REVISTA Ano 5 - Edição Nº 7 - projetoham.com.br · Estado e Poder Antônio de ... Bosi...

REVISTAREVISTA Ano 5 - Edição Nº 7Julho 2009 - R$ 15,00

Estado e Poder

Antônio de Pádua BosiCarlos MignonDemian MeloDiorge Alceno KonradDulce Portilho MacielEdmundo Fernandes DiasErika BatistaFernando Gaudereto LamasGilson DantasGlaucia Ramos KonradHélio RodriguesJosé Carlos MendonçaLuís Eduardo de OliveiraMichel Willian de AlmeidaRamiro dos ReisSonia Regina de MendonçaWaldir José Rampinelli

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História & Luta de Classes Nº 7 – Julho de 2009

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 57

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O Itamaraty e o Golpe de Estado no ChileWaldir José Rampinelli

1848: O Ano do MouroAntônio de Pádua Bosi; Edmundo Fernandes Dias

A leitura genética dos Cadernos de GramsciDemian Melo

ARTIGOS

RESENHAS

NORMAS PARA OS AUTORES

Estado e Educação Rural no Brasil: Política Pública e Hegemonia Norte-AmericanaSonia Regina de Mendonça

Relações entre Estado e Iniciativa Privada no Século XIX: Estudo de caso da Companhia União e IndústriaLuís Eduardo de Oliveira; Fernando Gaudereto Lamas

Contra o empoderamento da Aliança Nacional Libertadora, o reforço do poder de Estado com a Lei de Segurança NacionalDiorge Alceno Konrad

“Segurança para o Trabalho e as Realizações de Interesse Geral”: A busca do apoio político para o Estado Novo no Rio Grande do SulGlaucia Vieira Ramos Konrad

La lectura de Marx en clave clasista: el Si.tra.p. como órgano de expresión del Sindicato de Trabajadores dePerkins, 1973-1975 - una breve comparación con el Obrerismo Italiano de Quaderni Rossi y Classe OperaiaCarlos Mignon

Notas sobre o Estado no pensamento político de Ruy Mauro MariniJosé Carlos Mendonça

O Quadro da Subversão no Brasil nos “Anos de Chumbo”: A visão dos Órgãos de Segurança e InformaçõesDulce Portilho Maciel

Terrorismo de Estado e Operação Condor no Brasil:30 Anos do sequestro político internacional dos uruguaios em Porto AlegreRamiro José dos Reis

1986 - A Repressão Fordista no ABC PaulistaMichel Willian Zimermann de Almeida

Estado, Poder e Movimento Sindical na América Latina: O diálogo necessário com as teorias de TrotskiGilson Dantas

O Poder Gerencial no Capitalismo Contemporâneo: Nova Classe ou Novas Relações entre as Classes?Erika Batista

Estado Democrático e Social de Direito, Mística e Modo de Produção Capitalista:Uma leitura que refuta o rótulo economicistaHélio de Souza Rodrigues Júnior

Organizadores gerais deste número: Gilberto Calil (Unioeste); Demian Melo (UFF) e Lorene Figueiredo de Oliveira (UFJF)Comissão Editorial: Enrique Serra Padros (RS), Eurelino Coelho (BA), Francisco Dominguez (Inglaterra), Gilberto Calil (PR), Lorene Figueiredo (MG), Marcelo Badaró (RJ), Maria José Acedo del Olmo (SP), Mario Maestri (RS), Virgínia Fontes (RJ)Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UNT), Afonso Alencastro (UFSJ), Alessandra Gasparotto (CAVG/UFPEL); Antonio de Pádua

Bosi (UNIOESTE), Armando Boito (UNICAMP), Beatriz Loner (UFPEL), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Zacarias de Sena Júnior (UNEB), Cláudia Trindade (FIOCRUZ), Claudira Cardoso (UFRGS), Danilo Martuscelli (UNICAMP), Demian Melo (UFF), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Érika Arantes (UFF), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (RJ). Felipe Demier (UFF), Francisco Dominguez (Middlesex Universitty), Gabriela Rodrigues (RS), Gelson Rosentino (UERJ), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gilson Dantas (UEG), Gláucia Konrad (UFSM), Helen Ortiz (RS), Hélio Rodrigues (CEUB); Hélvio Mariano (UNICENTRO), Isabel Gritti (URI), Joana El-Jaick Andrade (USP), Jairo Santiago; João Raimundo Araújo (FFSD), Jorge Magasish (Bélgica), José Pedro Cabrera (UNT), José Rodrigues (UFF); Kátia Paranhos (UFU), Kênia Miranda (UFF); Lorene Figueiredo de Oliveira (UFJF), Lucelno Lacerda de Brito (PUC-SP), Luciana Lombardo Costa Pereira (UFF), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Luis Fernando Guimarães Zen (UNIOESTE) Marcelo Badaró (UFF), Maria José Acedo Del´Olmo (UNIVAP), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Michel Silva (UDESC), Nara Machado (PUCRS), Olgário Vogt (UNISC), Paulo Zarth (UNIJUÍ), Pedro Leão da Costa Neto (TUIUTI); Pedro Marinho (MAST), Renata Gonçalves (UEL), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo Gama da Costa (FFSD), Rodrigo Jurucê Gonçalves (PR); Romualdo Oliveira (USP), Ronaldo Rosas Reis (UFF); Sarah Iurkiv Ribeiro (UNIOESTE), Sean Purdy (USP), Selma Martins Duarte (UNIOESTE), Sérgio Lessa (UFAL), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Tarcísio Carvalho (UFF), Teones Pimenta de França (FSSSL) Theo Piñeiro (UFF), Valério Arcary (CEFET-SP), Vera Barroso (FAPA), Virgínia Fontes (UFF/FIOCRUZ), Wanderson Fábio de Melo (USP), Zilda Alves de Moura (UFMS); Zuleide Simas da Silveira (CEFET-RJ)

Próximos Números: Dossiê Questão Agrária. Prazo para envio de contribuições encerrado. Dossiê Teoria da História. Envio de contribuições até 31.9.2009.Distribuição: [email protected]. Página Eletrônica: http://historiaelutadeclasses.wordpress.com/Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Cristiane Carla Johann. Imagem da Capa: 1. Manifestação contra a ditadura; 2. Bombardeio do Palácio La Moneda

durante golpe de Estado de 1973, Chile; 3. Repressão policial na ditadura; 4. Lênin; 5. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – Foto Sebastião Salgado. Revisão e Edição: Gilberto Calil. Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45)-3254-1892 – 85960-000 – Mal. Cândido Rondon - PR

Foram impressos 1.000 exemplares em Julho de 2009

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om o Dossiê Estado e Poder, História & Luta de Classes chega a seu sétimo número, ao mesmo tempo em que completa quatro anos de circulação. Em nosso primeiro número já manifestávamos nossa pretensão em “servir de canal para reflexão teórica, particularmente para aquela orientada pelos ventos constantemente renovados do marxismo”, com a intenção de “servir como ferramenta de intervenção daqueles historiadores e produtores de conhecimento que se recusam a aderir”. Distinguindo-se pela perspectiva de intervenção e por assumir claramente uma posição político-teórica, e sem abdicar do rigor acadêmico, História e Luta de Classes viabilizou nestes quatro anos a publicação de 77 artigos e 18 resenhas. O primeiro número, publicado em abril de 2005, teve como temática “1964 – Golpe de Estado” e trouxe diversos artigos que claramente respondiam à onda conservadora, revisionista e relativista de reinterpretação do sentido do Golpe de 1964. A segunda edição trouxe o dossiê “Comunicação, Linguagem e Cultura”, com textos sobre imprensa, intelectuais, discursos e ideologias. A edição seguinte concentrou-se em “Escravidão, Trabalho e Resistência”, com forte ênfase nas resistências empreendidas pelo trabalhador escravizado e na crítica às visões apologéticas e relativistas da escravidão. O número 4 trouxe o dossiê América Latina Contemporânea, com a discussão de processos históricos decisivos do século XX como populismo, revoluções e ditaduras e dos embates em curso no continente, em países como Cuba, Venezuela, Bolívia, Colômbia e Argentina. O quinto número, com o tema “Trabalhadores e suas organizações” colocou em foco e propiciou a análise crítica de algumas das diversas organizações constituídas pela classe trabalhadora brasileira nas últimas sete décadas, tais como partidos, sindicatos, jornais e centrais sindicais. O dossiê “Imperialismo: teoria, experiência histórica e características contemporâneas”, trazido na sexta edição da revista tornou possível aprofundar a análise teórica e empírica do imperialismo, em suas diferentes dimensões e formas de manifestação.

O desafio em produzir, sustentar, manter e fazer circular uma revista com um perfil marcadamente situado no campo do marxismo, sem vínculos institucionais, empresariais ou partidários, é constante. História & Luta de Classes é mantida pelo esforço militante do coletivo de associados que assumiu o desafio de manter acesa a chama do debate crítico no campo da história e da historiografia, livre das amarras institucionais e burocráticas, sem qualquer vínculo com as imposições editoriais ou os modismos impostos a partir da mídia. Igualmente é um periódico que não demanda nem necessita o aval das agências de “classificação”, “qualificação” e ranqueamento, muitas vezes com práticas, critérios e procedimentos uniformizadores, pausteurizadores e esterilizadores do pensamento crítico e do debate e reflexão abertos. Atingir sete edições publicadas, com expressiva tiragem e circulação é certamente um êxito a ser comemorado e uma comprovação das potencialidades da produção coletiva, nos marcos do esforço pela produção de uma nova hegemonia, que corresponda aos interesses históricos da classe trabalhadora.

Vivemos hoje fase aguda de uma grande crise capitalista, com conseqüências sociais crescentemente devastadoras. Ao mesmo tempo, as grandes certezas e os discursos ideológicos triunfalistas estão mais desvalorizados do que as ações dos grandes bancos e montadoras estadunidenses. É certo que os capitalistas, seus intelectuais e seus gestores movem-se rapidamente para construir novas certezas, novos discursos ideológicos e medidas que permitam a retomada da acumulação capitalista. Ainda assim, no atual contexto de descrédito das certezas neoliberais, alarga-se o espaço para a reflexão marxista, para a crítica sistemática e radical da ordem do capital e para a análise histórica totalizante dos processos sociais. História & Luta de Classes pretende manter-se alinhada neste campo de reflexão e análise crítica e sistemática da ordem do capital.

A temática do dossiê aqui apresentado – Estado e Poder -, é certamente oportuna e se relaciona de forma direta com os impasses do presente. A reflexão e compreensão em torno das formas intervenção do Estado (seja através da produção do consenso, seja através da repressão aberta), dos projetos hegemônicos e dos embates produzidos na luta de classes, nos diferentes contextos históricos do Brasil republicano, mantêm-se como desafio inadiável para as forças sociais do mundo do trabalho. É importante destacar que a dominação burguesa no Brasil jamais abdicou de forte componente coercitivo – como destacam diversos artigos deste dossiê -, mas ao mesmo tempo sustenta-se também na organização classista dos setores dominantes, nas elaborações de seus intelectuais orgânicos, na construção de instrumentos de intervenção política e disseminação ideológica, na construção de consenso em torno de seu projeto.

Esta perspectiva é expressa de forma particularmente clara no artigo que abre o dossiê – Estado e Educação Rural: política pública e hegemonia norte-americana, da historiadora Sonia Regina de Mendonça. Servindo-se do referencial teórico gramsciano, a autora analisa as formas de produção de hegemonia que permearam as relações pedagógicas nas décadas de 10940 e 1950, com ênfase nas formas de intervenção que permitiram que agências imperialistas determinassem os rumos do Ensino Rural no Brasil no período.

O artigo Relações entre Estado e Iniciativa Privada no Século XIX: Estudo de caso da Companhia União e Indústria, de Luis Eduardo de Oliveira e Fernando Lamas, aborda as experiências em comum entre trabalhadores livres

APRESENTAÇÃO

Estado e Poder

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Julho de 2009

Gilberto Calil e Demian Melo

e escravizados na construção de uma estrada de ferro de ligação entre Juiz de Fora e Petrópolis, discutindo a ação de empresários e do Estado brasileiro e a utilização de mão-de-obra escrava em tal empreendimento, bem como as condições semelhantes de exploração do trabalho a qual imigrantes alemães e lusos foram submetidos.

Os dois artigos seguintes discutem distintos aspectos do processo de centralização política e as iniciativas coercitivas e ideológicas contra os trabalhadores na década de 1930. Utilizando-se de vasta documentação e concentrando-se no caso sul-riograndense, no artigo Contra o empoderamento da Aliança Nacional Libertadora, o reforço do Poder de Estado com a Lei de Segurança Nacional, Diorge Konrad discute a relação entre o crescimento da ANL e a escalada repressiva, avaliando a repercussão regional dos eventos que marcaram o ano de 1935, com destaque para a proibição da ANL, a repressão contra seus membros e a aplicação da Lei de Segurança Nacional. O artigo “Segurança para o Trabalho e as realizações de interesse geral”: a busca do apoio político para o Estado Novo no Rio Grande do Sul, de Gláucia Ramos Konrad, coloca em destaque a atuação de diversos intelectuais sul-riograndenses voltada à legitimação ideológica estadonivista, avaliando tal iniciativa como relevante para a afirmação da nova ordem e considerando que o controle sobre a classe trabalhadora, mesmo sob a ditadura estadonovista, não era absoluto nem se dava exclusivamente pela coerção aberta, mas implicava igualmente em esforços de legitimação, para o que contribuíram inúmeros intelectuais.

O artigo de Carlos Mignon, La lectura de Marx en clave clasista: el Si.tra.p. como órgano de expresión del Sindicato de Trabajadores de Perkins, 1973-1975 - Una breve comparación con el obrerismo italiano de Quaderni Rossi y Classe Operaia, desenvolve uma instigante comparação entre as formas de leitura e interpretação das categorias de Marx presentes na imprensa dos anos 1970 do Si.tra.p (sindicato de trabalhadores da fábrica de motores Perkins, de Córdoba, Argentina) e as revistas Quaderno Rossi e Classe Operaia, vinculadas ao “obreirismo” italiano dos anos 1950.

José Carlos Mendonça, no texto Notas sobre o Estado no pensamento político de Ruy Mauro Marini aborda o papel ocupado pelo “Estado” na produção bibliográfica do intelectual dependentista e militante socialista Rui Mauro Marini, através de três eixos temático-expositivos (Estado e economia, Estado e ditadura militar e Estado e socialismo).

A ditadura civil-militar é objeto dos dois artigos seguintes. O artigo de Dulce Maciel, O quadro da subversão no Brasil nos “Anos de Chumbo”: a visão dos órgãos de segurança e informações analisa um vasto corpo documental produzido pelos órgãos repressivos para avaliar a visão por eles produzida sobre as organizações armadas de contestação à ditadura, destacando-se o superdimensionamento das ações dos grupos guerrilheiros como forma de justificação interna do aparato de espionagem. Ramiro José dos Reis, em Terrorismo de Estado e Operação Condor no Brasil: 30 anos do seqüestro político internacional dos uruguaios em Porto Alegre coloca em destaque a colaboração entre os regimes ditatoriais a partir da reconstituição do seqüestro de Lílian e Universindo Díaz, no contexto da Operação Condor.

O texto 1986 – a repressão fordista no ABC paulista, de Michel William de Almeida, busca relacionar a

implementação do Plano Cruzado com uma política repressora dos trabalhadores por parte dos empresários e do

Estado, a partir da repressão à greve dos trabalhadores da Ford, num contexto de implantação de um plano econômico

que era aplicado em nome do pacto social. O movimento sindical é discutido também por Gilson Dantas, em Estado,

Poder e Movimento Sindical na América Latina: o diálogo necessário com as teorias de Trotski, no qual o autor

recupera a reflexão de Trotski sobre o bonapartismo para refletir sobre os desafios colocados ao movimento sindical

pelos governos nacionalistas burgueses contemporâneos da América Latina.

O artigo de Érika Batista, O poder gerencial no Capitalismo Contemporâneo: nova classe ou novas relações

entre as classes? apresenta uma discussão crítica das explicações ideológicas produzidas pela chamada “teoria

gerencial”, avançando nas formas pelas quais frações da classe trabalhadora assumem a racionalidade burguesa para o

gerenciamento do capital.

Hélio Rogrigues, no artigo Estado Democrático e Social de Direito, Mística e Modo de Produção Capitalista:

uma leitura que refuta o rótulo economicista analisa as características do Estado de direito, considerado como

modalidade do Estado capitalista.

Este número de História & Luta de Classes complementa-se com três resenhas. Waldir Rampinelli analisa

criticamente recente livro de Moniz Bandeira sobre o golpe de Estado no Chile; Antonio Bosi e Edmundo Fernandes

Dias discutem o impacto das lutas de classe de 1848 para o amadurecimento da reflexão de Marx e avaliam sua

interpretação sobre aquelas lutas, bem como sobre o contexto repressivo que se seguiu a sua derrota. Demian Melo

ressalta a leitura genética dos Cadernos do Cárcere realizada por Álvaro Bianchi em O Laboratório de Gramsci.

Estado e Educação Rural no Brasil:

Política Pública e Hegemonia Norte-Americana

*Sonia Regina de Mendonça

As atuais políticas estatais destinadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA) caracterizam-se, segundo alguns autores, por duas ordens de questões. De um lado, pela distribuição desigual de bens materiais e simbólicos, responsável pela negação dos direitos básicos da classe trabalhadora. De outro, pelas repercussões internas do processo histórico recente de reestruturação produtiva que resultou, no campo educacional, numa reapropriação da Teoria do Capital

1Humano, por sua vez gestada nas décadas de 1960 e 70 . Semelhante processo, entretanto, pouco tem de novo, deitando profundas raízes na formação social brasileira e merecendo, justamente por isso, ser apreendido a partir de uma perspectiva histórica acerca das relações entre Educação, Estado e grupos dominantes no país, de modo a evidenciarem-se muito mais continuidades do que rupturas. É deste ponto de vista que se inicia a reflexão ora proposta sobre as políticas públicas voltadas para a Educação Rural no Brasil, no período compreendido entre o imediato pós-II Guerra Mundial e a aprovação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira, em 1961.

Gramsci, Estado e Educação

O referencial das ponderações aqui iniciadas bebe do arsenal teórico de um dos mais importantes pensadores do século XX: Antonio Gramsci, um renovador do marxismo que a ele incorporou, de forma até então inédita, as dimensões da política e da cultura. Para compreendermos este último conceito, remeto à construção de seu pensamento, resgatando um outro igualmente significativo: o de sociedade civil. Segundo Gramsci, as pressões do desenvolvimento capitalista, ao promoverem a maior divisão social do trabalho e a proliferação de novas classes e suas frações, complexificaram um novo âmbito social, além do Estado restrito, dotado de materialidade distinta daquele: a sociedade civil. É nesta esfera - espaço de relações sociais que não estritamente as de produção - que se gestam e desenvolvem as funções de direção política e ideológica completares à dominação estatal, esta sim, baseada,

A

*Pesquisadora do CNPq. Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora Visitante do Programa de Pós-Graduação em História, Poder e Práticas Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.1RUMMERT, Sonia. Gramsci, Trabalho e Educação: Jovens e Adultos Pouco Escolarizados no Brasil Actual. Lisboa: Educa, 2007, p. 57.

preferencialmente, na coerção.

A peculiaridade da sociedade civil reside em ser integrada por vários aparelhos de hegemonia de adesão voluntária, que guardam em comum o fato de produzirem cultura - valores e visões de mundo. Logo, ela conta com função social própria: a de garantir/contestar a legitimidade da dominação de uma classe e seu Estado. Ademais, a sociedade civil, portadora de agências distintas daquelas do âmbito econômico e da sociedade política, faz com que entre Estado e indivíduos atomizados no mundo da produção emirja outra esfera, responsável pela construção de sujeitos políticos coletivos, em luta ou em aliança entre si, permanentemente disputando a direção sobre a sociedade como um todo. É na sociedade civil que se organizam os projetos dos grupos ou frações de classe, bem como a hegemonia de um deles, resultante da trama complexa de múltiplas relações entre os aparelhos que a compõem. Os responsáveis pela organização da cultura na sociedade civil, os articuladores dos grupos em torno a seus r e spec t ivos p ro je tos , s ão os in t e l ec tua i s , produtores/difusores da cultura/hegemonia o que, todavia, não prescinde da função educativa do Estado uma vez que, por seu intermédio, difundem-se concepções de mundo responsáveis pela estruturação de formas de manifestação cultural que favorecem a emergência de certo tipo de cidadão, que influirá decididamente quer para a formação do “homem-massa”, quer para a de atores participativos e conscientes, segundo Gramsci.

Tudo isso significa afirmar que a organização da cultura implica na interação de um conjunto de agentes e agências da sociedade civil, destinadas a concretizar seu papel na reprodução ou transformação da sociedade, preparando-a para manter ou subverter a ordem estabelecida, em nome de um projeto cultural de novo tipo o qual, para o filósofo, seria a cultura nacional-popular ou socialista, decorrente da ação de intelectuais das frações de classes dominadas. O que Gramsci demonstra, com seu peculiar conceito de cultura, é que os intelectuais não “pairam” acima da sociedade sem raízes de classe evidentes. Dessa forma, sua grande inovação foi desmistificar uma visão equivocada acerca da cultura e dos intelectuais, em muito distantes de livres pensadores diletantes, a “iluminar” os “incultos” com seu conhecimento: o intelectual é aquele que organiza um grupo, tornando-o consciente de seu lugar social, seus valores e idéias, em suma, orgânico.

História & Luta de Classes, Nº 7, Julho 2009 (7-12) - 7

presentação

2Segundo Gramsci, “a cultura, em seus vários níveis, unifica uma maior ou menor quantidade de indivíduos em estratos mais ou menos numerosos, em contato mais ou menos expressivo, que se entendem entre si em diversos graus”. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 36.3GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 399.

É partindo da sociedade civil que os grupos dominantes levam adiante uma guerra sem trincheiras aparentes já que, valores, gostos, cultura enfim, são menos visíveis que a coerção inerente ao Estado restrito. Ademais, em toda sociedade capitalista, o Estado, por intermédio de distintas mediações, busca exercer uma função unificadora das manifestações da sociedade, de modo a situá-las num quadro de relativa homogeneidade, destinado a encobrir o que a própria política estatal perpetua - a divisão da sociedade. Logo, não é difícil entender porque muitos daqueles que Gramsci denomina de “simples” compartem de muitos dos mesmos códigos dos dominantes, cujos intelectuais orgânicos atuam junto às sociedades civil e política divulgando, de todas as formas possíveis, seu projeto. Por meio da direção cultural que imprime à sociedade em seu conjunto, o Estado estabelece vínculos “sentimentais” e ideológicos com as grandes massas, exercendo sobre elas a ação educativa. Tal direção propicia ao Estado capitalista, a formação do “homem-massa” que se torna, no decorrer da historia, “produto e produtor” de uma cultura subalterna onde convivem, desordenadamente, elementos da solidariedade das classes subalternizadas, assim como elementos da ideologia dominante e do próprio saber científico que, assistematicamente, lhe

2chegam .

Todos os conceitos até aqui apresentados visam explicitar o sentido da expressão gramsciana “relações pedagógicas”, ou seja, o conjunto de relações inerentes às práticas sociais por cujo intermédio o homem apreende valores, costumes, cultura e outros componentes da concepção de mundo dominante em dada sociedade podendo, a partir dela, construir – ou não - condições para superá-la. Dessa forma, as relações pedagógicas assumem caráter eminentemente político e não devem ser limitadas à escola. Segundo Gramsci “toda relação de ´hegemonia' é, necessariamente,uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo o campo internacional e mundial, entre

3 conjuntos de civilização nacionais e continentais” .

A despeito disso, o filósofo enfatiza o papel do principal instrumento de disseminação da hegemonia da classe dirigente: a Educação. Tal preocupação emerge em diversos textos do autor, dentre eles o Caderno 12, Apontamentos e notas dispersas para um grupo de

4ensaios sobre a historia dos intelectuais , além de escritos dispersos junto a textos anteriores ao cárcere. Todos eles têm o comum a preocupação expressa para com o fato de que um processo de transformação estrutural da realidade confira aos trabalhadores o direito de acesso irrestrito às bases do patrimônio científico,

tecnológico e artístico produzido pela humanidade, ou seja, a formação integral. Dessa forma, a escola, para Gramsci, deveria ter como tarefa precípua contribuir para a elaboração de uma nova cultura, potencializadora das mudanças estruturais e necessariamente comprometida com os interesses das classes trabalhadoras. Tal objetivo, no entanto, jamais pode ser fecundo se imposto “de fora”, autoritariamente. Logo, a escola não deve ser apenas pensada como instância direta da legitimação dos dominantes, porém como espaço do embate entre projetos distintos de transformação ou conservação da ordem social vigente.

No entanto, o sistema educacional e a escola são, no capitalismo contemporâneo, os núcleos fundantes da hegemonia dos dominantes, na medida em que os subalternos, “inorgânicos” no tocante à organização de seus próprios aparelhos de hegemonia, deixam de produzir os intelectuais necessários à transformação. Assim, quando as “lideranças” políticas falam de Educação e Escola para todos não apontam para um projeto de democratização do saber, já que a proliferação de escolas pode ampliar ainda mais o raio de difusão dos padrões de excelência, das normas cultas e, especialmente, dos valores dominantes. Na verdade, a Escola e a cultura constroem - mais do que eliminam - as desigualdades sociais.

Da mesma forma, destaca-se em Gramsci o fato dos vários estágios dos processos produtivos – e o ordenamento sócio-político a eles correspondente – gerarem mudanças no sistema escolar com vistas a atender às demandas da produção e da permanente construção/manutenção da hegemonia dos dominantes. Uma escola voltada para os valores populares e capaz de enfatizá-los enquanto cultura própria - e não como cultura “inferior” que necessite ser “iluminada” por intelectuais orgânicos dos grupos dominantes - certamente não integra a agenda dos estadistas. O desprezo pela Educação, marcante na História do Brasil, é um claro demonstrativo da atualidade do pensamento de Gramsci. Enquanto o analfabetismo grassar pelo país, impedindo aos indivíduos o acesso ao mais elementar instrumento de apropriação do mundo social , uma cultura verdadeiramente nacional-popular estará fora de questão.

Enquanto perpetuar-se a segmentação entre escola “desinteressada” e escola “formativa”, perpetuar-se-á a visão das classes dominantes que tanto separa, quanto hierarquiza o trabalho intelectual e o trabalho manual, este último definido como "subalterno". Vale lembrar que por desinteressada entendia o filósofo aquela centrada em seu caráter formativo mais amplo, na formação integral para todos, enquanto a segunda, subordinada aos requisitos imediatos do mercado de trabalho, torna-se a “escola do emprego”, pré-determinando de modo instrumental, o futuro daqueles

4GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. v.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp.12-53.

8 - Estado e Educação Rural no Brasil: Política Pública e Hegemonia Norte-Americana

5NOSELLA, Paolo. A modernização da produção e a escola no Brasil – o estigma da relação escravocrata. Porto Alegre: Cadernos ANPED, n.5, 1993, p. 17.6GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Os intelectuais, op. cit., p. 49


5oriundos das classes trabalhadoras aos quais atende . É neste processo que se multiplicariam os diversos tipos de escola voltados à manutenção das classes subalternas na condição heterônoma de dirigidos, evidenciando a “marca social da escola”, que é fornecida “pelo fato de que cada grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes estratos uma determinada

6função tradicional, dirigente ou instrumental” .

Todas essas considerações, entretanto, não devem ser tomadas tão somente enquanto elementos abstratos, nem tampouco limitar-se apenas à História presente do país. Bem ao contrário, neste âmbito específico, encontramo-nos muito mais diante de continuidades, do que de rupturas. Por isso, parti de Gramsci para introduzir um dos mais evidentes exemplos do processo até aqui considerado: as transformações sofridas pela Educação Rural brasileira, sobretudo após o término da Segunda Guerra Mundial, quando a influência norte-americana aqui se presentificou, mediante acordos de "cooperação técnica" firmados entre os governos de ambos os países.

Educação Rural: Rumos e Metamorfoses

Conflitos Intra-estatais e Educação para o Campo

Até os anos 1930, o campo educacional brasileiro esteve marcado, no âmbito da sociedade civil, pela presença de inúmeras agências, defensoras de projetos os mais diversos. Dos educadores católicos – agremiados na Associação de Educadores Católicos - aos egressos do movimento Escolanovista - organizados junto à Sociedade Brasileira de Educação (1924) - e passando pelos projetos educacionais militares, as disputas foram incontáveis, atravessando a própria ossatura do Estado restrito, mormente após a institucionalização da problemática mediante a criação, em 1931, do Ministério da Educação e Saúde (MES).

Se, até então, as questões educacionais encontravam-se sob a égide de dois Ministérios – o dos Negócios Interiores e o da Agricultura, este último responsável pela Educação Rural - após a fundação do MES tais conflitos se acentuariam sobremaneira. O grupo encabeçado pelo ministro Gustavo Capanema, de modo a assegurar relativo equilíbrio à correlação de forças que assomara ao poder estatal em 1930, contaria com porta-vozes de distintos grupos de interesse, incluindo tanto “educadores profissionais” - auto-representados como capazes de gerir “cientifica e pedagogicamente” a matéria, como Anísio Teixeira, por exemplo - até atores como Austregésilo de Athayde, Cardeal Leme, Carlos Drummond de Andrade, dentre outros. E um dos “pomos da discórdia” era o controle sobre a Educação Rural, desde 1909 monopolizada pelo Ministério da

Agricultura, agência dominada por grupos agrários organizados junto à Sociedade Nacional de Agricultura

7(SNA), antagonista à grande burguesia cafeeira paulista .

A política de ensino agrícola praticada pela Pasta da Agricultura guardou fortes continuidades após 1930, contrariamente ao que aponta a historiografia especializada. Por tal razão é fundamental reter que, a rigor, o ensino técnico rural nem se constituiu em “invenção” dos novos grupos no poder, nem sequer 1930 deve figurar como “marco canônico” na redefinição dos rumos da Educação brasileira. Outra continuidade flagrante residiu na preservação da dualidade vigente junto ao sistema de ensino no país, que atribuía o nível primário à responsabilidade de estados e municípios e os ramos secundário e superior à da União. Com isso, mantinha-se o fosso existente entre o ensino primário de cunho alfabetizante e “popular” - destinado ao grosso da população - e o ensino secundário e superior - voltados à formação de setores médios e grupos dominantes. Se tal dualidade continuou a marcar a Educação brasileira após 1930, mais graves ainda seriam seus desdobramentos no âmbito do ensino profissional, estigmatizado pela

8“marca de Caim” do trabalho manual .

Hegemônicos junto à Pasta da Agricultura, os intelectuais orgânicos da SNA aferravam-se à defesa das instituições até então encarregadas do Ensino Rural, a saber, os Aprendizados e Patronatos Agrícolas, mistos de reformatórios e escolas práticas, destinados a crianças/ jovens do campo, localizados sempre próximos a grandes propriedades em todos os estados da federação e funcionando como “viveiros” de mão-de-obra gratuita devidamente adestrada. Eles igualmente enfrentariam as diversas tentativas empreendidas pelos quadros dirigentes do MES em chamar para si o “ensino prático

9agrícola” , de modo a incluí-lo em seu projeto de nacionalização e centralização de todos os tipos e níveis de ensino no país. Em sua disputa com os dirigentes do MA pelo monopólio das atribuições sobre a Educação Rural, os especialistas do Ministério da Educação argumentavam que as escolas do campo deveriam afastar-se do ensino vocacional, em nome do "equívoco pedagógico" de sobrecarregarem-se as crianças com a preparação para o trabalho. Entretanto, a principal característica das reformas educacionais promovidas na gestão do ministro Capanema, a despeito de toda uma retórica em contrário, consistiu em ratificar o ensino secundário enquanto formador das “elites condutoras do país” e o profissional como preparador do “povo conduzido”.

7 A este respeito ver MENDONÇA, Sonia Regina de. O Ruralismo Brasileiro. São Paulo: Hucitec, 1997.8Optei pela grafia em itálico de toda e qualquer expressão extraída da documentação de época pesquisada.9Em evento reunindo Secretários de Educação estaduais, no ano de 1940, o ministro Capanema apontaria o que considerava o mais grave problema a ser enfrentado por sua Pasta: a necessidade de “transferir para o M.E.S. os nove Aprendizados Agrícolas e a Escola Agrícola de Barbacena, ora subordinados ao Ministério da Agricultura”, alegando tratar-se de “de providência administrativa racionalizadora, reclamada pelo principio da unidade de direção”. ARQUIVO GUSTAVO CAPANEMA. Rio de Janeiro: CPDOC, 1944, Rolo 28, fotograma 565, grifos no original.

Antes disso, porém, o decreto-lei n. 23.979, de 1933, já havia redefinido as instituições encarregadas do Ensino Agrícola. Muitos dos antigos Patronatos haviam sido transferidos para a alçada do Ministério da Justiça, originando o Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Já os Aprendizados seriam reclassificados segundo nova tipologia que previa - até a aprovação da Lei Orgânica do

10Ensino Agrícola - o funcionamento de três tipos de cursos: a) o Ensino Agrícola Básico – com três anos de duração e destinado a formar capatazes a partir de clientela composta por jovens a partir de 14 anos,

11mantendo-se seu caráter de “escola de trabalho” ; b) o Ensino Rural – com duração de dois anos e totalmente baseado em aulas práticas, preparando “trabalhadores rurais” selecionados a partir de um público integrado por crianças com mais de 12 anos e c) os Cursos de Adaptação – esses, sim, uma inovação com relação ao período anterior, posto não mais direcionarem-se a crianças e jovens, mas sim ao chamado “trabalhador em geral”, via de regra adulto e “sem qualquer diploma ou qualificação profissional prévia”. Justamente por isso, os novos

12cursos organizavam-se a qualquer época do ano .

Os novos estabelecimentos de Educação Rural perdiam, assim, seu cunho semi-prisional, em detrimento de uma suposta “profissionalização”. No entanto, em contrapartida, sequer seriam bafejados pelas insistentes campanhas de desanalfabetização promovidas pela Pasta da Educação. Em contrapartida, para enfrentar a concorrência movida por esta, o Ministério da Agricultura implantaria, a partir de 1942, outro tipo de cursos – os Supletivos - concebidos no mesmo espírito dos Cursos de Adaptação e destinados exclusivamente a

13adultos . Tal brecha para a redefinição do Ensino Agrícola no rumo prioritário da capacitação do trabalhador rural adulto provocaria a reação dos “educadores profissionais” aparelhados junto ao MES que, em inícios de 1945, lançariam uma espécie de resposta, a Campanha de Educação de Adultos, financiada com recursos da União, estados, territórios e Distrito Federal, tendo por meta “instalar 10.000 classes de ensino supletivo, destinadas a adolescentes e adultos

14analfabetos” . Ademais, contaria ainda com 25% das verbas provenientes do Fundo Nacional de Ensino Primário, criado em 1942, por Capanema. O alcance da Campanha, todavia, seria limitado, posto visar basicamente a operários e trabalhadores urbanos, ainda que o titular da Pasta insistisse em reivindicar para ela o

controle sobre todas as instituições de ensino do país. Os intelectuais da SNA, junto ao Ministério da Agricultura, por sua vez reclamariam da escassa colaboração do MES que “através do Conselho Nacional de Serviço Social, distribui pequeníssimos auxílios para algumas escolas

15de agricultura”

A disputa Ministério da Agricultura versus Ministério da Educação adquiriria novos e mais conflitivos contornos a partir do envolvimento dos Estados Unidos na Segunda Grande Guerra, do qual resultou a assinatura do primeiro tratado firmado entre governantes daquele o país e a Pasta da Produção, originando à já citada Comissão Brasileiro-Americana para a Produção de Gêneros Alimentícios.Até então, as práticas educacionais do Ministério da Agricultura ainda se destinavam, predominantemente, à formação de jovens e crianças.

Imperialismo, Estado e Educação.

Desde inícios da década de 1940 observa-se a intensificação do interesse de instituições privadas estadunidenses – como a Inter-American Affairs Association, de Nelson Rockfeller – pelos “problemas” do então recém-construído “Terceiro Mundo”, nele incluindo-se, por certo, o Brasil. Em 1945 é firmado entre o Ministério da Agricultura e uma agência privada norte-americana, o segundo acordo de “cooperação técnica” no âmbito da Educação Rural, originando a “Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais” (CBAR). Dentre suas atribuições figuravam a implantação de Centros de Treinamento (CTs) – destinados a “qualificar” somente trabalhadores rurais adultos - e de Clubes Agrícolas Escolares,para infância e juventude, em todo o país, além da formação continuada de técnicos - a serem especializados nos Estados Unidos – e de “líderes rurais”, a partir de um programa educativo teoricamente capaz de incutir nos trabalhadores do campo o “amor a terra e ao trabalho”, fixando-os a seu

16“próprio meio” .

Ta l e x p e r i ê n c i a f o i , s e m d ú v i d a , sobredeterminada pela conjuntura internacional inaugurada com o fim da II Guerra e inícios da Guerra Fria, por sua vez hegemonizada pela emergência de um novo construto: o “desenvolvimento”. Junto a ele gestava-se a noção de Terceiro Mundo, produzida pelos discursos/práticas desenvolvimentistas, cujos primeiros elaboradores enfatizavam não apenas o crescimento econômico, mas também a distribuição dos supostos

10A LOEA foi promulgada pelo Ministério da Educação e Saúde, no ano de 1946.11SALLES, Apolônio. O Ministério da Agricultura no Governo Getulio Vargas (1930-1944). Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério, 1945, p. 33.12Idem, p. 314.13Tal inflexão não pode ser desatrelada da atuação no país da primeira de uma série de Comissões Brasileiro-Americanas, no caso a de “Produção de Gêneros de Primeira Necessidade”, formada em 1942, com vistas a maximizar a produção e exportação dos gêneros alimentícios brasileiros. A justificativa oficial, no entanto, era a de que se estaria “procurando corrigir o erro de se supor que só devem ser objeto da obra educativa os que se encontram ainda em idade propriamente escolar, desprezando-se todos aqueles que não tiveram oportunidade de freqüentar escolas ou a elas não podem voltar para cursos regulares”. BRASIL. Ministério da Agricultura As Atividades do Ministério da Agricultura em 1942. Rio de Janeiro: S.I.A., 1943, vol. II, p. 327.

14Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: INEP, 1947, p.32.15BRASIL. Ministério da Agricultura. Atividades do Ministério da Agricultura entre 1936-1940. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério, 1941, p. 328. Grifos na fonte.16A formação dessas lideranças se faria por intermédio dos Centros de Treinamento de Líderes Rurais, de cujas finalidades constava contribuir para “modificar, através da ação de seus líderes naturais, a mentalidade e hábitos das populações rurais”; desenvolver a “capacidade de liderança das moças das zonas rurais” e “desenvolver a personalidade das moças rurais melhorando seus conhecimentos básicos”. Revista da CNER. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Ministério da Agricultura, 1953, p. 132.


17ESPINOSA, J. Manuel. Inter-American Beginnings of U. S. Cultural Diplomacy (1936 – 1948).Washington D.C.: US Department of State, Bureau of Educational and Cultural Affairs, No. 2, 1976, p. 145.18ESCOBAR, Arturo. Encountering Development – the Making and Unmaking of the Third World. New Jersey: Princeton University Press, 1995, p.4.

