Hechalot

1 Introduccedilatildeo

Santa Teresa de Jesus ou simplesmente Santa Teresa DrsquoAacutevila (1515 ndash 1582) miacutestica carmelita e escritora foi uma das mais eminentes contem-plantes do Renascimento espanhol A reformadora do Carmelo por moti-vos de obediecircncia agrave autoridade da igreja enfrentou a tarefa de colocar por escrito seus ecircxtases com o objetivo de instruir as monjas que estavam sob sua tutela a respeito do caminho interior para alcanccedilar a uniatildeo miacutestica Ela proacutepria definiu seu empenho como difiacutecil quase impossiacutevel porque nas operaccedilotildees iacutentimas da alma se adere agrave secreta ldquolinguagem de Deusrdquo Natildeo sabendo nem como comeccedilar sua empreitada Teresa acreditou ter recebido de Deus a inspiraccedilatildeo de considerar a alma como um castelo1 de diamante

1 Castelo Interior ou Moradas eacute sua obra mestra escrita em 1577 cinco anos antes da morte de Teresa

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

209

ou de cristal com muitos aposentos da mesma forma que no ceacuteu haacute muitas moradas (1M 11)

A alma humana eacute considerada agrave maneira de sete moradas ou globos concecircntricos de fino cristal ou diamante que marcam as etapas progres-sivas do desenvolvimento miacutestico O progresso espiritual descrito por meio das sete moradas resume as trecircs etapas principais da vida interior e da oraccedilatildeo

Trecircs das moradas enfocam o que se pode fazer para avanccedilar ateacute as moradas interiores nas quais estaacute Deus Exigem o desenvolvimento do amor ao proacuteximo da renuacutencia a julgar os outros do conhecimento de si da humildade do processo de interiorizaccedilatildeo e ativaccedilatildeo do desejo por Deus

A quarta eacute uma etapa de transiccedilatildeo na qual se comeccedila a responder ao chamado de Deus e eacute quando Ele comeccedila a assumir o controle de tudo Nas moradas mais interiores Deus purifica a alma cada vez mais e a vai tornando a Sua semelhanccedila ateacute a etapa do matrimocircnio espiritual

A quinta morada eacute a da santidade A esse ponto Teresa dedica quase a metade do Castelo Interior pois essas etapas mais profundas requerem orientaccedilatildeo mais cuidadosa A transformaccedilatildeo interior estaacute cada vez mais intensa e soacutelida e o coraccedilatildeo vai ficando sempre mais inundado pela radiante luz divina

Na sexta morada Teresa disserta sobre as provas exteriores e interiores acerca dos trabalhos os obstaacuteculos e as adversidades agrave santificaccedilatildeo que satildeo cada vez mais numerosos fortes e sutis e exigem maior capacidade de discernimento

A uacuteltima morada a mais interior eacute diferente de todas pois nesse estado acontece a uniatildeo miacutestica Ali estaacute Deus com quem a alma se une pois fica cheia de luz tendo deixado para traacutes o democircnio na forma de vaacuterios animais ferozes e peccedilonhentos (4M 19) Haacute uma fusatildeo entre a alma e a Luz divina Eacute o matrimocircnio miacutestico

[] eacute como se a aacutegua caindo do ceacuteu em um rio ou fonte onde estiver toda a aacutegua jaacute natildeo se pode separar nem distinguir qual eacute a aacutegua a do rio ou a que caiu do ceacuteu (7M 24)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

210

2 Os limites da linguagem humana

Michael Gerli nos mostra que muitas metaacuteforas espirituais especial-mente as arquitetocircnicas se tornaram populares na espiritualidade euro-peacuteia precisamente por seu caraacuteter mnemoteacutecnico2 que as tornava atraentes (GERLI 1982 p 154-163) Eacute notoacuterio que isso ocorreu com a metaacutefora usada por Teresa pois esta pedia agraves filhas espirituais que o trouxessem sempre agrave memoacuteria (1M 26 7M 39)

Agrave primeira vista o esquema simboacutelico usado por Teresa parece original contudo eacute impossiacutevel expressar literariamente uma experiecircncia dessa natureza sem recorrer aos siacutembolos disponiacuteveis no contexto cultural e religioso no qual o miacutestico estaacute inserido

Conforme Barbara Kurtz a linguagem dos miacutesticos natildeo pode transcrever uma experiecircncia sem interpretaacute-la e mediatizaacute-la por mais que se lute contra os limites da linguagem humana incapaz de abordar a transcendecircncia (KURTZ 1992 p 32)

Nesse sentido Teresa confessa natildeo saber como expressar a miste-riosa vivecircncia miacutestica que teve por isso eacute que se utiliza de metaacuteforas O castelo interior tal como o descreve Teresa eacute tanto uma figura de grande beleza plaacutestica quanto algo muito faacutecil de recordar Portanto deve pertencer ao contexto da autora Por ser uma metaacutefora entretanto pouco usada torna-se difiacutecil rastrear as possiacuteveis origens desse simbolismo

O contexto cultural no qual o miacutestico vive ajuda a dar forma simboacutelica agrave sua experiecircncia transcendente que eacute em si supralinguiacutestica O ecircxtase eacute por definiccedilatildeo inefaacutevel por isso o miacutestico sempre recorre a metaacuteforas que satildeo comuns em seu ambiente cultural para explicitar de alguma maneira o que aconteceu nas fronteiras espaciotemporais da razatildeo e da linguagem

Sendo assim haacute o seguinte problema de onde Teresa tira o simbo-lismo com o qual descreve a experiecircncia miacutestica Seus estranhos castelos concecircntricos natildeo pertencem agrave tradiccedilatildeo cristatilde ocidental Em qualquer outro escrito de espiritualidade encontramos o avanccedilo miacutestico da alma claramente estruturado ao longo de sete moradas (ou castelos) cada vez mais interiores

2 Teacutecnica de estimulaccedilatildeo da memoacuteria sinocircnimo de arte de memorizaccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

211

3 Busca das fontes Teresianas

A busca miacutestica da uniatildeo com Deus foi simbolizada tradicional-mente por uma viagem um trajeto percorrido pela alma Isso faz parte de um conjunto de siacutembolos religiosos adotados por cristatildeos judeus e mulccedilumanos ao longo da histoacuteria Muitas tradiccedilotildees mencionam um itineraacuterio e um desejo intenso da alma por Deus Falam da entrega e da purificaccedilatildeo da renuacutencia e do abandono resultantes da uniatildeo miacutestica

Gaston Etchegoyen propotildee que Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna ambos autores muito apreciados pela Carmelita sejam as princi-pais fontes para o Castelo Interior (ETCHEGOYEN 1923 15) Mas o proacuteprio Etchegoyen admite que os esboccedilos de ambos natildeo satildeo suficientes para explicar os pormenores do siacutembolo usado por ela

Francisco de Osuna se limita a um esquema muito restrito agraves alegorias medievais no qual os inimigos tradicionais (a carne o mundo e o democircnio) tentam penetrar o castelo da alma Bernardino Laredo com seu modo de compreender a civitas sancta assentada em um campo quadrado de fundamento de cristal com muros de pedras preciosas e com um ciacuterio pascal no centro que simboliza Cristo eacute mais distante ainda do esquema teresiano

Outros propotildeem como antecedentes teresianos os romances de cavalaria do Renascimento espanhol que a Santa admite ter lido com grande paixatildeo juvenil Quando examinamos esses livros somos forccedilados a concluir que eles natildeo nos datildeo a chave do siacutembolo imaginado pela Monja de Aacutevila Em nenhum romance da eacutepoca os castelos satildeo sete vezes concecircntricos nem celebram a uniatildeo teopaacutetica3 em seu recinto mais interno Nem na arquitetura dos castelos espanhoacuteis os quais ainda se podem visitar constam de sete moradas cada vez mais interiores (PEERS 1951 p 17)

4 Recurso agrave miacutestica judaica

A fase primitiva da miacutestica judaica antes de se cristalizar na Cabala medieval que eacute a mais longa e se estende desde o seacuteculo I aC ateacute o seacuteculo X eacute conhecida indistintamente como a tradiccedilatildeo da Merkavah ou miacutestica Carruagem ou do Trono de Deus A literatura da Merkavah se desenvolveu com suporte em especulaccedilotildees sobre visotildees profeacuteticas do Antigo Testamento O termo hebraico merkabah refere-se ao trono-

3 Sensiacutevel agrave divina influecircncia ser profundamente afetado por Deus

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

212

carruagem de Deus na visatildeo de Ez 1 O corpus principal da literatura Merkabah foi composto no periacuteodo de 200-700 dC

Na fase mais antiga o visionaacuterio o miacutestico era arrebatado geral-mente ateacute agraves esferas celestes e vislumbrava Deus como rei sentado em um trono sustentado por uma carruagem em um firmamento de cristal rodeado de raios com querubins e quatro seres vivos junto a Ele

A primeira apresentaccedilatildeo da escala completa da Merkavah a miacutestica da carruagem do Senhor aparece nos escritos visionaacuterios conhecidos como os livros de Hechalot Esses escritos consistem em descriccedilotildees Hechalot salas o palaacutecios celestiais O desejo mais profundo do miacutestico era alcanccedilar a sala do trono durante a ascensatildeo aos ceacuteus para contemplar o esplendor da majestade de Deus A literatura Hechalot dedica-se a discutir os detalhes desses ceacuteus agraves vezes em conexatildeo com as tradiccedilotildees relacionadas com a apocaliacuteptica dos ciacuterculos de Henoque (SCHOLEM 1965 p 9-13)

Para alguns estudiosos a literatura Hechalot eacute um gecircnero de textos esoteacutericos e apocaliacutepticos judaicos que se estendem ateacute o iniacutecio da Idade Meacutedia Os sete Hechalot ou sete ceacuteus fazem parte da cosmologia religiosa encontrada nas grandes religiotildees como o judaiacutesmo o hinduiacutesmo e o islamismo bem como em algumas religiotildees menores como o hermetismo e gnosticismo Segundo essa cosmologia o trono de Deus estaacute acima do seacutetimo ceacuteu

Vaacuterias religiotildees atribuem ao nuacutemero sete a perfeiccedilatildeo uacuteltima tampouco a miacutestica judaica o ignorou estaacute em obras como os Sete Hechalot ou Sete Palaacutecios a que o israelita recorria simbolicamente para falar do arrebatamento do vidente ateacute ascender ao Trono de Deus conforme o texto do Sefer Hechalot4 ou Terceiro Livro de Henoque muito considerado pela cabala judaica Essa obra se mostra como tendo sido escrita no seacuteculo II dC mas suas origens soacute podem ser rastreadas ateacute o seacuteculo V O autor se faz passar pelo Rabi Ismael o qual teria se tornado um ldquosumo sacerdoterdquo depois das visotildees decorrentes de seu arrebatamento ao ceacuteu Os principais temas abordados pelo Sefer Hechalot satildeo a ascensatildeo de Henoque ao ceacuteu e sua transformaccedilatildeo no anjo Metatron (DAN 1993 p 7-24)

No final do seacuteculo XIII Moiseacutes de Leoacuten compilou uma obra atribuiacuteda ao rabino Simeon ben Yohai que viveu na Palestina no seacuteculo II

4 Sefer significa livro e Hechalot quer dizer Palaacutecios ou Templos

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

213

Na citada obra conta-se uma experiecircncia visionaacuteria do suposto rabino no momento em que a alma dele se libera momentaneamente do corpo e experimenta una revelaccedilatildeo magniacutefica sob a forma de sete palaacutecios do paraiacuteso e em contrapartida sete palaacutecios do inferno Isso significa que ainda existe um sistema de siacutembolos essenciais dos ensinamentos dos Hechalot unido a novas ideias desenvolvidas posteriormente com origens nas especulaccedilotildees sobre a merkavah ou carruagem do Senhor

A obra compilada por Moiseacutes de Leoacuten recebeu o nome Zoha ou Livro do Esplendor o grande comentaacuterio miacutestico judaico que compendiou a Cabala No Zohar os sete palaacutecios estatildeo povoados de anjos que irradiam luz Em contraste com o objetivo dos primeiros miacutesticos da merkavah que era ver a sala do trono de Deus o desejo do miacutestico apresentado pelo Zohar eacute chegar a uma comunhatildeo com Deus ou seja a uma fusatildeo entre as vontades divina e humana que se realiza no ecircxtase e eacute simbolizada no ldquobeijo do Amorrdquo Conforme o Zohar o beijo que une a alma a Deus eacute descrito no seacutetimo palaacutecio e sua intensidade eacute tal que pode extrair a alma do corpo e levaacute-la para Deus provocando a morte fiacutesica

Santa Teresa tambeacutem menciona como o Zohar o beijo com que o Rei divino consuma o matrimocircnio espiritual na seacutetima morada de seu Castelo Interior Refere-se tambeacutem a experiecircncias extaacuteticas intensas nas quais a alma parece ser arrebatada do corpo e raptada ateacute uma comunhatildeo com Deus Teresa caracteriza essas experiecircncias como suficientes para levar o miacutestico agrave morte (7M 25 36)

5 Influecircncias da cosmologia aristoteacutelica

Aleacutem das fontes judaicas eacute possiacutevel encontrar outras influecircncias para o simbolismo teresiano As versotildees latinas das obras aristoteacutelicas Estavam amplamente divulgadas no contexto no qual Teresa viveu No livro De Caelo Aristoacuteteles imaginou o universo na forma de esferas concecircntricas que giram em movimento circular Este esquema coacutesmico se transformou em um siacutembolo que dava um transfundo para o caminho espiritual do ser humano (LOacutePEZ-BARALT 2010 p 180)

Salta agrave ideia de que Santa Teresa ao falar da alma na forma de sete ciacuterculos ou castelos concecircntricos alude de maneira obliqua agraves sete esferas planetaacuterias da cosmovisatildeo medieval herdada de Aristoacuteteles e da literatura de Hechalot A Carmelita estaria visualizando a alma como um reflexo microcoacutesmico do macrocosmo celestial estaria comparando as moradas espirituais natildeo somente com castelos mas tambeacutem com as

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

214

esferas do ceacuteu Nesse caso o ser humano teria dentro de si todas as esferas celestes

6 Conclusatildeo

Conclui-se que Teresa natildeo criou a formosa imagem plaacutestica dos castelos interiores Por mais inusitado que isto pareccedila agrave sensibilidade do cristatildeo ocidental ela simplesmente a elaborou em detalhes geniais a cristianizou e a adaptou aos seus fins

Igual a muitos filoacutesofos poetas e humanistas da Eacutepoca Renascen-tista miacutesticos cristatildeos foram profundamente influenciados pela literatura da Cabala no seacuteculo XIII Reconheceram na miacutestica judaica em geral um caminho seguro para compreender melhor suas experiecircncias com procedecircncia em raiacutezes miacutesticas mais antigas

Swietlicki orienta contudo a natildeo se ter a pretensatildeo de que a influecircncia da cabala judaica sobre os miacutesticos cristatildeos nos temas e siacutembolos usados por estes sejam resultado de influecircncia literaacuteria mas apenas supotildee-se que os traccedilos de cabala foram persistentes em ciacuterculos populares mesmo apoacutes a expulsatildeo dos judeus da Espanha (SWIETLICKI 1986 p 28) Dessa forma a miacutestica cristatilde teria se tornado um importante veiacuteculo para a transmissatildeo da Cabala judaica mesmo no seacuteculo XVI Eacute fato inegaacutevel entretanto a influecircncia da cabala sobre estas figuras importantes

Referecircncias Bibliograacuteficas

BENSION Ariel O Zohar o livro do esplendor Satildeo Paulo Polar Edito-rial 2006

DAN Joseph The Ancient Jewish Mysticism Tel Aviv Mod Books 1993

ETCHEGOYEN Gaston Lrsquoamour divin Essai sur les sources de Sainte-Theacuteregravese Bordeaux Feret 1923

GERLI Michael ldquoEl castillo interior y el arte de la memoriardquo Bulletin Hispanique 861-2 (1982) 154-163

KURTZ Barbara ldquoThe Small Castle of the Soul Mysticism and Metaphor in the European Middle Agesrdquo Studia Mystica XV (1992) 28-35

LOacutePEZ-BARALT Luce ldquoTeresa of Jesus and Islam The Simile of the Seven Concentric Castles of the Soulrdquo in Hilaire KALLENDORF (ed) A New Companion to Hispanic Mysticism Danvers BRILL 2010 p 175-199

PEERS Edgar Allison Study of the Spanish Mystics London SPCK 1951

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

215

SCHOLEM Gershom Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and the Talmudic Tradition New York Jewish Theological Seminary of America 1965

SWIETLICKI Catherine Spanish Christian Cabala The works of Luis de Leoacuten Santa Teresa de Jesus and San Juan de la Cruz Columbia Missouri University of Missouri Press 1986

TERESA DE JESUacuteS Santa Moradas del Castillo Interior in Obras Completas Madrid Editorial Catoacutelica 1951

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

216

TRADUCcedilAtildeO

COMECcedilAM OS ERROS DOS FILOacuteSOFOS ARISTOacuteTELES AVERROacuteIS AVICENA ALGAZEL

AL-KINDI MAIMONIDES COLETADOS POR IRMAtildeO EGIacuteDIO DA ORDEM DE SANTrsquo AGOSTINHO1

Introduccedilatildeo I Vida de Egiacutedio Romano ndash Aegiacutedius Romanus

Aegiacutedius Romanus ndash Egiacutedio Romanos ndash tambeacutem conhecido por seu nome francecircs Giles de Rome nasceu em Roma em 1243

Depois de sua entrada na ordem dos Agostinianos estudou em Paris de 1269 ndash 1272 com Tomaacutes de Aquino Com Tomaacutes aproveitou o pensa-mento aristoteacutelico que comeccedilou a se afirmar nos estudos filosoacuteficos com reflexos na Faculdade Teoloacutegica da Universidade de Paris Em consequecircncia das 219 teses ligadas agrave Filosofia e Teologia aristoteacutelicas publicadas em 7 de marccedilo de 1277 e que foram consideradas levianas ou hereacuteticas e como tais em desacordo com os dados da Revelaccedilatildeo pelo bispo de Paris Etienne Tempier Egiacutedio foi obrigado a deixar Paris e por enquanto natildeo conseguiu permanecer na Universidade Em Paris produziu a sua obra poliacutetica De Regimine Principum Em 1285 Egiacutedio refutou as teses que foram condenadas pela maioria da comunidade acadecircmica da universidade parisiense e como consequecircncia lhe foi possiacutevel a sua carreira acadecircmica

A partir de 1292 Egidio assume tanto na ordem dos Agostinianos como na Igreja uma posiccedilatildeo de destaque A sua atuaccedilatildeo desenvolveu-se de modo especial na aacuterea poliacutetica do papa Bonifaacutecio VIII cujas teorias 1 Incipiunt Errores philosophorum Aristotelis Averrois Avicenna Algazelis Alkindi Rabbi Moysis A fratre Aegido collecti ord S Augustini Traduccedilatildeo elaborada a partir do texto latino publicado em Giles of Rome Errores Philosophorum Critical Text with Notes and Introduction by Joseph Koch English Translation by John O Riedl Milwaukee Wisconsin Marquette University Press 1944 Neste Trabalho soacute se apresenta a versatildeo da parte sobre Aristoacuteteles cap 1-2-3 Oportuna-mente apresentar-se-atildeo os outros autores mencionados

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

217

entraram em choque com as praacuteticas e pensamentos do Rei Philippe IV o que levou agrave uma tensatildeo profunda na Igreja do Ocidente

Egidio morreu em 1316 em Avignon Agrave sua mente fina deve o apelido ldquodoctor fundatissimusrdquo ndash doutor profundo mas em razatildeo de certa prolixidade de suas obras o chamam ldquodoctor verbo-susrdquo ndash doutor tagarela

II Autoria e data

Embora sob a autoridade de Mandonnet o texto em estudo tenha sido longamente considerado como espuacuterio estudos posteriores poreacutem dos principais mestres comprovaram a autenticidade da autoria de Egidio Aleacutem disso a comprovaccedilatildeo eacute encontrada em alguns comentaacuterios antigos como tambeacutem nas primeiras ediccedilotildees impressas em 1428 e 1581 editadas em Veneza

Uma anaacutelise da obra comprova assim Koch uma concordacircncia quanto ao estilo e conteuacutedo da Incipiunt com outros escritos do Egiacutedio Mais peso entretanto eacute atribuiacutedo agrave concordacircncia de estilo entre a Incipiunt e outras obras egidianas Cita-se entre outros os seus comentaacuterios sobre a De Generatione et corruptine a Physica que lembram imediatamente os nordm 6-7-8-12 e 14 da Incipiunt (para maiores detalhes cf Koch p XXXIV e XXXV)

E Incipiunt pertence agraves primeiras obras de Egidio e deve ser situada ao redor do ano 1268 visto que no momento em que compocircs este trabalho ele jaacute tinha completado a sua formaccedilatildeo filosoacutefica e como tudo indica tambeacutem uma parte da formaccedilatildeo teoloacutegica

O termino da obra eacute o comentaacuterio da De Generatione et corruptione que cuja data deve se situar entre 1273 e 1274

Isto leva a considerar que a obra deve ser composta ao redor do ano de 1270

III Traduccedilatildeo do Texto

Afirma-se em primeiro lugar

Capiacutetulo I Sobre a lista de erros de Aristoacuteteles

Porque de um dado errado derivam muitas consequumlecircncias de um fundamento falso o Filoacutesofo tirou muitos erros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

218

1 Acreditou pois que nada estaacute numa determinada situaccedilatildeo em que anteriormente natildeo estava senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Avaliou portanto que soacute haveria novidade aonde tivesse uma mudanccedila propriamente dita Consequumlentemente como toda mudanccedila propriamente falando eacute o fim de um movimento natildeo poderaacute haver novidade sem um movimento precedente Deste argumento entatildeo concluiu que o movimento nunca comeccedilou porque se o movimento se iniciasse seria algo novo Mas natildeo existe coisa nova senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Entatildeo antes do primeiro movimento houve algum movimento O que eacute incoerente

2 Aleacutem disso errou ao afirmar que o tempo nunca comeccedilou porque o tempo sempre segue o movimento Se entatildeo o movimento natildeo comeccedilou nem o tempo iniciara Pareceu-lhe que a razatildeo teria uma difi-culdade especial em relaccedilatildeo ao tempo Visto que o instante eacute sempre o fim do passado e o comeccedilo do futuro natildeo se pode falar de um primeiro momento Por isso antes de todo e qualquer momento houve algum tempo e antes de qualquer tempo dado houve um momento Entatildeo o tempo natildeo comeccedilou mas eacute eterno

3 Aleacutem disso por causa daquilo que foi dito foi obrigado a afirmar que aquilo que se move eacute eterno e que tambeacutem o mundo eacute eterno porque uma vez que natildeo haacute tempo sem movimento e nem movimento sem algo moacutevel se tempo e movimento satildeo eternos o que se move seraacute eterno e assim o mundo nunca comeccedilou Tudo isso fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica

4 E mais Foi obrigado a afirmar que o ceacuteu natildeo eacute gerado e eacute incorruptiacutevel e que nunca foi feito mas que sempre existiu Como entre os outros movimentos soacute o movimento circular eacute contiacutenuo como fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica se qualquer movimento eacute eterno o circular seraacute eterno E porque a movimento circular eacute proacuteprio do ceacuteu como se prova no 1ordm livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo conclui-se da mesma forma que o ceacuteu eacute ingecircnito e que nunca foi feito Tinha ele uma razatildeo especial para dizer que o ceacuteu natildeo comeccedilou porque qualquer coisa que possui o poder de sempre existir no futuro tambeacutem teraacute o poder de ter existido sempre no passado E porque o ceacuteu natildeo termina natildeo comeccedilou a existir

5 E ainda visto que na opiniatildeo dele qualquer coisa que eacute feita eacute feita de mateacuteria preexistente assim opinou que Deus natildeo poderaacute fazer um outro mundo porque este o atual eacute feito de toda a mateacuteria Este erro tambeacutem pode ser encontrado no 1ordm Livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

219

6 Argumentou ainda que a geraccedilatildeo das coisas inferiores nunca cessaraacute como tambeacutem nunca tem comeccedilado Porque a corrupccedilatildeo antecede e segue toda a geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo antecede e segue toda a corrupccedilatildeo Por isso visto que a corrupccedilatildeo precede qualquer geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo qualquer corrupccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a corrupccedilatildeo e a geraccedilatildeo terem tido iniacutecio nem eacute possiacutevel elas terminarem porque a qualquer geraccedilatildeo segue a corrupccedilatildeo e a qualquer corrupccedilatildeo segue a geraccedilatildeo Se entatildeo a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo terminassem depois da uacuteltima geraccedilatildeo teria uma geraccedilatildeo e depois da uacuteltima corrupccedilatildeo uma corrupccedilatildeo Que a corrupccedilatildeo precede e segue a geraccedilatildeo ele provou pelo caminho do movimento Porque natildeo existe nada gerado sem que haja algo corrompido e desta forma a corrupccedilatildeo precede a geraccedilatildeo e tambeacutem a segue porque tudo que eacute gerado eacute corruptiacutevel e todo corruptiacutevel e corrompido por necessidade Assim tambeacutem a geraccedilatildeo precede a corrupccedilatildeo Porque nada eacute corrompido que natildeo foi gerado antes e segue a geraccedilatildeo porque a corrupccedilatildeo de um eacute a geraccedilatildeo de outro Este erro pois que a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo natildeo comeccedilam nem terminam pode se achar no 1ordm Livro de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) e de forma mais expliacutecita no Livro 2ordm

7 Ainda em razatildeo de a geraccedilatildeo neste mundo inferior acontecer pelo sol Aristoacuteteles foi obrigado de afirmar que o sol ldquonunca deixaraacute de gerar plantas e animaisrdquo como fica evidente do Livro 1ordm de De Vegetalibus (Sobre os Vegetais)

8 Ainda visto que natildeo existe novidade sem movimento anterior conforme o argumento apresentado ele errou querendo que de Deus natildeo possa proceder de forma imediata algo novo como fica claro do Livro 2ordm de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) onde diz que ldquoaquilo que permanece o mesmo sempre produziraacute o mesmordquo

9 Ainda foi obrigado a negar a ressurreiccedilatildeo dos mortos Por isso considera improvaacutevel como fica claro do Livro 1 de De Anima (Sobre a Alma) que os mortos ressurjam Porque no Livro VIIIordm da Metaphysica quer que aquilo que estaacute morto natildeo se torne vivo de novo senatildeo atraveacutes de muitos meios e se reviver natildeo revive o mesmo numericamente porque aquelas coisas cuja substacircncia se perdeu natildeo voltam as mesmas numericamente como afirma no fim do Livro IIordm de De Generatione

Natildeo tem validade que alguns tentam desculpa-lo dizendo que ele fala pela via da natureza quando acredita que nada de novo possa imediatamente proceder de Deus mas que toda coisa nova acontece por meio do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

220

10 Ainda visto que acreditou que nada de novo possa acontecer senatildeo atraveacutes do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza acreditou como se revela no Livro Iordm de Physicae (Fiacutesica) quando argumenta contra Anaxaacutegoras que um intelecto que procura separar paixotildees e acidentes da substacircncia eacute ldquoum intelecto que procura o impossiacutevelrdquo

Desta opiniatildeo parece seguir que Deus natildeo pode fazer um acidente sem substacircncia

11 Ainda visto que atraveacutes do caminho do movimento nunca haacute geraccedilatildeo de alguma coisa se natildeo houver corrupccedilatildeo de outra e que nunca eacute introduzida uma forma substancial se outra natildeo for expulsa porque a mateacuteria eacute a mesma para todas que a possuem disto se segue que natildeo haacute mais formas substanciais num composto do que em outro De fato aquele que prossegue bem neste caminho veraacute que deve ser colocada em todo composto somente uma forma substancial e assim parece ser a posiccedilatildeo do Filoacutesofo Por isso no Livro VIIordm da Metaphysica no capiacutetulo De unitate diffinitionis (Sobre a Unidade da definiccedilatildeo) afirma que as partes de uma definiccedilatildeo natildeo satildeo uno ldquoporque estatildeo num unordquo mas porque indicam uma natureza

Entatildeo se entender uma natureza composta de vaacuterias formas isto eacute toleraacutevel mas se entender uma natureza simples e que num composto haja somente uma forma isto eacute falso

12 Ele afirma ainda que onde haacute agora pacircntano e mar uma vez existiu terra seca e vice versa porque o tempo natildeo para mas eacute eterno como fica claro do Livro Iordm Meteoreorum Consequentemente tambeacutem lhe foi necessaacuterio afirmar que natildeo houve um primeiro homem nem uma primeira chuva

13 Ainda deste modo querendo proceder pela via da natureza acreditou visto que dois corpos natildeo podem existir simultaneamente no mesmo lugar como eacute revelado no Livro IVordm da Physica que era tatildeo absolu-tamente essencial ldquoper serdquo agraves dimensotildees resistir a dimensotildees e que eacute impossiacutevel as dimensotildees continuarem existindo e entretanto natildeo resistir aacutes dimensotildees

Disto se segue que Deus natildeo pode fazer que dois corpos ocupem o mesmo lugar

14 Ainda porque natildeo pertence agrave inteligecircncia o poder de se mover sem se mover em ato porque as inteligecircncias enquanto se movem satildeo colocadas na melhor disposiccedilatildeo ele afirmou que existem tantos anjos e

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

221

tantas inteligecircncias que existem mundos como fica claro no Livro XIIordm da Metaphysica

Mas a Sagrada Escritura contradiz esta posiccedilatildeo quando afirma ldquoMil milhares o serviram e miriacuteades e mais miriacuteades diante delerdquo

Capiacutetulo II Em que num sumaacuterio satildeo reunidos os erros de Aristoacuteteles

Estes entatildeo de forma sumaacuteria satildeo todos os seus erros

1 Que o movimento natildeo tem comeccedilo 2 Que o tempo eacute eterno 3 Que o mundo natildeo teve um comeccedilo 4 Que o ceacuteu natildeo foi feito 5 Que Deus natildeo poderia fazer um mundo diferente 6 Que geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo natildeo tiveram comeccedilo e natildeo teratildeo fim 7 Que o sol sempre causaraacute geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo no mundo

sublunar 8 Que nada de novo pode proceder diretamente de Deus 9 Que a ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute impossiacutevel 10 Que Deus natildeo poderaacute fazer um acidente sem a substacircncia 11 Que em qualquer composto soacute existe uma forma substancial 12 Que natildeo se pode admitir um primeiro homem e uma primeira

chuva 13 Que de maneira alguma podem existir dois corpos num mesmo

lugar 14 Que existem tantos anjos como haacute mundos Por isso concluir-

se-aacute que haacute cinquumlenta e cinco ou quarenta e sete somente

Alguns poreacutem queriam desculpar o Filoacutesofo na questatildeo sobre a eternidade do mundo Mas isto natildeo tem cabimento porque ele - para mostrar as verdades filosoacuteficas - se baseia no mencionado princiacutepio ateacute mesmo natildeo escreveu praticamente nenhum livro sobre filosofia em que natildeo coloca algo ligado a este princiacutepio

Em seguida aleacutem dos erros supramencionados alguns queriam colocar nele (a opiniatildeo) que Deus nada conhece fora de si de tal maneira que natildeo Lhe eacute conhecida este mundo inferior baseando o seu argumento nas palavras que satildeo apresentadas no XIIordm da Metafiacutesica naquele capiacutetulo Sententia Patrum (A opiniatildeo dos Padres) Mas que aqueles que afirmam isto natildeo entendem o Filoacutesofo E que natildeo eacute esta a sua intenccedilatildeo fica claro pelo que se diz no capiacutetulo De Bona Fortuna (Sobre a boa sorte) onde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

222

afirma que para Deus tanto o passado como o futuro satildeo por si conhecidos Haacute outros erros que lhe satildeo atribuiacutedos com que natildeo nos ocupamos aqui porque satildeo oriundos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea

Capiacutetulo III Em que eacute anulada aquela afirmaccedilatildeo que o Filoacutesofo eacute a base de seus erros

Todos os seus erros entretanto se algueacutem o investigar cuidadosa-mente satildeo consequumlecircncias desta sua posiccedilatildeo que no ser nada de novo acontece senatildeo por movimento anterior Poreacutem como isto eacute falso porque Deus em razatildeo de ser o primeiro agente que natildeo age como instrumento poderaacute produzir as coisas sem movimento anterior Aquele que age por natureza tambeacutem age como instrumento porque eacute do modo de ser do instrumento que move movido e necessariamente pressupotildee na sua accedilatildeo o movido A accedilatildeo entatildeo ou a produccedilatildeo do primeiro agente pode ser sem aquele movimento Criaccedilatildeo por isso natildeo eacute um movimento porque o movimento pressupotildee o moacutevel a criaccedilatildeo de fato natildeo pressupotildee nada nem eacute propriamente falando uma mudanccedila porque toda mudanccedila eacute o fim de um movimento mas como se afirma comumente ela eacute uma simples deduccedilatildeo das coisas do primeiro Qualquer coisa por isso que eacute formulada contra o iniacutecio do mundo e contra aquilo que a feacute afirma eacute totalmente sofiacutestica2

Traduccedilatildeo de

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

2 No capiacutetulo IV inicia-se a apresentaccedilatildeo dos erros de Averroacuteis

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

223

RESENHA

MIacuteSTICA DE OLHOS ABERTOS

METZ Johann Baptist Miacutestica de olhos abertos Traduccedilatildeo de Inecircs Antonia Lohbauer Satildeo Paulo Paulus 2013 Coleccedilatildeo Amantes do Misteacuterio 293 p 135 x 21 cm ISBN 978-85-349-3649-1

Johann Baptist Metz eacute um dos teoacutelogos catoacutelicos alematildees mais influentes do poacutes-Vaticano II Eacute membro da Diretoria do Instituto de Ciecircncias Humanas de Viena desde 1983 cofundador e editor da revista Concilium e professor emeacuterito de Teologia Fundamental na Universidade de Muumlnster Ex-aluno do teoacutelogo jesuiacuteta Karl Rahner rompeu com a Teologia Transcendental do mestre para assumir segundo assinala uma teologia arraigada na praacutexis (p191-211) Metz estaacute no centro de uma escola de Teologia Poliacutetica que exerceu intensa influecircncia sobre a Teologia da Libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina A teologia de Metz centraliza-se na atenccedilatildeo ao sofrimento pois natildeo haacute sofrimento no mundo que natildeo diga respeito ao cristatildeo ldquoComo podemos virar as costas para todo esse sofrimento e nos preocuparmos apenas com nossa salvaccedilatildeo e nossa redenccedilatildeordquo (P 16)

A obra sob comentaacuterio eacute uma coleccedilatildeo de textos mais antigos atualizados e recompilados Alguns dos ensaios foram escritos haacute deacutecadas mas suas preocupaccedilotildees ainda satildeo oportunas ou talvez muito mais importantes do que antes Isto porque conforme Metz o Cristianismo eacute cada vez mais uma exigecircncia e um estiacutemulo para uma accedilatildeo em favor de um mundo melhor e mais justo Notaacutevel eacute a maneira pela qual o A chama a atenccedilatildeo para a espiritualidade cristatilde como revoluccedilatildeo da esperanccedila Enquanto o contexto atual enfatiza o aspecto da introspecccedilatildeo da espiritualidade com suas teacutecnicas de meditaccedilatildeo de olhos fechados a Biacuteblia chama a atenccedilatildeo para um aspecto totalmente diferente a Escritura nos acorda e nos manteacutem de olhos abertos O objetivo da espiritualidade biacuteblica eacute nos encaminhar para o outro A biacuteblia nos ensina uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

224

espiritualidade de olhos abertos porque natildeo existe experiecircncia de Deus sem passar pelo outro o qual na maioria das vezes estaacute sofrendo por causa do que Metz chama de ldquocapitalismo predatoacuteriordquo

A primeira parte da obra ldquoPerspectivas Teoloacutegicasrdquo (P 13-49) lembra que o olhar messiacircnico de Jesus (P 19) natildeo eacute dirigido para o pecado mas para o sofrimento do outro (cf Lc 416-21) ldquoEssa sensibilidade messiacircnica ao sofrimento natildeo tem nada a ver com plangecircnciardquo mas com a miacutestica biacuteblica de justiccedila ldquopaixatildeo por Deus como empatia pelo sofrimento alheio como miacutestica praacutetica da compaixatildeordquo (P 19) situando em primeiro lugar natildeo a culpabilidade mas o sofrimento Esse eacute sentido do discurso apocaliacuteptico como tentativa de dar esperanccedila aos sofredores ldquoO apocalipse biacuteblico ldquodesvelardquo a trilha dos sofredores na histoacuteria da humanidaderdquo (P 17) Lamenta-se que os cristatildeos tenham se afastado tanto desse ponto ldquoA doutrina cristatilde da salvaccedilatildeo dramatizou a questatildeo do pecado e negligenciou a questatildeo do sofrimentordquo (P20)

Na segunda parte da obra ldquoMiacutestica do Face-a-face tentativas de aproximaccedilatildeordquo (P 53-211) Metz reuacutene textos variados no estilo de pequenas meditaccedilotildees que objetivam conduzir o leitor para o centro da feacute cristatilde a saber a abertura para Deus que leva a servir o proacuteximo

Na terceira parte intitulada ldquoUma Igreja sem interesse em aprenderrdquo (P 215-250) o Autor trata de modo muito significativo a respeito da crise na Igreja Conforme Metz ateacute mesmo cristatildeos muito engajados nas comuni-dades e na luta pela justiccedila sentem-se cada vez mais incapazes (ou sem vontade) de aprender Eacute no entanto uma igreja aprendiz (disciacutepula) sempre pronta a se abrir para outras perspectivas

Essa obra eacute sem duacutevida fruto de uma rica experiecircncia de vida do velho Teoacutelogo E uma importante contribuiccedilatildeo para o estudo da Teologia da espiritualidade cristatilde Ao fundamentar-se na exigecircncia de partir dos textos biacuteblicos e da praacutexis de Jesus o A retoma a significaccedilatildeo original e o teor teoloacutegico genuiacuteno da espiritualidade cristatilde bem como a atualidade desse tema tatildeo em moda nos nossos dias e tatildeo pouco compreendido

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

225

Apesar de algumas paacuteginas pressuporem debates teoloacutegicos que jaacute natildeo correspondem agraves experiecircncias das geraccedilotildees recentes vale a pena ler esse livro e seguir os conselhos do velho Mestre segundo o qual uma Igreja que quer se renovar deve saber quem ela eacute e a que eacute destinada

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Page 7: Revista Acadêmica da Prainha

126

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

127

OS MINISTROS DA IGREJA CARACTERIacuteSTICAS E EXIGENCIAS1

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

1 O padre servidor do povo

O documento da CNBB nordm 100 ndash Comunidade de comunidades ndash uma nova paroacutequia ndash A conversatildeo pastoral da paroacutequia em seu capiacutetulo 5 tem como tiacutetulo ndash Sujeitos e Tarefas da Conversatildeo Pastoral Reuacutene quais satildeo os sujeitos da referida conversatildeo (bispos presbiacuteteros diaacuteconos permanentes os consagrados e os leigos) Deter-me-ei nos sete nuacutemeros que fazem alusatildeo agrave figura do presbiacutetero (nordm199-205)

Esta parte comeccedila afirmando que o presbiacutetero eacute chamado a ser padre-pastor exprimindo quais suas caracteriacutesticas dedicado generoso acolhedor e aberto ao serviccedilo da comunidade faz referecircncia ao excesso de atividades como um sinal preocupante que pode prejudicar o equiliacutebrio pessoal do padre (cfn 199)

Em algumas comunidades encontram-se presbiacuteteros desencantados cansados Nesta ocasiatildeo o documento em apreccedilo chama a atenccedilatildeo para algo que eacute muito grave e que merece de noacutes presbiacuteteros em especial aos paacuterocos a atenccedilatildeo

A sobrecarga de trabalhos pode dificultar a capacidade de relacionamento dos presbiacuteteros tornando-os apaacuteticos aos sofrimentos dos outros insensiacuteveis aos pobres rude no tratamento de seus paroquianos e incapazes de manifestar a misericoacuterdia e a bondade de Cristo do qual satildeo ministros Eles precisam ser ajudados (nordm 200)

1 Constantes satildeo os apelos do Magisteacuterio da Igreja tanto do Bispo de Roma como dos bispos do Brasil sobre os ministros ordenados Denotam-se caracteriacutesticas agraves quais estes ldquoservidoresrdquo do povo devem corresponder Em trecircs artigos escritos em ocasiotildees diferentes o Padre Almir Magalhatildees faz uma descriccedilatildeo e siacutentese geral das exigecircncias que satildeo a base de um ministeacuterio evangeacutelico adaptado aos nossos dias

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

128

Vivemos numa sociedade do vazio da superficialidade e neste contexto somos entre outras realidades formadores de opiniatildeo com um papel importante na sociedade de fazer a contraposiccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser considerado manipulaccedilatildeo das consciecircncias O documento tambeacutem contribui neste aspecto quando afirma que ldquoOutra preocupaccedilatildeo se refere agrave atualizaccedilatildeo do padre diante das aceleradas mudanccedilas que ocorrem na modernidade Ele pode ficar atrasado no tempo e afastado da realidade No ativismo pode ser que natildeo se dedique ao estudo e natildeo se prepare melhor para escutar e entender os anseios dos que o procuramrdquo (Nordm 201) Afinal de contas apesar de o modelo eclesioloacutegico do Vaticano II ser trinitaacuterio uma eclesiologia de comunhatildeo sob a qual todos satildeo responsaacuteveis pela accedilatildeo evangelizadora ldquoA conversatildeo pastoral da paroacutequia depende muito da postura do presbiacutetero na comunidaderdquo (Nordm 202)

Para que boa parte destas realidades aconteccedila seraacute de fundamental importacircncia que o presbiacutetero acolha bem as pessoas exerccedila a paternidade espiritual sem distinccedilotildees evitando atitude seletiva de privileacutegios a grupos A ou B renovando sua espiritualidade para ajudar tantos irmatildeos que buscam a paroacutequia (Cfnordm 202) Identicamente eacute preciso evitar-se que paroacutequias possam projetar uma imagem contraacuteria daquilo falado ateacute aqui a imagem de uma Igreja distante burocraacutetica e sancionadora (Cfnordm 37)

Devemos melhorar nosso atendimento e a paroacutequia haacute de estabelecer o diverso neste item comeccedilando pelo padre Isto requer que o presbiacutetero cultive profunda experiecircncia de Cristo vivo com espiacuterito missionaacuterio coraccedilatildeo paterno que seja animador da vida espiritual e evangelizador capaz de promover a participaccedilatildeordquo (Nordm 203)

Finalmente o padre deve ser formado para ser servidor do seu povo Eacute por este motivo que deve existir cuidado com o preparo permanente e a formaccedilatildeo nos seminaacuterios de acordo com esta visatildeo pastoral que considera a paroacutequia uma comunidade de comunidades tal como insiste a Igreja no Brasil a respeito da formaccedilatildeo presbiteral (Nordm 205 e Doc 93 da CNBB)

A questatildeo fundamental eacute como superar o ldquomodelordquo atual de paroacute-quia muito mais voltada para a sacramentalizaccedilatildeo conservaccedilatildeo para o modelo expresso no documento aqui refletido ldquoO ministeacuterio sacerdotal tem uma forma comunitaacuteria radical e soacute pode se desenvolver como tarefa coletivardquo (Nordm 204)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

129

2 Tentaccedilotildees dos agentes de pastorais

O tiacutetulo desta reflexatildeo eacute retirado da segunda parte do Capiacutetulo II da Exortaccedilatildeo Apostoacutelica A Alegria do Evangelho do Papa Francisco (Na crise do compromisso comunitaacuterio) Admito que muitos agentes jaacute tiveram acesso a esta Exortaccedilatildeo mas considero que a maioria ainda natildeo teve acesso e desta forma socializo algumas questotildees relevantes desta parte e que tecircm incidecircncia na vida dos agentes de pastoral Uma avaliaccedilatildeo eacute incontestaacutevel o Papa sempre desconcerta

Logo no iniacutecio afirma o Pontiacutefice sua gratidatildeo pela tarefa de quantos trabalham na Igreja e que a nossa tristeza e a vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja natildeo devem fazer esquecer os inuacutemeros cristatildeos que datildeo a vida por amor e agradece o belo exemplo de que datildeo tantos cristatildeos que oferecem sua vida e o seu tempo com alegria (Cfnordm 76)

Em seguida convoca a uma espiritualidade missionaacuteria chamando a atenccedilatildeo para algo que particularmente considero uma peacuterola em termos de anaacutelise da situaccedilatildeo atual ao assinalar que a vida espiritual de muitos agentes se confunde com alguns momentos religiosos que proporcionam algum aliacutevio mas natildeo alimentam o encontro com os outros o compromisso no mundo a paixatildeo pela evangelizaccedilatildeo (Cf nordm 78) Saliento que jaacute vi esta observaccedilatildeo ser feita por outros pastoralistas entretanto quando parte de teoacutelogos geralmente eacute avaliada como tendenciosa fechando-se Agora eacute o Papa Francisco quem faz a afirmaccedilatildeo

Uma tocircnica sua no diaacutelogo com o mundo eacute o encontro com o outro o que natildeo faltou tambeacutem nessa Exortaccedilatildeo ldquoO ideal cristatildeo convidaraacute sempre a superar a suspeita a desconfianccedila permanente o medo de sermos invadidos as atitudes defensivas que nos impotildee o mundo atual Muitos tentam escapar dos outros se fechando na sua privacidade confortaacutevel ou no ciacuterculo reduzido dos mais iacutentimos e renunciam ao realismo da dimensatildeo social do Evangelhordquo (Nordm88) Ele trata deste assunto na mesma Exortaccedilatildeo no Cap IV

Relevante eacute como ele conclui este mesmo nordm 88

ldquoPorque assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual sem carne nem cruz tambeacutem se pretendem relaccedilotildees interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos por eacutecrans e sistemas que se podem acender e apagar agrave vontade Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraccedilar o risco do encontro com o rosto do outro com a sua presenccedila fiacutesica que interpela com os seus sofrimentos e suas reivindicaccedilotildees A verdadeira feacute no Filho de Deus feito carne eacute inseparaacutevel do dom de si mesmo da

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

130

pertenccedila agrave comunidade do serviccedilo da reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros Na sua encarnaccedilatildeo o Filho de Deus convidou-nos agrave revoluccedilatildeo da ternurardquo

Percebam que neste pequeno trecho o Papa nos daacute material para um retiro de no miacutenimo 7(sete) dias pois relembra uma heresia do seacutec II ndash o docetismo que nega a humanidade de Cristo afirmando em outras palavras que hoje tambeacutem faltam nos cristatildeos as relaccedilotildees interpessoais substituiacutedas pela ldquotelinhardquo portanto sem cruz sem encontro na comodi-dade Estamos conectados quase que permanentemente sem preocupaccedilatildeo com o sofrimento dos outros Analisem minuciosamente e comparem com a realidade em que o Papa confere autenticidade da feacute Ela se revela em quatro pontos dom de si mesmo pertenccedila agrave comunidade serviccedilo e reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros

Concluo esta reflexatildeo em primeiro lugar exprimindo que natildeo estou somente me dirigindo aos outros sou um agente de pastoral e vou me confrontando com toda a Exortaccedilatildeo O grande objetivo mesmo eacute convidar a todos os agentes de pastoral a natildeo perderem de vista estes 33 (trinta e trecircs) nuacutemeros e 13 paacuteginas de cunho eminentemente pastoral-espiritual Natildeo seria bom para noacutes neste final de Quaresma ou quem sabe iniacutecio da Paacutescoa visitar estes nuacutemeros dos quais esta reflexatildeo foi apenas uma motivaccedilatildeo

3 ldquoAi de voacutesrdquo

Ao realizar sua missatildeo Jesus teve de enfrentar alguns conflitos e ateacute mesmo provocaacute-los na fidelidade e obediecircncia agrave realizaccedilatildeo da vontade do Pai Via de regra encontramos estes confrontos junto a alguns grupos de seu tempo destacando-se os escribas ou doutores da lei e os fariseus estes uacuteltimos gozando de muita credibilidade junto ao povo de Deus Tal creacutedito se dava pela loacutegica defendida por eles na medida em que pelo cumprimento da lei se visibilizava maior aproximaccedilatildeo a Deus ou natildeo a isto chamamos de legalismo farisaico pois a questatildeo principal de estar proacuteximo a Deus ou natildeo era simplesmente cumprir a lei (Cf todo o confronto sobre o saacutebado comer com as matildeos impuras Cf Mc 7)

O sistema se baseava nos polos ndash puros e impuros A pureza indicava as condiccedilotildees necessaacuterias para algueacutem poder comparecer diante de Deus no Templo (Cf C Mesters Com Jesus na contramatildeo p 24) Neste sentido o povo tinha grande preocupaccedilatildeo com a pureza pois quem natildeo era puro natildeo podia chegar perto de Deus (Mt 99-12)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

131

No capiacutetulo 23 do Evangelho de Mateus (precisamente 23 13-36) Jesus pronuncia os famosos sete ldquoaisrdquo todos eles dirigidos a estes dois grupos e de forma ousada e profeacutetica nesta seccedilatildeo chama-os ora de ldquohipoacutecritasrdquo ora de ldquoguias cegosrdquo de ldquoinsensatosrdquo e de ldquosepulcros caiadosrdquo predomina o adjetivo hipoacutecrita

Evidentemente Jesus natildeo age desta forma manifestando oacutedio para com eles mas fazendo uma catequese para que eles pudessem entrar na dinacircmica da conversatildeo e consequentemente do Reino de Deus na novidade do que ele representava jaacute que o rosto de Deus que eles mani-festavam contradizia frontalmente o Deus que Jesus representava

Do conjunto da coletacircnea de advertecircncias contra escribas e fariseus o termo mais usado eacute hipocrisia por ser uma atitude do sistema religioso que eles representavam fechando-se no seu prestiacutegio e poder julgavam-se justos e santos e disto os Evangelhos datildeo conta (Cf o ex da cena do fariseu e do publicano ndash Lc 18 9-14 a questatildeo do jejum em Mc 218ss) No sistema por eles defendido o que prevalecia de fato eram os ritos externos a formalidade

Com suporte no texto aqui referenciado destaco o versiacuteculo 23 citando-o ldquoAi de voacutes escribas e fariseus hipoacutecritas que pagais o dizimo da hortelatilde da erva-doce e do cominho enquanto descuidais o que haacute de mais grave na lei a justiccedila a misericoacuterdia e a fidelidade eacute isto que era preciso fazer sem omitir aquilordquo

A referecircncia eacute muito clara e natildeo precisa de grandes comentaacuterios acadecircmicos ndash os interlocutores de Jesus como jaacute se sabe viviam da exterioridade da formalidade do cumprimento da lei amplamente denunciado neste capiacutetulo de Mateus Na sequumlecircncia Jesus daacute um ensinamento novo como origem tambeacutem em suas praacuteticas por exemplo confraternizando-se com pessoas impuras como eram os publicanos e pecadores (Mc 2 15-17) tocar em leprosos comer sem lavar as matildeos tocar em cadaacutever e isto evidentemente tornava Jesus na concepccedilatildeo da eacutepoca uma pessoa impura pelo contato com estes pecadores e isto impedia a presenccedila de Deus

Agora vamos puxar a reflexatildeo construindo uma ponte entre a abordagem ateacute aqui desenvolvida e o nosso tempo prefiro proceder assim em primeiro lugar fazendo duas perguntas para vocecirc caro leitor existe algo parecido hoje em dia

Por gentileza interessante natildeo fazer uma interpretaccedilatildeo fundamenta-lista mas levar em consideraccedilatildeo a formalidade as questotildees de visibilidade

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

132

que a Igreja tem hoje por meio de grandes eventos de massa da miacutedia catoacutelica do estilo neopentecostal e a outra indagaccedilatildeo como estaacute sendo considerada a praacutetica da misericoacuterdia ndash a praacutetica da justiccedila e da fidelidade no seguimento de Jesus Cristo Seraacute que estamos na linha da exterioridade e sem esquecer isto estamos deletando a justiccedila da praacutetica de nossos grupos paroacutequias e idem com a misericoacuterdia e a fidelidade

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira eacute padre da Arquidiocese de Fortaleza

Diretor e Professor da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza - FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

133

A TEOLOGIA DE TIAGO FEacute EM ACcedilAtildeO

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier

Resumo A Epiacutestola de Tiago apresenta ensinos praacuteticos e eacuteticos para a vida cristatilde da mesma maneira como o proacuteprio Jesus mostrou que a feacute deveria vir acompanhada de atitudes Poreacutem alguns estudiosos biacuteblicos levantaram criacuteticas agrave epiacutestola de Tiago como se essa fosse contraacuteria agrave justificaccedilatildeo pela feacute Nesse artigo demonstra-se que a feacute e as obras natildeo se contrapotildeem na epiacutestola de Tiago sendo necessaacuterio compreender o contexto da mesma e sua importacircncia para os cristatildeos nos dias de hoje

Palavras-chave Tiago Conduta Cristatilde Feacute e Praacutetica

Abstract The Epistle of James has practical and ethical teachings for the Christian life just as Jesus himself showed that faith should be accompanied by actions However some scholars have raised criticism of the Epistle of James as if this was contrary to the justification by faith In this paper we show that faith and works are not opposed in the Epistle of James it is necessary to understand the context of the same and its importance for Christians today

Keywords James Christian Conduct Faith and Practice Introduccedilatildeo

A epiacutestola de Tiago difere das outras epiacutestolas do Novo Testamento pelo seu estilo conteuacutedo e apresentaccedilatildeo Tiago trata de religiatildeo praacutetica de eacutetica de solidariedade de religiatildeo vivencial A epiacutestola exatamente como Hebreus eacute mais um sermatildeo que uma carta propriamente dita Eacute um sermatildeo ou um ensino ou um tratado e ldquoas indicaccedilotildees satildeo de que foi o primeiro de todos os documentos escritos do Novo Testamentordquo (BAXTER 1989 p 309) O livro foi escrito aproximadamente entre 10 a 15 anos apoacutes a morte de Jesus (SHIDD BIZERRA 2010 p 7) Francis Nichol (1995 p 516) diz que natildeo haacute uma maneira segura para determinar a data da epiacutestola mas aponta a possibilidade da mesma ter sido escrita apoacutes o ano 44 dC

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

134

Neste artigo apresenta-se um panorama da teologia de Tiago com vistas a demonstrar como a feacute pode e deve ser praticada em atos e pala-vras em conformidade com a doutrina de Cristo

Sobre o autor

A Carta de Tiago jaacute provocou muitas discussotildees na histoacuteria da Teologia Uma das principais estaacute relacionada com o seu autor O prefaacutecio indica que o autor foi Tiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo (Tg 11) Mas no Novo Testamento haacute cinco homens chamados Tiago O primeiro eacute o pai de Judas (Lc 616) O segundo eacute um disciacutepulo filho de Alfeu (Mt 103) Este Tiago eacute o irmatildeo de Mateus (Mt 99 e Mc 214) O terceiro eacute chamado Tiago menor (Mc 1540) Talvez fosse chamado ldquomenorrdquo por causa do seu tamanho ou como substituto de Juacutenior (haacute pais que gostam de colocar seus nomes nos filhos) O quarto eacute o irmatildeo de Joatildeo e filho de Zebedeu (Mt 102) Este eacute o que os espanhoacuteis gostam de dizer que eacute o Tiago de Compostela Mas esse foi morto no iniacutecio dos anos quarenta conforme Atos 122 O quinto eacute chamado de ldquoirmatildeo do Senhorrdquo (Gl 119) Jesus possuiacutea um irmatildeo com este nome como aparece em Mateus 1355 Poreacutem apenas dois desses foram apresentados como possiacuteveis autores desta epiacutestola ndash Tiago filho de Zebedeu e Tiago o irmatildeo do Senhor

O primeiro eacute um candidato improvaacutevel Sofreu o martiacuterio em 44 AD e natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que ocupasse posiccedilatildeo de lideranccedila na igreja que lhe desse a autoridade de escrever esta carta geral Embora Isidoro de Sevilha e Dante achassem que ele foi o autor do livro esta identidade natildeo tem sido largamente aceita em nenhum periacuteodo da igreja A opiniatildeo tradicional identifica o autor como sendo Tiago o irmatildeo do Senhor A semelhanccedila da linguagem da epiacutestola com as palavras de Tiago em Atos 15 a forte dependecircncia do escritor da tradiccedilatildeo judia e a consistecircncia do conteuacutedo de sua carta com as notiacutecias histoacutericas que o Novo Testamento daacute em relaccedilatildeo a Tiago o irmatildeo do Senhor tudo tende a apoiar a autoria tradicional (PFEIFER HARRISON 1983 p 325)

Assim pode-se inferir que o autor da epiacutestola seja Tiago irmatildeo de Jesus

Criacuteticas agrave carta de Tiago

Esta epiacutestola tem sido alvo de criacuteticas e comentaacuterios injustos desde o iniacutecio do movimento protestante com Martinho Lutero (1522)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

135

Preocupado em afirmar a doutrina da justificaccedilatildeo pela feacute Lutero foi duro com a carta de Tiago Chamou-a de ldquoepiacutestola de palhardquo (eyne rechte stroerne Epistel) por causa de seu entendimento equivocado do capiacutetulo 2 versos 14 a 16 onde presumiu haver o ensino de justificaccedilatildeo pelas obras (STOTT 1996 p 18) Este pensamento errocircneo de Lutero ainda permanece em muitas mentes Mas deve ser entendido dentro do contexto em que as palavras dele foram proferidas Elas constam de seu prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo da Biacuteblia Alematilde onde ele se expressa sobre os livros que mais mostram a pessoa de Cristo Apoacutes nomeaacute-los disse Lutero ldquoPor isso a epiacutestola de Satildeo Tiago eacute uma epiacutestola bem insiacutepida (eyne rechte stroerne Epistel) se comparada agraves demais [] (LUTERO 1997 p 81)

Este reformador mais tarde modificou sua posiccedilatildeo Assim se expressou Lutero conforme nos diz George (1986 p 371) ldquoQuando Satildeo Tiago e Paulo dizem que um homem eacute justificado pelas obras eles estatildeo combatendo a noccedilatildeo errocircnea daqueles que pensam que a feacute sem obras eacute suficienterdquo

Outro que pode ser considerado injusto com Tiago eacute Champlin (1991 p 536) quando diz que ldquoA epiacutestola de Tiago certamente eacute um documento que representa o cristianismo judaico e natildeo erramos por dizer representa o cristianismo legalistaldquo

Paulo e Tiago

Muitas das criacuteticas se devem agrave aparente contradiccedilatildeo entre Tiago e Paulo no assunto ldquofeacute e obrasrdquo (KUMMEL 1975 p 414-41) Kuumlmmel lista cinco aparentes contradiccedilotildees A mais famosa declaraccedilatildeo de Tiago ldquoa feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) gerou discussatildeo nos primoacuterdios da Reforma Lutero natildeo conseguia conciliar esta declaraccedilatildeo com o que Paulo escreveu ldquoConcluiacutemos pois que o homem eacute justificado pela feacute independente de obras da leirdquo (Rm 328) Especialmente outra declaraccedilatildeo de Tiago estaacute em aparente oposiccedilatildeo ao ensino de Paulo ldquoVerificais que uma pessoa eacute justificada por obras e natildeo por feacute somenterdquo (Tg 224) O curioso eacute que os dois apoacutestolos tardios (isto eacute que natildeo estavam entre os doze) utilizam o mesmo personagem biacuteblico (Abraatildeo) para defender posiccedilotildees aparentemente contraditoacuterias Paulo diz ldquoQue pois diremos ter alcanccedilado Abraatildeo nosso pai segundo a carne Porque se Abraatildeo foi justificado por obras tem de que se gloriar poreacutem natildeo diante de Deus Pois que diz a Escritura Abraatildeo creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo (Rm 41-3) Tiago em contrapartida diz ldquoNatildeo foi por obras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

136

que Abraatildeo o nosso pai foi justificado quando ofereceu sobre o altar o proacuteprio filho Isaquerdquo (Tg 221) Aqui haacute pelo menos uma contradiccedilatildeo verbal (LADD 1997 p 546 MORRIS 2003 p 379) mas seraacute que haacute uma contradiccedilatildeo teoloacutegica

Uma siacutentese da diferenccedila entre Paulo e Tiago dada por Mears (1993) poderaacute resolver essa questatildeo

Tiago eacute a mais praacutetica de todas as epiacutestolas e tem sido chamada ldquoGuia Praacutetico para a Vida e a Conduta Cristatilderdquo Eacute o livro de Proveacuterbios do Novo Testamento Estaacute repleto de preceitos morais Expotildee a eacutetica do Cristianismo Eacute cheio de figuras e metaacuteforas Seu estilo eacute muitas vezes bastante dramaacutetico Obriga a pensar realmente Hebreus apresenta doutrina Tiago apresenta obras Eles se completam num Cristianismo vital Natildeo haacute conflito entre Paulo e Tiago Soacute uma leitura superficial de ambos levaria a essa conclusatildeo Paulo diz ldquoRecebam o Evangelhordquo Tiago diz ldquoVivam o Evangelhordquo Paulo viu Cristo no ceacuteu estabelecendo a nossa justiccedila Tiago viu-o na terra dizendo-nos que sejamos perfeitos como eacute perfeito o seu Pai que estaacute no ceacuteu Paulo deteacutem-se na fonte da nossa feacute Tiago fala do fruto da nossa feacute Eacute preciso natildeo soacute crer mas viver Ainda que Paulo saliente a justificaccedilatildeo pela feacute vemos em suas epiacutestolas especialmente em Tito que ele daacute grande realce agraves boas obras (1 Tm 618) enquanto Tiago fala em ser ricos em feacute (25) Conveacutem notar tambeacutem que quando Tiago parece menosprezar a feacute ele estaacute-se referindo a uma simples crenccedila intelectual e natildeo agrave ldquofeacute salvadorardquo que eacute tatildeo essencial Tiago exalta a feacute Ele diz que a prova dela opera a paciecircncia Sua carta comeccedila e termina com um forte estiacutemulo agrave feacute (16 514-18) Ele denuncia a feacute espuacuteria que natildeo produz obras (MEARS 1993 p 511-512)

Uma siacutentese menor seria

Paulo responde a pergunta Sob que condiccedilatildeo ou condiccedilotildees um pecador pode ser justificado diante de Deus Sua resposta eacute Sob a condiccedilatildeo da feacute a confianccedila de todo coraccedilatildeo em Cristo como Salvador Tiago contesta a pergunta Que classe de feacute salvaraacute a um homem Sua resposta eacute Nenhuma feacute ou credo somente nem sinceramente a crenccedila em Deus como uacutenico mas uma feacute que produz vida reta (CONNER 1951 p 221)

O resumo de Tiago sobre a feacute inoperante eacute ldquoporque assim como o corpo sem espiacuterito eacute morto assim tambeacutem a feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) Foi deste modo que Calvino resolveu a questatildeo O Reformador de Genebra natildeo viu contradiccedilatildeo entre Paulo e Tiago pois entendeu que Tiago falava de uma feacute falsa ldquoPois transparece desde as primeiras palavras que ele fala de uma falsa profissatildeo de feacute pois ele natildeo comeccedila assim lsquose algueacutem tem feacutersquo mas lsquose algueacutem diz que tem feacuterdquo (CALVIN

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

137

1998 Tg 2-14) Calvino portanto natildeo teve a mesma duacutevida de Lutero mas compreendeu o sentido especiacutefico e claro a que Tiago se referia

Os grandes temas de Tiago

O caraacuteter cristatildeo eacute o tema central da epiacutestola Tiago nada fala do Espiacuterito Santo nem mesmo da doutrina da salvaccedilatildeo O autor natildeo trata de doutrinas mas de conduta Natildeo haacute menccedilatildeo alguma a Missotildees Batismo Santa Ceia Cruz e suas implicaccedilotildees A epiacutestola eacute predominantemente eacutetica Dentre os muitos assuntos tratados por Tiago podemos destacar os seguintes

Provas e tentaccedilotildees

A carta dirige-se especialmente aos judeus cristatildeos que viviam entre gentios fora dos limites da Palestina e que sofriam devido as suas convicccedilotildees religiosas (MARTIN 1998)

Tiago escreveu ldquoMeus irmatildeos tende por motivo de toda alegria o passardes por vaacuterias provaccedilotildeesrdquo (Tg 12) Ele completa ldquoBem-aventurado o homem que suporta com perseveranccedila a provaccedilatildeo porque depois de ter sido aprovado receberaacute a coroa da vida a qual o Senhor prometeu aos que o amamrdquo (Tg 112) Soacute a recompensa eterna compensa os sofrimentos desta vida e o cristatildeo deve olhar para aquele dia futuro quando receberaacute o galardatildeo em troca das vicissitudes e isto deve fazer com que se alegre no presente seacuteculo ainda que seja pobre e necessitado

A palavra ldquotentaccedilatildeordquo eacute usada num sentido mais amplo incluindo perseguiccedilotildees externas e solicitaccedilotildees internas ao mal Tiago ensina aos leitores como transformar a tentaccedilatildeo em becircnccedilatildeo fazendo dela uma fonte de paciecircncia e usando-a como o fogo que prova o ouro (PEARLMAN 1997 p 319)

A esse respeito o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia define ldquoTentaccedilotildees (gr Peirasmos) significa provaccedilotildees com um propoacutesito e efeito beneacuteficos ou sejam provaccedilotildees ou tentaccedilotildees divinamente permitidas ou enviadasrdquo (SHEDD 1979 p 1388)

A ecircnfase eacute que a tentaccedilatildeo em si natildeo vem de Deus ldquoNingueacutem ao ser tentado diga Sou tentado por Deus porque Deus natildeo pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo a ningueacutem tentardquo (Tg 113) O verdadeiro instrumento da tentaccedilatildeo segundo Tiago eacute a cobiccedila (Tg 114) Ele diz ldquoEntatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute aacute luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morterdquo (Tg 115) A antropologia de

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

138

Tiago estaacute em perfeita harmonia com o Antigo Testamento e com os demais escritos do Novo Testamento Deus natildeo eacute o autor do mal O pecado surge no ser humano e gera morte O fato de Tiago natildeo mencionar Satanaacutes como tentador natildeo significa que ele natildeo julgasse importante no processo da tentaccedilatildeo e do pecado (Tg 47)