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benefícios por ele gerados. À época, parecia impossível aos intelectuais estadunidenses conceituar a realidade social em outros termos, encontrando-se, para onde quer que se olhasse, a realidade onipresente do

17desenvolvimento . Segundo Escobar, a partir de fins da II Guerra, a realidade histórica mundial seria “colonizada” pelo discurso do desenvolvimento, fazendo com que “as representações tornadas dominantes não apenas moldassem os caminhos nos quais a própria realidade

18era imaginada, como também atuassem junto a ela” . Com isso, todo um novo domínio de conhecimentos e experiências estava em gestação, resultando em novas estratégias para lidar com o “novo” problema. Partindo dos EEUU e da Europa, essas estratégias se tornaram uma poderosa força junto ao Terceiro Mundo, fruto de um conjunto de afirmações sobre o desenvolvimento e seu contrário – o subdesenvolvimento – que autorizavam visões plurais, descrevendo-o e prescrevendo-o.

O discurso do desenvolvimento, todavia, se respaldaria num aparato institucional extremamente eficiente, destinado à produção de conhecimentos e ao exercício de poder sobre o “Terceiro Mundo”, aparato este integrado pelas mais distintas agências e agentes que, entre 1945 e 1955, não cessaram de produzir novos arranjos entre Estado, Saber e Poder. Em verdade, falar do desenvolvimento enquanto experiência histórica singular remete à criação de todo um novo domínio de pensamento e de ação, estruturado em torno a três eixos: a) as formas de conhecimento a ele referidas e pelas quais adquiriria existência através de projetos; b) o sistema de poder que regulava suas práticas e c) as formas de subjetividade por ele forjadas e através das quais os indivíduos se reconheceriam como “desenvolvidos” ou “subdesenvolvidos”. Rapidamente, a hegemonia internacional estadunidense faria com que a guerra contra a pobreza – igualmente “recém-descoberta” - adquirisse relevo visando, não apenas criar novos consumidores, mas transformar as sociedades, transformando os pobres em objetos de Conhecimento e Gestão.

Os anos 1950 assistiriam à consolidação da hegemonia estadunidense junto a todo o Ocidente, já que a necessidade de expansão/aprofundamento de mercados externos para seus produtos e a busca de novas áreas para investimento de seus capitais excedentes fazia-se premente. Afinal, o crescimento da economia norte-americana ainda dependia de matérias-primas baratas enquanto suportes para a crescente capacidade de suas indústrias, o que impõe concordar com afirmativas segundo as quais “o Terceiro Mundo, longe de ser periférico, era central para a rivalidade entre as

19superpotências e a possível confrontação nuclear” . Os objetos com que o desenvolvimento começou a lidar eram numerosos e variados, incluindo desde a pobreza, a insuficiência de tecnologia e de capitais, até as práticas

agrícolas “arcaicas”, bem como atitudes culturais associadas ao “atraso”. Para que os agentes pudessem identificar seus novos objetos de estudo, alguns argumentos de autoridade foram operados, mormente aqueles relativos ao papel dos intelectuais, denominados de “novos especialistas”. Dessa feita, economistas, geógrafos, educadores, agrônomos, nutricionistas, etc., elaboravam teorias, juntamente com dossiês completos sobre as cidades, regiões e países visitados. O discurso do desenvolvimento, ademais, procederia através da criação de “anomalias” - o “analfabeto”, o “subdesenvolvido”, o “pequeno lavrador”, etc. – garantidoras da necessidade permanente de reformas, bem como de uma representação infantilizada da América Latina, uma espécie de “álibi” tanto para a elaboração de “teorias da salvação”, quanto para intervenções pragmáticas dos intelectuais-especialistas, calcadas na proliferação das “ciências do desenvolvimento” e suas “sub-disciplinas”.

O ano de 1946 foi decisivo para a consagração, no Brasil, da Educação Rural enquanto ramo “especial” e hieraquizante de Ensino – escola para o trabalho – marcado pela subalternidade daqueles por ele formados. A aprovação, pelo Ministério da Educação, da Lei Orgânica do Ensino Agrícola, alijaria, definitivamente, este ramo educacional da rede primária regular, mantendo-o sob a tutela da Pasta da Agricultura, muito embora coubesse ao MES a prerrogativa exclusiva de estipular suas diretrizes nacionais. A partir daí consagrou-se a possibilidade de inflexão categórica nas práticas da Educação Rural destinadas à qualificação da força de trabalho no campo, sob a capa “missionária” da “difusão do princípio de desenvolvimento comunitário”, com vistas a “combater o marginalismo e educar os adultos, antes de tudo para que o país possa ser mais coeso e

20solidário” .

Sempre sob a assessoria e treinamento de técnicos nor te-amer icanos implementou-se , celeremente, desde fins da década de 1940, todo um conjunto de agências e práticas de Extensão Rural visando difundir, em larga escala, conhecimentos sobre técnicas de cultivo, tipos de sementes, etc., em paralelo às instituições escolares agrícolas do MA. Dentre essas novas práticas destacaram-se as Semanas Ruralistas (com forte apoio da Igreja); as Missões Rurais e os já citados Clubes Agrícolas Escolares proliferando, igualmente, Centros de Treinamento e, sobretudo, parcerias de assistência técnico-financeira com órgãos públicos e privados de Crédito Rural. O aparato do desenvolvimento hipertrofiava-se, multiplicando seu corpo de especialistas e consolidando o que convencionou denominar de “ação educativa de novo tipo”, bem mais amplo do que a escola. Semelhantes novidades, segundo o discurso oficial - e marcadas, sobremodo, pela atuação dos Extensionistas Rurais, pontas-de-lança do Crédito Rural Supervisionado - distinguir-se-iam do crédito comercial por sua “extrema

19Id., p. 37, grifos no original.20BRASIL. Ministério da Agricultura. O Ministério da Agricultura a Serviço do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: S.I.A, 1959, p. 123.

História & Luta de Classes, Nº 7, Julho 2009 (7-12)

21Dentre essas novas agências destacaram-se o Serviço Social Rural, criado em 1955 e o próprio Escritório Técnico de Agricultura Brasileiro-Americano, de 1953, dentre outras.22CARNOY, Martin. Education as Cultural Imperialism. New York: Longman, 1974, p. 160.

preocupação com a integração dos agricultores à economia moderna”, já que o crédito agrícola convencional não fora capaz de dotar seus usuários dos novos saberes e tecnologias necessários ao desenvolvimento do campo, mantendo-os atrelados a uma agricultura “atrasada” e “arcaica”.

Para legitimar a ressignificação em curso no próprio conceito de Educação Rural, os grupos no poder canalizaram esforços para preservar a subalternidade do trabalhador rural , defendendo uma polít ica “educacional” destinada à qualificação de mão-de-obra adulta e totalmente desvinculada da instituição escolar. Impossível não relacionar semelhante redefinição ao contexto marcado pela germinação, no país, de inúmeros movimentos sociais rurais, como as Ligas Camponesas, por exemplo. Com tal pano de fundo, a Extensão Rural e seus correlatos visavam a um duplo objetivo: promover o disciplinamento coletivo, através da vulgarização dos códigos e visões de mundo transmitidos por intelectuais estadunidenses e consagrar a Assistência Técnica e Financeira enquanto “modalidade de ação educativa” por excelência, destinada a maximizar a produtividade do trabalho agrícola.

O Extensionismo Rural praticado pelas agências de desenvolvimento – dentre as quais algumas ligadas ao

21próprio Ministério da Agricultura - passaria então a conotar todos os produtores dotados de alguma qualificação para o trabalho, nos moldes pregados pelos intelectuais e técnicos brasileiros e estadunidenses. Não somente o trabalho do homem adulto e analfabeto, mas também das mulheres – daí o surgimento de nova “disciplina do desenvolvimento”, a Economia Doméstica – e das crianças. Em verdade, parte da explicação do êxito desses novos conceitos e ações prende-se ao fato de ser a Educação um importante instrumento da expansão do Imperialismo que, alocando sua funcionalidade na noção de “racionalidade”, tornava-se aceita pelos grupos dominantes latinos e brasileiros, preservando a estrutura fundiária e minimizando potenciais conflitos de classe no

22campo .

Entretanto, por certo não se está diante do trabalho enquanto princípio educativo integral – tal como o defendia Gramsci – mas sim da Educação como instrumento da maximização da produtividade do trabalhador rural e da segmentação cultural. Sob tal concepção instrumental das práticas educacionais, submetiam-se os trabalhadores do campo a inúmeras intervenções “pedagógicas”, muito distantes das práticas, efetivamente educativas, haja vista o processo em curso de substituir a Escola pelo Extensionismo, dirigido à vulgarização de um dado padrão de consumo, presidido pelo Saber e a Técnica norte-americana. A influencia estadunidense tornava-se, então, política pública de âmbito nacional.

À guisa de conclusão

O discurso e as práticas do desenvolvimento instituíram-se em operadores centrais das políticas de representação e identidade na maior parte do Terceiro Mundo no Pós-II Guerra. Entretanto, eles não devem ser percebidos como depositórios de “tradições”, posto que muitas delas eram recentes. Somente o aprofundamento de pesquisas sobre todo o conjunto de agências imbricadas a tal processo poderá contribuir para desconstruir semelhantes conceitos, ainda em voga em nossos dias. As considerações aqui tecidas visaram apenas “levantar o véu” da desnaturalização necessária e, por seu intermédio, percebe-se que noções como “desenvolvimento”, “cooperação técnica” ou “elevação do nível de vida das massas”, tornaram-se instrumentais tanto para construir alteridades inferiores e “carentes”, quanto para inflacionar as importações brasileiras de máquinas e insumos agrícolas estadunidenses.

Através do fornecimento de conhecimento “especializado”, reproduziram-se no país paradigmas importados que, além de expropriar os trabalhadores rurais de seus saberes próprios, tornaram-nos alvos fáceis da disciplinarização pelo capital, resultando no fortalecimento de inúmeras agências produtoras de novos intelectuais-especialistas e novas exigências econômicas impostas sob a pecha da modernidade. A redefinição pautada pelas então chamadas “novas modalidades educativas” adequou-se aos interesses dos grupos dominantes - agrários e industriais - brasileiros, co-participes do deslocamento dos conflitos de classe da cena real, para o âmbito de uma reeditada dicotomia entre “arcaicos” versus “modernos”. Neste sentido, o Extensionismo Rural, destinado a trabalhadores adultos, não somente ressignificou a noção de Educação Agrícola, como também tratou de adestrar esses trabalhadores triplamente expropriados: de sua terra, de seus conhecimentos e de sua própria identidade.



*Doutorando em História Social na UFF e Professor no Instituto Superior de Educação Carlos Chagas, em Juiz de Fora.**Mestre em História Social pela UFF.1Desse ponto para os portos do Rio de Janeiro a viagem continuava pela antiga estrada da serra da Estrela e, em seguida, pelos 14,5 Km de trilhos da E. F. Mauá2STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz de Fora, FUNALFA, 1979, pp. 121-145.

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3PAULA, Maria C. As Vicissitudes da Industrialização Periférica: o caso de Juiz de Fora (1930-1970). Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, UFMG, 1976, pp. 60-62; PIRES. Op. cit., pp.110-113 e GIROLETTI, D. Industrialização de Juiz de Fora (1850-1930). Juiz de Fora, EDUFJF, 1987, pp. 28-35 e 46-47.4BASTOS, Wilson de L. Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, sua descendência, genealogia. Juiz de Fora: Paraibuna, 1991, pp. 133-137.5CARVALHO, José M. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 89. 6BASTOS. Op. Cit.. p.24.

Relações entre Estado e Iniciativa Privada no Século XIX:

Estudo de caso da Companhia União e Indústria

Luís Eduardo de Oliveira*Fernando Gaudereto Lamas*

rodovia União & Indústria e seu impacto para a economia regional

A Rodovia União e Indústria, ligando Juiz de 1Fora à Petrópolis , foi construída entre 1855 e 1861 pela

CUI, criada em 1853 pelo cafeicultor Mariano Procópio, detentor de uma concessão imperial para manter e explorar a estrada durante meio século – o que não ocorreu de fato, pois por volta de 1879 a CUI entrou em processo de falência, levando a um relativo abandono

2daquela primeira via e seus diversos ramais . Além dos 144 quilômetros macadamizados e carroçáveis da Rodovia, a CUI construiu também, até 1868, outros quatro ramais (Posse-Aparecida, Serraria-Mar de Espanha, Paraibuna-Flores e Juiz de Fora-Ubá), com 264 quilômetros de caminhos vicinais interligando aquela estrada-tronco às mais importantes áreas cafeeiras do Vale do Paraíba Fluminense e da Zona da Mata mineira. A constituição de um sistema viário tecnologicamente avançado para a época e que possibilitou uma interligação eficaz entre Juiz de Fora e o Rio de Janeiro, constitui um marco fundamental para o incremento e diversificação da população e das atividades urbanas daquele município nas décadas 1860 e 70.

A construção da rodovia, com seus vários ramais, a chegada dos trilhos da Estrada de Ferro Dom Pedro II e o estabelecimento de uma malha ferroviária na Zona da Mata mineira, capitaneada pela Estrada de Ferro Leopoldina, por outro lado, contribuíram também para que Juiz de Fora se configurasse, nos últimos três decênios do século XIX, como um dos mais importantes entrepostos comerciais do estado. Isto porque, durante quase todo esse período, parte significativa dos produtos exportados e importados por diversas regiões de Minas Gerais (Centro, Oeste, parte do Sul e da Zona da Mata) e de Goiás tinha que passar pela cidade, permitindo que nela se desenvolvesse um vigoroso comércio varejista e atacadista e, ao mesmo tempo, inúmeras atividades manufatureiras. Como consequência, desde meados da década de 1860, tal centro urbano passou a aglutinar grandes interesses, tornando-se a partir de então palco de vultosos negócios, de intensa circulação de mercadorias

3e acumulação de capitais .

As relações mantidas entre a CUI e altas autoridades imperiais, que não podem ser reduzidas apenas aos fortes vínculos de seu presidente com o monarca, aguardam ainda um estudo mais criterioso e aprofundado. Dentre os eventos da breve trajetória da CUI que exigem uma adequada investigação histórica figura, com destaque, o processo de sua encampação pelo Estado, em 1864, que implicou, entre outras coisas, no perdão da dívida de 200:000$000 que a empresa tinha com a Repartição Geral de Terras Públicas e a transferência para o governo de compromissos financeiros, com banqueiros ingleses e companhias nacionais, da ordem de 8.266:342$660. Ainda assim, Mariano Procópio continuou sendo prestigiado pelo imperador, que em janeiro de 1869 nomeou-o pra diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II, cargo que ocupará até a

4sua morte, três anos depois .

Tais fatos entram em choque com a visão propalada a respeito do monarca, ou seja, a de que ele sempre manteve uma respeitosa distância entre seus amigos e os negócios do Estado. Em suas instruções à princesa Isabel, D. Pedro II aconselha “não indicar pessoas para cargos ou graças aos ministros exceto em circunstâncias muito especiais de maior proveito

5público” . As relações entre o monarca e Mariano Procópio, assim como a ação do Estado imperial em relação à CUI pareceram-nos bastante distintas dos conselhos dado à princesa. Cabe perguntar se o entendimento histórico acerca da forma de governo de D. Pedro II não se encontra excessivamente contagiada de anacronismo.

O papel da mão-de-obra escrava na construção da União & Indústria

De acordo com Wilson de Lima Bastos, autor de uma obra de cunho laudatório sobre Mariano Procópio, a

6construção da rodovia iniciou-se em 1856 e só tomou impulso no ano de 1858 com a chegada dos imigrantes

A

7OBERACKER JÚNIOR, Carlos H. A contribuição teuta à formação da nação brasileira Vol. 2. 2º ed. Rio de Janeiro: Presença. 1985. p. 297. 8Imigrantes: 150 anos Juiz de Fora. In: Tribuna de Minas. Juiz de Fora: Esdeva, 2000. Para uma crítica desta visão cf. SARAIVA, Luiz F. Um correr de casas, antigas senzalas. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF. 2001. pp. 19-21.9HARDMAN, Francisco Foot e LEONARDI, Victor. Op. cit., pp. 91-92 e AGASSIZ, Luís e AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil (1865-1866). Brasília, Senado Federal, 2000, pp. 80-83.10Com base nos relatórios das assembléias gerais de acionistas da CUI dos anos de 1856 e 1857, Birchal concluiu que os escravos empregados pela empresa provinham de outras companhias, de fazendeiros da região e de alguns dos principais acionistas da CUI. Ver STEHLING. Op. cit., pp. 144-145; GIROLETTI. Op. cit., pp. 63-65 e BIRCHAL, Sérgio de Oliveira. O mercado de trabalho mineiro no século XIX. In História Econômica & História da Empresa, n.º01, São Paulo, Hucitec, 1998. Disponível em: http://www. ceaee.ibmecmg.br.wp/wp12.pdf. Capturado on-line: 12 jan. 2006, pp. 10-11.11BIRCHAL. Op. cit., p. 10.

alemães. Logo, essas datas corroboravam a errônea idéia de que teriam sido estes imigrantes germânicos os únicos responsáveis pela construção da afamada rodovia, já que em seu estudo Bastos não mencionou a utilização de escravos no período 1856-58. Carlos Oberacker Júnior afirmou que houve participação de escravos na construção da rodovia, ao menos no tocante aos serviços

7mais brutos, sem, contudo precisar a quantidade . Porém, o mito de que a história de Juiz de Fora se fez exclusivamente através da contribuição de imigrantes (alemães, italianos, portugueses, sírios, libaneses, etc.) permaneceu atual através das comemorações de efemérides locais como a festa dos 150 anos da cidade. Nesta festa foi lançado por um jornal local um pequeno caderno onde se contou a história dos imigrantes e excluiu a fundamental participação da mão-de-obra

8escrava .

Como atestam os relatos coevos e os dados reunidos por diferentes pesquisadores, em seus empreendimentos rodoviários a CUI não utilizou apenas mão-de-obra livre, como obrigava o contrato que firmou com o governo imperial e sugerem ainda hoje certos estudiosos da história local. A esse respeito, apesar de enfatizarem no seu livro Viagem ao Brasil (1865-1866) que normas contratuais proibiam expressamente o emprego de escravos na construção da rodovia que ligava Juiz de Fora a Petrópolis, o naturalista Louis Agassiz e sua esposa, Elizabeth Agassiz, indicaram também que, na prática, tal regra foi ignorada, pois constataram que “nos trabalhos de certo gênero não se achou meio de substituir

9essa pobre gente” .

Na verdade, como enfatizam Stheling, Giroletti e Birchal, entre 70% e 80% da força de trabalho dos serviços de abertura da principal rodovia construída pela CUI compunha-se de cativos, num total de cerca de dois mil escravos, em geral, alugados de seus acionistas ou das companhias inglesas de mineração de Cocais e de Congo Soco e de fazendeiros das regiões cortadas por

10aquela via . Em 1855, em especial, ano em que se iniciaram os trabalhos de abertura da Rodovia, de acordo

11com Birchal, a CUI empregou entre 515 e 818 escravos . Possivelmente, parte significativa destes cativos atuou na construção dos trechos daquela estrada que não apenas cortaram como também redefiniram importantes áreas do núcleo central e dos arrabaldes de Juiz de Fora. A

partir de informações que encontrou nos relatórios das assembléias gerais de acionistas da CUI, realizadas entre 1856 e 1866, Birchal produziu uma descrição ainda mais abrangente do conjunto da força de trabalho, cativa e livre, que essa empresa recrutou no período de maior intensidade de suas atividades. Segundo Birchal:

“A companhia empregava 1.102 pessoas; entre elas, 900 escravos que constituíam quase 82% da força de trabalho total. Dos 900 escravos, 48 eram empregados na produção de carvão; 96 eram empregados como pedreiros, cozinheiros etc., e como seus assistentes e aprendizes, nas várias oficinas e seções da estrada; os 756 restantes trabalhavam na construção e manutenção da rodovia. (...) Em 1857, havia 804 escravos trabalhando para a companhia, mas não há informação acerca do total de trabalhadores empregados. (...) Em 1858, a companhia empregava 2.636 trabalhadores: 1.136 eram empregados na seção da rodovia entre Juiz de Fora e Paraíba (do Sul). Deste número, 800 eram escravos; isto é, 70%. (...) Os outros 1.500 eram empregados na seção entre Petrópolis e Paraíba do Sul, mas não há informação acerca do status destes trabalhadores (...), porém, é razoável supor que a mão-de-obra escrava representava uma

12grande parcela” .

É possível inferir que mesmo na operação das grandes oficinas que instalou nas imediações da Estação Rio Novo, primeiro complexo manufator a ser

13estruturado naquele município mineiro, a CUI não prescindiu do braço servil, como demonstra também uma outra evidência concreta sobre o uso de trabalhadores escravizados, neste caso em associação com artífices e operários livres, nas atividades manufatureiras desenvolvidas localmente na década de 1860. A evidência em questão refere-se à compra de uma carta de alforria, paga “por terceiros”, em benefício do escravo Jorge Carneiro dos Santos, passada no Cartório do 1º Ofício de Notas da cidade em 18 de janeiro de 1869. Segundo Lacerda:

“Este cativo, marceneiro, tornou-se devedor da quantia de 1:500$000 (um conto e quinhentos mil réis) que lhe fora emprestado para a compra de sua alforria. A dívida seria paga em 30 meses, com trabalhos de marcenaria efetuados nas oficinas da Companhia União & Indústria. Jorge Carneiro iria receber 75$000 (setenta e cinco mil réis) mensais, podendo retirar 25$000 (vinte e cinco mil réis) mensais para suas despesas e

14utilizando o restante para amortizar o débito” .

Nossa pesquisa mostrou que a partir do final do

12Entre 1857 e 1859 o número total de trabalhadores livres e escravos empregados pela CUI saltou de cerca de 1.000 para 3.500 indivíduos. A partir de 1860, com o término das obras da Rodovia, no entanto, houve uma sensível diminuição do número de operários a serviço da CUI. Ver BIRCHAL. Op. cit., pp. 08-12.13PASSAGLIA, Luiz A. do P. A preservação do patrimônio histórico de Juiz de Fora. Juiz de Fora, PJF / IPLAN, 1982, pp. 29-31.14LACERDA, Antonio H. D. Os padrões das alforrias em Juiz de Fora, um município cafeeiro em expansão (Zona da Mata de Minas Gerais, 1844-88. Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói, 2002, pp. 72-74 e 111.

14 - Relações entre Estado e Iniciativa Privada no Século XIX: Estudo de caso da Companhia União e Indústria

15GIROLETTI. Op. cit. p. 64.16GIROLETTI. Op. cit. p. 63. 17 AHCJF.1º Ofício de Notas, Caixa 01, Livro 2. Fls. 08-09. 1855.

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18Arquivo (...) Fls. 08-09. 1855.19GORENDER, J. O escravismo colonial. 5º ed. São Paulo: Ática. 1988.p. 484.20LIBBY, D. Trabalho escravo e capital estrangeiro no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 92.21GORENDER.Op. cit. p. 482. 22AHCJF. 1º Ofício de Notas. Caixa 1, Livro 2, fls. 08 e 30.

ano de 1854 e ao longo do ano de 1855, Mariano Procópio iniciou a prática ilegal de alugar escravos para a obra em questão. Giroletti afirmou, pioneiramente, que Mariano Procópio alugou 119 escravos para a realização das obras. Este mesmo autor afirmou que no trecho que liga Juiz de Fora a Paraíba do Sul cerca de 70% dos 1136

15trabalhadores eram escravos . Domingos Giroletti localizou duas empresas de mineração inglesas, a Cocais e a Gongo Seco, como locatárias de escravos para a CUI. As citações foram extraídas do “Álbum do Município de Juiz de Fora” de autoria de Albino Esteves, ou seja, uma obra pertencente à historiografia tradicional e que citou uma fonte oficial, a saber, um relatório de Presidente de

16Província . Giroletti, contudo, não conseguiu encontrar a origem dos escravos locais alugados por Mariano Procópio, apesar de mencionar que este alugou escravos de outras fontes que não as duas empresas inglesas mencionadas.

Contudo, ao analisarmos a documentação cartorária sob custódia do Arquivo Histórico do Município de Juiz de Fora, encontramos nos livros de compra e venda da Comarca de Barbacena dos anos de 1853 a 1855, no livro de escrituras públicas de compra e venda da Comarca do Paraibuna e no livro de escrituras públicas de compra e venda do cartório do Primeiro Ofício de Notas, ambos referentes aos anos de 1854 a 1856, a CUI alugando escravos para trabalhar na construção da dita rodovia. A utilização de escravos em obras públicas era vetada por lei, porém esta foi claramente burlada por Mariano Procópio, contrariando desta forma o consenso entre a historiografia local acerca da não utilização de escravos na construção da rodovia.

Apesar da grandeza dos números acima apresentados, a historiografia local continuou a aceitar o mito da mão-de-obra livre imigrante. A forte presença alemã totalizando 1.193 pessoas, incluindo mulheres e crianças, continuou a ser apontada como a principal, se não a única responsável pela construção da rodovia. Queremos chamar a atenção para o importante papel exercido pela mão-de-obra escrava para a construção desta rodovia. Este ponto é de extrema importância, pois reafirma o caráter escravista/exportador da economia matense, particularmente da economia juizforana, uma vez que como já foi anteriormente afirmado, este era o principal aspecto desta economia no período abordado.

Os contratos estabelecidos entre a CUI e os proprietários/locatários locais dos escravos baseavam-se essencialmente nos seguintes critérios. A princípio o engajamento deveria ser de apenas 06 meses, podendo ou não ser renovado indefinidamente, sempre pelo mesmo prazo. Caso o locador optasse por romper o contrato, deveria avisar com 30 dias de antecedência ao prazo de reengajamento. O pagamento pelo aluguel realizava-se a cada 03 meses e a CUI poderia, se lhe conviesse, sub-

17alocar o escravo para outras pessoas . Caso durante o

contrato o escravo adoecesse, fugisse ou se ferisse a Companhia se responsabilizaria com os gastos. Se após 15 dias, o escravo doente não se recuperasse ou o escravo fugido não fosse encontrado, o locatário seria responsabilizado, ficando ao encargo deste o tratamento ou recuperação do escravo. Se a empresa de Mariano Procópio julgasse que o escravo alugado era inválido para o tipo de trabalho a ser exercido, avisaria ao locatário para tomar as devidas providências e substituir o referido

18escravo por outro mais apropriado .

Cabe ainda destacar que a utilização de escravos em atividades que não se encaixavam diretamente na produção ou extração de produtos vendáveis no mercado externo se devia basicamente em função da estreiteza do

19mercado de trabalhadores livres, tanto especializados quanto sem especialização. Além desse fato deve ser ressaltado o aspecto racista, pois como destacou Libby, havia um grande preconceito em relação à mão-de-obra livre nacional, percebida como preguiçosa e inapta ao exercício regular do trabalho; em contrapartida, a mão-de-obra escrava era vista como perfeitamente adaptada

20ao trabalho, inclusive o industrial .

A utilização de mão-de-obra escrava em atividades díspares da agrário/mineradora de caráter exportador já foi analisada por outros historiadores. Contudo, o uso de escravos em construções de obras públicas foi ainda muito pouco abordado. O caso que mais se aproxima do que pretendemos analisar é o emprego de escravos em atividades de caráter industrial, ou proto-industrial. Gorender, ao analisar a participação de escravos em atividades tipicamente fabris, os incluiu no caso mais geral de escravidão urbana, e defendeu que “a escravidão urbana representou, em todas as formações escravistas, um complemento da escravidão

21rural” . Esta observação é relevante uma vez que os escravos alugados por Mariano Procópio foram utilizados para a construção de uma rodovia que visava facilitar o escoamento da produção cafeeira da Zona da Mata Mineira para o porto do Rio de Janeiro.

Mariano Procópio alugou uma quantidade considerável de escravos pertencentes a proprietários de Juiz de Fora, incluindo seus distritos e Barbacena. A tabela 01 abaixo indica o número de escravos alugados por Mariano Procópio ao longo dos anos de 1855 e 1856. Nas escrituras de aluguel de escravos realizadas por Mariano Procópio encontramos escravos especializados

22em serviços como carpintaria e mesmo cozinheiras, fato que corrobora a visão de Soares e desmistifica a idéia de que os escravos eram utilizados apenas em serviços brutos. A quantidade de escravos alugados na região indica que a força de trabalho escrava exerceu um papel fundamental na construção da Rodovia ao longo de todo o


23AHCJF. 1º Ofício de Notas. Caixa 1, Livro 2, fls. 6-8 e 19-20.24Relatório que a Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais apresentou na abertura da sessão ordinária de 1856. Conselheiro: Herculano Ferreira Penna, Presidente da Mesma Província. Ouro Preto. 1856. p. 12.25Relatório (...). p. 12.26Juiz de Fora – 150 anos. Imigrantes. Op.cit. p. 2.27Relatório (...). p. 12.

28No corpo técnico e administrativo da CUI era marcante a presença de estrangeiros, mas alguns brasileiros e até mesmo portugueses chegaram a integrar postos-chaves na estrutura hierárquica da CUI. Ver BIRCHAL. Op. cit, pp. 10-12.29O Relatório da Assembléia Geral dos Acionistas da Companhia União e Indústria, relativo ao ano de 1856 confirma que o número de operários especializados alemães contratados inicialmente pela empresa não excedia duas dezenas. Ver BIRCHAL. Op. cit., p. 11 e ESPESCHIT, L. Pelos caminhos do Brasil o que encontrei. Belo Horizonte: Mazza, 1995, pp. 149-150.30STEHLING. Op. cit., pp. 149-152, 415 e 429-432.31Mais do que garantir a mão-de-obra qualificada e barata que os seus empreendimentos exigiam, a entrada da CUI no ramo de imigração e colonização visou, fundamentalmente, “o dinheiro existente nos cofres da Repartição Geral de Terras Públicas”, no caso, 200 contos de réis antecipados para importação e assentamento de dois mil alemães. Cf. STEHLING. Op. cit, pp. 153-160.32Idem, pp. 149-207.

processo. Além do aspecto quantitativo, deve-se levar em conta também o tempo de engajamento dos escravos já que 03 das 10 escrituras alugavam seus escravos pelo tempo de 2 anos enquanto as outras três pelo tempo de 4 anos, duas pelo tempo de 5 anos. Tais dados permitem-nos concluir que o papel da mão-de-obra escrava foi muito relevante, uma vez que o período – mínimo de 02 e máximo de 05 anos – cobre boa parte do período de construção da Rodovia, incluindo a fase em que os imigrantes alemães estiveram trabalhando. Os valores pagos por Mariano Procópio também eram consideráveis. Em duas escrituras, uma realizada em 21 de janeiro de 1855 e outra realizada em 06 de maio do mesmo ano Mariano Procópio desembolsou 17 contos e 352 mil Réis pelo tempo de 4 anos, um valor considerado

23alto para a época .

O aluguel de 25 escravos pertencentes á Jorge Afonso de Golveias, residente na vila de Barbacena em maio de 1855 é esclarecido pelo Relatório do Presidente da Província de Minas, quando neste se afirmou o seguinte: “Dividem-se os trabalhos em duas categorias, compreendendo a primeira a reparação, e conservação da estrada atual desde a ponte do Parahybuna até a

24Cidade de Barbacena (...)” . As obras realizadas pela CUI incluíam, além da construção do trecho ligando Juiz de Fora à Petrópolis a reforma do percurso Barbacena-Juiz de Fora. Daí a necessidade de alugar escravos de um proprietário que residisse próximo às obras.

Mais adiante, no mesmo relatório, encontramos a seguinte constatação: “A reparação, e conservação da estrada actual do Parahybuna tem exigido constante

25emprego de não diminuto pessoal (...)” . Como é de notório saber, os imigrantes alemães chegaram Juiz de

26Fora apenas no ano de 1858; logo, podemos concluir que o “não diminuto pessoal” referia-se à mão-de-obra escrava alugada aos proprietários locais por Mariano Procópio. Em outros termos, a utilização de escravos em uma obra pública foi, não somente aceita como referendada, pelas autoridades oficiais da Província, uma vez que, ainda no mesmo relatório lê-se que: “os trabalhos desta companhia executados no anno que decorreo do 1º de fevereiro de 1855, e por mim examinados em grande parte quando vim da Corte para

27esta Capital [Ouro Preto]” .

Mão-de-obra livre nos empreendimentos da CUI: germânicos, portugueses e brasileiros.

Segundo Birchal, dos 1.102 homens de que dispunha a CUI em 1856, 18% ou 202 indivíduos eram artífices e jornaleiros livres, em sua maioria brasileiros, alguns qualificados e possivelmente recrutados nos

arrabaldes dessa cidade, onde a empresa instalou suas 28

principais oficinas e a sede de sua administração . Desse contingente de operários não-escravos, fazia parte ainda um grupo de aproximadamente vinte oficiais de ofício germânicos, contratados em Hamburgo no segundo semestre de 1855 e que chegaram a Juiz de Fora, com suas

29respectivas famílias, em janeiro do ano seguinte . Tratava-se, como explicam Stheling e Giroletti, de artífices experientes e de ramos manufatureiros variados - mecânicos, fundidores, ferreiros, folheiros, ferradores, segeiros, seleiros, carpinteiros, marceneiros, pontoneiros, pedreiros, pintores e oleiros - que dispunham de um contrato com a CUI que, em resumo, lhes garantia trabalho durante dois anos, com salários médios de 2$000 por dia, pagos ao final de cada mês, além de transporte, moradia e alimentação durante todo

30esse período .

Cerca de dois anos depois, entre janeiro e agosto de 1858, novas levas de imigrantes germânicos foram trazidas a Juiz de Fora, desta vez não apenas para trabalharem nas oficinas, estações e estradas que a CUI construía na região, como também para povoarem a colônia agrícola D. Pedro II, organizada com vultosos recursos obtidos por essa empresa junto ao governo imperial. É possível que além dos fortes vínculos que o presidente da CUI, Mariano Procópio, mantinha com o monarca brasileiro, a existência de uma cláusula que vedava (mas que não impediu de fato) o emprego de cativos nas obras contratadas com o Estado tenha contribuído para que a direção daquela companhia conseguisse a rápida liberação de uma considerável soma de dinheiro público para a importação desses colonos

31alemães . Tais trabalhadores provinham, em sua maioria, do grão-ducado de Hessen, do Tirol, da Prússia, Holstein e Baden e pertenciam a distintos segmentos profissionais (agricultores, sapateiros, alfaiates, barbeiros, carpinteiros, pedreiros, parteiras, padeiros, carroceiros, relojoeiros, marceneiros, ferreiros, funileiros, pintores, ferreiros, carpinteiros de carros, serralheiros, entre

32outros) .

Na verdade, esses imigrantes se fixaram no município sob condições bastante diversas daquelas oferecidas, pelo menos em termos contratuais, aos artífices germânicos que desde janeiro de 1856 viviam e trabalhavam em Juiz de Fora. Isto, primeiramente,

16 - Relações entre Estado e Iniciativa Privada no Século XIX: Estudo de caso da Companhia União e Indústria

33STEHLING. Op. cit., pp. 206-207; CARNEIRO, Deivy F. Conflitos, crimes e resistência. Rio de Janeiro, UFRJ, PPGHIS, 2004, pp. 183-208 e FERRÃO. Op. cit., p. 06. 34Entre os artífices e trabalhadores braçais estrangeiros engajados pela CUI, de 1855 a 1861, predominavam os germânicos e lusitanos. Mas os brasileiros livres da região eram também uma importante fonte de mão-de-obra qualificada e não qualificada: Ver BIRCHAL. Op. cit., pp. 10-12.

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35STEHLING. Op. cit., pp. 206-207.36STEHLING. Op. cit., pp. 306-310.

porque os colonos chegados em 1858, além de serem obrigados a reembolsar as despesas com as viagens marítima e terrestre e pagar por outras “antecipações” eventualmente recebidas (moradia, víveres, ferramentas, pequenos animais de criação), deviam saldar também o valor dos seus respectivos prazos na Colônia D. Pedro II. Por outro lado, quando estes se empregavam como operários nas oficinas e canteiros de obra da CUI, tinham que se submeter a ordenados bem menores, de 1$000 em média.

Em dezembro de 1860, segundo cálculos de Giroletti, a CUI empregava em suas obras, estações e oficinas aproximadamente 70% da população masculina da Colônia D. Pedro II apta ao trabalho. Dos salários recebidos por esses operários, cerca de um quarto era destinado compulsoriamente à amortização de suas respectivas dívidas com tal firma. Esse endividamento, como notou o autor, mantinha grande parte dos colonos atada aos ditames da empresa: “De um montante de 73,8 contos em 1867, a dívida foi reduzida para 67,3 contos em 1870, ou seja, (...) não havendo acréscimo de juros por mora, seriam necessários mais de trinta anos para integralizá-la”, se mantida a média de sua redução anual em 2,1 contos de réis.

Por contrastar em tudo com o que havia sido anteriormente prometido pelos representantes da CUI em Hamburgo, essa realidade degradante – que se tornava mais grave com os constantes atrasos de salários, as péssimas condições de habitação e a escassez de gêneros alimentícios - se constituiu na principal causa de uma tentativa de sublevação na Colônia D. Pedro II em fins de 1858. Apesar dessa ameaça de levante ter sido prontamente reprimida pelo destacamento policial local, que encarcerou por alguns dias os seus supostos líderes, o clima de tensão não diminuiu, motivando inclusive o protesto formal do representante diplomático do Reino da Prússia no Brasil, barão de Meusebach, contra “os maus tratos e as explorações que constatara pessoalmente nas visitas” que realizou, nessa época, à citada colônia agrícola. Segundo Stheling, aconselhados pelo diplomata prussiano, desde então muitos colonos se recusaram a pagar a dívida que lhe era atribuída pela empresa, enquanto alguns preferiram ainda se mudar

33para outras áreas, na cidade ou fora dela .

Embora sejam ainda bastante restritos e fragmentados as dados disponíveis sobre os trabalhadores lusos e brasileiros empregados pela CUI, de meados dos anos 1850 até fins da década de 1870, há fortes razões para se acreditar que esses operários recebiam os mesmos salários baixos e aviltantes pagos

34aos colonos germânicos . Soma-se à estas precárias condições de existência, dando a elas um aspecto ainda

mais grave, o fato de que nas cidades e fazendas das províncias cafeeiras, em especial, grande parte dos imigrantes portugueses e alemães, a exemplo do que ocorria com muitos jornaleiros nacionais livres, eram obrigados a labutar, ombro-a-ombro, com cativos de

35todos os tipos .

Em cartas enviadas à Alemanha, entre as décadas de 1850 e 1860, o colono João Ziegler informou a seus parentes, dentre outras coisas, que trabalhavam então cerca de dez horas por dia em uma pedreira da CUI. Embora se mostrasse otimista em relação à exploração de seu prazo na Colônia D. Pedro II, relatava que metade de seu ordenado era retida mensalmente pela empresa, a título de amortização de dívidas. Numa carta de abril de 1862, em particular, admitiu estar passando por grandes dificuldades: “Pois estamos agora construindo uma nova casa e há oito meses a Companhia não faz pagamento porque ela está ruim. (...) Já há muito tempo porém estávamos esperando o pagamento e como ouvimos falar

36 este poderá demorar ainda três meses .”