Tiago expotildee como a feacute verdadeira reage em meio aos sofrimentos decorrentes das provaccedilotildees e das tentaccedilotildees A feacute verdadeira gera alegria nas provaccedilotildees e eacute fortalecida em Deus nas tentaccedilotildees

Feacute e obediecircncia

A feacute verdadeira segundo Tiago eacute aquela que implica em obediecircn-cia ou seja a praacutetica da Palavra Ele diz ldquoPortanto despojando-vos de toda impureza e acuacutemulo de maldade acolhei com mansidatildeo a palavra em voacutes implantada a qual eacute poderosa para salvar vossa alma Tornai-vos pois praticantes da palavra e natildeo somente ouvintes enganando-vos a voacutes mesmosrdquo (Tg 12122)

Haacute um eco entre estas palavras e as que Jesus proferiu no final do sermatildeo do monte que compara o ouvir sem praticar a palavra como uma atitude de construir uma casa sobre a areia (Mt 724-27) Ouvir sem praticar eacute como se olhar num espelho e esquecer-se de como se eacute Os espelhos eram de bronze e refletiam mal a imagem da pessoa aleacutem de serem raros Uma pessoa pobre passava meses sem se ver ao espelho Quem ouve e pratica seraacute bem-aventurado (Tg 125) Natildeo praticar a Palavra de Deus eacute um ato de auto-engano pois a proacutepria pessoa seraacute a uacutenica prejudicada A feacute verdadeira eacute a que demonstra a Palavra de Deus na praacutetica A guarda da liacutengua

Tiago preocupado com a questatildeo da liacutengua no sentido de ldquofalar o que natildeo se deverdquo antecipa um pouco do que vai dizer adiante ldquoSe algueacutem supotildee ser religioso deixando de se refrear a liacutengua antes enganando o proacuteprio coraccedilatildeo a sua religiatildeo eacute vatilderdquo (Tg 126) Esclarece o que entende ser a verdadeira religiatildeo ldquoA religiatildeo pura e sem maacutecula para com o nosso Deus e Pai eacute essa visitar os oacuterfatildeos e as viuacutevas nas suas atribulaccedilotildees e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundordquo (Tg 127)

Com o objetivo de exemplificar de modo praacutetico o que considera uma feacute em accedilatildeo Tiago trata sobre o problema da liacutengua Agora ele tem em mente os mestres pois fala sobre o perigo de algueacutem utilizar a liacutengua

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

139

de modo errado neste sentido (Tg 31-12) Do mesmo modo expotildee sobre as dissensotildees dentro da comunidade como algo contraacuterio aacute feacute (Tg 313-18) Trata novamente sobre a cobiccedila (Tg 41-3) da vida mundana e da necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 44-10) Enfatiza os relacionamentos pessoais na igreja e na necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 411-17) A feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica de obras eacute uma feacute em accedilatildeo

Natildeo fazer acepccedilatildeo

Tiago analisa a incompatibilidade de algueacutem crer em Jesus e fazer acepccedilatildeo de pessoas

Meus irmatildeos natildeo tenhais a feacute em nosso Senhor Jesus Cristo Senhor da gloacuteria em acepccedilatildeo de pessoas Se portanto entrar na vossa sinagoga algum homem com aneacuteis de ouro nos dedos em trajos de luxo e entrar tambeacutem algum pobre andrajoso e tratardes com deferecircncia o que tecircm trajos de luxo e lhe disserdes Tu assenta-te aqui em lugar de honra e disserdes pobre Tu fica ali em peacute natildeo fizestes distinccedilatildeo entre voacutes mesmos e natildeo vos tornastes juiacutezes tomados de perversos pensamentos (Tg 21-4)

Apesar da maioria dos crentes para os quais Tiago ensinava ser de classe baixa parece que eles como eacute proacuteprio agraves vezes dos pobres tratavam bem os ricos e mal os pobres Tiago diz que isto eacute uma feacute incoerente No texto ele fala da ldquosinagogardquo e natildeo da igreja o que evidencia o aspecto judaico da carta e aponta para sua antiguidade Para Tiago fazer acepccedilatildeo de pessoas eacute quebrar a lei (Tg 2 9-10) A questatildeo polecircmica da carta

Jaacute tratamos disto em momentos anteriores e podemos deixar de emitir mais consideraccedilotildees Vamos apenas acrescentar isto a preocupaccedilatildeo de Tiago eacute primariamente praacutetica (CARBALLOSA 1994 p 70) e parece oacutebvio que ele respondia a algum tipo de questionamento antinomista pois rebatia a crenccedila de que uma pessoa pode ser salva sem que demonstre qualquer mudanccedila de vida

Por isso ele diz que no caso de Abraatildeo ldquofoi pelas obras que a feacute se consumourdquo (Tg 222) Paulo por outro lado estaacute respondendo a outro tipo de questionamento Ele combate a noccedilatildeo judaica daqueles dias de que uma pessoa era salva pela feacute e pelas obras como se as obras natildeo fossem apenas uma evidecircncia da feacute mas um instrumento real de salvaccedilatildeo Eacute oacutebvio que se algueacutem lhe dissesse que uma pessoa pode ser salva sem experimentar uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

140

transformaccedilatildeo Paulo certamente responderia ldquonatildeordquo pois embora sejamos salvos pela graccedila Deus tem preparado uma vida de boas obras para que andemos nelas (Ef 28-10) Ellen G White (1892) declarou que ldquoas boas obras se seguiratildeo como as floraccedilotildees e frutos da feacute A apropriaccedilatildeo da justiccedila de Cristo seraacute manifestada numa vida bem ordenada e na conversaccedilatildeo santardquo

Do mesmo modo se perguntassem a Tiago se a lei precisa ser obedecida para que algueacutem seja salvo como um meio de completar a feacute certamente ele diria que somos salvos pela feacute e que as obras satildeo apenas a evidecircncia de que ela existe Natildeo haacute contradiccedilatildeo teoloacutegica entre Paulo e Tiago suas respostas aparentemente divergentes explicam a razatildeo dos propoacutesitos de cada autor Assim a Reforma Protestante resolve o conflito quando declara ldquoEacute a feacute que salva sozinha mas a feacute que salva nunca estaacute sozinhardquo

Denuacutencia contra os ricos

ldquoPaciecircnciardquo eacute a palavra chave para resumir o ensino do capiacutetulo 51-6 sendo um dos temas predominantes de toda a carta de Tiago ldquoEvidentemente muitas das pessoas humildes dentre os judeus cristatildeos estavam sendo oprimidos pelos ricos e seus salaacuterios eram retidos com fraude (54)rdquo (MEARS 1993 p 517-518) Os cristatildeos pobres daqueles dias deveriam ter paciecircncia e esperar o momento da libertaccedilatildeo que viria de Deus e viver na praacutetica a feacute que salva

Sobre a denuacutencia de Tiago contra os ricos assim se expressa o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia ldquoEsta seccedilatildeo apresenta uma severa denuacutencia contra os ricos que tecircm granjeado prosperidade mediante opressatildeo Os tais satildeo condenados natildeo por serem ricos mas porque suas riquezas foram mal adquiridas permanecendo sobre elas as marcas da corrupccedilatildeordquo (SHEDD 1979 p 1388)

Jaacute o Comentaacuterio Biacuteblico Adventista por sua vez esclarece ldquoO contexto imediato implica que os ldquoricosrdquo satildeo exemplos notaacuteveis de quem tecircm muitas oportunidades para fazer o bem mas evitam fazecirc-lo Estes ldquoricosrdquo podem ser ou natildeo membros da igrejardquo (NICHOL 1995 p 553)

A mensagem de Tiago era evidente para seus leitores ldquoos opressores ainda pagaratildeo por tudo o que tecircm feitordquo Mas o povo de Deus deveria ser paciente pois natildeo haacute como antecipar o juiacutezo de Deus ldquoSede pois irmatildeos pacientes ateacute a vinda do Senhor Eis que o lavrador aguarda com paciecircncia o precioso fruto da terra ateacute receber as primeiras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

141

e as uacuteltimas chuvas Sede voacutes tambeacutem pacientes e fortalecei o vosso coraccedilatildeo pois a vinda do Senhor estaacute proacuteximardquo (Tg 578)

As chuvas do fim do outono e do comeccedilo da primavera que datildeo condiccedilotildees agrave terra de produzir natildeo podem ser antecipadas por causa do desejo ou da ira do homem Elas vecircm no tempo certo Resta ao lavrador esperar que a chuva venha e de nada adiantaraacute ele se agitar se irar ou fazer qualquer outra coisa pois seraacute apenas perda de tempo de energia e mais acuacutemulo de sofrimento Como o agricultor tem certeza de que a chuva viraacute ele deve descansar pois deve ter uma esperanccedila confiante Do mesmo modo o cristatildeo sabe que Jesus voltaraacute e ainda que ele natildeo saiba quando deve esperar confiantemente pois Jesus viraacute

Julgamentos precipitados

Tiago orienta os crentes a se absterem de julgamentos precipitados ldquoIrmatildeos natildeo vos queixeis uns dos outros para natildeo serdes julgados Eis que o juiz estaacute agraves portasrdquo (Tg 59) Natildeo eacute totalmente certo se ele fala em relaccedilatildeo aos proacuteprios crentes ou se o assunto ainda satildeo os iacutempios que os oprimem mas eacute bastante plausiacutevel que estes uacuteltimos estejam em foco Do mesmo modo que os crentes do Antigo Testamento foram pacientes em meio ao sofrimento os cristatildeos deveriam ser agora ldquoIrmatildeos tomai por modelo no sofrimento e na paciecircncia os profetas os quais falaram em nome do Senhor Eis que temos por felizes os que perseveram firmes Tendes ouvido da paciecircncia de Joacute e vistes que fim o Senhor lhe deu porque o Senhor eacute cheio de terna misericoacuterdia e compassivordquo (Tg 51011)

A paciecircncia dos santos do passado especialmente o mais conhecido de todos neste sentido Joacute eacute evocada como exemplo de que o Senhor faz justiccedila aos seus Tiago natildeo entende que os cristatildeos devem demonstrar uma paciecircncia moacuterbida mas insiste que eles tecircm em suas matildeos uma arma poderosa a oraccedilatildeo Ele diz ldquoEstaacute algueacutem entre voacutes sofrendo Faccedila oraccedilatildeordquo (Tg 513) A oraccedilatildeo eacute o instrumento dos crentes em meio a tribulaccedilatildeo A oraccedilatildeo pode trazer cura (Tg 515) e perdatildeo (Tg 516) Para comprovar que a oraccedilatildeo tem muito poder Tiago cita Elias reconhecido como um dos profetas mais poderosos ldquoElias era homem semelhante a noacutes sujeito aos mesmos sentimentos e orou com muita insistecircncia para que natildeo chovesse sobre a terra e por trecircs anos e seis meses natildeo choveu E orou de novo e o ceacuteu deu chuva e a terra fez germinar seus frutosrdquo (Tg 51718)

Tiago enfatiza que Elias era um homem sujeito aos mesmos sofrimentos e limitaccedilotildees que os seus leitores mas pela oraccedilatildeo realizou

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

142

feitos formidaacuteveis Os crentes devem ter paciecircncia orar pois Deus pode mudar as situaccedilotildees dramaacuteticas por intermeacutedio da oraccedilatildeo As uacuteltimas palavras de Tiago satildeo um lembrete aos crentes de que devem se preocupar com os desviados dos caminhos de Deus (Tg 51920)

Haacute outros temas mais mas a relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus (que seraacute apresentada a seguir) poderaacute completar aleacutem de recordar alguns pontos jaacute tratados

A relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus

Tiago pode natildeo ter o brilho intelectual de Paulo mas seu conteuacutedo em nada difere do que o Salvador ensinou E dos apoacutestolos ele foi o que mais tempo viveu com Jesus Pelo menos a infacircncia e a adolescecircncia dos dois foram juntas O ensinamento de Jesus pode ser visto em toda a epiacutestola de Tiago

1 O cristatildeo que sofre provaccedilotildees eacute abenccediloado Tiago 12 e Mateus 510-12

2 Deus deseja que sejamos perfeitos Tiago 14 e Mateus 548

3 Ele daacute generosamente aos que lhe pedem Tiago 15 e 42 Mateus 77-8

4 Mas somente o Pai tem poder para dar boas daacutedivas Tiago 117 e Mateus 79 -11

5 E neste caso ele daacute somente aos quem tecircm feacute Tiago 16 e Marcos 11 22-24

6 Devemos natildeo apenas ouvir a palavra Mas praticaacute-la Tiago 122-25 e Mateus 7 21-27

7 Devemos tomar cuidado com as riquezas porque os pobres eacute que herdam o reino de Deus Tiago 25 e Mateus 53 Lucas 620

8 Devemos amar o proacuteximo como a noacutes mesmos Tiago 28 e Marcos 1231

9 Devemos guardar os mandamentos Tiago 210 e Mateus 519

10 Devemos mostrar misericoacuterdia para recebermos misericoacuterdia Tiago 213 e Mateus 57 1833-35

11 Eacute a aacutervore que determina o fruto Tiago 312 e Mateus 715-20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

143

12 Os pacificadores seratildeo abenccediloados Tiago 318 e Mateus 59

13 Natildeo eacute possiacutevel servir a dois senhores Cada um deve escolher entre Deus e o dinheiro Tiago 44 413-15 e Mateus 624

14 Quem se humilha seraacute exaltado Tiago 46 e 10 e Lucas 1814 Comparar isto com Tiago 19-10 e Lucas 152

15 Natildeo devemos falar mal uns dou outros ou julgar uns aos outros Tiago 412 e Mateus 71

16 Natildeo devemos elaborar planos gananciosos e mundanos para obter ganhos esquecendo-nos de Deus ou do proacuteximo Tiago 413-17 e Lucas 1216-21

17 As riquezas natildeo duram Elas se corroem as roupas satildeo consu-midas pelas traccedilas e o ouro fica embaccedilado com a ferrugem Tiago 51-3 e Mateus 619-21

18 Por isso ai dos ricos Tiago 51 e Lucas 624

19 Quem crecirc que espere pacientemente e esteja pronto para a vinda do Senhor pois ele estaacute perto agraves portas Tiago 57-9 e Lucas 1235-40 Marcos 1329

20 Os cristatildeos natildeo devem jurar nem pelo ceacuteu nem pela terra nem por qualquer outro meio de juramento Sua palavra deve ser confiaacutevel Seu sim deve ser sim e seu natildeo deve ser natildeo Suas palavras natildeo podem ter duplo sentido Tiago 512 e Mateus 533

Tiago reafirma Jesus como um homem com um ensino praacutetico e praticaacutevel O cristianismo eacute vida e natildeo sensaccedilotildees Vida correta com Deus que se evidencia em vida correta com os homens

Consideraccedilotildees finais

Percebe-se que a mensagem de Tiago eacute clara e simples Ele fala sobre a feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica pelas obras Esta feacute leva os crentes a suportarem todo tipo de sofrimento a demonstrarem a conversatildeo pelas boas obras e a esperarem em oraccedilatildeo pelo retorno de Jesus ou pela manifestaccedilatildeo libertadora de Deus

Mesmo simples a carta de Tiago eacute rica e teologicamente impor-tante de modo que natildeo concordamos com a ideia de Richardson (e de Lutero) de que eacute uma ldquoepiacutestola de palhardquo (RICHARDSON 1966 p 240

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

144

BACLAY 1974 p 16) em comparaccedilatildeo com a profunda solidez da Epiacutestola aos Romanos Ela ocupa um lugar importante no cacircnon e na Teologia do Novo Testamento responsaacutevel pela ampliaccedilatildeo do entendi-mento de um conceito essencial para a feacute do Novo Testamento o relacionamento entre feacute e obras

Termino deixando uma pergunta Se Tiago ocupasse o puacutelpito contemporacircneo que diria ele aos membros e liacutederes de nossas igrejas

Referecircncias Bibliograacuteficas

BACLAY W S I y II Pedro Buenos Aires Editorial La Aurora 1974

BAXTER S J Examinai as escrituras ndash atos a apocalipse Satildeo Paulo Ediccedilotildees vida Nova 1989

CALVIN J Commentary on the espistole of the James Albany Books for the Ages 1998

CARBALLOSA E L Tiago Una fe em accioacuten 6 ed Grand Rapids Editorial Portavoz 1994

CHAMPLIN R N Enciclopeacutedia de Biacuteblia teologia e filosofia v 6 Satildeo Paulo Editora e Distribuidora Candeia 1991

CONNER W T La fe del nuevo testamento Nashvill Casa Bautista de Publicaccedilotildees 1951

GEORGE T In ldquoA rigth strawy epistle reformation perspective on Jamesrdquo Louisville Review and Expositor ndash a baptist theological journal v LXXXIII n 3 1986

KUumlMMEL W G Introduction to the new testament Nashvill Abingdon Press 1975

LADD G E Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Exodus 1997

LUTERO Martinho Da liberdade do cristatildeo ndash prefaacutecio agrave Biacuteblia (Ediccedilatildeo Biliacutengue) Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo da Editora Unesp 1997

MARTIN R P Word biblical commentary v 48 James Dallas Texas Word Books Publisher 1998

MEARS H C Estudo panoracircmico da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida 1993

MORRIS Leon Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2003

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

145

NICHOL F D (ed) Comentario biblico adventista del septimo dia Tomo 7 Buenos Aires Asociacion Casa Editora Sudamericana 1995

PEARLMAN M Atraveacutes da Biacuteblia livro por livro Satildeo Paulo Vida 1997

PFEIFER F C HARRISON E F Comentaacuterio biacuteblico Moody v IV Satildeo Paulo Imprensa Batista Regular 1983

RICHARDSON Alan Introduccedilatildeo agrave teologia do novo testamento Satildeo Paulo ASTE 1966

SHEDD R P (ed) O novo comentaacuterio da Biacuteblia v III Satildeo Paulo Ediccedilotildees Vida Nova 1979

SHEDD R P BIZERRA E F Uma exposiccedilatildeo de Tiago a sabedoria de Deus Satildeo Paulo Shedd Publicaccedilotildees 2010

STOTT J Homens com uma mensagem Campinas Editora Cristatilde Unida 1996

WHITE E G Signs of the times 5 de setembro de 1892

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier Doutor em Teologia e professor nos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graducaccedilatildeo

do Seminaacuterio Adventista Latino Americano de Teologia ndash Cachoeira BA

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

146

A VOCACcedilAtildeO NAtildeO Eacute UMA ESCOLHA MAS UMA RESPOSTA

Ir Graccedila Disingakala Nunes

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo Tentativa de responder a trecircs questotildees fundamentais sobre a vocaccedilatildeo entendida como chamado de Deus valendo-se de muitos autores mas principalmente da contribuiccedilatildeo de Gianfranco Poli Natildeo vai certamente exaurir o assunto mas eacute uma chamada de atenccedilatildeo agraves escolas teoloacutegicas para que trabalhem este argumento de um modo mais aprofundado O tema pesquisado eacute a vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta Discorre-se entatildeo acerca de sua origem e significado o porquecirc de uma teologia da vocaccedilatildeo as caracteriacutesticas do chamado a relaccedilatildeo de intimidade com a pessoa de Jesus Cristo a resposta incondicional do homem Evidenciam-se tambeacutem os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde o discernimento as exigecircncias que o chamado comporta e de modo muito breve as dimensotildees que compotildeem fundamentalmente a resposta do homem e as consideraccedilotildees finais Toda essa dinacircmica eacute realizada mediante uma relaccedilatildeo dialogal entre as duas liberdades a de Deus que chama e a do homem que responde

Palavras-chave Deus-Trindade Vocaccedilatildeo ou Chamado Homem Encontro Igreja

Riassunto Questo articolo egrave un tentativo di rispondere a ter domande fondamentali sulla vocazione intesa come chiamata di Dio servendosi di tanti autori ma sopratutto dela contribuizione di Gianfranco Poli Non va sicuramente esaurire lrsquoassunto ma visa a scuotere lrsquoattenzione dele scuole teologiche percheacute lavorino la questione vocazione in modo piugrave profondo Il tema svolto egrave la vocazione non `e una scelta ma una risposta Si sviluppa quindi sua origine e significato il perchegrave di una teologia dela vocazione le caratteristiche della chiamata la relazione di intimitagrave com la persona di Cristo Gesugrave la risposta incondizionata dellrsquouomo Sono noti anche gli elementi centrali dela vocazione cristiana il discernimento le esigenze che la chiamata di Dio comporta e si fa cenno alle dimensioni che essenzialmente compongono la risposta dellrsquouomo e per ultimo le considerazioni finali Tutta la dinamica egrave svolta attraverso una relazione dialogica tra le due libertagrave di Dio che chiama e dellrsquouomo che risponde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

147

Parole chiavi Dio-Trinitagrave Vocazione o Chiamata Uomo Incontro Chiesa

1 Introduccedilatildeo

Haacute no Brasil e no mundo muitos escritos sobre vocaccedilatildeo mas falta uma teologia da vocaccedilatildeo ldquoFalta ainda um estudo sistemaacuteticordquo deste argumento Haacute pouco interesse nas escolas teoloacutegicas e entre os teoacutelogos no sentido de aprofundar este assunto1 A ausecircncia de fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica das vocaccedilotildees eacute negativa enquanto a praacutexis permanece sem fundamentaccedilatildeo conforme constatou Joseacute Lisboa Moreira de Oliveira na sua Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo2 Eacute tatildeo verdade o fato de o tema vocaccedilatildeo carecer de estudo sistemaacutetico que outros autores fazem esta constataccedilatildeo Exemplo Gianfranco Poli na sua exposiccedilatildeo sobre o assunto Tra vocazione e domanda di senso natildeo hesita em afirmar que a palavra vocaccedilatildeo eacute muitas vezes usada e repetidamente mas raramente se precisa o seu conteuacutedo

Advertimos para a necessidade natildeo soacute no Brasil mas tambeacutem no mundo de explicitar o que entendemos acerca de vocaccedilatildeo Para isso Gianfranco Poli trata a vocaccedilatildeo em trecircs momentos esclarecer o sujeito que chama colocar em realce os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde oferecer algumas indicaccedilotildees a respeito do homem que responde ou simplesmente eacute possiacutevel indicar estes trecircs momentos formulando trecircs perguntas quem chama A que coisa chama Em que modo se responde3

Eacute a essas perguntas que tentaremos responder com suporte na abordagem de Gianfranco Poli oferecendo ao assunto vocaccedilatildeo mais um subsiacutedio sem a pretensatildeo de exauri-lo

O tema eacute estruturado com uma introduccedilatildeo cinco partes e suas subdivisotildees Iordf parte Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo Por que teologia da vocaccedilatildeo Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo IIordf parte Dimensatildeo Trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde A vocaccedilatildeo do homem Quem chama Por que chama Para que chama Como chama IIIordf parte Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde Como saber que eacute Deus quem me chama A vocaccedilatildeo natildeo eacute 1 Cf DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992 nordm 244 2 OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996) p 22-31 3 Cf POLI Gianfranco ldquoLa cultura della vocazione tra vocazione e domanda di sensordquo in BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teologica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010 p 20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

148

uma escolha mas uma resposta Como responder Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees Consideraccedilotildees finais

2 Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo

Vocaccedilatildeo eacute um termo derivado do verbo latino vocare que significa chamar Vocaccedilatildeo eacute assim chamado convite apelo Eacute ato de chamar da parte de Deus eacute um estado de relaccedilatildeo entre Deus e o homem eacute diaacutelogo porque haacute atenccedilatildeo para com o outro Vocaccedilatildeo eacute encontro de duas liberdades a liberdade absoluta de Deus que chama e a liberdade do homem que responde Vocaccedilatildeo eacute um dom que exige resposta de feacute

Sendo um ato que brota do mais profundo do ser a vocaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com a inclinaccedilatildeo para exercer determinada profissatildeo ou um talento (aptidatildeo natural) para executar algo alguma atividade A vocaccedilatildeo eacute um chamado para amar eacute chamado ao serviccedilo (1Jo 47-21 Mc 1045) eacute a realizaccedilatildeo de um sonho

Na Biacuteblia vocaccedilatildeo estaacute em estreita relaccedilatildeo com eleiccedilatildeo e missatildeo4 Eleiccedilatildeo significa escolher um ou alguns entre tantos eacute uma predileccedilatildeo De tal maneira vocaccedilatildeo eacute um dom com o qual Deus preferiu a mim a vocecirc e natildeo a outro natildeo por merecimentos nossos mas por puro amor e em vista de uma missatildeo especiacutefica que a pessoa chamada vai desccedilo-brindo ao longo da sua vida visto que vocaccedilatildeo eacute um estado de relaccedilatildeo com Deus

21 Por que uma teologia da vocaccedilatildeo

A vocaccedilatildeo eacute um ato teoloacutegico e antropoloacutegico porque envolve Deus e o homem Eacute dom que vem do Alto iniciativa do Pai ldquoque atrai a Si uma criatura sua por um amor de predileccedilatildeo e em ordem a uma missatildeo especialrdquo5 Eacute Deus que no iacutentimo inspira agrave alma o desejo de abraccedilar o projeto de Deus seja no matrimocircnio como na vida consagrada O fato de Deus escolher algueacutem com amor de predileccedilatildeo no entanto natildeo obriga a pessoa escolhida porque sua eleiccedilatildeo se torna convite diante do qual ela eacute livre para responder sim ou natildeo Ao mesmo tempo poreacutem Deus tem um jeito todo particular de se aproximar do homem que quase

4 VOCACcedilAtildeO in CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997 5 Cf JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996 n 17

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

149

ningueacutem resiste em responder sim Acontece exatamente o que acentua Jeremias ldquoseduzistes-me Senhor e eu me deixei seduzirrdquo (cf Jr 207)

22 Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo

Pela sua natureza dialoacutegica a vocaccedilatildeo eacute relacional comunitaacuteria missionaacuteria e dinacircmica A origem de toda a vocaccedilatildeo estaacute na relaccedilatildeo com a Santiacutessima Trindade ()6 Soacute quem ficou seduzido (Jr 207) e permanece na intimidade (Os 216 1Ts 417 Jo 1724 1Pd 51) pode entender a beleza e a riqueza desta peacuterola preciosa

O diaacutelogo pessoal com Deus tambeacutem eacute comunitaacuterio nos dois sentidos de um lado acontece numa comunidade bem concreta (Mt 2531-46) de outro Deus chama mediante o ldquoclamorrdquo do povo que sofre (cf Ex 31-10 Jr 114-10) A vocaccedilatildeo eacute comunhatildeo com a Trindade que se traduz concretamente na experiecircncia de verdadeira irmandade Ela eacute comunicaccedilatildeo isto eacute vida de comunhatildeo e de participaccedilatildeo Responder ao chamado eacute inserir-se na vida da comunidade com uma missatildeo bem precisa tomar parte ativa na construccedilatildeo do Reino Vocaccedilatildeo natildeo eacute isolamento busca de satisfaccedilotildees de ldquorealizaccedilatildeo pessoalrdquo Natildeo eacute realizar ldquoprojetos pessoaisrdquo mas dar a vida pela defesa da vida (Jo 1011 1513)

3 Dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde

Desde o Concilio Vaticano II a vocaccedilatildeo eacute vista como chamado agrave comunhatildeo com o Pai pelo Filho no Espiacuterito Santo7 O segundo Congresso Internacional das vocaccedilotildees (Roma 1981) no seu documento conclusivo explicita de forma definitiva e muito clara esta dimensatildeo trinitaacuteria ldquoCada vocaccedilatildeo estaacute ligada ao desiacutegnio do Pai agrave missatildeo do Filho agrave obra do Espiacuterito Santo Cada vocaccedilatildeo eacute iluminada e fortalecida agrave luz do misteacuterio de Deusrdquo8

O Papa Bento XVI ressalta esta dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo quando afirma logo no iniacutecio de sua primeira mensagem vocacional que ldquoo Pai do ceacuteu nos escolheu pessoalmente para nos chamar a entrar em

6 CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla Satildeo Paulo Paulinas 2004 13 Ed nordm 212 7 Cf VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM Satildeo Paulo Paulinas 1999 13ordf Ed nordm 4 8 II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Vocacional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982 nordm 7

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

150

relaccedilatildeo filial com Ele por meio de Jesus Verbo feito carne sob a guia do Espiacuterito Santo9rdquo 31 A vocaccedilatildeo do homem

O homem existe porque Deus lhe dirigiu a palavra o chamou agrave existecircncia convocando-o para ser Seu interlocutor A vocaccedilatildeo eacute a palavra que Deus dirige ao homem e que o faz existir imprimindo nele a marca dialogal Se o homem foi criado pela conversaccedilatildeo com Deus e eacute assim aquele que eacute chamado a falar a expressar-se a comunicar-se a responder o tempo que tem a disposiccedilatildeo pode ser entendido como o tempo para realizar sua vocaccedilatildeo

Ora em que consiste a vocaccedilatildeo do homem senatildeo na sua plena realizaccedilatildeo no amor ao interno do princiacutepio dialoacutegico no qual foi criado com Deus como primeiro interlocutor ldquoVocaccedilatildeo entatildeo eacute um processo de maturaccedilatildeo de relaccedilotildees que culmina no amor a Cristo que eacute a plena realizaccedilatildeo do amor na sua pessoa10rdquo Em satildeo Paulo encontramos a confirmaccedilatildeo desta verdade ldquoqualquer coisa o homem faccedila fora do seu amor natildeo serve a nada aliaacutes eacute vatilde e esperdiacutecio de tempordquo (1Cor 13)

32 Quem chama

O sujeito e autor de todo o chamado eacute Deus Eacute preciso poreacutem entender por que Deus chama qual intenccedilatildeo O move de qual vontade eacute animado Um texto de Paulo aos Efeacutesios nos abre horizontes infinitos

Bendito seja Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que do alto do ceacuteu nos abenccediloou com toda a becircnccedilatildeo espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criaccedilatildeo do mundo para sermos santos e irrepreensiacuteveis diante de seus olhos No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo segundo o beneplaacutecito de sua livre vontade (Ef 13-5)

Nossa existecircncia tem raiz no coraccedilatildeo de Deus que nos desejou ldquofaccedilamos o homem agrave nossa imagem como nossa semelhanccedilardquo (Gn 1 26a) que desde a eternidade nos quis como ldquofilhos adotivosrdquo agrave imagem do seu Filho Jesus Existir eacute a primeira e fundamental vocaccedilatildeo do ser humano (cf Gn 27) As outras vocaccedilotildees dela decorrem e nela se sustentam Eacute o amor agrave

9 BENTO XVI A primeira mensagem vocacional in httpwwwportalcatolicoorgbr portala-primeira-mensagem-vocacional-de-bento-xvi Acesso em 040452015 10Cf RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000 p 21-22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

151

vida que possibilita se empenhar em tantas outras dimensotildees da existecircncia humana

33 Por que chama Os motivos do chamado

Vocaccedilatildeo eacute accedilatildeo de chamar por parte de Deus como sua iniciativa de amor corresponsaacutevel (Is 591 Jr 15 Rm 912 Gl 115 58) Deus chama porque ama (cf Dt 76-8 236 Jo 1516 Mc 312) Segundo a Biacuteblia missatildeo eacute o elemento central da vocaccedilatildeo11 Quando Deus chama algueacutem o faz para uma missatildeo a fim de fazer alguma coisa em funccedilatildeo de uma pessoa ou de uma comunidade A missatildeo eacute sempre um encargo

ldquoDeus criou-nos para compartilhar a sua proacutepria vida chama-nos para sermos seus filhos membros vivos do Corpo miacutestico de Cristo templos luminosos do Espiacuterito do Amor Chama-nos para ser ldquoseusrdquo quer que todos sejam santos12rdquo

Ante o chamado que Deus faz a cada um de noacutes eacute preciso ter coragem para deixar tudo se abandonar por inteiro ir aonde Ele mandar e fazer aquilo que Ele pedir Coragem eacute um dos passos mais importantes para um caminho vocacional bem-sucedido Eacute preciso ter coragem para entregar-se nas matildeos do bom oleiro e deixar-se moldar para enfrentar todas as tempestades do caminho todas as vicissitudes Coragem pra deixar tudo e dizer Sim a Deus

Natildeo temas ldquoCoragem Levanta-te ele te chamardquo (Mc 10 49) Ama-te e conta contigo para estabelecimento de um Reino de amor que jamais teraacute fim Amor eacute a origem e o fim de toda vocaccedilatildeo e o Deus que nos criou sem noacutes natildeo nos salva sem noacutes constata Santo Agostinho Somos chamados a colaborar no plano da salvaccedilatildeo Ele precisa do teu sim generoso e gratuito

34 Para que chama

A autoria de Deus sobre o chamado eacute contiacutenua Todos os dias Deus chama o homem para uma vida de relaccedilatildeo filial para elevaacute-lo agrave comunhatildeo com a Trindade

11wwwparoquiasaobeneditongorgbrblogp=1087 Acesso em 29102015 12JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iiptmessagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes _29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em em 29102015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

152

O uacutenico e mesmo Espiacuterito distribui seus dons a cada um conforme quer para que todo dom sem exceccedilatildeo seja para utilidade de todos para o bem da comunidade (cf 1Cor 127 11)Todo chamado eacute voltado para servir para dar sentido agrave proacutepria existecircncia doando-se

Ao se falar da vocaccedilatildeo a palavra sentido pode significar possibi-lidade e capacidade de siacutentese na proacutepria accedilatildeo cotidiana como tambeacutem abertura a um futuro em que o sentido da proacutepria vida seja menos contraditoacuterio ou contudo mais feliz e harmonioso Entatildeo a finalidade do chamado eacute de um movimento rotatoacuterio que tem como eixo Deus O ponto de partida e de chegada eacute Deus

Quanto mais o homem se relaciona com Deus mais se sente realizado e se torna capaz de doar-se sair de si e ir ao encontro do outro A realizaccedilatildeo de que se fala eacute no sentido de ser feliz do que se eacute e se faz Acreditamos ser esta a condiccedilatildeo de servir gratuitamente Assim sendo a vocaccedilatildeo visa em primeiro lugar agrave realizaccedilatildeo pessoal daquele que eacute chamado que busca um sentido da sua vida na descoberta do propoacutesito de Deus para si mediante o serviccedilo agrave comunidade de irmatildeos Na medida em que a pessoa se acha realizada em certa opccedilatildeo sente a exigecircncia de responder por via do serviccedilo E seraacute realmente um serviccedilo gratuito que natildeo espera outro em troca porque se sente bem servindo e o amor ao proacuteximo por sua vez eacute inseparaacutevel do amor a Deus A verdadeira felicidade estaacute em servirmos ao outro e a Deus 13

Sendo a vocaccedilatildeo antes de tudo um relacionamento com Jesus Cristo eacute inconcebiacutevel falar de uma vocaccedilatildeo cristatilde fora da Igreja pois eacute nela e por seu intermeacutedio que Cristo realiza e revela o proacuteprio misteacuterio como meta do desiacutegnio de Deus ldquoRecapitular tudo nelerdquo (Ef 110)

35 Como chama O modo

DeusndashPai nos chama pelo nome e sua voz chega ao homem em dois modos imediato e mediato Imediato Deus chama por meio de um desejo iacutentimo e profundo a inspiraccedilatildeo divina que impele para um estado de vida Costuma haver no mais iacutentimo da pessoa uma atraccedilatildeo essencial para formas de ser e de viver fundamentais por intermeacutedio do ambiente isto eacute das relaccedilotildees pessoais que vatildeo despertando o chamado por meio da histoacuteria pessoal (muito relevante) Mediato Deus fala pelas mediaccedilotildees Palavra escrita (e a falada) a vida de Cristo por meio da histoacuteria

13 httpformacaocancaonovacomdiversosa-vocacao-profissional Acesso em 05112015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

153

situaccedilotildees acontecimentos definidos sinais dos tempos e das pessoas (cf 1Sm 38-9)

Deus natildeo chama os homens do mesmo modo porque Ele chama por nome numa certa histoacuteria situaccedilatildeo cultura Nos relatos da Biacuteblia esta diferenccedila eacute notoacuteria algumas personagens satildeo demoradas em dizer sim e Deus tem paciecircncia e pelo diaacutelogo vai levando o chamado a uma resposta consciente como eacute o caso de Gedeatildeo (cf Jz 611-40) pois foi necessaacuterio trecircs vezes Deus prometer a sua presenccedila para se sentir seguro ao passo que natildeo foi assim com o disciacutepulo que pede para enterrar primeiro seu pai (Mt 821-22) a quem Jesus responde ldquoSegue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortosrdquo

Deus chama mediante Sua Palavra da natureza dos acontecimentos da histoacuteria significa que para escutaacute-Lo devemos estar atentos e cultivar uma atitude interior de silecircncio de escuta de meditaccedilatildeo de contemplaccedilatildeo No Novo Testamento a primeira accedilatildeo que Jesus desenvolveu no seu ministeacuterio de vida puacuteblica eacute uma ldquovocaccedilatildeordquo eacute a chamada de dois dos seus disciacutepulos Antes de tudo o chamado pede conversatildeo isto eacute seguir Jesus com o desejo de conformar-se agrave Sua pessoa

Nossa vocaccedilatildeo encontra jaacute a primeira revelaccedilatildeo no nome de cada um por isso Jesus chamaraacute Simatildeo de Pedro porque a sua missatildeo e a sua chamada seraacute aquela de ser rocha sobre a qual fundar a Igreja de Cristo Aleacutem disso os apoacutestolos satildeo chamados um a um e por nome para serem identificados na sua unicidade

4 Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde

Na Biacuteblia a vocaccedilatildeo eacute sempre de autoria do proacuteprio Deus que chama escolhe cada homem e mulher Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento o chamado pode se manifestar de modo mediato ou imediato

Segundo o esquema biacuteblico-literaacuterio satildeo elementos essenciais da vocaccedilatildeo iniciativa de Deus obediecircncia pela feacute temor e tremor investidura ou missatildeo Apesar de nem todas as caracteriacutesticas existirem em todas as vocaccedilotildees em todo tipo de vocaccedilatildeo haacute iniciativa de Deus o seguimento e a Missatildeo14

No Novo Testamento assim como no Velho Testamento a iniciativa de chamar algueacutem eacute sempre de Deus (Mt 99 101 Mc 1 1719-20 313 511 14 Cf Biacuteblia Sagrada Ediccedilatildeo da Famiacutelia Petroacutepolis Vozes 2005 p 1545

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

154

At 9 3-6) A iniciativa de Deus no entanto natildeo elimina nem substitui a resposta do homem jamais anula a participaccedilatildeo e a responsabilidade da pessoa chamada15 Natildeo eacute contudo por meio de uma manifestaccedilatildeo velada pela Palavra do Senhor nem da mediaccedilatildeo de outro homem que Deus age pois antes Ele atua na histoacuteria pessoalmente intermediado por Seu Filho que se fez carne (Jo 114)

Em ambos os Testamentos os escolhidos satildeo designados para uma missatildeo ldquoTal missatildeo eacute a participaccedilatildeo na compaixatildeo pastoral de Jesus ajudaacute-lo na sua missatildeo de serviccedilo agrave necessidade mais profunda das pessoasrdquo 16 Aquele que eacute chamado a seguir Jesus eacute convidado a ter aquilo que Satildeo Paulo pede aos filipenses isto eacute os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 25ss) que eacute a praacutetica da feacute esperanccedila e caridade ldquoNa vivecircncia dessas trecircs virtudes teologais se encontra a fundamental explicitaccedilatildeo da opccedilatildeo fundamental de seguir Cristo17rdquo

O esquema literaacuterio das narrativas vocacionais se repete em muitos casos no Antigo e no Novo Testamento chamado rejeiccedilatildeo ao chamado explicitaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo da missatildeo A novidade estaacute no Segundo Testamento que entende a vocaccedilatildeo agrave santidade e consagraccedilatildeo a Deus em relaccedilatildeo ao Espiacuterito Santo e Jesus

O singular do chamado no Novo Testamento eacute que todos satildeo realizados sob o signo da Nova Alianccedila isto eacute sob o signo da figura de Jesus Eles satildeo enviados e convidados a levar ao povo a presenccedila do proacuteprio Senhor18

A realizaccedilatildeo da vocaccedilatildeo de Jesus para o serviccedilo do Reino eacute expressa de modo claro em Lc 4 14-22 remir os presos recuperar a vista 15 MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro tostado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001 p 26 e 29 16 Cf PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991 p 400 17 Cf GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998 p 20 18 Alguns exemplos do chamado nos quais o aspecto missionaacuterio eacute evidente Abraatildeo e Sara chamados para formar um povo (Gn 121-9 Sb 105 At 7 2-3 e Hb 11 8) Moiseacutes a vocaccedilatildeo de um libertador (Ex 3 1-15 4 1-17 6 2-13 6 28-30 71-7 5) Isaiacuteas vocaccedilatildeo para denunciar e anunciar (Is 6 1-10) Maria vocaccedilatildeo para ser a matildee de Deus Apoacutestolos vocaccedilatildeo de propagar os ensinamentos de Jesus (Jo 135-394051 Lc 54-10 Lc 612-16 Mc 117-20 Mc 2 13-17 Mt 412-22 At 115-26) Paulo vocaccedilatildeo de continuar a missatildeo de Jesus ressuscitado (At 91-19 221-21 262-18) Jesus siacutentese da vocaccedilatildeo profeacutetica (Lc 4 14-22 Hb 51-10 Ap 1913 Jo 11-83036 314-19 331-34 4252634 442 530363843 62938-40 64450-5157 71628-2933 81618 11274252 1213273746-49 1424311521 16527 17468 171418212325 181137 19 2021-22)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

155

dos cegos restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graccedila do Senhor

41 Como saber que eacute Deus quem me chama

Vocaccedilatildeo eacute um chamado ao diaacutelogo com Deus em Jesus no Espiacuterito Santo Deus fala chama e pede ao homem de escutaacute-Lo (cf Mc 97) Escutar significa dar atenccedilatildeo ouvir e interiorizar o conteuacutedo da conversa interagir dar adesatildeo uma resposta Vocaccedilatildeo eacute um conhecer e deixar-se conhecer mediante o diaacutelogo com a Trindade Estes dois atos satildeo feitos simultacircnea e cotidianamente A vocaccedilatildeo nasce de um encontro pessoal com Cristo Deus-Amor nos chama em Cristo e o Espiacuterito Santo faz o homem participar desse amor do Pai Uma autecircntica experiecircncia de ser salvado pelo Senhor habilita a compreensatildeo de que eacute o Senhor que chama19

A descoberta da proacutepria vocaccedilatildeo eacute um processo que dura por toda a vida eacute um trabalho de elaboraccedilatildeo de si da proacutepria identidade um trabalho que exige atenccedilatildeo paciecircncia docilidade para acolher a palavra de Deus sensibilidade discernimento e tambeacutem a ajuda de um orientador ou diretor espiritual O chamado eacute entendido e decifrado com base numa ldquoexperiecircncia pessoal com Deusrdquo Nessa experiecircncia Ele revela o seu projeto para noacutes assim como fez com Moiseacutes (cf Ex3 4) e Pedro (Jo 2115-19)

42 A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta

O seguimento de Jesus Cristo comporta trecircs implicaccedilotildees encontro chamado e caminho O encontro suscita um desejo um deixar-se seduzir pelo amor O chamado sustenta esse desejo ou correspondecircncia e ainda este se desenvolve numa inquietaccedilatildeo constante sempre crescente ateacute responder E o caminho eacute o carisma ou a maneira de realizar esse projeto Estes trecircs passos se realizam numa simbiose vocacional surpreendente

Um olhar superficial dos relatos biacuteblicos sobre a vocaccedilatildeo pode levar-nos a concluir que vocaccedilatildeo eacute uma escolha pessoal iniciativa daquele que busca realizar suas inclinaccedilotildees mais profundas Uma anaacutelise mais percuciente no entanto nos desarma ao revelar que apesar de toda a nossa boa vontade e empenho pessoal num determinado chamado a nossa accedilatildeo natildeo passa de uma resposta agrave iniciativa de Deus que quis da nossa existecircncia e felicidade desde sempre (cf Jr 15)

19 Cf RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001 p 116 e 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

156

Nos Evangelhos Jesus chama a Si aqueles aos quais depois faraacute seus disciacutepulos ldquoNatildeo fostes voacutes que me escolhestes mas eu escolhi a voacutes e vos constitui para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneccedilardquo (Jo 1516)

Na origem de cada autecircntica chamada portanto estaacute o Senhor que escolhe e convida ao seu seguimento A Igreja manifesta na diversidade e na multiplicidade das vocaccedilotildees a riqueza do Espiacuterito que distribui livremente os seus dons segundo o projeto divino () A vocaccedilatildeo natildeo se constroacutei se recebe de Deus e sua realizaccedilatildeo depende da resposta que cada um sabe dar Viver de fato eacute responder20

A vocaccedilatildeo poreacutem natildeo eacute predestinaccedilatildeo (Ef 14 Jr 15) mas apelo do Pai dirigido agrave pessoa humana livre (Mt 1921 Gn 128-31)O projeto de Deus para a pessoa natildeo eacute algo estaacutetico predeterminado preestabelecido mas um apelo que se faz por via de mediaccedilotildees bem concretas (Jo 135-50) Deste modo a pessoa pode dizer ldquosimrdquo como Maria (Lc 138) fazendo acontecer a histoacuteria da salvaccedilatildeo ou dizer ldquonatildeordquo como o jovem rico (Mt 1922) frustrando o projeto de amor do Pai Da nossa resposta ao chamado de Deus depende a nossa felicidade O homem que diz sim se reencontra encontrando Deus e o que diz natildeo se perde

43 Como responder

A vocaccedilatildeo eacute um convite que se transforma em apelo o qual exprime uma proposta propositura que se torna eleiccedilatildeo escolha que solicita uma resposta21 O significado de cada um desses termos eacute muito profundo Convite eacute o ato de fazer uma proposta que se supotildee agradaacutevel Apelo eacute chamar algueacutem por nome Proposta eacute quanto vem apresentado agrave atenccedilatildeo e agrave aceitaccedilatildeo do outro um projeto Eleiccedilatildeo eacute o processo pelo qual um grupo designa um de seus integrantes para ocupar um determinado cargo com apelo a uma votaccedilatildeo Resposta eacute o ato de satisfazer uma chamada Deus espera uma resposta da nossa parte uma adesatildeo ao cumprimento da sua vontade sobre noacutes Deveriacuteamos ser agradecidos e sentir-nos honrados quando Deus se digna a nos chamar a colaborar da Sua missatildeo salviacutefica

20 httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa-non-ehtml Acesso em 29052015 21Cf PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus p 1385

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

157

44 Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A vida do cristatildeo eacute ldquosequela Christirdquo seguimento de Cristo em busca do caminho traccedilado por Ele para ser na Igreja e no mundo sinal inconfundiacutevel de amor e modelo de vida generosa e exemplar

A dimensatildeo do dom eacute a totalidade que prende a vida plenamente radicando-a no uacutenico absoluto que eacute Deus Instaura-se uma relaccedilatildeo que interessa o profundo do ser e que natildeo se confunde no anonimato Jesus busca a mim proacuteprio a mim Como um dia chamou por nome Abraatildeo Samuel Pedro Saulo assim ainda hoje o Pastor divino tem para cada ovelhinha nome uacutenico ldquoirrepetiacutevelrdquo22 distinto de qualquer outro nome ou som e que somente aquele que eacute chamado eacute capaz de perceber O ldquodeixa os mortos sepultar os seus mortosrdquo (Mt 822) o ldquoSegue-merdquo (Jo 2122) e o ldquonatildeo eacute digno do reino de Deusrdquo (Lc 959-62) mostram que as exigecircncias do chamado satildeo totais e natildeo admitem condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A radicalidade da resposta eacute uma exigecircncia fundamental do seguimento Natildeo se consente algum tipo de reenvio ou prorrogaccedilatildeo nem mesmo se nos encontraacutessemos diante de um motivo de grande valor moral e social como a necessidade de ldquosepultar o pairdquo a pessoa de Jesus exige uma prioridade absoluta e incondicionada ainda mais que Ele convida a anunciar ldquoo reino de Deusrdquo ao qual tudo eacute subordinado (cf Mt 633)

Trecircs dimensotildees satildeo necessaacuterias para uma resposta total liberdade como possibilidade de escolha de ausecircncia de constriccedilatildeo exterior e interior que permite de fazer uma eleiccedilatildeo autocircnoma gratuidade como alegria de servir no amor e sem esperar nada em troca eacute ter os sentimentos de Cristo Jesus (cf Fl 25) e dom ldquo o dom entra em cena quando descubro a dimensatildeo do outro como sujeito quando a categoria da gratuidade se torna a mola do meu agir e tambeacutem a descoberta do meu ser da minha dignidade e a do outro como pessoa humana pelo que viver a experiecircncia do dom significa substancialmente fazer experiecircncia de liberdaderdquo23

22 Cf CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006 p 61 23 Cf POLI Gianfranco La cultura della vocazione p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

158

5 Consideraccedilotildees finais

O objetivo geral do trabalho eacute mostrar que o argumento lsquovocaccedilatildeorsquo carece de um estudo sistemaacutetico de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica Com este escrito constatamos a necessidade de um estudo sistemaacutetico que esclareccedila o que entendemos quando falamos de vocaccedilatildeo Isto porque efetivar uma vocaccedilatildeo segundo o projeto de Deus contribui para o bem natildeo somente pessoal ou da instituiccedilatildeo a que se pertence mas do corpo como todo a Igreja Entatildeo vale muito despertar as escolas teoloacutegicas a abraccedilarem esta causa como questatildeo urgente levando seus teoacutelogos a reflexotildees mais aprofundadas com embasamento biacuteblico

Durante a realizaccedilatildeo do trabalho assumimos os desafios de ler textos em liacutengua italiana e de individuar entre o abundante conteuacutedo pesquisado qual responderia melhor ao tema Natildeo foi faacutecil descartarmos tantos conceitos e tentarmos nos ater ao tema com poucas paacuteginas

No desenvolvimento do assunto vimos que a vocaccedilatildeo eacute um ato dinacircmico um procedimento gradual uma histoacuteria de amor um relaciona-mento profundo com Deus por meio do Filho no Espiacuterito Santo e que por isso requer entrar na intimidade com Deus estar a soacutes na escola do Mestre pois a vocaccedilatildeo como ato de chamar conta com o envolvimento de dois sujeitos Deus que chama e o homem que responde

A iniciativa eacute sempre de Deus que chama para uma missatildeo especiacutefica na comunidade eclesial de onde nasce e cresce a mesma Deus se manifesta por intermeacutedio dos acontecimentos do mundo e da histoacuteria pessoal Ele precisa da nossa resposta concreta generosa e sem condicionamentos para continuar Sua obra da salvaccedilatildeo hoje

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

159

Referecircncias Bibliograacuteficas

ALBERTO Cosegrave la vocazione Cosa non egrave httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa -non-ehtml Acesso 29052015

BENTO XVI A primeira mensagem vocacional httpwwwportalcatolicoorgbrportala-primeira-mensagem-vocacio nal-de-bento-xvi Acesso em 040452015

BIacuteBLIA SAGRADA EDICcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA Petroacutepolis Vozes 2005

CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997

CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 2004

CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006

DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992

GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998

II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Voca-cional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982

JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996

JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iipt messagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes_29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em 29102015

MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro testado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001

OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996)

PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus 1999

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

160

PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991

POLI Gianfranco La cultura della vocazione tra vocazione e domanda di senso In BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teoloacutegica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010

RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000

RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001

VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 1999

Ir Graccedila Disingakala Nunes Aluna do Curso de Especializaccedilatildeo para qualificaccedilatildeo de formadores

na Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Artigo escrito sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

161

A EacuteTICA POLIacuteTICA EM MAQUIAVEL

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

Resumo

Na obra maquiaveliana encontra-se uma nova concepccedilatildeo da poliacutetica que se distancia das concepccedilotildees claacutessica patriacutestica e escolaacutestica Suas fontes satildeo as praticas poliacuteticas contemporacircneas e os escritos do historiador Tito Liacutevio O objetivo do seu estudo eacute uma Itaacutelia unida Nesta nova abordagem ganha interesse e destaque a relaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica assunto tratado especialmente na obra O Priacutencipe

Palavras-chave Renascimento Itaacutelia Maquiavel Eacutetica Poliacutetica

Abstract In the Machiavellian work we find is a new conception of politics which moves away from the classical patristic and scholastic conceptions His sources are contemporary political practices and the writings of the historian Titus Livius The purpose of his study is a united Italy In this new vision great interest and highlight are given to the relationship between ethics and politics specially treated in the work De Principe

Keywords Renaissance Italy Machiavelli Ethics Politics

1 Introduccedilatildeo

Satildeo conhecidos o vigor e a profundidade do pensamento do filoacutesofo poliacutetico Maquiavel1 Entre as suas obras que satildeo muacuteltiplas e de variados

1 Niccoloacute di Bernardo del Machiaveli nasceu na cidade de Florenccedila no dia 3 de maio de 1469 Sua vida desenvolveu sob o signo da poliacutetica a que dedicou tanto no campo teoacuterico como no praacutetico todos os seus esforccedilos materiais e intelectuais A poliacutetica como ele confessa estava no seu sangue Desde cedo Maquiavel foi incentivado por seu pai a se dedicar aacute leitura dos autores da Antiguidade Claacutessica como Virgiacutelio e Tito Liacutevio Sua juventude foi marcada pelos acontecimentos turbulentos da sua cidade natal que fazia parte de uma Itaacutelia assolada e perturbada por disputas poliacuteticas natildeo somente de acircmbito local como tambeacutem de forccedilas estrangeiras como Franccedila e Espanha que se aproveitaram das lutas internas da Peniacutensula Apeninica e da cidade de Florenccedila para sobretudo aumen-tarem a sua influecircncia Conta-se que Maquiavel aos nove anos assistiu ao assasinato de Juliano de Meacutedici e ao ferimento de Lourenccedilo de Meacutedici O ano de 1498 que viu a execuccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

162

gecircneros a De Principe eacute de longe a mais conhecida e analisada2 As outras de cunho poliacutetico natildeo deixam se ter interesse e importacircncia mas natildeo desenvolvem com a mesma clareza e pujanccedila o nuacutecleo do seu pensamento poliacutetico de modo especial o seu carter moral e eacutetico

O estudo ora expresso intenta com suporte nessa obra e preferen-cialmente nela comentar e descrever a eacutetica poliacutetica maquiaveliana que significa uma reviravolta em comparaccedilatildeo com a ideia natildeo somente a claacutessica mas tambeacutem cristatilde que quase sem exceccedilatildeo ateacute agrave eacutepoca da Baixa Idade Meacutedia se baseia quase exclusivamente no pensamento bem ou mal interpretado de SantrsquoAgostinho

2 As fontes da formaccedilatildeo de Maquiavel como pensador poliacutetico

Ao ler e refletir o pensamento poliacutetico de Maquiavel saltam aos olhos natildeo somente o seu profundo conhecimento a respeito da histoacuteria da Itaacutelia especificamente quando da eacutepoca do Impeacuterio Romano como tambeacutem os vestiacutegios de uma profiacutecua e intensa atividade diplomaacutetica Neste aspecto destacou-se por intermeacutedio de missotildees diplomaacuteticas vitoriosas ndash umas mais outras menos importantes - em vaacuterios estados da Peniacutensula Italiana inclusive em centros de poder nacional de grande envergadura tais como a Franccedila e a Alemanha

21 A atividade diplomaacutetica de Maquiavel

Logo apoacutes o dantesco e triste espetaacuteculo do julgamento da conde-naccedilatildeo e da execuccedilatildeo na fogueira do profeacutetico Jerocircnimo Savanarola na Praccedila da Senhoria reinstala-se em Florenccedila a Repuacuteblica Livre para alguns

de Savanarola pode ser considerado como a entrada de Maquiavel na poliacutetica sendo ele chamado a exercer o cargo de secretaacuterio da Segunda Chancelaria da Repuacuteblica de Florenccedila Em seguida ele se tornou um dos principais auxiliares do gonfaloniero vitaliacutecio Piero Soderini sendo encarregado dos assuntos diplomaacuteticos Quando Soderini caiu Maquiavel perdeu o cargo destituiacutedo pelos novos donos do poder ateacute a sua anistia concedida pelo Papa Leatildeo X da famiacutelia dos Meacutedicis Maquiavel esforccedilou-se ao maacuteximo para cair nas graccedilas dos Meacutedicis Quando estes caiacuteram e a Repuacuteblica foi reinstalada em Florenccedila Maquiavel visto com desconfianccedila retirou-se da vida publica Morreu no dia 21 de junho de 1527 2 Pode-se dividir a obra de Maquiavel em trecircs grandes setores que facilitam e ajudam na sua vasta atividade literaacuteria 1- Correspondecircncia tanto particular como oficial 2- obras literaacuterias poesia (eg) a famosa obra inacabada o Asno de Ouro) prosa (Discurso Moral que exorta a penitecircncia) teatro e novelas (vg Mandraacutegora em que se expotildee a degradaccedilatildeo moral e religiosa e se afirma a corrupccedilatildeo como inerente aacute natureza humana) 3- obras poliacutetico-histoacutericas (eo Discurso sobre a primeira deacutecada de Tito Livio)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

163

uma dinastia camuflada Suprime-se a teocracia e retoma-se o regime aristocraacutetico Foi aiacute em 1498 que Maquiavel com quase 30 anos de idade foi sorteado para exercer o cargo de secretaacuterio da 2ordf Chancelaria do Estado Livre da Repuacuteblica de Florenccedila E logo depois passou a realizar tambeacutem tarefas para a comissatildeo dos Dez do Poder ou Dez da Guerra

Como chanceler Maquiavel realizou a primeira legaccedilatildeo junto agrave Duquesa de Imola e Forli onde renegociou o soldo pago pelo Governo Florentino ao ldquocondottiererdquo3 Otaviano Florenccedila contratara o filho da Duquesa por 15 mil ducados soma considerada exorbitante por Florenccedila Maquiavel teve ecircxito conseguiu reduzir o soldo como tambeacutem recebeu auxiacutelio militar da duquesa - na forma de tropas de soldados e artilharia ndash de grande valor na ocupaccedilatildeo de Pisa4 Desde entatildeo o Diplomata Florentino comeccedilou a ser considerado e tratado como um haacutebil conciliador Entusiasmado com o prestiacutegio e a experiecircncia adquiridos escreveu o primeiro texto poliacutetico Discorso fatto a Magistrato dei Dieci sopra le cose de Pisa

Nuvens negras e sombrias no entanto continuaram a se espalhar e ameaccedilaram empanar o brilho do cenaacuterio poliacutetico florentino Segundo relato5 Pisa rebelara-se mais uma vez cortando o acesso de Florenccedila ao mar pelo rio Arno O rei Luis XII de Franccedila concordara em apoiar Florenccedila na guerra contra Pisa As tropas mercenaacuterias que o Monarca enviara no entanto natildeo cumpriram bem o seu papel acarretando seacuterios problemas ao Estado de Florenccedila Aqui estava uma delicada situaccedilatildeo expor tal reclamaccedilatildeo ao Governo Francecircs e declinar a sua oferta sem ferir a honra do rei Os representantes Maquiavel e Francisco della Casa foram enviados agrave Franccedila para a cidade de Nevers Com muita maestria os dois diplomatas resolveram a difiacutecil tarefa O perigo passou e embora Florenccedila natildeo tenha recuperado Pisa continua com a sua independecircncia

Maquiavel foi ainda encarregado de vaacuterias outras missotildees diplo-maacuteticas junto agrave Franccedila Conveacutem lembrar que Luis XII rei de Franccedila tinha como aliado o Papa Alexandre VI cujo filho se chamava Ceacutesar Boacutergia conforme a opiniatildeo de alguns um ldquocondottiererdquo de muita bravura poliacutetico

3 ldquoCondottiererdquo era ndash na histoacuteria da Itaacutelia ndash chamada o senhor feudal que tinha sob o seu absoluto controle uma miliacutecia que ele podia colocar agrave disposiccedilatildeo de quem o quisesse ou pagasse mais Era entatildeo uma espeacutecie de capitatildeo de soldados mercenaacuterios Assume tambeacutem o sentido de aventureiro 4 Florenccedila e Pisa alternaram periacuteodos de amizade com tempos em que a inimizade explodia em conflitos seacuterios muitas vezes armados 5Cf LARIVAILLE PAUL A Itaacutelia no tempo de Maquiavel Op Cit pg 75-79

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

164

de excelente habilidade mas por outro lado extremamente cruel6 Com a dupla proteccedilatildeo de seu pai e das armas francesas Ceacutesar Boacutergia vinha desempenhando uma accedilatildeo militar avassaladora sobre as possessotildees italianas

No que concerne agrave situaccedilatildeo alarmante de Florenccedila ante o turbulento protegido de Luis XII eacute esclarecedora a descriccedilatildeo desses acontecimentos expressos por JF Duvernoy

Florenccedila tem medo ela se entrega ela cuja doutrina consiste em fugir da submissatildeo de um senhor de um gonfaloneiro vitaliacutecio Eacute verdade que ela o escolheu ldquodemocratardquo na pessoa de Piero Soderini Envia Maquiavel para junto de Ceacutesar Boacutergia para observaacute-lo medir suas forccedilas e seus apetites Ele de fato observa vecirc em Sinigalia como Ceacutesar reprimiu num soacute golpe todos os seus antigos aliados Ele traz de sua missatildeo algo de muito confuso uma vontade indomaacutevel de trabalhar para natildeo ser conquistado e uma admiraccedilatildeo pela poliacutetica de alto vocirco que ele viu em accedilatildeordquo7

Em 1503 o perigo iminente cessou com a morte do Papa Alexandre VI e com a derrota de Ceacutesar Boacutergia Gravemente enfermo e sem apoio nada mais restou ao valoroso Duque de Valentinois senatildeo capitular Conta-se que morreu na Espanha como ldquocondottiererdquo mediacuteocre

A Repuacuteblica de Florenccedila procurou entatildeo evitar cair sob a autori-dade do novo Pontiacutefice Juacutelio II della Rovere o qual pretendia colocar sob a jurisdiccedilatildeo da Santa Seacute todas as antigas cidades regiotildees e possessotildees que antes pertenciam ao Ducado de Valentinois Imediatamente a desas-sossegada Senhoria envia Maquiavel para prestar ao Papa serviccedilos de chancelaria Durante a segunda legaccedilatildeo a Juacutelio II Maquiavel pocircde avaliar de perto o poder temporal do Sumo Pontiacutefice aleacutem de fortemente tomar consciecircncia de como o sentimento religioso ainda se encontrava arraigado no espiacuterito dos homens Essas duas realidades levam-no ao convencimento que ele descreve no seu livro O Priacutencipe

[] os principados eclesiaacutesticos [] satildeo mantidos pela grande antiguidade que existe nas instituiccedilotildees da religiatildeo as quais satildeo tatildeo poderosas e de tal

6 Cf por exemplo Dicionario da Idade Meacutedia organizado por Henry R Lyon Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990 pg 56 [] Era totalmente inescrupuloso a fim de proteger suas fronteiras setentrionais assassinou o marido de sua irmatilde Lucreacutecia e casou-a com o futuro duque de Ferrara 7 DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores 1984 pg 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

165

natureza que seus priacutencipes permanecem no lugar de qualquer maneira que eles se comportam e que vivam8

De fato as tropas mercenaacuterias quando se batiam contra o Papa embora dispusessem de poderio beacutelico suficiente para vencecirc-lo rendiam-se facilmente preferindo assim reverenciar o Chefe da Igreja

A tempestade poliacutetica se avolumava sobre a Itaacutelia ameaccedilando o equiliacutebrio do poder Em Florenccedila a ameaccedila provinha de dois poderosos vizinhos de um lado o Papado do outro o Santo Impeacuterio Maquiavel tendo agora seus dotes conciliadores reconhecidos foi enviado agrave Alemanha e conseguiu perante o Imperador Maximiano I defender a neutralidade de Florenccedila no conflito contra Veneza

Em 1510 poreacutem a Igreja Veneza e a Espanha declaram guerra ao Governo Francecircs Havia muito tempo a Franccedila ocupava o lugar de tradi-cional aliada de Florenccedila Portanto Maquiavel em uma de suas uacuteltimas missotildees diplomaacuteticas conseguiu com muita habilidade e perspicaacutecia que mais uma vez Florenccedila ficasse neutra ou seja liberada de participar daquele conflito

Por natildeo ter apoiado todavia a Igreja na guerra contra a Franccedila o Governo Florentino se viu em maus lenccediloacuteis Em 1512 Florenccedila foi saqueada pelas tropas imperiais de Ferdinando II O Papa destituiu o liacuteder Soderini e a famiacutelia poderosa dos Meacutedicis retornou ao poder Era o fim das instituiccedilotildees democraacuteticas da Repuacuteblica Livre de Florenccedila

Aquele ano assinala igualmente o capiacutetulo final da carreira poliacutetica de Maquiavel Durante os 15 anos do exiacutelio no reinado dos Meacutedicis vive na sua propriedade interiorana trabalhando duro sem se queixar nem se lastimar porque tinha prazer de trabalhar em favor de sua querida e estimada Florenccedila Quando jaacute em desgraccedila escreveu no dia 10 de outubro de 1513 uma carta dirigida a seu amigo Francesco Vettori em que afirma ldquoforam quinze anos dedicados a cultivar a Arte do Estado em que natildeo dormi nem tive folgardquo9

Os autores em grande parte consideram Maquiavel como um excelente diplomata trabalhando sempre com muito empenho lealdade e dedicaccedilatildeo Suas cartas escritas na cidade francesa de Blois quando efetuava suas uacuteltimas atividades de diplomacia na Franccedila constituem documentos 8 MAQUIAVEL Niccolo O Priacutencipe cap XI 9 MAQUIAVELLI N Tutte Le Opere Firenze Sansoni 1992 Citado em RODRIGO Lidia Maria Maquiavel op cit p 23

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

166

que comprovam definitivamente a habilidade poliacutetica do Pensador Floren-tino que atinge alguns momentos insuperaacuteveis Acrescenta-se ainda que no bloqueio rigoroso de Pisa o papel de comissaacuterio desempenhado por Maquiavel foi determinante na retomada dessa cidade

A importacircncia da atividade diplomaacutetica na formaccedilatildeo do pensa-mento poliacutetico de Maquiavel eacute assim analisada por Bronowski e Mazlish

o seu posto natildeo lhe desse grande poder na definiccedilatildeo da poliacutetica deu-lhe uma visatildeo directa do processo poliacutetico das cidades-estado italianas E como esses processos poliacuteticos variavam desde a oligarquia em Veneza agrave monarquia em Naacutepoles e agrave democracia em Florenccedila forneciam uma verdadeira escola de poliacutetica para um observador atento10