Esse cotidiano de exploração e miséria, permeado pelas brutalidades do sistema escravista, não estava muito distante da realidade enfrentada, na maior parte do terceiro quartel dos oitocentos, pelos operários germânicos , por tugueses e bras i le i ros nos empreendimentos e domínios da CUI. Cabe lembrar, neste sentido, que durante a construção da rodovia que ligava Juiz de Fora a Petrópolis, e também de seus vários ramais, os artífices não-escravos configuraram-se enquanto maioria apenas em certos serviços especializados, como a edificação de pontes e a operação das estações de muda e carga distribuídas ao longo dessas estradas. No regime de trabalho em que esses indivíduos juridicamente livres encontravam-se inseridos, por conseguinte, muitas práticas características do mundo senhorial se faziam presentes, como evidenciam as jornadas de mais de dez horas diárias que tinham que cumprir os salários baixíssimos que recebiam - geralmente com atrasos de até onze meses e com descontos que chegavam à metade do seu valor nominal - e a repressão e punição daqueles que ousassem se contrapor a esse quadro de injustiças.

Contexto após 1865: uso mais intenso de mão-de-obra livre

No que se refere especificamente à composição da força de trabalho, entretanto, nos anos posteriores à inauguração da referida malha viária, a situação parece ter se invertido por completo, sobretudo em função da demanda cada vez maior dos cafeicultores da região por cativos. Com efeito, ao percorrer pela primeira vez a ligação macadamizada entre Petrópolis e Juiz de Fora,


37Cf. AGASSIZ & AGASSIZ. Op. cit., pp. 80-83 e 93-96.38PIRES, op. Cit. p. 56. 39STEHLING. Op. cit., pp. 144-145; GIROLETTI. Op. cit., pp. 63-65 e BIRCHAL Op. cit., pp. 10-12.40ESTEVES, Albino. Mariano Procópio: trabalhos originais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro; jan / mar. 1956, pp. 244-264.

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41BASTOS, Op. cit., pp. 42-45 e STEHLING. Op. cit., pp. 240-243 e 311-313.

acompanhando seu marido e outros membros da expedição científica liderada por ele, a escritora norte-americana Elizabeth Agassiz notou que desde 1865, pelo menos, a direção da CUI procurava se adequar à política imperial de restringir o uso de mancípios em obras e serviços públicos:

“Para a conservação das estradas, (...) para as reparações, por exemplo, que exigem grande quantidade de trabalhadores constantemente em ação, explorando as pedreiras, quebrando pedras para o macadame, cobrindo o sulco deixado pelas rodas, retificando os taludes, etc., só se admitem trabalhadores livres (principalmente alemães e portugueses). Esse cuidado em excluir os escravos dos trabalhos públicos (...) inspira-se na idéia de limitar pouco a pouco o trabalho servil às ocupações agrícolas, afastando os escravos das

37grandes cidades e suas vizinhanças .”

A presença massiva e diligente desses homens se fazia indispensável, sobretudo, após períodos de chuvas intensas e entre os meses de maio e outubro, quando se processava o escoamento do grosso da produção cafeeira da Zona da Mata mineira para o seu principal porto exportador. De fato, a julgar pelo volume total de mercadorias transportadas por essa via durante os seus dez anos iniciais de operação até meados da década de 1870, a CUI necessitou manter numerosas turmas de operários ao longo da extensa malha viária sob sua

38concessão .

Deste modo, entre as décadas de 1850 e 1870, tanto os cativos quanto os indivíduos livres pobres desempenharam, em maior ou menor grau, papéis fundamentais nesse processo de consolidação e expansão da produção cafeeira na região. Como sugere o conjunto de informações apresentado até aqui, após ter sido amplamente empregado nas obras de implantação da rede de estradas da CUI, o braço servil foi fortemente confinado na lavoura, cabendo quase que exclusivamente a assalariados germânicos, portugueses e brasileiros a realização dos serviços rotineiros de manutenção da referida malha viária.

Ao que tudo indica, esses trabalhadores livres foram majoritários também na operação das grandes oficinas, da olaria e da telheira que a CUI mantinha nos arredores de Juiz de Fora. Era justamente nesse complexo manufator, seguramente o mais importante da região até o início da década de 1870, que a CUI produzia boa parte do material empregado na edificação e manutenção de suas estações, além das carroças e diligências que trafegavam

39pela malha rodoviária sob sua administração .

Durante toda a década de 1860, o trabalho e a produção permaneceram intensos nessas oficinas, tendo

em vista o crescimento contínuo verificado no volume de cargas e passageiros transportados pela CUI na sua principal estrada e em seus diversos ramais na região, que

40requeriam e recebiam manutenção constante . Tal complexo manufator só arrefeceu o ritmo de sua movimentação em meados do decênio seguinte, como conseqüência direta da gradativa diminuição do fluxo geral pela Rodovia, que perdia a sua importância à medida que novos trechos da ferrovia D. Pedro II eram franqueados ao tráfego, situação que contribuiu decisivamente para a própria falência daquela Companhia, ocorrida por volta de 1879. Com efeito, vinte e poucos anos após terem sido percorridas pelo imperador e por destacados membros das elites locais, aquelas antigas instalações manufatureiras foram alienadas para um consórcio integrado por industriais e negociantes radicados no Rio de Janeiro. Nessa mesma

41época, houve a extinção oficial da Colônia D. Pedro II .

Relações entre Estado e Iniciativa Privada no Século XIX: Estudo de caso da Companhia União e Indústria


*Professor Adjunto do Departamento de História e do Mestrado de Integração Latino-Americana da UFSM, Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP.1Flores da Cunha deu sua principal opinião sobre a LSN em 11/02/1935: “(...) Sou inteiramente favorável à LSN. (...) Nunca esteve em meu pensamento dotar o governo de um instrumento de compressão. Meu desejo sincero é que, ao contrário, essa lei presida um alto espírito liberal (...)”. Cf. suas declarações no Diário Carioca, de 12/02/1935, no seu prontuário no Fundo DESPS, Setor Prontuários, Notação 454-1, APERJ.

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2Cf. O fechamento da Federação Operária. Diário de Notícias, Porto Alegre, 10/04/1935. p. 3, MCSJHC/RS.3Dario Crespo assumiu na Câmara dos Deputados. Cf. O novo chefe de polícia do estado. Diário de Notícias, Porto Alegre, 17/04/1935. p. 16, MCSJHC/RS.4A carta foi publicada posteriormente em A Classe Operária, órgão do Comitê Central do PCB, n. 185, na edição de 20/06. Cf. edição original do jornal do Fundo DOPS, Setor Comunismo, Pasta 4, APERJ.5Cf. Comunistas, em ação, presos no Rio. A Federação, Porto Alegre, 22/05/1935. p. 1, MCSJHC/RS.

Contra o empoderamento da Aliança Nacional Libertadora,

o reforço do poder de Estado com a Lei de Segurança Nacional

Diorge Alceno Konrad*

m 1935, o Brasil atravessava uma conjuntura política de radicalização das posições ideológicas. Muitos militares que haviam apoiado o Governo Vargas passaram a chamar o Movimento de 1930 de “revolução traída”, dirigindo-se para a esquerda na Aliança Nacional Libertadora (ANL), ou para a direita na Ação Integralista Brasileira (AIB); Vargas e seus aliados estavam em luta pela aprovação da Lei de Segurança Nacional (LSN) e, conseqüentemente, um maior fechamento do regime; a oposição liberal-democrata temia a diminuição das liberdades públicas, mas horrorizava-se com qualquer perspectiva de radicalização à esquerda; e a esquerda, tendo a frente o Partido Comunista do Brasil (PCB) passara a organizar-se em frente popular propondo reformas radicais no desenvolvimento capitalista no Brasil, via ANL, a organização política e social organizada em todo o país e criada em março de 1935.

A ANL era a expressão brasileira das frentes populares, organizadas pro diversas concepções políticas, visando contrapor-se ao avanço do nazi-fascismo. Sua marca nacional era a posição antilatifundiária e antiimperialista.

Cresc imento da ANL e restr ição democrática

A restrição das liberdades civil e política, sobretudo procurando atingir os movimentos sociais progressistas, visando também os mili tares antivarguistas, através da LSN, ganhava no Rio Grande

1do Sul o apoio de Flores da Cunha . Era uma resposta concreta ao crescimento da ANL. No estado, as diretorias dos sindicatos da capital tratavam da reorganização da Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), que se encontrava fechada desde as greves surgidas entre os têxteis, metalúrgicos e operários em fábricas de mosaicos, em janeiro de 1935, quando Dario Crespo, chefe de polícia rio-grandense, resolveu mandar fechar a Federação. Entretanto, Ernani de Oliveira, da Inspetoria Regional do Ministério do Trabalho, resolveu impedir a

E reabertura da entidade, pedindo a intervenção de Dario 2Crespo .

Esta seria uma das últimas medidas do Chefe de Polícia do Rio Grande do Sul. Cinco dias depois foi empossado no cargo Poty Medeiros. Na ocasião, demonstrando a continuidade da política policial desenvolvida no estado e de acordo com as medidas repressivas nacionais em curso, proferiu um discurso centrado na manutenção da ordem:

“Num momento, como o presente, de apreensões e de incertezas, em que o mundo se contorce, sacudido por extremismos de toda sorte, por ideologias avançadas e antagônicas, cabe à polícia missão demarcada e notória, prevenindo os delitos e assegurando a estabilidade social, dentro da qual seja possível o convívio sereno e tranqüilo da grei humana,

3na expansão sadia de toda atividade honesta” .

Com a LSN, o temor do PCB de expor os seus principais líderes aumentou. Ao ser convidado para assumir a Presidência de Honra da ANL, Prestes respondeu em carta para Hercolino Cascardo, em 21 de maio, como se estivesse em Barcelona e não no Rio de

4Janeiro . Era um subterfúgio para fugir à ação da polícia comandada por Filinto Muller, o chefe de polícia do Distrito Federal.

O PCB, então abrigado essencialmente na ANL, aumentava as suas ações visando maior visibilidade política. Ao mesmo tempo, por continuar na ilegalidade, expunha-se a riscos maiores diante da repressão policial.

Quanto mais procurava se organizar o PCB, mais a repressão recaía sobre os seus militantes. No dia 22 de maio, no Rio de Janeiro, em devassa a casas suspeitas, a polícia prendeu em torno de vinte pessoas, todos acusados de comunistas, portando material de

5propaganda, levando-os à DOPS . A repressão também decorria do sucesso do comício da ANL que reuniu no Rio de Janeiro mais de seis mil pessoas, em 13 de maio.

6Cf. a íntegra desse decreto, sob n. 7.221, na Coleção de Leis e Decretos do Estado de São Paulo 1935. Tomo XLV, 1º vol., 1º Semestre. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1935. p. 655. 7Ele se filiara ao PCB em fevereiro desse ano. Pela atuação específica na ANL do Rio Grande do Sul, Agildo Barata foi processado e condenado em um ano, sete meses e quinze dias de prisão, em maio de 1938 pelo TSN. Barata fora denunciado em outubro de 1935 por distribuir e assinar o panfleto “Ao Povo de São Leopoldo”, onde morava. Pelo panfleto, Barata foi acusado de pregar a subversão da ordem social conforme a LSN e diretamente incitar o ódio contra as classes sociais. Cf. Fundo Tribunal de Segurança Nacional, Processo n. 528, Apelação n. 63 – Agildo da Gama Barata Ribeiro, Arquivo Nacional (AN).8O tenente Hugo Silveira, ex-dirigente do núcleo da ANL de Uruguaiana foi denunciado ao TSN, juntamente com os tenentes Cícero Carneiro Neiva e Carlindo Gonçalves Lopes, acusados de tentar aliciar as praças do 7º Batalhão de Caçadores do Porto Alegre. Esse processo, com sete volumes, foi qualificado pelo TSN, em 24/06/1937, pelo procurador Honorato Himalaia Virgolino, como tentativa da ANL do Rio Grande do Sul, com o objetivo de articulação comunista no estado para “secundar o movimento extremista que (...) ficou restrito ao Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Pernambuco, em novembro de 1935. Os três oficiais foram absolvidos pelo TSN em outubro de 1938, por falta de provas, após terem sido expulsos do Exército. Cf. o Fundo Tribunal de Segurança Nacional, Processo n. 74, Apelação n. 201 – Cícero Carneiro Neiva e outros, AN.

9Cf. As atividades extremistas. Correio do Povo, Porto Alegre, 26/06/1935. p. 1, MCSJHC/RS.10Neste dia, no Rio Grande do Sul, a Aliança recém estava lançando oficialmente a entidade estadual. No mesmo dia, quando o Diretório Estadual Provisório da ANL do Rio Grande do Sul chamava para o lançamento da entidade, no Teatro São Pedro, jornal dirigido pelos interesses de Flores da Cunha, na primeira página, conclamava a população de Porto Alegre a não se aproximar do local: “O Jornal da Manhã sente de seu dever avisar a população pacata e ordeira de Porto Alegre que evite, hoje, sua presença nas proximidades do Teatro São Pedro, onde se realizará um comício da ANL, visto como a força armada para ali destacada tem ordem de carregar à menor provocação ou grito sedicioso dos comunistas”. Cf. À população ordeira da capital. Jornal da Manhã, Porto Alegre, 05/07/1935. p. 1, MCSJHC/RS. Sobre a organização, crescimento, atuação e fechamento da ANL no Rio Grande do Sul, ver minha dissertação de mestrado 1935: a Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul, Porto Alegre: PUC-RS, 1994, especialmente p. 140-317.11Ainda em julho, sob o comando de Dom João Becker, foi fundada a Ação Social Brasileira (ASB), cujo programa próximo ao integralismo, defendia a luta direta ou velada contra o comunismo.12Cf. Uma Frente Parlamentar da Maioria e Minoria para combater os extremismos. Jornal da Manhã, Porto Alegre, 14/07/1935. p. 1, MCSJHC/RS. 13Cf. essas declarações no verbete sobre Cascardo, escrito por Renato Lemos, em ABREU, Alzira de, BELOCH, Israel, LATTMAN-WELTMAN, Fernando e LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer (Coord.). Dicionário histórico-bibliográfico brasileiro pós-1930. Vol. 1. 2ª ed. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2001. p. 1199.

Repressão e maior mobilização era o duplo da conjuntura, tanto que no dia 25, as mulheres aliancistas e antifascistas fundaram a União Feminina do Brasil (UFB).

A ampliação da organização da ANL e a maior mobilização dos trabalhadores, além de maior atuação pública do PCB, nos finais de junho de 1935, fez circular constantes boatos e notícias na imprensa de que o governo tomaria novas providências em relação a medidas repressivas. O alvo era os movimentos sociais e políticos de oposição. No dia 25, no Rio de Janeiro, já se divulgava que Filinto Müller entregara a Vargas um relatório sobre as atividades oposicionistas na capital e nos estados.

Em São Paulo, no dia 21, o governo do estado criou a Polícia Especial, subordinando-a a Secretaria de Superintendência de Ordem Política e Social. A justificativa foi de que a polícia do estado necessitava de “um aparelhamento de repressão capaz de atuar com presteza e eficácia nos casos de grave perturbação da

6ordem pública” .

No dia 24, a 3ª Delegacia Auxiliar de Porto Alegre enviou para a DESPS, na capital federal, a lista dos seguintes nomes: o capitão Francisco Moésia Rolim; o capitão Agildo da Gama Barata Ribeiro (Vice-Presidente da Comissão Provisória da ANL estadual e integrante do 8º Batalhão de Caçadores de São Leopoldo) e; os primeiros-tenentes Felipe Vianna e Prudente de Castro. Todos eram apontados como integrantes da lista dos oficiais aliancistas do Rio Grande do Sul que lideravam a agremiação. Além destes, eram listados os

7militares José de Andrade Leão (de São Leopoldo) , Sílvio Porto Dias (tenente do 7º RCI de Livramento) e

8Hugo de Souza Silveira (de Uruguaiana) .

Enquanto isso, o Correio da Manhã, jornal conservador do Rio de Janeiro, dizia que Vargas não tomava “nenhuma providência radical contra as idéias

9subversivas, somente por não ter uma lei onde se basear” . Mas o motivo esperado por Vargas viria com o Manifesto de Luiz Carlos Prestes, de 5 de julho de 1935, indicando

10todo o poder à ANL .

O crescimento aliancista verificado até então fez com que os setores conservadores reagissem a ela,

11marcados pelo anticomunismo .

O manifesto de Prestes foi a justificativa para Vargas determinar o fechamento da ANL, por sugestão de Góis Monteiro, através de decreto n. 229 de 11 de julho. Em todo o país, a polícia passou a invadir, fechar e lacrar as sedes da entidade, medida que repercutiu com simpatia nos meios políticos rio-grandenses, principalmente entre republicanos, republicanos-liberais e libertadores, pois a campanha da “pacificação política rio-grandense” vinha sendo acompanhada de outra “para neutralizar e impedir a expansão das idéias extremistas” e o “perigo comunista”.

Logo após a divulgação do fechamento da ANL, a polícia gaúcha, tratou de intervir nos núcleos aliancistas do Rio Grande do Sul, exercendo também severa vigilância sobre suspeitos de serem comunistas ou anarquistas.

O mesmo acontecia nacionalmente; Na Câmara dos Deputados, reuniões da maioria com a minoria um entendimento unificava diferentes partidos das classes dominantes brasileiras. Para os integrantes da minoria, a decisão só seria de “combater abertamente o extremismo e apoiar-se na maioria, se preciso, no caso em que os extremistas, indo da palavra a ação”, procurassem

12“derrubar o regime por meios violentos” .

Um dia após o fechamento da Aliança, seu presidente Hercolino Cascardo declarou para o jornal A Manhã que desconhecia a medida oficial, acusando Filinto Müller de “difamar a reputação de milhões de brasileiros dedicados de corpo e alma à libertação de sua pátria”. Negava as acusações de que a ANL era comunista e ameaçava o chefe de polícia de levá-los aos tribunais

13por aquelas acusações . Pouco depois a polícia acatou o decreto governamental que também ordenava fechar, através do decreto n. 246, todas das sedes da UFB, a frente de mulheres do PCB, organização que não chegou a completar dois meses de existência.

20 - Contra o empoderamento da Aliança Nacional Libertadora, o reforço do poder de Estado com a Lei de Segurança Nacional

14Enquanto era fechada no Brasil, a ANL passou a servir de exemplo das frentes antifascistas, decididas como forma de organização prioritárias pelo VII Congresso da IC, ocorrido em Moscou entre a última semana de julho e a primeira de agosto.15Cf. Em todo o Brasil, os comunistas mascarados incitam o operariado à greve geral e Pregando a greve geral entre o operariado paulista. Jornal da Manhã, Porto Alegre, 17/07/1935. p. 1, MCSJHC/RS.16Cf. o Boletim de Agitação e Propaganda, da Comissão de Agitação e Propaganda Nacional, PCB (Seção da IC). Rio de Janeiro, Julho de 1935. p 3-5. Coleção Internacional Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/UNICAMP). Nesse documento, a referência sobre o Rio Grande do Sul era de que estavam sendo realizados trabalhos de massa, apesar da reação, principalmente nas minas de carvão e outras.

- 21

17Aparício Córa de Almeida, advogado criminalista, era o primeiro secretário da ANL gaúcha e integrante do PCB no Rio Grande do Sul. Em 14/10/1935, aos 29 anos de idade, foi encontrado morto em um bar do centro de Porto Alegre com um tiro na cabeça. A polícia de Flores da Cunha, suspeita de cometer o crime, constatou que ele havia cometido suicídio brincando com o revólver. A família de Aparício contratou os advogados Alberto Pasqualini, João Antônio Mesplé, Augusto Moreira Lima e Lúcio Soares Neto para acompanhar o inquérito, mas nada conseguiram provar. Apesar de ser uma das principais lideranças antifascistas do estado, a morte de Almeida teve pouca repercussão na imprensa, devido à censura comandada pelo governo estadual. Cf. as circunstâncias da morte de Almeida em BARATA, Agildo. Vida de um revolucionário (memórias). 2ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1978. p. 244-5.18Ver Medidas extremistas? e A prisão de dois elementos indesejáveis. Jornal da Manhã, Porto Alegre, 19/07/1935. p. 4 e 6, respectivamente, MCSJHC/RS. Dyonélio Machado, apesar de presidente da ANL no Rio Grande do Sul, ainda não era filiado ao PCB. No dia seguinte ao da prisão de Machado, em entrevista coletiva, Flores da Cunha considerou que todos aqueles que no Rio Grande do Sul agissem como Dyonélio, sofreriam “guerra sem tréguas do governo”. Cf. Combate ao extremismo, idem, 19/07/1935. p. 12, MCSJHC/RS.

Depois da ilegalidade, a ANL chama a mobilização e o governo aumenta a repressão

A ANL tentou resistir ao seu fechamento, conclamando os trabalhadores a fazer greve contra o ato

14arbitrário de Vargas .

Em São Paulo, no dia 15, em uma reunião no Sindicato dos Empregados no Comércio, quando se tentava organizar a juventude a favor da ANL, através do Órgão da Juventude Popular, Estudantil e Proletária, a polícia invadiu o local, prendendo vários.

No dia 16, os operários do Lanifício Eilet – Armênio e da Estofaria Matarazzo declararam-se em greve parcial, por motivo do fechamento da ANL. Houve pequeno conflito entre os operários que deixaram o trabalho e os que nele permaneceram, porque a polícia não permitiu o piquete. A Secretaria de Segurança Pública distribuiu um comunicado à imprensa, declarando saber que “desordeiros” pregavam a greve geral entre o operariado “visando perturbar a marcha do

15trabalho brasileiro” .

O PCB também procurou reagir, convocando manifestações para reforçar a Aliança, chamando movimentos para 1º e 23 de agosto, comemorando o primeiro aniversário do Congresso Nacional contra a Guerra e o Fascismo e preparando o Congresso da Juventude Operária, Estudantil e Popular. Visava desencadear greves nas cidades e luta nos campos, com a tática da ANL ser a “dirigente geral e coordenadora de todas essas lutas” naquela etapa da revolução, pois ela seria “o organismo” que iria “ocupar o poder com Prestes à frente, no Governo Popular Nacional revolucionário”.

16No entanto, o intuito era “reforçar o próprio Partido” .

Porém, ampliava-se em todo o Brasil o discurso contra a ANL, acusando o PCB de esconder-se através de sua sigla e de estar a serviço de Moscou. Assim, qualquer tentativa de organizar resistência legal ao fechamento da Aliança, aparecia para os setores conservadores como movimentação dos “extremistas”.

No Rio Grande do Sul não seria diferente. No dia 17 de julho, em Porto Alegre, a polícia prendeu em flagrante o gráfico Bernardino Garcia nas oficinas da Livraria do Globo, quando distribuía panfletos sobre o fechamento da ANL, conclamando os operários a parar o trabalho em protesto. Bernardino identificou Dyonélio Machado como o autor dos boletins. Em seguida, a polícia deteve o médico e escritor, que passou a ser

chamado pela imprensa de “chefe comunista no estado”. Dyonélio assumiu a responsabilidade, negando para a polícia “empenho em criar uma situação de embaraço para a coletividade trabalhista do estado, levando-a a uma parede prejudicial aos interesses políticos, sociais e econômicos do Rio Grande”. Mesmo assim, depois de ser inquirido pelo delegado Argemiro Cidade, então responsável pela DOPS, a Chefia de Polícia enquadrou Dyonélio e Bernardino no artigo 19 da LSN, prendendo-os preventivamente e enviando o caso para a Justiça Federal.

O advogado Aparício Córa de Almeida, 17também integrante da direção da ANL , impetrou hábeas

corpus em favor dos detidos. Ao mesmo tempo, o anticomunismo se ampliava no Rio Grande do Sul. A matéria do Jornal da Manhã esclarece essa posição:

“(...) somente o fechamento desses núcleos não bastaria para reprimir, efetiva e eficazmente a ação anarquista, dissolvente, criminosa desses elementos que agem a soldo da URSS (...) para o esmagamento completo dos conceitos de Religião, Pátria, Liberdade e Família (...) Não bastam, porém, essas duas prisões.(...) Chegamos a uma situação em que não é mais possível ter-se a menor contemplação com essa

18gente” .

A promessa repressiva de Flores da Cunha, colocada em prática no Rio Grande do Sul, se estendia por todo o Brasil, visando principalmente às “atividades extremistas”, pois as polícias, tanto do Distrito Federal como dos estados, passaram a elaborar planos de ação conjunta.

Em agosto de 1935, o PCB programou um mês de protestos por todo o país. No Rio de Janeiro, as atividades começaram no primeiro dia do mês, sendo já esperadas pela polícia, especialmente pela seção de Segurança Política e Social, que tomou as providências para impedir diversos comícios na “Jornada Vermelha Internacional Contra a Guerra Imperialista”. Serafim Braga, chefe da seção de repressão social e política, tendo conhecimento prévio dos locais escolhidos pelo PCB, distribuiu diversas turmas de investigadores por todos os pontos da Capital Federal, a fim de impedir que eles realizassem comícios clandestinos.


19O anúncio do chefe de polícia foi cumprido. Pelo ofício n. 1842, de 10/12/1935, a polícia do Rio Grande do Sul considerou a “Sociedade Luz de Russos Brancos e Ucranianos” como uma entidade que desenvolvia “intensa atividade na propaganda bolchevique” o que justificava o pedido de expulsão do território nacional dos membros da diretoria. Assim, por decretos do Ministério da Justiça, de 23/12/1935, foram expulsos do país Daniel Rapcki, André Ckoviescivice, Teodoro Jasyk, Calinik Demianchisk e Alexandre Slinko. Cf. Mensagem enviada à Assembléia Legislativa pelo Dr. Darci Azambuja, Secretário dos Negócios do Interior no exercício do cargo de Governador do Estado, em 01/07/1936, Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1936. p. 13, AHRS. Em 26/07, o decreto n. 309, assinado por Getúlio Vargas e Vicente Ráo, determinou o fechamento por seis meses dos núcleos da “União e Luz Operária Russo-Branca-Ucraniana, considerando que agiam “atividade subversiva da ordem política e social”, com base nos termos do artigo 29 da LSN, A íntegra do decreto pode ser vista em JORGE, Teobaldo José. O Estado de Guerra e a LSN. Rio de Janeiro: Borsos e Cia., 1937. p. 90-1, Biblioteca Nacional (BN/RJ).20Rollemberg já havia sido peso em março, por ter elaborado um panfleto contra a LSN. Com a participação na Insurreição de 1935, foi preso, tendo cassada a sua patente militar em abril de 1936. Ver Fundo DPS, Setor Prontuários, Notação 1.172, APERJ. Rollemberg foi denunciado no TSN em processo conjunto em 12/07/1937 e julgado em 22/03/1938. Cf. o Fundo TSN, Processo n. 85, Apelação n. 42 – Antônio Rollemberg e Outros, AN.

21Dario Garbelotti, mineiro e natural de Santa Catarina, quando foi preso tinha apenas 17 anos. Foi julgado como comunista e condenado a 6 meses de prisão

celular em 07/03/1936, incurso no artigo 19 da LSN. Cumpriu pena na Casa de Correção até 08/04/1936. Cf. Fundo Polícia, Série Casa de Correção, Sub-Série Entrada de Presos, livro de matrículas n. 9 (este foi aberto e fechado por Poty Medeiros), 1935-1936, P-318, AHRS.22Cf. Distribuíam boletins subversivos. Correio do Povo, Porto Alegre, 15/10/1935. p. 5, MCSJHC/RS.

Em Porto Alegre, a fim de evitar as manifestações, a polícia priorizou a atuação no 4º Distrito, principal localização operária da cidade, ainda no dia primeiro de agosto. Ali, foram dadas várias batidas depois de denúncias recebidas sobre “atividades extremistas” no local. As diligências efetuadas, chamadas na época de canoas e realizadas com grande aparato, foram chefiadas por vários delegados e pelo comandante interino da Guarda Civil, dela participando numerosos investigadores, praças da Brigada Militar e agentes da Guarda Civil. Foi efetuada a prisão de muitas pessoas, conduzidas à Chefatura de Polícia, a fim de serem identificadas e prestar declarações.

Nesse episódio, a polícia apreendeu “documentos suspeitos vazados em língua russa”, que passaram a ser traduzidos pela polícia. Durante a batida forem encontrados cerca de sessenta homens e dez mulheres durante uma reunião. Foram apreendidos também um mimeógrafo, numerosas cartilhas e livros elementares, além de grande quantidade de material de propaganda, que “repetidamente era distribuído em ruas daquele distrito entre a classe proletária” e que expressavam a teoria marxista, revelando assim, para a polícia, “os verdadeiros fins daquelas assembléias”.

A DOPS havia recebido denúncia de que a Sociedade Luz de Russos Brancos e Ucranianos vinha realizando reuniões secretas, que teriam como objetivo “desenvolver idéias comunistas no Rio Grande do Sul”. Poty Medeiros, chefe de polícia, anunciou que os “agitadores estrangeiros que foram detidos” deveriam ser expulsos do país, de acordo com as leis vigentes na

19época .

Cada vez mais a polícia apertava o cerco sobre integrantes do PCB e da ANL. Esta funcionava clandestinamente e quase que exclusivamente com militantes comunistas. No início de agosto, o ministro da Guerra, general João Gomes, mandou prender o capitão

20Antônio Rollemberg, integrante aliancista, por este ter assumido a distribuição de panfletos na capital federal.

Ao mesmo tempo, o jornal A Batalha, que centrava os ataques na ANL, então dirigida por Júlio Barata, em atitude policialesca, chamava a atenção de Filinto Müller e do Ministro da Justiça Vicente Ráo sobre o capitão e aliancista Trifino Corrêa. Enfatizava suas influências sobre investigadores e delegados de polícia.

O mesmo procedimento de vigilância policial, sempre apoiado por boa parte da imprensa carioca, contraditoriamente dominada pela censura, era feito com os movimentos sociais. No dia 13 de agosto, a polícia do Rio de Janeiro conseguiu impedir a deflagração de uma greve de motoristas, os quais reivindicavam abolição das comissões sobre a féria diária; oito horas de trabalho; retirada de ônibus da Avenida Rio Branco; salário mínimo; descanso semanal e modificação do regime de multas.

No Rio Grande do Sul, em outubro, a polícia divulgava a prisão de Dario Gaberlotti e Alberto Lukinskas, operários que distribuíam panfletos. Durante o inquérito ficou apurado ser Dario Garberlotti “cabeça do movimento que se esboçava”. Depois de decretada

21prisão preventiva, foi recolhido à Casa de Correção . A prisão de Garbelotti se deu após o delegado Argemiro Cidade, encarregado da Ordem Política e Social, receber uma denúncia do município de São Jerônimo, onde estavam situadas as minas do “Arroio dos Ratos”. Ali, os operários mineiros estavam distribuindo, “entre seus companheiros de trabalho, boletins (...) incitando a uma greve geral, a fim de obterem, entre outras coisas, a reabertura das sedes da ANL”. Ao tomar conhecimento da delação, o delegado imediatamente mandou um investigador a São Jerônimo para apurar as denúncias e

22efetuar a prisão dos indicados .

Em 14 de outubro, no dia da morte misteriosa de Aparício Córa de Almeida, primeiro secretário da ANL do Rio Grande do Sul, Luiz Carlos Prestes escreveu para o major Carlos Costa Leite, lhe dando informações sobre a movimentação ilegal da ANL nos estados do Sul, afirmando:

Estamos incontestavelmente nas vésperas de grandes acontecimentos em todo o país. Isto não é simplesmente uma frase como tantas outras que se repetem vagamente. Resulta da análise aprofundada da situação econômica e política em que nos encontramos. Marchamos a grandes passos para uma crise durante a qual ninguém poderá ficar neutro. A ANL, apesar de lançada na ilegalidade, será a força capaz de dirigir o povo e todos os brasileiros serão obrigados a tomar posição clara nos próximos dias a favor ou contra ela... Justamente com esta receberá as últimas instruções do Diretório Nacional, a respeito do que será o Governo


23O rascunho desse bilhete foi encontrado no cofre “programado” para explodir. Prestes escrevera também para Agildo Barata, quando este estava em Porto Alegre, em 2/08, conclamando-o a prosseguir a luta até a vitória da ANL. Ver o conteúdo da carta para Costa Leite e o comunicado para Barata em recortes do jornal carioca Diário da Noite de 10 e 11/01/1952, no Fundo DPS, Setor Dossiês – Revolução de 1935, Notação 451, APERJ. 24Cf. Pela libertação de Dyonélio Machado. Correio do Povo, Porto Alegre, 22/10/1935. p. 17, MCSJHC/RS. Durante a sua prisão, Dyonélio Machado escreveu para Prestes, através de intermediação de Costa Leite, informando-lhe sobre a situação política do Rio Grande do Sul. Esta carta caiu sobre o domínio policial quando a casa de Ipanema, onde moravam Prestes e Olga Benário, foi descoberta. Ver a relação de todos os documentos no Fundo DPS, Série Dossiês – Revolução de 1935, Notação 451, APERJ.25Essa informação se encontra no seu prontuário, no Fundo DESPS, Setor Prontuários, Notação 264, APERJ.26Essa certeza de vitória era compartilhada pela maioria dos integralistas da época, favorecidos pela situação da Itália e da Alemanha. Exemplo disso foi um livro publicado na época, onde se afirmou: “Nossa vitória é fatal, mas talvez custe muito sangue, muitas lágrimas e muito luto”. Cf. VIVEIROS, Custódio de. Camisas Verdes. Rio de Janeiro, José Olympio: 1935. p. 31, AEL/UNICAMP. Viveiros, curiosamente incluía Getúlio Vargas e Góes Monteiro, respectivamente como o primeiro integralista nacional e um dos próceres políticos que semearam a nacionalidade. Ver idem. p. 118-9.27Cf. Manifestaram-se em greve os operários metalúrgicos no Rio. Jornal da Manhã, Porto Alegre, 8/11/1935. p. 12, MCSJHC/RS.

28O “representante de Pernambuco”, provavelmente é uma referência a Silo Meirelles, integrante da Coluna Prestes e o braço direito de Prestes na organização da ANL no Nordeste. Cf. A agitação comunista no país. Jornal da Manhã, Porto Alegre, 21/11/1935. p. 1, MCSJHC/RS.29Este item contém extratos ligeiramente modificados do artigo Movimentos sociais e políticos no Brasil Contemporâneo e a eleição de 2006, publicado o r i g i n a l m e n t e n o P o r t a l Ve r m e l h o . D i s p o n í v e l e m http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=3415. Acesso em 27 mar. 2009.

Popular Revolucionário, instruções às quais estou de 23pleno acordo .

Nesse mesmo mês, anunciava-se a campanha iniciada no Rio de Janeiro pelo Sindicato Médico Brasileiro, em colaboração com o Centro de Cultura Moderna, visando a libertação imediata de Dyonélio

oMachado, detido desde julho no quartel do 3 Batalhão de Infantaria da Brigada Militar, onde respondia ação

24criminal como incurso na LSN . Em relação ao caso, Pedro Ernesto, prefeito do Distrito Federal, chegou a telegrafar para Flores da Cunha, no dia 21, apelando para

25a liberdade do líder da ANL gaúcha .

Ao mesmo tempo, e com total liberdade de ação, a AIB gaúcha organizou seu Congresso Provincial. Os integralistas trouxeram para Porto Alegre Gustavo Barroso, então diretor geral do Museu Histórico Nacional e filiado a AIB desde 1933. O jornalista e integrante da direção nacional da Ação Integralista, enquanto participava do Congresso, afirmava para a imprensa acreditar “piamente na vitória do integralismo e, infelizmente, mais breve do que seria de desejar”, pois para ele, o movimento ainda não tivera “tempo de

26preparar a mocidade para dirigir o Brasil Novo” .

O proletariado citadino, que não fazia apenas reivindicações políticas, não se acomodava tão facilmente. No início de novembro, as greves convocadas pelos líderes da ANL e que não aconteceram em julho, voltaram à cena social, mesmo que essencialmente de caráter econômico, porém sendo tratadas pelo governo como greves políticas.

Os operários metalúrgicos do Rio de Janeiro declararam-se em parede por motivos salariais, atingindo quase trinta mil trabalhadores. Como de praxe, os patrões negavam-se a atender as reivindicações, enquanto que outras categorias eram convidadas para aderirem ao

27movimento .

Por outro lado, a campanha anticomunista continuava em todo o país. No Rio de Janeiro, como que se previsse ou soubesse de algo para acontecer, uma reportagem de A Batalha, do dia 20 de novembro, abordava a os planos do Komintern para a América do Sul e a “agitação comunista” especialmente para o Brasil. O jornal carioca dizia que no Brasil, os três membros representantes do Komintern eram Luiz Carlos Prestes, O. César, representante dos comunistas de São Paulo, e um representante de Pernambuco. Abordando o VII Congresso da IC, em uma de suas reuniões, em 2 de agosto, citava o discurso de Dimitrov e a saudação “quente e vibrante” para Luiz Carlos Prestes para a “elucidação das atividades comunistas no país”. Dizia que Komintern estaria “dirigindo a todos os núcleos do mundo uma circular secreta sobre a orientação da campanha vermelha, dando a palavra de ordem de combate ao fascismo”, opinião esta que naquele momento, era uma obviedade. Focalizando a ANL como núcleo comunista, Dimitrov estaria confirmando os esforços conspiradores de Prestes. Enumerando os meios de infiltração comunista nas classes armadas e diz que anulada a ANL logo seria substituída por uma “União Brasileira Libertadora”, o periódico alegava que o governo de Getúlio Vargas era fraco e “pouco enérgico na

28repressão ao comunismo .

Se os avanços das greves e a criação da ANL serviram de justificativas para o estabelecimento da LSN, no início de 1935, a decisão da aplicação tática do PCB, após a ilegalidade da Aliança, traria a justificativa final e esperada para o governo Vargas. Fechava-se o regime de vez, acabando com os poucos resquícios de liberdades civis que haviam sido conquistados na Constituição de 1934.

29O sentido histórico da ANL

Fatores estruturais incidiram sobre a formação do conjunto dos movimentos sócio-políticos brasileiros contemporâneos, marcados, por um lado, pela dependência às potências estrangeiras e, por outro, pela grande desigualdade econômica e social, com o aumento da miséria. A herança colonialista e imperialista mpossibilitou a necessária ampliação do mercado interno e restringiu a possibilidade de amplos empregos, devido a monopolização e concentração de atividades fabris e de outras tecnologias em alguns nichos regionais.

Por sua vez, esta lógica de desenvolvimento capitalista expulsou um grande contingente populacional do campo, formando uma massa de subassalariados, além de uma significativa reserva de força de trabalho barata,

- 23História & Luta de Classes, Nº 7, Julho 2009 (19-24)

30Ver Brasil: anos de crise 1930-1944. São Paulo: Ática, 1991. p. 217.

marcada pelo desemprego estrutural, criando um forte processo de migração interna entre as cidades, o que resultou em diversos problemas sociais e precárias condições de alimentação, moradia, saúde, educação, etc.

Dentro deste processo de nossa formação econômico-social, a história da luta social tem se contraposto às teses sobre a “índole pacífica” da sociedade brasileira. Muitos segmentos sociais defenderam-se e resistiram, muitas vezes de armas na mão, contra a exploração de classe e a opressão semi-colonial, seja através de guerras camponesas, seja em lutas e greves da classe operária e nas diversas formas de organização dos movimentos sociais e políticos.

Muitas das lutas de resistência e por transformação social, reformistas ou revolucionárias, colocaram em oposição sociedade civil diante de um Estado dominado pelos interesses privados do latifúndio e do imperialismo e a serviço da dominação externa. Muitas destas lutas se deram em torno de um novo poder de classe e/ou por transformações políticas e sociais com bases estruturais, sob as quais uma conservadora e reacionária classe dominante impediu, por diversas vezes, inclusive pela repressão e pelas ditaduras, qualquer mudança progressista para as parcelas maiores e mais pobres de brasileiros. Não foi diferente quando a ANL foi organizada e, desde os primeiros momentos foi atacada, sobretudo pela LSN. O resultado desse processo de repressão pelo alto ganhou seu ápice com o Estado Novo.