Foi nessa atividade diplomaacutetica que Maquiavel chegou agrave conclusatildeo de que o mais importante na poliacutetica eacute

[] o Estado natildeo aquele imaginaacuterio e que nunca existiu mas aquele que eacute capaz de impor a ordem O ponto de partida e da chegada eacute a realidade corrente ndash por isto a ecircnfase na veritagrave effetuale ndash ou seja ver e examinar a realidade como ela eacute e natildeo como se gostaria que fosse11

Isto se aplica agrave imagem que Maquiavel formou dos priacutencipes nos seus contatos diretos com os detentores do poder durante tantos anos o descobriu que

[] o priacutencipe que os humanistas do Renascimento apresentavam como modelo aos governantes natildeo passava de uma construccedilatildeo do espiacuterito de uma formulaccedilatildeo abstrata e ideal desvinculada de qualquer possibilidade e em contraste chocante com a realidade crua e aacutespera da eacutepoca quinhentista O priacutencipe ideal do humanismo era o siacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilotildees religiosas cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudente ndash compendio enfim de todas as perfeiccedilotildees fiacutesicas intelectuais e morais 12

Assim surge um personagem viril audaz destemido cuja maacutexima mais importante era ater-se aacute verdade efetiva das coisas sem ficar pensando em repuacuteblicas e monarquias imaginaacuterias com seus princiacutepios inspirados por altos ideais longe da realidade concreta da poliacutetica praticada naqueles dias ndash e em tempos anteriores

10 BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 pg 47 11 Disponiacutevel em www palmirarjnet Acesso em 25-10-2010 12 ESCOREL Lauro O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades Cadernos da UnB Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 pg 18

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

167

2 2 O estudo da histoacuteria

Como Maquiavel se inspirou na histoacuteria encontrando nela valiosas pistas para a accedilatildeo poliacutetica manifesta-se sobretudo na sua obra Discursos sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio A obra caracteriza-se como um diaacutelogo com o historiador Tito Liacutevio que viveu de 58 aC ateacute 12 dC o turbu-lento periacuteodo que acusa o fim da era da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Romano13 Uma das propriedades desta grandiosa obra foi entre outras o enfoque da histoacuteria sob o ponto de vista da moral ao fazer com que Maquiavel apontasse a Repuacuteblica Romana como um verdadeiro modelo de sociedade cuja virtugrave deveria servir como exemplo para os seus contem-poracircneos

Os Discorsi satildeo uma elaboraccedilatildeo ideal uma obra de educaccedilatildeo poliacutetica uma sistematizaccedilatildeo mais refletida uma projeccedilatildeo na histoacuteria passada e futura das liccedilotildees ldquodas coisas do mundordquo Eacute uma procura das razotildees que explicam o nascimento a prosperidade e a decadecircncia das naccedilotildees com o intuito de descobrir ndash no exemplo eminente da Roma Claacutessica ndash qual o segredo da forccedila e da estabilidade dos Estados Os Discorsi satildeo compostos de trecircs livros

1o Livro trata dos modos pelos quais se fundam os Estados e da organizaccedilatildeo e modalidades de Governo

2o Livro examina os processos de engrandecimento dos Estados e de conquista de novos Estados

3o Livro tece consideraccedilotildees sobre o crescimento e a decadecircncia dos Estados e seus modos de transformaccedilatildeo e uma anaacutelise da natureza das conjuraccedilotildees que ameaccedilam os detentores do poder

Tudo o que Maquiavel exprime nestes livros eacute inspirado pela ideia que se tornou para ele um axioma de que a imitaccedilatildeo da histoacuteria antiga e de modo peculiar a da Repuacuteblica Romana constitui a fonte por excelecircncia da sabedoria poliacutetica Sob tal perspectiva vaacutelida antes de tudo para a Peniacutensula Italiana ndash outrora sede do nuacutecleo do Impeacuterio Romano ndash o que ocorrera no passado tendia inevitavelmente a se repetir no presente e no futuro Assim sendo o estudo da histoacuteria impunha-se quase como uma condiccedilatildeo sine qua non para a formulaccedilatildeo da teoria do Estado e da descriccedilatildeo das qualidades dos priacutencipes

13 Tito Liacutevio escreveu a monumental obra Ab Urbe Condita ndash a partir da Fundaccedilatildeo da Cidade constando de 142 livros do quais 35 chegaram ateacute noacutes entre eles os dez primeiros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

168

Curiosamente nessa obra Maquiavel exprime uma altamente positiva apreciaccedilatildeo da Repuacuteblica vista por ele como mais apta e equili-brada a tomar decisotildees e realizar o bem comum Ao lado dela - e aqui jaacute se veem as linhas de O Priacutencipe ndash Maquiavel destaca a Monarquia como a melhor forma de se conseguir a formaccedilatildeo do Estado na Peniacutensula da Itaacutelia Concluindo o mesmo raciociacutenio rejeita a tirania e a oligarquia de que eacute afirmado que se trata de uma relaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude Para Maquiavel poreacutem tanto as boas como as maacutes formas de governo teratildeo pouca duraccedilatildeo e por isso defende a maneira mista opiniatildeo que se reflete na descriccedilatildeo dos tipos de principados (Estados) no O Priacutencipe e na postura exigida dos priacutencipes

Resumindo pode-se afirmar que em decorrecircncia da leitura de autores claacutessicos como Tito Liacutevio e Poliacutebio14 aleacutem da recente histoacuteria e da vasta experiecircncia junto a poliacuteticos de sua eacutepoca Maquiavel chega aacute seguinte conclusatildeo O priacutencipe (irreal) estaacute longe de como se vive e de como se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da proacutepria ruiacutena do que de sua conservaccedilatildeo porque um homem que queira em todo lugar parecer bom atrai ruiacutena entre tantos que natildeo satildeo bons15

3 O Priacutencipe

31 Introduccedilatildeo

O Priacutencipe incontestavelmente a obra mais conhecida de Maquiavel foi publicada no ano de 1532 e eacute portanto poacutestuma Antes de sua publicaccedilatildeo impressa jaacute circularam algumas coacutepias manuscritas que natildeo tinham causado nenhum escacircndalo Pelo contraacuterio Maquiavel ficou desapontado pela frieza de Lourenccedilo de Meacutedici em relaccedilatildeo a sua obra que lhe foi dedicada Outro fator que causa certa espeacutecie foi o fato de que na eacutepoca natildeo foi negada agrave obra a licenccedila de imprimiacute-la o assim chamado ldquoimprimaturrdquo Parece que a postergaccedilatildeo da impressatildeo decorre das circunstacircncias poliacuteticas de 1513 ndash 1527 eacutepoca em que Maquiavel vivia isolado no seu exiacutelio Aleacutem disso acredita-se que ele queria reservar a publicaccedilatildeo da obra para uma conjuntura mais propiacutecia no intuito de

14 Historiador nascido na Greacutecia Antiga viveu de 203 aC ateacute 120 a C tomando na sua juventude parte ativa na luta dos gregos contra os romanos Feito prisioneiro foi levado para Roma ficando nesta cidade 17 anos como refeacutem Depois do seu retorno auml Greacutecia voltou algumas vezes a Roma e dedicou-se agrave histoacuteria dos acontecimentos ocorridos durante a sua vida procurando aleacutem do rigor cientiacutefico a valorizaccedilatildeo dos testemunhos de seus contemporacircneos Cf Biografia y Vidascombiografiaenlinea acesso em 10022011 15 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe cap XV-XVII

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

169

produzir um efeito maior Soacute mais tarde o cardeal Reginald Pole 1500-1588 constatando a ldquomaleacutefica influecircnciardquo16 da obra sobre Oliver Cromwell denunciou Maquiavel como um espiacuterito satacircnico defensor do despotismo e justificador de todas as arbitrariedades e violecircncias

Ademais a obra e seu autor enfrentaram a oposiccedilatildeo dos Jesuiacutetas que aleacutem de queimarem a efiacutegie de Maquiavel em Ingolstat em 1559 convenceram o papa Paulo IV a colocar o livro no Index por decreto o que foi confirmado pelo Concilio Tridentino em 1564 A oposiccedilatildeo ao escrito do Maquiavel entretanto natildeo foi proveniente apenas dos catoacutelicos pois tambeacutem os calvinistas como por exemplo Inocecircncio Gentillet que em 1576 publicou Contre Nicolas florentin

[] em que natildeo soacute qualificou o escritor de puant atheacuteiste mas tambeacutem denunciou suas doutrinas como instigadoras da ldquoNoite de Satildeo Bartolomeurdquo acusando-as de haver insuflado no espiacuterito de Catarina de Meacutedici a ideacuteia do massacre e de haver introduzido meacutetodos alieniacutegenas isto eacute italianos na poliacutetica francesa17

Embora importante no conjunto de seus escritos a obra de Maquiavel e sua filosofia poliacutetica natildeo se restringem soacute ao Priacutencipe devendo ser esse escrito visto no contexto de sua obra Com isto entretanto natildeo se pode nem se deve negar o lugar central que este livro ocupa no conjunto da obra maquiaveliana e eacute esta a razatildeo por que neste trabalho dedicado agrave anaacutelise da moral em Maquiavel e de modo especial no O Priacutencipe se lhe dedica um estudo especial

32 A Gecircnese de O Priacutencipe

Segundo Vilari18 deve-se buscar o conceito de O Priacutencipe no papa Leatildeo X 1513-1521 que lanccedilou a ideia de fundar um outro Estado abrangendo Parma Modena Urbino e Ferrara entregando o seu governo a Juliano de Meacutedici Desta forma realizar-se-ia o grande sonho de Maquiavel de um grande Estado monaacuterquico italiano superando a sua divisatildeo em inuacutemeros estados pequenos com um poder central suficiente tanto para unificaacute-la como para mantecirc-la unificada

16 ESCOREL Lauro O pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades VII Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1984 nordm 8 pg 18-52 17 ESCOREL Lauro op cit p 19 18 VILARI P Niccolograve Macchiavelli e i suoi tempi 3 vls Firenze 1877 p 294 vol II citado em ESCOREL Lauro op cit p 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

170

Maquiavel entusiasta defensor dessa ideia se distancia dela quanto agrave sua realizaccedilatildeo concreta como um poder monaacuterquico central e absoluto baseado nos ideais da tradiccedilatildeo cristatilde e se opotildee contra o priacutencipe ideal renascentista ldquosiacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilatildeo religiosa cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudenterdquo19 Pelo contraacuterio o priacutencipe com o qual Maquiavel sonha eacute um teacutecnico poliacutetico realista plasmado nos moldes do passado sobretudo da antiga Repuacuteblica Romana nos seus melhores dias de gloacuteria

[] para o qual o importante era ater-se agrave veritaacute effetuale delle cose [] O priacutencipe maquiaveacutelico natildeo emerge do pensamento do seu autor aureolado pelas virtudes da eacutetica tradicional como produto de uma elaboraccedilatildeo mental utoacutepica [] Plasma-o ao contraacuterio indutivamente com base nos dados de sua experiecircncia e inspirado nos exemplos da Antiguidade Claacutessica investindo-o de uma loacutegica inexoraacutevel para a consecuccedilatildeo de seu objetivo supremo a conquista e a preservaccedilatildeo do poder poliacutetico absoluto 20

Eacute nesta inspiraccedilatildeo que residem a grandiosidade e o gecircnio de Maquiavel que o fizeram descobrir e penetrar a essecircncia da accedilatildeo poliacutetica do homem revelando as leis proacuteprias e analisando dividindo e avaliando friamente a forccedila das paixotildees humanas Foi sob esse prisma que o seu livro auferiu validade permanente

33 A Estrutura do livro21

O livro que consta de 26 capiacutetulos comeccedila com uma carta dedicatoacuteria ao magniacutefico Lorenzo filho de Piero de Meacutedici neto de Lorenzo o Magniacutefico (1449-1492) Originalmente o livro seria dedicado a outro membro da famiacutelia Meacutedici Giuliano filho de Lorenzo mas este morreu em 1516

Do primeiro ao deacutecimo capiacutetulo eacute procedida agrave discriminaccedilatildeo dos vaacuterios tipos de principados Aleacutem disso Maquiavel desenvolveu as caracteriacutesticas e qualidades dos mencionados principados Central estaacute o problema da conquista do poder em geral e especialmente no

19 ESCOREL Lauro op cit p 23 20 ESCOREL Lauro op cit p 23 21 Cf Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Grupo de Estudos de Filosofia ndash GEFIL Aula I BATISTA Flaacutevio Donizete http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 15 de agosto de 2010 BATH Sergio A praacutetica poliacutetica segundo Nicolau Maquiavel Satildeo Paulo Aacutetica 2009 CHEVALLIER J J As grandes obras poliacuteticas de Maquiavel a nossos dias Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 pg 17-48

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

171

principado novo Tudo eacute visto sob a grande perspectiva da unificaccedilatildeo da Itaacutelia que deve ser fundada nas conquistas e na virtugrave do governante

Do deacutecimo ao deacutecimo quinto capiacutetulo preocupa-se em argumentar e mostrar que a base de qualquer Estado estaacute na sua autarquia militar Trata de maneira especial no capiacutetulo 11 dos Estados eclesiaacutesticos e como chegaram ao poder que ostentam

A parte principal da obra eacute formada pelos capiacutetulos deacutecimo quinto ateacute o vigeacutesimo sexto Aqui se trata do exame do problema do governo de um povo como um priacutencipe deve conduzir-se com os seus suacuteditos e seus aliados Quanto agrave imagem do priacutencipe formulada por Maquiavel merecem destaque especial os quatro conceitos por ele considerados fundamentais virtugrave ocasiatildeo fortuna e necessidade Por todos os capiacutetulos especialmente a partir do deacutecimo nono encontramos Maquiavel insiste na necessidade da reformulaccedilatildeo da imagem tradicional do priacutencipe acentuando a obrigaccedilatildeo de ele sempre se esforccedilar para ter o povo ao seu lado porque sem o apoio do povo o priacutencipe natildeo resistiraacute agraves dificuldades que sobreviratildeo

Do capiacutetulo 23 ateacute o 25 Maquiavel constatando porque os priacutencipes italianos perderam seus Estados afirma o poder da vontade humana de domar e vencer a proacutepria fortuna pela razatildeo e pela virtude

O uacuteltimo capiacutetulo ndash o 26 - eacute uma eloquente exortaccedilatildeo agrave redenccedilatildeo e libertaccedilatildeo da Itaacutelia do domiacutenio das potecircncias estrangeiras ndash Franccedila Espanha e o Impeacuterio Alematildeo ndash e consiste num convite ao priacutencipe de ser audaz e feroz a fim de alcanccedilar ecircxito Termina com as belas palavras de Petrarca

Virtugrave contro a furore Prenderaacute lrsquoarmi e fia el combatter corto Che lrsquoantico valore Nellrsquoitalici cor non egrave ancor morto22

4 Moral e Eacutetica na poliacutetica de Maquiavel

Agrave primeira vista pode parecer fora de propoacutesito falar de Moral E Eacutetica em Maquiavel Para muitos autores e sobretudo para muitas pessoas no seu dia a dia os dois conceitos significam a mesma coisa e dizem 22 O valor tomaraacute armas contra o furor e que seja curto o combate pois a coragem antiga ainda natildeo morreu no coraccedilatildeo dos italianos PETRARCA Francesco Rime Esparse (sem maiores referecircncias) em O Priacutencipe comentado por Napoleatildeo Bonaparte MAQUIAVEL texto integral Traduccedilatildeo NASSETTI Pietro Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

172

respeito ao comportamento humano Por que e para que entatildeo fazer uma distinccedilatildeo Leonardo Boff no seu livro Ethos Mundial diz o seguinte

[] precisamos voltar ao sentido originaacuterio da eacutetica e da moralidade Todas as morais por mais diversas nascem de um transfundo comum que eacute a eacutetica Eacutetica somente existe no singular pois pertence aacute natureza humana presente em cada pessoa enquanto moral estaacute sempre no plural porque satildeo distintas formas de expressatildeo cultural e histoacuterica da eacutetica 23

Um olhar sobre o sentido original da palavra eacutetica pode esclarecer o seu rico e profundo sentido proacuteprio Na sua liacutengua de origem a grega eacutetica vem de ethos que tem duas grafias com letra e pequena ou grande e conforme o tamanho muda o sentido Ethos com letra pequena indica a morada abrigo permanente tanto dos animais como dos humanos Ela tem que ser construiacuteda pela atividade humana e por isso deve ser sempre reformada melhorada e aperfeiccediloada Assim pode-se dizer que a eacutetica tem por fim morar bem e para isto constituir objetivos fundamentais e valores e princiacutepios que norteiam a accedilatildeo humana Para os antigos entatildeo a eacutetica estaacute ligada ao bem ou aacute felicidade que devem ser perseguidos por meios que levem a esta bondade e felicidade Estes meios eram tambeacutem chamados de ethos mas com e grande e significam os costumes ou ldquoo conjunto de valores e de haacutebitos consagrados pela tradiccedilatildeo cultural de um povordquo24

Ao dizer-se que algueacutem natildeo tem eacutetica significa a ausecircncia nesta pessoa de princiacutepios norteadores para sua accedilatildeo que se desenvolve pois de acordo com as vantagens que possa conseguir e consequentemente coerecircncia e princiacutepios fazem falta na sua vida Por outro lado quando se garante que algueacutem natildeo possui moral indica-se que esta pessoa natildeo possui virtudes que a ajudem a ldquoconstruir sua moradardquo sua felicidade e age erradamente mentindo roubando explorando

Resumindo

[] moral eacute o conjunto de haacutebitos e costumes efetivamente vivenciados por um grupo humano Nas culturas dos grupos humanos estatildeo presentes haacutebitos e costumes considerados vaacutelidos porque bons bons porque justos justos porque contribuem para a realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

[] eacutetica eacute a reflexatildeo sobre a accedilatildeo humana para extrair dela o conjunto excelente de accedilotildees Eacute uma ciecircncia que tem por objeto a moral e a lei e pretende aprimorar

23 BOFF Leonardo Ethos Mundial Um consenso miacutenimo entre os humanos SI Letraviva Editorial Ltda 2000 pg 34 24 BOFF Leonardo op cit pg 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

173

as ldquoatividades realizadoras de sirdquo desenvolvidas pelos indiviacuteduos em busca do excelente25

41 A Eacutetica maquiaveliana

Com a difusatildeo do livro O Priacutencipe as ideacuteias de Nicolau Maquiavel se tornaram conhecidas mas tambeacutem quase de imediato foram atingidas por uma forte onda de severas criacuteticas A obra que pode ser considerada como a principal de Maquiavel foi qualificada de imoral e sem eacutetica Qual a razatildeo de tatildeo severo juiacutezo Ricardo Rodrigues responde a esta indagaccedilatildeo quando esclarece

[] Maquiavel simplesmente documentou verdades jaacute conhecidas pelos homens embora natildeo admitidas Tudo o que fez foi construir uma teoria poliacutetica a partir da combinaccedilatildeo de experiecircncia concreta no trato da coisa puacuteblica com a observaccedilatildeo aguda do processo poliacutetico aliada ainda ao estudo da histoacuteria26

Em verdade Maquiavel faz uma anaacutelise nua e crua da praacutetica poliacutetica do seu tempo como realmente era e natildeo como deveria ser Em primeira instacircncia estaacute o realismo poliacutetico por ele descrito como sendo a uacutenica maneira de algueacutem se tornar vitorioso no jogo pelo poder Este realismo poliacutetico que natildeo raro desprezava a moral vigente e a eacutetica tradicional feria em muitos aspectos os padrotildees escolaacutesticos da eacutepoca baseados nos estudos teoloacutegicos agostinianos e tomistas Esses estudos denotaram ideias que deveriam conduzir a accedilatildeo poliacutetica em vista da construccedilatildeo de uma sociedade baseada em princiacutepios cristatildeos conduzindo desta forma agrave construccedilatildeo da Cidade Justa ou de Deus sobre a terra27 defendendo neste sentido a consecuccedilatildeo do Bem Comum entendido em sentido cristatildeo Em outras palavras haacute um ideal a ser atingido e a eacutetica igual agrave praacutetica moral consequecircncia dela eacute julgada agrave luz deste ideaacuterio Esta posiccedilatildeo defendida embora com algumas pequenas diferenccedilas pelo pensamento da Igreja Catoacutelica de entatildeo tambeacutem se encontrava na visatildeo

25 DOS SANTOS Antonio Raimundo Eacutetica Caminhos da realizaccedilatildeo humana 4 ed Satildeo Paulo Editora Ave Maria 2004 pg 11 e 15 26 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Simposion Unicap no 2 1986 pg 44 27 Cf a grande corrente teoloacutegica que tem em Santo Agostinho o eu grande defensor e propagador especialmente na sua obra De Civitate Dei ndash (Sobre a Cidade de Deus ) que ateacute o seacuteculo XII-XIII foi a inspiraccedilatildeo maior para o ideal poliacutetico da Idade Meacutedia muitas vezes apresentada como o ideal da assim chamada Cristandade Santo Tomaacutes de Aquino natildeo negando a influecircncia agostiniana recebe grande aporte das ideias aristoteacutelicas como resta claro natildeo somente no seu pequeno tratado De Regno mas tambeacutem no extenso e inacabado comentaacuterio sobre a Poliacutetica e a Eacutetica do Nicocircmaco de Aristoacuteteles

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

174

filosoacutefica da poliacutetica baseada na teoria platocircnica com a sua cidade ideal regida pela justiccedila e aristoteacutelica em que o ideal da felicidade estaacute central o que foi intensamente estudado pelos saacutebios da eacutepoca Em outras palavras existem conceitos ideias de bem e de mal que servem como paradigma para a accedilatildeo humana uma ideia a que a accedilatildeo humana deve obedecer ou a qual se adaptar Satildeo os assim chamados valores eternos que transcendem tempo e lugar isto eacute possuem validade universal

Como consequumlecircncia da anaacutelise e descriccedilatildeo da poliacutetica de acordo com as ideacuteias de Maquiavel surge o assim chamado maquiavelismo teoria que procura ligar as ideias do Pensador de Florenccedila a procedimentos nocivos que lembram perfiacutedia astuacutecia crueldade e traiccedilatildeo E o que eacute pior para alguns estas expressotildees pejorativas continuam sobrevivendo no tempo e no espaccedilo e proliferam ainda hoje tanto na esfera poliacutetica como nas desavenccedilas do cotidiano

Eacute bem verdade que no acervo de qualidades do bom governante aceito por Maquiavel constavam a fraude e a mentira a dissimulaccedilatildeo e ateacute mesmo a crueldade 28 Isto natildeo significa todavia que Maquiavel defen-desse ou aconselhasse um estado turbulento de constantes lutas contra usurpadores gananciosos anarquicamente cruel em que os governantes poderosos mantivessem seus suacuteditos em regime de servidatildeo de tortura e perversidade

Por outro lado o Escritor Florentino nunca deixava de louvar a honestidade e a integridade em governantes29 Pelo estudo de fatos paacutes-sados entretanto e de outros da histoacuteria de entatildeo que havia presenciado e testemunhado enfatizava que o poliacutetico dependia de qualidades bem diversas Fazendo distinccedilatildeo entre honestidade e ingenuidade acreditava ele que praticar a honestidade sem levar em conta os efeitos prejudiciais para toda uma coletividade ou para a naccedilatildeo eacute de fato mera ingenuidade defeito maacuteximo de maus governantes

Discorrendo ainda sobre integridade Maquiavel considerava lou-vavel o fato de que o priacutencipe fosse um homem iacutentegro e mantivesse a palavra empenhada30 Ao mesmo tempo poreacutem alertava para o fato de que conforme a necessidade ele poderia abandonar a boa feacute desfazendo assim a palavra dada 28 Cf O Priacutencipe op cit cap XVII 29 Cf RODRIGUES RICARDO Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no 2 Recife Unicap 1986 pg 48 30 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

175

Um priacutencipe prudente natildeo deveraacute pois agir de boa feacute quando para fazecirc-lo precise agir contra seus interesses e quando os motivos que o levaram a empenhar a palavra deixarem de existir31

Em circunstacircncias adversas este poderia utilizar-se igualmente da dissimulaccedilatildeo porquanto os homens em geral satildeo tolos e sempre acreditam em quem lhes faz promessas ou lhes promete benefiacutecios Usando uma linguagem coloquial contemporacircnea ldquopara cada bobo haacute sempre um espertordquo

A argumentaccedilatildeo do Escritor Florentino sobre a crueldade reflete-se nos louvores e elogios feitos por ele ao Duque de Valentino citado como exemplo de um autecircntico e renomeado estadista

Ceacutesar Boacutergia era considerado cruel mas sua crueldade impocircs ordem agrave Romanha unificou-a reduzindo-a agrave paz e agrave fidelidade Se examinarmos bem este ponto veremos que na verdade ele foi muito mais clemente que o povo de Florenccedila que para fugir agrave reputaccedilatildeo de cruel permitiu a destruiccedilatildeo de Pistoia32

Eacute interessante esclarecer que a admiraccedilatildeo de Maquiavel por Ceacutesar Boacutergia natildeo emergiu do fato de ser este um homem perverso e cruel Em sua oacuteptica Ceacutesar Boacutergia surgiu como um governante eficiente destemido saacutebio capaz de comportar-se como priacutencipe em toda e qualquer situaccedilatildeo

Em virtude destas e de outras afirmaccedilotildees em torno do caraacuteter poliacutetico e do jogo pelo poder Maquiavel atraiu para si muitas criacuteticas atraveacutes dos tempos Seus conceitos e teorias foram analisados de vaacuterias maneiras e muito mal interpretados Como expresso anteriormente sua obra foi qualificada de imoral e sem eacutetica Impuseram ao Escritor a condiccedilatildeo de advogado da poliacutetica sem moralidade

Lauro Escorel refuta esta ideia quando diz que rdquoOs princiacutepios do poliacutetico florentino podem natildeo ser cristatildeos mas satildeo eacuteticosrdquo33

Natildeo partilhando igualmente daquela opiniatildeo que o Professor Cranston projeta o Escritor para uma dimensatildeo contraacuteria quando sugere que ldquoO argumento de Maquiavel parece-me ser o de que apenas existe uma verdadeira moralidade mas que por vezes o governante tem que a

31 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 32 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 33 ECSOREL Lauro O Pensamento Poliacutetico em Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

176

desrespeitarrdquo34 Cranston propotildee ainda que a principal razatildeo de o Florentino ser continuamente hostilizado

[] eacute a de que ele aconselha (os governantes) a fazerem consciente e deliberadamente o que muitos estatildeo fazendo de modo natural preferindo natildeo pensar no assunto [] Maquiavel nunca endossou o uso da fraude para a proteccedilatildeo de carreiras poliacuteticas aconselhando-a apenas para encobrir aqueles atos de Estado necessaacuterios que violam a moralidade35

Daiacute conclui-se que estes atos de Estado necessaacuterios correspondiam ao conceito maquiaveliano de ldquoragione di statordquo e agrave consciecircncia de que a poliacutetica eacute uma atividade autocircnoma do Estado e no Estado sem recurso ou associaccedilatildeo agrave eacutetica agrave jurisprudecircncia agrave moralidade cristatilde ou pagatilde Seria mais justo e claro dizer que haacute para Maquiavel uma mudanccedila no conceito da eacutetica Ele aceita que a accedilatildeo poliacutetica deve ser orientada por valores mas estes assumem caraacuteter totalmente diferente distanciando-se do ideal teoloacutegico filosoacutefico e sobretudo da ideaccedilatildeo da felicidade pessoal Para o Secretaacuterio Florentino o Estado eacute sem duacutevida o valor mais alto aleacutem do qual natildeo existe um limite Para ele a poliacutetica resumia-se numa coisa conquistar e manter o poder ou a autoridade no domiacutenio conquistado Portanto a religiatildeo a moral e outros valores que os humanistas pretendiam associar agrave poliacutetica nada tinham de relaccedilatildeo com aquele ponto fundamental Permitia-se a exceccedilatildeo apenas nos casos em que a religiatildeo e a moral contribuiacutessem para a conquista e a manutenccedilatildeo do poder quando entatildeo se tornam meios para a grandeza do Estado

Eacute preciso natildeo esquecer de que a razatildeo de Estado implica um cunho social Isto quer dizer que embora o Estado representasse poder pessoal prestiacutegio e forccedila para o governante focalizava e visava tambeacutem aos suacuteditos toda uma comunidade de homens para gerenciar e prover Para Maquiavel isto era um ponto de capital importacircncia visto que ele deixa transparecer nos seus escritos a opiniatildeo que considera os homens maus de nascenccedila e iacutendole Por conseguinte de nada adiantariam a boa-feacute a integridade e a honestidade do priacutencipe se estas virtudes natildeo impedissem a sua ruiacutena levando o Estado agrave fraqueza e agrave derrota que tem como consequecircncia o domiacutenio inimigo o qual provocaria natildeo soacute a inquietaccedilatildeo mas tambeacutem o sofrimento de toda a coletividade Esta inquietaccedilatildeo e o concomitante sofrimento por sua vez causariam a desconfianccedila e ateacute a 34 CRANSTON Maurice Poliacutetica e eacutetica Em KING PRESTON O Estudo da Poliacutetica Brasilia Universidade de Brasiacutelia 1980 Citado em RICARDO Rodrigues Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p 49 35 Cranston OC Em RODRIGUES op cit p 50

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

177

revolta dos cidadatildeos e enfraqueceriam o Estado Por isso o aspecto eacutetico para Maquiavel estaacute nas mais elevadas regras de grandeza de Estado manutenccedilatildeo do poder governabilidade e defesa custe o que custar do Estado ou do domiacutenio do priacutencipe Eacute na histoacuteria e tambeacutem nas suas aventuras diplomaacuteticas que Maquiavel viu estes princiacutepios sendo praticados ndash para o bem do Estado e do seu priacutencipe e suacuteditos - ou negli-genciados ndash para a sua ruiacutena e fraqueza

Ricardo Rodrigues aprecia e tenta justificar esta doutrina maquiave-liana quando destaca ldquoEacute necessaacuterio poreacutem perguntar desapaixonadamente se Maquiavel realmente merece ser considerado ldquomaquiaveacutelicordquordquo36 O autor reaviva a polecircmica em cima de Maquiavel e chega aacute conclusatildeo de que o Florentino natildeo quis propriamente sugerir como os priacutencipes deveriam se comportar para que sua poliacutetica se adequasse ao ideal eacutetico da sociedade mas apenas registrou como realmente procediam de modo que um entre os outros natildeo poderia se comportar diferentemente caso quisesse se conservar no trono e natildeo passar por ingecircnuo

Vasquez eacute outro autor que se inclina para separar a eacutetica da poliacutetica e declara

Na poliacutetica o indiviacuteduo encarna uma funccedilatildeo coletiva e a sua atuaccedilatildeo diz respeito a um interesse comum Na moral pelo contraacuterio ainda que o coletivo esteja sempre presente o elemento iacutentimo pessoal desempenha o papel importante [] interiorizando as normas gerais e assumindo responsabilidades pessoais37

Na realidade o fato mais notoacuterio eacute que ainda nos dias de hoje os estudiosos que procuram abordar ou elucidar o mesmo tema ou seja comprovar ou natildeo a identificaccedilatildeo da poliacutetica com a moral e a eacutetica sempre tentam se basear nos pressupostos constantes da filosofia poliacutetica do famoso Escritor Florentino

42 A moral em Maquiavel

Sabe-se que vaacuterios pensadores contemporacircneos de Maquiavel escre-veram tambeacutem como este manuais da linha ldquoEspelho dos Priacutencipesrdquo38 com o intuito de oferecer um norteamento comportamental para aquele que governa pautado tatildeo somente numa moral cristatilde 36 RODRIQUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na poliacutetica Op cit p 43-53 37 VASQUEZ Adolfo Sanchez Eacutetica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 pg 77 38 Eacute um gecircnero literaacuterio antigo que se espalhou sobre a Europa Medieval com base em fontes orientais nos seacuteculos XII a XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

178

A corrente filosoacutefica tradicional enfatiza a tese de que a virtugrave caracterizada por qualidades morais individuais como a justiccedila devia ser completada pelas qualidades ou virtudes cristatildes como a bondade e a feacute

Ao contraacuterio Maquiavel prefere romper com as tendecircncias medie-vais Resolve apresentar o seu ldquoEspelhordquo com caracteriacutesticas diferentes deixando de lado princiacutepios de uma moral cristatilde Rejeita imperativos categoacutericos como leis morais natildeo relativizaacuteveis por consideraacute-los belos ou atraentes como conceitos teoacutericos mas ineficazes na praacutetica da vida puacuteblica Estudiosos do universo maquiaveliano como Berlin39 e Skinner40 compartilham da ideacuteia de que essa preocupaccedilatildeo em romper e ateacute mesmo denunciar a ingenuidade das teorias poliacuteticas reflete o traccedilo de maior originalidade de Maquiavel

O Florentino rejeita a filosofia poliacutetica tradicional acreditando que os comentadores de sua eacutepoca natildeo haviam conseguido perceber a incompati-bilidade de uma ldquomoral cristatilderdquo que atenda agrave pessoa e uma ldquomoral poliacute-ticardquo que atenda ao coletivo no caso o Estado

Essa incompatibilidade reside na natureza humana representada por homens maus levianos covardes e gananciosos Na tentativa de comprovar a sua tese Maquiavel resume seu pensamento numa frase lapidar

[] Seria muito louvaacutevel que um priacutencipe possuiacutesse todas as qualidades consideradas boas Natildeo sendo isto poreacutem inteiramente possiacutevel devido agraves proacuteprias condiccedilotildees humanas eacute necessaacuterio a um priacutencipe aprender a natildeo ser bom41

Acredita Maquiavel que a histoacuteria eacute ciacuteclica e que os costumes variam de regiatildeo para regiatildeo de eacutepoca para eacutepoca Assim sendo como eacute impos-siacutevel frear as paixotildees e os instintos humanos os conflitos e as desordens aconteceriam indefinidamente Continuamente estariam presentes os mesmos viacutecios ou as mesmas virtudes

Para o Pensador Florentino entretanto cujo sonho era ver a Itaacutelia renascida como um Estado forte como outrora o Impeacuterio Romano era fundamental acabar com a desordem causadora de uma situaccedilatildeo poliacutetica tatildeo caoacutetica como a da Peniacutensula Italiana do seu tempo Realmente 39 BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees internacionais Textos de Aula Brasilia UnB sd 40 SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988 41 MAQUIAVEL O Priacutencipe Cap XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

179

parafraseando Rodrigues42 eacute possiacutevel dizer que a visatildeo histoacuterica poliacutetica dominante nesta parte da Europa expressava um exemplo significativo dessa malignidade humana a Peniacutensula dividida a ausecircncia de um poder central lutas fratricidas conflitos violentos entre pequenas naccedilotildees ou principados italianos invasotildees promovidas por impeacuterios ou grandes reinos vizinhos o poder temporal da Igreja tantas vezes se transformando em outro obstaacuteculo Afinal um quadro desolador de fraqueza total e de insignificacircncia poliacutetica

Preocupado angustiado mesmo com esse alarmante contexto histoacute-rico em que a Itaacutelia (inclusive Florenccedila) se encontrava envolvida Maquiavel fortifica cada vez mais a sua visatildeo sonhadora de uma paacutetria forte unida eficiente e eficaz Nesta perspectiva munido por um espiacuterito empiacuterico tambeacutem realista o Pensador Florentino assume posiccedilatildeo ideoloacutegica isto eacute pragmaacutetica poliacutetica e para muitos revolucionaacuteria

Vaacuterios inteacuterpretes concordam com a noccedilatildeo de que Maquiavel levado naturalmente por seu empirismo toma aquela dura e cruel conjun-tura poliacutetica como um desafio43 Em decorrecircncia passa a conceber um priacutencipe heroacutei um priacutencipe valoroso determinado capaz de ir ateacute as uacuteltimas consequumlecircncias a fim de alcanccedilar seus objetivos que era ndash nada mais nada menos ndash a regeneraccedilatildeo da Repuacuteblica Conforme o pensamento de Liacutedia Maria ldquoo projeto poliacutetico do secretaacuterio florentino apontava essencialmente para a construccedilatildeo de um Estado forte unificado e voltado para o bem comumrdquo 44

Levando em conta o contexto histoacuterico sobre o qual se discorreu anteriormente pocircr em praacutetica semelhante projeto poliacutetico natildeo era tarefa simples Daiacute por que o priacutencipe idealizado por Maquiavel deveria ser virtuoso ou pelo menos parecer ser e aleacutem disso deveria possuir muita astuacutecia esperteza e sabedoria para pautar as suas accedilotildees com vistas agraves circunstacircncias Neste sentido a visatildeo do Florentino eacute incisiva haacute viacutecios que satildeo virtudes Natildeo tema pois o priacutencipe que deseje se manter no poder incorrer no oproacutebrio dos defeitos mencionados se tal for indispen-saacutevel para salvar o Estado Aconselhava ainda ao priacutencipe saacutebio que devia se aproveitar sempre das oportunidades (ocasione) ldquoaprender os meios de natildeo ser bom e a fazer uso ou natildeo deles de acordo com as

42 Cf RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p49-52 43 Cf por exemplo Paul Larivaille e Newton Bigotto 44 RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel ndash Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002 pg 31

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

180

necessidadesrdquo45 De conformidade com a teoria poliacutetica maquiaveliana o priacutencipe poderia ateacute praticar o mal desde que seu ato fosse justificaacutevel ou melhor que resultasse num bem maior para todos a estabilidade do Estado

Interpretando a filosofia poliacutetica de Maquiavel dentro dessa oacuteptica Rodrigues conclui

Eacute assim que a poliacutetica maquiaveliana se faz autocircnoma A finalidade eacute excelsa e imperativa porque necessaacuteria inevitaacutevel originaacuteria e fundamental eacute uma legitimaccedilatildeo tatildeo forte que pode atropelar qualquer consideraccedilatildeo eacutetica O absolutismo eacute justificado 46

Assumindo posicionamento tatildeo radical era loacutegico pois que a concepccedilatildeo maquiveliana entrasse fundamentalmente em choque com a consciecircncia moral da tradiccedilatildeo poliacutetica cristatilde De fato dos pensadores cristatildeos dos liberais e dos teoacutericos do Estado beneficente emerge uma contundente onda de criacuteticas contra o Pensador Florentino Eacute tachado de ciacutenico imoral inescrupuloso democircnio espiacuterito satacircnico autor maldito e outros adjetivos do mesmo gecircnero

Como consequecircncia deste panorama Maquiavel passou a ser deveras incompreendido incompreensatildeo que perdura ateacute os dias atuais Um comen-tador recente jaacute o compreendeu ldquocomo uma das figuras mais emblemaacuteticas sendo odiado por muitos amado por outros e incompreendido pela grande maioriardquo47

Consideraacutevel nuacutemero de leitores desinformados alguns deles em total ignoracircncia a respeito das obras de Maquiavel ainda hoje evocam a figura do Secretaacuterio Florentino ou associam o seu nome a dois termos que assumiram sentido pejorativo maquiaveacutelico e maquiavelismo Nas duas acepccedilotildees datildeo ideia de indiviacuteduos traiccediloeiros auspiciosos caloteiros

Quem de noacutes por exemplo natildeo presenciou algueacutem se utilizando do termo maquiaveacutelico para criticar ou denunciar uma pessoa desleal corrupta que para conseguir vantagens pessoais sai atropelando tudo e todos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer aspecto eacutetico ou moral

45 MAQUIAVEL O priacutencipe cap XV 46 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a eacutetica na poliacutetica Op cit pg 71 47 AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e Razatildeo de Estado Faculdade Autocircnoma de Direito SDatildeo Paulo dezembro de 2008

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

181

Portanto neste trabalho evitou-se de propoacutesito o adjetivo maquia-veacutelico irremediavelmente distorcido por interpretaccedilatildeo errocircnea usando em seu lugar a expressatildeo maquiaveliana

Ainda em decorrecircncia desta atitude objetiva e desapaixonada assumida por Maquiavel fugindo dos padrotildees escolaacutesticos do seu tempo ateacute o seacuteculo XVII eram poucos os doutrinadores que aceitavam aberta-mente os seus pressupostos E no seacuteculo XIX desenterraram a ceacutelebre frase que lhe eacute igualmente atribuiacuteda os fins justificam os meios a qual natildeo consta dos seus escritos sentenccedila cujo uso se faz geralmente isolada do contexto unidade de ideia que jamais algueacutem comprovou tecirc-lo ouvido pronunciar E se realmente o Poliacutetico Florentino a abordava os fins eram tatildeo admiraacuteveis que natildeo poderia ningueacutem deixar de o louvar

Na Modernidade poreacutem as obras do Grande Pensador passaram a ser efetivamente analisadas discutidas e apreciadas Atingiu-se a essecircncia de sua filosofia poliacutetica e Maquiavel com a imagem resgatada aparece cintilante no universo de autores bem-sucedidos

Atualmente comentadores de renome de todos os cantos se arvoraram em defensores do Autor Florentino tecendo-lhes referecircncias honrosas e louvores Entre os que concordam com opiniotildees conclusotildees e interpretaccedilotildees de Maquiavel aponta-se o nome de Mounin

Pode-se afirmar que o secretaacuterio teve honroso papel na poliacutetica da eacutepoca com os meios da eacutepoca agrave medida da eacutepoca - no seu lugar Florenccedila e com as cartas que tinha em matildeo as cartas florentinas que natildeo constituiacuteam um jogo famoso Na histoacuteria do seu tempo Maquiavel eacute vencido natildeo um falhado48

E na tentativa de defender Maquiavel contra seus adversaacuterios Mounin acrescenta

Maquiavel foi realmente um poliacutetico que se alimentou de fatos apaixonado por fatos incansaacutevel na anaacutelise dos fatos [] Pode mesmo afirmar-se um dos mais certos meacuteritos de Maquiavel e um dos menos notados dos menos ceacutelebres tambeacutem eacute a paciecircncia incansaacutevel com que pinta com minuacutecia o espetaacuteculo infinito da complexidade dos fatos Mesmo se quase nunca estamos de acordo com ele acerca das causas e conexotildees a leitura de Maquiavel eacute um antiacutedoto salutar sem disso fazer um dogma unicamente devido ao cuidado que potildee na descriccedilatildeo ensina a cada linha que em poliacutetica nada eacute tatildeo simples como parece49

48 MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 p 15 49 MOUNIN Georges Maquiavel op cit p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

182

Nos tempos modernos outro doutrinador que merece igualmente ter seu nome incluiacutedo na lista dos defensores de Maquiavel eacute Lauro Escorel quando expressa

Maquiavel natildeo traccedilou portanto regras poliacuteticas que estivessem em contradiccedilatildeo com o seu tempo e que passassem desde entatildeo a ser germes de corrupccedilatildeo ou incentivos ao absolutismo como seus adversaacuterios quiseram fazer crer limitou-se a registrar dados de fato normas empiacutericas de conduta que explicaram no passado e no presente os ecircxitos e fracassos poliacuteticos Ao mesmo tempo interpretou ele as tendecircncias poliacuteticas da eacutepoca que era o absolutismo real e o secularismo sob cujos auspiacutecios nascia o Estado Moderno [] Se alguma responsabilidade moral lhe pode ser atribuiacuteda seraacute a de natildeo se ter preocupado em submeter a praacutetica poliacutetica ao crivo de um coacutedigo moral meta-histoacuterico mas isto resulta do meacutetodo indutivo-empiacuterico que o espiacuterito da Renascenccedila lhe inspirou50

Encontra-se nos escritos de Bertrand Russel talvez uma das mais ardorosas e eloquentes defesas de Maquiavel contra as criacuteticas dos anti-maquiavelistas Suas palavras comprovam esta afirmaccedilatildeo

A Renascenccedila embora natildeo haja produzido nenhum filoacutesofo teoacuterico importante produziu um homem de suprema eminecircncia na filosofia poliacutetica Maquiavel Eacute costume sentir-se a gente chocada por ele e natildeo haacute duacutevida de que agraves vezes ele realmente eacute chocante Mas muitos outros homens tambeacutem o seriam se fossem igualmente livres de hipocrisia Sua filosofia poliacutetica eacute cientiacutefica e empiacuterica baseada em sua proacutepria experiecircncia dos assuntos preocupada em declarar os meios de se chegar a determinados fins sem se preocupar de se saber se tais meios satildeo considerados bons ou maus Quando em certas ocasiotildees se permite mencionar os fins que deseja estes satildeo de tal natureza que natildeo podemos senatildeo aplaudi-los Grande parte da difamaccedilatildeo convencional ligada ao seu nome deve-se agrave indignaccedilatildeo dos hipoacutecritas que odeiam o franco reconhecimento das maacutes accedilotildees Resta eacute certo uma boa parte que realmente exige criacutetica mas nisto ele eacute uma expressatildeo de sua eacutepoca Tal honestidade intelectual a respeito da desonestidade poliacutetica dificilmente teria sido possiacutevel em qualquer outra eacutepoca e em qualquer outro paiacutes exceto talvez na Greacutecia entre os homens que deviam sua educaccedilatildeo teoacuterica aos sofistas e seu adestramento praacutetico agraves guerra de minuacutesculos Estados que tanto na Greacutecia claacutessica como na Itaacutelia da Renascenccedila eram o acompanhamento poliacutetico do gecircnio individual51

50 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 20 51 RUSSEL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969 p20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

183

A tendecircncia moderna diz que natildeo se deve simplesmente ldquodenegrir a imagem de Maquiavel e nem tatildeo pouco louvaacute-lo indiscriminadamenterdquo52 Concorda-se em gecircnero e nuacutemero com esta afirmaccedilatildeo predominante nos dias atuais Natildeo haacute duacutevida de que o Autor Florentino cometeu erros mas acertou muito mais Jamais se deve esquecer de que ele foi um produto do meio O peixe natildeo vive fora drsquoaacutegua E para Maquiavel era quase impos-siacutevel emergir da turbulecircncia histoacuterica em que viveu O Poliacutetico de Florenccedila foi praticamente nocauteado Seu espiacuterito confrontou-se com um dilema de escolha viver ou morrer E quem preferia morrer O que faz um homem todo dia senatildeo lutar pela sobrevivecircncia O poder poliacutetico era uma loteria Para ganhar qualquer priacutencipe teria de jogar Na luta pelo poder Maquiavel justificava o uso das armas ou da crueldade Por outro lado sempre dava liccedilotildees ao povo para se livrar dos tiranos53

5 Consideraccedilotildees finais

Maquiavel ao expor o pensamento ou ideias sobre a poliacutetica o fez de modo genial sem se deixar aprisionar por nenhuma corrente literaacuteria ou doutrinaacuteria Criou estilo proacuteprio pessoal Como consequumlecircncia seus escritos foram analisados de maneiras diversas inclusive mal interpretados Nos nossos dias ainda haacute algueacutem que natildeo consegue interpretaacute-lo com clareza coerecircncia e plena nitidez

Para uns Maquiavel parece ser o protoacutetipo do poliacutetico sem escruacute-pulos sem eacutetica que age de acordo com as circunstacircncias que se lhe apresentam Destarte eacute considerado um escritor e pensador nocivo cujas ideias devem ser banidas da praacutetica poliacutetica e substituiacutedas por uma ldquoverdadeirardquo atitude eacutetica

Para uns Maquiavel eacute considerado um elitista ao contraacuterio de outros que o tecircm em conta como um democrata autecircntico que natildeo via outro fator capaz de sustentar a estabilidade de todo e qualquer regime senatildeo a forccedila e o apoio popular E ainda hoje este axioma converge na poliacutetica moderna onde nenhuma autoridade se conserva no jogo do poder quando natildeo goza de boa reputaccedilatildeo e grande simpatia junto ao povo

52 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 21 53 Biografia Niccoloacute Machiavelli ndash 1469-1527 Disponiacutevel em wwwplmitorjnet Acessado em 15 de dezembro de 2010

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

184

Ainda haacute pessoas que o apresentam como defensor da forccedila e do absolutismo enquanto outras o exaltam na qualidade de conselheiro dos governantes republicano e amigo das leis

Natildeo obstante todas estas controveacutersias e talvez exatamente por causa delas a filosofia empiacuterica e cientiacutefica de Maquiavel se tornou um marco inestimaacutevel na trajetoacuteria da ciecircncia poliacutetica e universal

Como explicar que Maquiavel poreacutem eacute um verdadeiro ponto de referecircncia no desenvolvimento da ciecircncia poliacutetica O fato eacute que em decorrecircncia dos ensinamentos dele a arte da poliacutetica natildeo estaacute mais ligada agrave formulaccedilatildeo de ideais abstratos e por muitas vezes utoacutepicos de um bem comum formulado com suporte num ideal cristatildeo mas na observaccedilatildeo da praacutetica da accedilatildeo poliacutetica e na formulaccedilatildeo clara dos objetivos que se intente alcanccedilar Tambeacutem estaacute se vendo que a eacutetica na poliacutetica natildeo deve ser concebida e avaliada nos mesmos termos que a eacutetica individual com suas normas do bem e do mal A filosofia contemporacircnea fundamenta-se na efetiva perseguiccedilatildeo de eficaacutecia vigor patrioacutetico anaacutelise aguda das circunstacircncias na procura do fortalecimento e conservaccedilatildeo da paacutetria

Natildeo deve ser esquecido o fato de que nos primeiros tempos Maquiavel foi incompreendido por ser aquele expectador objetivo do processo poliacutetico que se manifesta nos seus escritos Na verdade a arte poliacutetica maquiveliana sempre procurou assentar-se na verdade efetiva das coisas ignorando a busca de como as coisas deveriam ser Com o realismo que lhe eacute peculiar o autor florentino pretendia apenas ensinar ao priacutencipe a fugir do imaginaacuterio recusando imagens idealizadas pela natureza humana mas irreais e que nunca existiram Para evitar a ruiacutena e tornar-se vitorioso o detentor do poder deveria se fixar no real e considerar os homens como eles realmente satildeo

Desempenhando o papel de mestre dos priacutencipes legou agrave contempo-raneidade um dos seus mais relevantes ensinamentos O caminho para o governante se tornar eficaz e tambeacutem responsaacutevel eacute basear seus empreen-dimentos em informaccedilatildeo correta previsatildeo de futuros imprevistos diagnoacutestico oportuno caacutelculo exato dos resultados previsiacuteveis tomada de decisatildeo na hora certa e muita sabedoria

Pretendendo dar conselhos aos priacutencipes prestou um excelente serviccedilo agrave humanidade Aconselhou a prudecircncia para todas as geraccedilotildees Sendo cauteloso o homem procura logo a cura de seus males em vez de tomar providecircncias tardias muitas vezes sem chances de remediaacute-los

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

185

Ensinou a todos a ver aleacutem das aparecircncias e descobrir o essencial aquilo que fica escondido sob os bastidores do teatro da vida

Evitar sempre a neutralidade e a dubiedade foi outra importante liccedilatildeo A pessoa que natildeo assume corajosamente sua verdadeira posiccedilatildeo natildeo inspira credibilidade e jamais conseguiraacute a confianccedila a lealdade e a afeiccedilatildeo de outrem

Conclamou Maquiavel as geraccedilotildees a natildeo se deixarem abater diante das crises ou dos momentos de infortuacutenio Ao contraacuterio eacute preciso lutar sempre pelas suas convicccedilotildees e acreditar firmemente que vencer sem luta eacute triunfar sem gloacuteria

Apoacutes a divulgaccedilatildeo de sua obra mais importante O Priacutencipe Maquiavel teve suas reflexotildees poliacuteticas muito mal interpretadas confor-me jaacute expresso E esta incompreensatildeo perdura por seacuteculos ateacute os dias atuais Basta que se procure num dicionaacuterio o significado do vocaacutebulo maquiaveacutelico e logo se encontra como sinocircnimo deste termo rdquoindiviacuteduo que age com astuacutecia perfiacutedia ou malvadezardquo Interpretaccedilotildees dessa natureza nada tecircm de verdadeiro Sempre satildeo resultantes de leigos desinformados ou mesmo acadecircmicos que natildeo efetuam uma anaacutelise mais atenta e cuidadosa sobre as posiccedilotildees poliacuteticas de Maquiavel E destarte natildeo atingem a profundidade do complexo ideaacuterio maquiveliano Nesta perspectiva acredita-se que a maior ofensa que se possa cometer contra o Notaacutevel Escritor Florentino eacute essa heranccedila maldita em torno de seu nome

O Priacutencipe eacute na atualidade um dos livros mais polecircmicos e mais lidos do mundo Sem qualquer duacutevida um verdadeiro best-seller Conteacutem subsiacutedios para todo e qualquer leitor que queira se aprofundar no conhecimento das regras e artiacutefices da arte de governar Considerado como um verdadeiro breviaacuterio sobre poliacutetica tornou-se livro de cabeceira para vaacuterios governantes Determinar o fim da influecircncia doutrinaacuteria medieval sobre a investigaccedilatildeo poliacutetica contemporacircnea foi sua importacircncia funda-mental

Apesar do seu intenso vigor patrioacutetico o Diplomata Florentino morreu sem presenciar a realizaccedilatildeo do seu sonho maior ver sua paacutetria - a Itaacutelia renascentista ndash cintilando no panorama das naccedilotildees fortes unidas estaacuteveis e desenvolvidas E poreacutem por meio das paacuteginas de O Priacutencipe transmitiu um admiraacutevel cabedal de conhecimentos sobre a loacutegica que rege a conquista e a manutenccedilatildeo do poder

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

186

Por tudo o que se abordou neste trabalho acredita-se firmemente que com justa razatildeo Maquiavel merece o cognome de ldquopai da ciecircncia poliacutetica modernardquo

Referecircncias Bibliograacuteficas

AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e razatildeo de Estado Satildeo Paulo sEd dezembro de 2008

BATISTA Flaacutevio Donizete Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Disponiacutevel em http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 25 de ou-tubro de 2010

BELLOZO Edson Maquiavel e as origens do pensamento poliacutetico moderno Disponiacutevel em wwwminiwebcombrcienciasartigosmaquiavel Aces-so em 15-09-2010

BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Textos de Aula Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Internacionais Brasiacutelia UnB sd

BIRARDI A e Castelani G R Desmistificando Maquiavel Ensaio acerca de sua histoacuteria obras e conceitos Disponiacutevel em httpwwwklepsidra netklepsidra4maquiavelhtn Acessado em 18092010

BIGNOTTO Newton Maquiavel Republicano Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1991

BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

CAILLEacute Alain LAZZERI Christian SENELLART Michel (organizado-res) Histoacuteria argumentada da Filosofia Moral e Poliacutetica Satildeo Leopoldo Editora UNISINOS 2003

BARROS Vinicius Soares de Campos 10 liccedilotildees sobre Maquiavel Petroacute-polis Editora Vozes 2010

FRANCO Afonso Arinos de Mello O Pensamento poliacutetico na Renas-cenccedila Cadernos da UnB Humanidades Brasiacutelia UnB 1980 p 19-27

DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores Ltda 1984

ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao pensamento poliacutetico de Maquiavel Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1979

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

187

______ O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 18-52

GREGORIO Fernando Ceacutesar Aplicando Maquiavel no dia a dia Satildeo Paulo Madras Editora Ltda 2008

GRUPPI Luciano Tudo comeccedilou com Maquiavel Porto Alegre L amp PM Editores 1988

LARIVAILLE Paul A Itaacutelia no tempo de Maquiavel (Florenccedila e Roma) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

MAQUIAVEL O Priacutencipe Comentado por Napoleatildeo Bonaparte Traduccedilatildeo Pietro Nassetti Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

MAQUIAVEL Nicolau Comentaacuterios sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1992

MOREIRA Marcilio Marques O Pensamento Poliacutetico de Maquiavel Textos de aula Brasiacutelia Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Interna-cionais sd

MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984

REALE Giovanni e ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Do Huma-nismo a Descartes Satildeo Paulo Paulus 2004

RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002

RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no2 Recife Unicap 1986 p 43-53

RODRIGUES Ruy Martinho Priacutencipe Lobo e Homem Comum (Anaacutelise das Ideacuteias de Maquiavel Hobbes e Locke) Fortaleza UFC 1997

RUSSELL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969

SANTOS Vivian Matias dos Niccolo Machiavelli moralista ou intelec-tual orgacircnico Em Mediaccedilotildees v12 n2 p 175-187 juldez 2007

SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988

STRATHERN Paul Maquiavel (em 90 minutos) Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

188

WEBER Hingo O priacutencipe amp Maquiavel sem ideologias Petroacutepolis Editora Vozes 2007

SADEK Maria Nicolau Maquiavel o cidadatildeo sem Fortuna e o intelectual de virtugrave Em WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2003

WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Licenciada em Filosofia e Histoacuteria pela Faculdade de Filosofia do Cearaacute e

Especialista em Gestatildeo Puacuteblica pela Universidade Vale do Acarauacute

Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos Doutor em Teologia pela Pontiacutefica Universidade Gregoriana

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

189

SOBRE A RELACcedilAtildeO DINAcircMICA DA REALIDADE SUPRA-SENSIacuteVEL SEGUNDO PROCLO

SUR LA RELATION DYNAMIQUE DE LA REacuteALITEacute

SUPRASENSIBLE SELON PROCLUS

Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha

Resumo

O presente artigo tem por objetivo demonstrar porque as relaccedilotildees dinacircmicas satildeo imprescindiacuteveis na filosofia procleana Para tanto parte-se da problemaacutetica da inexis-tecircncia de movimento na realidade supra-sensiacutevel mostrando que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento de deslocamento Defende-se pois que natildeo se trata em Proclo (412 ndash 485 dC) de uma sucessatildeo de eventos e nem de uma mudanccedila na substacircncia Desta forma apoacutes a anaacutelise do movimento de processatildeo parte-se para a consideraccedilatildeo do papel das triacuteades da realidade incorpoacuterea para soacute entatildeo verificar a importacircncia das relaccedilotildees dinacircmicas na multiplicaccedilatildeo e diversidade dos seres Apoacutes ser estudado o papel das triacuteades seraacute possiacutevel perceber que natildeo eacute o movimento o responsaacutevel pela diversidade mas a relaccedilatildeo dinacircmica que a possibilita Assim este trabalho se fundamenta nos Elementos Teoloacutegicos de Proclo

Palavras-chave Proclo Triades Relaccedilatildeo Dinacircmica

Resumeacute Lrsquoobjectif de cette recherche est montrer que les relations dynamiques sont indispensables dans la philosophie proclienne Alors il part de la question de lrsquoabsence du mouvement dans les reacutealiteacutes suprasensibles montrant que le mouvement de oprocession nrsquoest ni une sucession drsquoeacuteveacutenements ni un changement dans la substance Apregraves analyser le mouvement de procession il fait lrsquoexamen de la function des triades dans la reacutealiteacute incorporelle et veacuterifie lrsquoimportance des relations dynamiques dans la multiplication et dans la diversiteacute des ecirctres Apregraves lrsquoeacutetude de la function des triades il sera possible comprendre que nrsquoest pas le mouvement le responsable pour la diversiteacute mais la relation dynamique qui la rend possible Cet eacutetude est fondamenteacutee dans lrsquooeuvre Eacuteleacutements de Theacuteologie de Proclus (412-485 a C)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

190

Mots-cleacutes Proclus Triades Relation Dynamique

Introduccedilatildeo

Herdeiro da filosofia pagatilde Proclo (412-485 dC) eacute considerado o uacuteltimo expoente de destaque da filosofia antiga a atuar na escola de Atenas1 Como neoplatocircnico as teses do Bizantino satildeo marcadas pela tentativa de conciliaccedilatildeo das doutrinas platocircnicas aristoteacutelicas e pitagoacutericas Por estar inserido no contexto das escolas da Antiguidade Tardia os escritos do filoacutesofo satildeo caracterizados por sua sistematicidade Neste sentido o pensador ao expor a passagem da unidade agrave multiplicidade natildeo admite passagens abruptas e portanto natildeo concebe que do Uno surja imediatamente a multiplicidade em sua complexidade isto eacute ele natildeo concebe uma passagem imediata do Uno ao Noucircs

Entretanto ainda que a passagem do Uno ao muacuteltiplo seja algo fundamental na filosofia procleana ela encerra um problema Acontece que Proclo na realidade supra-sensiacutevel natildeo admite movimento na substacircncia Diante disto partindo da ideia platocircnica de que ldquomudanccedila eacute movimentordquo2 a diferenccedila entre os seres da realidade imaterial natildeo pode ser explicada Uma vez que sem movimento natildeo haacute produccedilatildeo Assim para solucionar tal problemaacutetica parte-se da hipoacutetese de que a diferenccedila na realidade imaterial natildeo eacute o resultado de um movimento de deslocamento ou da proacutepria substacircncia dos seres mas da relaccedilatildeo entre os princiacutepios que os constituem Para verificar tal hipoacutetese eacute preciso iniciar a anaacutelise com o

1 Fechada em 529 por Justiniano de acordo com o decreto que afirma ldquoNingueacutem que tenha sido contagiado por tais heresias poderaacute desempenhar grau no exeacutercito ou exercer ofiacutecios puacuteblicos nem na condiccedilatildeo de professor que se ocupe de alguma disciplina () Proibimos que seja ensinada qualquer doutrina da parte daqueles que satildeo afetados pela insacircnia dos iacutempios pagatildeosrdquo (REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008 p 206-208)Tal decreto que afetou profundamente as escolas de vertente pagatilde fez com que pensadores da Academia como Simpliacutecio (490 ndash 560 dC) e Damascius (458 ndash 583 dC) fugissem para Peacutersia A fim de dar continuidade aos estudos permaneceram por volta de 531532 na corte de Khussraw I pois o rei da Peacutersia se mostrava simpatizante do pensamento grego Somente em 533 por ocasiatildeo do ldquotratado de paz eternardquo assinado entre os persas e os bizantinos retornaram ao Ocidente Sobre a fuga dos pensadores pagatildeos para a Peacutersia ver SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012 paacuteg 62-74 2 Parmecircnides 162c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

191

movimento de processatildeo pois eacute por ele que primeiramente Proclo explica a saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade

1 O movimento de processatildeo

De acordo com a filosofia procleana a multiplicidade soacute pode ser pensada se a unidade for pressuposta Assim toda multiplicidade participa de tal forma da unidade que a sua natildeo participaccedilatildeo implicaria em uma multiplicaccedilatildeo infinita o que seria um engano Pois se a multiplicidade natildeo participasse da unidade ou a proacutepria multiplicidade seria una ou natildeo-una e no caso de ser natildeo-una ou seria muitas ou nada Admitir que ela eacute nada eacute cair num contrassenso pois como algo (um existente) poderia ser nada Ou ainda como pode haver geraccedilatildeo se o ser natildeo pode advir do nada Por outro lado a tese de que a multiplicidade existe precisa de uma anaacutelise cuidadosa uma vez que afirmar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla pode levar a aporias jaacute que sua gecircnese natildeo seria explicada fazendo com que se caia numa regressatildeo infinita3

A regressatildeo aconteceria porque ao sustentar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla e natildeo una se admite que cada parte que a compotildee tambeacutem eacute muacuteltipla de modo que nunca se chega a um princiacutepio Logo haacute uma necessidade de contornar a ideia da regressatildeo ad infinitum Para tanto o princiacutepio como unidade eacute posto como indispensaacutevel mediante a ideia de que se fossem dois ou eles seriam iguais ou diferentes Sendo iguais se trataria de apenas uma substacircncia ou seja seriam um sendo diferentes um teria de ser o primeiro derivando entatildeo um do outro Se os dois estivessem no mesmo patamar nenhum seria o primeiro o que significaria a existecircncia de algo acima deles que os deu origem Entatildeo o que pode se perceber eacute que natildeo importa o caminho seguido a razatildeo sempre leva a um primeiro que eacute fundamentalmente um4 Assim este Um no neoplatonismo eacute posto como unidade absolutamente simples da qual toda multiplicidade participa

Proclo entatildeo faz surgir da unidade toda multiplicidade Esta multiplicaccedilatildeo da unidade originaacuteria se daacute por meio do movimento de processatildeo que eacute composto por trecircs momentos muito distintos mas que

3 PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995 Proposiccedilatildeo 1 4 Cf op cit Proposiccedilatildeo 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

192

estatildeo estreitamente interligados Satildeo eles Processatildeo (πρooacuteδος) Perma-necircncia (μονή) e Retorno (ἐπιστροφή) Os trecircs momentos se distinguem pelo fato de que no primeiro (πρooacuteδος) haacute uma separaccedilatildeo entre a causa e seu efeito no segundo (μονή) tem-se que mesmo que haja a processatildeo eacute preciso que o produto permaneccedila em sua causa e no terceiro (ἐπιστροφή) o efeito retorne agrave causa pelo desejo de nela participar Entretanto a ligaccedilatildeo entre estes eventos natildeo acontecem em uma ordem linear mas se datildeo simultaneamente5 Posto que se soacute procedesse natildeo haveria qualquer comunicaccedilatildeo entre o que produz e o que eacute produzido se soacute permanecesse natildeo haveria produccedilatildeo e como pode haver retorno sem que haja separaccedilatildeo6 Portanto por exigir tanto o sair como o permanecer na causa o movimento de processatildeo acontece de modo circular

A processatildeo guarda entatildeo algumas leis inviolaacuteveis que garantem que todas as etapas aconteccedilam A primeira lei atesta que toda causa produtiva produz por super abundacircncia de potecircncia Neste sentido Proclo sustenta que ldquo[] tout ce qui produit demeure tel qursquoil est et parce qursquoil demeure tel son deacuteriveacute procegravede Crsquoest donc par la pleacutenitude et la perfection dont il jouit qursquoil fait subsister ses deacuteriveacutes sans se mouvoir ni srsquoamoindrirrdquo7 A segunda que estaacute em concordacircncia com a primeira defende que devido agrave super abundacircncia de potecircncia o produtor natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo ao engendrar seus efeitos8 A terceira legitimando todo o momento da processatildeo defende a tese de que toda produccedilatildeo soacute se efetiva por meio da semelhanccedila9 entre produto e produtor10

A menccedilatildeo agraves leis de processatildeo prepararam o terreno para o esclarecimento da multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases por meio da unidade Isto