Entretanto, é de se ressaltar que, como identifica Edgard Carone, diante da crise econômica e social vigente, das críticas que Vargas vinha sofrendo da oposição na Câmara Federal e das greves que aparentavam uma determinação crítica do operariado, havia um reforço da idéia de possibilidade de tomada do poder. Ela foi concretizada em novembro, através da Insurreição Comunista, liderada pelo PCB e pela ANL,

30especialmente pelo primeiro .

Estado de Sí t io , Estado de Guerra , aprofundamento da LSN, criação do Tribunal de Segurança Nacional e da Comissão de Repressão ao Comunismo seriam as formas como o Estado reforçaria suas instituições, visando manter o poder de Estado pelas classes dominantes brasileiras. Mas este processo histórico precisaria outro artigo para ser explicado.


*Doutora em História Social do Trabalho pela UNICAMP, Historiadora e Arquivista, Professora Adjunta do Departamento de Documentação da UFSM.

1Jornal do Estado, 25 de novembro de 1937. p. 3. Os exemplares se encontram na Biblioteca Solar dos Câmara da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.2Jornal do Estado, 19 de novembro de 1937. p. 2.3Jornal do Estado, 26 de novembro de 1937. p. 3.4Arquivo Nacional - RJ/Fundo Gabinete Civil da Presidência da República (ANRJ/FGCPR), Rio Grande do Sul, Lata 185. Telegrama de Uruguaiana, 7de março de 1938.

“S ”egurança para o Trabalho e as Realizações de Interesse Geral :

A busca do apoio político para o Estado Novo no Rio Grande do Sul

Glaucia Vieira Ramos Konrad*

stamos podendo alargar a história do período do Estado Novo Rio Grande do Sul, entre 1937 e 1945. Desde a sua implantação, o novo governo ressentiu-se de uma base de apoio político e ideológico suficiente que desse respaldo necessário à sua existência. A construção da auto-imagem foi buscada, mas para isso foi preciso o apoio da intelectualidade e dos trabalhadores, através da construção de uma identificação com a ditadura.

Talvez a historiografia e as ciências sociais tivessem a ganhar, deixando de lado termos como autonomia e heteronomia lidos como opostos inconciliáveis. Conclusões opostas como a existência absoluta de autonomia dos trabalhadores e do sindicalismo (como exemplos pinçados na Primeira República) ou total heteronomia (no caso do Estado Novo) não nos tem ajudado muito para compreender a diversidade e a heterogeneidade da classe trabalhadora brasileira, independente do período de análise.

As novas fontes abertas ao público, sobretudo pela abertura ao público das fontes policiais, ou a releitura de velhas fontes, bem têm demonstrado esta insuficiência, mesmo que o discurso do Estado da época não reconhecesse o direito dos indivíduos, muito menos a luta de classes.

Não se trata aqui, de ignorar a repressão violenta ou subestimar o controle do Estado sobre os trabalhadores. Mas considerar totalmente perdida a autonomia dos trabalhadores e seus sindicatos (mesmo os oficiais) não corresponde com as novas fontes que temos encontrado sobre aquele momento da formação social brasileira. A resistência e a autonomia, que, por sua vez, também não podem ser absolutizadas, fazem parte da trajetória de lutas por direitos. O discurso governista do fim da luta de classes não encontrava correspondência na disposição de confronto de muitas lideranças clandestinas, bem como de reivindicações de trabalhadores comuns. Por isso, o Estado Novo precisava e necessitava consolidar o seu poder.

A busca pelo apoio político

Após o Golpe de 10 de novembro de 1937, o Estado Novo passou por um período de estruturação política e de convencimento social. Não bastava impor um novo regime à sociedade: era preciso convencê-la dos

benefícios que o Estado forte e autoritário poderia fornecer a ela. Essa tarefa não se deu de maneira tranqüila, havendo necessidade da elaboração de uma intensa campanha para mascarar e impedir, até onde fosse possível, a oposição à ditadura. No Rio Grande do Sul não foi diferente do resto do Brasil.

Para isso, foi preciso também manter presente o fantasma do comunismo. Em editorial intitulado “Mobilização Necessária”, publicado no Jornal do Estado, vê-se estampada a preocupação com o mesmo: “assumindo uma atitude definitiva contra a ideologia falsa do marxismo, coordenando todas as forças honestas e dignas da Nação para a defesa do Brasil, o governo federal veio ao encontro das aspirações máximas da

1coletividade” .

Esta situação era considerada preocupante, visto que no Exército praças do 7º Batalhão de Caçadores de Porto Alegre haviam sido expulsos por serem

2“extremistas” . Além do mais, a oposição a Vargas, vinda também dos partidários de Flores da Cunha, ex-governador do estado, estava criando problemas nas cidades do interior, obrigando a que o governo estadual substituísse vários prefeitos. As exonerações ocorriam quase que diariamente: tanto exonerações a pedido quanto aquelas exigidas. As duas formas mostravam que a situação não estava fácil de ser controlada.

Exemplo disso foi o afastamento do prefeito de Farroupilha, Armando Antonelo, em vista das agitações produzidas por sua atuação política na cidade,

3considerada como “em detrimento do interesse público” . O prefeito de Uruguaiana, Flodoardo Martins da Silva, solicitou demissão do cargo, em razão de não concordar com a pouca “autonomia dos municípios gaúchos” e da

4diminuição da “autoridade dos prefeitos” . É claro que muitos prefeitos continuaram em seus cargos, uma vez que foram apoiadores de Vargas desde antes do início da ditadura de 1937. Porém, isso não foi a regra, em vista do número de exonerações registradas na imprensa oficial do período inicial do novo governo.


E

5Jornal do Estado, 4 de dezembro de 1937. p. 1.

6Fundação Getúlio Vargas/CPDOC (FGV/CPDOC), Arquivo Getúlio Vargas, GV.38.03.31.7FGV/CPDOC, Arquivo Getúlio Vargas, GV.38.04.20/2.

A centralização administrativa pouco a pouco colaborava para o fechamento das vias de reação. Exemplo foi o decreto extinguindo os partidos políticos. No Rio Grande do Sul, em decorrência da medida, criou-se um impasse envolvendo secretários do governo rio-grandense, os quais solicitavam as suas exonerações ao interventor federal, como demonstra o seguinte telegrama de Maurício Cardoso, Walter Jobim e Oscar Fontoura:

“Porto Alegre, 4 de dezembro de 1937. Exmo Sr. Gal. Manoel de Cerqueira Daltro Filho. d.d. Interventor Federal. Tendo sido publicado, com data de ontem, um decreto do Governo da República, dissolvendo todas as agremiações políticas existentes no país, vimos depôr nas mãos de V. Ex. os cargos que ocupamos no Secretariado Rio-grandense, por indicação dos partidos a que pertencíamos e que haviam deliberado colaborar com V. Ex. no Governo do Estado. Representantes que éramos do Partido Republicano Rio-Grandense e Libertador, nossa presença no Secretariado não mais se justifica, uma vez que esses Partidos são declarados extintos (...) (Assinados) J. Maurício Cardoso,

5Walter Jobim, Oscar C. Fontoura .

As exonerações não foram aceitas e os secretários continuaram em seus cargos. Para o governo do Rio Grande do Sul, essas considerações não deveriam interferir nos interesses do estado, que precisava da colaboração desses membros dos partidos extintos. Não era momento de se criar querelas em torno de questões partidárias e ideológicas, já que o Estado Novo veio para se sobrepor a elas, como o único capaz de entender e resolver os problemas da sociedade, “acima dos partidos”, das “ideologias” e dos “interesses de classes”.

Os partidos de âmbito regional e nacional acabaram mesmo sendo extintos. A Ação Integralista Brasileira (AIB) passou a chamar-se Associação Brasileira Cultural. No Rio Grande do Sul, principalmente em Porto Alegre, houve repressão aos integralistas. Quanto aos comunistas, além da perseguição física (prisões, julgamentos pelo Tribunal de Segurança Nacional, etc.), continuou uma acirrada propaganda anticomunista.

Mostrar um governo fiel aos propósitos do Estado Novo não se constituía em tarefa fácil. A preocupação principal era a de que, no momento de se fazer a distribuição dos cargos, eles não caíssem nas mãos dos grupos que pudessem ter um controle maior em relação aos interesses do governo federal e, a partir daí, formar-se alguma oposição ao Estado Novo. Essa inquietação ficou transparente numa correspondência de Viriato Vargas, irmão de Getúlio, naquele momento Presidente do Tribunal de Contas, a qual tratava da reorganização desse órgão nos municípios:

“Os dissidentes são muito partidários. É colocar dois juntos e já se congregam para ação partidista. Ora, já pus no Tribunal o Moysés Vellinho e não convém lá outro dissidente, pois sendo quatro os ministros, eles ficariam com a metade dos votos. Na primeira vaga quero pôr lá um frente-unista, com todas as qualidades intelectuais, morais e completamente integrado

6na nova ordem de coisas. Um getulista enfim” .

Outro fato veio trazer problemas nos meses iniciais da ditadura estado-novista no Rio Grande do Sul. Em abril de 1938 ocorreu um incidente político que novamente preocupou Viriato Vargas. Tratava-se do pedido de demissão do prefeito de São Leopoldo, Theodomiro Fonseca, em decorrência de um desentendimento com Cordeiro Farias, recém empossado no cargo de interventor. A renúncia do prefeito deu espaço às forças oposicionistas ligadas a Flores da Cunha de articularem-se e buscar um nome comprometido com elas. Em carta a Getúlio Vargas, Viriato esclarecia a situação: “Há pouco deu-se uma desinteligência entre Cordeiro de Farias e Theodomiro Fonseca, prefeito de São Leopoldo. (..) Era uma necessidade que ele continuasse, é a única forma organizada que tem o novo regime aqui, afora São Borja. E o Cordeiro via bem isto.

7Aliás, o Cordeiro não teve culpa alguma” .

Como era politicamente importante manter o prefeito, ele acabou ficando no cargo. Esse episódio mostra que o Estado Novo não possuía no Rio Grande do Sul lideranças políticas suficientes para colocar à frente das administrações municipais e até do estado, necessitando angariar apoios de integrantes de partidos opositores a Vargas antes de 1937. Não havia getulistas suficientes para administrar a grande máquina pública criada ao longo do tempo pela experiência dos republicanos rio-grandenses. Assim, era preciso confiar em getulistas “de última hora” e conter as oposições mais recalcitrantes.

Por outro lado, uma das preocupações era com a imagem da ditadura frente à sociedade. As questões internas eram resolvidas com os conchavos, com benevolência, enfim, os problemas deviam sempre ser solucionados através de reajustamentos. Mas e a população? Como fazê-la aceitar e acreditar que o Estado Novo veio para reparar o mal que os governos liberais até então existentes fizeram e ao mesmo tempo combater os ideais comunistas, tão propícios a resgatar um movimento pela construção de uma “grande nação”?

Mesmo que o decreto de extinção dos partidos políticos já tivesse sido assinado, a idéia da criação de um partido único não fora descartada por Vargas e seus aliados. Antes do golpe, em 29 de maio de 1937, no Rio de Janeiro, era distribuído pelo autodenominado Partido Nacional Getulista, um “Manifesto ao Povo”. O

26 - “Segurança para o Trabalho e as Realizações de Interesse Geral”: A busca do apoio político para o Estado Novo no Rio Grande do Sul

documento, dirigido ao povo brasileiro, conclamava o reconhecimento dos “inestimáveis benefícios” prestados pelo governo Vargas. O manifesto pedia a reforma do estatuto constitucional para a reeleição de Getúlio ou a

8prorrogação do seu mandato .

Em dezembro de 1937, o Correio do Povo especulava que “discretamente, nos altos comandos partidários” do Rio Grande do Sul, estava sendo realizado “um delicado trabalho de sondagem junto aos próceres de maior autoridade”. Para o periódico, a intenção era saber como estes encaravam a possibilidade de se fundar no estado, “um partido único, destinado a prestigiar, de acordo com um programa adaptado à atualidade, o novo regime instituído a 10 de novembro”. A matéria dizia que o partido único seria apenas “uma secção do partido nacional” a ser criado, e que “arregimentaria, por sob sua bandeira”, no estado, as forças solidárias com o novo

9regime .

Em junho de 1938, a possibilidade de um partido único já era mais concreta. Miguel Tostes remeteu para Benjamin Vargas, outro irmão de Getúlio, um estudo que estava sendo realizado no Rio de Janeiro. Dizia que aquilo que fosse decidido, ele se comprometeria “fazer adotar no Rio Grande”. Pedia que Benjamin fizesse com que o “chefe” lesse o documento com atenção. O estudo em questão consistia na criação de uma organização que poderia chamar-se “'União Nacionalista Brasileira” ou “União Nacionalista do Brasil'”. Quanto à organização, Tostes entendia que era “mais acertado começar pelos estados”, onde cada um estabeleceria a sua “Federação”, sem que o centro se comprometesse “ostensivamente”, bastando que, de forma “reservada”, fossem expedidas “as suas instruções aos interventores”. Informava também, que não se deveria fazer referências ao regime, “pois qualquer declaração nesse sentido, importaria em assumir uma atitude política”. Entretanto, como o “veneno vem na cauda, a alma da União Nacionalista” estaria no último item das finalidades. O projeto da criação da União buscava dar eficiência à sua organização, a qual só poderia ser possível “com organizações do tipo militar”, entendidas através de unidades maiores, formadas pela reunião ou

10agrupamento de unidades menores .

8Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), Fundo DOPS, Série Panfletos, Pan 667. O Manifesto era assinado por: Pela Comissão Executiva: Presidente – João C. Raja Gabaglia, Médico e Professor.1º.Vice-presidente – José Pereira da Silva, advogado. 2º. Vice-presidente Reynaldo Bastos, professor. Secretário – Paulo Ferreira, contabilista. Pelo Conselho Deliberativo e Fiscal Presidente – Hélio de Brito, editor.Vice-presidente – Bartholomeu Fernandes, comerciante. Secretário – Alencar de Almeida Meireles, operário. Pelo Departamento Jurídico: Dr. A. Nunes Pereira. Na Sede Provisória do Partido Nacional Getulista à Rua Alcindo Guanabara, n°. 17, 6º. Andar, sala nº. 610, encontram-se as listas de Adesões para os que desejam filiar-se ao mesmo. Rio, 29de maio de1937.9Políticas e Políticos, Correio do Povo, 3 de dezembro de 1937. p. 5. Os exemplares do jornal se encontram no Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, em Porto Alegre – RS.10ANRJ/FGCPR, Rio Grande do Sul, Lata 512. Carta de Miguel Tostes para Benjamim Vargas, em 21de junho de1938.

O estudo destacava dois pontos que deveriam constar do programa da organização: o primeiro referia-se ao “engrandecimento do país”; o segundo a defesa da Nação, contra as ideologias políticas estranhas; contra os abusos do “capitalismo internacional” e contra as pretensões territoriais ou tutelares dos países estrangeiros. Fazia uma ressalva quanto “ao movimento de idéias referentes ao tema internacional”, que deveria ser feito com “a necessária prudência”.

Outro ponto destacado no projeto era a necessidade de “distrair a atenção popular das questões políticas internas para os problemas que a situação internacional” oferecia para a reflexão do “patriotismo”. Das finalidades da União Nacionalista constava ser esta uma “agremiação de fins patrióticos e culturais”, sendo que seu programa fundamental consistia em, entre outros: (...) incentivar o amor à Pátria e a formação da consciência nacional; (...) cooperar ativamente com os Poderes Públicos na manutenção da ordem, da paz e da disciplina, e com eles colaborar na obra de restauração

11nacional” .

O Comitê de Propaganda do Estado Novo e os Intelectuais

Mas, enquanto o partido único não saía do papel, era preciso a busca dessa aceitação no estado. Assim, foi instalado o Comitê de Propaganda do Estado Novo, em 19 de abril de 1938. Esse comitê tinha como objetivo fazer propaganda do texto da Constituição de 10 de novembro e contava com o apoio de intelectuais de destaque no estado. A Rádio Difusora Porto-Alegrense foi escolhida para irradiar os discursos propagandísticos. Dentre os intelectuais, destacaram-se Moysés Vellinho, Dante de Laytano, Telmo Vergara, Érico Veríssimo e Limeira Tejo, além de advogados, secretários de estado etc. Como presidente do comitê, foi escolhido o coronel Viriato Vargas. A respeito disso, Viriato se justificava a Getúlio Vargas:

“Organizei aqui a mocidade intelectual, para fazer conferências todos os sábados às 10 horas pela Difusora, divulgando as virtudes da Constituição de 10 de novembro. Inaugurei ontem essas conferências com a que foi publicada e aí te mando, para me dizeres se estou certo (...). No próximo sábado vai falar o Secretário do Interior, e ficarei com o direito de convidar outros secretários que não poderão negar-se sem ficarem mal colocados. Dos municípios estou recebendo telegramas de adesão. Fazia-se necessário esse movimento, pois aqui vai ficando

12cada vez mais frio e confuso” .

O posicionamento dos intelectuais era indispensável para dar respaldo ao Estado Novo. Nem todos concordavam totalmente com o apoio que prestavam publicamente, mas estavam envolvidos e não

11ANRJ/FGCPR, Rio Grande do Sul, Lata 512. Esboço do programa da União Nacionalista do Brasil ou União Nacionalista Brasileira. 12FGV/CPDOC, Arquivo Getúlio Vargas, GV.38.04.20.02.


13RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 48.14Jornal do Estado, 25 de Abril de l938. p. 4.15Jornal do Estado, 5 de maio de 1938. p. 1.

16Jornal do Estado, 21 de maio de 1938. p. 1.17FGV/CPDOC, Arquivo Getúlio Vargas, GV.41.07.00 XXXV-89.18

COSTA, Sérgio Amad. O Estado e controle sindical no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1986. p. 1.

comprometer-se seria um risco para suas imagens e profissões. A este respeito Angel Rama se manifesta da seguinte forma: “não somente servem a um poder, como também são donos de um poder”. Este inclusive pode embriagá-los até fazê-los perder de vista que sua eficiência, sua realização só se alcança se o centro do

13poder real da sociedade o apóia, lhe dá força e o impõe .

Érico Veríssimo representou um caso típico, uma vez que suas posições, até então, sempre haviam sido liberais. Mesmo assim, prestou seu apoio à ditadura nos primeiros momentos. Seu discurso, em um dos programas de rádio do Comitê de Defesa do Estado Novo, foi ilustrativo nesse sentido:

“Quem fala a vocês neste momento já foi, e creio que ainda é, apontado como comunista por causa de um punhado de idéias que hoje estão sendo postas em prática pelo governo da República. Sempre achei - e muito escrevi nesse sentido - (...) Senti sempre a necessidade da nacionalização do ensino: aí está. Permitam-me ainda uma confissão. No dia 10 de novembro de 1937, recebi a proclamação do Estado Novo com sérias desconfianças e num grande abatimento. Os horizontes ainda estavam escuros. Tive a impressão de que era a ditadura integralista que se anunciava. Pensei: assim não se pode mais escrever no Brasil. (...) Virão as perseguições e a violência, a intolerância e o ódio.(...) Mas os fatos, meus amigos - tomem bem nota: os fatos se encarregaram de provar que felizmente eu me enganava. Nem esquerda nem direita, mas sim o centro, que é o equilíbrio e o bom senso. Nenhum homem de boa vontade pode negar o seu apoio ao

14Estado Novo” .

A evidência que se aí coloca é de que Érico Veríssimo se pôs numa posição defensiva, desculpando-se pelas posições anteriores, e alguns anos mais tarde “exilou-se” nos Estados Unidos. A importância dos intelectuais para a realização desta mobilização, posta em prática pelo Comitê de Defesa era colocada abertamente, tanto que em editorial do Jornal do Estado se dizia que era necessário o “esforço dos intelectuais, dos homens de letra, daqueles que podem escrever e falar ao povo brasileiro com elegância, agilidade (...) ainda constitui um dos meios mais eficazes para a realização dessa

15cruzada necessária” .

Segundo o raciocínio apresentado no editorial, os intelectuais tinham uma missão: a de servir uma “boa causa”, a causa da pátria, e para colocá-la em prática deveriam “esclarecer” a população menos informada e não intelectualizada a respeito da doutrina e das realizações do Estado Novo.

Paralelamente ao Comitê, organizaram-se nas cidades do interior, núcleos de propaganda como o

Centro Cívico de Propaganda da Carta de 10 de Novembro, cujos presidente e patrono eram, respectivamente, o interventor federal Cordeiro de Farias e Walter Jobim, secretário de obras.

Organizou-se também o Movimento Intelectual pró-Estado Novo, em Porto Alegre, com pretensão de formar núcleos em todo o interior do estado. A seguinte passagem mostra as finalidades do movimento: “Essa nova entidade cultural de caráter cívico-literário representará efetivamente o pensamento e a ação dos intelectuais rio-grandenses e desenvolverá, por meio de publicações na imprensa, conferências, sessões cívicas e excursões pelo interior do estado, uma

16enérgica e decidida campanha anti-extremista” .

Tais entidades, no entanto, tiveram duração efêmera, à medida que o Estado Novo se fechava e a censura aumentava. Mesmo que concordassem com a ditadura, era melhor, mantê-las fechadas, sem correr riscos de que posteriormente se posicionassem contra o governo. Ainda assim, foram formas eficazes de convencimento, auxiliando o governo estado-novista em sua consolidação no Rio Grande do Sul.

Posteriormente, em outro momento de questionamento da ditadura, em 1941, fundaram-se no estado, seções do Instituto Nacional de Ciência Política, organizadas em Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, tendo Pedro Vergara como responsável pela fundação dos núcleos. O escritor demonstrava preocupação com a situação de popularidade do Estado Novo na seguinte passagem:

“Senti, sem dúvida, que o presidente é amado no Rio grande, mas não senti a mesma coisa em relação ao regime que ele instituiu e que tem o seu maior título de glória. Por tudo isso, apresso-me, como amigo que está disposto a todos os sacrifícios para servir ao Presidente, em afirmar, é mister agir com urgência, no Rio Grande, para criar uma corrente de opinião que

17ainda que não existe, a favor do novo regime” .

A consolidação do apoio entre os trabalhadores

Os estudos recentes de história social do trabalho no Brasil muito têm contribuído para sabermos mais sobre como as relações entre os sindicatos e o Estado não foram das mais pacíficas, como se poderia supor, e como supõe parte da historiografia sobre o período estado-novista. Segundo parte desta, o Estado Novo no Brasil realizou a completa subordinação dos sindicatos de classes, aos mecanismos de controle do Estado. Análises como de Sérgio Amad Costa, restringem o “Estado como agente do controle social” e propõem a norma jurídica o seu “instrumento mais eficaz” do seu

18 exercício . No entender de Costa, se as formas de atuação


dos trabalhadores fora do aparato estatal eram quase inexistentes, durante aquele período, nos sindicatos oficiais a ação era restrita ao permitido pela legislação sindical.

Reconheço a estrutura de controle dos trabalhadores montada pelo Estado, principalmente entre 1937-1945, mas não posso concordar com a análise de Costa, porque ela absolutiza este controle. Não quero dizer com isso que os trabalhadores, tiveram ampla opção institucional de ação fora do sindicato oficial. Sem o reconhecimento oficial de seus órgãos de representação sindical, os trabalhadores ficaram sem meios legais de reivindicar e de fazer valer os seus direitos. Uma vez que a obrigação da sindicalização se impunha, o sindicato, mesmo que atrelado, constituía-se no espaço de luta possível. Fora disso, restava ainda a atuação partidária e sindical clandestina ou a ação não-institucional cotidiana, geralmente reservada.

Mesmo com a expulsão dos comunistas e outras correntes dos sindicatos, ou com a prisão dos mesmos, nem todo o sindicalizado poderia ser considerado “pelego”. Dentro dos limites legais, surgiam brechas para o questionamento, denúncias, greves e, principalmente, a exigência de tudo aquilo que o Estado fazia questão de incutir como “doação”: a aplicação das leis trabalhistas. Certas categorias foram mais combativas, outras mais subordinadas. Essas divergências no seio do próprio movimento sindical e dos trabalhadores, a respeito da tentativa de controle do Ministério do Trabalho, Indústri e Comércio (MTIC), se fizeram sentir desde o início do Estado Novo.

Azis Simão, na sua importante obra Sindicato e Estado, apresenta um quadro da “posição oferecida pelas

19antigas vanguardas do movimento operário” , referindo-se aos trotskistas, anarquistas e comunistas e como estes se posicionaram diante do “controle estatal” nas entidades sindicais, que antes do Estado Novo foram palco privilegiado de suas táticas e lutas operárias.

No Relatório da Comissão elaboradora do anteprojeto de lei, que passaria a dispor sobre os sindicatos profissionais, estava explícito o caráter anticomunista e controlador da lei que visava “preservar a vida interna dos sindicatos da contaminação dos maus elementos sociais”, das suas “intervenções estranhas e corruptoras” e das infiltrações de ideologias perturbadoras”. Em contraponto, a lei prometia devolver aos sindicatos “a consciência dos seus novos deveres” profissionais diante da sua comunidade e do Estado. Para isso, era necessário “um controle mais estreito do Estado” na constituição dos sindicatos, para que se tornassem “entidades realmente representativas da profissão”. O controle se daria através do registro obrigatório das associações profissionais; na inscrição prévia dos

19Ver SIMÃO, Azis. Sindicato e Estado. São Paulo: Ática, 1981. p. 215. Cláudio Batalha considera a obra de Azis Simão com o “único dos trabalhos (...) em que a análise histórica está fundamentada numa pesquisa empírica de fôlego, ainda que restrita a São Paulo”. Cf. A historiografia da classe operária: trajetória e tendências. In. FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 2. ed. São Paulo: Contexto, Bragança Paulista: Ed. da USF, 1998. p. 149.

candidatos; na ampliação das causas de inelegibilidade; na possibilidade da presidência das mesas eleitorais ser confiada ao delegados do Ministério do Trabalho; na exigência da aprovação da eleição. Tudo isto representando um “sistema de meios” que permitiria ao Ministério do Trabalho “realizar com plena eficiência a revelação e a seleção dos elementos dos sindicatos e a formação de uma verdadeira elite profissional”, razão precípua para fortalecer o apoio ao Estado Novo entre os trabalhadores.

O relatório dizia que “livre é a associação profissional, sem dúvida; ela se constitui quando quer e como quer; nela entrando quem quer e dela sai quando quer”. Mas se esta associação vier ao Estado pedir que lhe outorgue competência, para a “prática de atos de autoridade pública”, a este caberia impor as condições que entendesse “mais úteis ou necessárias para o cabal

20desempenho da função” .

Através deste conteúdo, o Estado Novo procurou de todas as formas fazer propaganda dos avanços nos direitos sociais dos trabalhadores, por ele “doado”, buscando, assim, a principal base social de apoio político ao regime.

Como explica Edgar Rodrigues, em referência ao período anterior ao golpe de 1937, Vargas e seus aliados, desejosos de continuar no poder, elaboraram a “fabricação” de “subversivos” e “revolucionários”, mesmo para os que nunca tivessem ouvido falar de tais

21idéias, a fim de explicar o continuísmo tão cobiçado . O caminho para justificar o Estado Novo foi construído a partir de um vigoroso discurso da pátria, da ordem e do trabalho, onde o centro foi a retórica do fim da luta de classes.

Aos trabalhadores, restava, na ótica dos que construíram esse discurso, a resignação para a construção do “progresso da nação”. Em consonância com esta estratégia, como explica Adriano Duarte, a noção de cidadania passou a ser definida pelo trabalho, pela ocupação, sendo este um dever social. O universo do trabalho, no Estado Novo, não comportou meios termos: ou se era trabalhador, com profissão regulamentada e carteira assinada, ou se era “vagabundo”. Assim, o trabalho apresentou-se como questão central na configuração do regime. O discurso estado-novista assentou-se no trabalho, concatenado com a construção de uma nova moral cujo fim foi a defesa da pátria, sendo o anticomunismo o quarto pilar dessa construção discursiva. O que se fez foi a despolitização das relações de trabalho, atribuindo-lhes um estatuto natural que o

22vinculou ao corporativismo .

20Boletim do MTIC, n. 53. Setembro. Ano V, 1939. Rio de Janeiro, s/p. Faziam parte da Comissão que elaborou o Relatório, Oliveira Vianna, Arthur Flores Filho, Deodato Maia, Helvécio Xavier Lopes, Moreira de Azevedo, Geraldo Faria Batista, W. Niemeyer, Oscar Saraiva, Luiz Augusto de Rego Monteiro. O Relatório é datado de 23 de novembro de 1938.21RODRIGUES, Edgar. Novos Rumos. História do movimento operário e das lutas sociais no Brasil (1922-1946). Rio de Janeiro: Mundo Livre, s./d. p 393-4.22Cf. DUARTE, Adriano L. Cidadania & exclusão: Brasil, 1937-1945. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999. p. 103-116. Sobre uma discussão em torno do corporativismo de Estado, a partir de 1937, ver tb. ERICKSON, Kenneth Paul. The Brazilian Corporative State and Working-Class Politics. Berkeley/Los Angeles/London: University of Califórnia Press, 1977. p. 15-26.


Desta forma, “o discurso ideológico parecia querer provar o improvável: a neutralidade da intervenção governamental”. Exemplo disso foram as afirmações de Vargas, em 31 de dezembro de 1937 e 1º de maio de 1938, respectivamente: “a multiplicidade de setores em que age o Estado não exclui, antes afirma, um postulado fundamental: o da segurança para o trabalho e as realizações de interesse geral”; assim, “o governo, ao conceder as leis sociais eliminava a predominância de umas classes sobre outras, de modo que se abole a necessidade de lutas e discórdias. Capital e trabalho

23unem-se na cooperação e no congraçamento” .

No entanto, situações de miséria e de fome e outras condições de vida dos trabalhadores desarticularam, em parte, o projeto modelar e normativo do Estado Novo e a realidade experimentada pelos trabalhadores. Isso fez com que a passividade não fosse a única marca desses anos, pois mesmo ameaçados pela

24repressão política, os trabalhadores não ficaram quietos . Pois, como explica Antonio Luigi Negro, ao remeter-nos aos anos 1930, “se o mapa do movimento sindical brasileiro ia sendo redesenhado com base em uma arquitetura projetada por bacharéis, técnicos, intelectuais e políticos inspirados no corporativismo, estes não estavam se apossando de um território sem história,

25despovoado e desprotegido” .

A hegemonia estado-novista sobre os trabalhadores e os cidadãos, assim, não foi absoluta, apenas transformando-os em vítimas passivas, como certa análise pode dar a entender. Esta, desde Oliveira Vianna, aponta para uma representação dos trabalhadores caracterizada pela “heterogeneidade interna, a dispersão e um comportamento atomizado, (...) expressando uma incapacidade de universalização de seus objetivos”, os quais “seriam determinados pelas próprias características da formação histórica da sociedade brasileira, do seu Estado e sua industrialização” resultando na cristalização

26de “uma imagem da classe incapaz de ação autônoma” .

Mesmo que se reconheça que o Estado Novo buscou fundamentalmente destruir a resistência operária, como o faz também José Nilo Tavares, o refazer historiográfico só é possível quando se procura ir além das aparências empíricas iniciais, até porque o movimento da sociedade não pode ser visto “apenas como a 'urdidura do poder', resultado da ação exclusiva

27de protagonistas e elites dominantes” .

23FONSECA, Pedro Dutra Cézar. Vargas: o capitalismo em construção. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 264 e 294.24DUARTE, Adriano, Cidadania..., op. cit. p. 184.25Cf. NEGRO, Antonio Luigi. Linhas de montagem: industrialismo nacional-desenvolvimentista e a sindicalização dos trabalhadores (1945-1978). São Paulo: Boitempo, 2004. p. 24. 26SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. p. 32.27Ver AZEVEDO, Luiz Vítor T. de. Cultura popular e imaginário popular no Segundo Governo Vargas (1951-54). In. LPH - Revista de História. Ouro Preto: Ed. da UFOP, n. 5, 1995. p. 183.

A opinião construída por Eli Diniz, de que o período de 1937 a 1945 consolidou um modelo que atribuiu ao Estado papel primordial não só nas decisões relativas às principais políticas públicas, como também na administração do conflito redistributivo, na definição de identidades coletivas de setores sociais em processo de incorporação, bem como na representação dos interesses

28patronais e sindicais , torna-se insuficiente para entender como se constrói uma identidade de classe dos trabalhadores. Sobretudo, quando se analisa um período como o Estado Novo, onde justamente o discurso oriundo do poder de Estado se dá no sentido de criar uma “identidade coletiva”, a partir do querer desse próprio Estado e daqueles que exercem a sua hegemonia, através do apoio de algumas reivindicações do movimento operário e da harmonia entre trabalhadores e

29empresários, dentro da velha tradição positivista .

Em análises desta natureza não há espaço para entender como os trabalhadores criaram sua identidade de classe ou, simplesmente, sem criar essa identidade, resistiram às imposições verticais e hierarquizadas que a ideologia corporativista procurou lhes impor, pois, senão, o que resta é apenas a “incorporação dos atores emergentes - trabalhadores e empresários industriais - ao

30sistema político” . Este tipo de interpretação sociológica, política ou historiográfica torna homogêneas as ações sociais a partir do Estado, fazendo com que se chegue a conclusões simplistas que afirmam que “apesar da repressão, foi possível a modernização do Estado, da

31sociedade e da economia brasileira” .

Não se trata aqui de ignorar que a política social, no caso do Estado Novo, foi uma tentativa de gestão estatal da força de trabalho, que procurou articular as pressões e os movimentos sociais com as formas pretendidas pela valorização do capital, visando à

32manutenção da ordem social . Muito menos se trata de desconsiderar que, “para algumas categorias de trabalhadores, o trabalho exerce um peso fundamental na

33formação da identidade de classe” .

28Ver DINIZ, Eli. Engenharia institucional e políticas públicas: dos conselhos técnicos às câmaras setoriais. In. PANDOLFI, Dulce (Org.), Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1999. p. 27.29Essa visão consolidada no Estado Novo era oriunda de certa interpretação do positivismo e da “política social dos governantes estaduais” do Rio Grande do Sul pré-1930, incluindo o próprio Getúlio Vargas, a qual “pautou-se por dois princípios complementares: o apoio do executivo a certas reivindicações do movimento operário (redução da jornada de trabalho, aumento salarial, etc.) e a mediação do Estado, dos conflitos entre patrões e empregados”, a partir da manutenção do “postulado comteano fundamental que persistiu e até mesmo cresceu (...) o da incorporação do proletariado à sociedade moderna”. Ver SCHMIDT, Benito Bisso. Em busca da terra da promissão: a história de dois líderes socialistas. Porto Alegre: Palmarinca, 2004. p. 431. 30Cf. DINIZ, Eli. In. PANDOLFI, Dulce (Org.), Repensando..., op. cit. p. 28.31Ver CAMARGO, Aspásia. Do federalismo oligárquico ao federalismo democrático. In. PANDOLFI, Dulce (Org.), idem, 1999. p. 40.32FALEIROS, Vicente de Paula. A política social do Estado capitalista. As funções da previdência e da assistência sociais. 7. ed. São Paulo, Cortez, 1995. p. 59.33BATALHA, Cláudio. 1991-92. Identidade da classe operária no Brasil (1880-1920): atipicidade ou legitimidade?. In. Revista Brasileira de História. Política & cultura. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 22, n. 23/24, 1991-2. p. 120-1.


34GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1996. p. 208.35KONRAD, Glaucia Vieira Ramos. A política cultural do Estado Novo no Rio Grande do Sul: imposição e resistência. Dissertação (Mestrado). Porto Alegre: PUC-RS, 1994. p. 130.

Também não se trata de negligenciar um dos objetivos centrais dos que dirigiram o Estado Novo no Brasil, o qual foi a consolidação de uma discursividade que buscava afirmar a construção da identidade nacional como única identidade possível. Angela de Castro Gomes, a partir do estudo dos historiadores do período estado-novista, afirma que a formulação de uma identidade nacional pelo Estado exigiu que se pensasse o país historicamente e conduzisse à proposição de uma “cultura histórica” como elemento fundamental de

34comunicação e coesão da sociedade .

No caso do Rio Grande do Sul, o gaúcho deveria estar apto a instaurar a disciplina social e a ordem econômica para a reconstrução do país, sendo peça da engrenagem nacional. Nessa ótica, um regionalismo

35integrado ao nacional não apresentava maiores riscos .

Se intelectuais e trabalhadores rio-grandenses se considerassem, antes de tudo, como nacionais, poderiam sentir-se seguros, cumprindo o seu dever para o interesse geral da nação. Nessa ponta, o discurso estado-novista consolidava o seu apoio. Na outra, a do poder, o Estado Novo foi se consolidando no estado. Contraditoriamente, a favor dos trabalhadores no discurso: essencialmente, contra os mesmos, na prática.


La lectura de Marx en clave clasista: el Si.tra.p. como órgano de expresión del Sindicato de Trabajadores de Perkins, 1973-1975

La lectura de Marx en clave clasista: el Si.tra.p. como órgano de expresión del Sindicato de Trabajadores dePerkins, 1973-1975 - una breve comparación con elObrerismo Italiano de Quaderni Rossi y Classe Operaia

Carlos Mignon*

*Licenciado y Doctorando en Historia, Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Nacional de Córdoba y Centro de Estudios Avanzados-Unidad Ejecutora del CONICET, Córdoba, Argentina.

Así nace el SI.TRA.P.,y no es una coincidencianace de pura concienciade simples trabajadores que dedican sus mejoreshoras de vida luchando,

porque piensan que bregandopor nuestra clase explotada

florecerán sus anhelos

ver la Patria Liberada.

(Si.tra.p., año I, 1973, p. 5)

unque numerosos han sido los estudios que analizaron el “clasismo” cordobés de finales de los años sesenta y principios de los setenta, poco se conoce de un gremio tan importante como el Sindicato por Empresa de Motores Livianos Diesel Perkins, la trayectoria de sus obreros y la contribución de éstos al desarrollo de la radicalización en el ambiente obrero cordobés. El intento de este trabajo es relacionar las similitudes y diferencias entre el “clasismo” de los trabajadores organizados en el Sindicato de Perkins en Córdoba y el “obrerismo” italiano a través de sus respectivos órganos de prensa: el Si. tra.p. y Quaderni Rossi-Classe Operaia respectivamente. La fundamentación de este objetivo no está dado en la búsqueda de una relación directa entre los teóricos del “obrerismo” y los “clasistas” del Si.tra.p., sino en el análisis relacional que podemos realizar mediante la detección de un factor común a ambas publicaciones, esto es, las lecturas de las obras de K. Marx realizadas propiamente por los colaboradores de estas revistas y por consiguiente, la influencia de éste reflejada en sus editoriales y artículos.

Aunque no es objetivo de este trabajo -dada la brevedad del mismo-, es necesario señalar que cuando nos referimos a la dinámica de recepción, procesamiento y divulgación de ideas; ésta se encuentra vinculada a una dimensión muy compleja, que encuadra diversas experiencias –en este caso de la clase obrera- que van desde sus condiciones materiales de existencia, las que se refieren al conflicto y organización tanto en el plano sindical, ideológico y político; como los que se refieren a los ámbitos de sociabilidad en la educación y los ateneos culturales. Desde nuestro punto de vista, estos factores deberíamos encuadrarlos dentro del proceso de desarrollo, crisis y etapas de acumulación del

A capitalismo. Este desarrollo podemos enmarcarlo brevemente dentro de un contexto dado tanto en Argentina como en Italia –que comienza en la posguerra y se cristaliza en las décadas del '60 y '70-, caracterizado por el éxodo del campo, cierto despegue industrial y por lo tanto un aumento del sector terciario, y la difusión del consumo en masa. Sin duda alguna, estos elementos modificaron profundamente la estructura social de ambos

1países . Aunque siempre existieron estratos de obreros no calificados, las industrias empezaron a requerir cantidades crecientes de mano de obra barata para impulsar el desarrollo de los sectores automotriz y petroquímico. La producción se fragmentó y, con la difusión de la cadena de montaje, surgió una nueva generación de jóvenes inmigrantes que serían

2protagonistas de importantes movimientos de protesta .

Tomando elementos de la mejor tradición marxista, tanto Si.tra.p. como Quaderni Rossi-Classe Operaia enarbolaron sus críticas a las visiones de época que centraban al progreso como manifestación del desarrollo de las fuerzas productivas. Mediante la postura de impedir cualquier actitud favorable al capitalismo, los análisis de la relación entre capital y fuerza de trabajo, las contradicciones entre tecnología y poder en el proceso de trabajo, y el reconocimiento de las grietas del sistema, tuvieron la finalidad de encontrar un sujeto potencialmente subversivo: el “obrero masa”, del cual era necesario hacer despertar su conciencia.

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1Véase a modo general: AGLIETTA, M. y BRENDER, A., Les métamorphoses de la societé salariale, Calmann-Lévy, Paris, 1986; BALLESTRINI, N., Nous Voulons Tout, Éditions Seuil, Paris, 1973; BRAVERMAN, H., Trabajo y Capital Monopolista, Editorial Nuestro Tiempo, México D.F., 1975; JAMES, D., Resistencia e Integración. El peronismo y la clase trabajadora argentina, 1946-1876, Sudamericana, Buenos Aires, 1990; CARRERA, N. I., GRAU, M. I., y MARTÍ, A., Agustín Tosco. La clase revolucionaria, Editorial Madres de Plaza de Mayo, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 2006. 2BALLESTRINI, N. y MORONI, P., L'orda d'oro, 1968-1977, Giangacomo Feltrinelli Editore, Milan, 1997.

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A finales de los años'50, en Italia se comienza a percibir una crisis del movimiento obrero y de sus organizaciones (partidos y sindicatos). Una minoría proveniente esencialmente de estas organizaciones, comienza a poner en cuestionamiento elementos fundamentales del análisis y estrategias de dichas organizaciones. Estas críticas dieron vida a una nueva corriente política y teórica dentro del movimiento obrero

3y del marxismo: el “operaismo” .

Retomando las categorías de Marx y confrontándolas al capitalismo de posguerra, el “obrerismo” se constituyó en una alternativa crítica frente a la estrategia reformista del Partido Comunista Italiano, el Partido Socialista y de las organizaciones sindicales más importantes como la Confederazione Generale Italiana dei Lavoro (CGIL), la Unione Italiana dei Lavoro (UIL), y la Confederazione Italiana dei Sindicati Liberi (CISL).

Uno de los elementos fundamentales del análisis “obrerista”, es el lugar atribuido a la clase obrera en cuanto a la dinámica y las modificaciones del capitalismo. Siguiendo este análisis la clase obrera “no se satisface con reaccionar contra la dominación del capital, ella está continuamente en recomposición política, y el capital está constreñido a reaccionar

4reestructurando continuamente el proceso de trabajo.”

Esta corriente se originó en el entorno de la revista Quaderni Rossi (Cuaderno Rojo) que se constituyó en septiembre de 1961. Los principales fundadores de esta corriente fueron: Rainero Panzieri, Dario Lanzaro, Romano Alquati, Massimo Cacciari, Luciano Ferrari-Bravo, Sergio Bologna, Enzo Grillo, Adriano Sofri, Luciano della Mea, Mario Tronti, Vittorio Rieser, Toni Negri. La unidad de la redacción se rompe después de los enfrentamientos de la piazza Statuto de Turín, en 1962, que Panzieri valora negativamente a diferencia de los demás redactores. Estos últimos, después del cierre de Quaderni Rossi, fundaron en 1964 Classe Operaia.

El “obrerismo” no se mantuvo solamente como corriente teórica, sino que fue retroalimentada en su desarrollo con la participación de organizaciones políticas y comités obreros. Entre algunos de ellos estaban: Lotta Continua, Potere Operaio, Avanguardia

5Operaia y Comita Unitario di Base (CUB) . Estas organizaciones participaron en las luchas desarrolladas dentro de las grandes concentraciones industriales como: FIAT, Olivetti, Siemens, Pirelli, Michellin, Lancia, Montedison, Alfa Romeo, Piaggio, Saint-Gobain, etc.

3Es en idioma italiano lo que en este trabajo denominaremos “obrerismo”, traducido a nuestra lengua castellana.4MATHERON, F., “Operaïsme”, en LABICA, G. et BENSUSSAN, G., Dictionnaire critique du marxisme, Éd. Quadrige, Paris, 1999, pp. 49-56.5En la etapa más alta del desarrollo de estas organizaciones, Lotta Continua contaba con 30.000 militantes. En Avanguardia Operaia militaban 18.000 y en Potere Operaio había 10.000 militantes. Para un análisis más profundo véase: GIACHETTI, D. y SCAVINO, M., La FIAT aux mains des ouvriers. L'automne chaud de 1969 à Turin, Éd. Les Nuits Rouges, Paris, 2005.


En Argentina, a finales de los años '60 asistimos al surgimiento, principalmente en la ciudad de Córdoba, de una corriente que cuestionó desde las bases a toda la estructura gremial reconocida por el Estado conocida generalmente como “clasismo”. Uno de los principios fundamentales del “clasismo” fue la reivindicación de la democracia sindical desde las bases obreras: “El Si.tra.C y el Si.tra.M fueron una genuina expresión de las bases que rompió con los moldes del

6sindicalismo tradicional y burocrático.” Esta prédica antiburocrática ensalzaba al proletariado en término democráticos de organización sindical, y tuvo su efecto en las fábricas vecinas a FIAT (Perkins, IKA-Renault, Vidrio y Calzado entre otros) de la cual surgieron direcciones clasistas y combativas que continuaron luchando por un lugar dentro del sindicato.

En Córdoba se había conformado desde 1969 una fuerza social en la que se alineaban las fracciones obreras organizadas en los gremios independientes, las corrientes y organizaciones político-sindicales clasistas y los sindicatos combativos peronistas, así como fracciones de la pequeña burguesía: estudiantes, organizaciones armadas marxistas y peronistas. Esta fuerza se proponía la superación del orden social capitalista imperante, y por ende la cuestión del poder.

En Motores Livianos Diesel Perkins trabajaban 900 obreros en el año de 1973. En la fábrica se producían distintos tipos de motores, sacando al mercado

7aproximadamente 22.000 motores para ese mismo año . En el contexto desarrollado de manera muy breve más arriba, el movimiento de base de Perkins (Obreros Combativos de Perkins) logra en abril de 1973 ganar la Comisión Directiva del Sindicato, proponiendo un programa anti-burocrático y combativo bajo los postulados de: “(…)democracia sindical, solidaridad de clase, contra la burocracia sindical, contra la patronal,

8etc.” En ese mismo momento comenzó la historia de Si.tra.p. como órgano de difusión del Sindicato, bajo la iniciativa de la Sub-comisión de Prensa de la nueva Comisión Directiva. En su presentación, la primera editorial del periódico fijaba su posición y explicitaba el porqué de su aparición:

“La necesidad de la aparición de nuestro periódico gremial, la vimos en que cada día los espacios periodísticos destinados a informar sobre las luchas y comunicados de la clase obrera, de sus sindicatos más combativos, son más escasos, y eso no se debe a una casualidad, sino a que todos los medios de comunicación masiva, casi en su totalidad, radio, televisión y diarios, están en manos de las clases

9dominantes.”

6CURUCHET, A. (detenido en la cárcel de Villa Devoto), en Revista Nuevo Hombre, Año I, nº 17, noviembre de 1971. El Si.tra.C (Sindicato de Trabajadores de Cóncord) y el Si.tra.M (Sindicato de Trabajadores de Máterfer) se constituyeron como sindicatos “por empresa”, diferenciándose en su estructura organizativa de los sindicatos “por rama industrial”, que representaban a los trabajadores de una misma actividad sin importar a que empresa pertenecen. 7Estos datos han sido extraídos de la revista que editó la empresa con motivo de su décimo aniversario, véase, X Aniversario de Perkins, 1973, p. 15-16. 8“La aparición del Si.tra.p.”, Si.tra.p., Año I, Córdoba, 1973, p. 1.9Íbid.

10Como se puede intuir, la mayoría de los párrafos aquí citados hacen referencia a la obra de K. Marx. En el caso de que éste sea citado textualmente se utilizarán los símbolos “<” y “>”. En cuanto a las obras de Marx referenciadas, en el caso de los párrafos que aquí tomamos de los autores pertenecientes al obrerismo encontramos alusiones a la Sección Cuarta de El Capital, la contribución a la crítica de la economía política y el Manifiesto Comunista. En lo que respecta a los escritos de la revista de Si.tra.p, encontramos referencias al Manifiesto Comunista, Trabajo asalariado y capital y Salario, precio y ganancia.11“El descubrimiento de Marx, sobre este terreno, es <el paso del trabajo real al trabajo que crea valores de cambio, es decir, al trabajo burgués en su forma fundamental>, TRONTI, M., “El capital social”, en Quaderni Rossi, Nº 3, 1963, p. 4.12TRONTI, M., “Lenin en Inglaterra”, editorial de Classe Operaia, Nº 1, 1964, p. 2.13MODONESI, M. “Teoría y Praxis. La experiencia del obrerismo italiano”, H e r r a m i e n t a , N º 3 0 , U R L http:/www.herramienta.com.ar/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=347.14ALQUATI, R., “El trabajo como No-Capital”, en Classe Operaia, Nº 2, 1965, p. 3.

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10A partir de una alusión a las fuentes de Marx, de sus primeras intuiciones y del respaldo empírico que ofrecían los acontecimientos, el obrerismo sentó las bases para una propuesta de inversión metodológica, que abría una perspectiva teórica novedosa. Partiendo de que el

11hallazgo fundamental de la obra de Marx es el trabajo en cuanto mercancía que expresa un valor, y cuyo principal componente es la fuerza de trabajo, el obrerismo ponía el énfasis en los portadores de esta fuerza de trabajo, quienes habían sido desposeídos de cualquier bien material salvo la venta de dicha fuerza: “Hemos visto también nosotros antes el desarrollo del capitalismo y después las luchas obreras. Es un error. Hay que invertir el problema, cambiar su sesgo, volver a partir del

12principio: y el principio es la lucha de la clase obrera.”

Invertir los componentes del análisis, esto significaba que el capital aparecía como la variable dependiente; el desarrollo del capitalismo podía ser leído como un proceso de ajuste permanente dirigido a contener el trabajo, a los trabajadores que caminaban siempre un paso adelante, liberándose en los márgenes dejados descubiertos por el sistema de dominación,

13desafiando al capital, obligándolo a cambiar . En esta lógica, no solamente las transformaciones del capitalismo determinan la conformación de la clase en sí y para sí, sino que esta composición impacta directamente en el capital, como forma y como relación de poder. Antes y después de la clase de los capitalistas existe el capital. El capital, por sí mismo, no se constituye en clase social. Tiene la necesidad de ver primero, ante sí, la clase obrera ya formada:

“Y el objeto, en Marx –aquí lo sencillo es difícil de entender-, el objeto no es el mundo económico de las mercancías, sino la relación política de la producción capitalista. (...) Valor-trabajo quiere decir, por lo tanto, primero la fuerza de trabajo y después el capital; quiere decir capital condicionado por la fuerza de trabajo, movido por la fuerza de trabajo, en este sentido valor medido por el trabajo. El trabajo es medida del valor porque la clase obrera es condición del

14capital.”

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Esta visión se bifurcaba en una lectura de los procesos concretos. Procesos objetivos, por una parte, que llevaban a estudiar a las transformaciones del capitalismo en la segunda posguerra –los treinta años gloriosos-, el desarrollo tecnológico y los modelos de producción fordistas-tayloristas. Por la otra, el acento estaba firmemente puesto en la dimensión subjetiva, en la subjetividad obrera y en su expresión más inmediata: el conflicto en la fábrica. La idea obrerista de “composición de clase”, como correlato de la “composición del capital”, permitió formular una lectura articulada de los procesos de transformación técnico-productiva en paralelo a la dimensión político-subjetiva. En este sentido, se destacaba la centralidad política de la clase obrera, desde la perspectiva de la lucha; la fábrica se convertía en el espacio central del conflicto, un espacio de dominación pero también de construcción del antagonismo:

“Recordad: <(...) la existencia de una clase de capitalistas se basa en la productividad del trabajo>. El trabajo productivo, por lo tanto, no se halla sólo en relación con el capital, sino con la clase misma de los capitalistas: en esta última relación es la clase obrera. El cambio es probablemente histórico: es el trabajo productivo el que produce capital; es la producción capitalista la que <organiza>, con la industria, a la clase obrera; es la organización en clase de los obreros industriales la que provoca la constitución en clase de los capitalistas en general. Los obreros se presentan entonces, (...), como una clase social de productores: productores industriales del capital; los capitalistas (...), como una clase social más que de empresarios, de organizadores: organizadores

15de los obreros con el medio de la industria.”

Con base en estos postulados, la revolución pasaba por la radicalización, desde la lucha social hacia la lucha política. Y para ello era necesario anticipar los movimientos del capital de modo consciente a escala de masa social y, por lo tanto, de modo organizado como intervención política. De hacerse esto, se desencadenaría la condición de dominio obrero sobre el proceso de producción capitalista, lo que debería constituir la premisa inmediata de su caída:

“Un programa de verdadera y propia agresión a la coyuntura es todavía actual. (...) Antes de que logren estabilizar el bloqueo de hecho de los salarios, hay que exasperar, también articulándola, la dinámica salarial. Antes de que ataquen los niveles de ocupación es preciso golpear la productividad del trabajo, con una clara amenaza de represalia. Antes de que lleguen a congelar los convenios ya firmados es preciso denunciar alguno de ellos con acciones de fábrica en puntos estratégicos. Antes de que vuelvan a comenzar a mirar, como remedio milagroso, a la fuerza del Estado, es preciso recordarles con ejemplos que en la fábrica existe una fuerza

16mayor.”

15TRONTI, M., “La fábrica y la Sociedad”, en Quaderni Rossi, Nº 2, 1962, p. 3.16TRONTI, M., “1905 en Italia”, en Classe Operaia, Nº 1, 1964, p. 3.

La lectura de Marx en clave clasista: el Si.tra.p. como órgano de expresión del Sindicato de Trabajadores de Perkins, 1973-1975

17PANZIERI, R., “La estrategia del rechazo”, en Quaderni Rossi, Nº 2, 1962, p. 6.18En un artículo muy sugestivo que se llamó “El capitalismo. Sistema injusto que comienza a decaer”, el escritor del mismo luego de hacer una breve reseña sobre las etapas de los modos de producción, recae en un análisis sobre la cooperación, subrayando las diferencias existentes con el comunismo primitivo. “De la producción manual, artesanal, se pasó a otro tipo de producción en común, donde varios obreros trabajaban juntos en una misma especialidad, en una misma rama. Ahora bien, los medios de producción, es decir, el local donde funcionaba esa fábrica y los instrumentos (máquinas, herramientas, etc.) eran y son propiedad del patrón, y por supuesto, la producción debía ser y es del patrón.” “El capitalismo. Sistema injusto que comienza a decaer”, en Si.tra.p., Año II, setiembre de 1974, p. 2.

En esta secuencia, el tema clásico de las reivindicaciones salariales era concebido como un terreno de ruptura y no de negociación: los aumentos salariales debían desligarse de los aumentos de productividad para romper la lógica del capital, buscando impulsar un igualitarismo salarial que rompiera con las jerarquías y las divisiones al interior de la fábrica.

Por último, los obreristas entendían que el capital está constituido de tal forma que precisa de una sociedad para la producción, por lo que el dominio obrero es un dominio posible sobre la producción, sobre un elemento particular de la sociedad. Pero el dominio capitalista es el dominio real sobre la sociedad en general, por lo que “(...) no dejar que se introduzca en la fábrica el interés capitalista significa bloquear el funcionamiento de la sociedad, sentar las bases para derribar y destruir

17el poder del propio capital.” En consecuencia, la condición del “obrero masa” implicaba una ruptura ulterior en relación al trabajo, un distanciamiento absoluto del obrero con respecto a los medios de producción que se traducía en el sabotaje, el ausentismo y otras formas de lucha que buscaban dar a la alineación una salida política.

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A diferencia de los obreristas, los redactores de Si.tra.p no pretendieron construir un corpus teórico ni tampoco establecer ninguna innovación metodológica. Dentro de la fábrica, la lucha contra los regímenes de producción, las reivindicaciones por la igualdad de los salarios, la democratización del espacio de trabajo y su enfrentamiento contra la denominada burocracia sindical, enmarcaban una cotidianeidad que para los trabajadores de Perkins se reflejaba en una total alienación. Dentro del mundo fabril, la misión de Si.tra.p era la de concientizar al obrero sobre su condición de explotado, sobre la necesidad de lograr la unidad de clase y a través de ésta remarcar la importancia de la militancia política. Para ello, era necesario explicar en qué consistía el capitalismo, porqué la relación entre las clases dominantes y el proletariado es una relación de explotación y por ende, qué significaba el sindicalismo

18clasista .

“Pero este análisis no explica el por qué unos tienen más y otros menos, ni tampoco dice nada de: el lugar que cada persona tiene en la producción de las riquezas. Y no es casualidad. Estos conceptos son los que defiende la clase

dominante, y esta interpretación es SU IDEOLOGÍA, LA IDEOLOGÍA BURGUESA, que es una deformación conciente de la realidad. (…) En cambio nosotros, como trabajadores, debemos ver la realidad tal cual es, es decir científicamente, porque no nos interesa ocultar

19nada.”

Aquí podemos detectar la influencia del pensamiento de K. Marx, pero también algunas coincidencias con los obreristas italianos.

En primer lugar, al igual que el obrerismo, para los redactores de Si.tra.p. el aporte fundamental de Marx fue el de haber establecido que la relación social entre trabajador y patrón es una relación de explotación, la cual mantiene al régimen del capital, debido a la capacidad del segundo para extraerle plusvalía al primero:

“Estas relaciones sociales, determinan el modo y la proporción en que cada clase social percibe la riqueza social. El patrón acumula todo el producto del trabajo, es decir, hace SU CAPITAL, y cede al trabajador sólo una parte, como retribución por su fuerza de trabajo en la forma de SALARIO. Como hemos visto en otro artículo, en la fábrica de Perkins, por ejemplo sobre 24.000 motores producidos al año, aproximadamente 22.000 motores son PURA

20GANANCIA”

En segundo lugar, y como consecuencia lógica de lo establecido anteriormente, se enfatiza nuevamente la figura del obrero y sus aspectos subjetivos en esta relación. Además de los artículos en los que se informaba al operario de los logros en las mejoras de las condiciones de trabajo alcanzadas por la nueva Comisión Directiva, la revista contenía numerosas editoriales y artículos que se ocupaban de un análisis más profundo. Lo fundamental era llegar a, y tener en cuenta la situación del trabajador de la planta, el mismo que era sujeto a la alienación de la “legislación fabril”. En esta lógica, la fábrica era considerada como una maquinaria de la cual el obrero era una pieza más, intercambiable cuando se rompe o se gasta, y esa legislación fabril era traducida como “la ley del patrón”:

“Es increíble que los grandes avances de la ciencia y la técnica, las máquinas y artefactos fabulosos que se han inventado, no se usen y ni siquiera se hagan pensando en el hombre que está detrás de la máquina. Incluso, la forma

19“Sindicalismo Clasista”, en Si.tra.p., Año II, mayo de 1974, p. 4.20Íbid., p. 5. El otro artículo al que se hace referencia es “La explotación patronal en números concretos”, Si.tra.p., Año II, abril de 1974, p. 10. En el mismo, se analizó el balance general de la empresa, así como los rendimientos de los trabajadores y los motores que sacaba Perkins al mercado. En este artículo se pone énfasis nuevamente en la centralidad del obrero en cuanto productor: “Y, ¿quién saca la producción con sus manos? EL OBRERO. Y, ¿qué hace el capitalista en todo esto? SE LLEVA LA RIQUEZA QUE HAN PRODUCIDO LOS TRABAJADORES. ESTO ES LA EXPLOTACIÓN DEL HOMBRE POR EL HOMBRE. Entonces de lo que se trata, de una vez por todas, es de dar vuelta la tortilla, TERMINAR CON LA EXPLOTACIÓN, SOCIALIZAR LOS MEDIOS DE PRODUCCIÓN.”


21“Insalubridad”, en Si.tra.p., Año I, noviembre de 1973, p. 15.22“Moral y conciencia de la clase obrera”, en Si.tra.p., Año I, diciembre de 1973, p. 10.23Ìbid., p. 11.24Íbid., p. 12.25Íbid.26“Insalubridad”, op. cit., p. 16.

27“No queremos morirnos en un socavón!”, en Si.tra.p., Año I, agosto de 1973, p. 6.28Refiriéndose al sindicalismo tradicional el autor del artículo sostiene: “El sindicato, se ha transformado en mediador entre los obreros y los patrones, o, directamente en agente de la patronal.”, “Sindicalismo Clasista”, op. cit., p. 4.29“Socialismo”, en Si.tra.p., Año II, agosto de 1974, p. 7.30TRONTI, M. “Marx, ayer y hoy”, en Mondo nuovo, Año 1, 1962, p. 3.

misma en que está organizado el trabajo, los ambientes, las líneas, los ritmos de producción, están hechos de tal forma, que a la corta o a la

21larga afectan la salud del trabajador.”

La crítica a la “organización científica del trabajo” estaba orientada a descubrir las trampas implícitas en los métodos aplicados en el lugar de trabajo. Mediante el análisis de la gestión del trabajo, la revista intentaba develar “(...) esas trampas, que están bien disimuladas y permiten de esta forma engañar al trabajador; que en la mayoría de los casos no las detecta,

22o bien las pasa desapercibidas.” Esto implicaba denunciar ciertas metodologías que solamente beneficiaban al capitalista y perjudicaban al obrero. Primero, el principal método de explotación eran las horas extras: con éstas la patronal lograba varios objetivos además del aumento de la producción. Uno de ellos era el de disminuir el costo de mano de obra ya que “(...) vemos que con las horas extras que valen un poco más que las horas comunes, se logra mantener al personal que la fábrica ya tiene, un mayor tiempo en la

23planta.” Otro de los métodos denunciados es el fomento del divisionismo entre los compañeros de trabajo:

“Si nos ponemos a observar atentamente y analizamos la forma de actuar de nuestros jefes, veremos que detrás de las promesas y <soluciones> que ellos nos ofrecen, se encuentra la doble y mala intención que en muchos casos logran sobre ciertos compañeros: trabajarles la moral, y así se ven en la obligación de sacar más producción, perjudicando esos pocos, a todos los compañeros que luego se ven obligados a

24aumentar la producción.”

Finalmente, se denunciaba el fomento del juego y el fútbol. En el mismo sentido que Marx sostuvo que la “religión es el opio de los pueblos”, Si.tra.p. sostenía que la penetración del fútbol en la clase obrera era un engaño que ocupaba los ratos libres de los compañeros, sirviendo como distracción de cosas que

25nada tiene que ver con la explotación en el trabajo .

De esta manera, la crítica a la fábrica y la organización del trabajo significaba no solamente subvertir la autoridad inmediata de la gerencia, sino poner en cuestión la orientación y los valores mismos de la producción hacia el mercado. La clase obrera en cuanto sujeto central de la producción en la fábrica debía tomar conciencia de que “(…) una fábrica, para producir NO

26NECESITA PATRÓN” . Aquí aparece nuevamente la centralidad del trabajador como sujeto, como portador de una lógica y de valores distintos a los del capitalista:

“Esta es la razón por la cual planteamos LA SOCIALIZACIÓN DE LAS FÁBRICAS Y LOS CAMPOS. Porque la forma en que producimos, en que trabajamos, ES COLECTIVA, ES SOCIALIZADA, y sin embargo, el beneficio de lo producido es INIDIVIDUAL, se lo lleva el

27capitalista.”

Similar al obrerismo, al brindarle centralidad al obrero en cuanto productor, éste contiene las herramientas y elementos suficientes como para romper la lógica del capitalismo. Pero no un obrero aislado, sino que la centralidad que cobra fuerza es la de los aspectos subjetivos del trabajador en cuanto clase. El sindicato burocratizado, tal cual era concebido institucionalmente, coadyuvaba a la reproducción del capital y no a romper su

28lógica . Por eso el sindicato debía ser clasista, es decir, que el enfrentamiento económico y social entre explotadores y explotados, sea llevado a cabo por el sindicato, como “expresión de la clase obrera en la lucha de CLASE CONTRA CLASE.” Por ende, “Nuestro Sindicato, como organización gremial, no representa ningún partidismo. Pero como organización de la clase obrera que es, defiende los intereses de la clase trabajadora y lucha contra la injusta explotación

29capitalista.”

A modo de cierre

“Nosotros no podemos hoy dejar de aceptar las afirmaciones marxistas fundamentales más de lo que un físico serio puede ser no-newtoniano, con la enorme diferencia de que en el campo de la sociología tendrán todavía que pasar varias generaciones antes de que pueda aparecer un Einstein. Éste no llegará antes de que la obra de Marx haya dado todos sus frutos históricos.” Citando a Rudolf Schlesinger, Mario Tronti parte de una premisa: para una investigación que quiera retomar el discurso sobre la validez actual de algunas de las afirmaciones marxistas fundamentales, debe confrontar a

30Marx, no con su tiempo, sino con el nuestro . El Capital debe juzgarse de acuerdo al capitalismo actual. Yo agregaría que debería confrontarse además con el tiempo de los actores que nosotros estudiamos. Desde este punto de vista, podríamos desechar la banal idea de que la obra de Marx es producto y explicación de una sociedad de pequeños productores de mercancías.

Tanto para Si.tra.p como para Quaderni Rossi-Classe Operaia el pensamiento de Marx no podía continuar liquidando sus cuentas con la vieja conciencia filosófica, debía, por el contrario, ponerse a prueba mediante un encuentro activo con la realidad más moderna del capitalismo contemporáneo: para comprenderlo y para destruirlo. Así pues, el pensamiento de Marx, se componía de dos partes. Una de ellas era la

36 - La lectura de Marx en clave clasista: el Si.tra.p. como órgano de expresión del Sindicato de Trabajadores de Perkins, 1973-1975

“crítica despiadada de todo lo que existe”: en Marx se ha expresado como el descubrimiento del procedimiento mistificado del pensamiento burgués y, por lo tanto, como desmitificación teórica de las ideologías capitalistas. La otra es el “análisis positivo del presente”, que del máximo nivel de la comprensión científica hace surgir la alternativa futura al mismo. Una es crítica de la ideología burguesa, la otra es análisis científico del capitalismo. En la obra de Marx, estos dos momentos se pueden captar lógicamente divididos y cronológicamente sucesivos: de la Crítica de la filosofía hegeliana del derecho público a El Capital. Análogamente, para estas publicaciones, una vez adquirido el punto de llegada de la obra de Marx –El Capital-, es preciso tomar éste como punto de partida; una vez llegados al análisis del capitalismo, hay que partir de nuevo de este análisis. Entonces, la investigación sobre algunas abstracciones determinadas (el trabajo alienado, las modificaciones producidas en la composición orgánica del capital, el valor en el capitalismo oligopolístico) debe constituir el punto de partido para llegar de nuevo al “conjunto viviente”: el pueblo, la democracia, el Estado político, la lucha de clases internacional.

Para terminar, tal vez la máxima de “nunca arrojarse a combatir en la práctica sin armas teóricas” resuma la finalidad última de Quaderni Rossi-Classe Operaia y Si.tra.p. A través de Marx, los artículos escritos en estas publicaciones intentaron la búsqueda de un sujeto: el “obrero masa” poseedor de un poder de decisión sobre los movimientos del capital, por lo cual era necesario descubrir las necesidades del desarrollo del capital y trastocarlas en posibilidades subversivas de la clase obrera.


Notas sobre o Estado no pensamento político de Ruy Mauro Marini

*Mestrando em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.1Para conhecimento deste percurso, consultar TRASPADINI, Roberta & STEDILE, João Pedro (orgs.). Ruy Mauro Marini – vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

Notas sobre o Estado no pensamento político

de Ruy Mauro Marini

José Carlos Mendonça*

2MARINI, Ruy Mauro. Memória. Disponível em: http://www.marini-escritos.unam.mx/001_memoria_port.htm#4. Acesso em 22 jul 2008.3MARINI, Ruy Mauro. El Estado en la Economía. Disponível em: http://www.marini-escritos.unam.mx/108_latinoamerica_es.htm. Acesso em 23 jul 2008.

I

38 -

ntrodução

O Mineiro de Barbacena Ruy Mauro Marini (1932-1997) tornou-se conhecido nos meios acadêmicos e militantes do Brasil e do exterior por suas contribuições enquanto intelectual de esquerda e marxista engajado. Seu leque de investigações pode ser vasto, ultrapassando as próprias iniciativas pessoais motivadas pelo interesse acadêmico ou político, muito em função do contexto em que sua trajetória individual esteve inserida e pode partilhar. Basta citar que, além de uma vida marcada por t rês exí l ios , presenciou o auge da teor ia desenvolvimentista na América Latina (AL) e no Brasil, o que fez o seu pensamento transitar, por exemplo, da adesão à crítica em relação às elaborações da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) das

1Nações Unidas . As preocupações que foram objeto de sua reflexão sistematizada vão desde a análise do processo de luta de classes que resultara no golpe militar no Brasil em 1964, bem como às suas causas econômicas profundas e às suas conseqüências, em especial na AL; múltiplos temas de política internacional; a questão do subimperialismo; o exame de categorias e teses marxistas aplicados ao estudo da AL; a tomada de posição no debate sobre as causas da queda do governo Allende no Chile em 1973; contribuições para caracterizar o poder em Cuba; as relações entre democracia e ditadura no capitalismo; o debruçar-se sobre a passagem do sistema mundial de poder da 'bipolaridade' à 'multipolaridade'; as características da crise econômica mundial e suas implicações para a AL; o papel das novas tecnologias em seus efeitos sobre as condições de trabalho; os rumos do socialismo mundial face à crise da esquerda européia em meados da década de 1970; até a passagem por temas tratados pontualmente como a questão da educação superior no Brasil, a relação entre concentração de renda e movimentos sociais, indústria automobilística e déficit público. Some-se o fato de que Marini, juntamente com André Gunder Frank e Theotônio dos Santos, tornou-se um dos principais expoentes da chamada "teoria da dependência" que marcou a maioridade do pensamento social latino-americano na sua relação com o pensamento social produzido nos grandes centros capitalistas. No entanto, como o próprio Marini afirmou “(...) o centro, por excelência, de minhas pesquisas continuou sendo o

desenvolvimento capitalista latino-americano e o modo 2como era percebido e influído pelo processo teórico.”

Com toda esta horizontalidade de reflexões e posicionamentos, que lugar ocupa o Estado, como foi ele entendido e em que dimensões por Marini? É o que estas breves notas pretendem apontar, mais no sentido da apreensão do Estado nas suas diversificadas interconexões com outros campos da vida social, menos na tentativa de procurar extrair um conceito a ser aplicado a estas mesmas relações. Por razões de espaço, nos limitaremos a abordar três destas relações: com a economia, frente aos regimes políticos do capitalismo na região da AL e na sua relação com o socialismo.

Estado e Economia

Ao escrever para o jornal mexicano El Universal, em agosto de 1977, sobre a crise latino-americana de meados daquela década, Marini demonstrava as umbilicais ligações entre Estado e economia. O primeiro ao desempenhar um “papel clave en la dinámica económica de nuestros países [...] tanto para la creación de mercado como para la formación de la inversión” e a segunda, para modificar as condições que a mantinham em crise, encontraria “la clave de la superación de la crisis cíclica esté, en una amplia medida, y sin perder de vista la acción de la economía internacional, en las manos del Estado, en un país como Brasil, lo mismo pudiendo decirse de México o Argentina. [...] de igual modo, si se quiere investigar las posibles modificaciones que sufrirá la economía nacional en el curso de la presente crisis y precisar las características que podrá tener en la eventualidad de una nueva fase expansiva, conviene preguntar hacia donde

3apunta el Estado.”

Dezessete anos mais tarde, num texto de 1994, Marini - discutindo a relação Estado/sociedade civil, esta entendida como o lugar das classes sociais e da economia – apresentará em termos mais estritamente políticos esta relação. Partindo da definição de Gonzalez Casanova de

4que o Estado é “el poder de disponer de la economia”, Marini, não sem antes alertar para o fato de que a exatidão

4GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. La Crisis del Estado y la lucha por la democracia en América Latina. Citado por MARINI, Ruy Mauro. Economia y democracia en América Latina. Disponível em: http://www.marini-escritos.unam.mx/022_economia_democracia_es.htm. Acesso em 20 jul. 2008.5Cf. MARINI, in: Economía y democracia en América Latina, obra citada.6Id. Ibid.7THOMAS, Tom. O Estado e o Capital. O exemplo francês. Lisboa: Dinossauro, 2003, p. 37.

8Id. Ibid. p. 37-39.9MARX, Karl. La socialisation de l'impot. Citado por THOMAS, obra citada, p. 164.


desta definição sofre variações consideráveis de acordo com a vertente teórica burguesa que se adote, sustentou que a concepção Hobbesiana, que delega in totum a soberania popular para o Estado e com isso retira dos cidadãos a possibilidade de estabelecer limites ao poder estatal, foi a que mais se aproximou da adotada pelas classes dominantes na AL durante as ditaduras militares instaladas na região a partir de meados da década de 1960: uma relação de subordinação da economia à política. Relação esta que, segundo Marini, sofreu alterações a partir de meados da década de 1980, evoluindo para uma relação de autonomia do Estado na gestão econômica, ou seja, permanecendo imune às influências que os processos de redemocratização que se

5processavam desde então porventura fizessem incidir .

Articulando as categorias de análise, Marini chega assim à concepção de que o regime político-estatal denominado Democracia se define como “una forma de organización política que atribuye a la ciudadanía el derecho fundamental de disponer de la economía” para, em contraposição ao modelo de democracia representativa, fazer a defesa “de una verdadera democracia participativa, que afirme la dirección y el control de las masas sobre el Estado de manera directa y

6permanente.”

Embora tenha o mérito inquestionável de apontar a insuficiência do modelo representativo da democracia liberal, fruto, entre outros fatores, de uma acertada sensibilidade face às contradições expressas teoricamente no interior do campo dominante, esta concepção de Marini padece também de insuficiências ao projetar a concepção de um Estado que pode vir a deixar de servir ao conjunto dos capitalistas enquanto classe. Formulações deste cariz - que abrem a possibilidade para que as instituições do Estado Capitalista possam ser dirigidas e controladas pelas classes exploradas sem a inversão da correlação de forças entre capitalistas e proletários, ou seja, sem a realização prévia de uma revolução social anticapitalista e apresentam como alternativa a chamada Democracia Participativa – confundem a autonomia do Estado frente aos burgueses, e até mesmo em relação à burguesia em momentos excepcionais, com a autonomia frente ao “interesse geral da propriedade privada e de seu desenvolvimento

7enquanto propriedade capitalista” e induzem a ilusões. Como bem afirmou Thomas (2003):

“O Estado Burguês [...] é a forma política que organiza a sociedade burguesa [...] mas também um aparelho autônomo em relação aos seus membros particulares, aos quais, por vezes, tem de impor medidas de interesse geral para a

reprodução desta sociedade, que se opõem aos interesses pessoais imediatos destes ou daqueles. [...] veremos o Estado desenvolver-se, promover alianças entre classes e não apenas entre as diferentes fracções da grande burguesia, e tentar organizar o consenso social. [...] Porque insistimos nesta autonomia e nesta função geral do Estado? Porque [...] Uma vez que se compreenda que, ao contrário das aparências e da ideologia, 'o Estado político é apenas a expressão oficial da sociedade civil', sabemos que de nada serve, senão para enganar o povo, recorrer ao

8Estado 'para mudar a vida'” .

De resto, vale lembrar que tal fenômeno se encontrava nitidamente delineado pelo menos desde a primeira metade do século XIX, pois já havia sido observado por Marx quando escreveu na Neue Rheinische Zeitung em abril de 1850: “O Estado dos burgueses não é mais do que um seguro colectivo da classe burguesa contra os seus membros individuais e

9contra a classe explorada” . Não se trata aqui de atribuir diretamente a Marini a defesa de um Estado “neutro” ou algo do tipo, mas de identificar em sua formulação aspectos que possibilitam uma justificação teórica para um “Estado de transição”. Feitas estas ressalvas, passemos à próxima relação.

Estado e Ditadura Militar

O pensamento político de Marini se deteve ricamente nesta relação que, em sua inexorável materialidade, perpassa a maior parte de sua existência dado que se trata de um perseguido por duas Ditaduras (primeiramente pela brasileira que se instaura em 1964 e posteriormente pela chilena em 1973). Isto significa que o pensamento de Marini parte da análise da situação concreta para construir os conceitos com os quais integrará o edifício de suas teorizações também neste âmbito relacional.

O ponto de partida adotado por Marini foi proceder a uma caracterização da situação política latino-americana à luz das lutas sociais e de classe na região, a qual resulta como contra-revolucionária abrangendo um período que vai aproximadamente de 1960 a 1990, com variações no calendário dos paises. É da incidência da contra-revolução sobre o Estado, determinando sua estrutura e funcionamento, que nosso autor localiza o ponto de concentração para exercer seu rigor analítico neste tema.

Três são as vertentes que contribuem para conformar as ditaduras militares segundo Marini: a mudança de estratégia dos EUA, ocorrida em fins dos anos 1950/60 durante o governo Kennedy, para fazer frente ao avanço do pólo sob hegemonia da então URSS que consistiu em abandonar uma postura de relativa contemplação para passar a uma postura que Marini

10MARINI, Ruy Mauro. El Estado de Contrainsurgencia. In: “La cuestión del fascismo en América Latina”, Cuadernos Políticos, México: Ediciones Era, num. 18, octubre-diciembre, 1978, pp.21-29. Disponível em: http://www.marini-escritos.unam.mx/016_contrainsurgencia_es.htm. Acesso em 23 jul 2008.11Para a enumeração que se segue, além do texto acima, conferir também em MARINI, Ruy Mauro. El carácter del Estado Militar y sus implicaciones para la izquierda. In: “Correo de la Resistencia”, órgano del Movimiento de Izquierda Revolucionaria de Chile en el exterior, número 13, agosto-octubre de 1 9 7 6 , ( E d i t o r i a l ) . D i s p o n í v e l e m : h t t p : / / w w w. m a r i n i -escritos.unam.mx/052_estado_militar_es.htm. Acesso em 23 jul 2008.

12MARINI, El Estado de Contrainsurgencia, obra citada.