5 Para Caram a simultaneidade dos momentos da processatildeo se daacute porque para os neoplatocircnicos a categoria da causalidade natildeo envolve uma sequecircncia temporal ou mesmo a noccedilatildeo moderna de eventos sucessivos que pressuporia um lsquoantes e depoisrsquo jaacute que a relaccedilatildeo natildeo eacute entre eventos mas substacircncias CfCARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesrevistasthemata 49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015 p108 6 PROCLUS Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 30 7 Op cit Proposiccedilatildeo 27 8 Segundo Proclo ldquoToute cause qui produit autre qursquoelle-mecircme produit ses deacuteriveacutes et ce qui les suit en demeurant en elle-mecircmerdquo Op cit Proposiccedilatildeo 26 9 Cf Caram A semelhanccedila em Proclo eacute a capacidade de manter a caracteriacutestica do ser originaacuterio poreacutem em um grau menor CARAM op cit 2014 p 108 10 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 28-29

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

193

porque de acordo com tais leis o produtor eacute sempre superior a tudo o que vem depois dele tendo em vista que natildeo sofre qualquer diminuiccedilatildeo assegurando assim a continuidade do movimento e permite que aquilo que eacute produzido seja semelhante11 ao produtor A semelhanccedila se daacute desta forma porque o ser do produzido adveacutem do proacuteprio produtor ao dar ao produzido da sua proacutepria substacircncia Neste sentido o Diadoco sustenta que ldquoTout dispensateur qui agit par son ecirctre (τὸτῷεἰναιχορηγοῦν) est lui-mecircme de faccedilon primordiale ce qursquoil communique aux beacuteneacuteficiaires de ses dispensationsrdquo12 Partindo de tal proposiccedilatildeo o sucessor do pensamento platocircnico demonstra no que consiste a semelhanccedila entre causa e efeito Ainda eacute preciso contudo apontar as implicaccedilotildees da semelhanccedila no movimento de processatildeo

Quando se fala em semelhanccedila a primeira coisa a ser vista eacute que na processatildeo o que se revela no efeito eacute a proacutepria manifestaccedilatildeo da causa uma vez que como mencionado o produto possui o mesmo ser do produtor dado que ele eacute a continuidade ontoloacutegica da sua causa A semelhanccedila leva o produto a desejar retornar ao produtor pois soacute na causa que eacute superior pode encontrar perfeiccedilatildeo O desejo de retornar soacute existe porque haacute uma comunicaccedilatildeo ininterrupta entre eles Tal comunicaccedilatildeo eacute tambeacutem conexatildeo que na processatildeo estrutura o cosmo permitindo que a causa esteja sempre em contato com seus efeitos Deste modo o movimento acontece de modo circular no qual o efeito sai da causa ao mesmo tempo em que permanece nela e a ela retorna em um ciclo interrupto onde o princiacutepio e o fim satildeo o mesmo Sobre isto Proclo assevera

Tout ecirctre qui procegravede drsquoun principe et se convertit vers lui a une activiteacute cyclique Si cet ecirctre se convertitvers ce dont il procegravede il fait coiumlncider sa fin avec son principe et son mouvement est unique et continu qursquoil srsquoeacutecarte du repos originel ou qursquoil srsquoy rapporte Crsquoest pourquoi tous les ecirctres accomplissent un processus cyclique qui va de leurs causes agrave leurs causes Il est des cycles plus amples et il en est de plus court selon que les conversions se portent aux cause immeacutediatement supeacuterieures ou agrave de plus eacuteleveacutees jusqursquoau principe universal13

11 Platatildeo define semelhanccedila como aquilo que eacute outro mas imita o objeto ao qual eacute semelhante a fim de conservar sua beleza No entanto o faz mudando de proporccedilatildeo Cf Platatildeo Sofiacutesta 136 a 12 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 18 13 Op cit Proposiccedilatildeo 33

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

194

Na processatildeo a semelhanccedila vem em primeiro lugar sendo ela quem proporciona a conversatildeo e permanecircncia do causado na causa Todavia natildeo haacute multiplicaccedilatildeo somente com semelhantes pois neste caso o que diferiria o produto do produtor a causa do causado Para que haja distinccedilatildeo entre os elementos eacute preciso que exista alguma caracteriacutestica diferente entre eles e uma vez que a processatildeo se daacute pela multiplicaccedilatildeo do ser do produtor natildeo pode haver diferenccedila entre a constituiccedilatildeo do ser da causa e do causado Assim a priori a diferenccedila entre causa e efeito se apresenta como diferenccedila de potencialidade14 Isto porque para Proclo eacute imprescindiacutevel que o produto seja inferior em potecircncia ao seu produtor Portanto se por um lado na multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases a semelhanccedila eacute necessaacuteria por outro a dessemelhanccedila tambeacutem o eacute15

A diferenccedila entatildeo consiste em potecircncias diferentes que faz com que os elementos que compotildeem o sistema procleano faccedilam parte de uma hierarquia na qual quanto mais proacuteximo o produto estiver da sua causa mais perfeito e potente ele eacute16 Isso porque aqueles que estatildeo mais proacuteximo recebem em maior grau a potecircncia produtiva e no mesmo grau em que recebe a potecircncia recebem o ser da mocircnada originaacuteria Ao ter um maior grau de ser e de potecircncia o produtor eacute para o que vem em seguida causa bem e perfeiccedilatildeo fazendo com que este segundo deseje dele participar e natildeo somente o deseje mas necessite de tal participaccedilatildeo para alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Logo a correspondecircncia entre perfeiccedilatildeo constituiccedilatildeo e partici-paccedilatildeo se estabelece partindo de uma hierarquia na qual os seres que estatildeo mais proacuteximos do princiacutepio de sua seacuterie satildeo superiores e servem como degraus para perfeiccedilatildeo daqueles que satildeo produzidos por uacuteltimo

A perfeiccedilatildeo que se daacute mediante a participaccedilatildeo na causa como jaacute foi dito soacute eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre os termos Assim o desejo do produto de participar do seu produtor eleva o produtor ao patamar de bem No entanto se o primeiro bem de cada seacuterie natildeo pode ser partici-pado entatildeo como aquele que soacute existe por meio da participaccedilatildeo em outro pode participar daquele que eacute imparticipado Tal possibilidade se daacute pela existecircncia de um elemento intermediaacuterio que na filosofia procleana eacute sempre fundamental O intermediaacuterio no que diz respeito agrave participaccedilatildeo eacute

14ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur est drsquoordre supeacuterieur agrave son produit PROCLUS Op cit Proposiccedilatildeo 7 15 ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur esr drsquoordre supeacuterieur agrave son produitrdquoop cit 1995 Proposiccedilatildeo 7 16 Op cit Proposiccedilatildeo 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

195

posto como participado aquele pelo qual o participante adquire sua perfeiccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoPuisqursquoil eacutetait imparfait avant la participation et est devenu parfait par la participation le participant est entiegraverement subordonneacute au participeacute dans lrsquoordre de la perfection anteacuterieure il est infeacuterieur au participeacute qui le rend parfaitrdquo17

Tem-se entatildeo a existecircncia de uma triacuteade composta por hipoacutestases por meio de uma causa uacutenica satildeo elas o imparticipado o participado e o participante O imparticipado eacute segundo Proclo aquele que tem em si a razatildeo de sua proacutepria unidade18 Nele estaacute toda a potecircncia e capacidade de produzir ou seja eacute a mocircnada19 de uma seacuterie que surge mediante ele mesmo O que eacute produzido imediatamente pelo imparticipado eacute o partici-pado e o que eacute produzido em seguida participante Ambos participante e participado satildeo semelhantes ao imparticipado pois dele recebem sua substacircncia Entretanto satildeo dessemelhantes porque na medida em que saem de sua causa satildeo potencialmente inferiores a ela A inferioridade de sua potecircncia eacute determinante em sua imperfeiccedilatildeo No entanto eacute exatamente na imperfeiccedilatildeo e contemplaccedilatildeo do perfeito que estaacute o desejo de participar

A triacuteade referente agrave participaccedilatildeo estaacute diretamente associada agravequela referente agrave perfeiccedilatildeo pois a medida de perfeiccedilatildeo eacute a mesma da participaccedilatildeo Assim o ser imparticipado corresponde ao Bem o participado ao autohipostaacutetico20 e os outros seres aqueles que tecircm sua existecircncia partindo de outros ao participante Estas triacuteades por sua vez equivalem agravequela referente ao Imoacutevel Automotor e Heteromotor O que torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que sejam utilizados termos diferentes levando em consideraccedilatildeo um predicado o pensador estaacute sempre se referindo ao mesmo elemento dentro de uma seacuterie Ou seja natildeo importa se remete ao Imoacutevel Imparticipado ou Bem quando se evoca um destes termos a referecircncia eacute sempre ao princiacutepio da seacuterie e o mesmo acontece com os outros elementos21 Por esta razatildeo por meio de uma unidade que aparece como Bem Imoacutevel ou

17 PROCLUS op cit Proposiccedilatildeo 24 18 Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 23 19 Cf Proclo A Mocircnada na filosofia procleana eacute o princiacutepio originaacuterio de toda seacuterie Eacute dela que toda multiplicidade mediante a semelhanccedila tem origem op cit Proposiccedilatildeo 21 20 Autohipostaacutetico eacute todo aquele que existe em si e por si ou seja tem em si mesmo a razatildeo de sua existecircncia e constituiccedilatildeo sendo portanto perfeito 21 A saber quando se fala em participado automotor ou autohipostaacutetico do termo intermediaacuterio que faz a ligaccedilatildeo entre o princiacutepio Quando cita os seres cuja existecircncia dependente de outros estaacute sempre se referindo ao uacuteltimo termo da seacuterie ou seja o participante que eacute tambeacutem heteromotor e natildeo eacute causa de sua proacutepria perfeiccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

196

Imparticipado surge um elemento que eacute estreitamente semelhante a ela pois dele recebe o seu ser

Agrave vista do exposto nesta primeira anaacutelise a diferenccedila caracteriacutestica da multiplicidade se mostrou tatildeo somente como resultado da diferenccedila de potencialidade entre produto e produtor O que se observa entretanto ao investigar a multiplicidade ou mesmo a sua relaccedilatildeo com a unidade eacute que a diferenccedila que existe nela natildeo se limita a uma desigualdade de potecircncia como bem se observa na constituiccedilatildeo do Noucircs e na proacutepria diversidade dos seres Por isto eacute preciso ir mais a fundo na investigaccedilatildeo a fim de descobrir a gecircnese da diferenccedila Afinal quando se fala da dessemelhanccedila mediante os graus de potencialidade tem-se jaacute anteriormente uma diver-sidade presente nas mocircnadas pelas quais as seacuteries satildeo derivadas Com o intuito de aprofundar o exame referente agrave origem da diferenccedila portanto eacute necessaacuterio analisar o papel das triacuteades na geraccedilatildeo dos seres

2 A organizaccedilatildeo triaacutedica da realidade sobre o papel de Peacuteras Apeiacuteron e Mixto

O sistema procleano de hipoacutestases eacute disposto em triacuteadas Natildeo satildeo somente as hipoacutestases que satildeo ordenadas triadicamente pois esta forma de organizar perpassa todos os acircmbitos da filosofia do Bizantino Prova disto eacute a relaccedilatildeo que daacute origem a toda realidade a saber o movimento de processatildeo que como visto eacute constituiacutedo por trecircs momentos indispensaacuteveis e indissociaacuteveis Aleacutem da triacuteade presente no movimento de processatildeo a proacutepria realidade incorpoacuterea eacute sistematizada desta forma sendo composta por trecircs hipoacutestases divina inteligiacutevel e psiacutequica Cada uma das realidades mencionadas guarda particularidades que soacute dizem respeito a elas mesmas Poreacutem satildeo semelhantes na perspectiva de ser cada uma subdivi-dida em triacuteades

Por estar presente em todos os momentos da teoria do Diadoco o entendimento das triacuteades eacute essencial para que o pensamento do autor seja compreendido principalmente quando se trata da concepccedilatildeo do desdobra-mento da multiplicidade mediante a unidade Sobre a importacircncia das triacuteades na tese procleana Bezerra faz a seguinte afirmaccedilatildeo ldquochegamos assim agrave ideia das triacuteades como mediaccedilatildeo entre a multiplicidade constante das coisas e a unidade superior a todo devirrdquo22 A triacuteade como movimento de processatildeo eacute o

22 BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006 p 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

197

elemento motor da participaccedilatildeo haja vista ser determinante na constituiccedilatildeo dos seres Tal constituiccedilatildeo por sua vez estaacute diretamente relacionada agrave mobilidade dos termos que compotildee a realidade incorpoacuterea e corpoacuterea A estrutura triaacutedica portanto faz existir uma mediaccedilatildeo dinacircmica que proporciona a continuidade ontoloacutegica daquilo que eacute produzido permitindo o contato do Uno com tudo o que vem em seguida Neste sentido Caram assegura que ldquoo sistema procleano eacute uma trama de relaccedilotildeesrdquo23

Eacute esse complexo de relaccedilotildees que permite a causalidade pois os encadeamentos natildeo possuem um caraacuteter temporal uma vez que natildeo se trata de um antes e depois relativo ao vir-a-ser mas tatildeo somente a uma questatildeo loacutegica explicativa Assim a passagem da unidade agrave multiplicidade eacute feita mediante o estabelecimento de um sistema no qual partindo da unidade um atributo eacute gerado e mantido por meio das triacuteades permitindo que a comunicaccedilatildeo se estenda do primeiro ao uacuteltimo termo de uma ordem Eacute importante observar entretanto que sendo o Uno a Causa Prima ele transcende a todas as realidades de maneira a estar separado de qualquer ordem Ou seja natildeo se pode dizer que o Uno faz parte de qualquer seacuterie da realidade incorpoacuterea pois transcende a todas Trouillard neste sentido defende que o Uno natildeo estaacute em nenhuma ordem a qual produz24 diferente das demais causas que satildeo o centro de suas ordens

No que respeita agrave realidade supra-sensiacutevel a primeira hipoacutestase que descende diretamente do Uno eacute a divina o universo das heacutenadas Depois delas haacute a realidade inteligiacutevel e em seguida a psiacutequica A hipoacutestase divina eacute aquela na qual se encontra o iniacutecio da multiplicidade embora seja apenas uma multiplicidade quantitativa E mesmo que sejam muitas elas se caracterizam pela unidade dado que eacute a primeira esfera que surge atraveacutes do Uno Neste sentido com base na ideia de que o Uno eacute Deus25 e Bem Proclo defende que a multiplicidade dos deuses eacute unitaacuteria26 tendo

23 CARAM op cit 2014 p 105 24 Cf TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982 p 54 25 Eacute valido lembrar que apesar de ser denominado Deus o Uno soacute possui esta nomenclatura por ser causa e portanto dar origem e manter todos os seres aleacutem de ser objeto de desejo de todos uma vez que eacute o Sumo Bem 26 O caraacuteter transcendente do Uno o leva a ser considerado como Deus mas um deus que transcende a todos os deuses por ser Causa Primeira e objeto de desejo de todas as coisas de modo a estar acima de toda ordem Os primeiros elementos que satildeo deles originados satildeo as Heacutenadas que embora extremamente semelhantes a ele lhe satildeo potencialmente inferior Elas tecircm assim o papel intermediaacuterio entre a realidade divina e inteligiacutevel sendo assim

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

198

em vista que o Diadoco natildeo concebe saltos entre os termos da processatildeo e as Heacutenadas satildeo as primeiras coisas produzidas Apoacutes as Heacutenadas haacute a realidade inteligiacutevel onde se encontra a diversidade de maneira mais concreta tendo em vista que nela haacute inuacutemeras organizaccedilotildees nas quais o iniacutecio da diversidade dos seres eacute manifesto

A estrutura loacutegica da realidade inteligiacutevel procleana eacute interpretada por Caram27 como o fundamento de toda hipoacutestase pois a divisatildeo em Ser Vida e Intelecto tanto reflete os momentos da processatildeo quanto o ciclo das almas28 e o mundo do devir29 Assim a indispensabilidade da triacuteade inteli-giacutevel natildeo se refere somente agrave sua influecircncia no que eacute engendrado em seguida mas agrave unidade presente no Espiacuterito e na totalidade do cosmo Por esta razatildeo a ordem inteligiacutevel encontra na triacuteade Ser Vida e Pensamento sua unidade fundamental na medida em que pensamento e ser estatildeo unidos de tal forma que o pensamento eacute sempre pensamento do ser e o ser eacute sempre ser do pensamento Deste modo ldquo[] na Inteligecircncia estatildeo ambos Ser e Vida por participaccedilatildeo e cada um deles intelectualmente pois o ser da inteligecircncia eacute cognoscitivo e sua vida eacute conhecimentordquo30 A unidade entre Ser e Pensamento daacute ao Noucircs a dinacircmica que se manifesta como a vida que se faz presente no Espiacuterito e que medeia a relaccedilatildeo entre aqueles dois termos31

Proclo assegura a unidade do Espiacuterito ao declarar que cada um dos elementos que o compotildee estaacute presente nos demais embora chame atenccedilatildeo ao fato de que mesmo que tudo esteja em tudo cada um estaacute em seu modo proacuteprio O Diadoco entatildeo apresenta trecircs maneiras de existir essencial-mente vitalmente e intelectualmente32 Cada modo corresponde a um elemento que faz parte da esfera inteligiacutevel e a ligaccedilatildeo entre os trecircs soacute eacute

muacuteltiplas quanto sua quantidade mas unitaacuterias quanto aos seus atributos pois os uacutenicos que podem ser percebidos satildeo bondade e unidade PROCLO Op cit Proposiccedilatildeo 113 27 Cf CARAM op cit 2014 p 107 28 Para Proclo ldquoToda alma eacute uma substacircncia vital e cognoscitiva um princiacutepio de vida substancial e cognoscitiva e um principio de conhecimento por ser uma substacircncia e um princiacutepio de vidardquo PROCLO op cit proposiccedilatildeo 197 (traduccedilatildeo nossa) Cf TRUILLARD O ciclo da alma eacute composto por ser ou substacircncia vida ou potecircncia e pensamento ou atividade p 60 68 29 Cf TRUILLARD op cit 1982p 60 As ordens do reino do devir satildeo mineral vegetal e sensitivo 30 PROCLO op cit Proposiccedilatildeo 103 (traduccedilatildeo nossa) 31 ldquoSin el acto de la vida que opera la mediacioacuten entre los dos elementos el espiacuterito no tendria ninguna conciencia del proacuteprio ser e de la proacutepria esencia [] Ella en cuanto pensante e y existente funda el acto de identida que ocurre entre el ser y el espiacuterito y deviene mediadora dela triadicidad del νοῦςrdquo CARAM op cit 2014 p 117 32 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 103

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

199

possiacutevel porque cada um deles eacute formado pelos mesmos princiacutepios Limite e Ilimitado Desta maneira eacute possiacutevel dizer que cada elemento que faz existir a triacuteade do Espiacuterito eacute formado por outra triacuteade cujos princiacutepios satildeo comuns Ou seja 1) finito infinito e Ser 2) finito infinito e vida e 3) finito infinito e pensamento33 satildeo triacuteades que produzem triacuteades

Limite e Ilimitado satildeo a diacuteade pela qual se manifesta o Uno Satildeo o princiacutepio de todo ser e por esta razatildeo satildeo os elementos centrais para a explicaccedilatildeo da produccedilatildeo da multiplicidade haja vista o Uno soacute produzir semelhantes34 Esses dois princiacutepios satildeo causa de todo ser aleacutem de serem a primeira manifestaccedilatildeo do Uno de maneira que tudo que se segue eacute composto por eles Neste sentido DrsquoAncona atesta que ldquoCes deux priacutencipes consideres par Proclos comme Supremes en tant que responsables de chaque manifestation de stabiliteacute et de changement dans lrsquounivers tout entierrdquo35 Para Proclo ateacute as Heacutenadas que estatildeo no mesmo plano do Uno por fazerem parte da realidade divina procedem dos dois princiacutepios36 Mesmo que os dois princiacutepios soacute sejam percebidos nos seres ou seja como mistura entretanto cada princiacutepio existe por si mesmo e independente um do outro37 - o que leva agrave necessidade de analisar cada um isoladamente

Peraacutes ou o Limite eacute a causa da semelhanccedila com o Uno que segundo Berger representa o Primeiro Princiacutepio por sua estabilidade e concentraccedilatildeo em si mesmo dando a todos que dele participa integridade unidade e estabilidade Por tais donativos que concernem a suas proacuteprias caracteriacutes-ticas ele eacute anaacutelogo ao uno e ao mesmo38 Assim a accedilatildeo do limite por tambeacutem ser entendido como determinante consiste na unificaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas satildeo do Limite como existente em si e por si separado do Ilimitado39 O que acontece eacute que Limite e Ilimitado no entanto na esfera do real soacute podem ser encontrados unidos pois soacute sua uniatildeo ocasiona o primeiro ser o Ser verdadeiramente ser40 Poreacutem antes da mistura como assegura Proclo eacute necessaacuterio que tais princiacutepios existam em si e por si mesmos ainda que sua accedilatildeo soacute se realize na mistura Mas antes de passar

33 Cf BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840 p 44 34 Cf BEZERRA op cit 2006 p 120 35 COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995 p 60 36 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 159 37 Cf Ibid proposiccedilatildeo 90 38 Cf BERGER op cit 1840p 41 39 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 90 40 Cf COSTA Op cit 1995p 61

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

200

para o exame da mistura e sua necessidade eacute preciso discorrer sobre o Ilimitado

Sendo o Limite responsaacutevel pela estabilidade e unidade do ser o Ilimitado ou apeiacuteron diz respeito agrave potecircncia (dynamis) Eacute ele que possibilita o sair da unidade para a multiplicidade por ser uma potecircncia geradora sendo imagem da fecundidade do Uno De acordo com Berger o ilimitado eacute anaacutelogo ao muacuteltiplo e ao outro41 Semelhante ao Limite ainda que o Ilimitado exista substancialmente diferente e separado de qualquer mistura ele natildeo se manifesta separado do seu oposto pois ao ser indeter-minaccedilatildeo necessita de um objeto pelo qual ocorre sua manifestaccedilatildeo Ressaltando entatildeo o caraacuteter de inseparabilidade destes princiacutepios nos seres Caram assevera que ldquoLa ilimitacioacuten nunca existe apartado del liacutemite liacutemite ilimitacioacuten y su combinacioacuten reaparecen en todos los niveles de la realidadrdquo42 Desta feita o que se evidencia eacute que toda existecircncia na esfera inteligiacutevel assim como o que vem depois dela soacute eacute compreendido atraveacutes desses dois princiacutepios

Limite e Ilimitado por serem os primeiros derivados do Uno engendram a esfera Inteligiacutevel e consequentemente toda diversidade dos seres Isto ocorre porque mesmo que o Uno soacute produza unidades tais unidades se singularizam mediante a accedilatildeo do Limite que por sua vez soacute pode atuar no sentido de causar novos seres atraveacutes da accedilatildeo do Ilimitado E o Ilimitado ainda que relativo agrave potecircncia geradora soacute se manifesta quando presente nos seres ou seja quando sofre a do limite43 Eacute portanto partindo do Limite e do Ilimitado que todas as realidades sejam da esfera corpoacuterea ou incorpoacuterea vem agrave existecircncia poreacutem o limite que se encontra nos seres natildeo eacute um Limite puro e com o Ilimitado acontece o mesmo Tem-se agora a triacuteade que compotildee o universo Limite Ilimitado e Mistura

Os dois princiacutepios natildeo se manifestam na esfera do real em sua substacircncia pura o que os leva a dar origem a um terceiro que eacute na verdade a siacutentese dos seus antecessores Assim o terceiro termo como elemento de mediaccedilatildeo e siacutentese do que vem anteriormente estaacute presente em todas as relaccedilotildees triaacutedicas No caso de peacuteras e apeiacuteron tem-se a mistura que na filosofia procleana aparece como o verdadeiro ser Eacute portanto no Ser verda-deiro que a unidade caracteriacutestica do Primeiro princiacutepio eacute salvaguardada

41 Cf BERGER op cit 1840p 41 42 CARAM op cit 2014 p 114 43 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 92

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

201

sem que a diversidade do que vem em seguida seja posta em xeque44 No entanto como jaacute mencionado o reino divino ou seja das Heacutenadas tambeacutem eacute formado atraveacutes dos dois princiacutepios Desta maneira a diversidade dos seres para ser compreendida deve ser analisada nestes dois elementos a saber nas Heacutenadas e no Ser verdadeiramente ser pois eles natildeo satildeo apenas manifestaccedilotildees do Uno mas dos princiacutepios pelo qual satildeo formados

3 A origem da diversidade dos seres

O Ser como siacutentese de limite e ilimitado mesmo que encerre em si a unidade apresenta os dois princiacutepios em relaccedilatildeo pondo em evidecircncia a dualidade que adveacutem de seus componentes45 A dualidade faz do primeiro ser como tudo o que vem em seguida uma triacuteade que mesmo sendo encabeccedilada pelo Ser tem em sua substacircncia Identidade e Diferenccedila Logo o Ser nesta perspectiva se apresenta como uma unidade de contrapo-siccedilotildees dado que natildeo possuir somente o Limite e Ilimitado como perten-centes a si mas tambeacutem Identidade e Diferenccedila o que leva a ter em sua constituiccedilatildeo ser e natildeo-ser46 Eacute importante observar poreacutem que Platatildeo jaacute havia apresentado um natildeo-ser que natildeo dizia respeito a um inexistente

Platatildeo no diaacutelogo Sofista ao investigar a natureza do Ser chega agrave conclusatildeo de que tudo pela participaccedilatildeo eacute ser e simultaneamente natildeo-ser Para tanto considera que o Ser pode ser participado por inuacutemeros gecircneros dos quais o fundador da Academia lista movimento repouso diferente e idecircntico O sentido do ser e natildeo-ser ocorre porque todos os gecircneros satildeo seres pela participaccedilatildeo no Ser e ao mesmo tempo satildeo natildeo-ser por serem diferentes dele47 Com este raciociacutenio Platatildeo chega agrave tese de que o natildeo-ser natildeo eacute pura nulidade sendo portanto algo diferente do Ser embora participe dele48 Proclo segue uma teoria semelhante Nos Elementos de Teologia o Bizantino classifica todas as coisas em unas unas

44 Cf CARAM op cit 2014 p 114-115 45 De acordo com o Diadoco o ser por caracterizar-se como misto de limite e ilimitado tem em si estas duas caracteriacutesticas que nele satildeo indissociaacuteveis Eacute dito ldquoSrsquoil a une infinite puissance il est eacutevidemment infini et sous ce rapport il est forme drsquoinfini Srsquoil est indivisible et semblable agrave lrsquoum sous ce rapport il a parta u deacuteterminatrdquo PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 89 46 Cf CARAM op cit 2014 p 114 47 Sofista 255e-256e 48 Eacute necessaacuterio para Platatildeo que todos os gecircneros participem do Ser sob a pena de sua natildeo existecircncia Neste sentido ao passo que todos os outros gecircneros satildeo ser pela participaccedilatildeo o Ser natildeo participa de nenhum outro gecircnero pois ele eacute causa e se participasse de algo mais seria diferente de si mesmo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

202

e natildeo-unas e natildeo-unas e unas de acordo com a participaccedilatildeo na unidade Ao fazer isto ele natildeo considera aquilo que eacute denominado como natildeo-uno como nada49 de modo a somente estabelecer uma diferenccedila entre o que eacute pura unidade e o que de alguma maneira participa da multiplicidade Platatildeo sobre o sentido da negaccedilatildeo em casos como o do natildeo-ser e natildeo-uno esclarece

Estrangeiro Quando dizemos natildeo-ser nos referimos suponho natildeo a algo que seja o oposto do ser mas somente a algo diferente [] Portanto quando nos disserem que o negativo significa o oposto discordaremos Somente admitiremos que a partiacutecula natildeo indica algo diferente das palavras agraves quais serve de prefixo ou melhor diferente das coisas agraves quais os nomes que se seguem agrave negaccedilatildeo satildeo aplicados50

Platatildeo ainda no Sofista assegura que a natureza do Diferente eacute fragmentada pois quando manifesta nos seres natildeo se revela como diferenccedila Isto significa que o Diferente quando buscado em algo que eacute analisado por si mesmo se mostra como seu contraacuterio ou seja como idecircntico fato que soacute natildeo ocorre quando ponderado por meio da negaccedilatildeo Como exemplo tem-se o momento que objetiva investigar o diferente do branco e para esta razatildeo passa a investigar o preto Este por sua vez natildeo soacute o seu diferente mas o seu oposto ou seja o preto quando visto fora de sua relaccedilatildeo com o branco natildeo aparece como diferente dele mas como idecircntico a si mesmo Desta feita a diferenccedila ao ser estudada nas coisas natildeo se encontra como tal jaacute que o que se manifesta eacute o ser da coisa investigada O sentido do Diferente soacute eacute alcanccedilado quando na busca por ele natildeo se predica os atributos daquilo que se entende por diferente mas o anuncia mediante a negaccedilatildeo

Ao buscar a natureza do diferente se chega ao Idecircntico devido o caraacuteter positivo da afirmaccedilatildeo de sorte que o Diferente soacute pode ser compreendido na negaccedilatildeo Deste modo em Proclo ao estudar a triacuteade que corresponde ao Ser Identidade e Diferenccedila levando em consideraccedilatildeo que Identidade e Diferenccedila satildeo inerentes ao Ser a causa da diferenccedila entre os seres se revela como o princiacutepio do Limite dado que ele eacute quem daacute singularidade atraveacutes do ato de determinar Proclo sobre o

49 A unidade para Proclo eacute o que faz existir todas as coisas neste sentido negar a unidade do que quer que seja significaria negar a existecircncia da coisa Quando o Diadoco todavia se refere ao natildeo-uno ele segue a mesma linha de raciociacutenio que Platatildeo quando se refere ao natildeo-ser 50 Sofista 257b-c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

203

papel do Limite argumenta ldquo[] pero el liacutemite define circunscribe y situacutea cada cosa en sus propios confines [] de suerte que cada uno de los seres tiene una cierta naturaleza una definicioacuten una propiedad y un orden propios por el primer liacutemiterdquo51 Tornado clara a correspondecircncia do Limite na singularidade e particularizaccedilatildeo dos seres tem-se a seguinte questatildeo se eacute o Limite que daacute singularidade ao ser qual o papel do Ilimitado

O Ilimitado natildeo diz respeito ao estado dos seres mas de sua potecircncia Neste sentido Proclo assegura que o grau de potencialidade eacute proporcional ao de Unidade Esta potecircncia no ser natildeo eacute pura pois por ordem de necessidade participa do Limite Logo se pode dizer que por ser potecircncia ela soacute existe atraveacutes daquilo que jaacute estaacute em ato O Diadoco menciona assim dois tipos de potecircncias as infinitas e as finitas sendo as infinitas aquelas que estatildeo nos seres que tem maior participaccedilatildeo no limite O Sucessor Platocircnico no entanto chama atenccedilatildeo ao fato de que apesar de se falar em potecircncias infinitas estas soacute o satildeo para os seres inferiores pois para o ser de potecircncia infinita e para os seus superiores tais potecircncias natildeo satildeo infinitas Isto se daacute porque os inferiores natildeo conseguem compreender a totalidade dos seres que o satildeo superiores jaacute o ser ao qual a potecircncia lsquoinfinitarsquo pertence sabe seu limite assim como o sabem os que lhe satildeo superiores ou seja uma potecircncia soacute aparece como infinita para os seres inferiores que natildeo conseguem compreender seus limites52

O Ilimitado na qualidade de potecircncia proporciona a saiacuteda do Uno em direccedilatildeo agrave multiplicidade provocando a comunhatildeo e conexatildeo entre tudo que existe Pois eacute a potecircncia geradora ao ser indeterminada ou seja natildeo tendo nenhuma caracteriacutestica especiacutefica que perpassa todas as coisas estando portanto presente em todas Ao estar presente em tudo daacute a possibilidade de reunificaccedilatildeo de tudo o que existe Isto posto a identidade pode ser analisada em dois sentidos 1) como potecircncia que atravessa todos os seres dando a todos um caraacuteter comum e 2) como identidade dos seres consigo mesmos O primeiro sentido eacute oriundo do Ilimitado o segundo do Limite que particulariza cada ser Logo o duplo caraacuteter da identidade torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que opostos Identidade e Diferenccedila natildeo se anulam

51 PROCLO Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999 XLII13P 20 - 25 52 Cf PROCLO op cit proposiccedilatildeo 91 93

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

204

A diversidade aparece na hipoacutestase inteligiacutevel mediante a accedilatildeo dos princiacutepios do limite e do ilimitado que fazem da potecircncia que sai do Uno uma unidade delimitando-a e singularizando-a frente ao todo Fica todavia a questatildeo porque haacute diferenccedilas entre os seres que satildeo particularizados pela accedilatildeo dos dois princiacutepios Com a explicaccedilatildeo da diferenccedila como parte integrante do ser fica claro que a diferenccedila tem sua primeira expressatildeo nele porque o limite determina aquilo que jaacute eacute pela possibilidade ou seja age como uma atualizaccedilatildeo Os princiacutepios satildeo pois responsaacuteveis pela forma natildeo pela diversidade da multiplicidade propriamente dita Logo se o Ser eacute o primeiro componente do inteligiacutevel soacute resta recorrer ao primeiro elemento incorpoacutereo ou seja elevar a anaacutelise para o plano divino jaacute que o inteligiacutevel eacute a consumaccedilatildeo daquilo que jaacute existe como causa no divino

De fato toda multiplicidade Proclo repete enquanto tal faz tudo dessemelhante do Uno por consequecircncia ela eacute derivada do Uno natildeo diretamente mas atraveacutes de um princiacutepio de mediaccedilatildeo Este princiacutepio se assemelha ao Uno enquanto unidade que engendra certa multiplicidade particular e se assemelha agrave multiplicidade enquanto possui as caracteriacutesticas de modo arquetiacutepico 53

As Heacutenadas ou unidades divinas satildeo este princiacutepio e portanto a primeira multiplicidade Elas natildeo possuem poreacutem atributos de forma que esta passagem soacute pode ser constatada numericamente Assim a multiplicidade surge na proacutepria realidade divina uma vez que as Heacutenadas satildeo determinaccedilotildees divinas e como tal cooperam com o Uno que estaacute acima de toda ordem na produccedilatildeo dos seres Consequen-temente do Uno os seres recebem sua existecircncia e das Heacutenadas seus predicados atraveacutes da participaccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoasiacute es la heacutenade la que impone su propio caraacutecter a los existentes participantes y despliega existencialmente en el uacuteltimo la cualidad que eacutel mismo posee supra-existencialmente54 Por conseguinte toda diversidade existente na esfera do real jaacute se encontra nas Heacutenadas de maneira germinal Agrave vista disto para cada Heacutenada participaacutevel existe um ser participante o que

53 ldquoDe fait toute multipliciteacute Proclus le reacutepegravete est en tant que telle tout agrave fait dissemblable de lrsquoUn par conseacutequent elle deacuterive de lrsquoUn non directement mais agrave travers un principe de meacutediation Ce dernier ressemble agrave lrsquoun en tant qursquoil est lrsquouniteacute qui engendre cette multipliciteacute particuliegravere et ressemble agrave la multipliciteacute en tant qursquoil en possegravede les caractegraveres de faccedilon archeacutetypiquerdquo COSTA Op cit 1995p 87 54 PROCLO op cit proposiccedilatildeo 137

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

205

proporciona o desenvolvimento da caracteriacutestica fundamental de cada seacuterie55

A diversidade dos seres portanto na esfera incorpoacuterea natildeo se trata da accedilatildeo do movimento de geraccedilatildeo como acontece na realidade corpoacuterea A diversidade nasce como realizar-se daquilo que jaacute existe como causa nas Heacutenadas por intermeacutedio da accedilatildeo dos princiacutepios do Limite e Ilimitado Logo natildeo se pode dizer que haacute uma mudanccedila nos seres no domiacutenio da inteligibilidade mas uma passagem da potecircncia ao ato possibilitada pelo mister de limite e ilimitado Desta forma o Uno por ser causa Suma daacute existecircncia a tudo e as Heacutenadas pela participaccedilatildeo daacute os atributos que jaacute existem nelas mesmas em forma de causa Quanto aos princiacutepios do Limite e Ilimitado a eles cabe o papel de manifestar tais atributos na medida em que delimitam o ser singularizando-o Com isso tais seres seratildeo idecircnticos agrave mocircnada de sua ordem e agrave totalidade das coisas por possuiacuterem unidade e tambeacutem satildeo diferentes por sua particularizaccedilatildeo Tal diferenccedila contudo soacute pode ser percebida quando analisada a totalidade dos seres

Conclusatildeo

Ante o exposto o que pode ser concluiacutedo eacute que ainda que o sistema procleano seja regido por multiplicaccedilatildeo pela semelhanccedila pois eacute do Uno que toda multiplicidade tem origem isto soacute eacute possiacutevel porque seu sistema consiste em uma trama de relaccedilotildees Ocorre que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento ontoloacutegico isto eacute natildeo se trata de uma saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade por meio de uma sucessatildeo de eventos O que pode ser percebido quando eacute dito que natildeo haacute um antes ou depois relativo aos momentos da processatildeo O fato de natildeo existir um antes ou depois no movimento de processatildeo todavia natildeo implica em uma estabilidade no sistema do Bizantino pelo contraacuterio seu sistema eacute marcado pelas relaccedilotildees entres os termos Sendo por meio das triacuteades que tal relaccedilatildeo adquire dinamicidade

Assim se por um lado a realidade supra-sensiacutevel eacute marcada pela imobilidade com exceccedilatildeo da Alma que eacute automotora por outro ela tambeacutem eacute marcado por triacuteades que permanecem em constante relaccedilatildeo De modo que a relaccedilatildeo dialeacutetica existente entre os termos das triacuteades eacute o que possibilita a origem da diferenccedila na hipoacutestase inteligiacutevel dando a ela

55 Op cit proposiccedilotildees 131 135

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

206

um caraacuteter dinacircmico que lhe possibilita atributos aleacutem da unidade e bondade Porquanto ainda que a imobilidade esteja presente na realidade supra-sensiacutevel no sentido de natildeo existir um movimento de geraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre os princiacutepios oriundos diretamente do Uno peacuteras e apeiacuteron possibilita tanto a passagem da unidade agrave multiplicidade quanto a diversidade de seres existente Ou seja eacute a relaccedilatildeo dinacircmica que permite a existecircncia do diferente e ao passo que proporciona o diferente viabiliza tambeacutem o idecircntico

Logo o que se pode concluir eacute que no que concerne agrave realidade sensiacutevel toda a diversidade adveacutem do movimento seja o de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seja o de deslocamento jaacute na realidade supra-sensiacutevel a diversidade eacute oriunda das relaccedilotildees Considerando que eacute na relaccedilatildeo dos princiacutepios que constitui os seres que os predicados passam da potecircncia ao ato conservando caracteriacutestica dos princiacutepios que o constitui Neste sentido todo ser eacute ao mesmo tempo o resultado de seus princiacutepios e algo diferente deles De modo que eacute na relaccedilatildeo que o Outro e o Mesmo tecircm existecircncia sendo tambeacutem por ela que eacute possiacutevel chegar natildeo soacute ao ser em particular mas a totalidade dos seres

Referecircncias Bibliograacuteficas

BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006

CARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 pp 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesre vistasthemata49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015

COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995

REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008

PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

207

________ Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999

PLATAtildeO Parmecircnides In Diaacutelogos IV Parmecircnides (ou formas) Poliacutetico (ou da realeza) Filebo (ou do prazzer) Liacutesis (ou da amizade) Traduccedilatildeo textos complementares e notas de Edson Bini Bauro SP EDIPRO 2009

__________ Sofista In Diaacutelogos I Teeteto (ou sobre o conhecimento) Sofista (ou do ser) Protaacutegoras (ou sofista) Traduccedilatildeo textos complemen-tares e notas Edson Bini ndash Bauru SP EDIPRO 2007

SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012

TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982

Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Doutora pela Universidad Complutense de Madrid

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza soeudaimoniahotmailcom

Jan Gerard Joseph ter Reegen Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Professor emeacuterito da Universidade Estadual do Cearaacute e Coordenador de Pos-Graduaccedilatildeo e Extensatildeo da FCF

jangjtrgmailcom

Suelen Pereira da Cunha Mestranda pela Universidade Federal do Cearaacute

suelenldp2011gmailcom

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

208

ENSAIO

AS FONTES MIacuteSTICAS E COSMOLOacuteGICAS DO ldquoCASTELO INTERIORrdquo DE TERESA DrsquoAacuteVILA

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo

Na obra Castelo Interior ou Moradas Teresa de Jesus miacutestica do Renascimento espanhol encarou a tarefa de descrever suas experiecircncias extaacuteticas Semelhante a outros miacutesticos natildeo o poderia fazer sem interpretar e mediatizar uma experiecircncia que eacute supralinguiacutestica Por isso recorreu ao simbolismo Comparou a alma a sete castelos ou globos concecircntricos de cristal ou diamante Esses castelos simbolizam as etapas da ascensatildeo da alma O Castelo Interior eacute ldquoa aacutervore da vida que estaacute plantada nas mesmas aacuteguas vivas que eacute Deusrdquo (1M 21) Eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a cabala mais especificamente com a literatura judaica conhecida como Hechalot (Palaacutecios)

Palavras-chave Teresa de Jesus Miacutestica Renascentista Moradas Hechalot

1 Introduccedilatildeo

Santa Teresa de Jesus ou simplesmente Santa Teresa DrsquoAacutevila (1515 ndash 1582) miacutestica carmelita e escritora foi uma das mais eminentes contem-plantes do Renascimento espanhol A reformadora do Carmelo por moti-vos de obediecircncia agrave autoridade da igreja enfrentou a tarefa de colocar por escrito seus ecircxtases com o objetivo de instruir as monjas que estavam sob sua tutela a respeito do caminho interior para alcanccedilar a uniatildeo miacutestica Ela proacutepria definiu seu empenho como difiacutecil quase impossiacutevel porque nas operaccedilotildees iacutentimas da alma se adere agrave secreta ldquolinguagem de Deusrdquo Natildeo sabendo nem como comeccedilar sua empreitada Teresa acreditou ter recebido de Deus a inspiraccedilatildeo de considerar a alma como um castelo1 de diamante

1 Castelo Interior ou Moradas eacute sua obra mestra escrita em 1577 cinco anos antes da morte de Teresa

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

209

ou de cristal com muitos aposentos da mesma forma que no ceacuteu haacute muitas moradas (1M 11)

A alma humana eacute considerada agrave maneira de sete moradas ou globos concecircntricos de fino cristal ou diamante que marcam as etapas progres-sivas do desenvolvimento miacutestico O progresso espiritual descrito por meio das sete moradas resume as trecircs etapas principais da vida interior e da oraccedilatildeo

Trecircs das moradas enfocam o que se pode fazer para avanccedilar ateacute as moradas interiores nas quais estaacute Deus Exigem o desenvolvimento do amor ao proacuteximo da renuacutencia a julgar os outros do conhecimento de si da humildade do processo de interiorizaccedilatildeo e ativaccedilatildeo do desejo por Deus

A quarta eacute uma etapa de transiccedilatildeo na qual se comeccedila a responder ao chamado de Deus e eacute quando Ele comeccedila a assumir o controle de tudo Nas moradas mais interiores Deus purifica a alma cada vez mais e a vai tornando a Sua semelhanccedila ateacute a etapa do matrimocircnio espiritual

A quinta morada eacute a da santidade A esse ponto Teresa dedica quase a metade do Castelo Interior pois essas etapas mais profundas requerem orientaccedilatildeo mais cuidadosa A transformaccedilatildeo interior estaacute cada vez mais intensa e soacutelida e o coraccedilatildeo vai ficando sempre mais inundado pela radiante luz divina

Na sexta morada Teresa disserta sobre as provas exteriores e interiores acerca dos trabalhos os obstaacuteculos e as adversidades agrave santificaccedilatildeo que satildeo cada vez mais numerosos fortes e sutis e exigem maior capacidade de discernimento

A uacuteltima morada a mais interior eacute diferente de todas pois nesse estado acontece a uniatildeo miacutestica Ali estaacute Deus com quem a alma se une pois fica cheia de luz tendo deixado para traacutes o democircnio na forma de vaacuterios animais ferozes e peccedilonhentos (4M 19) Haacute uma fusatildeo entre a alma e a Luz divina Eacute o matrimocircnio miacutestico

[] eacute como se a aacutegua caindo do ceacuteu em um rio ou fonte onde estiver toda a aacutegua jaacute natildeo se pode separar nem distinguir qual eacute a aacutegua a do rio ou a que caiu do ceacuteu (7M 24)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

210

2 Os limites da linguagem humana

Michael Gerli nos mostra que muitas metaacuteforas espirituais especial-mente as arquitetocircnicas se tornaram populares na espiritualidade euro-peacuteia precisamente por seu caraacuteter mnemoteacutecnico2 que as tornava atraentes (GERLI 1982 p 154-163) Eacute notoacuterio que isso ocorreu com a metaacutefora usada por Teresa pois esta pedia agraves filhas espirituais que o trouxessem sempre agrave memoacuteria (1M 26 7M 39)

Agrave primeira vista o esquema simboacutelico usado por Teresa parece original contudo eacute impossiacutevel expressar literariamente uma experiecircncia dessa natureza sem recorrer aos siacutembolos disponiacuteveis no contexto cultural e religioso no qual o miacutestico estaacute inserido

Conforme Barbara Kurtz a linguagem dos miacutesticos natildeo pode transcrever uma experiecircncia sem interpretaacute-la e mediatizaacute-la por mais que se lute contra os limites da linguagem humana incapaz de abordar a transcendecircncia (KURTZ 1992 p 32)

Nesse sentido Teresa confessa natildeo saber como expressar a miste-riosa vivecircncia miacutestica que teve por isso eacute que se utiliza de metaacuteforas O castelo interior tal como o descreve Teresa eacute tanto uma figura de grande beleza plaacutestica quanto algo muito faacutecil de recordar Portanto deve pertencer ao contexto da autora Por ser uma metaacutefora entretanto pouco usada torna-se difiacutecil rastrear as possiacuteveis origens desse simbolismo

O contexto cultural no qual o miacutestico vive ajuda a dar forma simboacutelica agrave sua experiecircncia transcendente que eacute em si supralinguiacutestica O ecircxtase eacute por definiccedilatildeo inefaacutevel por isso o miacutestico sempre recorre a metaacuteforas que satildeo comuns em seu ambiente cultural para explicitar de alguma maneira o que aconteceu nas fronteiras espaciotemporais da razatildeo e da linguagem

Sendo assim haacute o seguinte problema de onde Teresa tira o simbo-lismo com o qual descreve a experiecircncia miacutestica Seus estranhos castelos concecircntricos natildeo pertencem agrave tradiccedilatildeo cristatilde ocidental Em qualquer outro escrito de espiritualidade encontramos o avanccedilo miacutestico da alma claramente estruturado ao longo de sete moradas (ou castelos) cada vez mais interiores

2 Teacutecnica de estimulaccedilatildeo da memoacuteria sinocircnimo de arte de memorizaccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

211

3 Busca das fontes Teresianas

A busca miacutestica da uniatildeo com Deus foi simbolizada tradicional-mente por uma viagem um trajeto percorrido pela alma Isso faz parte de um conjunto de siacutembolos religiosos adotados por cristatildeos judeus e mulccedilumanos ao longo da histoacuteria Muitas tradiccedilotildees mencionam um itineraacuterio e um desejo intenso da alma por Deus Falam da entrega e da purificaccedilatildeo da renuacutencia e do abandono resultantes da uniatildeo miacutestica

Gaston Etchegoyen propotildee que Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna ambos autores muito apreciados pela Carmelita sejam as princi-pais fontes para o Castelo Interior (ETCHEGOYEN 1923 15) Mas o proacuteprio Etchegoyen admite que os esboccedilos de ambos natildeo satildeo suficientes para explicar os pormenores do siacutembolo usado por ela

Francisco de Osuna se limita a um esquema muito restrito agraves alegorias medievais no qual os inimigos tradicionais (a carne o mundo e o democircnio) tentam penetrar o castelo da alma Bernardino Laredo com seu modo de compreender a civitas sancta assentada em um campo quadrado de fundamento de cristal com muros de pedras preciosas e com um ciacuterio pascal no centro que simboliza Cristo eacute mais distante ainda do esquema teresiano

Outros propotildeem como antecedentes teresianos os romances de cavalaria do Renascimento espanhol que a Santa admite ter lido com grande paixatildeo juvenil Quando examinamos esses livros somos forccedilados a concluir que eles natildeo nos datildeo a chave do siacutembolo imaginado pela Monja de Aacutevila Em nenhum romance da eacutepoca os castelos satildeo sete vezes concecircntricos nem celebram a uniatildeo teopaacutetica3 em seu recinto mais interno Nem na arquitetura dos castelos espanhoacuteis os quais ainda se podem visitar constam de sete moradas cada vez mais interiores (PEERS 1951 p 17)

4 Recurso agrave miacutestica judaica

A fase primitiva da miacutestica judaica antes de se cristalizar na Cabala medieval que eacute a mais longa e se estende desde o seacuteculo I aC ateacute o seacuteculo X eacute conhecida indistintamente como a tradiccedilatildeo da Merkavah ou miacutestica Carruagem ou do Trono de Deus A literatura da Merkavah se desenvolveu com suporte em especulaccedilotildees sobre visotildees profeacuteticas do Antigo Testamento O termo hebraico merkabah refere-se ao trono-

3 Sensiacutevel agrave divina influecircncia ser profundamente afetado por Deus

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

212

carruagem de Deus na visatildeo de Ez 1 O corpus principal da literatura Merkabah foi composto no periacuteodo de 200-700 dC

Na fase mais antiga o visionaacuterio o miacutestico era arrebatado geral-mente ateacute agraves esferas celestes e vislumbrava Deus como rei sentado em um trono sustentado por uma carruagem em um firmamento de cristal rodeado de raios com querubins e quatro seres vivos junto a Ele

A primeira apresentaccedilatildeo da escala completa da Merkavah a miacutestica da carruagem do Senhor aparece nos escritos visionaacuterios conhecidos como os livros de Hechalot Esses escritos consistem em descriccedilotildees Hechalot salas o palaacutecios celestiais O desejo mais profundo do miacutestico era alcanccedilar a sala do trono durante a ascensatildeo aos ceacuteus para contemplar o esplendor da majestade de Deus A literatura Hechalot dedica-se a discutir os detalhes desses ceacuteus agraves vezes em conexatildeo com as tradiccedilotildees relacionadas com a apocaliacuteptica dos ciacuterculos de Henoque (SCHOLEM 1965 p 9-13)

Para alguns estudiosos a literatura Hechalot eacute um gecircnero de textos esoteacutericos e apocaliacutepticos judaicos que se estendem ateacute o iniacutecio da Idade Meacutedia Os sete Hechalot ou sete ceacuteus fazem parte da cosmologia religiosa encontrada nas grandes religiotildees como o judaiacutesmo o hinduiacutesmo e o islamismo bem como em algumas religiotildees menores como o hermetismo e gnosticismo Segundo essa cosmologia o trono de Deus estaacute acima do seacutetimo ceacuteu

Vaacuterias religiotildees atribuem ao nuacutemero sete a perfeiccedilatildeo uacuteltima tampouco a miacutestica judaica o ignorou estaacute em obras como os Sete Hechalot ou Sete Palaacutecios a que o israelita recorria simbolicamente para falar do arrebatamento do vidente ateacute ascender ao Trono de Deus conforme o texto do Sefer Hechalot4 ou Terceiro Livro de Henoque muito considerado pela cabala judaica Essa obra se mostra como tendo sido escrita no seacuteculo II dC mas suas origens soacute podem ser rastreadas ateacute o seacuteculo V O autor se faz passar pelo Rabi Ismael o qual teria se tornado um ldquosumo sacerdoterdquo depois das visotildees decorrentes de seu arrebatamento ao ceacuteu Os principais temas abordados pelo Sefer Hechalot satildeo a ascensatildeo de Henoque ao ceacuteu e sua transformaccedilatildeo no anjo Metatron (DAN 1993 p 7-24)

No final do seacuteculo XIII Moiseacutes de Leoacuten compilou uma obra atribuiacuteda ao rabino Simeon ben Yohai que viveu na Palestina no seacuteculo II

4 Sefer significa livro e Hechalot quer dizer Palaacutecios ou Templos

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

213

Na citada obra conta-se uma experiecircncia visionaacuteria do suposto rabino no momento em que a alma dele se libera momentaneamente do corpo e experimenta una revelaccedilatildeo magniacutefica sob a forma de sete palaacutecios do paraiacuteso e em contrapartida sete palaacutecios do inferno Isso significa que ainda existe um sistema de siacutembolos essenciais dos ensinamentos dos Hechalot unido a novas ideias desenvolvidas posteriormente com origens nas especulaccedilotildees sobre a merkavah ou carruagem do Senhor

A obra compilada por Moiseacutes de Leoacuten recebeu o nome Zoha ou Livro do Esplendor o grande comentaacuterio miacutestico judaico que compendiou a Cabala No Zohar os sete palaacutecios estatildeo povoados de anjos que irradiam luz Em contraste com o objetivo dos primeiros miacutesticos da merkavah que era ver a sala do trono de Deus o desejo do miacutestico apresentado pelo Zohar eacute chegar a uma comunhatildeo com Deus ou seja a uma fusatildeo entre as vontades divina e humana que se realiza no ecircxtase e eacute simbolizada no ldquobeijo do Amorrdquo Conforme o Zohar o beijo que une a alma a Deus eacute descrito no seacutetimo palaacutecio e sua intensidade eacute tal que pode extrair a alma do corpo e levaacute-la para Deus provocando a morte fiacutesica

Santa Teresa tambeacutem menciona como o Zohar o beijo com que o Rei divino consuma o matrimocircnio espiritual na seacutetima morada de seu Castelo Interior Refere-se tambeacutem a experiecircncias extaacuteticas intensas nas quais a alma parece ser arrebatada do corpo e raptada ateacute uma comunhatildeo com Deus Teresa caracteriza essas experiecircncias como suficientes para levar o miacutestico agrave morte (7M 25 36)

5 Influecircncias da cosmologia aristoteacutelica

Aleacutem das fontes judaicas eacute possiacutevel encontrar outras influecircncias para o simbolismo teresiano As versotildees latinas das obras aristoteacutelicas Estavam amplamente divulgadas no contexto no qual Teresa viveu No livro De Caelo Aristoacuteteles imaginou o universo na forma de esferas concecircntricas que giram em movimento circular Este esquema coacutesmico se transformou em um siacutembolo que dava um transfundo para o caminho espiritual do ser humano (LOacutePEZ-BARALT 2010 p 180)

Salta agrave ideia de que Santa Teresa ao falar da alma na forma de sete ciacuterculos ou castelos concecircntricos alude de maneira obliqua agraves sete esferas planetaacuterias da cosmovisatildeo medieval herdada de Aristoacuteteles e da literatura de Hechalot A Carmelita estaria visualizando a alma como um reflexo microcoacutesmico do macrocosmo celestial estaria comparando as moradas espirituais natildeo somente com castelos mas tambeacutem com as

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

214

esferas do ceacuteu Nesse caso o ser humano teria dentro de si todas as esferas celestes

6 Conclusatildeo

Conclui-se que Teresa natildeo criou a formosa imagem plaacutestica dos castelos interiores Por mais inusitado que isto pareccedila agrave sensibilidade do cristatildeo ocidental ela simplesmente a elaborou em detalhes geniais a cristianizou e a adaptou aos seus fins

Igual a muitos filoacutesofos poetas e humanistas da Eacutepoca Renascen-tista miacutesticos cristatildeos foram profundamente influenciados pela literatura da Cabala no seacuteculo XIII Reconheceram na miacutestica judaica em geral um caminho seguro para compreender melhor suas experiecircncias com procedecircncia em raiacutezes miacutesticas mais antigas

Swietlicki orienta contudo a natildeo se ter a pretensatildeo de que a influecircncia da cabala judaica sobre os miacutesticos cristatildeos nos temas e siacutembolos usados por estes sejam resultado de influecircncia literaacuteria mas apenas supotildee-se que os traccedilos de cabala foram persistentes em ciacuterculos populares mesmo apoacutes a expulsatildeo dos judeus da Espanha (SWIETLICKI 1986 p 28) Dessa forma a miacutestica cristatilde teria se tornado um importante veiacuteculo para a transmissatildeo da Cabala judaica mesmo no seacuteculo XVI Eacute fato inegaacutevel entretanto a influecircncia da cabala sobre estas figuras importantes

Referecircncias Bibliograacuteficas

BENSION Ariel O Zohar o livro do esplendor Satildeo Paulo Polar Edito-rial 2006

DAN Joseph The Ancient Jewish Mysticism Tel Aviv Mod Books 1993

ETCHEGOYEN Gaston Lrsquoamour divin Essai sur les sources de Sainte-Theacuteregravese Bordeaux Feret 1923

GERLI Michael ldquoEl castillo interior y el arte de la memoriardquo Bulletin Hispanique 861-2 (1982) 154-163

KURTZ Barbara ldquoThe Small Castle of the Soul Mysticism and Metaphor in the European Middle Agesrdquo Studia Mystica XV (1992) 28-35

LOacutePEZ-BARALT Luce ldquoTeresa of Jesus and Islam The Simile of the Seven Concentric Castles of the Soulrdquo in Hilaire KALLENDORF (ed) A New Companion to Hispanic Mysticism Danvers BRILL 2010 p 175-199

PEERS Edgar Allison Study of the Spanish Mystics London SPCK 1951

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

215

SCHOLEM Gershom Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and the Talmudic Tradition New York Jewish Theological Seminary of America 1965

SWIETLICKI Catherine Spanish Christian Cabala The works of Luis de Leoacuten Santa Teresa de Jesus and San Juan de la Cruz Columbia Missouri University of Missouri Press 1986

TERESA DE JESUacuteS Santa Moradas del Castillo Interior in Obras Completas Madrid Editorial Catoacutelica 1951

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

216

TRADUCcedilAtildeO

COMECcedilAM OS ERROS DOS FILOacuteSOFOS ARISTOacuteTELES AVERROacuteIS AVICENA ALGAZEL

AL-KINDI MAIMONIDES COLETADOS POR IRMAtildeO EGIacuteDIO DA ORDEM DE SANTrsquo AGOSTINHO1

Introduccedilatildeo I Vida de Egiacutedio Romano ndash Aegiacutedius Romanus

Aegiacutedius Romanus ndash Egiacutedio Romanos ndash tambeacutem conhecido por seu nome francecircs Giles de Rome nasceu em Roma em 1243

Depois de sua entrada na ordem dos Agostinianos estudou em Paris de 1269 ndash 1272 com Tomaacutes de Aquino Com Tomaacutes aproveitou o pensa-mento aristoteacutelico que comeccedilou a se afirmar nos estudos filosoacuteficos com reflexos na Faculdade Teoloacutegica da Universidade de Paris Em consequecircncia das 219 teses ligadas agrave Filosofia e Teologia aristoteacutelicas publicadas em 7 de marccedilo de 1277 e que foram consideradas levianas ou hereacuteticas e como tais em desacordo com os dados da Revelaccedilatildeo pelo bispo de Paris Etienne Tempier Egiacutedio foi obrigado a deixar Paris e por enquanto natildeo conseguiu permanecer na Universidade Em Paris produziu a sua obra poliacutetica De Regimine Principum Em 1285 Egiacutedio refutou as teses que foram condenadas pela maioria da comunidade acadecircmica da universidade parisiense e como consequecircncia lhe foi possiacutevel a sua carreira acadecircmica

A partir de 1292 Egidio assume tanto na ordem dos Agostinianos como na Igreja uma posiccedilatildeo de destaque A sua atuaccedilatildeo desenvolveu-se de modo especial na aacuterea poliacutetica do papa Bonifaacutecio VIII cujas teorias 1 Incipiunt Errores philosophorum Aristotelis Averrois Avicenna Algazelis Alkindi Rabbi Moysis A fratre Aegido collecti ord S Augustini Traduccedilatildeo elaborada a partir do texto latino publicado em Giles of Rome Errores Philosophorum Critical Text with Notes and Introduction by Joseph Koch English Translation by John O Riedl Milwaukee Wisconsin Marquette University Press 1944 Neste Trabalho soacute se apresenta a versatildeo da parte sobre Aristoacuteteles cap 1-2-3 Oportuna-mente apresentar-se-atildeo os outros autores mencionados

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

217

entraram em choque com as praacuteticas e pensamentos do Rei Philippe IV o que levou agrave uma tensatildeo profunda na Igreja do Ocidente

Egidio morreu em 1316 em Avignon Agrave sua mente fina deve o apelido ldquodoctor fundatissimusrdquo ndash doutor profundo mas em razatildeo de certa prolixidade de suas obras o chamam ldquodoctor verbo-susrdquo ndash doutor tagarela

II Autoria e data

Embora sob a autoridade de Mandonnet o texto em estudo tenha sido longamente considerado como espuacuterio estudos posteriores poreacutem dos principais mestres comprovaram a autenticidade da autoria de Egidio Aleacutem disso a comprovaccedilatildeo eacute encontrada em alguns comentaacuterios antigos como tambeacutem nas primeiras ediccedilotildees impressas em 1428 e 1581 editadas em Veneza

Uma anaacutelise da obra comprova assim Koch uma concordacircncia quanto ao estilo e conteuacutedo da Incipiunt com outros escritos do Egiacutedio Mais peso entretanto eacute atribuiacutedo agrave concordacircncia de estilo entre a Incipiunt e outras obras egidianas Cita-se entre outros os seus comentaacuterios sobre a De Generatione et corruptine a Physica que lembram imediatamente os nordm 6-7-8-12 e 14 da Incipiunt (para maiores detalhes cf Koch p XXXIV e XXXV)

E Incipiunt pertence agraves primeiras obras de Egidio e deve ser situada ao redor do ano 1268 visto que no momento em que compocircs este trabalho ele jaacute tinha completado a sua formaccedilatildeo filosoacutefica e como tudo indica tambeacutem uma parte da formaccedilatildeo teoloacutegica

O termino da obra eacute o comentaacuterio da De Generatione et corruptione que cuja data deve se situar entre 1273 e 1274

Isto leva a considerar que a obra deve ser composta ao redor do ano de 1270

III Traduccedilatildeo do Texto

Afirma-se em primeiro lugar

Capiacutetulo I Sobre a lista de erros de Aristoacuteteles

Porque de um dado errado derivam muitas consequumlecircncias de um fundamento falso o Filoacutesofo tirou muitos erros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

218

1 Acreditou pois que nada estaacute numa determinada situaccedilatildeo em que anteriormente natildeo estava senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Avaliou portanto que soacute haveria novidade aonde tivesse uma mudanccedila propriamente dita Consequumlentemente como toda mudanccedila propriamente falando eacute o fim de um movimento natildeo poderaacute haver novidade sem um movimento precedente Deste argumento entatildeo concluiu que o movimento nunca comeccedilou porque se o movimento se iniciasse seria algo novo Mas natildeo existe coisa nova senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Entatildeo antes do primeiro movimento houve algum movimento O que eacute incoerente

2 Aleacutem disso errou ao afirmar que o tempo nunca comeccedilou porque o tempo sempre segue o movimento Se entatildeo o movimento natildeo comeccedilou nem o tempo iniciara Pareceu-lhe que a razatildeo teria uma difi-culdade especial em relaccedilatildeo ao tempo Visto que o instante eacute sempre o fim do passado e o comeccedilo do futuro natildeo se pode falar de um primeiro momento Por isso antes de todo e qualquer momento houve algum tempo e antes de qualquer tempo dado houve um momento Entatildeo o tempo natildeo comeccedilou mas eacute eterno

3 Aleacutem disso por causa daquilo que foi dito foi obrigado a afirmar que aquilo que se move eacute eterno e que tambeacutem o mundo eacute eterno porque uma vez que natildeo haacute tempo sem movimento e nem movimento sem algo moacutevel se tempo e movimento satildeo eternos o que se move seraacute eterno e assim o mundo nunca comeccedilou Tudo isso fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica

4 E mais Foi obrigado a afirmar que o ceacuteu natildeo eacute gerado e eacute incorruptiacutevel e que nunca foi feito mas que sempre existiu Como entre os outros movimentos soacute o movimento circular eacute contiacutenuo como fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica se qualquer movimento eacute eterno o circular seraacute eterno E porque a movimento circular eacute proacuteprio do ceacuteu como se prova no 1ordm livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo conclui-se da mesma forma que o ceacuteu eacute ingecircnito e que nunca foi feito Tinha ele uma razatildeo especial para dizer que o ceacuteu natildeo comeccedilou porque qualquer coisa que possui o poder de sempre existir no futuro tambeacutem teraacute o poder de ter existido sempre no passado E porque o ceacuteu natildeo termina natildeo comeccedilou a existir

5 E ainda visto que na opiniatildeo dele qualquer coisa que eacute feita eacute feita de mateacuteria preexistente assim opinou que Deus natildeo poderaacute fazer um outro mundo porque este o atual eacute feito de toda a mateacuteria Este erro tambeacutem pode ser encontrado no 1ordm Livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

219

6 Argumentou ainda que a geraccedilatildeo das coisas inferiores nunca cessaraacute como tambeacutem nunca tem comeccedilado Porque a corrupccedilatildeo antecede e segue toda a geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo antecede e segue toda a corrupccedilatildeo Por isso visto que a corrupccedilatildeo precede qualquer geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo qualquer corrupccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a corrupccedilatildeo e a geraccedilatildeo terem tido iniacutecio nem eacute possiacutevel elas terminarem porque a qualquer geraccedilatildeo segue a corrupccedilatildeo e a qualquer corrupccedilatildeo segue a geraccedilatildeo Se entatildeo a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo terminassem depois da uacuteltima geraccedilatildeo teria uma geraccedilatildeo e depois da uacuteltima corrupccedilatildeo uma corrupccedilatildeo Que a corrupccedilatildeo precede e segue a geraccedilatildeo ele provou pelo caminho do movimento Porque natildeo existe nada gerado sem que haja algo corrompido e desta forma a corrupccedilatildeo precede a geraccedilatildeo e tambeacutem a segue porque tudo que eacute gerado eacute corruptiacutevel e todo corruptiacutevel e corrompido por necessidade Assim tambeacutem a geraccedilatildeo precede a corrupccedilatildeo Porque nada eacute corrompido que natildeo foi gerado antes e segue a geraccedilatildeo porque a corrupccedilatildeo de um eacute a geraccedilatildeo de outro Este erro pois que a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo natildeo comeccedilam nem terminam pode se achar no 1ordm Livro de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) e de forma mais expliacutecita no Livro 2ordm

7 Ainda em razatildeo de a geraccedilatildeo neste mundo inferior acontecer pelo sol Aristoacuteteles foi obrigado de afirmar que o sol ldquonunca deixaraacute de gerar plantas e animaisrdquo como fica evidente do Livro 1ordm de De Vegetalibus (Sobre os Vegetais)

8 Ainda visto que natildeo existe novidade sem movimento anterior conforme o argumento apresentado ele errou querendo que de Deus natildeo possa proceder de forma imediata algo novo como fica claro do Livro 2ordm de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) onde diz que ldquoaquilo que permanece o mesmo sempre produziraacute o mesmordquo

9 Ainda foi obrigado a negar a ressurreiccedilatildeo dos mortos Por isso considera improvaacutevel como fica claro do Livro 1 de De Anima (Sobre a Alma) que os mortos ressurjam Porque no Livro VIIIordm da Metaphysica quer que aquilo que estaacute morto natildeo se torne vivo de novo senatildeo atraveacutes de muitos meios e se reviver natildeo revive o mesmo numericamente porque aquelas coisas cuja substacircncia se perdeu natildeo voltam as mesmas numericamente como afirma no fim do Livro IIordm de De Generatione

Natildeo tem validade que alguns tentam desculpa-lo dizendo que ele fala pela via da natureza quando acredita que nada de novo possa imediatamente proceder de Deus mas que toda coisa nova acontece por meio do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

220

10 Ainda visto que acreditou que nada de novo possa acontecer senatildeo atraveacutes do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza acreditou como se revela no Livro Iordm de Physicae (Fiacutesica) quando argumenta contra Anaxaacutegoras que um intelecto que procura separar paixotildees e acidentes da substacircncia eacute ldquoum intelecto que procura o impossiacutevelrdquo

Desta opiniatildeo parece seguir que Deus natildeo pode fazer um acidente sem substacircncia

11 Ainda visto que atraveacutes do caminho do movimento nunca haacute geraccedilatildeo de alguma coisa se natildeo houver corrupccedilatildeo de outra e que nunca eacute introduzida uma forma substancial se outra natildeo for expulsa porque a mateacuteria eacute a mesma para todas que a possuem disto se segue que natildeo haacute mais formas substanciais num composto do que em outro De fato aquele que prossegue bem neste caminho veraacute que deve ser colocada em todo composto somente uma forma substancial e assim parece ser a posiccedilatildeo do Filoacutesofo Por isso no Livro VIIordm da Metaphysica no capiacutetulo De unitate diffinitionis (Sobre a Unidade da definiccedilatildeo) afirma que as partes de uma definiccedilatildeo natildeo satildeo uno ldquoporque estatildeo num unordquo mas porque indicam uma natureza

Entatildeo se entender uma natureza composta de vaacuterias formas isto eacute toleraacutevel mas se entender uma natureza simples e que num composto haja somente uma forma isto eacute falso

12 Ele afirma ainda que onde haacute agora pacircntano e mar uma vez existiu terra seca e vice versa porque o tempo natildeo para mas eacute eterno como fica claro do Livro Iordm Meteoreorum Consequentemente tambeacutem lhe foi necessaacuterio afirmar que natildeo houve um primeiro homem nem uma primeira chuva

13 Ainda deste modo querendo proceder pela via da natureza acreditou visto que dois corpos natildeo podem existir simultaneamente no mesmo lugar como eacute revelado no Livro IVordm da Physica que era tatildeo absolu-tamente essencial ldquoper serdquo agraves dimensotildees resistir a dimensotildees e que eacute impossiacutevel as dimensotildees continuarem existindo e entretanto natildeo resistir aacutes dimensotildees

Disto se segue que Deus natildeo pode fazer que dois corpos ocupem o mesmo lugar

14 Ainda porque natildeo pertence agrave inteligecircncia o poder de se mover sem se mover em ato porque as inteligecircncias enquanto se movem satildeo colocadas na melhor disposiccedilatildeo ele afirmou que existem tantos anjos e

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

221

tantas inteligecircncias que existem mundos como fica claro no Livro XIIordm da Metaphysica

Mas a Sagrada Escritura contradiz esta posiccedilatildeo quando afirma ldquoMil milhares o serviram e miriacuteades e mais miriacuteades diante delerdquo

Capiacutetulo II Em que num sumaacuterio satildeo reunidos os erros de Aristoacuteteles

Estes entatildeo de forma sumaacuteria satildeo todos os seus erros

1 Que o movimento natildeo tem comeccedilo 2 Que o tempo eacute eterno 3 Que o mundo natildeo teve um comeccedilo 4 Que o ceacuteu natildeo foi feito 5 Que Deus natildeo poderia fazer um mundo diferente 6 Que geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo natildeo tiveram comeccedilo e natildeo teratildeo fim 7 Que o sol sempre causaraacute geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo no mundo

sublunar 8 Que nada de novo pode proceder diretamente de Deus 9 Que a ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute impossiacutevel 10 Que Deus natildeo poderaacute fazer um acidente sem a substacircncia 11 Que em qualquer composto soacute existe uma forma substancial 12 Que natildeo se pode admitir um primeiro homem e uma primeira

chuva 13 Que de maneira alguma podem existir dois corpos num mesmo

lugar 14 Que existem tantos anjos como haacute mundos Por isso concluir-

se-aacute que haacute cinquumlenta e cinco ou quarenta e sete somente

Alguns poreacutem queriam desculpar o Filoacutesofo na questatildeo sobre a eternidade do mundo Mas isto natildeo tem cabimento porque ele - para mostrar as verdades filosoacuteficas - se baseia no mencionado princiacutepio ateacute mesmo natildeo escreveu praticamente nenhum livro sobre filosofia em que natildeo coloca algo ligado a este princiacutepio

Em seguida aleacutem dos erros supramencionados alguns queriam colocar nele (a opiniatildeo) que Deus nada conhece fora de si de tal maneira que natildeo Lhe eacute conhecida este mundo inferior baseando o seu argumento nas palavras que satildeo apresentadas no XIIordm da Metafiacutesica naquele capiacutetulo Sententia Patrum (A opiniatildeo dos Padres) Mas que aqueles que afirmam isto natildeo entendem o Filoacutesofo E que natildeo eacute esta a sua intenccedilatildeo fica claro pelo que se diz no capiacutetulo De Bona Fortuna (Sobre a boa sorte) onde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

222

afirma que para Deus tanto o passado como o futuro satildeo por si conhecidos Haacute outros erros que lhe satildeo atribuiacutedos com que natildeo nos ocupamos aqui porque satildeo oriundos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea

Capiacutetulo III Em que eacute anulada aquela afirmaccedilatildeo que o Filoacutesofo eacute a base de seus erros

Todos os seus erros entretanto se algueacutem o investigar cuidadosa-mente satildeo consequumlecircncias desta sua posiccedilatildeo que no ser nada de novo acontece senatildeo por movimento anterior Poreacutem como isto eacute falso porque Deus em razatildeo de ser o primeiro agente que natildeo age como instrumento poderaacute produzir as coisas sem movimento anterior Aquele que age por natureza tambeacutem age como instrumento porque eacute do modo de ser do instrumento que move movido e necessariamente pressupotildee na sua accedilatildeo o movido A accedilatildeo entatildeo ou a produccedilatildeo do primeiro agente pode ser sem aquele movimento Criaccedilatildeo por isso natildeo eacute um movimento porque o movimento pressupotildee o moacutevel a criaccedilatildeo de fato natildeo pressupotildee nada nem eacute propriamente falando uma mudanccedila porque toda mudanccedila eacute o fim de um movimento mas como se afirma comumente ela eacute uma simples deduccedilatildeo das coisas do primeiro Qualquer coisa por isso que eacute formulada contra o iniacutecio do mundo e contra aquilo que a feacute afirma eacute totalmente sofiacutestica2

Traduccedilatildeo de

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

2 No capiacutetulo IV inicia-se a apresentaccedilatildeo dos erros de Averroacuteis

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

223

RESENHA

MIacuteSTICA DE OLHOS ABERTOS

METZ Johann Baptist Miacutestica de olhos abertos Traduccedilatildeo de Inecircs Antonia Lohbauer Satildeo Paulo Paulus 2013 Coleccedilatildeo Amantes do Misteacuterio 293 p 135 x 21 cm ISBN 978-85-349-3649-1

Johann Baptist Metz eacute um dos teoacutelogos catoacutelicos alematildees mais influentes do poacutes-Vaticano II Eacute membro da Diretoria do Instituto de Ciecircncias Humanas de Viena desde 1983 cofundador e editor da revista Concilium e professor emeacuterito de Teologia Fundamental na Universidade de Muumlnster Ex-aluno do teoacutelogo jesuiacuteta Karl Rahner rompeu com a Teologia Transcendental do mestre para assumir segundo assinala uma teologia arraigada na praacutexis (p191-211) Metz estaacute no centro de uma escola de Teologia Poliacutetica que exerceu intensa influecircncia sobre a Teologia da Libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina A teologia de Metz centraliza-se na atenccedilatildeo ao sofrimento pois natildeo haacute sofrimento no mundo que natildeo diga respeito ao cristatildeo ldquoComo podemos virar as costas para todo esse sofrimento e nos preocuparmos apenas com nossa salvaccedilatildeo e nossa redenccedilatildeordquo (P 16)

A obra sob comentaacuterio eacute uma coleccedilatildeo de textos mais antigos atualizados e recompilados Alguns dos ensaios foram escritos haacute deacutecadas mas suas preocupaccedilotildees ainda satildeo oportunas ou talvez muito mais importantes do que antes Isto porque conforme Metz o Cristianismo eacute cada vez mais uma exigecircncia e um estiacutemulo para uma accedilatildeo em favor de um mundo melhor e mais justo Notaacutevel eacute a maneira pela qual o A chama a atenccedilatildeo para a espiritualidade cristatilde como revoluccedilatildeo da esperanccedila Enquanto o contexto atual enfatiza o aspecto da introspecccedilatildeo da espiritualidade com suas teacutecnicas de meditaccedilatildeo de olhos fechados a Biacuteblia chama a atenccedilatildeo para um aspecto totalmente diferente a Escritura nos acorda e nos manteacutem de olhos abertos O objetivo da espiritualidade biacuteblica eacute nos encaminhar para o outro A biacuteblia nos ensina uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

224

espiritualidade de olhos abertos porque natildeo existe experiecircncia de Deus sem passar pelo outro o qual na maioria das vezes estaacute sofrendo por causa do que Metz chama de ldquocapitalismo predatoacuteriordquo

A primeira parte da obra ldquoPerspectivas Teoloacutegicasrdquo (P 13-49) lembra que o olhar messiacircnico de Jesus (P 19) natildeo eacute dirigido para o pecado mas para o sofrimento do outro (cf Lc 416-21) ldquoEssa sensibilidade messiacircnica ao sofrimento natildeo tem nada a ver com plangecircnciardquo mas com a miacutestica biacuteblica de justiccedila ldquopaixatildeo por Deus como empatia pelo sofrimento alheio como miacutestica praacutetica da compaixatildeordquo (P 19) situando em primeiro lugar natildeo a culpabilidade mas o sofrimento Esse eacute sentido do discurso apocaliacuteptico como tentativa de dar esperanccedila aos sofredores ldquoO apocalipse biacuteblico ldquodesvelardquo a trilha dos sofredores na histoacuteria da humanidaderdquo (P 17) Lamenta-se que os cristatildeos tenham se afastado tanto desse ponto ldquoA doutrina cristatilde da salvaccedilatildeo dramatizou a questatildeo do pecado e negligenciou a questatildeo do sofrimentordquo (P20)

Na segunda parte da obra ldquoMiacutestica do Face-a-face tentativas de aproximaccedilatildeordquo (P 53-211) Metz reuacutene textos variados no estilo de pequenas meditaccedilotildees que objetivam conduzir o leitor para o centro da feacute cristatilde a saber a abertura para Deus que leva a servir o proacuteximo

Na terceira parte intitulada ldquoUma Igreja sem interesse em aprenderrdquo (P 215-250) o Autor trata de modo muito significativo a respeito da crise na Igreja Conforme Metz ateacute mesmo cristatildeos muito engajados nas comuni-dades e na luta pela justiccedila sentem-se cada vez mais incapazes (ou sem vontade) de aprender Eacute no entanto uma igreja aprendiz (disciacutepula) sempre pronta a se abrir para outras perspectivas

Essa obra eacute sem duacutevida fruto de uma rica experiecircncia de vida do velho Teoacutelogo E uma importante contribuiccedilatildeo para o estudo da Teologia da espiritualidade cristatilde Ao fundamentar-se na exigecircncia de partir dos textos biacuteblicos e da praacutexis de Jesus o A retoma a significaccedilatildeo original e o teor teoloacutegico genuiacuteno da espiritualidade cristatilde bem como a atualidade desse tema tatildeo em moda nos nossos dias e tatildeo pouco compreendido

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

225

Apesar de algumas paacuteginas pressuporem debates teoloacutegicos que jaacute natildeo correspondem agraves experiecircncias das geraccedilotildees recentes vale a pena ler esse livro e seguir os conselhos do velho Mestre segundo o qual uma Igreja que quer se renovar deve saber quem ela eacute e a que eacute destinada

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Page 8: Revista Acadêmica da Prainha

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

127

OS MINISTROS DA IGREJA CARACTERIacuteSTICAS E EXIGENCIAS1

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira

1 O padre servidor do povo

O documento da CNBB nordm 100 ndash Comunidade de comunidades ndash uma nova paroacutequia ndash A conversatildeo pastoral da paroacutequia em seu capiacutetulo 5 tem como tiacutetulo ndash Sujeitos e Tarefas da Conversatildeo Pastoral Reuacutene quais satildeo os sujeitos da referida conversatildeo (bispos presbiacuteteros diaacuteconos permanentes os consagrados e os leigos) Deter-me-ei nos sete nuacutemeros que fazem alusatildeo agrave figura do presbiacutetero (nordm199-205)

Esta parte comeccedila afirmando que o presbiacutetero eacute chamado a ser padre-pastor exprimindo quais suas caracteriacutesticas dedicado generoso acolhedor e aberto ao serviccedilo da comunidade faz referecircncia ao excesso de atividades como um sinal preocupante que pode prejudicar o equiliacutebrio pessoal do padre (cfn 199)

Em algumas comunidades encontram-se presbiacuteteros desencantados cansados Nesta ocasiatildeo o documento em apreccedilo chama a atenccedilatildeo para algo que eacute muito grave e que merece de noacutes presbiacuteteros em especial aos paacuterocos a atenccedilatildeo

A sobrecarga de trabalhos pode dificultar a capacidade de relacionamento dos presbiacuteteros tornando-os apaacuteticos aos sofrimentos dos outros insensiacuteveis aos pobres rude no tratamento de seus paroquianos e incapazes de manifestar a misericoacuterdia e a bondade de Cristo do qual satildeo ministros Eles precisam ser ajudados (nordm 200)

1 Constantes satildeo os apelos do Magisteacuterio da Igreja tanto do Bispo de Roma como dos bispos do Brasil sobre os ministros ordenados Denotam-se caracteriacutesticas agraves quais estes ldquoservidoresrdquo do povo devem corresponder Em trecircs artigos escritos em ocasiotildees diferentes o Padre Almir Magalhatildees faz uma descriccedilatildeo e siacutentese geral das exigecircncias que satildeo a base de um ministeacuterio evangeacutelico adaptado aos nossos dias

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

128

Vivemos numa sociedade do vazio da superficialidade e neste contexto somos entre outras realidades formadores de opiniatildeo com um papel importante na sociedade de fazer a contraposiccedilatildeo de tudo aquilo que pode ser considerado manipulaccedilatildeo das consciecircncias O documento tambeacutem contribui neste aspecto quando afirma que ldquoOutra preocupaccedilatildeo se refere agrave atualizaccedilatildeo do padre diante das aceleradas mudanccedilas que ocorrem na modernidade Ele pode ficar atrasado no tempo e afastado da realidade No ativismo pode ser que natildeo se dedique ao estudo e natildeo se prepare melhor para escutar e entender os anseios dos que o procuramrdquo (Nordm 201) Afinal de contas apesar de o modelo eclesioloacutegico do Vaticano II ser trinitaacuterio uma eclesiologia de comunhatildeo sob a qual todos satildeo responsaacuteveis pela accedilatildeo evangelizadora ldquoA conversatildeo pastoral da paroacutequia depende muito da postura do presbiacutetero na comunidaderdquo (Nordm 202)

Para que boa parte destas realidades aconteccedila seraacute de fundamental importacircncia que o presbiacutetero acolha bem as pessoas exerccedila a paternidade espiritual sem distinccedilotildees evitando atitude seletiva de privileacutegios a grupos A ou B renovando sua espiritualidade para ajudar tantos irmatildeos que buscam a paroacutequia (Cfnordm 202) Identicamente eacute preciso evitar-se que paroacutequias possam projetar uma imagem contraacuteria daquilo falado ateacute aqui a imagem de uma Igreja distante burocraacutetica e sancionadora (Cfnordm 37)

Devemos melhorar nosso atendimento e a paroacutequia haacute de estabelecer o diverso neste item comeccedilando pelo padre Isto requer que o presbiacutetero cultive profunda experiecircncia de Cristo vivo com espiacuterito missionaacuterio coraccedilatildeo paterno que seja animador da vida espiritual e evangelizador capaz de promover a participaccedilatildeordquo (Nordm 203)

Finalmente o padre deve ser formado para ser servidor do seu povo Eacute por este motivo que deve existir cuidado com o preparo permanente e a formaccedilatildeo nos seminaacuterios de acordo com esta visatildeo pastoral que considera a paroacutequia uma comunidade de comunidades tal como insiste a Igreja no Brasil a respeito da formaccedilatildeo presbiteral (Nordm 205 e Doc 93 da CNBB)

A questatildeo fundamental eacute como superar o ldquomodelordquo atual de paroacute-quia muito mais voltada para a sacramentalizaccedilatildeo conservaccedilatildeo para o modelo expresso no documento aqui refletido ldquoO ministeacuterio sacerdotal tem uma forma comunitaacuteria radical e soacute pode se desenvolver como tarefa coletivardquo (Nordm 204)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

129

2 Tentaccedilotildees dos agentes de pastorais

O tiacutetulo desta reflexatildeo eacute retirado da segunda parte do Capiacutetulo II da Exortaccedilatildeo Apostoacutelica A Alegria do Evangelho do Papa Francisco (Na crise do compromisso comunitaacuterio) Admito que muitos agentes jaacute tiveram acesso a esta Exortaccedilatildeo mas considero que a maioria ainda natildeo teve acesso e desta forma socializo algumas questotildees relevantes desta parte e que tecircm incidecircncia na vida dos agentes de pastoral Uma avaliaccedilatildeo eacute incontestaacutevel o Papa sempre desconcerta

Logo no iniacutecio afirma o Pontiacutefice sua gratidatildeo pela tarefa de quantos trabalham na Igreja e que a nossa tristeza e a vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja natildeo devem fazer esquecer os inuacutemeros cristatildeos que datildeo a vida por amor e agradece o belo exemplo de que datildeo tantos cristatildeos que oferecem sua vida e o seu tempo com alegria (Cfnordm 76)

Em seguida convoca a uma espiritualidade missionaacuteria chamando a atenccedilatildeo para algo que particularmente considero uma peacuterola em termos de anaacutelise da situaccedilatildeo atual ao assinalar que a vida espiritual de muitos agentes se confunde com alguns momentos religiosos que proporcionam algum aliacutevio mas natildeo alimentam o encontro com os outros o compromisso no mundo a paixatildeo pela evangelizaccedilatildeo (Cf nordm 78) Saliento que jaacute vi esta observaccedilatildeo ser feita por outros pastoralistas entretanto quando parte de teoacutelogos geralmente eacute avaliada como tendenciosa fechando-se Agora eacute o Papa Francisco quem faz a afirmaccedilatildeo

Uma tocircnica sua no diaacutelogo com o mundo eacute o encontro com o outro o que natildeo faltou tambeacutem nessa Exortaccedilatildeo ldquoO ideal cristatildeo convidaraacute sempre a superar a suspeita a desconfianccedila permanente o medo de sermos invadidos as atitudes defensivas que nos impotildee o mundo atual Muitos tentam escapar dos outros se fechando na sua privacidade confortaacutevel ou no ciacuterculo reduzido dos mais iacutentimos e renunciam ao realismo da dimensatildeo social do Evangelhordquo (Nordm88) Ele trata deste assunto na mesma Exortaccedilatildeo no Cap IV

Relevante eacute como ele conclui este mesmo nordm 88

ldquoPorque assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual sem carne nem cruz tambeacutem se pretendem relaccedilotildees interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos por eacutecrans e sistemas que se podem acender e apagar agrave vontade Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraccedilar o risco do encontro com o rosto do outro com a sua presenccedila fiacutesica que interpela com os seus sofrimentos e suas reivindicaccedilotildees A verdadeira feacute no Filho de Deus feito carne eacute inseparaacutevel do dom de si mesmo da

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

130

pertenccedila agrave comunidade do serviccedilo da reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros Na sua encarnaccedilatildeo o Filho de Deus convidou-nos agrave revoluccedilatildeo da ternurardquo

Percebam que neste pequeno trecho o Papa nos daacute material para um retiro de no miacutenimo 7(sete) dias pois relembra uma heresia do seacutec II ndash o docetismo que nega a humanidade de Cristo afirmando em outras palavras que hoje tambeacutem faltam nos cristatildeos as relaccedilotildees interpessoais substituiacutedas pela ldquotelinhardquo portanto sem cruz sem encontro na comodi-dade Estamos conectados quase que permanentemente sem preocupaccedilatildeo com o sofrimento dos outros Analisem minuciosamente e comparem com a realidade em que o Papa confere autenticidade da feacute Ela se revela em quatro pontos dom de si mesmo pertenccedila agrave comunidade serviccedilo e reconciliaccedilatildeo com a carne dos outros

Concluo esta reflexatildeo em primeiro lugar exprimindo que natildeo estou somente me dirigindo aos outros sou um agente de pastoral e vou me confrontando com toda a Exortaccedilatildeo O grande objetivo mesmo eacute convidar a todos os agentes de pastoral a natildeo perderem de vista estes 33 (trinta e trecircs) nuacutemeros e 13 paacuteginas de cunho eminentemente pastoral-espiritual Natildeo seria bom para noacutes neste final de Quaresma ou quem sabe iniacutecio da Paacutescoa visitar estes nuacutemeros dos quais esta reflexatildeo foi apenas uma motivaccedilatildeo

3 ldquoAi de voacutesrdquo

Ao realizar sua missatildeo Jesus teve de enfrentar alguns conflitos e ateacute mesmo provocaacute-los na fidelidade e obediecircncia agrave realizaccedilatildeo da vontade do Pai Via de regra encontramos estes confrontos junto a alguns grupos de seu tempo destacando-se os escribas ou doutores da lei e os fariseus estes uacuteltimos gozando de muita credibilidade junto ao povo de Deus Tal creacutedito se dava pela loacutegica defendida por eles na medida em que pelo cumprimento da lei se visibilizava maior aproximaccedilatildeo a Deus ou natildeo a isto chamamos de legalismo farisaico pois a questatildeo principal de estar proacuteximo a Deus ou natildeo era simplesmente cumprir a lei (Cf todo o confronto sobre o saacutebado comer com as matildeos impuras Cf Mc 7)

O sistema se baseava nos polos ndash puros e impuros A pureza indicava as condiccedilotildees necessaacuterias para algueacutem poder comparecer diante de Deus no Templo (Cf C Mesters Com Jesus na contramatildeo p 24) Neste sentido o povo tinha grande preocupaccedilatildeo com a pureza pois quem natildeo era puro natildeo podia chegar perto de Deus (Mt 99-12)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

131

No capiacutetulo 23 do Evangelho de Mateus (precisamente 23 13-36) Jesus pronuncia os famosos sete ldquoaisrdquo todos eles dirigidos a estes dois grupos e de forma ousada e profeacutetica nesta seccedilatildeo chama-os ora de ldquohipoacutecritasrdquo ora de ldquoguias cegosrdquo de ldquoinsensatosrdquo e de ldquosepulcros caiadosrdquo predomina o adjetivo hipoacutecrita

Evidentemente Jesus natildeo age desta forma manifestando oacutedio para com eles mas fazendo uma catequese para que eles pudessem entrar na dinacircmica da conversatildeo e consequentemente do Reino de Deus na novidade do que ele representava jaacute que o rosto de Deus que eles mani-festavam contradizia frontalmente o Deus que Jesus representava

Do conjunto da coletacircnea de advertecircncias contra escribas e fariseus o termo mais usado eacute hipocrisia por ser uma atitude do sistema religioso que eles representavam fechando-se no seu prestiacutegio e poder julgavam-se justos e santos e disto os Evangelhos datildeo conta (Cf o ex da cena do fariseu e do publicano ndash Lc 18 9-14 a questatildeo do jejum em Mc 218ss) No sistema por eles defendido o que prevalecia de fato eram os ritos externos a formalidade

Com suporte no texto aqui referenciado destaco o versiacuteculo 23 citando-o ldquoAi de voacutes escribas e fariseus hipoacutecritas que pagais o dizimo da hortelatilde da erva-doce e do cominho enquanto descuidais o que haacute de mais grave na lei a justiccedila a misericoacuterdia e a fidelidade eacute isto que era preciso fazer sem omitir aquilordquo

A referecircncia eacute muito clara e natildeo precisa de grandes comentaacuterios acadecircmicos ndash os interlocutores de Jesus como jaacute se sabe viviam da exterioridade da formalidade do cumprimento da lei amplamente denunciado neste capiacutetulo de Mateus Na sequumlecircncia Jesus daacute um ensinamento novo como origem tambeacutem em suas praacuteticas por exemplo confraternizando-se com pessoas impuras como eram os publicanos e pecadores (Mc 2 15-17) tocar em leprosos comer sem lavar as matildeos tocar em cadaacutever e isto evidentemente tornava Jesus na concepccedilatildeo da eacutepoca uma pessoa impura pelo contato com estes pecadores e isto impedia a presenccedila de Deus

Agora vamos puxar a reflexatildeo construindo uma ponte entre a abordagem ateacute aqui desenvolvida e o nosso tempo prefiro proceder assim em primeiro lugar fazendo duas perguntas para vocecirc caro leitor existe algo parecido hoje em dia

Por gentileza interessante natildeo fazer uma interpretaccedilatildeo fundamenta-lista mas levar em consideraccedilatildeo a formalidade as questotildees de visibilidade

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 127-132 2013

132

que a Igreja tem hoje por meio de grandes eventos de massa da miacutedia catoacutelica do estilo neopentecostal e a outra indagaccedilatildeo como estaacute sendo considerada a praacutetica da misericoacuterdia ndash a praacutetica da justiccedila e da fidelidade no seguimento de Jesus Cristo Seraacute que estamos na linha da exterioridade e sem esquecer isto estamos deletando a justiccedila da praacutetica de nossos grupos paroacutequias e idem com a misericoacuterdia e a fidelidade

Prof Ms Pe Antonio Almir Magalhatildees de Oliveira eacute padre da Arquidiocese de Fortaleza

Diretor e Professor da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza - FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

133

A TEOLOGIA DE TIAGO FEacute EM ACcedilAtildeO

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier

Resumo A Epiacutestola de Tiago apresenta ensinos praacuteticos e eacuteticos para a vida cristatilde da mesma maneira como o proacuteprio Jesus mostrou que a feacute deveria vir acompanhada de atitudes Poreacutem alguns estudiosos biacuteblicos levantaram criacuteticas agrave epiacutestola de Tiago como se essa fosse contraacuteria agrave justificaccedilatildeo pela feacute Nesse artigo demonstra-se que a feacute e as obras natildeo se contrapotildeem na epiacutestola de Tiago sendo necessaacuterio compreender o contexto da mesma e sua importacircncia para os cristatildeos nos dias de hoje

Palavras-chave Tiago Conduta Cristatilde Feacute e Praacutetica

Abstract The Epistle of James has practical and ethical teachings for the Christian life just as Jesus himself showed that faith should be accompanied by actions However some scholars have raised criticism of the Epistle of James as if this was contrary to the justification by faith In this paper we show that faith and works are not opposed in the Epistle of James it is necessary to understand the context of the same and its importance for Christians today

Keywords James Christian Conduct Faith and Practice Introduccedilatildeo

A epiacutestola de Tiago difere das outras epiacutestolas do Novo Testamento pelo seu estilo conteuacutedo e apresentaccedilatildeo Tiago trata de religiatildeo praacutetica de eacutetica de solidariedade de religiatildeo vivencial A epiacutestola exatamente como Hebreus eacute mais um sermatildeo que uma carta propriamente dita Eacute um sermatildeo ou um ensino ou um tratado e ldquoas indicaccedilotildees satildeo de que foi o primeiro de todos os documentos escritos do Novo Testamentordquo (BAXTER 1989 p 309) O livro foi escrito aproximadamente entre 10 a 15 anos apoacutes a morte de Jesus (SHIDD BIZERRA 2010 p 7) Francis Nichol (1995 p 516) diz que natildeo haacute uma maneira segura para determinar a data da epiacutestola mas aponta a possibilidade da mesma ter sido escrita apoacutes o ano 44 dC

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

134

Neste artigo apresenta-se um panorama da teologia de Tiago com vistas a demonstrar como a feacute pode e deve ser praticada em atos e pala-vras em conformidade com a doutrina de Cristo

Sobre o autor

A Carta de Tiago jaacute provocou muitas discussotildees na histoacuteria da Teologia Uma das principais estaacute relacionada com o seu autor O prefaacutecio indica que o autor foi Tiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo (Tg 11) Mas no Novo Testamento haacute cinco homens chamados Tiago O primeiro eacute o pai de Judas (Lc 616) O segundo eacute um disciacutepulo filho de Alfeu (Mt 103) Este Tiago eacute o irmatildeo de Mateus (Mt 99 e Mc 214) O terceiro eacute chamado Tiago menor (Mc 1540) Talvez fosse chamado ldquomenorrdquo por causa do seu tamanho ou como substituto de Juacutenior (haacute pais que gostam de colocar seus nomes nos filhos) O quarto eacute o irmatildeo de Joatildeo e filho de Zebedeu (Mt 102) Este eacute o que os espanhoacuteis gostam de dizer que eacute o Tiago de Compostela Mas esse foi morto no iniacutecio dos anos quarenta conforme Atos 122 O quinto eacute chamado de ldquoirmatildeo do Senhorrdquo (Gl 119) Jesus possuiacutea um irmatildeo com este nome como aparece em Mateus 1355 Poreacutem apenas dois desses foram apresentados como possiacuteveis autores desta epiacutestola ndash Tiago filho de Zebedeu e Tiago o irmatildeo do Senhor

O primeiro eacute um candidato improvaacutevel Sofreu o martiacuterio em 44 AD e natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que ocupasse posiccedilatildeo de lideranccedila na igreja que lhe desse a autoridade de escrever esta carta geral Embora Isidoro de Sevilha e Dante achassem que ele foi o autor do livro esta identidade natildeo tem sido largamente aceita em nenhum periacuteodo da igreja A opiniatildeo tradicional identifica o autor como sendo Tiago o irmatildeo do Senhor A semelhanccedila da linguagem da epiacutestola com as palavras de Tiago em Atos 15 a forte dependecircncia do escritor da tradiccedilatildeo judia e a consistecircncia do conteuacutedo de sua carta com as notiacutecias histoacutericas que o Novo Testamento daacute em relaccedilatildeo a Tiago o irmatildeo do Senhor tudo tende a apoiar a autoria tradicional (PFEIFER HARRISON 1983 p 325)

Assim pode-se inferir que o autor da epiacutestola seja Tiago irmatildeo de Jesus

Criacuteticas agrave carta de Tiago

Esta epiacutestola tem sido alvo de criacuteticas e comentaacuterios injustos desde o iniacutecio do movimento protestante com Martinho Lutero (1522)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

135

Preocupado em afirmar a doutrina da justificaccedilatildeo pela feacute Lutero foi duro com a carta de Tiago Chamou-a de ldquoepiacutestola de palhardquo (eyne rechte stroerne Epistel) por causa de seu entendimento equivocado do capiacutetulo 2 versos 14 a 16 onde presumiu haver o ensino de justificaccedilatildeo pelas obras (STOTT 1996 p 18) Este pensamento errocircneo de Lutero ainda permanece em muitas mentes Mas deve ser entendido dentro do contexto em que as palavras dele foram proferidas Elas constam de seu prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo da Biacuteblia Alematilde onde ele se expressa sobre os livros que mais mostram a pessoa de Cristo Apoacutes nomeaacute-los disse Lutero ldquoPor isso a epiacutestola de Satildeo Tiago eacute uma epiacutestola bem insiacutepida (eyne rechte stroerne Epistel) se comparada agraves demais [] (LUTERO 1997 p 81)

Este reformador mais tarde modificou sua posiccedilatildeo Assim se expressou Lutero conforme nos diz George (1986 p 371) ldquoQuando Satildeo Tiago e Paulo dizem que um homem eacute justificado pelas obras eles estatildeo combatendo a noccedilatildeo errocircnea daqueles que pensam que a feacute sem obras eacute suficienterdquo

Outro que pode ser considerado injusto com Tiago eacute Champlin (1991 p 536) quando diz que ldquoA epiacutestola de Tiago certamente eacute um documento que representa o cristianismo judaico e natildeo erramos por dizer representa o cristianismo legalistaldquo

Paulo e Tiago

Muitas das criacuteticas se devem agrave aparente contradiccedilatildeo entre Tiago e Paulo no assunto ldquofeacute e obrasrdquo (KUMMEL 1975 p 414-41) Kuumlmmel lista cinco aparentes contradiccedilotildees A mais famosa declaraccedilatildeo de Tiago ldquoa feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) gerou discussatildeo nos primoacuterdios da Reforma Lutero natildeo conseguia conciliar esta declaraccedilatildeo com o que Paulo escreveu ldquoConcluiacutemos pois que o homem eacute justificado pela feacute independente de obras da leirdquo (Rm 328) Especialmente outra declaraccedilatildeo de Tiago estaacute em aparente oposiccedilatildeo ao ensino de Paulo ldquoVerificais que uma pessoa eacute justificada por obras e natildeo por feacute somenterdquo (Tg 224) O curioso eacute que os dois apoacutestolos tardios (isto eacute que natildeo estavam entre os doze) utilizam o mesmo personagem biacuteblico (Abraatildeo) para defender posiccedilotildees aparentemente contraditoacuterias Paulo diz ldquoQue pois diremos ter alcanccedilado Abraatildeo nosso pai segundo a carne Porque se Abraatildeo foi justificado por obras tem de que se gloriar poreacutem natildeo diante de Deus Pois que diz a Escritura Abraatildeo creu em Deus e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo (Rm 41-3) Tiago em contrapartida diz ldquoNatildeo foi por obras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

136

que Abraatildeo o nosso pai foi justificado quando ofereceu sobre o altar o proacuteprio filho Isaquerdquo (Tg 221) Aqui haacute pelo menos uma contradiccedilatildeo verbal (LADD 1997 p 546 MORRIS 2003 p 379) mas seraacute que haacute uma contradiccedilatildeo teoloacutegica

Uma siacutentese da diferenccedila entre Paulo e Tiago dada por Mears (1993) poderaacute resolver essa questatildeo

Tiago eacute a mais praacutetica de todas as epiacutestolas e tem sido chamada ldquoGuia Praacutetico para a Vida e a Conduta Cristatilderdquo Eacute o livro de Proveacuterbios do Novo Testamento Estaacute repleto de preceitos morais Expotildee a eacutetica do Cristianismo Eacute cheio de figuras e metaacuteforas Seu estilo eacute muitas vezes bastante dramaacutetico Obriga a pensar realmente Hebreus apresenta doutrina Tiago apresenta obras Eles se completam num Cristianismo vital Natildeo haacute conflito entre Paulo e Tiago Soacute uma leitura superficial de ambos levaria a essa conclusatildeo Paulo diz ldquoRecebam o Evangelhordquo Tiago diz ldquoVivam o Evangelhordquo Paulo viu Cristo no ceacuteu estabelecendo a nossa justiccedila Tiago viu-o na terra dizendo-nos que sejamos perfeitos como eacute perfeito o seu Pai que estaacute no ceacuteu Paulo deteacutem-se na fonte da nossa feacute Tiago fala do fruto da nossa feacute Eacute preciso natildeo soacute crer mas viver Ainda que Paulo saliente a justificaccedilatildeo pela feacute vemos em suas epiacutestolas especialmente em Tito que ele daacute grande realce agraves boas obras (1 Tm 618) enquanto Tiago fala em ser ricos em feacute (25) Conveacutem notar tambeacutem que quando Tiago parece menosprezar a feacute ele estaacute-se referindo a uma simples crenccedila intelectual e natildeo agrave ldquofeacute salvadorardquo que eacute tatildeo essencial Tiago exalta a feacute Ele diz que a prova dela opera a paciecircncia Sua carta comeccedila e termina com um forte estiacutemulo agrave feacute (16 514-18) Ele denuncia a feacute espuacuteria que natildeo produz obras (MEARS 1993 p 511-512)

Uma siacutentese menor seria

Paulo responde a pergunta Sob que condiccedilatildeo ou condiccedilotildees um pecador pode ser justificado diante de Deus Sua resposta eacute Sob a condiccedilatildeo da feacute a confianccedila de todo coraccedilatildeo em Cristo como Salvador Tiago contesta a pergunta Que classe de feacute salvaraacute a um homem Sua resposta eacute Nenhuma feacute ou credo somente nem sinceramente a crenccedila em Deus como uacutenico mas uma feacute que produz vida reta (CONNER 1951 p 221)

O resumo de Tiago sobre a feacute inoperante eacute ldquoporque assim como o corpo sem espiacuterito eacute morto assim tambeacutem a feacute sem obras eacute mortardquo (Tg 226) Foi deste modo que Calvino resolveu a questatildeo O Reformador de Genebra natildeo viu contradiccedilatildeo entre Paulo e Tiago pois entendeu que Tiago falava de uma feacute falsa ldquoPois transparece desde as primeiras palavras que ele fala de uma falsa profissatildeo de feacute pois ele natildeo comeccedila assim lsquose algueacutem tem feacutersquo mas lsquose algueacutem diz que tem feacuterdquo (CALVIN

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

137

1998 Tg 2-14) Calvino portanto natildeo teve a mesma duacutevida de Lutero mas compreendeu o sentido especiacutefico e claro a que Tiago se referia

Os grandes temas de Tiago

O caraacuteter cristatildeo eacute o tema central da epiacutestola Tiago nada fala do Espiacuterito Santo nem mesmo da doutrina da salvaccedilatildeo O autor natildeo trata de doutrinas mas de conduta Natildeo haacute menccedilatildeo alguma a Missotildees Batismo Santa Ceia Cruz e suas implicaccedilotildees A epiacutestola eacute predominantemente eacutetica Dentre os muitos assuntos tratados por Tiago podemos destacar os seguintes

Provas e tentaccedilotildees

A carta dirige-se especialmente aos judeus cristatildeos que viviam entre gentios fora dos limites da Palestina e que sofriam devido as suas convicccedilotildees religiosas (MARTIN 1998)

Tiago escreveu ldquoMeus irmatildeos tende por motivo de toda alegria o passardes por vaacuterias provaccedilotildeesrdquo (Tg 12) Ele completa ldquoBem-aventurado o homem que suporta com perseveranccedila a provaccedilatildeo porque depois de ter sido aprovado receberaacute a coroa da vida a qual o Senhor prometeu aos que o amamrdquo (Tg 112) Soacute a recompensa eterna compensa os sofrimentos desta vida e o cristatildeo deve olhar para aquele dia futuro quando receberaacute o galardatildeo em troca das vicissitudes e isto deve fazer com que se alegre no presente seacuteculo ainda que seja pobre e necessitado

A palavra ldquotentaccedilatildeordquo eacute usada num sentido mais amplo incluindo perseguiccedilotildees externas e solicitaccedilotildees internas ao mal Tiago ensina aos leitores como transformar a tentaccedilatildeo em becircnccedilatildeo fazendo dela uma fonte de paciecircncia e usando-a como o fogo que prova o ouro (PEARLMAN 1997 p 319)

A esse respeito o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia define ldquoTentaccedilotildees (gr Peirasmos) significa provaccedilotildees com um propoacutesito e efeito beneacuteficos ou sejam provaccedilotildees ou tentaccedilotildees divinamente permitidas ou enviadasrdquo (SHEDD 1979 p 1388)

A ecircnfase eacute que a tentaccedilatildeo em si natildeo vem de Deus ldquoNingueacutem ao ser tentado diga Sou tentado por Deus porque Deus natildeo pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo a ningueacutem tentardquo (Tg 113) O verdadeiro instrumento da tentaccedilatildeo segundo Tiago eacute a cobiccedila (Tg 114) Ele diz ldquoEntatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute aacute luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morterdquo (Tg 115) A antropologia de

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

138

Tiago estaacute em perfeita harmonia com o Antigo Testamento e com os demais escritos do Novo Testamento Deus natildeo eacute o autor do mal O pecado surge no ser humano e gera morte O fato de Tiago natildeo mencionar Satanaacutes como tentador natildeo significa que ele natildeo julgasse importante no processo da tentaccedilatildeo e do pecado (Tg 47)

Tiago expotildee como a feacute verdadeira reage em meio aos sofrimentos decorrentes das provaccedilotildees e das tentaccedilotildees A feacute verdadeira gera alegria nas provaccedilotildees e eacute fortalecida em Deus nas tentaccedilotildees

Feacute e obediecircncia

A feacute verdadeira segundo Tiago eacute aquela que implica em obediecircn-cia ou seja a praacutetica da Palavra Ele diz ldquoPortanto despojando-vos de toda impureza e acuacutemulo de maldade acolhei com mansidatildeo a palavra em voacutes implantada a qual eacute poderosa para salvar vossa alma Tornai-vos pois praticantes da palavra e natildeo somente ouvintes enganando-vos a voacutes mesmosrdquo (Tg 12122)

Haacute um eco entre estas palavras e as que Jesus proferiu no final do sermatildeo do monte que compara o ouvir sem praticar a palavra como uma atitude de construir uma casa sobre a areia (Mt 724-27) Ouvir sem praticar eacute como se olhar num espelho e esquecer-se de como se eacute Os espelhos eram de bronze e refletiam mal a imagem da pessoa aleacutem de serem raros Uma pessoa pobre passava meses sem se ver ao espelho Quem ouve e pratica seraacute bem-aventurado (Tg 125) Natildeo praticar a Palavra de Deus eacute um ato de auto-engano pois a proacutepria pessoa seraacute a uacutenica prejudicada A feacute verdadeira eacute a que demonstra a Palavra de Deus na praacutetica A guarda da liacutengua

Tiago preocupado com a questatildeo da liacutengua no sentido de ldquofalar o que natildeo se deverdquo antecipa um pouco do que vai dizer adiante ldquoSe algueacutem supotildee ser religioso deixando de se refrear a liacutengua antes enganando o proacuteprio coraccedilatildeo a sua religiatildeo eacute vatilderdquo (Tg 126) Esclarece o que entende ser a verdadeira religiatildeo ldquoA religiatildeo pura e sem maacutecula para com o nosso Deus e Pai eacute essa visitar os oacuterfatildeos e as viuacutevas nas suas atribulaccedilotildees e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundordquo (Tg 127)

Com o objetivo de exemplificar de modo praacutetico o que considera uma feacute em accedilatildeo Tiago trata sobre o problema da liacutengua Agora ele tem em mente os mestres pois fala sobre o perigo de algueacutem utilizar a liacutengua

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

139

de modo errado neste sentido (Tg 31-12) Do mesmo modo expotildee sobre as dissensotildees dentro da comunidade como algo contraacuterio aacute feacute (Tg 313-18) Trata novamente sobre a cobiccedila (Tg 41-3) da vida mundana e da necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 44-10) Enfatiza os relacionamentos pessoais na igreja e na necessidade de submissatildeo a Deus (Tg 411-17) A feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica de obras eacute uma feacute em accedilatildeo

Natildeo fazer acepccedilatildeo

Tiago analisa a incompatibilidade de algueacutem crer em Jesus e fazer acepccedilatildeo de pessoas

Meus irmatildeos natildeo tenhais a feacute em nosso Senhor Jesus Cristo Senhor da gloacuteria em acepccedilatildeo de pessoas Se portanto entrar na vossa sinagoga algum homem com aneacuteis de ouro nos dedos em trajos de luxo e entrar tambeacutem algum pobre andrajoso e tratardes com deferecircncia o que tecircm trajos de luxo e lhe disserdes Tu assenta-te aqui em lugar de honra e disserdes pobre Tu fica ali em peacute natildeo fizestes distinccedilatildeo entre voacutes mesmos e natildeo vos tornastes juiacutezes tomados de perversos pensamentos (Tg 21-4)

Apesar da maioria dos crentes para os quais Tiago ensinava ser de classe baixa parece que eles como eacute proacuteprio agraves vezes dos pobres tratavam bem os ricos e mal os pobres Tiago diz que isto eacute uma feacute incoerente No texto ele fala da ldquosinagogardquo e natildeo da igreja o que evidencia o aspecto judaico da carta e aponta para sua antiguidade Para Tiago fazer acepccedilatildeo de pessoas eacute quebrar a lei (Tg 2 9-10) A questatildeo polecircmica da carta

Jaacute tratamos disto em momentos anteriores e podemos deixar de emitir mais consideraccedilotildees Vamos apenas acrescentar isto a preocupaccedilatildeo de Tiago eacute primariamente praacutetica (CARBALLOSA 1994 p 70) e parece oacutebvio que ele respondia a algum tipo de questionamento antinomista pois rebatia a crenccedila de que uma pessoa pode ser salva sem que demonstre qualquer mudanccedila de vida

Por isso ele diz que no caso de Abraatildeo ldquofoi pelas obras que a feacute se consumourdquo (Tg 222) Paulo por outro lado estaacute respondendo a outro tipo de questionamento Ele combate a noccedilatildeo judaica daqueles dias de que uma pessoa era salva pela feacute e pelas obras como se as obras natildeo fossem apenas uma evidecircncia da feacute mas um instrumento real de salvaccedilatildeo Eacute oacutebvio que se algueacutem lhe dissesse que uma pessoa pode ser salva sem experimentar uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

140

transformaccedilatildeo Paulo certamente responderia ldquonatildeordquo pois embora sejamos salvos pela graccedila Deus tem preparado uma vida de boas obras para que andemos nelas (Ef 28-10) Ellen G White (1892) declarou que ldquoas boas obras se seguiratildeo como as floraccedilotildees e frutos da feacute A apropriaccedilatildeo da justiccedila de Cristo seraacute manifestada numa vida bem ordenada e na conversaccedilatildeo santardquo

Do mesmo modo se perguntassem a Tiago se a lei precisa ser obedecida para que algueacutem seja salvo como um meio de completar a feacute certamente ele diria que somos salvos pela feacute e que as obras satildeo apenas a evidecircncia de que ela existe Natildeo haacute contradiccedilatildeo teoloacutegica entre Paulo e Tiago suas respostas aparentemente divergentes explicam a razatildeo dos propoacutesitos de cada autor Assim a Reforma Protestante resolve o conflito quando declara ldquoEacute a feacute que salva sozinha mas a feacute que salva nunca estaacute sozinhardquo

Denuacutencia contra os ricos

ldquoPaciecircnciardquo eacute a palavra chave para resumir o ensino do capiacutetulo 51-6 sendo um dos temas predominantes de toda a carta de Tiago ldquoEvidentemente muitas das pessoas humildes dentre os judeus cristatildeos estavam sendo oprimidos pelos ricos e seus salaacuterios eram retidos com fraude (54)rdquo (MEARS 1993 p 517-518) Os cristatildeos pobres daqueles dias deveriam ter paciecircncia e esperar o momento da libertaccedilatildeo que viria de Deus e viver na praacutetica a feacute que salva

Sobre a denuacutencia de Tiago contra os ricos assim se expressa o Novo Comentaacuterio da Biacuteblia ldquoEsta seccedilatildeo apresenta uma severa denuacutencia contra os ricos que tecircm granjeado prosperidade mediante opressatildeo Os tais satildeo condenados natildeo por serem ricos mas porque suas riquezas foram mal adquiridas permanecendo sobre elas as marcas da corrupccedilatildeordquo (SHEDD 1979 p 1388)

Jaacute o Comentaacuterio Biacuteblico Adventista por sua vez esclarece ldquoO contexto imediato implica que os ldquoricosrdquo satildeo exemplos notaacuteveis de quem tecircm muitas oportunidades para fazer o bem mas evitam fazecirc-lo Estes ldquoricosrdquo podem ser ou natildeo membros da igrejardquo (NICHOL 1995 p 553)

A mensagem de Tiago era evidente para seus leitores ldquoos opressores ainda pagaratildeo por tudo o que tecircm feitordquo Mas o povo de Deus deveria ser paciente pois natildeo haacute como antecipar o juiacutezo de Deus ldquoSede pois irmatildeos pacientes ateacute a vinda do Senhor Eis que o lavrador aguarda com paciecircncia o precioso fruto da terra ateacute receber as primeiras

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

141

e as uacuteltimas chuvas Sede voacutes tambeacutem pacientes e fortalecei o vosso coraccedilatildeo pois a vinda do Senhor estaacute proacuteximardquo (Tg 578)

As chuvas do fim do outono e do comeccedilo da primavera que datildeo condiccedilotildees agrave terra de produzir natildeo podem ser antecipadas por causa do desejo ou da ira do homem Elas vecircm no tempo certo Resta ao lavrador esperar que a chuva venha e de nada adiantaraacute ele se agitar se irar ou fazer qualquer outra coisa pois seraacute apenas perda de tempo de energia e mais acuacutemulo de sofrimento Como o agricultor tem certeza de que a chuva viraacute ele deve descansar pois deve ter uma esperanccedila confiante Do mesmo modo o cristatildeo sabe que Jesus voltaraacute e ainda que ele natildeo saiba quando deve esperar confiantemente pois Jesus viraacute

Julgamentos precipitados

Tiago orienta os crentes a se absterem de julgamentos precipitados ldquoIrmatildeos natildeo vos queixeis uns dos outros para natildeo serdes julgados Eis que o juiz estaacute agraves portasrdquo (Tg 59) Natildeo eacute totalmente certo se ele fala em relaccedilatildeo aos proacuteprios crentes ou se o assunto ainda satildeo os iacutempios que os oprimem mas eacute bastante plausiacutevel que estes uacuteltimos estejam em foco Do mesmo modo que os crentes do Antigo Testamento foram pacientes em meio ao sofrimento os cristatildeos deveriam ser agora ldquoIrmatildeos tomai por modelo no sofrimento e na paciecircncia os profetas os quais falaram em nome do Senhor Eis que temos por felizes os que perseveram firmes Tendes ouvido da paciecircncia de Joacute e vistes que fim o Senhor lhe deu porque o Senhor eacute cheio de terna misericoacuterdia e compassivordquo (Tg 51011)

A paciecircncia dos santos do passado especialmente o mais conhecido de todos neste sentido Joacute eacute evocada como exemplo de que o Senhor faz justiccedila aos seus Tiago natildeo entende que os cristatildeos devem demonstrar uma paciecircncia moacuterbida mas insiste que eles tecircm em suas matildeos uma arma poderosa a oraccedilatildeo Ele diz ldquoEstaacute algueacutem entre voacutes sofrendo Faccedila oraccedilatildeordquo (Tg 513) A oraccedilatildeo eacute o instrumento dos crentes em meio a tribulaccedilatildeo A oraccedilatildeo pode trazer cura (Tg 515) e perdatildeo (Tg 516) Para comprovar que a oraccedilatildeo tem muito poder Tiago cita Elias reconhecido como um dos profetas mais poderosos ldquoElias era homem semelhante a noacutes sujeito aos mesmos sentimentos e orou com muita insistecircncia para que natildeo chovesse sobre a terra e por trecircs anos e seis meses natildeo choveu E orou de novo e o ceacuteu deu chuva e a terra fez germinar seus frutosrdquo (Tg 51718)

Tiago enfatiza que Elias era um homem sujeito aos mesmos sofrimentos e limitaccedilotildees que os seus leitores mas pela oraccedilatildeo realizou

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

142

feitos formidaacuteveis Os crentes devem ter paciecircncia orar pois Deus pode mudar as situaccedilotildees dramaacuteticas por intermeacutedio da oraccedilatildeo As uacuteltimas palavras de Tiago satildeo um lembrete aos crentes de que devem se preocupar com os desviados dos caminhos de Deus (Tg 51920)

Haacute outros temas mais mas a relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus (que seraacute apresentada a seguir) poderaacute completar aleacutem de recordar alguns pontos jaacute tratados

A relaccedilatildeo entre Tiago e Jesus

Tiago pode natildeo ter o brilho intelectual de Paulo mas seu conteuacutedo em nada difere do que o Salvador ensinou E dos apoacutestolos ele foi o que mais tempo viveu com Jesus Pelo menos a infacircncia e a adolescecircncia dos dois foram juntas O ensinamento de Jesus pode ser visto em toda a epiacutestola de Tiago

1 O cristatildeo que sofre provaccedilotildees eacute abenccediloado Tiago 12 e Mateus 510-12

2 Deus deseja que sejamos perfeitos Tiago 14 e Mateus 548

3 Ele daacute generosamente aos que lhe pedem Tiago 15 e 42 Mateus 77-8

4 Mas somente o Pai tem poder para dar boas daacutedivas Tiago 117 e Mateus 79 -11

5 E neste caso ele daacute somente aos quem tecircm feacute Tiago 16 e Marcos 11 22-24

6 Devemos natildeo apenas ouvir a palavra Mas praticaacute-la Tiago 122-25 e Mateus 7 21-27

7 Devemos tomar cuidado com as riquezas porque os pobres eacute que herdam o reino de Deus Tiago 25 e Mateus 53 Lucas 620

8 Devemos amar o proacuteximo como a noacutes mesmos Tiago 28 e Marcos 1231

9 Devemos guardar os mandamentos Tiago 210 e Mateus 519

10 Devemos mostrar misericoacuterdia para recebermos misericoacuterdia Tiago 213 e Mateus 57 1833-35

11 Eacute a aacutervore que determina o fruto Tiago 312 e Mateus 715-20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

143

12 Os pacificadores seratildeo abenccediloados Tiago 318 e Mateus 59

13 Natildeo eacute possiacutevel servir a dois senhores Cada um deve escolher entre Deus e o dinheiro Tiago 44 413-15 e Mateus 624

14 Quem se humilha seraacute exaltado Tiago 46 e 10 e Lucas 1814 Comparar isto com Tiago 19-10 e Lucas 152

15 Natildeo devemos falar mal uns dou outros ou julgar uns aos outros Tiago 412 e Mateus 71

16 Natildeo devemos elaborar planos gananciosos e mundanos para obter ganhos esquecendo-nos de Deus ou do proacuteximo Tiago 413-17 e Lucas 1216-21

17 As riquezas natildeo duram Elas se corroem as roupas satildeo consu-midas pelas traccedilas e o ouro fica embaccedilado com a ferrugem Tiago 51-3 e Mateus 619-21

18 Por isso ai dos ricos Tiago 51 e Lucas 624

19 Quem crecirc que espere pacientemente e esteja pronto para a vinda do Senhor pois ele estaacute perto agraves portas Tiago 57-9 e Lucas 1235-40 Marcos 1329

20 Os cristatildeos natildeo devem jurar nem pelo ceacuteu nem pela terra nem por qualquer outro meio de juramento Sua palavra deve ser confiaacutevel Seu sim deve ser sim e seu natildeo deve ser natildeo Suas palavras natildeo podem ter duplo sentido Tiago 512 e Mateus 533

Tiago reafirma Jesus como um homem com um ensino praacutetico e praticaacutevel O cristianismo eacute vida e natildeo sensaccedilotildees Vida correta com Deus que se evidencia em vida correta com os homens

Consideraccedilotildees finais

Percebe-se que a mensagem de Tiago eacute clara e simples Ele fala sobre a feacute verdadeira que se demonstra na praacutetica pelas obras Esta feacute leva os crentes a suportarem todo tipo de sofrimento a demonstrarem a conversatildeo pelas boas obras e a esperarem em oraccedilatildeo pelo retorno de Jesus ou pela manifestaccedilatildeo libertadora de Deus

Mesmo simples a carta de Tiago eacute rica e teologicamente impor-tante de modo que natildeo concordamos com a ideia de Richardson (e de Lutero) de que eacute uma ldquoepiacutestola de palhardquo (RICHARDSON 1966 p 240

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

144

BACLAY 1974 p 16) em comparaccedilatildeo com a profunda solidez da Epiacutestola aos Romanos Ela ocupa um lugar importante no cacircnon e na Teologia do Novo Testamento responsaacutevel pela ampliaccedilatildeo do entendi-mento de um conceito essencial para a feacute do Novo Testamento o relacionamento entre feacute e obras

Termino deixando uma pergunta Se Tiago ocupasse o puacutelpito contemporacircneo que diria ele aos membros e liacutederes de nossas igrejas

Referecircncias Bibliograacuteficas

BACLAY W S I y II Pedro Buenos Aires Editorial La Aurora 1974

BAXTER S J Examinai as escrituras ndash atos a apocalipse Satildeo Paulo Ediccedilotildees vida Nova 1989

CALVIN J Commentary on the espistole of the James Albany Books for the Ages 1998

CARBALLOSA E L Tiago Una fe em accioacuten 6 ed Grand Rapids Editorial Portavoz 1994

CHAMPLIN R N Enciclopeacutedia de Biacuteblia teologia e filosofia v 6 Satildeo Paulo Editora e Distribuidora Candeia 1991

CONNER W T La fe del nuevo testamento Nashvill Casa Bautista de Publicaccedilotildees 1951

GEORGE T In ldquoA rigth strawy epistle reformation perspective on Jamesrdquo Louisville Review and Expositor ndash a baptist theological journal v LXXXIII n 3 1986

KUumlMMEL W G Introduction to the new testament Nashvill Abingdon Press 1975

LADD G E Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Exodus 1997

LUTERO Martinho Da liberdade do cristatildeo ndash prefaacutecio agrave Biacuteblia (Ediccedilatildeo Biliacutengue) Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo da Editora Unesp 1997

MARTIN R P Word biblical commentary v 48 James Dallas Texas Word Books Publisher 1998

MEARS H C Estudo panoracircmico da Biacuteblia Satildeo Paulo Vida 1993

MORRIS Leon Teologia do novo testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2003

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 133-145 2013

145

NICHOL F D (ed) Comentario biblico adventista del septimo dia Tomo 7 Buenos Aires Asociacion Casa Editora Sudamericana 1995

PEARLMAN M Atraveacutes da Biacuteblia livro por livro Satildeo Paulo Vida 1997

PFEIFER F C HARRISON E F Comentaacuterio biacuteblico Moody v IV Satildeo Paulo Imprensa Batista Regular 1983

RICHARDSON Alan Introduccedilatildeo agrave teologia do novo testamento Satildeo Paulo ASTE 1966

SHEDD R P (ed) O novo comentaacuterio da Biacuteblia v III Satildeo Paulo Ediccedilotildees Vida Nova 1979

SHEDD R P BIZERRA E F Uma exposiccedilatildeo de Tiago a sabedoria de Deus Satildeo Paulo Shedd Publicaccedilotildees 2010

STOTT J Homens com uma mensagem Campinas Editora Cristatilde Unida 1996

WHITE E G Signs of the times 5 de setembro de 1892

Prof Dr Eacuterico Tadeu Xavier Doutor em Teologia e professor nos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graducaccedilatildeo

do Seminaacuterio Adventista Latino Americano de Teologia ndash Cachoeira BA

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

146

A VOCACcedilAtildeO NAtildeO Eacute UMA ESCOLHA MAS UMA RESPOSTA

Ir Graccedila Disingakala Nunes

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo Tentativa de responder a trecircs questotildees fundamentais sobre a vocaccedilatildeo entendida como chamado de Deus valendo-se de muitos autores mas principalmente da contribuiccedilatildeo de Gianfranco Poli Natildeo vai certamente exaurir o assunto mas eacute uma chamada de atenccedilatildeo agraves escolas teoloacutegicas para que trabalhem este argumento de um modo mais aprofundado O tema pesquisado eacute a vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta Discorre-se entatildeo acerca de sua origem e significado o porquecirc de uma teologia da vocaccedilatildeo as caracteriacutesticas do chamado a relaccedilatildeo de intimidade com a pessoa de Jesus Cristo a resposta incondicional do homem Evidenciam-se tambeacutem os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde o discernimento as exigecircncias que o chamado comporta e de modo muito breve as dimensotildees que compotildeem fundamentalmente a resposta do homem e as consideraccedilotildees finais Toda essa dinacircmica eacute realizada mediante uma relaccedilatildeo dialogal entre as duas liberdades a de Deus que chama e a do homem que responde

Palavras-chave Deus-Trindade Vocaccedilatildeo ou Chamado Homem Encontro Igreja

Riassunto Questo articolo egrave un tentativo di rispondere a ter domande fondamentali sulla vocazione intesa come chiamata di Dio servendosi di tanti autori ma sopratutto dela contribuizione di Gianfranco Poli Non va sicuramente esaurire lrsquoassunto ma visa a scuotere lrsquoattenzione dele scuole teologiche percheacute lavorino la questione vocazione in modo piugrave profondo Il tema svolto egrave la vocazione non `e una scelta ma una risposta Si sviluppa quindi sua origine e significato il perchegrave di una teologia dela vocazione le caratteristiche della chiamata la relazione di intimitagrave com la persona di Cristo Gesugrave la risposta incondizionata dellrsquouomo Sono noti anche gli elementi centrali dela vocazione cristiana il discernimento le esigenze che la chiamata di Dio comporta e si fa cenno alle dimensioni che essenzialmente compongono la risposta dellrsquouomo e per ultimo le considerazioni finali Tutta la dinamica egrave svolta attraverso una relazione dialogica tra le due libertagrave di Dio che chiama e dellrsquouomo che risponde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

147

Parole chiavi Dio-Trinitagrave Vocazione o Chiamata Uomo Incontro Chiesa

1 Introduccedilatildeo

Haacute no Brasil e no mundo muitos escritos sobre vocaccedilatildeo mas falta uma teologia da vocaccedilatildeo ldquoFalta ainda um estudo sistemaacuteticordquo deste argumento Haacute pouco interesse nas escolas teoloacutegicas e entre os teoacutelogos no sentido de aprofundar este assunto1 A ausecircncia de fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica das vocaccedilotildees eacute negativa enquanto a praacutexis permanece sem fundamentaccedilatildeo conforme constatou Joseacute Lisboa Moreira de Oliveira na sua Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo2 Eacute tatildeo verdade o fato de o tema vocaccedilatildeo carecer de estudo sistemaacutetico que outros autores fazem esta constataccedilatildeo Exemplo Gianfranco Poli na sua exposiccedilatildeo sobre o assunto Tra vocazione e domanda di senso natildeo hesita em afirmar que a palavra vocaccedilatildeo eacute muitas vezes usada e repetidamente mas raramente se precisa o seu conteuacutedo

Advertimos para a necessidade natildeo soacute no Brasil mas tambeacutem no mundo de explicitar o que entendemos acerca de vocaccedilatildeo Para isso Gianfranco Poli trata a vocaccedilatildeo em trecircs momentos esclarecer o sujeito que chama colocar em realce os elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde oferecer algumas indicaccedilotildees a respeito do homem que responde ou simplesmente eacute possiacutevel indicar estes trecircs momentos formulando trecircs perguntas quem chama A que coisa chama Em que modo se responde3

Eacute a essas perguntas que tentaremos responder com suporte na abordagem de Gianfranco Poli oferecendo ao assunto vocaccedilatildeo mais um subsiacutedio sem a pretensatildeo de exauri-lo

O tema eacute estruturado com uma introduccedilatildeo cinco partes e suas subdivisotildees Iordf parte Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo Por que teologia da vocaccedilatildeo Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo IIordf parte Dimensatildeo Trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde A vocaccedilatildeo do homem Quem chama Por que chama Para que chama Como chama IIIordf parte Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde Como saber que eacute Deus quem me chama A vocaccedilatildeo natildeo eacute 1 Cf DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992 nordm 244 2 OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996) p 22-31 3 Cf POLI Gianfranco ldquoLa cultura della vocazione tra vocazione e domanda di sensordquo in BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teologica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010 p 20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

148

uma escolha mas uma resposta Como responder Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees Consideraccedilotildees finais

2 Significado e definiccedilatildeo da palavra vocaccedilatildeo

Vocaccedilatildeo eacute um termo derivado do verbo latino vocare que significa chamar Vocaccedilatildeo eacute assim chamado convite apelo Eacute ato de chamar da parte de Deus eacute um estado de relaccedilatildeo entre Deus e o homem eacute diaacutelogo porque haacute atenccedilatildeo para com o outro Vocaccedilatildeo eacute encontro de duas liberdades a liberdade absoluta de Deus que chama e a liberdade do homem que responde Vocaccedilatildeo eacute um dom que exige resposta de feacute

Sendo um ato que brota do mais profundo do ser a vocaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com a inclinaccedilatildeo para exercer determinada profissatildeo ou um talento (aptidatildeo natural) para executar algo alguma atividade A vocaccedilatildeo eacute um chamado para amar eacute chamado ao serviccedilo (1Jo 47-21 Mc 1045) eacute a realizaccedilatildeo de um sonho

Na Biacuteblia vocaccedilatildeo estaacute em estreita relaccedilatildeo com eleiccedilatildeo e missatildeo4 Eleiccedilatildeo significa escolher um ou alguns entre tantos eacute uma predileccedilatildeo De tal maneira vocaccedilatildeo eacute um dom com o qual Deus preferiu a mim a vocecirc e natildeo a outro natildeo por merecimentos nossos mas por puro amor e em vista de uma missatildeo especiacutefica que a pessoa chamada vai desccedilo-brindo ao longo da sua vida visto que vocaccedilatildeo eacute um estado de relaccedilatildeo com Deus

21 Por que uma teologia da vocaccedilatildeo

A vocaccedilatildeo eacute um ato teoloacutegico e antropoloacutegico porque envolve Deus e o homem Eacute dom que vem do Alto iniciativa do Pai ldquoque atrai a Si uma criatura sua por um amor de predileccedilatildeo e em ordem a uma missatildeo especialrdquo5 Eacute Deus que no iacutentimo inspira agrave alma o desejo de abraccedilar o projeto de Deus seja no matrimocircnio como na vida consagrada O fato de Deus escolher algueacutem com amor de predileccedilatildeo no entanto natildeo obriga a pessoa escolhida porque sua eleiccedilatildeo se torna convite diante do qual ela eacute livre para responder sim ou natildeo Ao mesmo tempo poreacutem Deus tem um jeito todo particular de se aproximar do homem que quase