40 - Notas sobre o Estado no pensamento político de Ruy Mauro Marini

denominou de resposta flexível; A transformação estrutural das burguesias nativas que além de gerar alterações na composição do bloco de poder dominante, produziu uma burguesia monopolista integrada à burguesia dos países imperialistas centrais resultando na quebra do Estado Populista que favorecia a acumulação de todas as frações burguesas para fazer brotar um Estado voltado para o favorecimento da acumulação das frações monopolistas, subordinando as demais e a pequena burguesia; por fim Marini aponta o ascenso do movimento de massas durante os anos 1960 e até antes, o qual incide sobre as contradições no campo burguês no sentido de agravá-las e que exigia uma reação violenta dos capitalistas.

Marini destaca que tal caracterização não se resume à instalação de ditaduras militares, mas também que tal processo afetou Estados que não assumiram esta forma política. Isto se explica devido ao critério de Marini em situá-las no arcabouço mais amplo das

10“formas particulares de la contrarrevolución burguesa” , inclusive para delimitar as especificidades de tais formas na AL quando comparadas às formas assumidas pelo fascismo europeu dos anos 1920-45. Cumpre

11enumerá-las .

Ao debruçar-se sobre o caso chileno três anos após o triunfo do golpe pinochetista, Marini demonstra que a base sobre a qual se assenta o Estado Militar difere da do fascismo europeu, em que pese a adoção dos recursos fascistas pelas ditaduras militares ser similar.

Primeiramente por não se tratar de uma debilidade conjuntural da burguesia e do imperialismo como ocorreu na primeira metade do século XX e sim de uma debilidade estrutural da burguesia dos países dependentes fruto da perda de vigência do modelo de acumulação que vigorou até então, gerando a necessidade de redefinição do lugar de tais burguesias na economia mundial.

Em segundo lugar, diferentemente do fascismo europeu, Marini apontou que a contra-revolução latino-americana dispensa a subordinação do exército à mediação de um partido político, exercendo os militares tanto a ocupação direta dos postos governamentais, de onde ditam as condições ao conjunto da burguesia, quanto o relacionamento direto com as instituições corporativas dos capitalistas.

Outra distinção importante destacada por Marini é a impossibilidade da burguesia monopolista nativa de atrair para o seu campo parcelas expressivas dos setores populares, diferentemente do fascismo europeu que conseguiu influencia real na pequena burguesia e em parte do proletariado, sendo capaz inclusive de obter vitórias eleitorais a exemplo do ocorrido na Alemanha de Weimar. Sendo assim, aos capitalistas latino-americanos o recurso possível é o exercício da força direta para fazer valer seus interesses.

No plano ideológico, Marini aponta que enquanto o fascismo europeu desenvolveu um discurso de negação da democracia burguesa, a contra-revolução na AL desenvolveu o discurso inverso, o da sua defesa. Tal foi explicado pela busca de recomposição da unidade entre as diversas frações burguesas dado o limite de não conseguir reunir força social própria para enfrentar o movimento popular.

Para tentar solucionar as contradições não resolvidas no terreno da política, passou-se então para o terreno da guerra. Marini elabora então o conceito de 'Estado de Contra-insurgência'. Este conceito explica a necessidade de aplicar à luta política um enquadramento militar tanto pelas burguesias dependentes para conseguirem sua integração no sistema capitalista em condições menos desfavoráveis frente às burguesias centrais, quanto pelas burguesias imperialistas para lograrem a reestruturação da economia internacional naquele momento, pois ambas as necessidades requerem a submissão do proletariado pela força. Tarefa que a forma estatal ditatorial apresentava melhores condições de realização comparativamente às formas democráticas.

As características específicas desse Estado, que apresenta igualmente a outras formas de Estado capitalista um poder executivo hipertrofiado, radicam na existência de dois centros de decisão no interior do executivo, um militar e outro econômico. O primeiro constituído pelos órgãos militares 'puros' (Estado Maior das Forças Armadas, serviços de inteligência), o segundo pelos órgãos civis ocupados por tecnocratas e militares (ministérios econômicos, empresas estatais) e ambos se entrelaçando no Conselho de Segurança Nacional, órgão fundamental do Estado de Contra-insurgência. Marini sintetiza assim sua concepção:

“El Estado de contrainsurgencia es el Estado corporativo de la burguesía monopólica y las fuerzas armadas, independiente de la forma que asuma eses Estado, es decir, independientemente del régimen político vigente. Dicho Estado presenta similitudes formales con el Estado fascista, así como con otros tipos de Estado Capitalista, pero su especificidad está en su peculiar esencia corporativa y en la estructura y funcionamiento que de allí se generan. Llamarlo fascista no nos hace avanzar un paso en la

12comprensión de su significado.”

13BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo. Porto: Afrontamento, 2003, p. 33-34.14Id., ibid., p. 35.15Id., ibid, p. 26.

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Posteriormente, ao relacionar o Estado de Contra-insurgência com o processo de redemocratização, Marini identificou a tentativa de institucionalizá-lo após a abertura política por meio da preservação do fundamental de seu caráter. Formula então a concepção de 'Estado de quatro poderes' acrescendo as Forças Armadas ao tripé clássico do Estado representativo moderno (executivo/legislativo/judiciário) que cumpriria a função de tutelar o conjunto do aparelho estatal e a sociedade, esta última por meio da edição das chamadas 'leis de segurança nacional'.

Neste âmbito de relações, podem-se identificar os méritos do pensamento de Marini pelo fato de descortinar as atenções para os fatores internos na explicação, por exemplo, dos golpes militares; pela acuidade na percepção das peculiaridades regionais para evitar que a caracterização da contra-revolução na AL desembocasse numa justificativa para a formação de frentes policlassistas, nas quais a burguesia tendia a assumir papel hegemônico, e pela forma como detectou a estratégia de assegurar a continuidade dos traços dessa forma estatal por meio da sua institucionalização em situações de democracia burguesa.

Em sentido inverso, sua percepção de que o Estado de contra-insurgência se funda num momento de debilidade estrutural das burguesias locais enquanto o fascismo foi um momento de debilidade conjuntural das burguesias européias não se sustenta. Ambos os casos, seja a forma estatal fascista na Europa ou o Estado de ditadura militar na AL, foram antecedidos por uma derrota profunda das lutas dos trabalhadores, por esgotamento (caso da Europa) ou por incipiência (caso da AL), evidenciando que a fragilidade estava nos trabalhadores e não na burguesia - salvo se estivermos tratando de lutas no interior da classe burguesa. Neste caso, a análise da relação entre as classes em luta consideraria a presença das classes exploradas como elemento subordinado, sem autonomia.

No profundo e abrangente estudo dedicado ao fascismo que realizou, no qual este foi definido como sendo uma “revolta na ordem”, Bernardo presta-nos o seguinte esclarecimento:

“A crer numa versão corrente ainda hoje muito divulgada, o fascismo teria constituído o último recurso do grande capital ameaçado pelas acções vitoriosas do proletariado. (...) Na realidade, porém, quando os fascistas conquistaram as ruas e os campos, para se apoderar em seguida da governação, eles jamais conseguiram ascender em confronto directo com as movimentações revolucionárias dos trabalhadores, mas somente após essas movimentações terem sido desarticuladas pelas suas contradições internas. (...) A manutenção de alguns mitos e, ao mesmo tempo, o apego a certas indecisões fatais dependem de se apresentar o fascismo e o movimento operário como dois mundos distintos

e separados, em vez de desvendarem os mecanismos que levaram a dissolução de um a gerar a ascensão do outro. Sempre que se confrontou com o movimento operário organizado, o fascismo só alcançou a hegemonia depois de haver desaparecido do horizonte a a l t e rna t iva soc ia l incorporada pe las manifestações de luta colectivas e activas, e desde que, por outro lado, persistissem entre os trabalhadores todos os motivos de insatisfação. Com o abandono da esperança revolucionária a hostilidade de classe assumia a forma degenerada

13do ressentimento.”

Diferentemente do local onde Marini situou sua análise, portanto, é em outro lugar que se deve procurar o surgimento do fenômeno do fascismo, pois como concluiu Bernardo “O triunfo do fascismo só começa a entender-se, em suma, se recordarmos que nessa ocasião as formas sociais inovadoras criadas pelo movimento operário haviam já sido derrotadas e tinham degenerado. Esta foi uma regra sem excepções, e encontra uma perfeita ilustração no primeiro de todos os

14fascismos.” Ora, se o fascismo foi uma revolta na ordem que procurou recuperar para o capital a revolução dos trabalhadores e o Estado em geral, muito mais do que um conjunto de instituições a serviço dos capitalistas, deve ser entendido como “um princípio de organização geral das instituições [..] que dita a organização interna

15da classe dominada” sem margens para teorizações que abrem fendas por onde podem passar possibilidades de ocupação e controle desse mesmo Estado pelo proletariado. Tanto o Estado fascista quanto as ditaduras militares não deixaram de atender a este objetivo com determinação - ainda que por certo prazo.

Do mesmo modo, visto desta perspectiva, onde Marini enxergou 'ascenso' do movimento de massas como um inimigo a ser vencido na AL, pode-se perceber lutas ainda incipientes que expressavam a elementar implantação do capitalismo industrializado. Tais lutas, consideradas no seu conjunto, já apresentavam uma debilidade estrutural (das lutas e não das burguesias) o que as tornava incapazes de fazerem frente aos golpes civil-militares que abriram caminho para a implantação das ditaduras.

Percebe-se então que o pensamento de Marini, ao tratar da relação do Estado com as ditaduras, revela a preocupação política clara de evitar compromissos entre o proletariado e a burguesia. Entretanto, suas formulações também possibilitam um outro campo de compromissos que, analisados na perspectiva do marxismo da luta de classes são, no mínimo, indicadores de influências herdadas dos quadros analíticos do

16bolchevismo . É o que veremos ao tratar do modo como o seu pensamento articulou a relação do Estado com o socialismo.


16Para conhecer a história do bolchevismo, consultar o excelente trabalho de ROSENBERG, Artur. História do Bolchevismo. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989. Para conhecer as origens da compreensão bolchevique do fascismo no âmbito da III Internacional e a sua crítica, vide RODRIGUES, Francisco Martins. Anti-Dimitrov. Lisboa: Ed. do autor, 1985.17MARINI, Ruy Mauro. Reforma y Revolución: una crítica a Lelio Basso. In: VVAA. Acerca de la transición al socialismo. Buenos Aires: Periferia, 1974. D i s p o n í v e l e m : h t t p : / / w w w . m a r i n i -escritos.unam.mx/012_reforma_es.htm#_ednref3. Acesso em 23 jul 2008.18As citações que se seguem foram extraídas de MARINI, Ruy Mauro. Polonia: el socialismo como problema. In: CIDAMO Internacional, número 4, México, enero de 1982, pp. 61-64. Disponível em: http://www.marini-escritos.unam.mx/076_polonia_es.htm. Acesso em 26 jul 2008.

1 9MARINI, Ruy Mauro. Sobre o socialismo. Disponível em: http://www.marini-escritos.unam.mx/040_sobre_socialismo_port.htm. Acesso em 26 jul 2008.20Id. Ibid.21Id. Ibid.

42 -

Estado e socialismo

Neste âmbito, Marini pode desenvolver seu pensamento e apresentar suas concepções em distintos momentos de sua vida, sempre movido por preocupações concretas. Ora buscou construir um diálogo entre forças de esquerda, como no seu envolvimento e colaboração regular com a revista Chile Hoy até o golpe militar naquele país; ora dedicou-se a combater a ideologia dos partidos comunistas de “revolução democrático-burguesa, antiimperialista e antifeudal”, que eles haviam herdado da Terceira Internacional. Também esteve inserindo no debate sobre a transição ao socialismo tanto para polemizar com concepções que subordinavam o socialismo à dinâmica própria do Estado Capitalista, como para forjar conceitos que auxiliassem na caracterização das experiências de poder que se reivindicavam do socialismo.

Para chegarmos ao papel do Estado no socialismo no pensamento de Marini, deve-se inicialmente localizar como nosso autor se situou na célebre tensão entre Reforma versus Revolução e sua

17concepção de socialismo. Em escrito de 1974 , quando polemizou contra Lélio Basso - que sustentava que não se poderia abolir o ordenamento jurídico burguês durante a transição – Marini afirmou a necessidade da supressão das instituições jurídicas que consagram as relações de produção capitalistas. Marini, porém, encarou tal supressão como ponto de partida para o proletariado vitorioso revolucionariamente, apesar de reconhecer que tal medida seria insuficiente para promover a transformação de tais relações sociais num sentido anticapitalista.

Quando analisou o desfecho da acirrada luta de classes na Polônia que resultou numa ditadura militar parida de um bem sucedido golpe de Estado desfechado em dezembro de 1981, Marini desenvolveu elementos de sua concepção de socialismo enquanto processo histórico e procurou situá-lo na perspectiva das lutas de classes

18nacionais e internacionais. Neste escrito de 1982 , embora reconhecesse que “el movimiento obrero polaco había generado una notable capacidad de iniciativa y organización por la base, que no comprometía de por sí, sino más bien afirmaba, el curso socialista del proceso” Marini considerou que “Para situarse ante la dictadura militar polaca, sin incurrir en el reemplazo de la realidad por planteamientos ideales o un dulce pero ingenuo

obrerismo (que se expresa en ideas de hay que estar con los obreros, aunque no tengan razón), habrá que reseñar de manera menos emocional algunos aspectos que ella reviste”. O pensamento de nosso autor neste ponto toma por idênticos os distintos conceitos de 'classe' e 'representação de classe'. Sem operar tal distinção, ele considerou o caráter das concepções programáticas apresentadas pela direção do movimento de oposição ao Estado Polonês como base para prever que “la dirigencia que cristalizará en el curso de éste y sus concepciones programáticas hacían probable que, el traspaso del poder a la oposición, hubiera significado abrir camino a la contrarrevolución”. Percebe-se nesta passagem que seu pensamento opera a partir da disjuntiva revolução/contra-revolução aplicada ao caso concreto polonês como sendo governo/oposição sem distinguir o grau de identidade entre a massa proletária de opositores ao governo e sua liderança. Conseqüentemente, neste texto Marini se alinha com os que concebem a natureza social dos extintos regimes do Leste Europeu e da ex-URSS como socialista. Tal se deduz das expressões utilizadas ('comunidade socialista', 'construção socialista com base no mercado capitalista mundial') bem como pela forma cabal com que conclui o texto:

“La lección que hay que sacar de allí […] no es en suma la de negar que haya socialismo en Polonia: es más bien la de reconocer que el socialismo se realiza históricamente de forma imperfecta y contradictoria y que sus contradicciones pueden engendrar efectos tan terribles como el golpe polaco del 13 de diciembre. Es la de alertarnos sobre la necesidad de considerar a la revolución proletaria, en su desarrollo histórico, como un proceso que se critica y se rehace todos los días [...]”

Posteriormente em 1991-93, já na fase final de sua vida, Marini apresentou em termos teóricos sua

19concepção de socialismo . Inserindo as tentativas de superação do capitalismo ocorridas nos chamados 'países socialistas' no contexto da crítica do capitalismo enquanto modo de organização das relações humanas e afirmando que a falência do 'socialismo real' não invalida a busca por formas superiores de organização social, nosso autor, apoiando-se em Marx, entende que o socialismo se inspira na busca pela “recuperação em um

20nível superior da propriedade individual” e em Lênin que “partindo da noção de socialismo como processo histórico, o assumia como uma das características centrais da nova etapa em que entrara a humanidade e que ele definia como sendo a era do imperialismo e das

21revoluções proletárias triunfantes” . Marini chega assim à formulação do seu próprio conceito de socialismo:

“Período de transição de uma nova era histórica, caracterizada pela superação da propriedade


22Id. Ibid.23Para conhecimento dos exatos termos da concepção leniniana vide, entre outros, LÊNIN. A revolução proletária e o Renegado Kautsky. Lisboa: Avante, 1979.

24PANNEKOEK, Anton. Tesis sobre la lucha de la clase obrera contra el capitalismo. In: Abogación Sureña por los Consejos Obreros, n. 33. Melbourne, 1947. Disponível em: http://www.geocities.com/cica_web/consejistas/pannekoek/pannekoek_tesis.zip Acesso em: 28 jul 2008.25Id., Ibid.

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privada em favor de uma nova forma de propriedade individual, baseada na socialização dos meios de produção, e pela substituição da burguesia como classe dominante pelo proletariado, i.e., a classe dos trabalhadores assalariados, cujo modo de apropriação da riqueza corresponde à ausência de propriedade privada dos meios de produção. A essa dominação de classe corresponde, no plano político, uma forma de democracia ampliada, correlativa ao fato de que a nova classe constitui a imensa maioria da sociedade, e – na medida em que qualquer dominação estatal supõe o uso da força, se é preciso, para subordinar as demais classes e se manifesta em relação a estas como ditadura – uma nova forma de ditadura. Democracia socialista e ditadura do proletariado são, neste sentido, apenas dois lados da mesma

22moeda.”

Adiante no texto Marini afirma que o socialismo pressupõe a conquista do poder político, luta ideológica por outra moral e visão de mundo, necessidade de realizar a revolução cultural. Reafirma o papel do partido enquanto “condutor e educador” embora critique a estratégia de depositar na vanguarda partidária a produção de novos valores que poderiam realizar o socialismo, tarefa que deve se dar pela própria experiência de vida das massas como condição para o desenvolvimento de suas capacidades revolucionárias, entendidas como exercício da condução do Estado socialista, apropriando-se do conceito de “cidadania” que no entender de Marini caberia à democracia socialista “dar-lhe foro efetivamente universal”: uma cidadania socialista que estabeleça a plena igualdade política.

Na concepção de Marini, democracia e socialismo são conceitos distintos, porém inseparáveis, e é dessa interdependência que extraímos a relação do Estado com o socialismo. Para além da centralização econômica dos meios de produção, com relativizações e flexibilizações, Marini concebe o papel político do Estado em termos muito próximos com os quais Lênin concebeu a aliança operário-camponesa no processo da

23Revolução Russa : por um lado, um Estado aliancista e democrático para dirimir as divergências entre as classes sociais integrantes da aliança socialista por meio da adoção de métodos persuasivos e, por outro, um Estado coercitivo para com as antigas classes exploradoras. Marini acresce aqui a possibilidade de que o Estado promova o que ele denominou de concessões à burguesia por meio de compromissos, levando inclusive à adoção do pluralismo sob certas condições.

Observa-se que a relação Estado/socialismo em Marini reconhece vigência nas suas principais linhas aos parâmetros em que foi pensada por Lênin para o contexto russo. Em que pesem as observações e os alertas

feitos por Marini à luz das experiências revolucionárias do século XX sobre o protagonismo insubstituível das massas no processo da revolução, ao fundir no aparelho do 'Estado de transição' democracia e socialismo, ele se alinha com uma concepção de socialismo já ultrapassada, teoricamente e em fatos, pelo menos desde fins da segunda guerra mundial. Coube a Anton Pannekoek (1873-1960), escrevendo em 1947, extrair com profundidade as conseqüências das experiências das revoluções russa e alemã para o socialismo do futuro e aclarar o (não) lugar que o Estado nele deveria ocupar:

“El socialismo, erigido como la meta de la lucha de los obreros, es la organización de la producción por el Gobierno. Significa el socialismo de Estado, el mando de los funcionarios del Estado sobre la producción y el mando de los gerentes, científicos, jefes, en la fábrica. En la economía socialista, este cuerpo, formando una burocracia bien organizada, es el amo directo del proceso de producción. […] Los obreros, bajo la democracia, pueden escoger a sus amos, pero no son ellos mismos amos de su trabajo; reciben sólo parte de lo producido, asignado a ellos por otros; son aún explotados y tienen que obedecer a la nueva clase dominante. Las formas democráticas, que se supone o se pretende que la acompañen, no alteran la estructura fundamental de este sistema económico. El socialismo fue proclamado la meta de la clase obrera cuando, en su primer alzamiento, se sentía impotente, incapaz de conquistar por sí misma el poder sobre las fábricas, y buscaba en el Estado protección contra la clase capitalista por medio de reformas

24sociales.”

O 'Estado de transição' se configura assim num espaço por onde se legitima (na teoria) a reconstrução (na prática) da diferenciação de tipo classista, tendo em vista que “La meta de la clase obrera es su liberación de la explotación. Esta meta no se alcanza y no puede alcanzarse mediante una nueva clase dirigente y gobernante que sustituya a la burguesía. Sólo puede ser realizada por los obreros mismos siendo dueños de la

25producción.”

Destaque-se por fim que a concepção de Pannekoek demarca claramente do entendimento bolchevique, recepcionado pelo pensamento de Marini, mas não se confunde com uma concepção anarquista de 'abolição' do Estado, pois visa estabelecer outro conteúdo para o conceito marxiano da 'ditadura do proletariado' distinto daquele. No lugar do 'Estado de transição' leniniano, Pannekoek sustenta que os proletários devem constituir 'Conselhos Operários', organismos para coordenar a produção enquanto totalidade, encetar a luta


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contra o poder do Estado antes e assegurar o poder 26proletário após a derrubada da classe dominante .

Considerações Finais

Este trabalho pretendeu analisar o lugar ocupado pelo Estado no pensamento político de Ruy Mauro Marini. Se a pesquisa se concentrasse no pensamento econômico deste autor, forçosamente outras seriam as obras consultadas e se desenvolveria por outros caminhos. As três dimensões analisadas nestas breves notas são insuficientes para afirmações terminativas. Permitem, no entanto, duas observações.

O Estado esteve subjacente ao longo de sua obra e mereceu tratamento constante nos seus escritos. Em não poucas vezes, tratamento dado com originalidade e que contribuiu, por exemplo, para que suas elaborações não servissem para fins políticos reformistas no sentido de que estas pudessem substituir a necessidade da revolução socialista (embora Marini a conceba nas formas pacífica e violenta).

Afirmar a originalidade de seu pensamento em muitos aspectos, não significa romper com as influências que sofreu. E aqui reside o aspecto mais problemático da concepção de Marini sobre o Estado. Ela não foi capaz de ultrapassar o referente bolchevista da questão enquanto alternativa radical de teoria do Estado para o movimento socialista, situando-se neste particular em relação à teoria que o bolchevismo produziu, como um pensamento que procurou renová-la ao invés de substituí-la. E, diante dos impasses teóricos e práticos insolúveis do Estado bolchevique (insolúveis do ponto de vista do proletariado), não conceber a substituição deste modelo de Estado político é sua maior fragilidade.

26Para conhecimento na integralidade da concepção dos Conselhos Operários, consultar: PANNEKOEK, Anton. Los Consejos Obreros. Madrid: ZYX, 1977. Ao que se saiba, esta obra permanece inédita no Brasil.


*Professora da Unidade Universitária de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas da Universidade Estadual de Goiás – UnCSEH/UEG. [email protected], Antônio de. A Escola Superior de Guerra: história de sua doutrina. São Paulo: GRD; Brasília: INL, 1983.

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2PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA/SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÕES. Manual de Informações. 1º. Volume - Fundamentos Doutrinários. Brasília: SNI, 1986. (Reservado)3O conjunto compõe-se de dezenove documentos, dez produzidos em 1971 e nove em 1972. Vamos tratar aqui apenas dos primeiros, em razão do limite de extensão permitido aos artigos publicados nesta Revista.

O Quadro da Subversão no Brasil nos “Anos de Chumbo”:

A visão dos Órgãos de Segurança e Informações

Dulce Portilho Maciel*

ntrodução

No Brasil, o sentido dado ao termo “subversão” relaciona-se, estreitamente, com a formulação do conceito de Segurança Nacional, assim como de outros, deste último derivados. Tais conceitos resultaram de um longo processo de elaboração, desenvolvido principalmente na Escola Superior de

1Guerra (ESG) . Criada em 1949, esta instituição constituiu-se, desde cedo, no principal celeiro de idéias do meio militar brasileiro. Ali se gestaram conceitos e princípios concernentes ao papel do Brasil no contexto internacional, tomando-se, como cenário, a conjuntura mundial da “guerra fria”. Na ESG, esta conjuntura era vista como preâmbulo do fenômeno da “guerra total”, Oriente versus Ocidente, o primeiro representado pelo comunismo internacional, o segundo formado pelas nações integrantes da civilização ocidental-cristã.

Conforme os formuladores dos princípios doutrinários da ESG, a principal estratégia de expansão do comunismo era a fomentação da chamada “guerra revolucionária”, mediante a qual, em razão do uso de insidiosos expedientes – destruição dos valores morais, das instituições, etc. -, alcançava-se o controle progressivo da Nação. Deste modo, o tradicional conceito de defesa nacional, em relação a possíveis agressões externas, transmutou-se no conceito (depois tornado doutrina) de Segurança Nacional, este mais abrangente que o outro, visto que incluía o princípio da “segurança interna”. Assim, o antigo conceito de “inimigo” desdobrou-se, compreendendo não apenas o elemento estrangeiro, mas também o nacional: o agente comunista infiltrado, o subversivo, isto é, o “inimigo interno”.

O Sistema Nacional de Informações (SISNI), instituído no Brasil já nos albores do regime militar, em 1964, teve como finalidade a vigilância e o controle sobre este novo inimigo, oferecendo às autoridades e aos órgãos de repressão do país, “conhecimentos” obtidos mediante a atuação de seus agentes especializados, lotados nas diversas unidades que o compunham. O SISNI compreendia duas modalidades de subsistemas: a do Serviço Nacional de Informações (SNI), com suas agências regionais, vinculado diretamente ao Presidente

I da República e a dos subsistemas setoriais, estes, inseridos nas estruturas dos ministérios civis e militares,

2subordinados aos respectivos ministros de Estado .

O presente trabalho consiste no exame de um 3conjunto de dez documentos, distribuídos pela Divisão

de Segurança e Informações (DSI) do Ministério do Interior (MINTER), produzidos durante o ano de 1971, provavelmente, pelo SNI. Os originais destes documentos fazem parte do acervo da extinta (em 1990) Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro-Oeste (SUDECO), atualmente sob a custódia do Arquivo Nacional. A SUDECO era instituição de natureza autárquica e vinculava-se ao MINTER. Os mencionados documentos, todos carimbados com a palavra CONFIDENCIAL, intitulavam-se, inicialmente, “Síntese das Atividades Subversivas no Brasil”; depois, “O Quadro da Subversão no Brasil – Síntese”. A estrutura de redação destes documentos e a natureza de seus conteúdos variam, de um para o outro. Neste trabalho, vamos examinar apenas as partes desses documentos referentes à atuação de organizações de esquerda e ao combate que sofreram pelos órgãos de segurança.

O exame de tais assuntos, do modo como foram tratados nesses documentos, permite, de um lado, que se conheçam certas características marcantes da mentalidade militar brasileira e, mais particularmente, do segmento desta corporação ocupado com atividades de Segurança e Informações; por outro, que se tragam a lume numerosos acontecimentos relacionados com a repressão às diferentes organizações de oposição ao regime ditatorial-militar, ocorridos na sua fase mais cruenta, os chamados “anos de chumbo” – governo do general Emílio Garrastazu Médici, de 1969 a 1974.

Organizações subversivas versus órgãos de segurança e informações

O primeiro documento do conjunto a ser examinado neste trabalho data-se de 31 de maio de 1971 e inicia-se pelo item “Antecedentes”. Explica-se aí, de começo, que o Partido Comunista Brasileiro (PCB), desde 1922 (ano em que foi fundado), seguia orientação


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4SAUTCHUK, Jaime. Luta armada: no Brasil dos anos 60 e 70. São Paulo: Editora Anita, 1995, p. 55.5Segundo Jacob Gorender, o “foquismo” era a teoria oficial da Revolução Cubana, ou seja: a revolução “começa com um pequeno foco de guerrilheiros, numa região camponesa, de preferência montanhosa.” GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987, p. 79.6SAUTCHUK, Jaime. Op. cit., p. 55-56.7Id., ibid., p. 57.

soviética. Em 1962, este partido cindira-se, originando o Partido Comunista do Brasil (PC do B), este, de orientação chinesa. Conforme esse documento, a Revolução de 1964 (que instaurou o regime ditatorial-militar no Brasil, vigente daquele ano até 1985) teria representado um duro golpe para as organizações comunistas no Brasil, desejosas que eram de conquistar o governo e, assim, “comunizar” o país. Recuperadas da derrota a elas impingida pela Revolução, as organizações comunistas (não se mencionam outras, além das duas acima) teriam reiniciado suas atividades, sendo que as que seguiam a orientação russa atuavam no sentido de arregimentar as massas, ao passo que as de orientação chinesa ocupavam-se com ações violentas, “típicas de guerrilha urbana”, mediante as quais buscavam formar uma base de apoio para o desencadeamento da guerrilha rural.

No início de 1969, conforme aquele documento, atuavam no Brasil diversas organizações “subversivas”, chefiadas por “elementos nacionais”, sob orientação estrangeira. Algumas dessas organizações possuíam, em seus quadros, indivíduos formados em cursos de subversão em países comunistas. Quando da elaboração do documento, as seguintes organizações, em atuação no país, achavam-se identificadas pelos órgãos brasileiros de segurança e informações: PCB – Partido Comunista Brasileiro, PC do B – Partido Comunista do Brasil, VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, COLINA – Comando de Libertação Nacional, MOLINA – Movimento de Libertação Nacional, CORRENTE (sem menção ao nome por extenso, mas tratando-se, p r o v a v e l m e n t e , d a o rg a n i z a ç ã o C o r r e n t e Revolucionária), AP – Ação Popular, MR-8 - Movimento Revolucionário 8 de Outubro, MR-26 – Movimento Revolucionário 26 de Março, MAR – Movimento Armado Revolucionário, Ala Vermelha, Ala Marighella, POP – Partido Operário Comunista, PRP – Partido Revolucionário do Proletariado, PORT – Partido Operário Revolucionário Trotskista, ALN – Aliança de Libertação Nacional, VAR-Palmares – Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, REDE – Resistência Nacional Democrática Popular, MRT – Movimento Revolucionário Tiradentes. Pelo que se pode depreender da leitura do documento, estas numerosas organizações, com exceção do PCB e do PC do B, haviam surgido após a Revolução de 1964, isto é, entre aquele ano e o início de 1969.

Ao longo de 1969, segundo aquele documento, tais organizações teriam sofrido sucessivos reveses, o que culminara com a morte, em novembro daquele ano, do principal líder da ALN, Carlos Marighella. Tratava-se de um ex-militante do PCB, pertencente aos quadros deste partido desde os anos 1930 e, em 1967, dele expulso. A expulsão decorrera da opção de Marighella, contrária à orientação “pacifista” do PCB, “pela luta armada e pelo

4terrorismo revolucionário” . Depois disto, sob sua liderança, foi constituída a Ação de Libertação Nacional – ALN –, organização em que:

“... os conceitos gerais sobre guerra revolucionária... vinham de Cuba... Mas as adaptações, em especial a criação do que passou a

5ser chamado de 'foquismo urbano' , tinha outra inspiração. Uma dessas inspirações era a luta pela libertação da Argélia, cuja atividade de guerrilha urbana foi tão bem retratada no filme A batalha de Argel... Outra vinha do vizinho Uruguai, do Movimento de Libertação Nacional (MLN),

6depois denominado Tupamaros...”

Até ser abatido pelas forças de repressão, em novembro de 1969, Marighella fora o mais influente líder dos movimentos rebeldes clandestinos, contrários ao regime ditatorial-militar então vigente, e seu principal mentor intelectual, quanto aos métodos e estratégias de ação, em atividades de guerrilha urbana:

“Suas opiniões e ensinamentos sobre como deveria ser o combatente, desde o seu recrutamento até o procedimento nas ações de rua, foram sistematizados no Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano. Elaborado pelo próprio Marighella, o manual era impresso onde e como desse, e amplamente difundido. Frieza e eficiência nas operações eram sua marca

7pessoal...”

Segundo o documento acima em referência, a morte de Marighela teria representado um rude golpe nos planos antes existentes, de constituição de uma “Frente Única das Esquerdas”, com vistas a aglutinar todas as organizações guerrilheiras, na época, em atuação no Brasil. Ainda conforme o documento, era intenção do novo líder da ALN, Joaquim Câmara Ferreira – o “Toledo”, ou o “Velho” -, continuar buscando alcançar aquele objetivo. Assim, mesmo passando por uma crise de liderança, devido à disputa então em curso pelo antigo posto de Marighella, entre Câmara Ferreira e Carlos Lamarca (este, um ex-oficial do Exército, naquele momento, líder da VPR), os “grupos subversivos” haviam iniciado o ano de 1970 executando ações de vulto, tais como seqüestros - de pessoas e aeronaves - e “expropriações” - assaltos a agências bancárias, estabelecimentos comerciais, etc. -, para levantamento de recursos financeiros.

Naquela época, segundo o documento, a VPR era a organização mais atuante e, sob a liderança de Carlos Lamarca, passara a coordenar as ações de diferentes grupos clandestinos. No segundo semestre de 1970, entretanto, a cúpula das forças subversivas havia sofrido graves perdas, com a morte de Joaquim Câmara

O Quadro da Subversão no Brasil nos “Anos de Chumbo”: A visão dos Órgãos de Segurança e Informações

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8SAUTCHUK, Jaime. Op. cit., p. 66-67.

Ferreira, líder da ALN, ocorrida em outubro; de Yoshitami Fujimori, tido como o “braço direito” de Lamarca na VPR e do também ex-militar Eduardo Leite – o “Bacuri” -, líder da REDE, as duas últimas, ocorridas em dezembro daquele ano.

Uma segunda parte do documento em referência recebe o título “Situação atual dos grupos terroristas – ano 1971”. Segundo se informa ali, a maioria dos grupos subversivos ocupados em ações de guerrilha achava-se, na época, sob a liderança de Carlos Lamarca. Havendo este compreendido que a “sobrevivência das hostes subversivas” dependia da “soma de esforços e... realização de ações conjuntas” determinara que as ações fossem executadas pelo que chamou de “frente”. As ações executadas pela “Frente” haviam incluído: o seqüestro do Embaixador da Suíça no Brasil, em dezembro de 1969, por integrantes das organizações VPR, ALN, MR-8, MRT E PCBR; o “justiçamento” de um industrial de São Paulo, em abril de 1971, por membros da ALN, MRT e VPR; diversas ações de “desapropriação”, real izadas por diferentes organizações.

Uma terceira parte do documento em pauta int i tula-se “Situação Atual dos Grupos de Arregimentação de Massas”. Entre as organizações voltadas para a arregimentação de massa, segundo o documento, destacavam-se o Partido Comunista Brasileiro – PCB – e a Ação Popular – AP. O PCB, segundo fazia crer, atuava por meios pacíficos, enquanto que a AP, que optara pela “fidelidade ao pensamento de Mao Tsé-Tung”, desenvolvia trabalho de arregimentação de massas, a fim de que fossem usadas no momento oportuno. No PCB, assim como na AP, admitia-se a realização de ações guerrilheiras, tanto urbanas como rurais, desde que tivessem caráter de massa. A AP, por integrar em seus quadros “elementos” treinados na China, identificados com o pensamento de Mao Tse-Tung, ora seguia os métodos adotados pelo PCB, ora enveredava-se pelos caminhos do terrorismo.

O segundo documento da série aqui examinada data-se de agosto de 1971. Inicia-se pelo item “Atuação dos subversivos”, avaliando-se aí que o grande número de assaltos que na época ocorriam na cidade do Rio de Janeiro indicava estarem os subversivos novamente se organizando. Estes, ultimamente, vinham se interessando pela obtenção de jóias, podendo tal interesse decorrer do elevado valor que elas adquiriam nos mercados norte-americano e europeu e sua fácil conversibilidade em moeda estrangeira. Na época, conforme o documento em foco, o PCB vinha aprimorando sua capacidade “dirigente”, o que se refletia numa atuação mais coordenada e eficiente de seus militantes. A Ação Popular Marxista Leninista do Brasil, por seu lado, em razão do “valor qualitativo de seus militantes”, era, na ocasião, a organização de esquerda com maior potencial de sucesso.

Entre os documentos da série em exame neste trabalho, elaborados no decorrer de 1971, um distingue-se dos demais, tanto devido a sua extensão – dezoito

páginas datilografadas, enquanto os outros possuem entre três e nove páginas -, quanto em razão do tom, de certo modo, “dramático” da narrativa. Embora este documento não seja datado, de sua leitura depreende-se que tenha sido elaborado entre o final de setembro e o começo de outubro de 1971. O documento inicia-se pela transcrição, entremeada de comentários, de um texto elaborado em junho de 1971, por Herbert Eustáquio de Carvalho “importante elemento da esquerda radical no Brasil”, acerca das condições em que se achava a organização clandestina VPR. O texto intitula-se “E haverá perspectivas?”, segundo o narrador, que o introduz assim: “Pintando o quadro com palavras desanimadoras, o documento inicia afirmando:

'A realidade está sangrando. Somos apenas indivíduos unidos para a sobrevivência; sabemos disto e continuamos esperando; o fim individual poderá chegar durante a espera; mas não desistimos. O medo da responsabilidade nos faz esperar o fim. É mais fácil. Se fomos a maior organização do país, não em termos numéricos, mas de importância qualitativa é porque representávamos a esquerda, e, agora, representamos o outro extremo: a derrota'.”

O narrador transcreve diversos trechos deste texto, entre eles o que vem abaixo, por ele apresentado assim:

“Após analisar em detalhe a origem da derrota, conclui: 'Tentar remontar a VPR e partir de suas forças exauridas é trabalho inútil... Não temos nenhum poder mágico de pronunciar fiat lux e a luz se fazer. Temos que reconhecer, agora, que a VPR acabou e o que sobrou de outras organizações são espectros dos quais já traçamos o caminho, isto é, serão exterminadas mais dia, menos dia'.”

Quando da elaboração deste texto, Carlos Lamarca, o principal líder da VPR, deixara a organização, integrando-se ao MR-8, que lhe havia oferecido o comando de um foco de guerrilha rural, no interior do

8estado da Bahia . Conforme o documento “confidencial” ora em foco, após a prisão de diversos militantes da VPR e a morte de seu novo líder, José Raimundo da Costa, os quadros da organização ficaram reduzidos a uns poucos indivíduos.

O documento em referência narra as condições pelas quais Carlos Lamarca, sua companheira Iara Iavelberg e diversos outros indivíduos foram eliminados pelos órgãos de segurança. Consta neste documento que Iara Iavelberg suicidara-se, em 6 de agosto de1971, durante uma “ação dos elementos de segurança” no “aparelho subversivo” em que ela se encontrava, em Salvador (Bahia). Consta também que, em 28 desse mesmo mês, os órgãos de segurança haviam cercado um


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9GORENDER, Jacob, op. cit., p. 196.

“aparelho rural” no município de Brotas de Macaúbas (Bahia), “onde foram mortos Luiz Antônio Santa Bárbara e Otoniel Campos Barreto, e ferido Aldemar Campos Barreto”. Consta, ainda, que em 17 de setembro, ”informações de um lavrador de que dois elementos se encontravam em Pintada [interior da Bahia], levaram, finalmente, os elementos de segurança àquele local, onde... ao resistirem à prisão, foram mortos” Carlos Lamarca e José Campos Barreto, este, ex-operário e ex-militante da VPR.

O documento em referência conta que os órgãos de segurança de São Paulo, usando como armadilha uma viatura do Exército carregada de armas e munições, haviam logrado atrair um grupo de terroristas intencionados de assaltá-la. Nesta operação, os “agentes da lei” eliminaram Antônio Sérgio Matos – “Moreno”-, Manoel Mendes Nunes – português – e Alexandre José Ibsen – “Bigode”. Na ocasião, Carlos Sarmento Coelho – “Clemente”- e Ana Maria Nacionovich Correia – “Bety” - conseguiram fugir, esta, apesar de ferida a bala. O documento registra, ademais, que após a morte de Lamarca, as organizações clandestinas “pretextando vingar a morte do líder subversivo”, vinham praticando diversas ações terroristas. O documento, ademais, cogita a possibilidade de que:

“... os subversivos, no exterior, aproveitem a morte de Carlos Lamarca para intensificar a campanha contra o Brasil. Darão sua versão de que ele morreu 'sob as mais atrozes torturas', aproveitando notícias inverídicas, divulgadas pela imprensa brasileira, de que o cadáver apresentava um grande hematoma no olho esquerdo e ferimentos a faca.”