4 VOCACcedilAtildeO in CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997 5 Cf JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996 n 17

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

149

ningueacutem resiste em responder sim Acontece exatamente o que acentua Jeremias ldquoseduzistes-me Senhor e eu me deixei seduzirrdquo (cf Jr 207)

22 Caracteriacutesticas da vocaccedilatildeo

Pela sua natureza dialoacutegica a vocaccedilatildeo eacute relacional comunitaacuteria missionaacuteria e dinacircmica A origem de toda a vocaccedilatildeo estaacute na relaccedilatildeo com a Santiacutessima Trindade ()6 Soacute quem ficou seduzido (Jr 207) e permanece na intimidade (Os 216 1Ts 417 Jo 1724 1Pd 51) pode entender a beleza e a riqueza desta peacuterola preciosa

O diaacutelogo pessoal com Deus tambeacutem eacute comunitaacuterio nos dois sentidos de um lado acontece numa comunidade bem concreta (Mt 2531-46) de outro Deus chama mediante o ldquoclamorrdquo do povo que sofre (cf Ex 31-10 Jr 114-10) A vocaccedilatildeo eacute comunhatildeo com a Trindade que se traduz concretamente na experiecircncia de verdadeira irmandade Ela eacute comunicaccedilatildeo isto eacute vida de comunhatildeo e de participaccedilatildeo Responder ao chamado eacute inserir-se na vida da comunidade com uma missatildeo bem precisa tomar parte ativa na construccedilatildeo do Reino Vocaccedilatildeo natildeo eacute isolamento busca de satisfaccedilotildees de ldquorealizaccedilatildeo pessoalrdquo Natildeo eacute realizar ldquoprojetos pessoaisrdquo mas dar a vida pela defesa da vida (Jo 1011 1513)

3 Dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo cristatilde

Desde o Concilio Vaticano II a vocaccedilatildeo eacute vista como chamado agrave comunhatildeo com o Pai pelo Filho no Espiacuterito Santo7 O segundo Congresso Internacional das vocaccedilotildees (Roma 1981) no seu documento conclusivo explicita de forma definitiva e muito clara esta dimensatildeo trinitaacuteria ldquoCada vocaccedilatildeo estaacute ligada ao desiacutegnio do Pai agrave missatildeo do Filho agrave obra do Espiacuterito Santo Cada vocaccedilatildeo eacute iluminada e fortalecida agrave luz do misteacuterio de Deusrdquo8

O Papa Bento XVI ressalta esta dimensatildeo trinitaacuteria da vocaccedilatildeo quando afirma logo no iniacutecio de sua primeira mensagem vocacional que ldquoo Pai do ceacuteu nos escolheu pessoalmente para nos chamar a entrar em

6 CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla Satildeo Paulo Paulinas 2004 13 Ed nordm 212 7 Cf VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM Satildeo Paulo Paulinas 1999 13ordf Ed nordm 4 8 II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Vocacional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982 nordm 7

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

150

relaccedilatildeo filial com Ele por meio de Jesus Verbo feito carne sob a guia do Espiacuterito Santo9rdquo 31 A vocaccedilatildeo do homem

O homem existe porque Deus lhe dirigiu a palavra o chamou agrave existecircncia convocando-o para ser Seu interlocutor A vocaccedilatildeo eacute a palavra que Deus dirige ao homem e que o faz existir imprimindo nele a marca dialogal Se o homem foi criado pela conversaccedilatildeo com Deus e eacute assim aquele que eacute chamado a falar a expressar-se a comunicar-se a responder o tempo que tem a disposiccedilatildeo pode ser entendido como o tempo para realizar sua vocaccedilatildeo

Ora em que consiste a vocaccedilatildeo do homem senatildeo na sua plena realizaccedilatildeo no amor ao interno do princiacutepio dialoacutegico no qual foi criado com Deus como primeiro interlocutor ldquoVocaccedilatildeo entatildeo eacute um processo de maturaccedilatildeo de relaccedilotildees que culmina no amor a Cristo que eacute a plena realizaccedilatildeo do amor na sua pessoa10rdquo Em satildeo Paulo encontramos a confirmaccedilatildeo desta verdade ldquoqualquer coisa o homem faccedila fora do seu amor natildeo serve a nada aliaacutes eacute vatilde e esperdiacutecio de tempordquo (1Cor 13)

32 Quem chama

O sujeito e autor de todo o chamado eacute Deus Eacute preciso poreacutem entender por que Deus chama qual intenccedilatildeo O move de qual vontade eacute animado Um texto de Paulo aos Efeacutesios nos abre horizontes infinitos

Bendito seja Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que do alto do ceacuteu nos abenccediloou com toda a becircnccedilatildeo espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criaccedilatildeo do mundo para sermos santos e irrepreensiacuteveis diante de seus olhos No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo segundo o beneplaacutecito de sua livre vontade (Ef 13-5)

Nossa existecircncia tem raiz no coraccedilatildeo de Deus que nos desejou ldquofaccedilamos o homem agrave nossa imagem como nossa semelhanccedilardquo (Gn 1 26a) que desde a eternidade nos quis como ldquofilhos adotivosrdquo agrave imagem do seu Filho Jesus Existir eacute a primeira e fundamental vocaccedilatildeo do ser humano (cf Gn 27) As outras vocaccedilotildees dela decorrem e nela se sustentam Eacute o amor agrave

9 BENTO XVI A primeira mensagem vocacional in httpwwwportalcatolicoorgbr portala-primeira-mensagem-vocacional-de-bento-xvi Acesso em 040452015 10Cf RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000 p 21-22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

151

vida que possibilita se empenhar em tantas outras dimensotildees da existecircncia humana

33 Por que chama Os motivos do chamado

Vocaccedilatildeo eacute accedilatildeo de chamar por parte de Deus como sua iniciativa de amor corresponsaacutevel (Is 591 Jr 15 Rm 912 Gl 115 58) Deus chama porque ama (cf Dt 76-8 236 Jo 1516 Mc 312) Segundo a Biacuteblia missatildeo eacute o elemento central da vocaccedilatildeo11 Quando Deus chama algueacutem o faz para uma missatildeo a fim de fazer alguma coisa em funccedilatildeo de uma pessoa ou de uma comunidade A missatildeo eacute sempre um encargo

ldquoDeus criou-nos para compartilhar a sua proacutepria vida chama-nos para sermos seus filhos membros vivos do Corpo miacutestico de Cristo templos luminosos do Espiacuterito do Amor Chama-nos para ser ldquoseusrdquo quer que todos sejam santos12rdquo

Ante o chamado que Deus faz a cada um de noacutes eacute preciso ter coragem para deixar tudo se abandonar por inteiro ir aonde Ele mandar e fazer aquilo que Ele pedir Coragem eacute um dos passos mais importantes para um caminho vocacional bem-sucedido Eacute preciso ter coragem para entregar-se nas matildeos do bom oleiro e deixar-se moldar para enfrentar todas as tempestades do caminho todas as vicissitudes Coragem pra deixar tudo e dizer Sim a Deus

Natildeo temas ldquoCoragem Levanta-te ele te chamardquo (Mc 10 49) Ama-te e conta contigo para estabelecimento de um Reino de amor que jamais teraacute fim Amor eacute a origem e o fim de toda vocaccedilatildeo e o Deus que nos criou sem noacutes natildeo nos salva sem noacutes constata Santo Agostinho Somos chamados a colaborar no plano da salvaccedilatildeo Ele precisa do teu sim generoso e gratuito

34 Para que chama

A autoria de Deus sobre o chamado eacute contiacutenua Todos os dias Deus chama o homem para uma vida de relaccedilatildeo filial para elevaacute-lo agrave comunhatildeo com a Trindade

11wwwparoquiasaobeneditongorgbrblogp=1087 Acesso em 29102015 12JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iiptmessagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes _29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em em 29102015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

152

O uacutenico e mesmo Espiacuterito distribui seus dons a cada um conforme quer para que todo dom sem exceccedilatildeo seja para utilidade de todos para o bem da comunidade (cf 1Cor 127 11)Todo chamado eacute voltado para servir para dar sentido agrave proacutepria existecircncia doando-se

Ao se falar da vocaccedilatildeo a palavra sentido pode significar possibi-lidade e capacidade de siacutentese na proacutepria accedilatildeo cotidiana como tambeacutem abertura a um futuro em que o sentido da proacutepria vida seja menos contraditoacuterio ou contudo mais feliz e harmonioso Entatildeo a finalidade do chamado eacute de um movimento rotatoacuterio que tem como eixo Deus O ponto de partida e de chegada eacute Deus

Quanto mais o homem se relaciona com Deus mais se sente realizado e se torna capaz de doar-se sair de si e ir ao encontro do outro A realizaccedilatildeo de que se fala eacute no sentido de ser feliz do que se eacute e se faz Acreditamos ser esta a condiccedilatildeo de servir gratuitamente Assim sendo a vocaccedilatildeo visa em primeiro lugar agrave realizaccedilatildeo pessoal daquele que eacute chamado que busca um sentido da sua vida na descoberta do propoacutesito de Deus para si mediante o serviccedilo agrave comunidade de irmatildeos Na medida em que a pessoa se acha realizada em certa opccedilatildeo sente a exigecircncia de responder por via do serviccedilo E seraacute realmente um serviccedilo gratuito que natildeo espera outro em troca porque se sente bem servindo e o amor ao proacuteximo por sua vez eacute inseparaacutevel do amor a Deus A verdadeira felicidade estaacute em servirmos ao outro e a Deus 13

Sendo a vocaccedilatildeo antes de tudo um relacionamento com Jesus Cristo eacute inconcebiacutevel falar de uma vocaccedilatildeo cristatilde fora da Igreja pois eacute nela e por seu intermeacutedio que Cristo realiza e revela o proacuteprio misteacuterio como meta do desiacutegnio de Deus ldquoRecapitular tudo nelerdquo (Ef 110)

35 Como chama O modo

DeusndashPai nos chama pelo nome e sua voz chega ao homem em dois modos imediato e mediato Imediato Deus chama por meio de um desejo iacutentimo e profundo a inspiraccedilatildeo divina que impele para um estado de vida Costuma haver no mais iacutentimo da pessoa uma atraccedilatildeo essencial para formas de ser e de viver fundamentais por intermeacutedio do ambiente isto eacute das relaccedilotildees pessoais que vatildeo despertando o chamado por meio da histoacuteria pessoal (muito relevante) Mediato Deus fala pelas mediaccedilotildees Palavra escrita (e a falada) a vida de Cristo por meio da histoacuteria

13 httpformacaocancaonovacomdiversosa-vocacao-profissional Acesso em 05112015

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

153

situaccedilotildees acontecimentos definidos sinais dos tempos e das pessoas (cf 1Sm 38-9)

Deus natildeo chama os homens do mesmo modo porque Ele chama por nome numa certa histoacuteria situaccedilatildeo cultura Nos relatos da Biacuteblia esta diferenccedila eacute notoacuteria algumas personagens satildeo demoradas em dizer sim e Deus tem paciecircncia e pelo diaacutelogo vai levando o chamado a uma resposta consciente como eacute o caso de Gedeatildeo (cf Jz 611-40) pois foi necessaacuterio trecircs vezes Deus prometer a sua presenccedila para se sentir seguro ao passo que natildeo foi assim com o disciacutepulo que pede para enterrar primeiro seu pai (Mt 821-22) a quem Jesus responde ldquoSegue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortosrdquo

Deus chama mediante Sua Palavra da natureza dos acontecimentos da histoacuteria significa que para escutaacute-Lo devemos estar atentos e cultivar uma atitude interior de silecircncio de escuta de meditaccedilatildeo de contemplaccedilatildeo No Novo Testamento a primeira accedilatildeo que Jesus desenvolveu no seu ministeacuterio de vida puacuteblica eacute uma ldquovocaccedilatildeordquo eacute a chamada de dois dos seus disciacutepulos Antes de tudo o chamado pede conversatildeo isto eacute seguir Jesus com o desejo de conformar-se agrave Sua pessoa

Nossa vocaccedilatildeo encontra jaacute a primeira revelaccedilatildeo no nome de cada um por isso Jesus chamaraacute Simatildeo de Pedro porque a sua missatildeo e a sua chamada seraacute aquela de ser rocha sobre a qual fundar a Igreja de Cristo Aleacutem disso os apoacutestolos satildeo chamados um a um e por nome para serem identificados na sua unicidade

4 Elementos centrais da vocaccedilatildeo cristatilde

Na Biacuteblia a vocaccedilatildeo eacute sempre de autoria do proacuteprio Deus que chama escolhe cada homem e mulher Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento o chamado pode se manifestar de modo mediato ou imediato

Segundo o esquema biacuteblico-literaacuterio satildeo elementos essenciais da vocaccedilatildeo iniciativa de Deus obediecircncia pela feacute temor e tremor investidura ou missatildeo Apesar de nem todas as caracteriacutesticas existirem em todas as vocaccedilotildees em todo tipo de vocaccedilatildeo haacute iniciativa de Deus o seguimento e a Missatildeo14

No Novo Testamento assim como no Velho Testamento a iniciativa de chamar algueacutem eacute sempre de Deus (Mt 99 101 Mc 1 1719-20 313 511 14 Cf Biacuteblia Sagrada Ediccedilatildeo da Famiacutelia Petroacutepolis Vozes 2005 p 1545

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

154

At 9 3-6) A iniciativa de Deus no entanto natildeo elimina nem substitui a resposta do homem jamais anula a participaccedilatildeo e a responsabilidade da pessoa chamada15 Natildeo eacute contudo por meio de uma manifestaccedilatildeo velada pela Palavra do Senhor nem da mediaccedilatildeo de outro homem que Deus age pois antes Ele atua na histoacuteria pessoalmente intermediado por Seu Filho que se fez carne (Jo 114)

Em ambos os Testamentos os escolhidos satildeo designados para uma missatildeo ldquoTal missatildeo eacute a participaccedilatildeo na compaixatildeo pastoral de Jesus ajudaacute-lo na sua missatildeo de serviccedilo agrave necessidade mais profunda das pessoasrdquo 16 Aquele que eacute chamado a seguir Jesus eacute convidado a ter aquilo que Satildeo Paulo pede aos filipenses isto eacute os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 25ss) que eacute a praacutetica da feacute esperanccedila e caridade ldquoNa vivecircncia dessas trecircs virtudes teologais se encontra a fundamental explicitaccedilatildeo da opccedilatildeo fundamental de seguir Cristo17rdquo

O esquema literaacuterio das narrativas vocacionais se repete em muitos casos no Antigo e no Novo Testamento chamado rejeiccedilatildeo ao chamado explicitaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo da missatildeo A novidade estaacute no Segundo Testamento que entende a vocaccedilatildeo agrave santidade e consagraccedilatildeo a Deus em relaccedilatildeo ao Espiacuterito Santo e Jesus

O singular do chamado no Novo Testamento eacute que todos satildeo realizados sob o signo da Nova Alianccedila isto eacute sob o signo da figura de Jesus Eles satildeo enviados e convidados a levar ao povo a presenccedila do proacuteprio Senhor18

A realizaccedilatildeo da vocaccedilatildeo de Jesus para o serviccedilo do Reino eacute expressa de modo claro em Lc 4 14-22 remir os presos recuperar a vista 15 MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro tostado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001 p 26 e 29 16 Cf PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991 p 400 17 Cf GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998 p 20 18 Alguns exemplos do chamado nos quais o aspecto missionaacuterio eacute evidente Abraatildeo e Sara chamados para formar um povo (Gn 121-9 Sb 105 At 7 2-3 e Hb 11 8) Moiseacutes a vocaccedilatildeo de um libertador (Ex 3 1-15 4 1-17 6 2-13 6 28-30 71-7 5) Isaiacuteas vocaccedilatildeo para denunciar e anunciar (Is 6 1-10) Maria vocaccedilatildeo para ser a matildee de Deus Apoacutestolos vocaccedilatildeo de propagar os ensinamentos de Jesus (Jo 135-394051 Lc 54-10 Lc 612-16 Mc 117-20 Mc 2 13-17 Mt 412-22 At 115-26) Paulo vocaccedilatildeo de continuar a missatildeo de Jesus ressuscitado (At 91-19 221-21 262-18) Jesus siacutentese da vocaccedilatildeo profeacutetica (Lc 4 14-22 Hb 51-10 Ap 1913 Jo 11-83036 314-19 331-34 4252634 442 530363843 62938-40 64450-5157 71628-2933 81618 11274252 1213273746-49 1424311521 16527 17468 171418212325 181137 19 2021-22)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

155

dos cegos restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graccedila do Senhor

41 Como saber que eacute Deus quem me chama

Vocaccedilatildeo eacute um chamado ao diaacutelogo com Deus em Jesus no Espiacuterito Santo Deus fala chama e pede ao homem de escutaacute-Lo (cf Mc 97) Escutar significa dar atenccedilatildeo ouvir e interiorizar o conteuacutedo da conversa interagir dar adesatildeo uma resposta Vocaccedilatildeo eacute um conhecer e deixar-se conhecer mediante o diaacutelogo com a Trindade Estes dois atos satildeo feitos simultacircnea e cotidianamente A vocaccedilatildeo nasce de um encontro pessoal com Cristo Deus-Amor nos chama em Cristo e o Espiacuterito Santo faz o homem participar desse amor do Pai Uma autecircntica experiecircncia de ser salvado pelo Senhor habilita a compreensatildeo de que eacute o Senhor que chama19

A descoberta da proacutepria vocaccedilatildeo eacute um processo que dura por toda a vida eacute um trabalho de elaboraccedilatildeo de si da proacutepria identidade um trabalho que exige atenccedilatildeo paciecircncia docilidade para acolher a palavra de Deus sensibilidade discernimento e tambeacutem a ajuda de um orientador ou diretor espiritual O chamado eacute entendido e decifrado com base numa ldquoexperiecircncia pessoal com Deusrdquo Nessa experiecircncia Ele revela o seu projeto para noacutes assim como fez com Moiseacutes (cf Ex3 4) e Pedro (Jo 2115-19)

42 A vocaccedilatildeo natildeo eacute uma escolha mas uma resposta

O seguimento de Jesus Cristo comporta trecircs implicaccedilotildees encontro chamado e caminho O encontro suscita um desejo um deixar-se seduzir pelo amor O chamado sustenta esse desejo ou correspondecircncia e ainda este se desenvolve numa inquietaccedilatildeo constante sempre crescente ateacute responder E o caminho eacute o carisma ou a maneira de realizar esse projeto Estes trecircs passos se realizam numa simbiose vocacional surpreendente

Um olhar superficial dos relatos biacuteblicos sobre a vocaccedilatildeo pode levar-nos a concluir que vocaccedilatildeo eacute uma escolha pessoal iniciativa daquele que busca realizar suas inclinaccedilotildees mais profundas Uma anaacutelise mais percuciente no entanto nos desarma ao revelar que apesar de toda a nossa boa vontade e empenho pessoal num determinado chamado a nossa accedilatildeo natildeo passa de uma resposta agrave iniciativa de Deus que quis da nossa existecircncia e felicidade desde sempre (cf Jr 15)

19 Cf RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001 p 116 e 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

156

Nos Evangelhos Jesus chama a Si aqueles aos quais depois faraacute seus disciacutepulos ldquoNatildeo fostes voacutes que me escolhestes mas eu escolhi a voacutes e vos constitui para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneccedilardquo (Jo 1516)

Na origem de cada autecircntica chamada portanto estaacute o Senhor que escolhe e convida ao seu seguimento A Igreja manifesta na diversidade e na multiplicidade das vocaccedilotildees a riqueza do Espiacuterito que distribui livremente os seus dons segundo o projeto divino () A vocaccedilatildeo natildeo se constroacutei se recebe de Deus e sua realizaccedilatildeo depende da resposta que cada um sabe dar Viver de fato eacute responder20

A vocaccedilatildeo poreacutem natildeo eacute predestinaccedilatildeo (Ef 14 Jr 15) mas apelo do Pai dirigido agrave pessoa humana livre (Mt 1921 Gn 128-31)O projeto de Deus para a pessoa natildeo eacute algo estaacutetico predeterminado preestabelecido mas um apelo que se faz por via de mediaccedilotildees bem concretas (Jo 135-50) Deste modo a pessoa pode dizer ldquosimrdquo como Maria (Lc 138) fazendo acontecer a histoacuteria da salvaccedilatildeo ou dizer ldquonatildeordquo como o jovem rico (Mt 1922) frustrando o projeto de amor do Pai Da nossa resposta ao chamado de Deus depende a nossa felicidade O homem que diz sim se reencontra encontrando Deus e o que diz natildeo se perde

43 Como responder

A vocaccedilatildeo eacute um convite que se transforma em apelo o qual exprime uma proposta propositura que se torna eleiccedilatildeo escolha que solicita uma resposta21 O significado de cada um desses termos eacute muito profundo Convite eacute o ato de fazer uma proposta que se supotildee agradaacutevel Apelo eacute chamar algueacutem por nome Proposta eacute quanto vem apresentado agrave atenccedilatildeo e agrave aceitaccedilatildeo do outro um projeto Eleiccedilatildeo eacute o processo pelo qual um grupo designa um de seus integrantes para ocupar um determinado cargo com apelo a uma votaccedilatildeo Resposta eacute o ato de satisfazer uma chamada Deus espera uma resposta da nossa parte uma adesatildeo ao cumprimento da sua vontade sobre noacutes Deveriacuteamos ser agradecidos e sentir-nos honrados quando Deus se digna a nos chamar a colaborar da Sua missatildeo salviacutefica

20 httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa-non-ehtml Acesso em 29052015 21Cf PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus p 1385

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

157

44 Uma resposta que natildeo admite condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A vida do cristatildeo eacute ldquosequela Christirdquo seguimento de Cristo em busca do caminho traccedilado por Ele para ser na Igreja e no mundo sinal inconfundiacutevel de amor e modelo de vida generosa e exemplar

A dimensatildeo do dom eacute a totalidade que prende a vida plenamente radicando-a no uacutenico absoluto que eacute Deus Instaura-se uma relaccedilatildeo que interessa o profundo do ser e que natildeo se confunde no anonimato Jesus busca a mim proacuteprio a mim Como um dia chamou por nome Abraatildeo Samuel Pedro Saulo assim ainda hoje o Pastor divino tem para cada ovelhinha nome uacutenico ldquoirrepetiacutevelrdquo22 distinto de qualquer outro nome ou som e que somente aquele que eacute chamado eacute capaz de perceber O ldquodeixa os mortos sepultar os seus mortosrdquo (Mt 822) o ldquoSegue-merdquo (Jo 2122) e o ldquonatildeo eacute digno do reino de Deusrdquo (Lc 959-62) mostram que as exigecircncias do chamado satildeo totais e natildeo admitem condiccedilotildees ou limitaccedilotildees

A radicalidade da resposta eacute uma exigecircncia fundamental do seguimento Natildeo se consente algum tipo de reenvio ou prorrogaccedilatildeo nem mesmo se nos encontraacutessemos diante de um motivo de grande valor moral e social como a necessidade de ldquosepultar o pairdquo a pessoa de Jesus exige uma prioridade absoluta e incondicionada ainda mais que Ele convida a anunciar ldquoo reino de Deusrdquo ao qual tudo eacute subordinado (cf Mt 633)

Trecircs dimensotildees satildeo necessaacuterias para uma resposta total liberdade como possibilidade de escolha de ausecircncia de constriccedilatildeo exterior e interior que permite de fazer uma eleiccedilatildeo autocircnoma gratuidade como alegria de servir no amor e sem esperar nada em troca eacute ter os sentimentos de Cristo Jesus (cf Fl 25) e dom ldquo o dom entra em cena quando descubro a dimensatildeo do outro como sujeito quando a categoria da gratuidade se torna a mola do meu agir e tambeacutem a descoberta do meu ser da minha dignidade e a do outro como pessoa humana pelo que viver a experiecircncia do dom significa substancialmente fazer experiecircncia de liberdaderdquo23

22 Cf CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006 p 61 23 Cf POLI Gianfranco La cultura della vocazione p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

158

5 Consideraccedilotildees finais

O objetivo geral do trabalho eacute mostrar que o argumento lsquovocaccedilatildeorsquo carece de um estudo sistemaacutetico de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblica e teoloacutegica Com este escrito constatamos a necessidade de um estudo sistemaacutetico que esclareccedila o que entendemos quando falamos de vocaccedilatildeo Isto porque efetivar uma vocaccedilatildeo segundo o projeto de Deus contribui para o bem natildeo somente pessoal ou da instituiccedilatildeo a que se pertence mas do corpo como todo a Igreja Entatildeo vale muito despertar as escolas teoloacutegicas a abraccedilarem esta causa como questatildeo urgente levando seus teoacutelogos a reflexotildees mais aprofundadas com embasamento biacuteblico

Durante a realizaccedilatildeo do trabalho assumimos os desafios de ler textos em liacutengua italiana e de individuar entre o abundante conteuacutedo pesquisado qual responderia melhor ao tema Natildeo foi faacutecil descartarmos tantos conceitos e tentarmos nos ater ao tema com poucas paacuteginas

No desenvolvimento do assunto vimos que a vocaccedilatildeo eacute um ato dinacircmico um procedimento gradual uma histoacuteria de amor um relaciona-mento profundo com Deus por meio do Filho no Espiacuterito Santo e que por isso requer entrar na intimidade com Deus estar a soacutes na escola do Mestre pois a vocaccedilatildeo como ato de chamar conta com o envolvimento de dois sujeitos Deus que chama e o homem que responde

A iniciativa eacute sempre de Deus que chama para uma missatildeo especiacutefica na comunidade eclesial de onde nasce e cresce a mesma Deus se manifesta por intermeacutedio dos acontecimentos do mundo e da histoacuteria pessoal Ele precisa da nossa resposta concreta generosa e sem condicionamentos para continuar Sua obra da salvaccedilatildeo hoje

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

159

Referecircncias Bibliograacuteficas

ALBERTO Cosegrave la vocazione Cosa non egrave httpwwwvocazionefrancescanaorg201104cose-la-vocazione-cosa -non-ehtml Acesso 29052015

BENTO XVI A primeira mensagem vocacional httpwwwportalcatolicoorgbrportala-primeira-mensagem-vocacio nal-de-bento-xvi Acesso em 040452015

BIacuteBLIA SAGRADA EDICcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA Petroacutepolis Vozes 2005

CAMALS Joan Dicionaacuterio teoloacutegico da vida consagrada Satildeo Paulo Paulus 1997

CELAM Conclusotildees da Conferecircncia de Puebla 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 2004

CENCINI Amedeo Liberare la speranza Percorsi pedagogico-vocazionali Milano Paoline 2006

DESENVOLVIMENTO DA PASTORAL DAS VOCACcedilOtildeES NAS IGREJAS PARTICULARES Documentos Pontifiacutecios n 39 Petroacutepolis Vozes 1992

GERARDI Renzo Alla sequela di Gesugrave Etica dele Beatitudini Doni dello Spirito Virtugrave Bologna Edizioni Dehoniane 1998

II CONGRESSO INTERNACIONAL DAS VOCACcedilOtildeES Pastoral Voca-cional documento conclusivo Satildeo Paulo Paulinas 1982

JOAgraveO PAULO II Exortaccedilatildeo Apostoacutelica Poacutes-Sinodal Vita Consecrata Satildeo Paulo Paulinas 1996

JOAtildeO PAULO II Mensagem por ocasiatildeo da XV Jornada Mundial da Juventude em 1999 httpsw2vaticanvacontentjohn-paul-iipt messagesyouthdocumentshf_jp-ii_mes_29061999_xv-world-youth-dayhtml Acesso em 29102015

MARCHESINI DE TOMASI Flavio Lorenzo O ouro testado no fogo acompanhamento psico-espiritual entre o misteacuterio e o seguimento Satildeo Paulo Paulinas 2001

OLIVEIRA Joseacute Lisboa Moreira Teologia e eclesiologia da vocaccedilatildeo Revista Espiacuterito no 65 (janeiromarccedilo de 1996)

PASSINI Leocir VENDRAME Calisto Dicionaacuterio interdisciplinar da pastoral da sauacutede Satildeo Paulo Paulus 1999

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 146-160 2013

160

PIGNA Arnaldo La vita Religiosa Teologia e Spiritualitagrave Roma Edizioni OCD 1991

POLI Gianfranco La cultura della vocazione tra vocazione e domanda di senso In BISSONI Angelo e RICCARDI Mauro (org) Antropologia teoloacutegica la cultura della vocazione Leumann Torino Elledici 2010

RUPNIK Marco Ivan Il discernimento Prima parte verso il gusto di Dio Roma Lipa 2000

RUPNIK Marko Ivan Il discernimento Seconda parte Come rimanere con Cristo Roma Lipa Edizioni 2001

VATICANO II Constituiccedilatildeo Dogmaacutetica LUMEN GENTIUM 13 ed Satildeo Paulo Paulinas 1999

Ir Graccedila Disingakala Nunes Aluna do Curso de Especializaccedilatildeo para qualificaccedilatildeo de formadores

na Faculdade Catoacutelica de Fortaleza Artigo escrito sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

161

A EacuteTICA POLIacuteTICA EM MAQUIAVEL

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos

Resumo

Na obra maquiaveliana encontra-se uma nova concepccedilatildeo da poliacutetica que se distancia das concepccedilotildees claacutessica patriacutestica e escolaacutestica Suas fontes satildeo as praticas poliacuteticas contemporacircneas e os escritos do historiador Tito Liacutevio O objetivo do seu estudo eacute uma Itaacutelia unida Nesta nova abordagem ganha interesse e destaque a relaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica assunto tratado especialmente na obra O Priacutencipe

Palavras-chave Renascimento Itaacutelia Maquiavel Eacutetica Poliacutetica

Abstract In the Machiavellian work we find is a new conception of politics which moves away from the classical patristic and scholastic conceptions His sources are contemporary political practices and the writings of the historian Titus Livius The purpose of his study is a united Italy In this new vision great interest and highlight are given to the relationship between ethics and politics specially treated in the work De Principe

Keywords Renaissance Italy Machiavelli Ethics Politics

1 Introduccedilatildeo

Satildeo conhecidos o vigor e a profundidade do pensamento do filoacutesofo poliacutetico Maquiavel1 Entre as suas obras que satildeo muacuteltiplas e de variados

1 Niccoloacute di Bernardo del Machiaveli nasceu na cidade de Florenccedila no dia 3 de maio de 1469 Sua vida desenvolveu sob o signo da poliacutetica a que dedicou tanto no campo teoacuterico como no praacutetico todos os seus esforccedilos materiais e intelectuais A poliacutetica como ele confessa estava no seu sangue Desde cedo Maquiavel foi incentivado por seu pai a se dedicar aacute leitura dos autores da Antiguidade Claacutessica como Virgiacutelio e Tito Liacutevio Sua juventude foi marcada pelos acontecimentos turbulentos da sua cidade natal que fazia parte de uma Itaacutelia assolada e perturbada por disputas poliacuteticas natildeo somente de acircmbito local como tambeacutem de forccedilas estrangeiras como Franccedila e Espanha que se aproveitaram das lutas internas da Peniacutensula Apeninica e da cidade de Florenccedila para sobretudo aumen-tarem a sua influecircncia Conta-se que Maquiavel aos nove anos assistiu ao assasinato de Juliano de Meacutedici e ao ferimento de Lourenccedilo de Meacutedici O ano de 1498 que viu a execuccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

162

gecircneros a De Principe eacute de longe a mais conhecida e analisada2 As outras de cunho poliacutetico natildeo deixam se ter interesse e importacircncia mas natildeo desenvolvem com a mesma clareza e pujanccedila o nuacutecleo do seu pensamento poliacutetico de modo especial o seu carter moral e eacutetico

O estudo ora expresso intenta com suporte nessa obra e preferen-cialmente nela comentar e descrever a eacutetica poliacutetica maquiaveliana que significa uma reviravolta em comparaccedilatildeo com a ideia natildeo somente a claacutessica mas tambeacutem cristatilde que quase sem exceccedilatildeo ateacute agrave eacutepoca da Baixa Idade Meacutedia se baseia quase exclusivamente no pensamento bem ou mal interpretado de SantrsquoAgostinho

2 As fontes da formaccedilatildeo de Maquiavel como pensador poliacutetico

Ao ler e refletir o pensamento poliacutetico de Maquiavel saltam aos olhos natildeo somente o seu profundo conhecimento a respeito da histoacuteria da Itaacutelia especificamente quando da eacutepoca do Impeacuterio Romano como tambeacutem os vestiacutegios de uma profiacutecua e intensa atividade diplomaacutetica Neste aspecto destacou-se por intermeacutedio de missotildees diplomaacuteticas vitoriosas ndash umas mais outras menos importantes - em vaacuterios estados da Peniacutensula Italiana inclusive em centros de poder nacional de grande envergadura tais como a Franccedila e a Alemanha

21 A atividade diplomaacutetica de Maquiavel

Logo apoacutes o dantesco e triste espetaacuteculo do julgamento da conde-naccedilatildeo e da execuccedilatildeo na fogueira do profeacutetico Jerocircnimo Savanarola na Praccedila da Senhoria reinstala-se em Florenccedila a Repuacuteblica Livre para alguns

de Savanarola pode ser considerado como a entrada de Maquiavel na poliacutetica sendo ele chamado a exercer o cargo de secretaacuterio da Segunda Chancelaria da Repuacuteblica de Florenccedila Em seguida ele se tornou um dos principais auxiliares do gonfaloniero vitaliacutecio Piero Soderini sendo encarregado dos assuntos diplomaacuteticos Quando Soderini caiu Maquiavel perdeu o cargo destituiacutedo pelos novos donos do poder ateacute a sua anistia concedida pelo Papa Leatildeo X da famiacutelia dos Meacutedicis Maquiavel esforccedilou-se ao maacuteximo para cair nas graccedilas dos Meacutedicis Quando estes caiacuteram e a Repuacuteblica foi reinstalada em Florenccedila Maquiavel visto com desconfianccedila retirou-se da vida publica Morreu no dia 21 de junho de 1527 2 Pode-se dividir a obra de Maquiavel em trecircs grandes setores que facilitam e ajudam na sua vasta atividade literaacuteria 1- Correspondecircncia tanto particular como oficial 2- obras literaacuterias poesia (eg) a famosa obra inacabada o Asno de Ouro) prosa (Discurso Moral que exorta a penitecircncia) teatro e novelas (vg Mandraacutegora em que se expotildee a degradaccedilatildeo moral e religiosa e se afirma a corrupccedilatildeo como inerente aacute natureza humana) 3- obras poliacutetico-histoacutericas (eo Discurso sobre a primeira deacutecada de Tito Livio)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

163

uma dinastia camuflada Suprime-se a teocracia e retoma-se o regime aristocraacutetico Foi aiacute em 1498 que Maquiavel com quase 30 anos de idade foi sorteado para exercer o cargo de secretaacuterio da 2ordf Chancelaria do Estado Livre da Repuacuteblica de Florenccedila E logo depois passou a realizar tambeacutem tarefas para a comissatildeo dos Dez do Poder ou Dez da Guerra

Como chanceler Maquiavel realizou a primeira legaccedilatildeo junto agrave Duquesa de Imola e Forli onde renegociou o soldo pago pelo Governo Florentino ao ldquocondottiererdquo3 Otaviano Florenccedila contratara o filho da Duquesa por 15 mil ducados soma considerada exorbitante por Florenccedila Maquiavel teve ecircxito conseguiu reduzir o soldo como tambeacutem recebeu auxiacutelio militar da duquesa - na forma de tropas de soldados e artilharia ndash de grande valor na ocupaccedilatildeo de Pisa4 Desde entatildeo o Diplomata Florentino comeccedilou a ser considerado e tratado como um haacutebil conciliador Entusiasmado com o prestiacutegio e a experiecircncia adquiridos escreveu o primeiro texto poliacutetico Discorso fatto a Magistrato dei Dieci sopra le cose de Pisa

Nuvens negras e sombrias no entanto continuaram a se espalhar e ameaccedilaram empanar o brilho do cenaacuterio poliacutetico florentino Segundo relato5 Pisa rebelara-se mais uma vez cortando o acesso de Florenccedila ao mar pelo rio Arno O rei Luis XII de Franccedila concordara em apoiar Florenccedila na guerra contra Pisa As tropas mercenaacuterias que o Monarca enviara no entanto natildeo cumpriram bem o seu papel acarretando seacuterios problemas ao Estado de Florenccedila Aqui estava uma delicada situaccedilatildeo expor tal reclamaccedilatildeo ao Governo Francecircs e declinar a sua oferta sem ferir a honra do rei Os representantes Maquiavel e Francisco della Casa foram enviados agrave Franccedila para a cidade de Nevers Com muita maestria os dois diplomatas resolveram a difiacutecil tarefa O perigo passou e embora Florenccedila natildeo tenha recuperado Pisa continua com a sua independecircncia

Maquiavel foi ainda encarregado de vaacuterias outras missotildees diplo-maacuteticas junto agrave Franccedila Conveacutem lembrar que Luis XII rei de Franccedila tinha como aliado o Papa Alexandre VI cujo filho se chamava Ceacutesar Boacutergia conforme a opiniatildeo de alguns um ldquocondottiererdquo de muita bravura poliacutetico

3 ldquoCondottiererdquo era ndash na histoacuteria da Itaacutelia ndash chamada o senhor feudal que tinha sob o seu absoluto controle uma miliacutecia que ele podia colocar agrave disposiccedilatildeo de quem o quisesse ou pagasse mais Era entatildeo uma espeacutecie de capitatildeo de soldados mercenaacuterios Assume tambeacutem o sentido de aventureiro 4 Florenccedila e Pisa alternaram periacuteodos de amizade com tempos em que a inimizade explodia em conflitos seacuterios muitas vezes armados 5Cf LARIVAILLE PAUL A Itaacutelia no tempo de Maquiavel Op Cit pg 75-79

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

164

de excelente habilidade mas por outro lado extremamente cruel6 Com a dupla proteccedilatildeo de seu pai e das armas francesas Ceacutesar Boacutergia vinha desempenhando uma accedilatildeo militar avassaladora sobre as possessotildees italianas

No que concerne agrave situaccedilatildeo alarmante de Florenccedila ante o turbulento protegido de Luis XII eacute esclarecedora a descriccedilatildeo desses acontecimentos expressos por JF Duvernoy

Florenccedila tem medo ela se entrega ela cuja doutrina consiste em fugir da submissatildeo de um senhor de um gonfaloneiro vitaliacutecio Eacute verdade que ela o escolheu ldquodemocratardquo na pessoa de Piero Soderini Envia Maquiavel para junto de Ceacutesar Boacutergia para observaacute-lo medir suas forccedilas e seus apetites Ele de fato observa vecirc em Sinigalia como Ceacutesar reprimiu num soacute golpe todos os seus antigos aliados Ele traz de sua missatildeo algo de muito confuso uma vontade indomaacutevel de trabalhar para natildeo ser conquistado e uma admiraccedilatildeo pela poliacutetica de alto vocirco que ele viu em accedilatildeordquo7

Em 1503 o perigo iminente cessou com a morte do Papa Alexandre VI e com a derrota de Ceacutesar Boacutergia Gravemente enfermo e sem apoio nada mais restou ao valoroso Duque de Valentinois senatildeo capitular Conta-se que morreu na Espanha como ldquocondottiererdquo mediacuteocre

A Repuacuteblica de Florenccedila procurou entatildeo evitar cair sob a autori-dade do novo Pontiacutefice Juacutelio II della Rovere o qual pretendia colocar sob a jurisdiccedilatildeo da Santa Seacute todas as antigas cidades regiotildees e possessotildees que antes pertenciam ao Ducado de Valentinois Imediatamente a desas-sossegada Senhoria envia Maquiavel para prestar ao Papa serviccedilos de chancelaria Durante a segunda legaccedilatildeo a Juacutelio II Maquiavel pocircde avaliar de perto o poder temporal do Sumo Pontiacutefice aleacutem de fortemente tomar consciecircncia de como o sentimento religioso ainda se encontrava arraigado no espiacuterito dos homens Essas duas realidades levam-no ao convencimento que ele descreve no seu livro O Priacutencipe

[] os principados eclesiaacutesticos [] satildeo mantidos pela grande antiguidade que existe nas instituiccedilotildees da religiatildeo as quais satildeo tatildeo poderosas e de tal

6 Cf por exemplo Dicionario da Idade Meacutedia organizado por Henry R Lyon Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990 pg 56 [] Era totalmente inescrupuloso a fim de proteger suas fronteiras setentrionais assassinou o marido de sua irmatilde Lucreacutecia e casou-a com o futuro duque de Ferrara 7 DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores 1984 pg 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

165

natureza que seus priacutencipes permanecem no lugar de qualquer maneira que eles se comportam e que vivam8

De fato as tropas mercenaacuterias quando se batiam contra o Papa embora dispusessem de poderio beacutelico suficiente para vencecirc-lo rendiam-se facilmente preferindo assim reverenciar o Chefe da Igreja

A tempestade poliacutetica se avolumava sobre a Itaacutelia ameaccedilando o equiliacutebrio do poder Em Florenccedila a ameaccedila provinha de dois poderosos vizinhos de um lado o Papado do outro o Santo Impeacuterio Maquiavel tendo agora seus dotes conciliadores reconhecidos foi enviado agrave Alemanha e conseguiu perante o Imperador Maximiano I defender a neutralidade de Florenccedila no conflito contra Veneza

Em 1510 poreacutem a Igreja Veneza e a Espanha declaram guerra ao Governo Francecircs Havia muito tempo a Franccedila ocupava o lugar de tradi-cional aliada de Florenccedila Portanto Maquiavel em uma de suas uacuteltimas missotildees diplomaacuteticas conseguiu com muita habilidade e perspicaacutecia que mais uma vez Florenccedila ficasse neutra ou seja liberada de participar daquele conflito

Por natildeo ter apoiado todavia a Igreja na guerra contra a Franccedila o Governo Florentino se viu em maus lenccediloacuteis Em 1512 Florenccedila foi saqueada pelas tropas imperiais de Ferdinando II O Papa destituiu o liacuteder Soderini e a famiacutelia poderosa dos Meacutedicis retornou ao poder Era o fim das instituiccedilotildees democraacuteticas da Repuacuteblica Livre de Florenccedila

Aquele ano assinala igualmente o capiacutetulo final da carreira poliacutetica de Maquiavel Durante os 15 anos do exiacutelio no reinado dos Meacutedicis vive na sua propriedade interiorana trabalhando duro sem se queixar nem se lastimar porque tinha prazer de trabalhar em favor de sua querida e estimada Florenccedila Quando jaacute em desgraccedila escreveu no dia 10 de outubro de 1513 uma carta dirigida a seu amigo Francesco Vettori em que afirma ldquoforam quinze anos dedicados a cultivar a Arte do Estado em que natildeo dormi nem tive folgardquo9

Os autores em grande parte consideram Maquiavel como um excelente diplomata trabalhando sempre com muito empenho lealdade e dedicaccedilatildeo Suas cartas escritas na cidade francesa de Blois quando efetuava suas uacuteltimas atividades de diplomacia na Franccedila constituem documentos 8 MAQUIAVEL Niccolo O Priacutencipe cap XI 9 MAQUIAVELLI N Tutte Le Opere Firenze Sansoni 1992 Citado em RODRIGO Lidia Maria Maquiavel op cit p 23

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

166

que comprovam definitivamente a habilidade poliacutetica do Pensador Floren-tino que atinge alguns momentos insuperaacuteveis Acrescenta-se ainda que no bloqueio rigoroso de Pisa o papel de comissaacuterio desempenhado por Maquiavel foi determinante na retomada dessa cidade

A importacircncia da atividade diplomaacutetica na formaccedilatildeo do pensa-mento poliacutetico de Maquiavel eacute assim analisada por Bronowski e Mazlish

o seu posto natildeo lhe desse grande poder na definiccedilatildeo da poliacutetica deu-lhe uma visatildeo directa do processo poliacutetico das cidades-estado italianas E como esses processos poliacuteticos variavam desde a oligarquia em Veneza agrave monarquia em Naacutepoles e agrave democracia em Florenccedila forneciam uma verdadeira escola de poliacutetica para um observador atento10

Foi nessa atividade diplomaacutetica que Maquiavel chegou agrave conclusatildeo de que o mais importante na poliacutetica eacute

[] o Estado natildeo aquele imaginaacuterio e que nunca existiu mas aquele que eacute capaz de impor a ordem O ponto de partida e da chegada eacute a realidade corrente ndash por isto a ecircnfase na veritagrave effetuale ndash ou seja ver e examinar a realidade como ela eacute e natildeo como se gostaria que fosse11

Isto se aplica agrave imagem que Maquiavel formou dos priacutencipes nos seus contatos diretos com os detentores do poder durante tantos anos o descobriu que

[] o priacutencipe que os humanistas do Renascimento apresentavam como modelo aos governantes natildeo passava de uma construccedilatildeo do espiacuterito de uma formulaccedilatildeo abstrata e ideal desvinculada de qualquer possibilidade e em contraste chocante com a realidade crua e aacutespera da eacutepoca quinhentista O priacutencipe ideal do humanismo era o siacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilotildees religiosas cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudente ndash compendio enfim de todas as perfeiccedilotildees fiacutesicas intelectuais e morais 12

Assim surge um personagem viril audaz destemido cuja maacutexima mais importante era ater-se aacute verdade efetiva das coisas sem ficar pensando em repuacuteblicas e monarquias imaginaacuterias com seus princiacutepios inspirados por altos ideais longe da realidade concreta da poliacutetica praticada naqueles dias ndash e em tempos anteriores

10 BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 pg 47 11 Disponiacutevel em www palmirarjnet Acesso em 25-10-2010 12 ESCOREL Lauro O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades Cadernos da UnB Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 pg 18

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

167

2 2 O estudo da histoacuteria

Como Maquiavel se inspirou na histoacuteria encontrando nela valiosas pistas para a accedilatildeo poliacutetica manifesta-se sobretudo na sua obra Discursos sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio A obra caracteriza-se como um diaacutelogo com o historiador Tito Liacutevio que viveu de 58 aC ateacute 12 dC o turbu-lento periacuteodo que acusa o fim da era da Repuacuteblica e o iniacutecio do Impeacuterio Romano13 Uma das propriedades desta grandiosa obra foi entre outras o enfoque da histoacuteria sob o ponto de vista da moral ao fazer com que Maquiavel apontasse a Repuacuteblica Romana como um verdadeiro modelo de sociedade cuja virtugrave deveria servir como exemplo para os seus contem-poracircneos

Os Discorsi satildeo uma elaboraccedilatildeo ideal uma obra de educaccedilatildeo poliacutetica uma sistematizaccedilatildeo mais refletida uma projeccedilatildeo na histoacuteria passada e futura das liccedilotildees ldquodas coisas do mundordquo Eacute uma procura das razotildees que explicam o nascimento a prosperidade e a decadecircncia das naccedilotildees com o intuito de descobrir ndash no exemplo eminente da Roma Claacutessica ndash qual o segredo da forccedila e da estabilidade dos Estados Os Discorsi satildeo compostos de trecircs livros

1o Livro trata dos modos pelos quais se fundam os Estados e da organizaccedilatildeo e modalidades de Governo

2o Livro examina os processos de engrandecimento dos Estados e de conquista de novos Estados

3o Livro tece consideraccedilotildees sobre o crescimento e a decadecircncia dos Estados e seus modos de transformaccedilatildeo e uma anaacutelise da natureza das conjuraccedilotildees que ameaccedilam os detentores do poder

Tudo o que Maquiavel exprime nestes livros eacute inspirado pela ideia que se tornou para ele um axioma de que a imitaccedilatildeo da histoacuteria antiga e de modo peculiar a da Repuacuteblica Romana constitui a fonte por excelecircncia da sabedoria poliacutetica Sob tal perspectiva vaacutelida antes de tudo para a Peniacutensula Italiana ndash outrora sede do nuacutecleo do Impeacuterio Romano ndash o que ocorrera no passado tendia inevitavelmente a se repetir no presente e no futuro Assim sendo o estudo da histoacuteria impunha-se quase como uma condiccedilatildeo sine qua non para a formulaccedilatildeo da teoria do Estado e da descriccedilatildeo das qualidades dos priacutencipes

13 Tito Liacutevio escreveu a monumental obra Ab Urbe Condita ndash a partir da Fundaccedilatildeo da Cidade constando de 142 livros do quais 35 chegaram ateacute noacutes entre eles os dez primeiros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

168

Curiosamente nessa obra Maquiavel exprime uma altamente positiva apreciaccedilatildeo da Repuacuteblica vista por ele como mais apta e equili-brada a tomar decisotildees e realizar o bem comum Ao lado dela - e aqui jaacute se veem as linhas de O Priacutencipe ndash Maquiavel destaca a Monarquia como a melhor forma de se conseguir a formaccedilatildeo do Estado na Peniacutensula da Itaacutelia Concluindo o mesmo raciociacutenio rejeita a tirania e a oligarquia de que eacute afirmado que se trata de uma relaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude Para Maquiavel poreacutem tanto as boas como as maacutes formas de governo teratildeo pouca duraccedilatildeo e por isso defende a maneira mista opiniatildeo que se reflete na descriccedilatildeo dos tipos de principados (Estados) no O Priacutencipe e na postura exigida dos priacutencipes

Resumindo pode-se afirmar que em decorrecircncia da leitura de autores claacutessicos como Tito Liacutevio e Poliacutebio14 aleacutem da recente histoacuteria e da vasta experiecircncia junto a poliacuteticos de sua eacutepoca Maquiavel chega aacute seguinte conclusatildeo O priacutencipe (irreal) estaacute longe de como se vive e de como se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da proacutepria ruiacutena do que de sua conservaccedilatildeo porque um homem que queira em todo lugar parecer bom atrai ruiacutena entre tantos que natildeo satildeo bons15

3 O Priacutencipe

31 Introduccedilatildeo

O Priacutencipe incontestavelmente a obra mais conhecida de Maquiavel foi publicada no ano de 1532 e eacute portanto poacutestuma Antes de sua publicaccedilatildeo impressa jaacute circularam algumas coacutepias manuscritas que natildeo tinham causado nenhum escacircndalo Pelo contraacuterio Maquiavel ficou desapontado pela frieza de Lourenccedilo de Meacutedici em relaccedilatildeo a sua obra que lhe foi dedicada Outro fator que causa certa espeacutecie foi o fato de que na eacutepoca natildeo foi negada agrave obra a licenccedila de imprimiacute-la o assim chamado ldquoimprimaturrdquo Parece que a postergaccedilatildeo da impressatildeo decorre das circunstacircncias poliacuteticas de 1513 ndash 1527 eacutepoca em que Maquiavel vivia isolado no seu exiacutelio Aleacutem disso acredita-se que ele queria reservar a publicaccedilatildeo da obra para uma conjuntura mais propiacutecia no intuito de

14 Historiador nascido na Greacutecia Antiga viveu de 203 aC ateacute 120 a C tomando na sua juventude parte ativa na luta dos gregos contra os romanos Feito prisioneiro foi levado para Roma ficando nesta cidade 17 anos como refeacutem Depois do seu retorno auml Greacutecia voltou algumas vezes a Roma e dedicou-se agrave histoacuteria dos acontecimentos ocorridos durante a sua vida procurando aleacutem do rigor cientiacutefico a valorizaccedilatildeo dos testemunhos de seus contemporacircneos Cf Biografia y Vidascombiografiaenlinea acesso em 10022011 15 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe cap XV-XVII

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

169

produzir um efeito maior Soacute mais tarde o cardeal Reginald Pole 1500-1588 constatando a ldquomaleacutefica influecircnciardquo16 da obra sobre Oliver Cromwell denunciou Maquiavel como um espiacuterito satacircnico defensor do despotismo e justificador de todas as arbitrariedades e violecircncias

Ademais a obra e seu autor enfrentaram a oposiccedilatildeo dos Jesuiacutetas que aleacutem de queimarem a efiacutegie de Maquiavel em Ingolstat em 1559 convenceram o papa Paulo IV a colocar o livro no Index por decreto o que foi confirmado pelo Concilio Tridentino em 1564 A oposiccedilatildeo ao escrito do Maquiavel entretanto natildeo foi proveniente apenas dos catoacutelicos pois tambeacutem os calvinistas como por exemplo Inocecircncio Gentillet que em 1576 publicou Contre Nicolas florentin

[] em que natildeo soacute qualificou o escritor de puant atheacuteiste mas tambeacutem denunciou suas doutrinas como instigadoras da ldquoNoite de Satildeo Bartolomeurdquo acusando-as de haver insuflado no espiacuterito de Catarina de Meacutedici a ideacuteia do massacre e de haver introduzido meacutetodos alieniacutegenas isto eacute italianos na poliacutetica francesa17

Embora importante no conjunto de seus escritos a obra de Maquiavel e sua filosofia poliacutetica natildeo se restringem soacute ao Priacutencipe devendo ser esse escrito visto no contexto de sua obra Com isto entretanto natildeo se pode nem se deve negar o lugar central que este livro ocupa no conjunto da obra maquiaveliana e eacute esta a razatildeo por que neste trabalho dedicado agrave anaacutelise da moral em Maquiavel e de modo especial no O Priacutencipe se lhe dedica um estudo especial

32 A Gecircnese de O Priacutencipe

Segundo Vilari18 deve-se buscar o conceito de O Priacutencipe no papa Leatildeo X 1513-1521 que lanccedilou a ideia de fundar um outro Estado abrangendo Parma Modena Urbino e Ferrara entregando o seu governo a Juliano de Meacutedici Desta forma realizar-se-ia o grande sonho de Maquiavel de um grande Estado monaacuterquico italiano superando a sua divisatildeo em inuacutemeros estados pequenos com um poder central suficiente tanto para unificaacute-la como para mantecirc-la unificada

16 ESCOREL Lauro O pensamento poliacutetico de Maquiavel Humanidades VII Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1984 nordm 8 pg 18-52 17 ESCOREL Lauro op cit p 19 18 VILARI P Niccolograve Macchiavelli e i suoi tempi 3 vls Firenze 1877 p 294 vol II citado em ESCOREL Lauro op cit p 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

170

Maquiavel entusiasta defensor dessa ideia se distancia dela quanto agrave sua realizaccedilatildeo concreta como um poder monaacuterquico central e absoluto baseado nos ideais da tradiccedilatildeo cristatilde e se opotildee contra o priacutencipe ideal renascentista ldquosiacutembolo de todas as virtudes humanas expressatildeo suprema de bondade e devoccedilatildeo religiosa cultor da filosofia amigo do povo magnacircnimo e prudenterdquo19 Pelo contraacuterio o priacutencipe com o qual Maquiavel sonha eacute um teacutecnico poliacutetico realista plasmado nos moldes do passado sobretudo da antiga Repuacuteblica Romana nos seus melhores dias de gloacuteria

[] para o qual o importante era ater-se agrave veritaacute effetuale delle cose [] O priacutencipe maquiaveacutelico natildeo emerge do pensamento do seu autor aureolado pelas virtudes da eacutetica tradicional como produto de uma elaboraccedilatildeo mental utoacutepica [] Plasma-o ao contraacuterio indutivamente com base nos dados de sua experiecircncia e inspirado nos exemplos da Antiguidade Claacutessica investindo-o de uma loacutegica inexoraacutevel para a consecuccedilatildeo de seu objetivo supremo a conquista e a preservaccedilatildeo do poder poliacutetico absoluto 20

Eacute nesta inspiraccedilatildeo que residem a grandiosidade e o gecircnio de Maquiavel que o fizeram descobrir e penetrar a essecircncia da accedilatildeo poliacutetica do homem revelando as leis proacuteprias e analisando dividindo e avaliando friamente a forccedila das paixotildees humanas Foi sob esse prisma que o seu livro auferiu validade permanente

33 A Estrutura do livro21

O livro que consta de 26 capiacutetulos comeccedila com uma carta dedicatoacuteria ao magniacutefico Lorenzo filho de Piero de Meacutedici neto de Lorenzo o Magniacutefico (1449-1492) Originalmente o livro seria dedicado a outro membro da famiacutelia Meacutedici Giuliano filho de Lorenzo mas este morreu em 1516

Do primeiro ao deacutecimo capiacutetulo eacute procedida agrave discriminaccedilatildeo dos vaacuterios tipos de principados Aleacutem disso Maquiavel desenvolveu as caracteriacutesticas e qualidades dos mencionados principados Central estaacute o problema da conquista do poder em geral e especialmente no

19 ESCOREL Lauro op cit p 23 20 ESCOREL Lauro op cit p 23 21 Cf Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Grupo de Estudos de Filosofia ndash GEFIL Aula I BATISTA Flaacutevio Donizete http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 15 de agosto de 2010 BATH Sergio A praacutetica poliacutetica segundo Nicolau Maquiavel Satildeo Paulo Aacutetica 2009 CHEVALLIER J J As grandes obras poliacuteticas de Maquiavel a nossos dias Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 pg 17-48

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

171

principado novo Tudo eacute visto sob a grande perspectiva da unificaccedilatildeo da Itaacutelia que deve ser fundada nas conquistas e na virtugrave do governante

Do deacutecimo ao deacutecimo quinto capiacutetulo preocupa-se em argumentar e mostrar que a base de qualquer Estado estaacute na sua autarquia militar Trata de maneira especial no capiacutetulo 11 dos Estados eclesiaacutesticos e como chegaram ao poder que ostentam

A parte principal da obra eacute formada pelos capiacutetulos deacutecimo quinto ateacute o vigeacutesimo sexto Aqui se trata do exame do problema do governo de um povo como um priacutencipe deve conduzir-se com os seus suacuteditos e seus aliados Quanto agrave imagem do priacutencipe formulada por Maquiavel merecem destaque especial os quatro conceitos por ele considerados fundamentais virtugrave ocasiatildeo fortuna e necessidade Por todos os capiacutetulos especialmente a partir do deacutecimo nono encontramos Maquiavel insiste na necessidade da reformulaccedilatildeo da imagem tradicional do priacutencipe acentuando a obrigaccedilatildeo de ele sempre se esforccedilar para ter o povo ao seu lado porque sem o apoio do povo o priacutencipe natildeo resistiraacute agraves dificuldades que sobreviratildeo

Do capiacutetulo 23 ateacute o 25 Maquiavel constatando porque os priacutencipes italianos perderam seus Estados afirma o poder da vontade humana de domar e vencer a proacutepria fortuna pela razatildeo e pela virtude

O uacuteltimo capiacutetulo ndash o 26 - eacute uma eloquente exortaccedilatildeo agrave redenccedilatildeo e libertaccedilatildeo da Itaacutelia do domiacutenio das potecircncias estrangeiras ndash Franccedila Espanha e o Impeacuterio Alematildeo ndash e consiste num convite ao priacutencipe de ser audaz e feroz a fim de alcanccedilar ecircxito Termina com as belas palavras de Petrarca

Virtugrave contro a furore Prenderaacute lrsquoarmi e fia el combatter corto Che lrsquoantico valore Nellrsquoitalici cor non egrave ancor morto22

4 Moral e Eacutetica na poliacutetica de Maquiavel

Agrave primeira vista pode parecer fora de propoacutesito falar de Moral E Eacutetica em Maquiavel Para muitos autores e sobretudo para muitas pessoas no seu dia a dia os dois conceitos significam a mesma coisa e dizem 22 O valor tomaraacute armas contra o furor e que seja curto o combate pois a coragem antiga ainda natildeo morreu no coraccedilatildeo dos italianos PETRARCA Francesco Rime Esparse (sem maiores referecircncias) em O Priacutencipe comentado por Napoleatildeo Bonaparte MAQUIAVEL texto integral Traduccedilatildeo NASSETTI Pietro Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

172

respeito ao comportamento humano Por que e para que entatildeo fazer uma distinccedilatildeo Leonardo Boff no seu livro Ethos Mundial diz o seguinte

[] precisamos voltar ao sentido originaacuterio da eacutetica e da moralidade Todas as morais por mais diversas nascem de um transfundo comum que eacute a eacutetica Eacutetica somente existe no singular pois pertence aacute natureza humana presente em cada pessoa enquanto moral estaacute sempre no plural porque satildeo distintas formas de expressatildeo cultural e histoacuterica da eacutetica 23

Um olhar sobre o sentido original da palavra eacutetica pode esclarecer o seu rico e profundo sentido proacuteprio Na sua liacutengua de origem a grega eacutetica vem de ethos que tem duas grafias com letra e pequena ou grande e conforme o tamanho muda o sentido Ethos com letra pequena indica a morada abrigo permanente tanto dos animais como dos humanos Ela tem que ser construiacuteda pela atividade humana e por isso deve ser sempre reformada melhorada e aperfeiccediloada Assim pode-se dizer que a eacutetica tem por fim morar bem e para isto constituir objetivos fundamentais e valores e princiacutepios que norteiam a accedilatildeo humana Para os antigos entatildeo a eacutetica estaacute ligada ao bem ou aacute felicidade que devem ser perseguidos por meios que levem a esta bondade e felicidade Estes meios eram tambeacutem chamados de ethos mas com e grande e significam os costumes ou ldquoo conjunto de valores e de haacutebitos consagrados pela tradiccedilatildeo cultural de um povordquo24

Ao dizer-se que algueacutem natildeo tem eacutetica significa a ausecircncia nesta pessoa de princiacutepios norteadores para sua accedilatildeo que se desenvolve pois de acordo com as vantagens que possa conseguir e consequentemente coerecircncia e princiacutepios fazem falta na sua vida Por outro lado quando se garante que algueacutem natildeo possui moral indica-se que esta pessoa natildeo possui virtudes que a ajudem a ldquoconstruir sua moradardquo sua felicidade e age erradamente mentindo roubando explorando

Resumindo

[] moral eacute o conjunto de haacutebitos e costumes efetivamente vivenciados por um grupo humano Nas culturas dos grupos humanos estatildeo presentes haacutebitos e costumes considerados vaacutelidos porque bons bons porque justos justos porque contribuem para a realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos

[] eacutetica eacute a reflexatildeo sobre a accedilatildeo humana para extrair dela o conjunto excelente de accedilotildees Eacute uma ciecircncia que tem por objeto a moral e a lei e pretende aprimorar

23 BOFF Leonardo Ethos Mundial Um consenso miacutenimo entre os humanos SI Letraviva Editorial Ltda 2000 pg 34 24 BOFF Leonardo op cit pg 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

173

as ldquoatividades realizadoras de sirdquo desenvolvidas pelos indiviacuteduos em busca do excelente25

41 A Eacutetica maquiaveliana

Com a difusatildeo do livro O Priacutencipe as ideacuteias de Nicolau Maquiavel se tornaram conhecidas mas tambeacutem quase de imediato foram atingidas por uma forte onda de severas criacuteticas A obra que pode ser considerada como a principal de Maquiavel foi qualificada de imoral e sem eacutetica Qual a razatildeo de tatildeo severo juiacutezo Ricardo Rodrigues responde a esta indagaccedilatildeo quando esclarece

[] Maquiavel simplesmente documentou verdades jaacute conhecidas pelos homens embora natildeo admitidas Tudo o que fez foi construir uma teoria poliacutetica a partir da combinaccedilatildeo de experiecircncia concreta no trato da coisa puacuteblica com a observaccedilatildeo aguda do processo poliacutetico aliada ainda ao estudo da histoacuteria26

Em verdade Maquiavel faz uma anaacutelise nua e crua da praacutetica poliacutetica do seu tempo como realmente era e natildeo como deveria ser Em primeira instacircncia estaacute o realismo poliacutetico por ele descrito como sendo a uacutenica maneira de algueacutem se tornar vitorioso no jogo pelo poder Este realismo poliacutetico que natildeo raro desprezava a moral vigente e a eacutetica tradicional feria em muitos aspectos os padrotildees escolaacutesticos da eacutepoca baseados nos estudos teoloacutegicos agostinianos e tomistas Esses estudos denotaram ideias que deveriam conduzir a accedilatildeo poliacutetica em vista da construccedilatildeo de uma sociedade baseada em princiacutepios cristatildeos conduzindo desta forma agrave construccedilatildeo da Cidade Justa ou de Deus sobre a terra27 defendendo neste sentido a consecuccedilatildeo do Bem Comum entendido em sentido cristatildeo Em outras palavras haacute um ideal a ser atingido e a eacutetica igual agrave praacutetica moral consequecircncia dela eacute julgada agrave luz deste ideaacuterio Esta posiccedilatildeo defendida embora com algumas pequenas diferenccedilas pelo pensamento da Igreja Catoacutelica de entatildeo tambeacutem se encontrava na visatildeo

25 DOS SANTOS Antonio Raimundo Eacutetica Caminhos da realizaccedilatildeo humana 4 ed Satildeo Paulo Editora Ave Maria 2004 pg 11 e 15 26 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Simposion Unicap no 2 1986 pg 44 27 Cf a grande corrente teoloacutegica que tem em Santo Agostinho o eu grande defensor e propagador especialmente na sua obra De Civitate Dei ndash (Sobre a Cidade de Deus ) que ateacute o seacuteculo XII-XIII foi a inspiraccedilatildeo maior para o ideal poliacutetico da Idade Meacutedia muitas vezes apresentada como o ideal da assim chamada Cristandade Santo Tomaacutes de Aquino natildeo negando a influecircncia agostiniana recebe grande aporte das ideias aristoteacutelicas como resta claro natildeo somente no seu pequeno tratado De Regno mas tambeacutem no extenso e inacabado comentaacuterio sobre a Poliacutetica e a Eacutetica do Nicocircmaco de Aristoacuteteles

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

174

filosoacutefica da poliacutetica baseada na teoria platocircnica com a sua cidade ideal regida pela justiccedila e aristoteacutelica em que o ideal da felicidade estaacute central o que foi intensamente estudado pelos saacutebios da eacutepoca Em outras palavras existem conceitos ideias de bem e de mal que servem como paradigma para a accedilatildeo humana uma ideia a que a accedilatildeo humana deve obedecer ou a qual se adaptar Satildeo os assim chamados valores eternos que transcendem tempo e lugar isto eacute possuem validade universal

Como consequumlecircncia da anaacutelise e descriccedilatildeo da poliacutetica de acordo com as ideacuteias de Maquiavel surge o assim chamado maquiavelismo teoria que procura ligar as ideias do Pensador de Florenccedila a procedimentos nocivos que lembram perfiacutedia astuacutecia crueldade e traiccedilatildeo E o que eacute pior para alguns estas expressotildees pejorativas continuam sobrevivendo no tempo e no espaccedilo e proliferam ainda hoje tanto na esfera poliacutetica como nas desavenccedilas do cotidiano

Eacute bem verdade que no acervo de qualidades do bom governante aceito por Maquiavel constavam a fraude e a mentira a dissimulaccedilatildeo e ateacute mesmo a crueldade 28 Isto natildeo significa todavia que Maquiavel defen-desse ou aconselhasse um estado turbulento de constantes lutas contra usurpadores gananciosos anarquicamente cruel em que os governantes poderosos mantivessem seus suacuteditos em regime de servidatildeo de tortura e perversidade

Por outro lado o Escritor Florentino nunca deixava de louvar a honestidade e a integridade em governantes29 Pelo estudo de fatos paacutes-sados entretanto e de outros da histoacuteria de entatildeo que havia presenciado e testemunhado enfatizava que o poliacutetico dependia de qualidades bem diversas Fazendo distinccedilatildeo entre honestidade e ingenuidade acreditava ele que praticar a honestidade sem levar em conta os efeitos prejudiciais para toda uma coletividade ou para a naccedilatildeo eacute de fato mera ingenuidade defeito maacuteximo de maus governantes

Discorrendo ainda sobre integridade Maquiavel considerava lou-vavel o fato de que o priacutencipe fosse um homem iacutentegro e mantivesse a palavra empenhada30 Ao mesmo tempo poreacutem alertava para o fato de que conforme a necessidade ele poderia abandonar a boa feacute desfazendo assim a palavra dada 28 Cf O Priacutencipe op cit cap XVII 29 Cf RODRIGUES RICARDO Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no 2 Recife Unicap 1986 pg 48 30 Cf MAQUIAVEL O Priacutencipe

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

175

Um priacutencipe prudente natildeo deveraacute pois agir de boa feacute quando para fazecirc-lo precise agir contra seus interesses e quando os motivos que o levaram a empenhar a palavra deixarem de existir31

Em circunstacircncias adversas este poderia utilizar-se igualmente da dissimulaccedilatildeo porquanto os homens em geral satildeo tolos e sempre acreditam em quem lhes faz promessas ou lhes promete benefiacutecios Usando uma linguagem coloquial contemporacircnea ldquopara cada bobo haacute sempre um espertordquo

A argumentaccedilatildeo do Escritor Florentino sobre a crueldade reflete-se nos louvores e elogios feitos por ele ao Duque de Valentino citado como exemplo de um autecircntico e renomeado estadista

Ceacutesar Boacutergia era considerado cruel mas sua crueldade impocircs ordem agrave Romanha unificou-a reduzindo-a agrave paz e agrave fidelidade Se examinarmos bem este ponto veremos que na verdade ele foi muito mais clemente que o povo de Florenccedila que para fugir agrave reputaccedilatildeo de cruel permitiu a destruiccedilatildeo de Pistoia32

Eacute interessante esclarecer que a admiraccedilatildeo de Maquiavel por Ceacutesar Boacutergia natildeo emergiu do fato de ser este um homem perverso e cruel Em sua oacuteptica Ceacutesar Boacutergia surgiu como um governante eficiente destemido saacutebio capaz de comportar-se como priacutencipe em toda e qualquer situaccedilatildeo

Em virtude destas e de outras afirmaccedilotildees em torno do caraacuteter poliacutetico e do jogo pelo poder Maquiavel atraiu para si muitas criacuteticas atraveacutes dos tempos Seus conceitos e teorias foram analisados de vaacuterias maneiras e muito mal interpretados Como expresso anteriormente sua obra foi qualificada de imoral e sem eacutetica Impuseram ao Escritor a condiccedilatildeo de advogado da poliacutetica sem moralidade

Lauro Escorel refuta esta ideia quando diz que rdquoOs princiacutepios do poliacutetico florentino podem natildeo ser cristatildeos mas satildeo eacuteticosrdquo33

Natildeo partilhando igualmente daquela opiniatildeo que o Professor Cranston projeta o Escritor para uma dimensatildeo contraacuteria quando sugere que ldquoO argumento de Maquiavel parece-me ser o de que apenas existe uma verdadeira moralidade mas que por vezes o governante tem que a

31 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 32 MAQUIAVEL O Priacutencipe op cit cap XVIII 33 ECSOREL Lauro O Pensamento Poliacutetico em Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 36

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

176

desrespeitarrdquo34 Cranston propotildee ainda que a principal razatildeo de o Florentino ser continuamente hostilizado

[] eacute a de que ele aconselha (os governantes) a fazerem consciente e deliberadamente o que muitos estatildeo fazendo de modo natural preferindo natildeo pensar no assunto [] Maquiavel nunca endossou o uso da fraude para a proteccedilatildeo de carreiras poliacuteticas aconselhando-a apenas para encobrir aqueles atos de Estado necessaacuterios que violam a moralidade35

Daiacute conclui-se que estes atos de Estado necessaacuterios correspondiam ao conceito maquiaveliano de ldquoragione di statordquo e agrave consciecircncia de que a poliacutetica eacute uma atividade autocircnoma do Estado e no Estado sem recurso ou associaccedilatildeo agrave eacutetica agrave jurisprudecircncia agrave moralidade cristatilde ou pagatilde Seria mais justo e claro dizer que haacute para Maquiavel uma mudanccedila no conceito da eacutetica Ele aceita que a accedilatildeo poliacutetica deve ser orientada por valores mas estes assumem caraacuteter totalmente diferente distanciando-se do ideal teoloacutegico filosoacutefico e sobretudo da ideaccedilatildeo da felicidade pessoal Para o Secretaacuterio Florentino o Estado eacute sem duacutevida o valor mais alto aleacutem do qual natildeo existe um limite Para ele a poliacutetica resumia-se numa coisa conquistar e manter o poder ou a autoridade no domiacutenio conquistado Portanto a religiatildeo a moral e outros valores que os humanistas pretendiam associar agrave poliacutetica nada tinham de relaccedilatildeo com aquele ponto fundamental Permitia-se a exceccedilatildeo apenas nos casos em que a religiatildeo e a moral contribuiacutessem para a conquista e a manutenccedilatildeo do poder quando entatildeo se tornam meios para a grandeza do Estado

Eacute preciso natildeo esquecer de que a razatildeo de Estado implica um cunho social Isto quer dizer que embora o Estado representasse poder pessoal prestiacutegio e forccedila para o governante focalizava e visava tambeacutem aos suacuteditos toda uma comunidade de homens para gerenciar e prover Para Maquiavel isto era um ponto de capital importacircncia visto que ele deixa transparecer nos seus escritos a opiniatildeo que considera os homens maus de nascenccedila e iacutendole Por conseguinte de nada adiantariam a boa-feacute a integridade e a honestidade do priacutencipe se estas virtudes natildeo impedissem a sua ruiacutena levando o Estado agrave fraqueza e agrave derrota que tem como consequecircncia o domiacutenio inimigo o qual provocaria natildeo soacute a inquietaccedilatildeo mas tambeacutem o sofrimento de toda a coletividade Esta inquietaccedilatildeo e o concomitante sofrimento por sua vez causariam a desconfianccedila e ateacute a 34 CRANSTON Maurice Poliacutetica e eacutetica Em KING PRESTON O Estudo da Poliacutetica Brasilia Universidade de Brasiacutelia 1980 Citado em RICARDO Rodrigues Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p 49 35 Cranston OC Em RODRIGUES op cit p 50

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

177

revolta dos cidadatildeos e enfraqueceriam o Estado Por isso o aspecto eacutetico para Maquiavel estaacute nas mais elevadas regras de grandeza de Estado manutenccedilatildeo do poder governabilidade e defesa custe o que custar do Estado ou do domiacutenio do priacutencipe Eacute na histoacuteria e tambeacutem nas suas aventuras diplomaacuteticas que Maquiavel viu estes princiacutepios sendo praticados ndash para o bem do Estado e do seu priacutencipe e suacuteditos - ou negli-genciados ndash para a sua ruiacutena e fraqueza

Ricardo Rodrigues aprecia e tenta justificar esta doutrina maquiave-liana quando destaca ldquoEacute necessaacuterio poreacutem perguntar desapaixonadamente se Maquiavel realmente merece ser considerado ldquomaquiaveacutelicordquordquo36 O autor reaviva a polecircmica em cima de Maquiavel e chega aacute conclusatildeo de que o Florentino natildeo quis propriamente sugerir como os priacutencipes deveriam se comportar para que sua poliacutetica se adequasse ao ideal eacutetico da sociedade mas apenas registrou como realmente procediam de modo que um entre os outros natildeo poderia se comportar diferentemente caso quisesse se conservar no trono e natildeo passar por ingecircnuo

Vasquez eacute outro autor que se inclina para separar a eacutetica da poliacutetica e declara

Na poliacutetica o indiviacuteduo encarna uma funccedilatildeo coletiva e a sua atuaccedilatildeo diz respeito a um interesse comum Na moral pelo contraacuterio ainda que o coletivo esteja sempre presente o elemento iacutentimo pessoal desempenha o papel importante [] interiorizando as normas gerais e assumindo responsabilidades pessoais37

Na realidade o fato mais notoacuterio eacute que ainda nos dias de hoje os estudiosos que procuram abordar ou elucidar o mesmo tema ou seja comprovar ou natildeo a identificaccedilatildeo da poliacutetica com a moral e a eacutetica sempre tentam se basear nos pressupostos constantes da filosofia poliacutetica do famoso Escritor Florentino

42 A moral em Maquiavel

Sabe-se que vaacuterios pensadores contemporacircneos de Maquiavel escre-veram tambeacutem como este manuais da linha ldquoEspelho dos Priacutencipesrdquo38 com o intuito de oferecer um norteamento comportamental para aquele que governa pautado tatildeo somente numa moral cristatilde 36 RODRIQUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na poliacutetica Op cit p 43-53 37 VASQUEZ Adolfo Sanchez Eacutetica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 pg 77 38 Eacute um gecircnero literaacuterio antigo que se espalhou sobre a Europa Medieval com base em fontes orientais nos seacuteculos XII a XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

178

A corrente filosoacutefica tradicional enfatiza a tese de que a virtugrave caracterizada por qualidades morais individuais como a justiccedila devia ser completada pelas qualidades ou virtudes cristatildes como a bondade e a feacute

Ao contraacuterio Maquiavel prefere romper com as tendecircncias medie-vais Resolve apresentar o seu ldquoEspelhordquo com caracteriacutesticas diferentes deixando de lado princiacutepios de uma moral cristatilde Rejeita imperativos categoacutericos como leis morais natildeo relativizaacuteveis por consideraacute-los belos ou atraentes como conceitos teoacutericos mas ineficazes na praacutetica da vida puacuteblica Estudiosos do universo maquiaveliano como Berlin39 e Skinner40 compartilham da ideacuteia de que essa preocupaccedilatildeo em romper e ateacute mesmo denunciar a ingenuidade das teorias poliacuteticas reflete o traccedilo de maior originalidade de Maquiavel

O Florentino rejeita a filosofia poliacutetica tradicional acreditando que os comentadores de sua eacutepoca natildeo haviam conseguido perceber a incompati-bilidade de uma ldquomoral cristatilderdquo que atenda agrave pessoa e uma ldquomoral poliacute-ticardquo que atenda ao coletivo no caso o Estado

Essa incompatibilidade reside na natureza humana representada por homens maus levianos covardes e gananciosos Na tentativa de comprovar a sua tese Maquiavel resume seu pensamento numa frase lapidar

[] Seria muito louvaacutevel que um priacutencipe possuiacutesse todas as qualidades consideradas boas Natildeo sendo isto poreacutem inteiramente possiacutevel devido agraves proacuteprias condiccedilotildees humanas eacute necessaacuterio a um priacutencipe aprender a natildeo ser bom41

Acredita Maquiavel que a histoacuteria eacute ciacuteclica e que os costumes variam de regiatildeo para regiatildeo de eacutepoca para eacutepoca Assim sendo como eacute impos-siacutevel frear as paixotildees e os instintos humanos os conflitos e as desordens aconteceriam indefinidamente Continuamente estariam presentes os mesmos viacutecios ou as mesmas virtudes

Para o Pensador Florentino entretanto cujo sonho era ver a Itaacutelia renascida como um Estado forte como outrora o Impeacuterio Romano era fundamental acabar com a desordem causadora de uma situaccedilatildeo poliacutetica tatildeo caoacutetica como a da Peniacutensula Italiana do seu tempo Realmente 39 BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees internacionais Textos de Aula Brasilia UnB sd 40 SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988 41 MAQUIAVEL O Priacutencipe Cap XV

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

179

parafraseando Rodrigues42 eacute possiacutevel dizer que a visatildeo histoacuterica poliacutetica dominante nesta parte da Europa expressava um exemplo significativo dessa malignidade humana a Peniacutensula dividida a ausecircncia de um poder central lutas fratricidas conflitos violentos entre pequenas naccedilotildees ou principados italianos invasotildees promovidas por impeacuterios ou grandes reinos vizinhos o poder temporal da Igreja tantas vezes se transformando em outro obstaacuteculo Afinal um quadro desolador de fraqueza total e de insignificacircncia poliacutetica

Preocupado angustiado mesmo com esse alarmante contexto histoacute-rico em que a Itaacutelia (inclusive Florenccedila) se encontrava envolvida Maquiavel fortifica cada vez mais a sua visatildeo sonhadora de uma paacutetria forte unida eficiente e eficaz Nesta perspectiva munido por um espiacuterito empiacuterico tambeacutem realista o Pensador Florentino assume posiccedilatildeo ideoloacutegica isto eacute pragmaacutetica poliacutetica e para muitos revolucionaacuteria

Vaacuterios inteacuterpretes concordam com a noccedilatildeo de que Maquiavel levado naturalmente por seu empirismo toma aquela dura e cruel conjun-tura poliacutetica como um desafio43 Em decorrecircncia passa a conceber um priacutencipe heroacutei um priacutencipe valoroso determinado capaz de ir ateacute as uacuteltimas consequumlecircncias a fim de alcanccedilar seus objetivos que era ndash nada mais nada menos ndash a regeneraccedilatildeo da Repuacuteblica Conforme o pensamento de Liacutedia Maria ldquoo projeto poliacutetico do secretaacuterio florentino apontava essencialmente para a construccedilatildeo de um Estado forte unificado e voltado para o bem comumrdquo 44

Levando em conta o contexto histoacuterico sobre o qual se discorreu anteriormente pocircr em praacutetica semelhante projeto poliacutetico natildeo era tarefa simples Daiacute por que o priacutencipe idealizado por Maquiavel deveria ser virtuoso ou pelo menos parecer ser e aleacutem disso deveria possuir muita astuacutecia esperteza e sabedoria para pautar as suas accedilotildees com vistas agraves circunstacircncias Neste sentido a visatildeo do Florentino eacute incisiva haacute viacutecios que satildeo virtudes Natildeo tema pois o priacutencipe que deseje se manter no poder incorrer no oproacutebrio dos defeitos mencionados se tal for indispen-saacutevel para salvar o Estado Aconselhava ainda ao priacutencipe saacutebio que devia se aproveitar sempre das oportunidades (ocasione) ldquoaprender os meios de natildeo ser bom e a fazer uso ou natildeo deles de acordo com as

42 Cf RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica op cit p49-52 43 Cf por exemplo Paul Larivaille e Newton Bigotto 44 RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel ndash Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002 pg 31

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

180

necessidadesrdquo45 De conformidade com a teoria poliacutetica maquiaveliana o priacutencipe poderia ateacute praticar o mal desde que seu ato fosse justificaacutevel ou melhor que resultasse num bem maior para todos a estabilidade do Estado

Interpretando a filosofia poliacutetica de Maquiavel dentro dessa oacuteptica Rodrigues conclui

Eacute assim que a poliacutetica maquiaveliana se faz autocircnoma A finalidade eacute excelsa e imperativa porque necessaacuteria inevitaacutevel originaacuteria e fundamental eacute uma legitimaccedilatildeo tatildeo forte que pode atropelar qualquer consideraccedilatildeo eacutetica O absolutismo eacute justificado 46

Assumindo posicionamento tatildeo radical era loacutegico pois que a concepccedilatildeo maquiveliana entrasse fundamentalmente em choque com a consciecircncia moral da tradiccedilatildeo poliacutetica cristatilde De fato dos pensadores cristatildeos dos liberais e dos teoacutericos do Estado beneficente emerge uma contundente onda de criacuteticas contra o Pensador Florentino Eacute tachado de ciacutenico imoral inescrupuloso democircnio espiacuterito satacircnico autor maldito e outros adjetivos do mesmo gecircnero

Como consequecircncia deste panorama Maquiavel passou a ser deveras incompreendido incompreensatildeo que perdura ateacute os dias atuais Um comen-tador recente jaacute o compreendeu ldquocomo uma das figuras mais emblemaacuteticas sendo odiado por muitos amado por outros e incompreendido pela grande maioriardquo47

Consideraacutevel nuacutemero de leitores desinformados alguns deles em total ignoracircncia a respeito das obras de Maquiavel ainda hoje evocam a figura do Secretaacuterio Florentino ou associam o seu nome a dois termos que assumiram sentido pejorativo maquiaveacutelico e maquiavelismo Nas duas acepccedilotildees datildeo ideia de indiviacuteduos traiccediloeiros auspiciosos caloteiros

Quem de noacutes por exemplo natildeo presenciou algueacutem se utilizando do termo maquiaveacutelico para criticar ou denunciar uma pessoa desleal corrupta que para conseguir vantagens pessoais sai atropelando tudo e todos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer aspecto eacutetico ou moral

45 MAQUIAVEL O priacutencipe cap XV 46 RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a eacutetica na poliacutetica Op cit pg 71 47 AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e Razatildeo de Estado Faculdade Autocircnoma de Direito SDatildeo Paulo dezembro de 2008

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

181

Portanto neste trabalho evitou-se de propoacutesito o adjetivo maquia-veacutelico irremediavelmente distorcido por interpretaccedilatildeo errocircnea usando em seu lugar a expressatildeo maquiaveliana

Ainda em decorrecircncia desta atitude objetiva e desapaixonada assumida por Maquiavel fugindo dos padrotildees escolaacutesticos do seu tempo ateacute o seacuteculo XVII eram poucos os doutrinadores que aceitavam aberta-mente os seus pressupostos E no seacuteculo XIX desenterraram a ceacutelebre frase que lhe eacute igualmente atribuiacuteda os fins justificam os meios a qual natildeo consta dos seus escritos sentenccedila cujo uso se faz geralmente isolada do contexto unidade de ideia que jamais algueacutem comprovou tecirc-lo ouvido pronunciar E se realmente o Poliacutetico Florentino a abordava os fins eram tatildeo admiraacuteveis que natildeo poderia ningueacutem deixar de o louvar

Na Modernidade poreacutem as obras do Grande Pensador passaram a ser efetivamente analisadas discutidas e apreciadas Atingiu-se a essecircncia de sua filosofia poliacutetica e Maquiavel com a imagem resgatada aparece cintilante no universo de autores bem-sucedidos

Atualmente comentadores de renome de todos os cantos se arvoraram em defensores do Autor Florentino tecendo-lhes referecircncias honrosas e louvores Entre os que concordam com opiniotildees conclusotildees e interpretaccedilotildees de Maquiavel aponta-se o nome de Mounin

Pode-se afirmar que o secretaacuterio teve honroso papel na poliacutetica da eacutepoca com os meios da eacutepoca agrave medida da eacutepoca - no seu lugar Florenccedila e com as cartas que tinha em matildeo as cartas florentinas que natildeo constituiacuteam um jogo famoso Na histoacuteria do seu tempo Maquiavel eacute vencido natildeo um falhado48

E na tentativa de defender Maquiavel contra seus adversaacuterios Mounin acrescenta

Maquiavel foi realmente um poliacutetico que se alimentou de fatos apaixonado por fatos incansaacutevel na anaacutelise dos fatos [] Pode mesmo afirmar-se um dos mais certos meacuteritos de Maquiavel e um dos menos notados dos menos ceacutelebres tambeacutem eacute a paciecircncia incansaacutevel com que pinta com minuacutecia o espetaacuteculo infinito da complexidade dos fatos Mesmo se quase nunca estamos de acordo com ele acerca das causas e conexotildees a leitura de Maquiavel eacute um antiacutedoto salutar sem disso fazer um dogma unicamente devido ao cuidado que potildee na descriccedilatildeo ensina a cada linha que em poliacutetica nada eacute tatildeo simples como parece49

48 MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 p 15 49 MOUNIN Georges Maquiavel op cit p 30

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

182

Nos tempos modernos outro doutrinador que merece igualmente ter seu nome incluiacutedo na lista dos defensores de Maquiavel eacute Lauro Escorel quando expressa

Maquiavel natildeo traccedilou portanto regras poliacuteticas que estivessem em contradiccedilatildeo com o seu tempo e que passassem desde entatildeo a ser germes de corrupccedilatildeo ou incentivos ao absolutismo como seus adversaacuterios quiseram fazer crer limitou-se a registrar dados de fato normas empiacutericas de conduta que explicaram no passado e no presente os ecircxitos e fracassos poliacuteticos Ao mesmo tempo interpretou ele as tendecircncias poliacuteticas da eacutepoca que era o absolutismo real e o secularismo sob cujos auspiacutecios nascia o Estado Moderno [] Se alguma responsabilidade moral lhe pode ser atribuiacuteda seraacute a de natildeo se ter preocupado em submeter a praacutetica poliacutetica ao crivo de um coacutedigo moral meta-histoacuterico mas isto resulta do meacutetodo indutivo-empiacuterico que o espiacuterito da Renascenccedila lhe inspirou50

Encontra-se nos escritos de Bertrand Russel talvez uma das mais ardorosas e eloquentes defesas de Maquiavel contra as criacuteticas dos anti-maquiavelistas Suas palavras comprovam esta afirmaccedilatildeo

A Renascenccedila embora natildeo haja produzido nenhum filoacutesofo teoacuterico importante produziu um homem de suprema eminecircncia na filosofia poliacutetica Maquiavel Eacute costume sentir-se a gente chocada por ele e natildeo haacute duacutevida de que agraves vezes ele realmente eacute chocante Mas muitos outros homens tambeacutem o seriam se fossem igualmente livres de hipocrisia Sua filosofia poliacutetica eacute cientiacutefica e empiacuterica baseada em sua proacutepria experiecircncia dos assuntos preocupada em declarar os meios de se chegar a determinados fins sem se preocupar de se saber se tais meios satildeo considerados bons ou maus Quando em certas ocasiotildees se permite mencionar os fins que deseja estes satildeo de tal natureza que natildeo podemos senatildeo aplaudi-los Grande parte da difamaccedilatildeo convencional ligada ao seu nome deve-se agrave indignaccedilatildeo dos hipoacutecritas que odeiam o franco reconhecimento das maacutes accedilotildees Resta eacute certo uma boa parte que realmente exige criacutetica mas nisto ele eacute uma expressatildeo de sua eacutepoca Tal honestidade intelectual a respeito da desonestidade poliacutetica dificilmente teria sido possiacutevel em qualquer outra eacutepoca e em qualquer outro paiacutes exceto talvez na Greacutecia entre os homens que deviam sua educaccedilatildeo teoacuterica aos sofistas e seu adestramento praacutetico agraves guerra de minuacutesculos Estados que tanto na Greacutecia claacutessica como na Itaacutelia da Renascenccedila eram o acompanhamento poliacutetico do gecircnio individual51

50 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 20 51 RUSSEL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969 p20

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

183

A tendecircncia moderna diz que natildeo se deve simplesmente ldquodenegrir a imagem de Maquiavel e nem tatildeo pouco louvaacute-lo indiscriminadamenterdquo52 Concorda-se em gecircnero e nuacutemero com esta afirmaccedilatildeo predominante nos dias atuais Natildeo haacute duacutevida de que o Autor Florentino cometeu erros mas acertou muito mais Jamais se deve esquecer de que ele foi um produto do meio O peixe natildeo vive fora drsquoaacutegua E para Maquiavel era quase impos-siacutevel emergir da turbulecircncia histoacuterica em que viveu O Poliacutetico de Florenccedila foi praticamente nocauteado Seu espiacuterito confrontou-se com um dilema de escolha viver ou morrer E quem preferia morrer O que faz um homem todo dia senatildeo lutar pela sobrevivecircncia O poder poliacutetico era uma loteria Para ganhar qualquer priacutencipe teria de jogar Na luta pelo poder Maquiavel justificava o uso das armas ou da crueldade Por outro lado sempre dava liccedilotildees ao povo para se livrar dos tiranos53

5 Consideraccedilotildees finais

Maquiavel ao expor o pensamento ou ideias sobre a poliacutetica o fez de modo genial sem se deixar aprisionar por nenhuma corrente literaacuteria ou doutrinaacuteria Criou estilo proacuteprio pessoal Como consequumlecircncia seus escritos foram analisados de maneiras diversas inclusive mal interpretados Nos nossos dias ainda haacute algueacutem que natildeo consegue interpretaacute-lo com clareza coerecircncia e plena nitidez

Para uns Maquiavel parece ser o protoacutetipo do poliacutetico sem escruacute-pulos sem eacutetica que age de acordo com as circunstacircncias que se lhe apresentam Destarte eacute considerado um escritor e pensador nocivo cujas ideias devem ser banidas da praacutetica poliacutetica e substituiacutedas por uma ldquoverdadeirardquo atitude eacutetica

Para uns Maquiavel eacute considerado um elitista ao contraacuterio de outros que o tecircm em conta como um democrata autecircntico que natildeo via outro fator capaz de sustentar a estabilidade de todo e qualquer regime senatildeo a forccedila e o apoio popular E ainda hoje este axioma converge na poliacutetica moderna onde nenhuma autoridade se conserva no jogo do poder quando natildeo goza de boa reputaccedilatildeo e grande simpatia junto ao povo

52 ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao Pensamento de Maquiavel op cit p 21 53 Biografia Niccoloacute Machiavelli ndash 1469-1527 Disponiacutevel em wwwplmitorjnet Acessado em 15 de dezembro de 2010

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

184

Ainda haacute pessoas que o apresentam como defensor da forccedila e do absolutismo enquanto outras o exaltam na qualidade de conselheiro dos governantes republicano e amigo das leis

Natildeo obstante todas estas controveacutersias e talvez exatamente por causa delas a filosofia empiacuterica e cientiacutefica de Maquiavel se tornou um marco inestimaacutevel na trajetoacuteria da ciecircncia poliacutetica e universal

Como explicar que Maquiavel poreacutem eacute um verdadeiro ponto de referecircncia no desenvolvimento da ciecircncia poliacutetica O fato eacute que em decorrecircncia dos ensinamentos dele a arte da poliacutetica natildeo estaacute mais ligada agrave formulaccedilatildeo de ideais abstratos e por muitas vezes utoacutepicos de um bem comum formulado com suporte num ideal cristatildeo mas na observaccedilatildeo da praacutetica da accedilatildeo poliacutetica e na formulaccedilatildeo clara dos objetivos que se intente alcanccedilar Tambeacutem estaacute se vendo que a eacutetica na poliacutetica natildeo deve ser concebida e avaliada nos mesmos termos que a eacutetica individual com suas normas do bem e do mal A filosofia contemporacircnea fundamenta-se na efetiva perseguiccedilatildeo de eficaacutecia vigor patrioacutetico anaacutelise aguda das circunstacircncias na procura do fortalecimento e conservaccedilatildeo da paacutetria

Natildeo deve ser esquecido o fato de que nos primeiros tempos Maquiavel foi incompreendido por ser aquele expectador objetivo do processo poliacutetico que se manifesta nos seus escritos Na verdade a arte poliacutetica maquiveliana sempre procurou assentar-se na verdade efetiva das coisas ignorando a busca de como as coisas deveriam ser Com o realismo que lhe eacute peculiar o autor florentino pretendia apenas ensinar ao priacutencipe a fugir do imaginaacuterio recusando imagens idealizadas pela natureza humana mas irreais e que nunca existiram Para evitar a ruiacutena e tornar-se vitorioso o detentor do poder deveria se fixar no real e considerar os homens como eles realmente satildeo

Desempenhando o papel de mestre dos priacutencipes legou agrave contempo-raneidade um dos seus mais relevantes ensinamentos O caminho para o governante se tornar eficaz e tambeacutem responsaacutevel eacute basear seus empreen-dimentos em informaccedilatildeo correta previsatildeo de futuros imprevistos diagnoacutestico oportuno caacutelculo exato dos resultados previsiacuteveis tomada de decisatildeo na hora certa e muita sabedoria

Pretendendo dar conselhos aos priacutencipes prestou um excelente serviccedilo agrave humanidade Aconselhou a prudecircncia para todas as geraccedilotildees Sendo cauteloso o homem procura logo a cura de seus males em vez de tomar providecircncias tardias muitas vezes sem chances de remediaacute-los

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

185

Ensinou a todos a ver aleacutem das aparecircncias e descobrir o essencial aquilo que fica escondido sob os bastidores do teatro da vida

Evitar sempre a neutralidade e a dubiedade foi outra importante liccedilatildeo A pessoa que natildeo assume corajosamente sua verdadeira posiccedilatildeo natildeo inspira credibilidade e jamais conseguiraacute a confianccedila a lealdade e a afeiccedilatildeo de outrem

Conclamou Maquiavel as geraccedilotildees a natildeo se deixarem abater diante das crises ou dos momentos de infortuacutenio Ao contraacuterio eacute preciso lutar sempre pelas suas convicccedilotildees e acreditar firmemente que vencer sem luta eacute triunfar sem gloacuteria

Apoacutes a divulgaccedilatildeo de sua obra mais importante O Priacutencipe Maquiavel teve suas reflexotildees poliacuteticas muito mal interpretadas confor-me jaacute expresso E esta incompreensatildeo perdura por seacuteculos ateacute os dias atuais Basta que se procure num dicionaacuterio o significado do vocaacutebulo maquiaveacutelico e logo se encontra como sinocircnimo deste termo rdquoindiviacuteduo que age com astuacutecia perfiacutedia ou malvadezardquo Interpretaccedilotildees dessa natureza nada tecircm de verdadeiro Sempre satildeo resultantes de leigos desinformados ou mesmo acadecircmicos que natildeo efetuam uma anaacutelise mais atenta e cuidadosa sobre as posiccedilotildees poliacuteticas de Maquiavel E destarte natildeo atingem a profundidade do complexo ideaacuterio maquiveliano Nesta perspectiva acredita-se que a maior ofensa que se possa cometer contra o Notaacutevel Escritor Florentino eacute essa heranccedila maldita em torno de seu nome

O Priacutencipe eacute na atualidade um dos livros mais polecircmicos e mais lidos do mundo Sem qualquer duacutevida um verdadeiro best-seller Conteacutem subsiacutedios para todo e qualquer leitor que queira se aprofundar no conhecimento das regras e artiacutefices da arte de governar Considerado como um verdadeiro breviaacuterio sobre poliacutetica tornou-se livro de cabeceira para vaacuterios governantes Determinar o fim da influecircncia doutrinaacuteria medieval sobre a investigaccedilatildeo poliacutetica contemporacircnea foi sua importacircncia funda-mental

Apesar do seu intenso vigor patrioacutetico o Diplomata Florentino morreu sem presenciar a realizaccedilatildeo do seu sonho maior ver sua paacutetria - a Itaacutelia renascentista ndash cintilando no panorama das naccedilotildees fortes unidas estaacuteveis e desenvolvidas E poreacutem por meio das paacuteginas de O Priacutencipe transmitiu um admiraacutevel cabedal de conhecimentos sobre a loacutegica que rege a conquista e a manutenccedilatildeo do poder

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

186

Por tudo o que se abordou neste trabalho acredita-se firmemente que com justa razatildeo Maquiavel merece o cognome de ldquopai da ciecircncia poliacutetica modernardquo

Referecircncias Bibliograacuteficas

AUGUSTO Eduardo Agostinho Arruda Nicolau Maquiavel Justiccedila e razatildeo de Estado Satildeo Paulo sEd dezembro de 2008

BATISTA Flaacutevio Donizete Maquiavel e ldquoO Priacutenciperdquo Disponiacutevel em http flaviobatistacombrarquivos0212008170447 Acessado em 25 de ou-tubro de 2010

BELLOZO Edson Maquiavel e as origens do pensamento poliacutetico moderno Disponiacutevel em wwwminiwebcombrcienciasartigosmaquiavel Aces-so em 15-09-2010

BERLIN Isaiah O Problema de Maquiavel Textos de Aula Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Internacionais Brasiacutelia UnB sd

BIRARDI A e Castelani G R Desmistificando Maquiavel Ensaio acerca de sua histoacuteria obras e conceitos Disponiacutevel em httpwwwklepsidra netklepsidra4maquiavelhtn Acessado em 18092010

BIGNOTTO Newton Maquiavel Republicano Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1991

BRONOWSKI J e MAZLISH Bruce A Tradiccedilatildeo Intelectual do Ocidente Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

CAILLEacute Alain LAZZERI Christian SENELLART Michel (organizado-res) Histoacuteria argumentada da Filosofia Moral e Poliacutetica Satildeo Leopoldo Editora UNISINOS 2003

BARROS Vinicius Soares de Campos 10 liccedilotildees sobre Maquiavel Petroacute-polis Editora Vozes 2010

FRANCO Afonso Arinos de Mello O Pensamento poliacutetico na Renas-cenccedila Cadernos da UnB Humanidades Brasiacutelia UnB 1980 p 19-27

DUVERNOY JF Para conhecer o pensamento de Maquiavel Porto Alegre LampPM Editores Ltda 1984

ESCOREL Lauro Introduccedilatildeo ao pensamento poliacutetico de Maquiavel Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1979

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

187

______ O Pensamento poliacutetico de Maquiavel Cadernos da UnB Humani-dades Brasiacutelia UnB 1981 p 18-52

GREGORIO Fernando Ceacutesar Aplicando Maquiavel no dia a dia Satildeo Paulo Madras Editora Ltda 2008

GRUPPI Luciano Tudo comeccedilou com Maquiavel Porto Alegre L amp PM Editores 1988

LARIVAILLE Paul A Itaacutelia no tempo de Maquiavel (Florenccedila e Roma) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

MAQUIAVEL O Priacutencipe Comentado por Napoleatildeo Bonaparte Traduccedilatildeo Pietro Nassetti Satildeo Paulo Editora Martin Claret Ltda 2009

MAQUIAVEL Nicolau Comentaacuterios sobre a primeira deacutecada de Tito Liacutevio Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1992

MOREIRA Marcilio Marques O Pensamento Poliacutetico de Maquiavel Textos de aula Brasiacutelia Centro de Documentaccedilatildeo Poliacutetica e Relaccedilotildees Interna-cionais sd

MOUNIN Georges Maquiavel Lisboa Ediccedilotildees 70 1984

REALE Giovanni e ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Do Huma-nismo a Descartes Satildeo Paulo Paulus 2004

RODRIGO Liacutedia Maria Maquiavel Educaccedilatildeo e Cidadania Petroacutepolis Editora Vozes 2002

RODRIGUES Ricardo Maquiavel e a Eacutetica na Poliacutetica Symposium no2 Recife Unicap 1986 p 43-53

RODRIGUES Ruy Martinho Priacutencipe Lobo e Homem Comum (Anaacutelise das Ideacuteias de Maquiavel Hobbes e Locke) Fortaleza UFC 1997

RUSSELL Bertrand Histoacuteria da Filosofia Ocidental Livro Terceiro Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1969

SANTOS Vivian Matias dos Niccolo Machiavelli moralista ou intelec-tual orgacircnico Em Mediaccedilotildees v12 n2 p 175-187 juldez 2007

SKINNER Quentin Maquiavel Satildeo Paulo Brasiliense 1988

STRATHERN Paul Maquiavel (em 90 minutos) Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 161-188 2013

188

WEBER Hingo O priacutencipe amp Maquiavel sem ideologias Petroacutepolis Editora Vozes 2007

SADEK Maria Nicolau Maquiavel o cidadatildeo sem Fortuna e o intelectual de virtugrave Em WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2003

WEFFORT Francisco C (org) Os claacutessicos da Poliacutetica 4 ediccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Esp Fanty Ferreira ter Reegen Licenciada em Filosofia e Histoacuteria pela Faculdade de Filosofia do Cearaacute e

Especialista em Gestatildeo Puacuteblica pela Universidade Vale do Acarauacute

Prof Dr Pe Francisco Evaristo Marcos Doutor em Teologia pela Pontiacutefica Universidade Gregoriana

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

189

SOBRE A RELACcedilAtildeO DINAcircMICA DA REALIDADE SUPRA-SENSIacuteVEL SEGUNDO PROCLO

SUR LA RELATION DYNAMIQUE DE LA REacuteALITEacute

SUPRASENSIBLE SELON PROCLUS

Profa Dra Francisca Galileacuteia Pereira da Silva

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen Suelen Pereira da Cunha

Resumo

O presente artigo tem por objetivo demonstrar porque as relaccedilotildees dinacircmicas satildeo imprescindiacuteveis na filosofia procleana Para tanto parte-se da problemaacutetica da inexis-tecircncia de movimento na realidade supra-sensiacutevel mostrando que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento de deslocamento Defende-se pois que natildeo se trata em Proclo (412 ndash 485 dC) de uma sucessatildeo de eventos e nem de uma mudanccedila na substacircncia Desta forma apoacutes a anaacutelise do movimento de processatildeo parte-se para a consideraccedilatildeo do papel das triacuteades da realidade incorpoacuterea para soacute entatildeo verificar a importacircncia das relaccedilotildees dinacircmicas na multiplicaccedilatildeo e diversidade dos seres Apoacutes ser estudado o papel das triacuteades seraacute possiacutevel perceber que natildeo eacute o movimento o responsaacutevel pela diversidade mas a relaccedilatildeo dinacircmica que a possibilita Assim este trabalho se fundamenta nos Elementos Teoloacutegicos de Proclo

Palavras-chave Proclo Triades Relaccedilatildeo Dinacircmica

Resumeacute Lrsquoobjectif de cette recherche est montrer que les relations dynamiques sont indispensables dans la philosophie proclienne Alors il part de la question de lrsquoabsence du mouvement dans les reacutealiteacutes suprasensibles montrant que le mouvement de oprocession nrsquoest ni une sucession drsquoeacuteveacutenements ni un changement dans la substance Apregraves analyser le mouvement de procession il fait lrsquoexamen de la function des triades dans la reacutealiteacute incorporelle et veacuterifie lrsquoimportance des relations dynamiques dans la multiplication et dans la diversiteacute des ecirctres Apregraves lrsquoeacutetude de la function des triades il sera possible comprendre que nrsquoest pas le mouvement le responsable pour la diversiteacute mais la relation dynamique qui la rend possible Cet eacutetude est fondamenteacutee dans lrsquooeuvre Eacuteleacutements de Theacuteologie de Proclus (412-485 a C)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

190

Mots-cleacutes Proclus Triades Relation Dynamique

Introduccedilatildeo

Herdeiro da filosofia pagatilde Proclo (412-485 dC) eacute considerado o uacuteltimo expoente de destaque da filosofia antiga a atuar na escola de Atenas1 Como neoplatocircnico as teses do Bizantino satildeo marcadas pela tentativa de conciliaccedilatildeo das doutrinas platocircnicas aristoteacutelicas e pitagoacutericas Por estar inserido no contexto das escolas da Antiguidade Tardia os escritos do filoacutesofo satildeo caracterizados por sua sistematicidade Neste sentido o pensador ao expor a passagem da unidade agrave multiplicidade natildeo admite passagens abruptas e portanto natildeo concebe que do Uno surja imediatamente a multiplicidade em sua complexidade isto eacute ele natildeo concebe uma passagem imediata do Uno ao Noucircs

Entretanto ainda que a passagem do Uno ao muacuteltiplo seja algo fundamental na filosofia procleana ela encerra um problema Acontece que Proclo na realidade supra-sensiacutevel natildeo admite movimento na substacircncia Diante disto partindo da ideia platocircnica de que ldquomudanccedila eacute movimentordquo2 a diferenccedila entre os seres da realidade imaterial natildeo pode ser explicada Uma vez que sem movimento natildeo haacute produccedilatildeo Assim para solucionar tal problemaacutetica parte-se da hipoacutetese de que a diferenccedila na realidade imaterial natildeo eacute o resultado de um movimento de deslocamento ou da proacutepria substacircncia dos seres mas da relaccedilatildeo entre os princiacutepios que os constituem Para verificar tal hipoacutetese eacute preciso iniciar a anaacutelise com o

1 Fechada em 529 por Justiniano de acordo com o decreto que afirma ldquoNingueacutem que tenha sido contagiado por tais heresias poderaacute desempenhar grau no exeacutercito ou exercer ofiacutecios puacuteblicos nem na condiccedilatildeo de professor que se ocupe de alguma disciplina () Proibimos que seja ensinada qualquer doutrina da parte daqueles que satildeo afetados pela insacircnia dos iacutempios pagatildeosrdquo (REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008 p 206-208)Tal decreto que afetou profundamente as escolas de vertente pagatilde fez com que pensadores da Academia como Simpliacutecio (490 ndash 560 dC) e Damascius (458 ndash 583 dC) fugissem para Peacutersia A fim de dar continuidade aos estudos permaneceram por volta de 531532 na corte de Khussraw I pois o rei da Peacutersia se mostrava simpatizante do pensamento grego Somente em 533 por ocasiatildeo do ldquotratado de paz eternardquo assinado entre os persas e os bizantinos retornaram ao Ocidente Sobre a fuga dos pensadores pagatildeos para a Peacutersia ver SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012 paacuteg 62-74 2 Parmecircnides 162c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

191

movimento de processatildeo pois eacute por ele que primeiramente Proclo explica a saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade

1 O movimento de processatildeo

De acordo com a filosofia procleana a multiplicidade soacute pode ser pensada se a unidade for pressuposta Assim toda multiplicidade participa de tal forma da unidade que a sua natildeo participaccedilatildeo implicaria em uma multiplicaccedilatildeo infinita o que seria um engano Pois se a multiplicidade natildeo participasse da unidade ou a proacutepria multiplicidade seria una ou natildeo-una e no caso de ser natildeo-una ou seria muitas ou nada Admitir que ela eacute nada eacute cair num contrassenso pois como algo (um existente) poderia ser nada Ou ainda como pode haver geraccedilatildeo se o ser natildeo pode advir do nada Por outro lado a tese de que a multiplicidade existe precisa de uma anaacutelise cuidadosa uma vez que afirmar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla pode levar a aporias jaacute que sua gecircnese natildeo seria explicada fazendo com que se caia numa regressatildeo infinita3

A regressatildeo aconteceria porque ao sustentar que a multiplicidade eacute somente muacuteltipla e natildeo una se admite que cada parte que a compotildee tambeacutem eacute muacuteltipla de modo que nunca se chega a um princiacutepio Logo haacute uma necessidade de contornar a ideia da regressatildeo ad infinitum Para tanto o princiacutepio como unidade eacute posto como indispensaacutevel mediante a ideia de que se fossem dois ou eles seriam iguais ou diferentes Sendo iguais se trataria de apenas uma substacircncia ou seja seriam um sendo diferentes um teria de ser o primeiro derivando entatildeo um do outro Se os dois estivessem no mesmo patamar nenhum seria o primeiro o que significaria a existecircncia de algo acima deles que os deu origem Entatildeo o que pode se perceber eacute que natildeo importa o caminho seguido a razatildeo sempre leva a um primeiro que eacute fundamentalmente um4 Assim este Um no neoplatonismo eacute posto como unidade absolutamente simples da qual toda multiplicidade participa

Proclo entatildeo faz surgir da unidade toda multiplicidade Esta multiplicaccedilatildeo da unidade originaacuteria se daacute por meio do movimento de processatildeo que eacute composto por trecircs momentos muito distintos mas que

3 PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995 Proposiccedilatildeo 1 4 Cf op cit Proposiccedilatildeo 22

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

192

estatildeo estreitamente interligados Satildeo eles Processatildeo (πρooacuteδος) Perma-necircncia (μονή) e Retorno (ἐπιστροφή) Os trecircs momentos se distinguem pelo fato de que no primeiro (πρooacuteδος) haacute uma separaccedilatildeo entre a causa e seu efeito no segundo (μονή) tem-se que mesmo que haja a processatildeo eacute preciso que o produto permaneccedila em sua causa e no terceiro (ἐπιστροφή) o efeito retorne agrave causa pelo desejo de nela participar Entretanto a ligaccedilatildeo entre estes eventos natildeo acontecem em uma ordem linear mas se datildeo simultaneamente5 Posto que se soacute procedesse natildeo haveria qualquer comunicaccedilatildeo entre o que produz e o que eacute produzido se soacute permanecesse natildeo haveria produccedilatildeo e como pode haver retorno sem que haja separaccedilatildeo6 Portanto por exigir tanto o sair como o permanecer na causa o movimento de processatildeo acontece de modo circular

A processatildeo guarda entatildeo algumas leis inviolaacuteveis que garantem que todas as etapas aconteccedilam A primeira lei atesta que toda causa produtiva produz por super abundacircncia de potecircncia Neste sentido Proclo sustenta que ldquo[] tout ce qui produit demeure tel qursquoil est et parce qursquoil demeure tel son deacuteriveacute procegravede Crsquoest donc par la pleacutenitude et la perfection dont il jouit qursquoil fait subsister ses deacuteriveacutes sans se mouvoir ni srsquoamoindrirrdquo7 A segunda que estaacute em concordacircncia com a primeira defende que devido agrave super abundacircncia de potecircncia o produtor natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo ao engendrar seus efeitos8 A terceira legitimando todo o momento da processatildeo defende a tese de que toda produccedilatildeo soacute se efetiva por meio da semelhanccedila9 entre produto e produtor10

A menccedilatildeo agraves leis de processatildeo prepararam o terreno para o esclarecimento da multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases por meio da unidade Isto

5 Para Caram a simultaneidade dos momentos da processatildeo se daacute porque para os neoplatocircnicos a categoria da causalidade natildeo envolve uma sequecircncia temporal ou mesmo a noccedilatildeo moderna de eventos sucessivos que pressuporia um lsquoantes e depoisrsquo jaacute que a relaccedilatildeo natildeo eacute entre eventos mas substacircncias CfCARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesrevistasthemata 49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015 p108 6 PROCLUS Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 30 7 Op cit Proposiccedilatildeo 27 8 Segundo Proclo ldquoToute cause qui produit autre qursquoelle-mecircme produit ses deacuteriveacutes et ce qui les suit en demeurant en elle-mecircmerdquo Op cit Proposiccedilatildeo 26 9 Cf Caram A semelhanccedila em Proclo eacute a capacidade de manter a caracteriacutestica do ser originaacuterio poreacutem em um grau menor CARAM op cit 2014 p 108 10 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 28-29

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

193

porque de acordo com tais leis o produtor eacute sempre superior a tudo o que vem depois dele tendo em vista que natildeo sofre qualquer diminuiccedilatildeo assegurando assim a continuidade do movimento e permite que aquilo que eacute produzido seja semelhante11 ao produtor A semelhanccedila se daacute desta forma porque o ser do produzido adveacutem do proacuteprio produtor ao dar ao produzido da sua proacutepria substacircncia Neste sentido o Diadoco sustenta que ldquoTout dispensateur qui agit par son ecirctre (τὸτῷεἰναιχορηγοῦν) est lui-mecircme de faccedilon primordiale ce qursquoil communique aux beacuteneacuteficiaires de ses dispensationsrdquo12 Partindo de tal proposiccedilatildeo o sucessor do pensamento platocircnico demonstra no que consiste a semelhanccedila entre causa e efeito Ainda eacute preciso contudo apontar as implicaccedilotildees da semelhanccedila no movimento de processatildeo

Quando se fala em semelhanccedila a primeira coisa a ser vista eacute que na processatildeo o que se revela no efeito eacute a proacutepria manifestaccedilatildeo da causa uma vez que como mencionado o produto possui o mesmo ser do produtor dado que ele eacute a continuidade ontoloacutegica da sua causa A semelhanccedila leva o produto a desejar retornar ao produtor pois soacute na causa que eacute superior pode encontrar perfeiccedilatildeo O desejo de retornar soacute existe porque haacute uma comunicaccedilatildeo ininterrupta entre eles Tal comunicaccedilatildeo eacute tambeacutem conexatildeo que na processatildeo estrutura o cosmo permitindo que a causa esteja sempre em contato com seus efeitos Deste modo o movimento acontece de modo circular no qual o efeito sai da causa ao mesmo tempo em que permanece nela e a ela retorna em um ciclo interrupto onde o princiacutepio e o fim satildeo o mesmo Sobre isto Proclo assevera

Tout ecirctre qui procegravede drsquoun principe et se convertit vers lui a une activiteacute cyclique Si cet ecirctre se convertitvers ce dont il procegravede il fait coiumlncider sa fin avec son principe et son mouvement est unique et continu qursquoil srsquoeacutecarte du repos originel ou qursquoil srsquoy rapporte Crsquoest pourquoi tous les ecirctres accomplissent un processus cyclique qui va de leurs causes agrave leurs causes Il est des cycles plus amples et il en est de plus court selon que les conversions se portent aux cause immeacutediatement supeacuterieures ou agrave de plus eacuteleveacutees jusqursquoau principe universal13

11 Platatildeo define semelhanccedila como aquilo que eacute outro mas imita o objeto ao qual eacute semelhante a fim de conservar sua beleza No entanto o faz mudando de proporccedilatildeo Cf Platatildeo Sofiacutesta 136 a 12 PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 18 13 Op cit Proposiccedilatildeo 33

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

194

Na processatildeo a semelhanccedila vem em primeiro lugar sendo ela quem proporciona a conversatildeo e permanecircncia do causado na causa Todavia natildeo haacute multiplicaccedilatildeo somente com semelhantes pois neste caso o que diferiria o produto do produtor a causa do causado Para que haja distinccedilatildeo entre os elementos eacute preciso que exista alguma caracteriacutestica diferente entre eles e uma vez que a processatildeo se daacute pela multiplicaccedilatildeo do ser do produtor natildeo pode haver diferenccedila entre a constituiccedilatildeo do ser da causa e do causado Assim a priori a diferenccedila entre causa e efeito se apresenta como diferenccedila de potencialidade14 Isto porque para Proclo eacute imprescindiacutevel que o produto seja inferior em potecircncia ao seu produtor Portanto se por um lado na multiplicaccedilatildeo das hipoacutestases a semelhanccedila eacute necessaacuteria por outro a dessemelhanccedila tambeacutem o eacute15

A diferenccedila entatildeo consiste em potecircncias diferentes que faz com que os elementos que compotildeem o sistema procleano faccedilam parte de uma hierarquia na qual quanto mais proacuteximo o produto estiver da sua causa mais perfeito e potente ele eacute16 Isso porque aqueles que estatildeo mais proacuteximo recebem em maior grau a potecircncia produtiva e no mesmo grau em que recebe a potecircncia recebem o ser da mocircnada originaacuteria Ao ter um maior grau de ser e de potecircncia o produtor eacute para o que vem em seguida causa bem e perfeiccedilatildeo fazendo com que este segundo deseje dele participar e natildeo somente o deseje mas necessite de tal participaccedilatildeo para alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Logo a correspondecircncia entre perfeiccedilatildeo constituiccedilatildeo e partici-paccedilatildeo se estabelece partindo de uma hierarquia na qual os seres que estatildeo mais proacuteximos do princiacutepio de sua seacuterie satildeo superiores e servem como degraus para perfeiccedilatildeo daqueles que satildeo produzidos por uacuteltimo

A perfeiccedilatildeo que se daacute mediante a participaccedilatildeo na causa como jaacute foi dito soacute eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre os termos Assim o desejo do produto de participar do seu produtor eleva o produtor ao patamar de bem No entanto se o primeiro bem de cada seacuterie natildeo pode ser partici-pado entatildeo como aquele que soacute existe por meio da participaccedilatildeo em outro pode participar daquele que eacute imparticipado Tal possibilidade se daacute pela existecircncia de um elemento intermediaacuterio que na filosofia procleana eacute sempre fundamental O intermediaacuterio no que diz respeito agrave participaccedilatildeo eacute

14ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur est drsquoordre supeacuterieur agrave son produit PROCLUS Op cit Proposiccedilatildeo 7 15 ldquoLe produit ne peut donc ecirctre ni eacutegal ni supeacuterieur agrave son producteur Il en reacutesulte que le producteur esr drsquoordre supeacuterieur agrave son produitrdquoop cit 1995 Proposiccedilatildeo 7 16 Op cit Proposiccedilatildeo 37

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

195

posto como participado aquele pelo qual o participante adquire sua perfeiccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoPuisqursquoil eacutetait imparfait avant la participation et est devenu parfait par la participation le participant est entiegraverement subordonneacute au participeacute dans lrsquoordre de la perfection anteacuterieure il est infeacuterieur au participeacute qui le rend parfaitrdquo17

Tem-se entatildeo a existecircncia de uma triacuteade composta por hipoacutestases por meio de uma causa uacutenica satildeo elas o imparticipado o participado e o participante O imparticipado eacute segundo Proclo aquele que tem em si a razatildeo de sua proacutepria unidade18 Nele estaacute toda a potecircncia e capacidade de produzir ou seja eacute a mocircnada19 de uma seacuterie que surge mediante ele mesmo O que eacute produzido imediatamente pelo imparticipado eacute o partici-pado e o que eacute produzido em seguida participante Ambos participante e participado satildeo semelhantes ao imparticipado pois dele recebem sua substacircncia Entretanto satildeo dessemelhantes porque na medida em que saem de sua causa satildeo potencialmente inferiores a ela A inferioridade de sua potecircncia eacute determinante em sua imperfeiccedilatildeo No entanto eacute exatamente na imperfeiccedilatildeo e contemplaccedilatildeo do perfeito que estaacute o desejo de participar

A triacuteade referente agrave participaccedilatildeo estaacute diretamente associada agravequela referente agrave perfeiccedilatildeo pois a medida de perfeiccedilatildeo eacute a mesma da participaccedilatildeo Assim o ser imparticipado corresponde ao Bem o participado ao autohipostaacutetico20 e os outros seres aqueles que tecircm sua existecircncia partindo de outros ao participante Estas triacuteades por sua vez equivalem agravequela referente ao Imoacutevel Automotor e Heteromotor O que torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que sejam utilizados termos diferentes levando em consideraccedilatildeo um predicado o pensador estaacute sempre se referindo ao mesmo elemento dentro de uma seacuterie Ou seja natildeo importa se remete ao Imoacutevel Imparticipado ou Bem quando se evoca um destes termos a referecircncia eacute sempre ao princiacutepio da seacuterie e o mesmo acontece com os outros elementos21 Por esta razatildeo por meio de uma unidade que aparece como Bem Imoacutevel ou

17 PROCLUS op cit Proposiccedilatildeo 24 18 Op cit 1995 Proposiccedilatildeo 23 19 Cf Proclo A Mocircnada na filosofia procleana eacute o princiacutepio originaacuterio de toda seacuterie Eacute dela que toda multiplicidade mediante a semelhanccedila tem origem op cit Proposiccedilatildeo 21 20 Autohipostaacutetico eacute todo aquele que existe em si e por si ou seja tem em si mesmo a razatildeo de sua existecircncia e constituiccedilatildeo sendo portanto perfeito 21 A saber quando se fala em participado automotor ou autohipostaacutetico do termo intermediaacuterio que faz a ligaccedilatildeo entre o princiacutepio Quando cita os seres cuja existecircncia dependente de outros estaacute sempre se referindo ao uacuteltimo termo da seacuterie ou seja o participante que eacute tambeacutem heteromotor e natildeo eacute causa de sua proacutepria perfeiccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

196

Imparticipado surge um elemento que eacute estreitamente semelhante a ela pois dele recebe o seu ser

Agrave vista do exposto nesta primeira anaacutelise a diferenccedila caracteriacutestica da multiplicidade se mostrou tatildeo somente como resultado da diferenccedila de potencialidade entre produto e produtor O que se observa entretanto ao investigar a multiplicidade ou mesmo a sua relaccedilatildeo com a unidade eacute que a diferenccedila que existe nela natildeo se limita a uma desigualdade de potecircncia como bem se observa na constituiccedilatildeo do Noucircs e na proacutepria diversidade dos seres Por isto eacute preciso ir mais a fundo na investigaccedilatildeo a fim de descobrir a gecircnese da diferenccedila Afinal quando se fala da dessemelhanccedila mediante os graus de potencialidade tem-se jaacute anteriormente uma diver-sidade presente nas mocircnadas pelas quais as seacuteries satildeo derivadas Com o intuito de aprofundar o exame referente agrave origem da diferenccedila portanto eacute necessaacuterio analisar o papel das triacuteades na geraccedilatildeo dos seres

2 A organizaccedilatildeo triaacutedica da realidade sobre o papel de Peacuteras Apeiacuteron e Mixto

O sistema procleano de hipoacutestases eacute disposto em triacuteadas Natildeo satildeo somente as hipoacutestases que satildeo ordenadas triadicamente pois esta forma de organizar perpassa todos os acircmbitos da filosofia do Bizantino Prova disto eacute a relaccedilatildeo que daacute origem a toda realidade a saber o movimento de processatildeo que como visto eacute constituiacutedo por trecircs momentos indispensaacuteveis e indissociaacuteveis Aleacutem da triacuteade presente no movimento de processatildeo a proacutepria realidade incorpoacuterea eacute sistematizada desta forma sendo composta por trecircs hipoacutestases divina inteligiacutevel e psiacutequica Cada uma das realidades mencionadas guarda particularidades que soacute dizem respeito a elas mesmas Poreacutem satildeo semelhantes na perspectiva de ser cada uma subdivi-dida em triacuteades

Por estar presente em todos os momentos da teoria do Diadoco o entendimento das triacuteades eacute essencial para que o pensamento do autor seja compreendido principalmente quando se trata da concepccedilatildeo do desdobra-mento da multiplicidade mediante a unidade Sobre a importacircncia das triacuteades na tese procleana Bezerra faz a seguinte afirmaccedilatildeo ldquochegamos assim agrave ideia das triacuteades como mediaccedilatildeo entre a multiplicidade constante das coisas e a unidade superior a todo devirrdquo22 A triacuteade como movimento de processatildeo eacute o

22 BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006 p 118

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

197

elemento motor da participaccedilatildeo haja vista ser determinante na constituiccedilatildeo dos seres Tal constituiccedilatildeo por sua vez estaacute diretamente relacionada agrave mobilidade dos termos que compotildee a realidade incorpoacuterea e corpoacuterea A estrutura triaacutedica portanto faz existir uma mediaccedilatildeo dinacircmica que proporciona a continuidade ontoloacutegica daquilo que eacute produzido permitindo o contato do Uno com tudo o que vem em seguida Neste sentido Caram assegura que ldquoo sistema procleano eacute uma trama de relaccedilotildeesrdquo23

Eacute esse complexo de relaccedilotildees que permite a causalidade pois os encadeamentos natildeo possuem um caraacuteter temporal uma vez que natildeo se trata de um antes e depois relativo ao vir-a-ser mas tatildeo somente a uma questatildeo loacutegica explicativa Assim a passagem da unidade agrave multiplicidade eacute feita mediante o estabelecimento de um sistema no qual partindo da unidade um atributo eacute gerado e mantido por meio das triacuteades permitindo que a comunicaccedilatildeo se estenda do primeiro ao uacuteltimo termo de uma ordem Eacute importante observar entretanto que sendo o Uno a Causa Prima ele transcende a todas as realidades de maneira a estar separado de qualquer ordem Ou seja natildeo se pode dizer que o Uno faz parte de qualquer seacuterie da realidade incorpoacuterea pois transcende a todas Trouillard neste sentido defende que o Uno natildeo estaacute em nenhuma ordem a qual produz24 diferente das demais causas que satildeo o centro de suas ordens

No que respeita agrave realidade supra-sensiacutevel a primeira hipoacutestase que descende diretamente do Uno eacute a divina o universo das heacutenadas Depois delas haacute a realidade inteligiacutevel e em seguida a psiacutequica A hipoacutestase divina eacute aquela na qual se encontra o iniacutecio da multiplicidade embora seja apenas uma multiplicidade quantitativa E mesmo que sejam muitas elas se caracterizam pela unidade dado que eacute a primeira esfera que surge atraveacutes do Uno Neste sentido com base na ideia de que o Uno eacute Deus25 e Bem Proclo defende que a multiplicidade dos deuses eacute unitaacuteria26 tendo

23 CARAM op cit 2014 p 105 24 Cf TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982 p 54 25 Eacute valido lembrar que apesar de ser denominado Deus o Uno soacute possui esta nomenclatura por ser causa e portanto dar origem e manter todos os seres aleacutem de ser objeto de desejo de todos uma vez que eacute o Sumo Bem 26 O caraacuteter transcendente do Uno o leva a ser considerado como Deus mas um deus que transcende a todos os deuses por ser Causa Primeira e objeto de desejo de todas as coisas de modo a estar acima de toda ordem Os primeiros elementos que satildeo deles originados satildeo as Heacutenadas que embora extremamente semelhantes a ele lhe satildeo potencialmente inferior Elas tecircm assim o papel intermediaacuterio entre a realidade divina e inteligiacutevel sendo assim

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

198

em vista que o Diadoco natildeo concebe saltos entre os termos da processatildeo e as Heacutenadas satildeo as primeiras coisas produzidas Apoacutes as Heacutenadas haacute a realidade inteligiacutevel onde se encontra a diversidade de maneira mais concreta tendo em vista que nela haacute inuacutemeras organizaccedilotildees nas quais o iniacutecio da diversidade dos seres eacute manifesto

A estrutura loacutegica da realidade inteligiacutevel procleana eacute interpretada por Caram27 como o fundamento de toda hipoacutestase pois a divisatildeo em Ser Vida e Intelecto tanto reflete os momentos da processatildeo quanto o ciclo das almas28 e o mundo do devir29 Assim a indispensabilidade da triacuteade inteli-giacutevel natildeo se refere somente agrave sua influecircncia no que eacute engendrado em seguida mas agrave unidade presente no Espiacuterito e na totalidade do cosmo Por esta razatildeo a ordem inteligiacutevel encontra na triacuteade Ser Vida e Pensamento sua unidade fundamental na medida em que pensamento e ser estatildeo unidos de tal forma que o pensamento eacute sempre pensamento do ser e o ser eacute sempre ser do pensamento Deste modo ldquo[] na Inteligecircncia estatildeo ambos Ser e Vida por participaccedilatildeo e cada um deles intelectualmente pois o ser da inteligecircncia eacute cognoscitivo e sua vida eacute conhecimentordquo30 A unidade entre Ser e Pensamento daacute ao Noucircs a dinacircmica que se manifesta como a vida que se faz presente no Espiacuterito e que medeia a relaccedilatildeo entre aqueles dois termos31

Proclo assegura a unidade do Espiacuterito ao declarar que cada um dos elementos que o compotildee estaacute presente nos demais embora chame atenccedilatildeo ao fato de que mesmo que tudo esteja em tudo cada um estaacute em seu modo proacuteprio O Diadoco entatildeo apresenta trecircs maneiras de existir essencial-mente vitalmente e intelectualmente32 Cada modo corresponde a um elemento que faz parte da esfera inteligiacutevel e a ligaccedilatildeo entre os trecircs soacute eacute

muacuteltiplas quanto sua quantidade mas unitaacuterias quanto aos seus atributos pois os uacutenicos que podem ser percebidos satildeo bondade e unidade PROCLO Op cit Proposiccedilatildeo 113 27 Cf CARAM op cit 2014 p 107 28 Para Proclo ldquoToda alma eacute uma substacircncia vital e cognoscitiva um princiacutepio de vida substancial e cognoscitiva e um principio de conhecimento por ser uma substacircncia e um princiacutepio de vidardquo PROCLO op cit proposiccedilatildeo 197 (traduccedilatildeo nossa) Cf TRUILLARD O ciclo da alma eacute composto por ser ou substacircncia vida ou potecircncia e pensamento ou atividade p 60 68 29 Cf TRUILLARD op cit 1982p 60 As ordens do reino do devir satildeo mineral vegetal e sensitivo 30 PROCLO op cit Proposiccedilatildeo 103 (traduccedilatildeo nossa) 31 ldquoSin el acto de la vida que opera la mediacioacuten entre los dos elementos el espiacuterito no tendria ninguna conciencia del proacuteprio ser e de la proacutepria esencia [] Ella en cuanto pensante e y existente funda el acto de identida que ocurre entre el ser y el espiacuterito y deviene mediadora dela triadicidad del νοῦςrdquo CARAM op cit 2014 p 117 32 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 103

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

199

possiacutevel porque cada um deles eacute formado pelos mesmos princiacutepios Limite e Ilimitado Desta maneira eacute possiacutevel dizer que cada elemento que faz existir a triacuteade do Espiacuterito eacute formado por outra triacuteade cujos princiacutepios satildeo comuns Ou seja 1) finito infinito e Ser 2) finito infinito e vida e 3) finito infinito e pensamento33 satildeo triacuteades que produzem triacuteades

Limite e Ilimitado satildeo a diacuteade pela qual se manifesta o Uno Satildeo o princiacutepio de todo ser e por esta razatildeo satildeo os elementos centrais para a explicaccedilatildeo da produccedilatildeo da multiplicidade haja vista o Uno soacute produzir semelhantes34 Esses dois princiacutepios satildeo causa de todo ser aleacutem de serem a primeira manifestaccedilatildeo do Uno de maneira que tudo que se segue eacute composto por eles Neste sentido DrsquoAncona atesta que ldquoCes deux priacutencipes consideres par Proclos comme Supremes en tant que responsables de chaque manifestation de stabiliteacute et de changement dans lrsquounivers tout entierrdquo35 Para Proclo ateacute as Heacutenadas que estatildeo no mesmo plano do Uno por fazerem parte da realidade divina procedem dos dois princiacutepios36 Mesmo que os dois princiacutepios soacute sejam percebidos nos seres ou seja como mistura entretanto cada princiacutepio existe por si mesmo e independente um do outro37 - o que leva agrave necessidade de analisar cada um isoladamente