Durante o mês de setembro de 1971, conforme o documento em foco, haviam sido realizados 79 assaltos, sendo 36 em São Paulo, 35 no estado do Rio de Janeiro e os demais nos estados do Rio Grande do Sul (3), Minas Gerais (1), Goiás (1) e no Distrito Federal (3). Destes, apenas 60 tinham resultado em roubo de dinheiro, totalizando 471 mil cruzeiros. No período, todavia, os assaltos haviam rendido cerca de 1.800 mil cruzeiros em jóias.

Dois outros documentos integrantes do conjunto aqui em exame não estão datados. Eles foram produzidos, entretanto, no segundo semestre de 1971. O primeiro deles registra, de começo, o aparecimento de uma nova organização subversiva, na cidade de Juiz de Fora (Minas Gerais), denominada Inspiração Comunista Cubana – ICC. Comenta-se aí, por outro lado, que os grupos subversivos, nos últimos tempos, pareciam “estar retraídos”. A redução do número de ações subversivas era resultado, conforme esse documento, “da intensa ação dos órgãos de Informações e Segurança, cercada de absoluto sucesso no período anterior.”

O outro documento sem data foi produzido, provavelmente, entre o final de outubro e princípios de novembro de 1971. É o primeiro, da série aqui em exame,

a tratar de revelações obtidas mediante interrogatórios (sob torturas brutais) a que eram submetidos os integrantes de organizações clandestinas, quando capturados por órgãos de segurança e informações. Conforme esse documento, um prisioneiro “subversivo” declarara “ter certeza absoluta” de que, em breve, iria ocorrer um seqüestro e que seu nome seria incluído na lista de presos políticos a serem libertados, em troca da vida do seqüestrado. Observe-se, aqui, que esta ação não se efetivaria. O último seqüestro, realizado por organizações de esquerda, foi o do embaixador da Alemanha Ocidental, antes mencionado, em dezembro

9de 1970 .

Conforme o documento em pauta, desde “a morte de Carlos Lamarca e o frustrado assalto a um caminhão do Exército, quando foram mortos três terroristas”, os grupos armados haviam deixado de praticar ações de reduzida importância, como os assaltos a caminhões de bebidas e a pequenos estabelecimentos comerciais. Em vez disto, haviam concentrado atuação sobre “es tabe lec imentos bancár ios , ca r ros transportadores de valores e grandes estabelecimentos comerciais e industriais.” Nos últimos tempos, os subversivos haviam também praticado “ataques a viaturas policiais, queima de veículos e lançamento de bomba em uma residência e num estabelecimento industrial, além de deixarem abandonados dois veículos contendo, em seu interior, bombas armadas com dispositivos de detonação.”

Por outro lado, os subversivos que antes agiam, geralmente, em grupos de quatro “elementos”, entre eles, um de sexo feminino, agora vinham realizando atividades em que empregavam agrupamentos de 8, 16 e 20 indivíduos. Na época da elaboração do documento em referência, os assaltos a estabelecimentos bancários, comerciais, etc. e outras atividades guerrilheiras eram, freqüentemente, acompanhadas de ações de “panfletagem e pichamento”. O documento em foco traz dados estatísticos das “ações subversivas”:

“Durante o mês de outubro, foram realizados 55 assaltos, sendo 13 em São Paulo, 28 na Guanabara [atual município do Rio de Janeiro] e os demais nos Estados do Rio de Janeiro (7), Pernambuco (1), Bahia (2), Minas Gerais (1), Goiás (2) e Distrito Federal (1). Desses, 42 tiveram como resultado o roubo de dinheiro, que totalizou 954 mil cruzeiros. Destaca-se que, além desse total, foram roubados, no mês, cerca de 400 mil cruzeiros em jóias e relógios.”

O documento contém uma sintética análise de dados sobre a subversão em 1971, em comparação com dados relativos a 1970:

“... para iguais períodos – jan a out – o quantitativo roubado em 1971 é superior ao do ano de 1970 (8.983 mil cruzeiros, em 1971, contra 6.939 mil cruzeiros, em 1970); no mesmo período – jan a out – o número de assaltos


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realizados em 1971 também é superior (563 assaltos em 1971, contra 220, em 1970); e, apesar do decréscimo, em outubro, da violência desencadeada, o total de mortos e feridos, neste ano, é bastante superior ao total do ano passado.”

Um novo documento da série aqui examinada data-se de novembro de 1971. Conforme ele, as atividades subversivas realizadas em São Paulo, na época, apresentavam características diferentes das que se levavam a efeito na região do Rio de Janeiro. Em São Paulo, as ações terroristas haviam ocorrido com uma “freqüência incomum”. Entre os dias 1º. e 15 daquele mês, treze ações – ataques a veículos da polícia, atentados a bomba, incêndio de automóveis, etc. - tinham sido registradas, entre elas, seis praticadas contra propriedades de cidadãos norte-americanos. Conforme o texto em foco, o grau de violência dessas ações e o emprego de explosivos, da propaganda e da intimidação pareciam indicar a presença, em São Paulo, de militantes treinados em Cuba, o que confirmava declaração tomada de um subversivo então preso.

No Rio de Janeiro, diferentemente, prosseguiram as ações de assalto a agências bancárias, supermercados e indústrias, bem como de roubo de automóveis. No mencionado período, a essas ações somou-se o assalto a uma pedreira, de onde foram levadas grandes quantidades de dinamite, espoletas e cordéis detonantes. Na visão do autor do documento, naquele período, “os subversivos utilizaram a área paulista como campo para... ações psicológicas, visando a criar a intimidação e o pânico..., enquanto que reservaram a área do Rio de Janeiro para o apoio logístico, através da obtenção de numerários, veículos e explosivos”.

Um novo documento da série aqui examinada não foi datado. Pelo seu conteúdo, entretanto, depreende-se que tenha sido elaborado no final de novembro de 1971. Este documento contém o relato de um episódio de “justiçamento” (execução sumária), por membros da ALN, de um militante daquela organização. Conforme o relato, testemunhas da execução tinham podido identificar, com segurança, seus três autores, cujos nomes aí se menciona. Tratava-se de uma moça, “subversiva que se encontrava em Cuba fazendo curso de guerrilha”, e dois rapazes, “que haviam sido banidos para a Argélia, em troca do Embaixador da Alemanha.”

Conforme o documento em referência, o período que antecedeu sua elaboração teria se caracterizado pela ocorrência de roubos de vultosas quantias. Conforme se informa nele, durante o mês de novembro de 1971, organizações subversivas haviam praticado 37 assaltos: 28 no estado do Rio de Janeiro, 6 em São Paulo, 1 em Pernambuco, 1 em Goiás e 1 no Distrito Federal. A análise comparativa de dados referentes a 1970 e 1971, procedida no texto em foco, revela que neste último ano, os números foram superiores aos do ano anterior, quanto às quantias roubadas, ao número de assaltos e ao total de mortos e feridos.

O documento que vamos examinar, a partir de

agora, refere-se ao período de 1º. a 15 de dezembro de 1971 e contém relato de um episódio de “Ação Terrorista de propaganda armada”, ocorrido na noite de 30 de novembro. Tratou-se de assalto a um posto do Banco de Minas Gerais, existente nas Faculdades Metropolitanas Reunidas, em São Paulo, instituição freqüentada por policiais e que, em 1970, cedera suas instalações para a realização de um Simpósio sobre Segurança Nacional. Após o assalto, segundo o referido relato, os terroristas teriam distribuído um panfleto, em que se lia:

“Esta ação revolucionária de hoje, a expropriação de fundos, foi executada pelo Comando José Roberto Arantes..., aluno de Física da USP e do ITA, assassinado em 2/11/71 pela ditadura que recebe... colaboração ideológica e financeira desta Escola... Avisamos a esses cães de guarda dos imperialistas, que é chegada a hora da justiça revolucionária...

Fora a direção nazista desta Universidade.

Fora os da ditadura.

Viva José Roberto Arantes.

Somos muitos Lamarcas.

Somos muitos Marighellas.”

Segundo o documento ora em pauta, o período ao qual ele se refere havia sido relativamente calmo, quanto ao número de ações subversivas: 48 pequenos assaltos no estado do Rio de Janeiro; 3 grandes e 2 pequenos em São Paulo. Neste período, fora preso, em São Paulo, um jovem pertencente a ALN, responsável, nesta organização, pela fabricação de bombas. Em seu “aparelho” tinham sido apreendidos: 3 bombas prontas, 14 em confecção, permanganato de potássio, espoletas, pavios, etc.

O documento “confidencial” que vamos examinar, a partir de agora, diz respeito ao período de 16 a 31 de dezembro de 1971. O primeiro registro nele contido refere-se a informações obtidas de um terrorista, preso em 4 de novembro último, sobre atividades da ALN. Entre as informações obtidas do prisioneiro, mereceram menção, no documento, as seguintes: a) 28 brasileiros haviam feito “Curso de Guerrilha” em Cuba, entre fins de 1969 e início de 1970; b) destes, 8 haviam regressado ao Brasil, no decorrer de 1971; c) em Cuba, os terroristas treinados tinham recebido endereços de militantes da ALN, com os quais deveriam estabelecer contacto quando chegassem ao Brasil. Conforme esse documento, as diligências efetuadas a partir das revelações feitas pelo prisioneiro, “permitiram que três desses terroristas, ao procurarem seus contatos, fossem identificados e mortos...” A documentação apreendida com os militantes mortos possibilitara a ampliação das investigações, resultando disto a apreensão de passaportes falsos e outros documentos, os quais revelaram a existência de uma nova dissidência na ALN, denominada “Grupo da Ilha”, formada por militantes treinados em Cuba.


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A segunda parte do documento ora em foco recebe o título “Subversivo renega o terror e repele calúnias contra o País”. Informa-se aí que, em 21 de dezembro de 1971, os órgãos de comunicação de massa “de todo o País” haviam divulgado um documento de 13 laudas, escrito por terrorista aí nomeado, em que seu autor renegava a subversão e demonstrava “revolta ante as calúnias de documento denunciando torturas, assinado por sete terroristas” que se achavam, juntamente com ele, presos na cidade Juiz de Fora. O documento “contendo denúncias sobre falsas torturas”, fora encaminhado à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos das Nações Unidas, à Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Brasil e à Auditoria da 4ª. Circunscrição de Justiça Militar de Juiz de Fora. Este procedimento da parte de terroristas presos obedecia a orientação emanada da cúpula subversiva, “visando a criar um clima de animosidade contra as autoridades”. O texto redigido pelo militante preso, conforme o documento ora em pauta, começa “contando a sua iniciação político-ideológica. Após descrever a técnica utilizada pelos subversivos para 'conduzir o jovem militante a um comprometimento cada vez maior', revela as mazelas existentes no submundo da subversão.” Conforme comentário contido no documento em foco: “A ampla divulgação dada ao documento elaborado pelo terrorista..., pelos diversos órgãos de comunicação de massa, forneceu uma boa gama de subsídios para meditação daqueles que não acreditam ou duvidam da existência de um quadro subversivo em desenvolvimento no Brasil, orientado e conduzido segundo técnicas cientificamente elaboradas.” (Grifo nosso)

Conforme o documento em referência, durante o mês de dezembro de 1971, realizaram-se 130 assaltos, sendo 102 no estado do Rio de Janeiro e 28 em São Paulo. A análise dos dados estatísticos da subversão permitiu verificar-se que: a) “Para iguais períodos – Jan a Dez – o quantitativo roubado em 1971 é superior ao de 1970...” b) “No mesmo período – Jan a Dez – o número de assaltos realizados em 1971 também é superior – (725 assaltos em 1971, contra 248 em 1970)”; c) “o total de mortos e feridos, neste ano, é bastante superior ao total do ano passado”; d) “No mês de dezembro, foram registrados os maiores índices de assaltos e de quantias roubadas de todo o ano”.

Vamos examinar, a partir de agora, um documento sem qualquer menção ao período de tempo a que se refere. Seu conteúdo parece indicar, entretanto, que tenha sido elaborado no final de 1971. Conforme ele, uma operação realizada por órgão de segurança na região de Imperatriz (Maranhão), resultara na prisão de vários indivíduos subversivos, confirmando-se a atuação, ali, de duas “organizações terroristas”, a VAR-Palmares e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores – PRT -, esta última, originária da Ação Popular – AP. Essas organizações, embora empregassem métodos diferentes para a implantação de núcleos subversivos naquela área, tinham com relação a eles os mesmos objetivos: a) “assegurar refúgio para elementos identificados e

perseguidos nas grandes cidades; b) “doutrinar e aliciar, para a subversão, as populações locais; c) “quando oportuno, desencadear a guerrilha rural...”

Segundo o documento em foco, nos últimos tempos, embora tenha havido um sensível decréscimo no número de assaltos, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, as ações subversivas vinham-se caracterizando pelo elevado grau de violência. No Rio de Janeiro, um grupo remanescente da ALN havia assaltado a Casa de Saúde Dr. Eiras, deixando ali três mortos e um ferido. Este mesmo grupo praticara ataques a bomba, contra a Cia. de Cigarros Souza Cruz e a firma Sidney Ross Co. Ltda. Em São Paulo, um grupo armado tinha invadido um colégio, onde queimou várias bandeiras do Brasil e cartazes de convocação para o Exército. Nesta mesma cidade, um grupo praticara ataque a bomba contra o consulado da Bolívia, deixando 10 pessoas feridas.

Notas Finais

Em 4 de dezembro de 1989, o diretor da Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Ministério do Interior encaminhou ao chefe da Assessoria de Segurança e Informações (ASI) da SUDECO, o Ofício Circular No. 10/89, pelo qual solicitava que este procedesse, na presença de duas testemunhas, a destruição dos documentos “Sigilosos” e “Secretos” provenientes do SNI, sob sua custódia, lavrando termo conforme o modelo para isto existente. Solicitava, ademais, que o chefe dessa ASI destruísse os documentos, também sob sua guarda, com graus de sigilo “Confidencial” e “Reservado”, produzidos pelo SNI ou a este “referenciados”, elaborando também um termo de destruição, fazendo deste constar, para cada ano civil, apenas a quantidade de documentos destruídos. Ambos estes termos deveriam ser, em seguida, encaminhados à DSI/MINTER. Tais procedimentos não foram executados, ou o foram apenas parcialmente, visto que a documentação sigilosa constante do acervo da SUDECO no Arquivo Nacional alcança volume considerável, nela incluídos os documentos “confidenciais” examinados no corpo deste trabalho, assim como o ofício acima, este, carimbado com a palavra “SECRETO”.

Os dados numéricos contidos nos documentos examinados neste trabalho, acerca de ações de guerrilha urbana levadas a cabo no Brasil, por organizações de esquerda, bem provavelmente , carecem de fidedignidade. O jornalista Elio Gaspari, autor de volumosa obra sobre os governos militares, fundada em vasta pesquisa em fontes primárias, levantou dados sobre ações praticadas por cinco organizações guerrilheiras em São Paulo, no biênio 1970/1971, chegando ao seguinte resultado: “... os assaltos a bancos caíram de doze em 1970 para sete em 1971. Já os assaltos a supermercados, dez em 1970, sobem para 16 no ano seguinte.” Nestes dois anos, conforme Gaspari, a VAR-Palmares, organização não incluída entre as cinco referidas acima, havia praticado doze assaltos, em São Paulo, oito a


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10GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 386.11CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 1964 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 1994, p. 131.

supermercados e os demais a estabelecimentos fabris ou comerciais. Conforme este autor, uma relação “autocongratulatória” divulgada em Roma, no início de 1972, informava que, no semestre anterior, as organizações armadas haviam praticado trinta e três

10ações, em todo o Brasil, seis delas contra bancos .

A produção, pelos órgãos de segurança e informações, de dados estatísticos muito elevados sobre ações “subversivas”, dados estes informados às principais autoridades governamentais brasileiras, provavelmente, tinha em vista justificar, perante estas, a existência e funcionamento do enorme aparato de que se constituía o Sistema Nacional de Segurança e Informações. Tais dados podiam justificar, por outro lado, a brutalidade dos métodos utilizados por esses órgãos, no combate às organizações de esquerda e, bem assim, a pertinácia com que perseguiram e eliminaram os militantes destas organizações.

Um balanço das atividades repressivas no Brasil durante os governos militares informa-nos que, no período, cerca de cinqüenta mil pessoas foram presas e,

11destas, pelo menos vinte mil sofreram torturas . Com base em levantamentos realizados por diferentes instituições da sociedade civil brasileira, estima-se hoje que, no período, 320 militantes de esquerda foram mortos pelas forças de repressão, além de 144 outros que, embora, provavelmente, tenham também sido mortos, são dados como “desaparecidos”.


*Professor de História da rede pública municipal de Gravataí - RS1Cap. Eduardo Ferro, major José Bassani, Glauco Yannone, Eduardo Ramos.2Del. Pedro Seelig, inspetor Orandir Portassi Lucas (“Didi Pedalada”), insp. Janito Kepler, insp. João da Rosa (“Irno”). 3ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil. (1964-1984) Petrpóilis: Vozes, 1984.p. 186

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Terrorismo de Estado e Operação Condor no Brasil:

30 anos do sequestro político internacional dos uruguaios em Porto Alegre

Ramiro José dos Reis*

ntrodução

Há trinta anos ocorreu em Porto Alegre o seqüestro político internacional dos cidadãos uruguaios, Universindo Rodriguez Díaz, Lilián Celiberti Casariego e seus filhos, Camilo e Francesca, em 12 de novembro de 1978. O seqüestro foi uma ação binacional entre militares

1uruguaios da Companhia de Contra-Informações e policiais gaúchos do Departamento de Ordem Política e

2Social (DOPS ) configurando-se numa clássica operação de cooperação e coordenação entre as comunidades de informações dos dois países, evidenciando a participação brasileira na Operação Condor.

O significado histórico deste fato, de ampla repercussão internacional na época, que ficou conhecido como o “seqüestro dos uruguaios”, foi o julgamento e a condenação de, pelo menos, dois agentes públicos responsáveis pelo seqüestro do lado brasileiro. Isso só foi possível porque a ditadura cívico-militar brasileira passava por uma fase de “distensão” política no governo Geisel (1974-1978), que, afetado pelo agravamento da crise econômica, desde o fim do “milagre”, buscava diminuir a tensão sócio-política: “A meta global da política de 'distensão' era concluir a institucionalização do Estado de Segurança Nacional e criar uma representação política mais flexível, de modo a baixar os níveis de dissensão e tensão que havia tornado muito fortes as 'pressões'. (...) Simultaneamente, garantia-se o controle da sociedade civil pela aplicação seletiva do

3poder coercitivo” . Foi nessa conjuntura do Estado de segurança nacional brasileiro que ocorreu o seqüestro dos uruguaios e o posterior julgamento e condenação de dois policiais do DOPS. Esse fato significou, ao menos, o reconhecimento do Estado sobre a participação brasileira na Operação Condor que atuava à sombra da total impunidade no Cone Sul da Segurança Nacional.

Este artigo visa resgatar o papel ativo do Brasil na Operação Condor que torturou e seqüestrou “requeridos” que estavam exilados ou de passagem por aqui aos seus países de origem, bem como, articulou a perseguição de brasileiros em outros países. O trabalho

I também pretende esmiuçar o seqüestro político dos uruguaios em Porto Alegre, em 1978, bem como verificar suas conseqüências para o Estado de segurança nacional brasileiro que, assim, como as demais nações do Cone Sul, utilizavam o Terrorismo de Estado para garantir a exploração de classe e assegurar a hegemonia do capital monopolista internacional e do empresariado nacional, através da disseminação da cultura do medo que de certa forma prevalece até os dias de hoje. Finalmente, pretende lembrar, trinta anos depois da militância obstinada de Lilián e Universindo que, por astúcia, organização e sorte, sobreviveram à rapinagem inter estatal do Condor que torturou, seqüestrou e desapareceu com centenas de latino-americanos em nome da manutenção de um modo de produção injusto, explorador e dependente.

Terrorismo de Estado e Operação Condor no Brasil

A Operação Condor foi a internacionalização do Terrorismo de Estado (TDE) através da cooperação oficial, porém clandestina, entre os serviços de inteligência, polícias políticas e militares nos países do Cone Sul em meados da década de 1970, com o intuito de perseguir e executar seus “inimigos internos” que estavam refugiados em outros países em nome da Segurança Nacional da região. Para tanto, o método do terrorismo estatal foi utilizado em larga escala de maneira coordenada para desarticular grupos de exilados que se organizavam de diferentes maneiras para fazer oposição aos regimes autoritários de seus países de origem. Para consolidar seus regimes de força, as ditaduras, não vacilaram em vulnerar a soberania dos países e matar milhares de oponentes, empilhando cadáveres para dominar populações através do amedrontamento

4coletivo .

A conexão repressiva foi “oficializada” na Primeira Reunião de Trabalho de Inteligência Nacional realizada em Santiago do Chile, de 25 de novembro a 01 de dezembro de 1975, sob iniciativa do general Manuel Contreras, chefe da Direção de Inteligência Nacional (DINA), polícia secreta chilena e braço direito do ditador Augusto Pinochet. Nesta reunião se propôs uma

,

4MARIANO, Nilson Cezar. Operación Cóndor. Terrorismo de Estado en Cono Sur. Buenos Aires: Ed. Lohlé-Lumen, 1998. p.15

Terrorismo de Estado e Operação Condor no Brasil: 30 anos do sequestro político internacional dos uruguaios em Porto Alegre

5ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. p.23 6PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay. Terror de Estado e segurança Nacional. Uruguai (1969-1984): Do pachecato à Ditadura Civil Militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Tese, Doutorado em História – UFRGS. Porto Alegre, 2005. p.705

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7DECLARACIÓN constitutiva de la JCR. A los Pueblos de América Latina. Che Guevara, órgão da JCR, n.1, novembro, 1974. in LOWI, Michel. O marxismo na América Latina. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p.369. 8O assassinato do ex-chanceler chileno Orlando Letellier em Washington (21/09/1976). Além deste, também houve o atentado contra o dirigente chileno Bernardo Leigthton e sua esposa em Roma (06/10/1975) e o assassinato do militar uruguaio, Ramóm Trabal, em Paris.9Posteriormente se somariam a Bolívia, o Peru e o Equador.

ampliação da atuação do Terror de Estado em nome da Segurança Nacional, que nada mais era que reproduzir o que era feito dentro dos territórios nacionais, em termos de repressão, além das fronteiras de cada Estado, de maneira seletiva e clandestina.

Para entendermos esta articulação subterrânea entre as ditaduras do Cone Sul devemos compreender a Doutrina de Segurança Nacional (DSN). Criada após a II Guerra Mundial (1945) no Pentágono, EUA, e disseminada nas escolas americanas no Panamá, dentre outras, a DSN tinha o intuito de preparar os oficiais latino-americanos para a guerra total e permanente contra o comunismo internacional onde ele estivesse. Essa doutrina foi o sustentáculo ideológico das ditaduras cívico-militares que se proliferaram no Cone Sul para conter o eminente avanço da classe trabalhadora organizada no processo de acirramento da luta de classes nos países da região. Conforme Alves (1984) a DSN era “um instrumento utilizado pelas classes dominantes, associadas ao capital estrangeiro, para justificar e legitimar a perpetuação por meios não-democráticos de um modelo altamente explorador de desenvolvimento

5dependente” .

O golpe de Estado no Brasil, em 1964, apoiado pelos EUA, inaugurou a sucessão de golpes cívico-militares, perpetuados em nome da DSN, para combater, no primeiro momento, os “inimigos internos” de cada país, na guerra psicológica, total e permanente. Entretanto, estes golpes que foram tomando o sul da América Latina, forçavam o exílio de centenas de militantes que, perseguidos em seus países de origem, buscavam refúgio nas nações limítrofes. Para desarticular os grupos de contestação que tentavam se reorganizar no exílio, as ditaduras de Segurança Nacional utilizaram o TDE de maneira sistemática e coordenada, violando os direitos humanos, através da Operação Condor. Segundo Padrós (2005): “O uso do seqüestro, da detenção clandestina e da tortura das vítimas nos procedimentos dos comandos repressivos reproduziu o que já ocorria no interior das ditaduras da região. Entretanto, o assassinato e a desaparição forçada dos exilados políticos adquiriram uma proporção muito maior que a sofrida nos países de origem (com exceção da

6Argentina )”.

A abrangência da DSN não se limitava aos territórios nacionais na aplicação do TDE, já que o que valia, realmente, eram as “fronteiras ideológicas”. A doutrina buscava justificar o combate aos “inimigos internos” por todos os meios, portanto pela guerra suja, na luta contra a chamada “guerra revolucionária”.

Outra justificativa para a criação do Plano Condor foi o surgimento da Junta de Coordenação

Revolucionária (JCR) que era uma organização internacionalista composta pelos grupos armados marxistas: Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros (MLN-T) do Uruguai , Exérci to Revolucionário do Povo (ERP) da Argentina, Exército de Libertação Nacional da Bolívia (ELN) e Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR) do Chile, que foi criada pela iniciativa de Miguel Enríquez, em 1972. “O imperialismo norte-americano desenvolve uma estratégia internacional para deter a revolução socialista na América Latina. Não é casual a imposição de regimes fascistas nos países em que o movimento das massas em ascensão ameaça a estabilidade do poder das oligarquias. À estratégia internacional do imperialismo corresponde a es t ra tég ia con t inen ta l dos

7revolucionários” . Embora a JCR não tivesse conseguido criar condições concretas para a ação ela serviu para justificar a coordenação terrorista inter estatal da Operação Condor que, ao contrário da Junta, operou com eficiência dentro e fora da América Latina.

O Plano Condor estava dividido em três fases de execução: a primeira visava uma troca sistemática de informações sobre cidadãos requeridos pelos serviços secretos de cada Estado, através de intensa espionagem das comunidades exiladas para constituição de um banco de dados comum aos países membros. A segunda fase, restrita à América Latina, visava deter, torturar e transladar ilegalmente os presos políticos para suas nações de origem para depois executá-los e, na maioria das vezes, ocultarem seus cadáveres. A terceira fase seguia a mesma lógica da segunda, porém, abrangia

8territórios além do Cone Sul .

Primeiramente, a operação teve a adesão do 9Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai . O Brasil aderiu

efetivamente no ano seguinte, em 1976, porém se negando a participar da terceira fase. Entretanto, na fase dois, o nosso país desempenhou um importante papel no operativo sendo, por vezes, protagonista e não mero coadjuvante como querem nos passar hoje os militares aposentados. Aliás, a memória militar sobre a Operação Condor é incômoda, pois, bem mais que qualquer peso na consciência, ela suscita um temor pela punição dos responsáveis que estavam acostumados a agirem, na mais pura impunidade e protegidos pela lei de anistia. No Brasil os militares agora temem ser alvos de processos judiciais internacionais, como na recente ordem internacional de captura feita pela justiça italiana, que exige a extradição de 146 militares latino-americanos responsáveis por seqüestros de pessoas de cidadania italiana nas décadas de 1970 e 1980. Desses, treze são brasileiros, e, pelo menos três deles estiveram envolvidos


10João Osvaldo Leiva Jobs (ex-secretário de segurança do RS), Ex-delegado Marco Aurélio Silva Reis (ex-diretor do DOPS) e Coronel Àtila Rohrsetzer (ex-diretor da Divisão Central de Informações-DCI) 11Enrique N. Ruggia (1974) e Norberto Armando Habegger – (08/ 1978). Horácio Domingo Campiglia, Mônica Susana Pinus de Binstock, Jorge Oscar Adur e Lorenzo Ismael Viñas: (1980). Ver: MARIANO, Nilson Cezar. Montoneros no Brasil. Terrorismo de estado no seqüestro-desaparecimento de seis guerrilheiros argentinos. Dissertação de Mestrado. PPG- História/PUCRS. Porto Alegre, 2006.12Desaparecido em Buenos Aires em 1976 na Operação Invasão que era um desmembramento da O.Condor.

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13PAZ, Alfredo Boccia (et. all). En los Sótanos de los Generales. Los documentos ocultos del Operativo Condor. Assunção: Expolibro/Servilibro, 2002.p.214

diretamente no seqüestro dos uruguaios, em Porto 10Alegre . A própria Celiberti, que também detém

cidadania italiana é uma das principais testemunhas do processo.

O nosso país participou efetivamente da Operação Condor e o estado do Rio Grande do Sul teve um importante papel geopolítico para a rapinagem da repressão transnacional. O caso mais emblemático foi, talvez, o seqüestro dos uruguaios ocorrido em novembro de 1978, porém, tanto antes, como depois do caso Lilián-

11Universindo, seis guerrilheiros montoneros argentinos foram seqüestrados e desaparecidos em território brasileiro. Além dos brasileiros desaparecidos ou mortos no exterior, dentre os quais podemos destacar a suspeita morte do ex-presidente João Goulart, confirmando assim a participação do Brasil no Mercosul do Terror.

Operação Sapatos Velhos

A chamada Operación Zapatos Viejos, que culminou com o seqüestro dos uruguaios em Porto Alegre, era o nome codificado de uma operação da Companhia de Contra-Informações do Exército uruguaio sob comando do coronel Calixto de Armas que tinha por objetivo prender os membros do Partido pela Vitória do Povo (PVP), especialmente seu Secretário-Geral, Hugo Cores, que tinha o hábito de fazer seus contatos a pé em longas caminhadas com seus sapatos gastos. Cores estava escondido em São Paulo, atuando na propaganda clandestina contra a ditadura uruguaia e no auxílio aos perseguidos políticos em busca de refúgio. Além de desarticular o partido, a Operação visava resgatar parte de U$10 milhões provenientes do seqüestro de um industrial.

O PVP era um partido socialista independente fundado em Buenos Aires, em 1975, por exilados uruguaios oriundos de grupos libertários como a Organização Popular Revolucionária 33 Orientais (OPR-33), braço armado da Federação Anarquista Uruguaia

12(FAU). O dirigente sindical Gerardo Gatti propôs, na fundação do PVP, uma síntese revolucionária entre o anarquismo e marxismo. Tal síntese só pode ser explicada naquele contexto da luta de classes, no auge do TDE no Uruguai, em que, praticamente, a única estratégia era a militância pela denúncia das violações dos direitos humanos a partir do exílio, já que o sindicalismo estava totalmente enquadrado e a luta armada desmantelada. O partido foi duramente reprimido e quase aniquilado após o golpe civil-militar na Argentina, em março de 1976.

A onda de repressão que se instaurou contra seus membros em Buenos Aires foi tão violenta que seus militantes experimentaram o que tinha de mais cruel e sofisticado em termos de TDE cooperado entre Argentina e Uruguai, como os chamados “vôos da morte” e o seqüestro de crianças pequenas ou nascidas na prisão. Mesmo sofrendo todas estas atrocidades o PVP continuou sua militância no exílio com quadros atuando na Europa e no Brasil, dentre esses, Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez.

Lilián era professora do primário no Uruguai e líder sindical do magistério. Ex-integrante da organização de bases Resistência Operária Estudantil (ROE) foi presa em 1972, sendo dois anos depois deportada para a Itália com o marido e seu filho Camilo que em 1978 tinha sete anos. Em Milão, ela teve sua segunda filha, Francesca que na época do seqüestro tinha apenas três anos. Universindo era um estudante de medicina no Uruguai, ligado ao movimento estudantil que, ao exemplo de Celiberti, teve de sair de seu país exilando-se na Suécia até retornar da Europa para o sul do Brasil. A cidade de Porto Alegre era o exílio mais próximo do Uruguai e de lá era distribuído o periódico clandestino Compañero do PVP. Na capital gaúcha, Lilián e Universindo estavam elaborando um dossiê denunciando as violações dos direitos humanos em seu país além de manterem contatos com setores da imprensa independente e líderes sindicais.

A leitura que os uruguaios do PVP fizeram da conjuntura brasileira naquela época não estava equivocada, já que a correlação de forças havia mudado em favor da luta contra a ditadura no final da década de 1970. A relativa liberdade de imprensa favoreceu uma rede de contatos dos uruguaios que depois seria fundamental na denúncia do seqüestro. O fim do “milagre econômico”, acelerado pela crise do petróleo (1973) e a estagnação econômica geraram descontentamentos sociais que forçaram o ditador Ernesto Geisel anunciar a “distensão” política. A situação política no Brasil não era mais a mesma. Desde o escândalo do assassinato de Vladimir Herzog, os generais Geisel e Golbery desejavam livrar-se do estigma de terror dos anos

13anteriores . Mas a guerra suja continuava vigente, porém mais seletiva e clandestina como na Operação Sapatos Velhos.

No dia 12 de novembro de 1978, um comando binacional seqüestrou Lilián na rodoviária de Porto Alegre e depois, Universindo com os filhos dela, quando estava indo para um jogo do Internacional no estádio Beira Rio. Os seqüestrados foram levados ao DOPS onde, os adultos foram torturados, enquanto as crianças ficaram aos cuidados da escrivã policial. “Camilo e Francesca, que esperaram ir ao futebol com Yano (Universindo) enquanto ela, na Delegacia, nua e com arame nos ouvidos e nas mãos, recebe as descargas elétricas e a


14CELIBERTI, Lílian. GARRIDO, Lucy. Meu quarto, Minha cela. Porto Alegre: L&PM, 1989. p.1215Em alusão ao famigerado delegado da OBAN, Sérgio P. Fleury, que, inclusive, era amigo de Seelig.

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16CELIBERTI, Lílian. GARRIDO, Lucy. Meu quarto, Minha cela. Porto Alegre: L&PM, 1989.p.2617Jornal da Tarde. 23/11/1978. Nº3.972. capa. In: Arquivo Pessoal de Omar Ferri A.P.O.F (caixa I). Acervo de luta contra a ditadura. Memorial do Rio Grande do Sul.

água, as descargas e a água, as descargas e a água, pensando no filho de Sara, na filha de Emilia, em Camilo

14e Francesca, Camilo e Francesca.” A maior preocupação de Lilián era com seus filhos que, naquele momento, eram reféns e ela temia que eles tivessem o mesmo destino de Simón Riquelo e Mariana Zafarone, filhos de Sara Mendez e Emilia Zafarone, que eram companheiras dela no PVP, que foram seqüestrados na Argentina através da Operação Condor. Os seqüestros de crianças foram efetuados majoritariamente pelos grupos de tarefas argentinos, mas também pelo Organismo de Coordenação de Operações Anti-subversivas (OCOA) do Uruguai, liderado pelo major José “Nino” Gavazo que além de notório torturador, era um exímio falsificador de dinheiro.

Depois de serem brutalmente torturados, quando Universindo mal pode se reconhecer no espelho desfigurado de tanto apanhar do capitão Glauco Yannone, foram levados para o Uruguai. Na fronteira (Chuy), os detidos-desaparecidos foram novamente torturados com uma simulação de fuzilamento, inclusive as crianças que tiveram que deitar no chão. Depois, sob tortura, Lilián disse que aguardava um contato em seu apartamento, o que interessou ao capitão Eduardo Ferro que era o comandante operacional do lado uruguaio. Do lado brasileiro o comandante era o delegado Pedro Seelig, notório torturador, que tinha no seu currículo o assassinato do seu filho de criação. O “Fleury dos

15Pampas” , como era conhecido, ajudou a torturar Lílian e Universindo no apartamento e no DOPS.

No Uruguai, Universindo, as crianças e os demais presos ficaram no Forte São Miguel a menos de 5 km da fronteira, enquanto Lílian foi levada a POA para preparar o que, no jargão militar, era conhecido como “ratoeira”, ou seja, ficaram de campana no apartamento da rua Botafogo até que chegassem novos contatos. Contudo, os membros do PVP, no Brasil e na Europa, que tinham um organizado sistema de comunicações, desconfiaram da falta do contato de Celiberti, e enviaram-lhe um telegrama para que ligasse imediatamente para Paris. Por um momento Lílian temeu pelo pior, mas sob custódia e com seus filhos reféns teve que ligar. A chamada foi feita da sala do diretor do DOPS, Marco Aurélio da Silva Reis. Para tanto, ela anotou uma mensagem que para seus seqüestradores parecesse normal, mas para seu companheiro fosse estranha e desconexa. A designação de uma palavra cifrada que significava “imprensa” foi o bastante para que o PVP ativasse seus mecanismos de segurança.

No dia 17 de novembro, às 17 horas, em vez de uruguaios, chegaram ao apartamento de Lílian, os jornalistas Luís Cláudio Cunha e João B. Scalco, que haviam sido contatados por um telefonema anônimo que mais tarde se saberia ser do próprio Hugo Cores, o

principal “requerido” da Operação Sapatos Velhos. Segundo Cunha:

“Em 17 de novembro de 1978, eu era chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre e recebi um telefonema de alguém falando em espanhol, me dizendo que um casal e duas crianças tinham desaparecido do seu apartamento na rua Botafogo. Eu perguntei o que queriam dizer com 'desaparecido' e me respondeu 'detenido'. Então, pedi a Scalco, fotógrafo da revista Placar (que trabalhava na mesma sucursal), que me

16acompanhasse e fomos até lá.”

A operação teve que ser abortada, pois no dia 21 a notícia do seqüestro era capa em todos os jornais. O advogado Omar Ferri foi contatado por Jan Rocha do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul (CLAMOR) e assumiu o caso em defesa dos uruguaios travando uma verdadeira batalha judicial contra a polícia federal e contra o DOPS que não reconhecia sua participação no seqüestro, além de negar a própria ocorrência deste crime. No entanto, um casal e duas crianças uruguaias permaneciam detido-desaparecidos.

O momento mais dramático do seqüestro que reflete bem o grau de TDE articulado no Plano Condor foi quando dona Lilia Celiberti, mãe de Lilián, veio até o Brasil e clamou publicamente: “Entreguem-me, pelo

17menos os meus netos” . Esse apelo que reflete a dura realidade das ditaduras terroristas comoveu a sociedade no RS e a comunidade internacional voltou suas atenções para o seqüestro dos uruguaios. Toda esta repercussão fez com que as Forças Conjuntas uruguaias entregassem os filhos de Celiberti ao seu avô no dia 25 de novembro, após permanecerem por treze dias na situação de detidas-desaparecidas. Depois em comunicado oficial emitido pelo Escritório de Imprensa das Forças Conjuntas de nº1401, foi noticiado que Lilián, seus filhos e Universindo haviam sido detidos na fronteira ao tentar entrar no Uruguai com armamentos e materiais sediciosos. A este comunicado agregava-se a versão da polícia brasileira que dizia que os uruguaios haviam sido presos ao tentar ingressar de ônibus no Uruguai portando documentação falsa pela localidade de Aceguá-Melo, naquela que ficou conhecida como a “farsa de Bagé”. O fato é que tanto as Forças Conjuntas uruguaias, quanto a Polícia Federal e Estadual brasileira, tentavam de todos os meios, proteger os envolvidos e obstruir as investigações.

Neste sentido, o papel da imprensa e da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção RS) foi fundamental na denúncia e, sobretudo, nas investigações. Vários repórteres engajaram-se na investigação em busca do esclarecimento e da verdade. A conjuntura de “distensão” favorecia e o fim da censura nos jornais contribuía para o


18ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. p.21719idem. p. 21220Camilo Casariego Celiberti. In. FERRI, Omar. Seqüestro no Cone Sul: o caso Lílian –Universindo.Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981. p.54.