Peraacutes ou o Limite eacute a causa da semelhanccedila com o Uno que segundo Berger representa o Primeiro Princiacutepio por sua estabilidade e concentraccedilatildeo em si mesmo dando a todos que dele participa integridade unidade e estabilidade Por tais donativos que concernem a suas proacuteprias caracteriacutes-ticas ele eacute anaacutelogo ao uno e ao mesmo38 Assim a accedilatildeo do limite por tambeacutem ser entendido como determinante consiste na unificaccedilatildeo Estas caracteriacutesticas satildeo do Limite como existente em si e por si separado do Ilimitado39 O que acontece eacute que Limite e Ilimitado no entanto na esfera do real soacute podem ser encontrados unidos pois soacute sua uniatildeo ocasiona o primeiro ser o Ser verdadeiramente ser40 Poreacutem antes da mistura como assegura Proclo eacute necessaacuterio que tais princiacutepios existam em si e por si mesmos ainda que sua accedilatildeo soacute se realize na mistura Mas antes de passar

33 Cf BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840 p 44 34 Cf BEZERRA op cit 2006 p 120 35 COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995 p 60 36 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 159 37 Cf Ibid proposiccedilatildeo 90 38 Cf BERGER op cit 1840p 41 39 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 90 40 Cf COSTA Op cit 1995p 61

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

200

para o exame da mistura e sua necessidade eacute preciso discorrer sobre o Ilimitado

Sendo o Limite responsaacutevel pela estabilidade e unidade do ser o Ilimitado ou apeiacuteron diz respeito agrave potecircncia (dynamis) Eacute ele que possibilita o sair da unidade para a multiplicidade por ser uma potecircncia geradora sendo imagem da fecundidade do Uno De acordo com Berger o ilimitado eacute anaacutelogo ao muacuteltiplo e ao outro41 Semelhante ao Limite ainda que o Ilimitado exista substancialmente diferente e separado de qualquer mistura ele natildeo se manifesta separado do seu oposto pois ao ser indeter-minaccedilatildeo necessita de um objeto pelo qual ocorre sua manifestaccedilatildeo Ressaltando entatildeo o caraacuteter de inseparabilidade destes princiacutepios nos seres Caram assevera que ldquoLa ilimitacioacuten nunca existe apartado del liacutemite liacutemite ilimitacioacuten y su combinacioacuten reaparecen en todos los niveles de la realidadrdquo42 Desta feita o que se evidencia eacute que toda existecircncia na esfera inteligiacutevel assim como o que vem depois dela soacute eacute compreendido atraveacutes desses dois princiacutepios

Limite e Ilimitado por serem os primeiros derivados do Uno engendram a esfera Inteligiacutevel e consequentemente toda diversidade dos seres Isto ocorre porque mesmo que o Uno soacute produza unidades tais unidades se singularizam mediante a accedilatildeo do Limite que por sua vez soacute pode atuar no sentido de causar novos seres atraveacutes da accedilatildeo do Ilimitado E o Ilimitado ainda que relativo agrave potecircncia geradora soacute se manifesta quando presente nos seres ou seja quando sofre a do limite43 Eacute portanto partindo do Limite e do Ilimitado que todas as realidades sejam da esfera corpoacuterea ou incorpoacuterea vem agrave existecircncia poreacutem o limite que se encontra nos seres natildeo eacute um Limite puro e com o Ilimitado acontece o mesmo Tem-se agora a triacuteade que compotildee o universo Limite Ilimitado e Mistura

Os dois princiacutepios natildeo se manifestam na esfera do real em sua substacircncia pura o que os leva a dar origem a um terceiro que eacute na verdade a siacutentese dos seus antecessores Assim o terceiro termo como elemento de mediaccedilatildeo e siacutentese do que vem anteriormente estaacute presente em todas as relaccedilotildees triaacutedicas No caso de peacuteras e apeiacuteron tem-se a mistura que na filosofia procleana aparece como o verdadeiro ser Eacute portanto no Ser verda-deiro que a unidade caracteriacutestica do Primeiro princiacutepio eacute salvaguardada

41 Cf BERGER op cit 1840p 41 42 CARAM op cit 2014 p 114 43 Cf PROCLUS op cit 1995 proposiccedilatildeo 92

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

201

sem que a diversidade do que vem em seguida seja posta em xeque44 No entanto como jaacute mencionado o reino divino ou seja das Heacutenadas tambeacutem eacute formado atraveacutes dos dois princiacutepios Desta maneira a diversidade dos seres para ser compreendida deve ser analisada nestes dois elementos a saber nas Heacutenadas e no Ser verdadeiramente ser pois eles natildeo satildeo apenas manifestaccedilotildees do Uno mas dos princiacutepios pelo qual satildeo formados

3 A origem da diversidade dos seres

O Ser como siacutentese de limite e ilimitado mesmo que encerre em si a unidade apresenta os dois princiacutepios em relaccedilatildeo pondo em evidecircncia a dualidade que adveacutem de seus componentes45 A dualidade faz do primeiro ser como tudo o que vem em seguida uma triacuteade que mesmo sendo encabeccedilada pelo Ser tem em sua substacircncia Identidade e Diferenccedila Logo o Ser nesta perspectiva se apresenta como uma unidade de contrapo-siccedilotildees dado que natildeo possuir somente o Limite e Ilimitado como perten-centes a si mas tambeacutem Identidade e Diferenccedila o que leva a ter em sua constituiccedilatildeo ser e natildeo-ser46 Eacute importante observar poreacutem que Platatildeo jaacute havia apresentado um natildeo-ser que natildeo dizia respeito a um inexistente

Platatildeo no diaacutelogo Sofista ao investigar a natureza do Ser chega agrave conclusatildeo de que tudo pela participaccedilatildeo eacute ser e simultaneamente natildeo-ser Para tanto considera que o Ser pode ser participado por inuacutemeros gecircneros dos quais o fundador da Academia lista movimento repouso diferente e idecircntico O sentido do ser e natildeo-ser ocorre porque todos os gecircneros satildeo seres pela participaccedilatildeo no Ser e ao mesmo tempo satildeo natildeo-ser por serem diferentes dele47 Com este raciociacutenio Platatildeo chega agrave tese de que o natildeo-ser natildeo eacute pura nulidade sendo portanto algo diferente do Ser embora participe dele48 Proclo segue uma teoria semelhante Nos Elementos de Teologia o Bizantino classifica todas as coisas em unas unas

44 Cf CARAM op cit 2014 p 114-115 45 De acordo com o Diadoco o ser por caracterizar-se como misto de limite e ilimitado tem em si estas duas caracteriacutesticas que nele satildeo indissociaacuteveis Eacute dito ldquoSrsquoil a une infinite puissance il est eacutevidemment infini et sous ce rapport il est forme drsquoinfini Srsquoil est indivisible et semblable agrave lrsquoum sous ce rapport il a parta u deacuteterminatrdquo PROCLUS op cit 1995 Proposiccedilatildeo 89 46 Cf CARAM op cit 2014 p 114 47 Sofista 255e-256e 48 Eacute necessaacuterio para Platatildeo que todos os gecircneros participem do Ser sob a pena de sua natildeo existecircncia Neste sentido ao passo que todos os outros gecircneros satildeo ser pela participaccedilatildeo o Ser natildeo participa de nenhum outro gecircnero pois ele eacute causa e se participasse de algo mais seria diferente de si mesmo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

202

e natildeo-unas e natildeo-unas e unas de acordo com a participaccedilatildeo na unidade Ao fazer isto ele natildeo considera aquilo que eacute denominado como natildeo-uno como nada49 de modo a somente estabelecer uma diferenccedila entre o que eacute pura unidade e o que de alguma maneira participa da multiplicidade Platatildeo sobre o sentido da negaccedilatildeo em casos como o do natildeo-ser e natildeo-uno esclarece

Estrangeiro Quando dizemos natildeo-ser nos referimos suponho natildeo a algo que seja o oposto do ser mas somente a algo diferente [] Portanto quando nos disserem que o negativo significa o oposto discordaremos Somente admitiremos que a partiacutecula natildeo indica algo diferente das palavras agraves quais serve de prefixo ou melhor diferente das coisas agraves quais os nomes que se seguem agrave negaccedilatildeo satildeo aplicados50

Platatildeo ainda no Sofista assegura que a natureza do Diferente eacute fragmentada pois quando manifesta nos seres natildeo se revela como diferenccedila Isto significa que o Diferente quando buscado em algo que eacute analisado por si mesmo se mostra como seu contraacuterio ou seja como idecircntico fato que soacute natildeo ocorre quando ponderado por meio da negaccedilatildeo Como exemplo tem-se o momento que objetiva investigar o diferente do branco e para esta razatildeo passa a investigar o preto Este por sua vez natildeo soacute o seu diferente mas o seu oposto ou seja o preto quando visto fora de sua relaccedilatildeo com o branco natildeo aparece como diferente dele mas como idecircntico a si mesmo Desta feita a diferenccedila ao ser estudada nas coisas natildeo se encontra como tal jaacute que o que se manifesta eacute o ser da coisa investigada O sentido do Diferente soacute eacute alcanccedilado quando na busca por ele natildeo se predica os atributos daquilo que se entende por diferente mas o anuncia mediante a negaccedilatildeo

Ao buscar a natureza do diferente se chega ao Idecircntico devido o caraacuteter positivo da afirmaccedilatildeo de sorte que o Diferente soacute pode ser compreendido na negaccedilatildeo Deste modo em Proclo ao estudar a triacuteade que corresponde ao Ser Identidade e Diferenccedila levando em consideraccedilatildeo que Identidade e Diferenccedila satildeo inerentes ao Ser a causa da diferenccedila entre os seres se revela como o princiacutepio do Limite dado que ele eacute quem daacute singularidade atraveacutes do ato de determinar Proclo sobre o

49 A unidade para Proclo eacute o que faz existir todas as coisas neste sentido negar a unidade do que quer que seja significaria negar a existecircncia da coisa Quando o Diadoco todavia se refere ao natildeo-uno ele segue a mesma linha de raciociacutenio que Platatildeo quando se refere ao natildeo-ser 50 Sofista 257b-c

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

203

papel do Limite argumenta ldquo[] pero el liacutemite define circunscribe y situacutea cada cosa en sus propios confines [] de suerte que cada uno de los seres tiene una cierta naturaleza una definicioacuten una propiedad y un orden propios por el primer liacutemiterdquo51 Tornado clara a correspondecircncia do Limite na singularidade e particularizaccedilatildeo dos seres tem-se a seguinte questatildeo se eacute o Limite que daacute singularidade ao ser qual o papel do Ilimitado

O Ilimitado natildeo diz respeito ao estado dos seres mas de sua potecircncia Neste sentido Proclo assegura que o grau de potencialidade eacute proporcional ao de Unidade Esta potecircncia no ser natildeo eacute pura pois por ordem de necessidade participa do Limite Logo se pode dizer que por ser potecircncia ela soacute existe atraveacutes daquilo que jaacute estaacute em ato O Diadoco menciona assim dois tipos de potecircncias as infinitas e as finitas sendo as infinitas aquelas que estatildeo nos seres que tem maior participaccedilatildeo no limite O Sucessor Platocircnico no entanto chama atenccedilatildeo ao fato de que apesar de se falar em potecircncias infinitas estas soacute o satildeo para os seres inferiores pois para o ser de potecircncia infinita e para os seus superiores tais potecircncias natildeo satildeo infinitas Isto se daacute porque os inferiores natildeo conseguem compreender a totalidade dos seres que o satildeo superiores jaacute o ser ao qual a potecircncia lsquoinfinitarsquo pertence sabe seu limite assim como o sabem os que lhe satildeo superiores ou seja uma potecircncia soacute aparece como infinita para os seres inferiores que natildeo conseguem compreender seus limites52

O Ilimitado na qualidade de potecircncia proporciona a saiacuteda do Uno em direccedilatildeo agrave multiplicidade provocando a comunhatildeo e conexatildeo entre tudo que existe Pois eacute a potecircncia geradora ao ser indeterminada ou seja natildeo tendo nenhuma caracteriacutestica especiacutefica que perpassa todas as coisas estando portanto presente em todas Ao estar presente em tudo daacute a possibilidade de reunificaccedilatildeo de tudo o que existe Isto posto a identidade pode ser analisada em dois sentidos 1) como potecircncia que atravessa todos os seres dando a todos um caraacuteter comum e 2) como identidade dos seres consigo mesmos O primeiro sentido eacute oriundo do Ilimitado o segundo do Limite que particulariza cada ser Logo o duplo caraacuteter da identidade torna possiacutevel a percepccedilatildeo de que ainda que opostos Identidade e Diferenccedila natildeo se anulam

51 PROCLO Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999 XLII13P 20 - 25 52 Cf PROCLO op cit proposiccedilatildeo 91 93

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

204

A diversidade aparece na hipoacutestase inteligiacutevel mediante a accedilatildeo dos princiacutepios do limite e do ilimitado que fazem da potecircncia que sai do Uno uma unidade delimitando-a e singularizando-a frente ao todo Fica todavia a questatildeo porque haacute diferenccedilas entre os seres que satildeo particularizados pela accedilatildeo dos dois princiacutepios Com a explicaccedilatildeo da diferenccedila como parte integrante do ser fica claro que a diferenccedila tem sua primeira expressatildeo nele porque o limite determina aquilo que jaacute eacute pela possibilidade ou seja age como uma atualizaccedilatildeo Os princiacutepios satildeo pois responsaacuteveis pela forma natildeo pela diversidade da multiplicidade propriamente dita Logo se o Ser eacute o primeiro componente do inteligiacutevel soacute resta recorrer ao primeiro elemento incorpoacutereo ou seja elevar a anaacutelise para o plano divino jaacute que o inteligiacutevel eacute a consumaccedilatildeo daquilo que jaacute existe como causa no divino

De fato toda multiplicidade Proclo repete enquanto tal faz tudo dessemelhante do Uno por consequecircncia ela eacute derivada do Uno natildeo diretamente mas atraveacutes de um princiacutepio de mediaccedilatildeo Este princiacutepio se assemelha ao Uno enquanto unidade que engendra certa multiplicidade particular e se assemelha agrave multiplicidade enquanto possui as caracteriacutesticas de modo arquetiacutepico 53

As Heacutenadas ou unidades divinas satildeo este princiacutepio e portanto a primeira multiplicidade Elas natildeo possuem poreacutem atributos de forma que esta passagem soacute pode ser constatada numericamente Assim a multiplicidade surge na proacutepria realidade divina uma vez que as Heacutenadas satildeo determinaccedilotildees divinas e como tal cooperam com o Uno que estaacute acima de toda ordem na produccedilatildeo dos seres Consequen-temente do Uno os seres recebem sua existecircncia e das Heacutenadas seus predicados atraveacutes da participaccedilatildeo Sobre isto eacute dito ldquoasiacute es la heacutenade la que impone su propio caraacutecter a los existentes participantes y despliega existencialmente en el uacuteltimo la cualidad que eacutel mismo posee supra-existencialmente54 Por conseguinte toda diversidade existente na esfera do real jaacute se encontra nas Heacutenadas de maneira germinal Agrave vista disto para cada Heacutenada participaacutevel existe um ser participante o que

53 ldquoDe fait toute multipliciteacute Proclus le reacutepegravete est en tant que telle tout agrave fait dissemblable de lrsquoUn par conseacutequent elle deacuterive de lrsquoUn non directement mais agrave travers un principe de meacutediation Ce dernier ressemble agrave lrsquoun en tant qursquoil est lrsquouniteacute qui engendre cette multipliciteacute particuliegravere et ressemble agrave la multipliciteacute en tant qursquoil en possegravede les caractegraveres de faccedilon archeacutetypiquerdquo COSTA Op cit 1995p 87 54 PROCLO op cit proposiccedilatildeo 137

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

205

proporciona o desenvolvimento da caracteriacutestica fundamental de cada seacuterie55

A diversidade dos seres portanto na esfera incorpoacuterea natildeo se trata da accedilatildeo do movimento de geraccedilatildeo como acontece na realidade corpoacuterea A diversidade nasce como realizar-se daquilo que jaacute existe como causa nas Heacutenadas por intermeacutedio da accedilatildeo dos princiacutepios do Limite e Ilimitado Logo natildeo se pode dizer que haacute uma mudanccedila nos seres no domiacutenio da inteligibilidade mas uma passagem da potecircncia ao ato possibilitada pelo mister de limite e ilimitado Desta forma o Uno por ser causa Suma daacute existecircncia a tudo e as Heacutenadas pela participaccedilatildeo daacute os atributos que jaacute existem nelas mesmas em forma de causa Quanto aos princiacutepios do Limite e Ilimitado a eles cabe o papel de manifestar tais atributos na medida em que delimitam o ser singularizando-o Com isso tais seres seratildeo idecircnticos agrave mocircnada de sua ordem e agrave totalidade das coisas por possuiacuterem unidade e tambeacutem satildeo diferentes por sua particularizaccedilatildeo Tal diferenccedila contudo soacute pode ser percebida quando analisada a totalidade dos seres

Conclusatildeo

Ante o exposto o que pode ser concluiacutedo eacute que ainda que o sistema procleano seja regido por multiplicaccedilatildeo pela semelhanccedila pois eacute do Uno que toda multiplicidade tem origem isto soacute eacute possiacutevel porque seu sistema consiste em uma trama de relaccedilotildees Ocorre que o movimento de processatildeo natildeo diz respeito a um movimento ontoloacutegico isto eacute natildeo se trata de uma saiacuteda da unidade em direccedilatildeo agrave multiplicidade por meio de uma sucessatildeo de eventos O que pode ser percebido quando eacute dito que natildeo haacute um antes ou depois relativo aos momentos da processatildeo O fato de natildeo existir um antes ou depois no movimento de processatildeo todavia natildeo implica em uma estabilidade no sistema do Bizantino pelo contraacuterio seu sistema eacute marcado pelas relaccedilotildees entres os termos Sendo por meio das triacuteades que tal relaccedilatildeo adquire dinamicidade

Assim se por um lado a realidade supra-sensiacutevel eacute marcada pela imobilidade com exceccedilatildeo da Alma que eacute automotora por outro ela tambeacutem eacute marcado por triacuteades que permanecem em constante relaccedilatildeo De modo que a relaccedilatildeo dialeacutetica existente entre os termos das triacuteades eacute o que possibilita a origem da diferenccedila na hipoacutestase inteligiacutevel dando a ela

55 Op cit proposiccedilotildees 131 135

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

206

um caraacuteter dinacircmico que lhe possibilita atributos aleacutem da unidade e bondade Porquanto ainda que a imobilidade esteja presente na realidade supra-sensiacutevel no sentido de natildeo existir um movimento de geraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre os princiacutepios oriundos diretamente do Uno peacuteras e apeiacuteron possibilita tanto a passagem da unidade agrave multiplicidade quanto a diversidade de seres existente Ou seja eacute a relaccedilatildeo dinacircmica que permite a existecircncia do diferente e ao passo que proporciona o diferente viabiliza tambeacutem o idecircntico

Logo o que se pode concluir eacute que no que concerne agrave realidade sensiacutevel toda a diversidade adveacutem do movimento seja o de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seja o de deslocamento jaacute na realidade supra-sensiacutevel a diversidade eacute oriunda das relaccedilotildees Considerando que eacute na relaccedilatildeo dos princiacutepios que constitui os seres que os predicados passam da potecircncia ao ato conservando caracteriacutestica dos princiacutepios que o constitui Neste sentido todo ser eacute ao mesmo tempo o resultado de seus princiacutepios e algo diferente deles De modo que eacute na relaccedilatildeo que o Outro e o Mesmo tecircm existecircncia sendo tambeacutem por ela que eacute possiacutevel chegar natildeo soacute ao ser em particular mas a totalidade dos seres

Referecircncias Bibliograacuteficas

BERGER A Proclus exposition de sa doctrine Paris Imprinebiz de Bourgogne 1840

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2006

CARAM Gabriela de los Aacutengelos La continuidad ontoloacutegica en el pensamiento de Proclo THEacuteMATA Revista de Filosofiacutea Ndeg 49 Enero-Junio 2014 pp 105-125 Disponiacutevel em lthttpinstitucionalusesre vistasthemata49estudio_6pdfgt Acesso em 09 Jul 2015

COSTA Cristina DrsquoAncona Recherches sur le liber de causis Paris Librairie philosophique J VRIN 1995

REALE Giovanni Plotino e o Neoplatonismo histoacuteria da filosofia grega e romana ndash vol III Traduccedilatildeo de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2008

PROCLUS Eacuteleacutements de Theacuteologie Traducion introducion et notes par Jean Truillard ndash Paris Aubier 1995

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 189-207 2013

207

________ Lecturas del Craacutetilo de Platoacuten Edicioacuten de Jesuacutes M Aacutelvarez Hoz Aacutengel Gabilondon Pujol y Joseacute M Garciacutea Ruiz Madrid Akal 1999

PLATAtildeO Parmecircnides In Diaacutelogos IV Parmecircnides (ou formas) Poliacutetico (ou da realeza) Filebo (ou do prazzer) Liacutesis (ou da amizade) Traduccedilatildeo textos complementares e notas de Edson Bini Bauro SP EDIPRO 2009

__________ Sofista In Diaacutelogos I Teeteto (ou sobre o conhecimento) Sofista (ou do ser) Protaacutegoras (ou sofista) Traduccedilatildeo textos complemen-tares e notas Edson Bini ndash Bauru SP EDIPRO 2007

SILVA Francisca Galileacuteia da AFLATUN Trajetoacuteria e caracteriacutesticas de Platatildeo na filosofia aacuterabe Kairoacutes Revista Acadecircmica da Prainha Fortaleza v9 n1 Jan-Jun 2012

TROUILLARD Jean La mystagogie de Proclos Paris Les Belles Lettres 1982

Francisca Galileacuteia Pereira da Silva Doutora pela Universidad Complutense de Madrid

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza soeudaimoniahotmailcom

Jan Gerard Joseph ter Reegen Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Professor emeacuterito da Universidade Estadual do Cearaacute e Coordenador de Pos-Graduaccedilatildeo e Extensatildeo da FCF

jangjtrgmailcom

Suelen Pereira da Cunha Mestranda pela Universidade Federal do Cearaacute

suelenldp2011gmailcom

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

208

ENSAIO

AS FONTES MIacuteSTICAS E COSMOLOacuteGICAS DO ldquoCASTELO INTERIORrdquo DE TERESA DrsquoAacuteVILA

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Resumo

Na obra Castelo Interior ou Moradas Teresa de Jesus miacutestica do Renascimento espanhol encarou a tarefa de descrever suas experiecircncias extaacuteticas Semelhante a outros miacutesticos natildeo o poderia fazer sem interpretar e mediatizar uma experiecircncia que eacute supralinguiacutestica Por isso recorreu ao simbolismo Comparou a alma a sete castelos ou globos concecircntricos de cristal ou diamante Esses castelos simbolizam as etapas da ascensatildeo da alma O Castelo Interior eacute ldquoa aacutervore da vida que estaacute plantada nas mesmas aacuteguas vivas que eacute Deusrdquo (1M 21) Eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a cabala mais especificamente com a literatura judaica conhecida como Hechalot (Palaacutecios)

Palavras-chave Teresa de Jesus Miacutestica Renascentista Moradas Hechalot

1 Introduccedilatildeo

Santa Teresa de Jesus ou simplesmente Santa Teresa DrsquoAacutevila (1515 ndash 1582) miacutestica carmelita e escritora foi uma das mais eminentes contem-plantes do Renascimento espanhol A reformadora do Carmelo por moti-vos de obediecircncia agrave autoridade da igreja enfrentou a tarefa de colocar por escrito seus ecircxtases com o objetivo de instruir as monjas que estavam sob sua tutela a respeito do caminho interior para alcanccedilar a uniatildeo miacutestica Ela proacutepria definiu seu empenho como difiacutecil quase impossiacutevel porque nas operaccedilotildees iacutentimas da alma se adere agrave secreta ldquolinguagem de Deusrdquo Natildeo sabendo nem como comeccedilar sua empreitada Teresa acreditou ter recebido de Deus a inspiraccedilatildeo de considerar a alma como um castelo1 de diamante

1 Castelo Interior ou Moradas eacute sua obra mestra escrita em 1577 cinco anos antes da morte de Teresa

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

209

ou de cristal com muitos aposentos da mesma forma que no ceacuteu haacute muitas moradas (1M 11)

A alma humana eacute considerada agrave maneira de sete moradas ou globos concecircntricos de fino cristal ou diamante que marcam as etapas progres-sivas do desenvolvimento miacutestico O progresso espiritual descrito por meio das sete moradas resume as trecircs etapas principais da vida interior e da oraccedilatildeo

Trecircs das moradas enfocam o que se pode fazer para avanccedilar ateacute as moradas interiores nas quais estaacute Deus Exigem o desenvolvimento do amor ao proacuteximo da renuacutencia a julgar os outros do conhecimento de si da humildade do processo de interiorizaccedilatildeo e ativaccedilatildeo do desejo por Deus

A quarta eacute uma etapa de transiccedilatildeo na qual se comeccedila a responder ao chamado de Deus e eacute quando Ele comeccedila a assumir o controle de tudo Nas moradas mais interiores Deus purifica a alma cada vez mais e a vai tornando a Sua semelhanccedila ateacute a etapa do matrimocircnio espiritual

A quinta morada eacute a da santidade A esse ponto Teresa dedica quase a metade do Castelo Interior pois essas etapas mais profundas requerem orientaccedilatildeo mais cuidadosa A transformaccedilatildeo interior estaacute cada vez mais intensa e soacutelida e o coraccedilatildeo vai ficando sempre mais inundado pela radiante luz divina

Na sexta morada Teresa disserta sobre as provas exteriores e interiores acerca dos trabalhos os obstaacuteculos e as adversidades agrave santificaccedilatildeo que satildeo cada vez mais numerosos fortes e sutis e exigem maior capacidade de discernimento

A uacuteltima morada a mais interior eacute diferente de todas pois nesse estado acontece a uniatildeo miacutestica Ali estaacute Deus com quem a alma se une pois fica cheia de luz tendo deixado para traacutes o democircnio na forma de vaacuterios animais ferozes e peccedilonhentos (4M 19) Haacute uma fusatildeo entre a alma e a Luz divina Eacute o matrimocircnio miacutestico

[] eacute como se a aacutegua caindo do ceacuteu em um rio ou fonte onde estiver toda a aacutegua jaacute natildeo se pode separar nem distinguir qual eacute a aacutegua a do rio ou a que caiu do ceacuteu (7M 24)

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

210

2 Os limites da linguagem humana

Michael Gerli nos mostra que muitas metaacuteforas espirituais especial-mente as arquitetocircnicas se tornaram populares na espiritualidade euro-peacuteia precisamente por seu caraacuteter mnemoteacutecnico2 que as tornava atraentes (GERLI 1982 p 154-163) Eacute notoacuterio que isso ocorreu com a metaacutefora usada por Teresa pois esta pedia agraves filhas espirituais que o trouxessem sempre agrave memoacuteria (1M 26 7M 39)

Agrave primeira vista o esquema simboacutelico usado por Teresa parece original contudo eacute impossiacutevel expressar literariamente uma experiecircncia dessa natureza sem recorrer aos siacutembolos disponiacuteveis no contexto cultural e religioso no qual o miacutestico estaacute inserido

Conforme Barbara Kurtz a linguagem dos miacutesticos natildeo pode transcrever uma experiecircncia sem interpretaacute-la e mediatizaacute-la por mais que se lute contra os limites da linguagem humana incapaz de abordar a transcendecircncia (KURTZ 1992 p 32)

Nesse sentido Teresa confessa natildeo saber como expressar a miste-riosa vivecircncia miacutestica que teve por isso eacute que se utiliza de metaacuteforas O castelo interior tal como o descreve Teresa eacute tanto uma figura de grande beleza plaacutestica quanto algo muito faacutecil de recordar Portanto deve pertencer ao contexto da autora Por ser uma metaacutefora entretanto pouco usada torna-se difiacutecil rastrear as possiacuteveis origens desse simbolismo

O contexto cultural no qual o miacutestico vive ajuda a dar forma simboacutelica agrave sua experiecircncia transcendente que eacute em si supralinguiacutestica O ecircxtase eacute por definiccedilatildeo inefaacutevel por isso o miacutestico sempre recorre a metaacuteforas que satildeo comuns em seu ambiente cultural para explicitar de alguma maneira o que aconteceu nas fronteiras espaciotemporais da razatildeo e da linguagem

Sendo assim haacute o seguinte problema de onde Teresa tira o simbo-lismo com o qual descreve a experiecircncia miacutestica Seus estranhos castelos concecircntricos natildeo pertencem agrave tradiccedilatildeo cristatilde ocidental Em qualquer outro escrito de espiritualidade encontramos o avanccedilo miacutestico da alma claramente estruturado ao longo de sete moradas (ou castelos) cada vez mais interiores

2 Teacutecnica de estimulaccedilatildeo da memoacuteria sinocircnimo de arte de memorizaccedilatildeo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

211

3 Busca das fontes Teresianas

A busca miacutestica da uniatildeo com Deus foi simbolizada tradicional-mente por uma viagem um trajeto percorrido pela alma Isso faz parte de um conjunto de siacutembolos religiosos adotados por cristatildeos judeus e mulccedilumanos ao longo da histoacuteria Muitas tradiccedilotildees mencionam um itineraacuterio e um desejo intenso da alma por Deus Falam da entrega e da purificaccedilatildeo da renuacutencia e do abandono resultantes da uniatildeo miacutestica

Gaston Etchegoyen propotildee que Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna ambos autores muito apreciados pela Carmelita sejam as princi-pais fontes para o Castelo Interior (ETCHEGOYEN 1923 15) Mas o proacuteprio Etchegoyen admite que os esboccedilos de ambos natildeo satildeo suficientes para explicar os pormenores do siacutembolo usado por ela

Francisco de Osuna se limita a um esquema muito restrito agraves alegorias medievais no qual os inimigos tradicionais (a carne o mundo e o democircnio) tentam penetrar o castelo da alma Bernardino Laredo com seu modo de compreender a civitas sancta assentada em um campo quadrado de fundamento de cristal com muros de pedras preciosas e com um ciacuterio pascal no centro que simboliza Cristo eacute mais distante ainda do esquema teresiano

Outros propotildeem como antecedentes teresianos os romances de cavalaria do Renascimento espanhol que a Santa admite ter lido com grande paixatildeo juvenil Quando examinamos esses livros somos forccedilados a concluir que eles natildeo nos datildeo a chave do siacutembolo imaginado pela Monja de Aacutevila Em nenhum romance da eacutepoca os castelos satildeo sete vezes concecircntricos nem celebram a uniatildeo teopaacutetica3 em seu recinto mais interno Nem na arquitetura dos castelos espanhoacuteis os quais ainda se podem visitar constam de sete moradas cada vez mais interiores (PEERS 1951 p 17)

4 Recurso agrave miacutestica judaica

A fase primitiva da miacutestica judaica antes de se cristalizar na Cabala medieval que eacute a mais longa e se estende desde o seacuteculo I aC ateacute o seacuteculo X eacute conhecida indistintamente como a tradiccedilatildeo da Merkavah ou miacutestica Carruagem ou do Trono de Deus A literatura da Merkavah se desenvolveu com suporte em especulaccedilotildees sobre visotildees profeacuteticas do Antigo Testamento O termo hebraico merkabah refere-se ao trono-

3 Sensiacutevel agrave divina influecircncia ser profundamente afetado por Deus

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

212

carruagem de Deus na visatildeo de Ez 1 O corpus principal da literatura Merkabah foi composto no periacuteodo de 200-700 dC

Na fase mais antiga o visionaacuterio o miacutestico era arrebatado geral-mente ateacute agraves esferas celestes e vislumbrava Deus como rei sentado em um trono sustentado por uma carruagem em um firmamento de cristal rodeado de raios com querubins e quatro seres vivos junto a Ele

A primeira apresentaccedilatildeo da escala completa da Merkavah a miacutestica da carruagem do Senhor aparece nos escritos visionaacuterios conhecidos como os livros de Hechalot Esses escritos consistem em descriccedilotildees Hechalot salas o palaacutecios celestiais O desejo mais profundo do miacutestico era alcanccedilar a sala do trono durante a ascensatildeo aos ceacuteus para contemplar o esplendor da majestade de Deus A literatura Hechalot dedica-se a discutir os detalhes desses ceacuteus agraves vezes em conexatildeo com as tradiccedilotildees relacionadas com a apocaliacuteptica dos ciacuterculos de Henoque (SCHOLEM 1965 p 9-13)

Para alguns estudiosos a literatura Hechalot eacute um gecircnero de textos esoteacutericos e apocaliacutepticos judaicos que se estendem ateacute o iniacutecio da Idade Meacutedia Os sete Hechalot ou sete ceacuteus fazem parte da cosmologia religiosa encontrada nas grandes religiotildees como o judaiacutesmo o hinduiacutesmo e o islamismo bem como em algumas religiotildees menores como o hermetismo e gnosticismo Segundo essa cosmologia o trono de Deus estaacute acima do seacutetimo ceacuteu

Vaacuterias religiotildees atribuem ao nuacutemero sete a perfeiccedilatildeo uacuteltima tampouco a miacutestica judaica o ignorou estaacute em obras como os Sete Hechalot ou Sete Palaacutecios a que o israelita recorria simbolicamente para falar do arrebatamento do vidente ateacute ascender ao Trono de Deus conforme o texto do Sefer Hechalot4 ou Terceiro Livro de Henoque muito considerado pela cabala judaica Essa obra se mostra como tendo sido escrita no seacuteculo II dC mas suas origens soacute podem ser rastreadas ateacute o seacuteculo V O autor se faz passar pelo Rabi Ismael o qual teria se tornado um ldquosumo sacerdoterdquo depois das visotildees decorrentes de seu arrebatamento ao ceacuteu Os principais temas abordados pelo Sefer Hechalot satildeo a ascensatildeo de Henoque ao ceacuteu e sua transformaccedilatildeo no anjo Metatron (DAN 1993 p 7-24)

No final do seacuteculo XIII Moiseacutes de Leoacuten compilou uma obra atribuiacuteda ao rabino Simeon ben Yohai que viveu na Palestina no seacuteculo II

4 Sefer significa livro e Hechalot quer dizer Palaacutecios ou Templos

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

213

Na citada obra conta-se uma experiecircncia visionaacuteria do suposto rabino no momento em que a alma dele se libera momentaneamente do corpo e experimenta una revelaccedilatildeo magniacutefica sob a forma de sete palaacutecios do paraiacuteso e em contrapartida sete palaacutecios do inferno Isso significa que ainda existe um sistema de siacutembolos essenciais dos ensinamentos dos Hechalot unido a novas ideias desenvolvidas posteriormente com origens nas especulaccedilotildees sobre a merkavah ou carruagem do Senhor

A obra compilada por Moiseacutes de Leoacuten recebeu o nome Zoha ou Livro do Esplendor o grande comentaacuterio miacutestico judaico que compendiou a Cabala No Zohar os sete palaacutecios estatildeo povoados de anjos que irradiam luz Em contraste com o objetivo dos primeiros miacutesticos da merkavah que era ver a sala do trono de Deus o desejo do miacutestico apresentado pelo Zohar eacute chegar a uma comunhatildeo com Deus ou seja a uma fusatildeo entre as vontades divina e humana que se realiza no ecircxtase e eacute simbolizada no ldquobeijo do Amorrdquo Conforme o Zohar o beijo que une a alma a Deus eacute descrito no seacutetimo palaacutecio e sua intensidade eacute tal que pode extrair a alma do corpo e levaacute-la para Deus provocando a morte fiacutesica

Santa Teresa tambeacutem menciona como o Zohar o beijo com que o Rei divino consuma o matrimocircnio espiritual na seacutetima morada de seu Castelo Interior Refere-se tambeacutem a experiecircncias extaacuteticas intensas nas quais a alma parece ser arrebatada do corpo e raptada ateacute uma comunhatildeo com Deus Teresa caracteriza essas experiecircncias como suficientes para levar o miacutestico agrave morte (7M 25 36)

5 Influecircncias da cosmologia aristoteacutelica

Aleacutem das fontes judaicas eacute possiacutevel encontrar outras influecircncias para o simbolismo teresiano As versotildees latinas das obras aristoteacutelicas Estavam amplamente divulgadas no contexto no qual Teresa viveu No livro De Caelo Aristoacuteteles imaginou o universo na forma de esferas concecircntricas que giram em movimento circular Este esquema coacutesmico se transformou em um siacutembolo que dava um transfundo para o caminho espiritual do ser humano (LOacutePEZ-BARALT 2010 p 180)

Salta agrave ideia de que Santa Teresa ao falar da alma na forma de sete ciacuterculos ou castelos concecircntricos alude de maneira obliqua agraves sete esferas planetaacuterias da cosmovisatildeo medieval herdada de Aristoacuteteles e da literatura de Hechalot A Carmelita estaria visualizando a alma como um reflexo microcoacutesmico do macrocosmo celestial estaria comparando as moradas espirituais natildeo somente com castelos mas tambeacutem com as

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

214

esferas do ceacuteu Nesse caso o ser humano teria dentro de si todas as esferas celestes

6 Conclusatildeo

Conclui-se que Teresa natildeo criou a formosa imagem plaacutestica dos castelos interiores Por mais inusitado que isto pareccedila agrave sensibilidade do cristatildeo ocidental ela simplesmente a elaborou em detalhes geniais a cristianizou e a adaptou aos seus fins

Igual a muitos filoacutesofos poetas e humanistas da Eacutepoca Renascen-tista miacutesticos cristatildeos foram profundamente influenciados pela literatura da Cabala no seacuteculo XIII Reconheceram na miacutestica judaica em geral um caminho seguro para compreender melhor suas experiecircncias com procedecircncia em raiacutezes miacutesticas mais antigas

Swietlicki orienta contudo a natildeo se ter a pretensatildeo de que a influecircncia da cabala judaica sobre os miacutesticos cristatildeos nos temas e siacutembolos usados por estes sejam resultado de influecircncia literaacuteria mas apenas supotildee-se que os traccedilos de cabala foram persistentes em ciacuterculos populares mesmo apoacutes a expulsatildeo dos judeus da Espanha (SWIETLICKI 1986 p 28) Dessa forma a miacutestica cristatilde teria se tornado um importante veiacuteculo para a transmissatildeo da Cabala judaica mesmo no seacuteculo XVI Eacute fato inegaacutevel entretanto a influecircncia da cabala sobre estas figuras importantes

Referecircncias Bibliograacuteficas

BENSION Ariel O Zohar o livro do esplendor Satildeo Paulo Polar Edito-rial 2006

DAN Joseph The Ancient Jewish Mysticism Tel Aviv Mod Books 1993

ETCHEGOYEN Gaston Lrsquoamour divin Essai sur les sources de Sainte-Theacuteregravese Bordeaux Feret 1923

GERLI Michael ldquoEl castillo interior y el arte de la memoriardquo Bulletin Hispanique 861-2 (1982) 154-163

KURTZ Barbara ldquoThe Small Castle of the Soul Mysticism and Metaphor in the European Middle Agesrdquo Studia Mystica XV (1992) 28-35

LOacutePEZ-BARALT Luce ldquoTeresa of Jesus and Islam The Simile of the Seven Concentric Castles of the Soulrdquo in Hilaire KALLENDORF (ed) A New Companion to Hispanic Mysticism Danvers BRILL 2010 p 175-199

PEERS Edgar Allison Study of the Spanish Mystics London SPCK 1951

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 208-215 2013

215

SCHOLEM Gershom Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and the Talmudic Tradition New York Jewish Theological Seminary of America 1965

SWIETLICKI Catherine Spanish Christian Cabala The works of Luis de Leoacuten Santa Teresa de Jesus and San Juan de la Cruz Columbia Missouri University of Missouri Press 1986

TERESA DE JESUacuteS Santa Moradas del Castillo Interior in Obras Completas Madrid Editorial Catoacutelica 1951

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

216

TRADUCcedilAtildeO

COMECcedilAM OS ERROS DOS FILOacuteSOFOS ARISTOacuteTELES AVERROacuteIS AVICENA ALGAZEL

AL-KINDI MAIMONIDES COLETADOS POR IRMAtildeO EGIacuteDIO DA ORDEM DE SANTrsquo AGOSTINHO1

Introduccedilatildeo I Vida de Egiacutedio Romano ndash Aegiacutedius Romanus

Aegiacutedius Romanus ndash Egiacutedio Romanos ndash tambeacutem conhecido por seu nome francecircs Giles de Rome nasceu em Roma em 1243

Depois de sua entrada na ordem dos Agostinianos estudou em Paris de 1269 ndash 1272 com Tomaacutes de Aquino Com Tomaacutes aproveitou o pensa-mento aristoteacutelico que comeccedilou a se afirmar nos estudos filosoacuteficos com reflexos na Faculdade Teoloacutegica da Universidade de Paris Em consequecircncia das 219 teses ligadas agrave Filosofia e Teologia aristoteacutelicas publicadas em 7 de marccedilo de 1277 e que foram consideradas levianas ou hereacuteticas e como tais em desacordo com os dados da Revelaccedilatildeo pelo bispo de Paris Etienne Tempier Egiacutedio foi obrigado a deixar Paris e por enquanto natildeo conseguiu permanecer na Universidade Em Paris produziu a sua obra poliacutetica De Regimine Principum Em 1285 Egiacutedio refutou as teses que foram condenadas pela maioria da comunidade acadecircmica da universidade parisiense e como consequecircncia lhe foi possiacutevel a sua carreira acadecircmica

A partir de 1292 Egidio assume tanto na ordem dos Agostinianos como na Igreja uma posiccedilatildeo de destaque A sua atuaccedilatildeo desenvolveu-se de modo especial na aacuterea poliacutetica do papa Bonifaacutecio VIII cujas teorias 1 Incipiunt Errores philosophorum Aristotelis Averrois Avicenna Algazelis Alkindi Rabbi Moysis A fratre Aegido collecti ord S Augustini Traduccedilatildeo elaborada a partir do texto latino publicado em Giles of Rome Errores Philosophorum Critical Text with Notes and Introduction by Joseph Koch English Translation by John O Riedl Milwaukee Wisconsin Marquette University Press 1944 Neste Trabalho soacute se apresenta a versatildeo da parte sobre Aristoacuteteles cap 1-2-3 Oportuna-mente apresentar-se-atildeo os outros autores mencionados

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

217

entraram em choque com as praacuteticas e pensamentos do Rei Philippe IV o que levou agrave uma tensatildeo profunda na Igreja do Ocidente

Egidio morreu em 1316 em Avignon Agrave sua mente fina deve o apelido ldquodoctor fundatissimusrdquo ndash doutor profundo mas em razatildeo de certa prolixidade de suas obras o chamam ldquodoctor verbo-susrdquo ndash doutor tagarela

II Autoria e data

Embora sob a autoridade de Mandonnet o texto em estudo tenha sido longamente considerado como espuacuterio estudos posteriores poreacutem dos principais mestres comprovaram a autenticidade da autoria de Egidio Aleacutem disso a comprovaccedilatildeo eacute encontrada em alguns comentaacuterios antigos como tambeacutem nas primeiras ediccedilotildees impressas em 1428 e 1581 editadas em Veneza

Uma anaacutelise da obra comprova assim Koch uma concordacircncia quanto ao estilo e conteuacutedo da Incipiunt com outros escritos do Egiacutedio Mais peso entretanto eacute atribuiacutedo agrave concordacircncia de estilo entre a Incipiunt e outras obras egidianas Cita-se entre outros os seus comentaacuterios sobre a De Generatione et corruptine a Physica que lembram imediatamente os nordm 6-7-8-12 e 14 da Incipiunt (para maiores detalhes cf Koch p XXXIV e XXXV)

E Incipiunt pertence agraves primeiras obras de Egidio e deve ser situada ao redor do ano 1268 visto que no momento em que compocircs este trabalho ele jaacute tinha completado a sua formaccedilatildeo filosoacutefica e como tudo indica tambeacutem uma parte da formaccedilatildeo teoloacutegica

O termino da obra eacute o comentaacuterio da De Generatione et corruptione que cuja data deve se situar entre 1273 e 1274

Isto leva a considerar que a obra deve ser composta ao redor do ano de 1270

III Traduccedilatildeo do Texto

Afirma-se em primeiro lugar

Capiacutetulo I Sobre a lista de erros de Aristoacuteteles

Porque de um dado errado derivam muitas consequumlecircncias de um fundamento falso o Filoacutesofo tirou muitos erros

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

218

1 Acreditou pois que nada estaacute numa determinada situaccedilatildeo em que anteriormente natildeo estava senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Avaliou portanto que soacute haveria novidade aonde tivesse uma mudanccedila propriamente dita Consequumlentemente como toda mudanccedila propriamente falando eacute o fim de um movimento natildeo poderaacute haver novidade sem um movimento precedente Deste argumento entatildeo concluiu que o movimento nunca comeccedilou porque se o movimento se iniciasse seria algo novo Mas natildeo existe coisa nova senatildeo atraveacutes de um movimento precedente Entatildeo antes do primeiro movimento houve algum movimento O que eacute incoerente

2 Aleacutem disso errou ao afirmar que o tempo nunca comeccedilou porque o tempo sempre segue o movimento Se entatildeo o movimento natildeo comeccedilou nem o tempo iniciara Pareceu-lhe que a razatildeo teria uma difi-culdade especial em relaccedilatildeo ao tempo Visto que o instante eacute sempre o fim do passado e o comeccedilo do futuro natildeo se pode falar de um primeiro momento Por isso antes de todo e qualquer momento houve algum tempo e antes de qualquer tempo dado houve um momento Entatildeo o tempo natildeo comeccedilou mas eacute eterno

3 Aleacutem disso por causa daquilo que foi dito foi obrigado a afirmar que aquilo que se move eacute eterno e que tambeacutem o mundo eacute eterno porque uma vez que natildeo haacute tempo sem movimento e nem movimento sem algo moacutevel se tempo e movimento satildeo eternos o que se move seraacute eterno e assim o mundo nunca comeccedilou Tudo isso fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica

4 E mais Foi obrigado a afirmar que o ceacuteu natildeo eacute gerado e eacute incorruptiacutevel e que nunca foi feito mas que sempre existiu Como entre os outros movimentos soacute o movimento circular eacute contiacutenuo como fica claro no VIIIordm Livro da Fiacutesica se qualquer movimento eacute eterno o circular seraacute eterno E porque a movimento circular eacute proacuteprio do ceacuteu como se prova no 1ordm livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo conclui-se da mesma forma que o ceacuteu eacute ingecircnito e que nunca foi feito Tinha ele uma razatildeo especial para dizer que o ceacuteu natildeo comeccedilou porque qualquer coisa que possui o poder de sempre existir no futuro tambeacutem teraacute o poder de ter existido sempre no passado E porque o ceacuteu natildeo termina natildeo comeccedilou a existir

5 E ainda visto que na opiniatildeo dele qualquer coisa que eacute feita eacute feita de mateacuteria preexistente assim opinou que Deus natildeo poderaacute fazer um outro mundo porque este o atual eacute feito de toda a mateacuteria Este erro tambeacutem pode ser encontrado no 1ordm Livro Sobre o Ceacuteu e o Mundo

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

219

6 Argumentou ainda que a geraccedilatildeo das coisas inferiores nunca cessaraacute como tambeacutem nunca tem comeccedilado Porque a corrupccedilatildeo antecede e segue toda a geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo antecede e segue toda a corrupccedilatildeo Por isso visto que a corrupccedilatildeo precede qualquer geraccedilatildeo e a geraccedilatildeo qualquer corrupccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel a corrupccedilatildeo e a geraccedilatildeo terem tido iniacutecio nem eacute possiacutevel elas terminarem porque a qualquer geraccedilatildeo segue a corrupccedilatildeo e a qualquer corrupccedilatildeo segue a geraccedilatildeo Se entatildeo a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo terminassem depois da uacuteltima geraccedilatildeo teria uma geraccedilatildeo e depois da uacuteltima corrupccedilatildeo uma corrupccedilatildeo Que a corrupccedilatildeo precede e segue a geraccedilatildeo ele provou pelo caminho do movimento Porque natildeo existe nada gerado sem que haja algo corrompido e desta forma a corrupccedilatildeo precede a geraccedilatildeo e tambeacutem a segue porque tudo que eacute gerado eacute corruptiacutevel e todo corruptiacutevel e corrompido por necessidade Assim tambeacutem a geraccedilatildeo precede a corrupccedilatildeo Porque nada eacute corrompido que natildeo foi gerado antes e segue a geraccedilatildeo porque a corrupccedilatildeo de um eacute a geraccedilatildeo de outro Este erro pois que a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo natildeo comeccedilam nem terminam pode se achar no 1ordm Livro de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) e de forma mais expliacutecita no Livro 2ordm

7 Ainda em razatildeo de a geraccedilatildeo neste mundo inferior acontecer pelo sol Aristoacuteteles foi obrigado de afirmar que o sol ldquonunca deixaraacute de gerar plantas e animaisrdquo como fica evidente do Livro 1ordm de De Vegetalibus (Sobre os Vegetais)

8 Ainda visto que natildeo existe novidade sem movimento anterior conforme o argumento apresentado ele errou querendo que de Deus natildeo possa proceder de forma imediata algo novo como fica claro do Livro 2ordm de De Generatione (Sobre a Geraccedilatildeo) onde diz que ldquoaquilo que permanece o mesmo sempre produziraacute o mesmordquo

9 Ainda foi obrigado a negar a ressurreiccedilatildeo dos mortos Por isso considera improvaacutevel como fica claro do Livro 1 de De Anima (Sobre a Alma) que os mortos ressurjam Porque no Livro VIIIordm da Metaphysica quer que aquilo que estaacute morto natildeo se torne vivo de novo senatildeo atraveacutes de muitos meios e se reviver natildeo revive o mesmo numericamente porque aquelas coisas cuja substacircncia se perdeu natildeo voltam as mesmas numericamente como afirma no fim do Livro IIordm de De Generatione

Natildeo tem validade que alguns tentam desculpa-lo dizendo que ele fala pela via da natureza quando acredita que nada de novo possa imediatamente proceder de Deus mas que toda coisa nova acontece por meio do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

220

10 Ainda visto que acreditou que nada de novo possa acontecer senatildeo atraveacutes do caminho do movimento e da operaccedilatildeo da natureza acreditou como se revela no Livro Iordm de Physicae (Fiacutesica) quando argumenta contra Anaxaacutegoras que um intelecto que procura separar paixotildees e acidentes da substacircncia eacute ldquoum intelecto que procura o impossiacutevelrdquo

Desta opiniatildeo parece seguir que Deus natildeo pode fazer um acidente sem substacircncia

11 Ainda visto que atraveacutes do caminho do movimento nunca haacute geraccedilatildeo de alguma coisa se natildeo houver corrupccedilatildeo de outra e que nunca eacute introduzida uma forma substancial se outra natildeo for expulsa porque a mateacuteria eacute a mesma para todas que a possuem disto se segue que natildeo haacute mais formas substanciais num composto do que em outro De fato aquele que prossegue bem neste caminho veraacute que deve ser colocada em todo composto somente uma forma substancial e assim parece ser a posiccedilatildeo do Filoacutesofo Por isso no Livro VIIordm da Metaphysica no capiacutetulo De unitate diffinitionis (Sobre a Unidade da definiccedilatildeo) afirma que as partes de uma definiccedilatildeo natildeo satildeo uno ldquoporque estatildeo num unordquo mas porque indicam uma natureza

Entatildeo se entender uma natureza composta de vaacuterias formas isto eacute toleraacutevel mas se entender uma natureza simples e que num composto haja somente uma forma isto eacute falso

12 Ele afirma ainda que onde haacute agora pacircntano e mar uma vez existiu terra seca e vice versa porque o tempo natildeo para mas eacute eterno como fica claro do Livro Iordm Meteoreorum Consequentemente tambeacutem lhe foi necessaacuterio afirmar que natildeo houve um primeiro homem nem uma primeira chuva

13 Ainda deste modo querendo proceder pela via da natureza acreditou visto que dois corpos natildeo podem existir simultaneamente no mesmo lugar como eacute revelado no Livro IVordm da Physica que era tatildeo absolu-tamente essencial ldquoper serdquo agraves dimensotildees resistir a dimensotildees e que eacute impossiacutevel as dimensotildees continuarem existindo e entretanto natildeo resistir aacutes dimensotildees

Disto se segue que Deus natildeo pode fazer que dois corpos ocupem o mesmo lugar

14 Ainda porque natildeo pertence agrave inteligecircncia o poder de se mover sem se mover em ato porque as inteligecircncias enquanto se movem satildeo colocadas na melhor disposiccedilatildeo ele afirmou que existem tantos anjos e

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

221

tantas inteligecircncias que existem mundos como fica claro no Livro XIIordm da Metaphysica

Mas a Sagrada Escritura contradiz esta posiccedilatildeo quando afirma ldquoMil milhares o serviram e miriacuteades e mais miriacuteades diante delerdquo

Capiacutetulo II Em que num sumaacuterio satildeo reunidos os erros de Aristoacuteteles

Estes entatildeo de forma sumaacuteria satildeo todos os seus erros

1 Que o movimento natildeo tem comeccedilo 2 Que o tempo eacute eterno 3 Que o mundo natildeo teve um comeccedilo 4 Que o ceacuteu natildeo foi feito 5 Que Deus natildeo poderia fazer um mundo diferente 6 Que geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo natildeo tiveram comeccedilo e natildeo teratildeo fim 7 Que o sol sempre causaraacute geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo no mundo

sublunar 8 Que nada de novo pode proceder diretamente de Deus 9 Que a ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute impossiacutevel 10 Que Deus natildeo poderaacute fazer um acidente sem a substacircncia 11 Que em qualquer composto soacute existe uma forma substancial 12 Que natildeo se pode admitir um primeiro homem e uma primeira

chuva 13 Que de maneira alguma podem existir dois corpos num mesmo

lugar 14 Que existem tantos anjos como haacute mundos Por isso concluir-

se-aacute que haacute cinquumlenta e cinco ou quarenta e sete somente

Alguns poreacutem queriam desculpar o Filoacutesofo na questatildeo sobre a eternidade do mundo Mas isto natildeo tem cabimento porque ele - para mostrar as verdades filosoacuteficas - se baseia no mencionado princiacutepio ateacute mesmo natildeo escreveu praticamente nenhum livro sobre filosofia em que natildeo coloca algo ligado a este princiacutepio

Em seguida aleacutem dos erros supramencionados alguns queriam colocar nele (a opiniatildeo) que Deus nada conhece fora de si de tal maneira que natildeo Lhe eacute conhecida este mundo inferior baseando o seu argumento nas palavras que satildeo apresentadas no XIIordm da Metafiacutesica naquele capiacutetulo Sententia Patrum (A opiniatildeo dos Padres) Mas que aqueles que afirmam isto natildeo entendem o Filoacutesofo E que natildeo eacute esta a sua intenccedilatildeo fica claro pelo que se diz no capiacutetulo De Bona Fortuna (Sobre a boa sorte) onde

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 216-222 2013

222

afirma que para Deus tanto o passado como o futuro satildeo por si conhecidos Haacute outros erros que lhe satildeo atribuiacutedos com que natildeo nos ocupamos aqui porque satildeo oriundos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea

Capiacutetulo III Em que eacute anulada aquela afirmaccedilatildeo que o Filoacutesofo eacute a base de seus erros

Todos os seus erros entretanto se algueacutem o investigar cuidadosa-mente satildeo consequumlecircncias desta sua posiccedilatildeo que no ser nada de novo acontece senatildeo por movimento anterior Poreacutem como isto eacute falso porque Deus em razatildeo de ser o primeiro agente que natildeo age como instrumento poderaacute produzir as coisas sem movimento anterior Aquele que age por natureza tambeacutem age como instrumento porque eacute do modo de ser do instrumento que move movido e necessariamente pressupotildee na sua accedilatildeo o movido A accedilatildeo entatildeo ou a produccedilatildeo do primeiro agente pode ser sem aquele movimento Criaccedilatildeo por isso natildeo eacute um movimento porque o movimento pressupotildee o moacutevel a criaccedilatildeo de fato natildeo pressupotildee nada nem eacute propriamente falando uma mudanccedila porque toda mudanccedila eacute o fim de um movimento mas como se afirma comumente ela eacute uma simples deduccedilatildeo das coisas do primeiro Qualquer coisa por isso que eacute formulada contra o iniacutecio do mundo e contra aquilo que a feacute afirma eacute totalmente sofiacutestica2

Traduccedilatildeo de

Prof Dr Jan Gerard Joseph ter Reegen

2 No capiacutetulo IV inicia-se a apresentaccedilatildeo dos erros de Averroacuteis

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

223

RESENHA

MIacuteSTICA DE OLHOS ABERTOS

METZ Johann Baptist Miacutestica de olhos abertos Traduccedilatildeo de Inecircs Antonia Lohbauer Satildeo Paulo Paulus 2013 Coleccedilatildeo Amantes do Misteacuterio 293 p 135 x 21 cm ISBN 978-85-349-3649-1

Johann Baptist Metz eacute um dos teoacutelogos catoacutelicos alematildees mais influentes do poacutes-Vaticano II Eacute membro da Diretoria do Instituto de Ciecircncias Humanas de Viena desde 1983 cofundador e editor da revista Concilium e professor emeacuterito de Teologia Fundamental na Universidade de Muumlnster Ex-aluno do teoacutelogo jesuiacuteta Karl Rahner rompeu com a Teologia Transcendental do mestre para assumir segundo assinala uma teologia arraigada na praacutexis (p191-211) Metz estaacute no centro de uma escola de Teologia Poliacutetica que exerceu intensa influecircncia sobre a Teologia da Libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina A teologia de Metz centraliza-se na atenccedilatildeo ao sofrimento pois natildeo haacute sofrimento no mundo que natildeo diga respeito ao cristatildeo ldquoComo podemos virar as costas para todo esse sofrimento e nos preocuparmos apenas com nossa salvaccedilatildeo e nossa redenccedilatildeordquo (P 16)

A obra sob comentaacuterio eacute uma coleccedilatildeo de textos mais antigos atualizados e recompilados Alguns dos ensaios foram escritos haacute deacutecadas mas suas preocupaccedilotildees ainda satildeo oportunas ou talvez muito mais importantes do que antes Isto porque conforme Metz o Cristianismo eacute cada vez mais uma exigecircncia e um estiacutemulo para uma accedilatildeo em favor de um mundo melhor e mais justo Notaacutevel eacute a maneira pela qual o A chama a atenccedilatildeo para a espiritualidade cristatilde como revoluccedilatildeo da esperanccedila Enquanto o contexto atual enfatiza o aspecto da introspecccedilatildeo da espiritualidade com suas teacutecnicas de meditaccedilatildeo de olhos fechados a Biacuteblia chama a atenccedilatildeo para um aspecto totalmente diferente a Escritura nos acorda e nos manteacutem de olhos abertos O objetivo da espiritualidade biacuteblica eacute nos encaminhar para o outro A biacuteblia nos ensina uma

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

224

espiritualidade de olhos abertos porque natildeo existe experiecircncia de Deus sem passar pelo outro o qual na maioria das vezes estaacute sofrendo por causa do que Metz chama de ldquocapitalismo predatoacuteriordquo

A primeira parte da obra ldquoPerspectivas Teoloacutegicasrdquo (P 13-49) lembra que o olhar messiacircnico de Jesus (P 19) natildeo eacute dirigido para o pecado mas para o sofrimento do outro (cf Lc 416-21) ldquoEssa sensibilidade messiacircnica ao sofrimento natildeo tem nada a ver com plangecircnciardquo mas com a miacutestica biacuteblica de justiccedila ldquopaixatildeo por Deus como empatia pelo sofrimento alheio como miacutestica praacutetica da compaixatildeordquo (P 19) situando em primeiro lugar natildeo a culpabilidade mas o sofrimento Esse eacute sentido do discurso apocaliacuteptico como tentativa de dar esperanccedila aos sofredores ldquoO apocalipse biacuteblico ldquodesvelardquo a trilha dos sofredores na histoacuteria da humanidaderdquo (P 17) Lamenta-se que os cristatildeos tenham se afastado tanto desse ponto ldquoA doutrina cristatilde da salvaccedilatildeo dramatizou a questatildeo do pecado e negligenciou a questatildeo do sofrimentordquo (P20)

Na segunda parte da obra ldquoMiacutestica do Face-a-face tentativas de aproximaccedilatildeordquo (P 53-211) Metz reuacutene textos variados no estilo de pequenas meditaccedilotildees que objetivam conduzir o leitor para o centro da feacute cristatilde a saber a abertura para Deus que leva a servir o proacuteximo

Na terceira parte intitulada ldquoUma Igreja sem interesse em aprenderrdquo (P 215-250) o Autor trata de modo muito significativo a respeito da crise na Igreja Conforme Metz ateacute mesmo cristatildeos muito engajados nas comuni-dades e na luta pela justiccedila sentem-se cada vez mais incapazes (ou sem vontade) de aprender Eacute no entanto uma igreja aprendiz (disciacutepula) sempre pronta a se abrir para outras perspectivas

Essa obra eacute sem duacutevida fruto de uma rica experiecircncia de vida do velho Teoacutelogo E uma importante contribuiccedilatildeo para o estudo da Teologia da espiritualidade cristatilde Ao fundamentar-se na exigecircncia de partir dos textos biacuteblicos e da praacutexis de Jesus o A retoma a significaccedilatildeo original e o teor teoloacutegico genuiacuteno da espiritualidade cristatilde bem como a atualidade desse tema tatildeo em moda nos nossos dias e tatildeo pouco compreendido

Kairoacutes R Acadecircmica da Prainha Fortaleza v 10 n 2 p 223-225 2013

225

Apesar de algumas paacuteginas pressuporem debates teoloacutegicos que jaacute natildeo correspondem agraves experiecircncias das geraccedilotildees recentes vale a pena ler esse livro e seguir os conselhos do velho Mestre segundo o qual uma Igreja que quer se renovar deve saber quem ela eacute e a que eacute destinada

Profa Dra Ir Aiacutela Luzia Pinheiro de Andrade NJ

Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuiacuteta de Filosofia e Teologia Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Cearaacute-UECE

Professora da Faculdade Catoacutelica de Fortaleza-FCF

Page 9: Revista Acadêmica da Prainha
Page 10: Revista Acadêmica da Prainha
Page 11: Revista Acadêmica da Prainha
Page 12: Revista Acadêmica da Prainha
Page 13: Revista Acadêmica da Prainha
Page 14: Revista Acadêmica da Prainha
Page 15: Revista Acadêmica da Prainha
Page 16: Revista Acadêmica da Prainha
Page 17: Revista Acadêmica da Prainha
Page 18: Revista Acadêmica da Prainha
Page 19: Revista Acadêmica da Prainha
Page 20: Revista Acadêmica da Prainha
Page 21: Revista Acadêmica da Prainha
Page 22: Revista Acadêmica da Prainha
Page 23: Revista Acadêmica da Prainha
Page 24: Revista Acadêmica da Prainha
Page 25: Revista Acadêmica da Prainha
Page 26: Revista Acadêmica da Prainha
Page 27: Revista Acadêmica da Prainha
Page 28: Revista Acadêmica da Prainha
Page 29: Revista Acadêmica da Prainha
Page 30: Revista Acadêmica da Prainha
Page 31: Revista Acadêmica da Prainha
Page 32: Revista Acadêmica da Prainha
Page 33: Revista Acadêmica da Prainha
Page 34: Revista Acadêmica da Prainha
Page 35: Revista Acadêmica da Prainha
Page 36: Revista Acadêmica da Prainha
Page 37: Revista Acadêmica da Prainha
Page 38: Revista Acadêmica da Prainha
Page 39: Revista Acadêmica da Prainha
Page 40: Revista Acadêmica da Prainha
Page 41: Revista Acadêmica da Prainha
Page 42: Revista Acadêmica da Prainha
Page 43: Revista Acadêmica da Prainha
Page 44: Revista Acadêmica da Prainha
Page 45: Revista Acadêmica da Prainha
Page 46: Revista Acadêmica da Prainha
Page 47: Revista Acadêmica da Prainha
Page 48: Revista Acadêmica da Prainha
Page 49: Revista Acadêmica da Prainha
Page 50: Revista Acadêmica da Prainha
Page 51: Revista Acadêmica da Prainha
Page 52: Revista Acadêmica da Prainha
Page 53: Revista Acadêmica da Prainha
Page 54: Revista Acadêmica da Prainha
Page 55: Revista Acadêmica da Prainha
Page 56: Revista Acadêmica da Prainha
Page 57: Revista Acadêmica da Prainha
Page 58: Revista Acadêmica da Prainha
Page 59: Revista Acadêmica da Prainha
Page 60: Revista Acadêmica da Prainha
Page 61: Revista Acadêmica da Prainha
Page 62: Revista Acadêmica da Prainha
Page 63: Revista Acadêmica da Prainha
Page 64: Revista Acadêmica da Prainha
Page 65: Revista Acadêmica da Prainha
Page 66: Revista Acadêmica da Prainha
Page 67: Revista Acadêmica da Prainha
Page 68: Revista Acadêmica da Prainha
Page 69: Revista Acadêmica da Prainha
Page 70: Revista Acadêmica da Prainha
Page 71: Revista Acadêmica da Prainha
Page 72: Revista Acadêmica da Prainha
Page 73: Revista Acadêmica da Prainha
Page 74: Revista Acadêmica da Prainha
Page 75: Revista Acadêmica da Prainha
Page 76: Revista Acadêmica da Prainha
Page 77: Revista Acadêmica da Prainha
Page 78: Revista Acadêmica da Prainha
Page 79: Revista Acadêmica da Prainha
Page 80: Revista Acadêmica da Prainha
Page 81: Revista Acadêmica da Prainha
Page 82: Revista Acadêmica da Prainha
Page 83: Revista Acadêmica da Prainha
Page 84: Revista Acadêmica da Prainha
Page 85: Revista Acadêmica da Prainha
Page 86: Revista Acadêmica da Prainha
Page 87: Revista Acadêmica da Prainha
Page 88: Revista Acadêmica da Prainha
Page 89: Revista Acadêmica da Prainha
Page 90: Revista Acadêmica da Prainha
Page 91: Revista Acadêmica da Prainha
Page 92: Revista Acadêmica da Prainha
Page 93: Revista Acadêmica da Prainha
Page 94: Revista Acadêmica da Prainha
Page 95: Revista Acadêmica da Prainha
Page 96: Revista Acadêmica da Prainha
Page 97: Revista Acadêmica da Prainha
Page 98: Revista Acadêmica da Prainha
Page 99: Revista Acadêmica da Prainha
Page 100: Revista Acadêmica da Prainha
Page 101: Revista Acadêmica da Prainha
Page 102: Revista Acadêmica da Prainha
Page 103: Revista Acadêmica da Prainha
Page 104: Revista Acadêmica da Prainha
Page 105: Revista Acadêmica da Prainha
Page 106: Revista Acadêmica da Prainha