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21FERRI, Omar. Seqüestro no Cone Sul. O caso Lílian-Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981.p.12722Termo de declarações de Hugo Walter Garcia Rivas prestado em 03/ 05/1980 ao MJDH. (documento fornecido pelo conselheiro do MJDH, Jair Krishke).

“rompimento da cultura do medo, pela eliminação do 18silêncio” . Já “a legitimidade e a independência da OAB

permitiram-lhe questionar as pretensões de legitimação 19do Estado de Segurança Nacional.” A OAB chegou a

enviar uma comitiva a Montevidéu acompanhada de jornalistas, para coletar a versão de Camilo. O menino reconheceu por fotografia o delegado Seelig e o inspetor “Didi Pedalada”, além de descrever o local que esteve preso como “um prédio grande que ficava na frente de um

20riozinho com duas ruas, uma de cada lado” . Camilo de apenas sete anos, havia descrito aos advogados e jornalistas o prédio da Secretaria de Segurança Pública do estado que fica na esquina de duas largas e movimentadas avenidas de Porto Alegre, uma delas é cortada pelo arroio Dilúvio. No terceiro andar ficava o DOPS onde Camilo esteve detido com sua irmã de três anos, e sua mãe que, depois daquele dia ficariam cinco anos sem revê-la.

Na justiça estadual as investigações continuavam, mas autoridades policiais não deram credibilidade ao testemunho de uma criança justamente porque ela estava dizendo a verdade. Até uma CPI foi instaurada em 1979 para apurar o “seqüestro dos uruguaios”. Enquanto os parlamentares do MDB queriam esclarecer os fatos, a bancada da ARENA liderada pelo deputado Cícero Vianna insistia na tese de que não havia ocorrido nenhum seqüestro e que tudo não passava de “invenção do comunista Omar Ferri”, chegando, inclusive, a propor que não se utilizasse o termo “seqüestro” no inquérito, substituindo por “remoção coerciva”. O deputado da situação chegou a enviar a Montevidéu, à revelia da comissão, um “idôneo conhecido” seu, para persuadir dona Lilia a dispensar os serviços do Dr. Ferri. Essa visita teve a inequívoca intenção de intimidar a mãe de Lilián já que o emissário brasileiro foi acompanhado de um oficial das Forças Conjuntas uruguaias.

O fato mais obscuro do caso do seqüestro dos uruguaios foi a morte repentina da escrivã do DOPS, Faustina Elenira Severino que falecera cinco dias após depor na CPI, de um “acidente cardiovascular”, segundo laudo médico. O mais curioso foi que em seu enterro compareceram os mais altos nomes da hierarquia militar como o Comandante do III Exército, general Antônio Bandeira, o chefe de Estado Maior do III Exército, general Luís Henrique Domingues; o diretor do DOPS, delegado Marco Aurélio Silva Reis e o governador do estado, Amaral de Souza, entre outros. Foi uma cerimônia totalmente inédita, em se tratando de uma funcionária do quinto escalão da hierarquia policial. “O aparato oficial tinha apenas um significado: o sistema emprestava sua presença para o enterro de uma funcionária que, sem qualquer culpa, fora envolvida num lamentável crime em que o maior culpado, indubitavelmente era o próprio

21sistema. ” Faustina Elenira Severino havia tomado conta

dos filhos de Celiberti sendo inclusive reconhecida por Camilo. A policial e ex-freira, havia telefonado duas vezes, sem se identificar, para Ferri para alertar sobre o risco que corriam Camilo e Francesca já que Lilián tinha conseguido falar com ela sobre as crianças seqüestradas na Argentina.

O depoimento do ex-soldado Hugo Walter Garcia Rivas prestado ao Movimento de Justiça e

22Direitos Humanos (MJDH ) em 1980, em troca de asilo político, foi fundamental para a posterior condenação dos envolvidos no lado brasileiro e para o esclarecimento do seqüestro. Rivas foi um dos primeiros, de tantos outros, a desertarem das Forças Conjuntas uruguaias por não concordarem com os seus métodos terroristas. Segundo Jair Krischke, presidente do MJDH, o asilo para Rivas foi negado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) já que, conforme seus membros lhe disseram, o ACNUR havia sido criado para proteger as vítimas e não os torturadores. Este impasse só foi resolvido quando Krischke conseguiu, via Cruz Vermelha, o asilo político na Noruega para o ex-soldado, sua mulher e sua filha, onde vivem até hoje. O ex-fotógrafo revelou que antes mesmo de sair do Uruguai já sabia que teriam a ajuda do DOPS gaúcho citando nominalmente o delegado Seelig e o inspetor “Didi Pedalada” que foi reconhecido por todos pelo seu passado futebolístico, já que o agente era ex-jogador de futebol do Inter. Do lado uruguaio, confirmou que a operação havia sido comandada pelo coronel Calixto de Armas que tinha combinado com um oficial brasileiro de mesma hierarquia que lhe dera sinal verde para a operação. De seu lado citou ainda, a participação do major José Bassani que veio ao Brasil na condição de chefe da Companhia de Contra Informação do Exército uruguaio, para acertar o esquema, juntamente com o capitão Eduardo Ramos, chefe da seção de operações, e também, o major Carlos Rossel que veio ao RS no inicio de novembro acertar os últimos detalhes e, finalmente, os capitães Eduardo Ferro e Glauco Yannone, exímios torturadores, como executores do operativo.

Em abril de 1981 o juiz Moacir Danilo Rodrigues leu a sentença do processo que condenava os policiais Orandir P. Lucas, vulgo “Didi Pedalada”, e João Augusto da Rosa, o “Irno”. Os dois inspetores foram condenados a seis meses de detenção e tiveram suas funções policiais cassadas em Porto Alegre por dois anos, por abuso de poder. Os demais réus foram absolvidos e a justiça não aceitou reabrir o processo. Em realidade, os condenados eram inexperientes policiais do DOPS que certamente não efetuariam o seqüestro sem a autorização ou, no mínimo, conivência de seu superior. Entretanto, esse era o limite da punição da justiça que, mesmo com a política de “distensão”, estava submetida ao Estado de Segurança Nacional. O desfecho do seqüestro foi que Lilián e Universindo permaneceram cinco anos presos


23“A farsa desvendada” In.Caderno Especial Zero Hora. 15 Anos do Seqüestro dos Uruguaios. O fim dos Segredos 22/11/1993.24“Uma farsa para resguardar o regime”. idem25ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984 p.22326“O arquivo de Newton Cruz. Confidências de um General.” Jornal Zero Hora, 27/07/2008.p.5

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27Em depoimento no filme Cone Sul (1984) de Enio Staub e João Guilherme dos Reis. 28PADRÓS, Enrique Serra. América Latina: Ditaduras, segurança Nacional e Terror de Estado. In Revista História & Luta de Classes: América Latina Contemporânea. Ano 3. Nº4, julho, 2007. p.49

nos terríveis cárceres de Punta Rieles e Libertad. Celiberti chegou a ficar um ano e meio numa solitária, pagando pelo crime de lutar pela liberdade e justiça social.

Em 1993, 15 anos após o seqüestro, descobre-se que o general Octávio Aguiar de Medeiros que substituiu o general João Batista Figueiredo como chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI) foi pessoalmente, pelo menos duas vezes, ao RS para tratar em reunião secreta no Estado-Maior (EM) do III Exército, qual a estratégia do governo federal em relação

23ao caso do seqüestro dos uruguaios . Lá no quartel general do III Exército ele se reuniu com o chefe do EM, general Paulo de Campos Paiva, com os coronéis Luis Mackesn Rodrigues (superintendente da PF no RS), Carlos Alberto Ponzi (chefe da agência do SNI no RS) e a inesperada presença do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (chefe da 16º Grupamento de Artilharia de Campanha de São Leopoldo). Ustra era torturador nato que havia sido chefe do Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) na fase mais dura da guerra suja, além de ser amigo particular de Seelig. Tanto para Omar Ferri como para Jair Krischke, o coronel Brilhante Ustra estava envolvido na tentativa de despistar a opinião pública,

24sobretudo, na chamada “farsa de Bagé” . Além disso, a visita dos generais Samuel Alves Correia (chefe do II Exército) e Paulo Campos Paiva (chefe do Estado Maior) ao governador do estado Sinval Guazzeli, mudou os rumos do caso Lilián-Universindo, já que, por mais que aquela conjuntura de “distensão” permitisse algumas contestações a última palavra era do comando militar. “O período de 'distensão' permaneceu nos limites da Doutrina de Segurança Nacional, configurando mais um ciclo de liberalização do que uma efetiva transição para

. 25a democracia”

Recentemente, em entrevista ao jornal Zero Hora, o general aposentado Newton Cruz que durante a ditadura esteve ligado ao SNI e foi Comandante do Exército do Planalto concedeu uma declaração contraditória quando questionado a respeito do seqüestro dos uruguaios em 1978. “Houve muitos excessos, porque agiram igualzinho àqueles a quem perseguiam. As coisas só chegavam ao governo central quando aconteciam grandes rolos. Lembro de Geisel tendo uma crise de raiva quando sabia das barbaridades. Ele retomou o controle da situação quando demitiu o comandante do II Exército, Ednardo D'Avila Melo. A demissão mostrou à linha dura

26quem mandava” . A demissão do comandante do II Exército foi em 1976. Em 1977 foi a vez do general da “linha-dura”, Silvio Frota perder seu cargo, pois almejava ser o sucessor de Geisel em uma das maiores crises internas do Estado de Segurança Nacional. Contudo, o

seqüestro em Porto Alegre ocorreu em 1978. Portanto, se estas demissões foram um “recado” à chamada “linha-dura”, esse não foi muito bem compreendido pelos participantes brasileiros da Operação Sapatos Velhos. Além disto, é inaceitável a declaração de Cruz quando diz que os opositores do regime agiam “igualzinho” ao Estado terrorista, já que é no mínimo surreal imaginar o Wladmir Herzog eletrocutando seus opositores, ou o Manoel Fiel Filho ocultando cadáveres de militares, ou ainda, o casal Lilián e Universindo seqüestrando filhos de generais.

Hoje, trinta anos após o seqüestro, Lílian Celiberti vive no Uruguai trabalhando na Organização Internacional do Trabalho (OIT). Universindo Díaz trabalha na biblioteca nacional de Montevidéu, pois, depois da prisão abandonou a medicina para se formar em história. Segundo o ex-preso político: “Os crimes cometidos pela ditadura nestes anos devem ser denunciados, investigados, apurada a responsabilidade e posto tudo a conhecimento de toda a população. Cremos que não haverá no Uruguai, a consolidação de um regime democrático enquanto não for desmontado todo o aparato jurídico-repressivo criado em todos esses

27anos” . Tanto ele como Celiberti se desvincularam do PVP que hoje, faz parte do governo da Frente Ampla. Enquanto isto os torturadores Eduardo Ferro e Pedro Seelig vivem tranqüilamente, o primeiro no seu próspero negócio hoteleiro em Punta del Este, e o segundo, gozando sua aposentadoria em uma chácara na grande Porto Alegre, sem que nunca tivessem sido molestados por qualquer tipo de punição.


A Operação Condor unificou o Terrorismo de Estado de maneira coordenada superando, inclusive, históricas rivalidades nacionais no intuito de assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe, já que organizações de resistência e combate às ditaduras de Segurança Nacional estavam se (re) articulando no exílio, provando que a luta dos povos oprimidos não tem pátria, sobretudo na América Latina. Neste sentido, lembrar da Operação Condor no Brasil, especialmente do seqüestro dos uruguaios em Porto Alegre, é, por um lado, constatar que a ditadura de Segurança Nacional brasileira devidamente coordenada e cooperada com a uruguaia e os demais Estados terroristas do operativo contribuiu para consolidação da hegemonia do capital internacional em conluio com a classe dominante, sobre, a classe trabalhadora nos países do Cone Sul latino-americano. Entretanto, fomentar a memória sobre Lilián e Universindo significa resgatar a história desses aguerridos militantes do PVP que, sem esmorecer na luta de classes, ousaram derrubar a ditadura uruguaia rumo a implementação do socialismo. A luta deles continua cada

28vez mais vigente, sobretudo, nesses “tempos cinzentos” de hegemonia neoliberal.


*Mestrando em História pela Pontífice Universidade Católica do Rio Grande do Sul, possuindo bolsa de estudos da CAPES.1DINIZ, Eli. Crise, reforma do Estado e governabilidade: Brasil, 1985 – 95. Rio de Janeiro: 1997, p.41.2CARNEIRO, Dionísio Dias. MODIANO, Eduardo. Ajuste externo e desequilíbrio interno: 1980-1984.In: ABREU, Marcelo de Paiva Abreu. A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana 1889-1989. Porto Alegre: Campus, 1990, p.323.

3Ibidem, p.327.4FURTADO, Celso. A nova dependência. 2 ed. Rio de Janeiro: 1982, p.68-69.5Ibidem, p.69.6DINIZ, op cit. p.45.7Para uma melhor compreensão a quanto das disparidades sociais do Brasil nos anos 1980, ver. DINIZ (1997), p.45-54.

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presente artigo procura chamar a atenção para a classe trabalhadora brasileira no processo de consolidação da Nova República, destacando as relações entre patrões e trabalhares no contexto do Plano Cruzado. Para tanto, procurou-se ao longo do texto caracterizar a realidade econômica pela qual passava o Brasil e que motivaram a criação de tal Plano. Assim, o artigo chama a atenção para três fatores; governo, trabalhadores e patronato; que analisados de forma isolada, não permitem uma visão ampla de causas e conseqüências, porem quando analisados de forma conjunta, nos permite a percepção da diversidade de interesses que estão em jogo em um plano de estabilização monetária e combate à inflação.

A estratégia militar de fazer uma transição para um governo civil de forma lenta, gradual e segura, fez com que se afrouxassem os mecanismos de controles sobre a população; em especial aos movimentos populares; disto afloram apelo País grupos de representatividades sociais motivados pelos problemas socioeconômicos que adquiriam naquele momento proporções alarmantes, “à visibilidade de seus aspectos econômicos, representados pela ameaça de hiperinflação, forte endividamento externo, recessão e desemprego, somou-se o reconhecimento da gravidade

1de seus componentes sociais e políticos” , diante de tal situação, a possibilidade da Nova República trazia à população esperanças de um futuro melhor. Assim para o setor econômico, o desafio situava-se em vencer a inflação e retomar o crescimento.

2Conforme Carneiro , no inicio dos anos de 1980, o Brasil sentia-se da escassez de financiamento externo, o que dificultava cobrir o desequilíbrio da balança de pagamentos. Disto, a solução encontrada foi à desvalorização do Cruzeiro, para tanto, adotou-se a estratégia de contenção salarial, controle dos gastos governamentais, elevação das taxas internas de juros e a contração da liquidez real, pois, pretendia-se ampliar as exportações através do controle e reajustes. Tal estratégia obteve efeito na reversão da balança comercial, onde “após um déficit de 2,8 bilhões em 1980, a balança

1986 - A Repressão Fordista no ABC Paulista

Michel Willian Zimermann de Almeida*

comercial registrou em 1981 um superávit de 1,2 3bilhão” , todavia, a estratégia mostrou-se falha para o

combate a inflação.

4Celso Furtado chama a atenção para o fato de que o problema do combate a inflação brasileira estava na irracionalidade do sistema de decisões, que na incapacidade de distinguir os focos geradores de pressões inflacionárias, se apelava para o arrocho salarial, disparando as desigualdades sociais e a concentração da renda. Para Furtado, não basta apenas reforma fiscal, também é necessário que os setores com poder de decisão do governo cheguem a um consenso quanto ao “âmbito de ação do governo e às prioridades a que deve obedecer

5a ação do Estado” . Assim, a eliminação dos focos de pressões inflacionárias, situadas nos incentivos à iniciativa privada e nos sobregastos do setor público, passariam por mudanças nos preços relativos, o que permitiria manter os níveis desejados das exportações, sem reduzir a produtividade e sem gerar tensões sociais.

A riqueza produzida pelo Brasil contrastava 6com a pobreza de sua população, Diniz chama a atenção

para a posição de 8° lugar, ocupada pelo Brasil em 1980, entre as maiores economias industriais do mundo, o que não condizia com o salário mínimo de US$ 40,00 da época. Em 1985; ano em se implanta a Nova república; cerca de 42% da população economicamente ativa, possuía uma renda mensal próxima a um salário mínimo e próximo dos 60% possuíam uma renda de até dois

7salários .

Assim, a Nova República nasce sob grandes expectativas, à população aguardava por reformas administrativas, políticas e econômicas, que pudessem reparar as desigualdades na distribuição da riqueza do País. O novo Presidente; Tancredo Neves; anunciava medidas que vinham ao encontro desses anseios, como a liberdade de expressão e organização, legalização dos partidos políticos; inclusive os de esquerda; e concessão do voto aos analfabetos. Determinou também a restauração das atribuições do Legislativo e convocou as eleições gerais para 1988, além chamar a elaboração de uma nova Constituição Federal.


O

8PETRY, Almiro. Realidade econômica II: Problemas. In: SCHNEIDER, José Odelso. et. al Realidade Brasileira. Porto Alegre: Sulina, 1988, p.114-115.9MODIANO, Eduardo. Da inflação ao cruzado: A política econômica no primeiro ano da Nova República. Rio de Janeiro: 1986. p.112-113

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10Superintendência Nacional de Abastecimento e Preços.11DINIZ, op cit. p.55. 12Central Única dos Trabalhadores e Coordenação Nacional das Classes Trabalhadoras, respectivamente.

Entretanto, com o falecimento do Presidente Tancredo Neves, José Sarney; que possuía pouco carisma popular, e era oriundo das alas conservadoras que haviam dado sustentabilidade ao Regime Militar; assume a Presidência gerando um clima de desconfiança a respeito do novo Presidente e suas posições. No campo econômico, entre fevereiro de 1985 e 1986 a inflação acumulada ultrapassa os 255% a.a. configurando uma hiperinflação de mais de 15% ao mês, o que leva o governo federal a decretar em 28 de fevereiro de 1986 o plano cruzado, que, segundo PETRY, consistia nas principais medidas:

a) Congelamento de todos os salários, reajustados em 1°/03/86 pela média dos últimos 6 meses, descontadas as antecipações, mais um abono de 8%, e a fixação do salário mínimo em Cz$ 804,00;

b)Congelamento de todos os preços à vista, vigentes em 28/02/86 (congelado no pico), definidos em tabelas de preços oficiais;

c)Congelamento das prestações do BNH, dos aluguéis, das mensalidades escolares, calculadas as médias dos últimos seis meses;

d)Reforma Monetária, com a extinção do cruzeiro (Cr$) e a criação do cruzado (Cz$) correspondente a mil cruzeiro; extinção da correção monetária; a substituição da ORTN pela OTN, com valor fixado até março de 1987; e congelamento da taxa de câmbio do dólar americano;

e)Criação da escala móvel de salários, com reajustes automático toda vez que a taxa de inflação acumulada, medida pelo IPC, atingir 20%, a inflação na data-base;

f) Criação do Índice de Preços ao Consumidor – IPC, calculado mensalmente, pelo IBGE, passando a ser a medida oficial da inflação; e, correção monetária trimestral, conforme o IPC, aplicável às cadernetas de poupança, FGTS e PIS/PASEP;

g)A fiscalização dos preços será exercida pela população e a punição dos infratores ficará a

8cargo da SUNAB e polícia federal .

As esperanças de vitória sobre a inflação depositadas no plano eram muitas, confirme Modiano:

Apagada a memória do processo inflacionário com a desindexação, as taxas mensais de inflação da nova moeda não manterão qualquer relação com as taxas mensais de inflação do combalido cruzeiro. Em média não deverão superar a marca de 1% ao mês. Tampouco deve-se temer a continuidade da inflação na nova moeda (mesmo num patamar muito baixo) pois a realimentação inflacionária em

9cruzados é mínima .

Entretanto, passados os primeiros meses de euforia com o término da hiperinflação, o país mergulha novamente em um caos econômico, diante do tabelamento, comerciantes que tentavam aumentar os seus preços passam a ser denunciados pelos “fiscais do S a r n e y ” , t e n d o s e u s c o m é r c i o s f e c h a d o s

10temporariamente pela SUNAB . Diante do surto de consumo, mercadorias desaparecem das prateleiras; devido a insuficiência de capacidade produtiva da indústria, ou porque foram escondidos por grupos econômicos que passavam a cobrar ágio.

Disto, atacadistas e comerciantes começam a forçar o aumento dos preços, até que é deflagrada uma série de greves. Pois, com os salários congelados e diante da falta de produtos básicos no varejo, os trabalhadores tinham de pagar mais caro por produtos oriundos do mercado paralelo que se criara.

Desta forma, setores do governo passam a acusar camadas do empresariado de sabotarem o plano, o empresariado acusa os trabalhadores e estes amargam o

11arrocho salarial e a falta de produtos básicos. Diniz chama a atenção à rejeição das Associações Comerciais do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, quanto aos atos do governo, em especial aos aumentos dos impostos. Entretanto, quanto ao Plano Cruzado, tanto a FIESP quanto a FIRJAN, manifestaram o seu apoio ao

12plano, porem a CUT e a CONCLAT , logo se colocaram contrários ao Cruzado, por entenderam que prejudicaria aos interesses dos trabalhadores.

O certo, é que não demorou para que setores do empresariado reclamassem dos congelamentos, e passassem a exercerem pressões sob o Presidente para o seu fim. No campo da indústria de bens duráveis, as grandes montadoras de automóveis adotam como estratégia contra o tabelamento dos preços, a não entrega de 60% dos automóveis à rede de concessionárias até que fosse autorizado o reajuste dos preços, dessa forma os consumidores tinham que esperar até 120 dias para receberem os seus automóveis.

Elizabeth Silva chama a atenção para a denúncia de que a Ford possuía de seis a sete mil veículos estocados para o mercado nacional, enquanto o normal era cerca de 750 unidades. Após o envio de auditores para a verificação na Volkswagen, General Motors, Ford, Mercedes Benz e Saab Scania as denúncias foram confirmadas:

“A Ford alegou estar estocando os carros devido à falta de componentes. A GM afirmou o mesmo, acrescentando que a produção ainda não havia voltado ao normal devido as recentes paralisações. A Volkswagen alegou que o alto nível de seus estoques era em parte devido a problemas relacionados ao controle de qualidade e em parte por serem


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13SILVA, E. B. Refazendo a fábrica fordista. São Paulo: Hucitec, 1991, p.280.14Revista Veja, 11/6/1986, p. 118.15Jornal Zero Hora, 01/7/1986, p. 25.16SILVA, op cit. p. 243.

esses automóveis destinados ao mercado externo. Um aumento de preços foi finalmente autorizado, mas as empresas foram obrigadas a vender os automóveis estocados pelo preço

13anterior ao aumento” .

No entanto, o aumento não foi exatamente o que as montadoras esperavam, desta forma passaram a reduzir o ritmo de produção criando listas de esperas para a aquisição de carros novos, o que fez com que os carros usados se tornassem mais caros do que os novos gerando assim desestabilidades na indústria de autopeças com os cancelamentos de pedidos por parte das montadoras. A Mercedes Benz recusou-se a receber 150 caminhões carregados de autopeças e decidiu dispensar 4.500 funcionários por dez dias, o Ministério do Trabalho interviu forçando a Mercedes Benz a cancelar as dispensas, por sua vez a montadora conseguiu baixar os preços de seus fornecedores.

Em entrevista, o diretor de marketing da Ford afirmou que “[...] o mercado externo merece absoluta prioridade; por maior que seja a procura interna [...] não hesitaremos em retirar os automóveis necessários do

14mercado interno para vendê-los a preços melhores” . Assim, em conseqüência ao desabastecimento o governo passa a estudar a possibilidade de importar produtos que julgue necessário. No dia 01 de julho de 1986 o jornal Zero Hora de Porto Alegre, publica em sua manchete de capa as intenções do governo federal.

Governo estuda importação de carros, pneus e têxteis:

[...] poderia ser autorizada a importação pela iniciativa privada diretamente dos paises da América Latina, como a Argentina, por exemplo. Os técnicos da SEAP reconhecem, no entanto que a importação de automóveis depende de uma decisão política, pois “mexe com uma área muito delicada”

15adiantam [...]

Além da noticia sobre a possibilidade de importação de produtos do exterior, que é de suma importância por si só, chama a atenção à frase dos técnicos da SEAP, ao se referirem à indústria automobilística: “mexe com uma área muito delicada”. A partir desta observação, entraremos em nosso objeto de estudo propriamente dito.

Apesar de a Ford ter começado suas atividades no Brasil em 1919, apenas em 1957 se registrou a primeira disputa judicial, sendo que “nos vinte anos seguintes, 1957 – 1977, foram perdidas apenas oito dias

16e nove horas com disputas judiciais” . No entanto, isso se deve principalmente a intervenção do Estado nas

questões trabalhistas através da legislação do trabalho e as medidas repressivas adotadas pelos governos militares.

Em fins da década de 70, as relações industriais começam a se transformar, os trabalhadores passam a desenvolver técnicas alternativas de greve, já que o ato ainda era proibido por lei, e com base na lei de segurança nacional as greves eram sufocadas com violências físicas e demissão por justa causa. Desta forma tornava-se

17necessário um novo método de greves. Segundo SILVA , na primeira greve em conjunto nas empresas automobilísticas e em indústrias de autopeças, os trabalhadores simplesmente pararam ao lado de suas máquinas e permaneceram em silêncio; sem saber quem eram os lideres; o patronato chamou o sindicato dos trabalhadores a cada uma das fábricas para negociar em nome dos trabalhadores, sendo que na Ford, a greve

18persistiu por um tempo maior .

Por conta disto, a FIESP passou a recomendar que seus membros adotassem estratégias contras as greves, indicando as seguintes táticas:

a) Não pagar, em nenhuma hipótese, horas paradas e não estabelecer quaisquer acordos de indenização, pois não existindo no Brasil fundo de greve, esse será um excelente recurso para as empresas.

b) Tentar de todas as formas, colocar os grevistas na via pública[...] [para] envolver o poder público [...] [e] exercer uma pressão psicológica sobre o Sindicato do Empregados [...].

c) Suspender por um ou dois dias (disciplinarmente) aqueles que entrarem na Fábrica, sob condição de trabalharem e não cumprirem o prometido. Em última instância, dispensar um certo número de pessoas por justa causa, após [...] pedir aos trabalhadores que executem uma certa tarefa. (A negativa

19caracterizará um ato de insubordinação) .

As reivindicações por salários e melhores condições de trabalho se seguiam até 1982, com o agravamento da crise econômica, as empresas passaram a realizar demissões em massa, enfraquecendo o poder de reação dos sindicatos. Aproveitando-se desta realidade, as empresas passaram a demitir prioritariamente os operários envolvidos no sindicalismo, pois, podiam alegar que as demissões se davam por conta da recessão econômica em que o País se encontrava. Assim, essas medidas intimidavam e disciplinavam os trabalhadores, ao mesmo tempo em que a produção de automóveis recuperava o seu crescimento entre 1982 e 1986, apesar

17Ibidem, p. 249.18Somente após cinco dias de paralisação é que a Ford aceitou negociar com os trabalhadores.19RAINHO, 1983, p. 213. Aphud: SILVA, 1991, p. 249-250.


20ANFAVEA, (2007).21BRAVA. In: LUA NOVA, 1987, p.53.

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22Jornal Folha de São Paulo, 17/7/1986, p.02.23SILVA, op cit. p. 284.24Ibidem.

de uma pequena baixa na produção em 1984, porem não como a de 1981, conforme o quadro abaixo:

A nova composição do governo federal, que passava agora as mãos dos civis, iniciou o seu mandato dando sinais de que se atravessava para uma nova fase nas relações entre trabalhadores e patronato. A escolha de Almir Pazzianotto para o Ministério do Trabalho, a devolução dos sindicatos que estavam sob intervenção para as suas categorias, a promessa do fim do intervencionismo federal no sindicalismo, anistia dos sindicalistas cassados, estimulo para as negociações entre trabalhadores e empregadores, reconhecimento do direito de greve e aumentos reais do salário mínimo; acima da inflação, enchiam os trabalhadores de sonhos e esperanças para a nova fase política que se iniciava com um governo federal civil.

Acrescenta-se a isso um plano econômico que prometia recolocar o Brasil nos “trilhos do desenvolvimento”, combinando esperanças e expectativas com um sentimento de união nacional. Assim o pacto social proposto pelo governo federal com relação ao plano cruzado, o congelamento dos preços e o chamamento da população para atuarem não mais como tele-espectadores, mas agora como atores, ou melhor, como fiscais, trouxe grande prestigio ao Presidente José Sarney, que dirigia um discurso diretamente às classes populares, superando suas entidades representativas. “Não são os sindicatos que são chamados a fiscalizar os

21preços, mas os indivíduos” .

Todavia, as dificuldades econômicas do país eram visíveis, assim como a falta de produtos no mercado, o aumento dos preços por causa do ágio e a multiplicação das greves. No entanto, neste contexto de pacto pelo plano Cruzado, as reivindicações trabalhistas passam a encontrar grandes dificuldades para atingir a opinião pública, o Presidente da República, se aproveitando da sua popularidade passa a atacar a CUT, o PT e o então Governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola, acusando-os de inimigos da nação. O mesmo acontece com os movimentos reivindicatórios, que são tratados por parte da mídia como atentados contra o plano econômico:

Greves contra o Cruzado

[...] o açodado e irresponsável surto de greves que começa a se espalhar no país [...]. Não há dúvida de que os maiores beneficiados pelo plano cruzado foram os assalariados, que conheceram uma expressiva melhora em seu poder aquisitivo. Fingindo desconhecer este fato, defendendo ainda maiores aumentos salariais, impossíveis de ser concedidos sem que se comprometa toda a estratégia antiinflacionária, lideranças sindicais tão precipitadas quanto irracionais podem trazer de volta o panorama de alta desenfreada de preços, estagnação econômica e desemprego

22superado a largas custas .

Diante da importância em se manter a viabilidade do plano cruzado, e do empenho exercido pelas classes populares em atender ao chamado do Presidente da República para fiscalizarem o tabelamento dos preços, a população de modo geral deixou para segundo plano as lutas nas questões trabalhistas e sociais, absorvendo um discurso nacionalista que beirava ao populismo. Desta forma a retirada de direitos importantes dos trabalhadores como: “o direito de beber água na fábrica, a coleta direta das contribuições sindicais dos holerites dos trabalhadores e um decrécimo no pagamento de horas extras de duas vezes para uma e

23meia” , pela montadora de automóveis Ford, passaram por desapercebidos pela população.

Passados alguns dias a direção da Ford solicitou que os trabalhadores realizassem horas extras, a comissão de fábrica aceitou o pedido, no entanto poucos trabalhadores compareceram, provocando perdas para a empresa, que passou a pressionar individualmente os trabalhadores. “A gerência lembrou-os de que poderiam perder seus empregos se não concordassem com as

24exigências da empresa” .

A Ford passou também a impedir os trabalhos da comissão de fábrica, que no dia 14/7/1986 organiza um protesto na tentativa de convencer aos demais colegas trabalhadores a não cederem as intimidações da empresa. Entretanto, ao tentar atravessar a linha de piquete, um trabalhador foi impedido por um dos membros da comissão. Tal ato serviu de pretexto para que a Ford alegasse que teria ocorrido no momento uma agressão física e suspendeu o funcionário membro da comissão por 30 dias, desrespeitando a sua estabilidade de mandato.

Ao se investigar o ocorrido não se encontrou provas de tal agressão, porem a empresa encaminhou o processo de afastamento seguido de demissão por justa causa, numa clara tentativa de intimidação, mostrando que nem mesmo funcionários que possuíssem estabilidade por exercerem cargos sindicais estavam livres das demissões, em protesto, houve a paralisação

Produção de veículos na década de 198020

Ano

1980

1981

1982 1983 1984

Veículos

933.152

585.834

672.589 748.371

679.386

Ano

1985

1986

1987 1988

1989

Veículos

759.141

815.152

683.380

782.411

730.992


62 -

25Jornal Folha de São Paulo, 16/7/1986.26ALVES, M. H. M. SILVA, R. A. da. Nas fábricas, a volta dos velhos tempos. Lua Nova, São Paulo, v. 3, n. 3, jan/mar. 1987. p. 48-50.

27SILVA, op cit. p.286.

dos funcionários do setor onde trabalhava o membro da comissão, exigindo a sua readmissão. No dia seguinte, os onze mil funcionários da fábrica entraram em greve reivindicando além da readmissão do funcionário e o direito de funcionamento da comissão, um aumento de 20% nos salários, o fim das intimidações por parte da gerência e a ampliação dos direitos da Comissão de Fábrica.

Cabe ressaltar aqui que as comissões de fábrica representavam uma importante conquista dos trabalhadores, sendo eleita através de voto direto e secreto. Possuíam estatutos e estabilidade de emprego reconhecida por contratos registrados em tribunais do trabalho, sendo que a comissão de fábrica da Ford, funcionava desde 1981.

No dia 16/7/1986, o jornal Folha de São Paulo noticiava a greve:

Trabalhadores da Ford do ABC param o trabalho

Os 11.000 trabalhadores pedem um aumento de 20% nos salários e mudanças na política interna. Segundo Diogo Clemente, diretor assistente de relações industriais da Ford, as reivindicações contrariam a política econômica do governo, um total de 12.890

25estão em greve em São Bernardo e Diadema .

Esta edição da Folha de São Paulo chama ainda a atenção de que na primeira quinzena de julho, ocorreram 61 greves envolvendo 45.360 trabalhadores e neste dia, ocorriam 23 greves por aumentos de salários. Decidida em não negociar com os operários, após 10 dias de greve a direção da fábrica chamou um batalhão da Policia Militar, que reprimiu os grevistas com violência,

26conforme ALVES , os trabalhadores foram obrigados e entrarem na fábrica por um corredor polonês de policiais militares. A Comissão de Fábrica foi dissolvida com a suspensão de 24 dos seus 28 membros, sendo que os 4 restantes estavam em férias.

Um total de 204 trabalhadores foram demitidos por justa causa, inclusive membros das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPAs) que possuíam estabilidade garantida pela própria legislação do trabalho. Somente após diversas pressões exercidas pelo sindicado a montadora aceitou pagar os direitos trabalhistas de alguns dos funcionários demitidos, Jarí Meneguetti, representante da CUT, em entrevista a Folha de São Paulo, declarou que esta era a segunda violência da Ford contra os trabalhadores.

Sem a legitima representatividade da Comissão de Fábrica, as condições de trabalho na Ford, pioraram de forma significativa:

“A velocidade das linhas foi aumentada no período da manhã para que a produção não fosse prejudicada por possíveis interrupções ao final do dia [...] a linha respot, cuja velocidade foi aumentada de 1 minuto e 15 segundos para apenas 48 segundos. Os dez minutos de descanso, para se lavar, antes do almoço e ao final do turno foram eliminados, e os atestados assinados pelos médicos do sindicato passaram

27a não ser mais aceitos pela empresa” .

Desta forma a Ford, conseguiu ampliar a sua produção em 20 carros por dia, mesmo com uma baixa de 204 trabalhadores. Em outubro de 1986, 105 carros foram danificados no interior da fábrica ou montados com peças erradas. A direção da Ford acusou a extinta Comissão, a CUT e o Partido dos Trabalhadores pelo ato, alegando que a sabotagem pretendia prejudicar as boas relações de trabalho na fábrica.

Um importante aspecto deve ser ressaltado, que é o interesse da Companhia na implantação do programa de Trabalho Participativo. Tal programa já vinha sendo adotado pela Matriz da Ford nos Estados Unidos, e buscava amenizar os conflitos entre empresa e trabalhadores, proporcionando que os segundos pudessem participar de decisões relacionadas ao trabalho no interior da fábrica.

Aproveitando-se da crise de empregos na indústria automobilística norte-americana a Ford argumentou aos trabalhadores que se o programa não fosse aceito, fábricas poderiam ser fechadas e diante do medo do desemprego, não houve grande resistências à implantação do programa. A empresa aproveitou-se de um momento onde as grandes montadoras norte-americanas estavam fechando suas unidades nos EUA, e transferindo a produção para países emergentes, onde o custo da mão de obra é significativamente mais barata.

Na filial brasileira, o Programa de Trabalho Participativo, já vinha sendo implantado desde 1984, através de uma profunda pesquisa da Ford sobre o universo de seus próprios funcionários e a implantação de cursos de treinamento. No entanto, sem obterem sucessos devido às resistências da Comissão de Fábrica, que agora estava dissolvida. Um dos pontos chaves do programa era justamente o de transferir para o trabalhador a responsabilidade e a oportunidade de optar sobre alguns aspectos da empresa. Procurava-se assim substituir o poder das Comissões de Fábrica e do Sindicato, por pequenos grupos de trabalhadores que passavam a disputar entre si cotas de produção, idéias e sugestões em troca de prêmios mensais, criando desta forma novas relações entre trabalhadores e empregadores sem a interferência do sindicalismo.

As tentativas de retirada dos direitos dos trabalhadores não eram novas. Apesar do amplo apoio do empresariado no que diz respeito à implantação da Nova


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28Confederação Nacional da Indústria.29DINIZ, op cit. p.49.30Ibidem.31Diniz, (1997), informa que se considerarmos os deputados que possuíam claros vínculos com os grupos empresariais, tais grupos chegam a ocupar 45,26% das cadeiras constituintes.

República, nas questões trabalhistas se esperava pela manutenção dos recursos autoritários. Assim, a declaração de ilegalidade das greves caracterizou-se como uma das bandeiras defendidas pelos empresários

28através da CNI , solicitavam também a “intervenção governamental nas atividades sindicais e proibição da

29formação de comissões de fábrica” .

Neste contexto de redemocratização da política brasileira, mudanças no campo econômico, disputas políticas e de relações de poder entre empresas e sindicados, as atuações sindicais buscavam não somente os resultados imediatos como, por exemplo; aumentos de salários; mas sim algo maior e que pudesse garantir melhores condições de trabalho por lei. Nesse sentido surge no campo político a questão da Nova Constituição, onde apesar do debate já não ser novo, a derrota dos sindicatos nas lutas por aumentos de salários, e na incapacidade de dar uma resposta ao empresariado, como no caso da Ford, deixou o sindicalismo em frágil condição reivindicatória para as discussões que se sucederiam.

30A esse respeito, Diniz chamou a atenção para a aliança entre o empresariado na luta contra os movimentos grevistas e o fortalecimento da economia de mercado. Desta forma, de posse de uma série de sugestões que incluíam alterações nas áreas sindicais, trabalhistas e tributarias, os empresários passaram a concentrar forças a fim de enviarem o maior número possível de representantes para as discussões da Assembléia Nacional.

Diante de um quadro onde as reivindicações trabalhistas e sociais passavam a serem criminalizadas, por romperem com o pacto social, e a existência de um grupo organizado e detentor de grande poder econômico, a disputa de forças pela hegemonia nas decisões, transformaram-se profundamente. Isso devido à redução da capacidade de influência popular, como ficou evidente na falta de apoio a greve e na facilidade com que a montadora Ford pode impor a sua vontade perante aos trabalhadores, demonstrando que o sindicalismo havia perdido grande parte do seu poder de barganha, assim, os trabalhadores tiveram pouca representatividade na elaboração da Nova Constituição, já que as representações dos trabalhadores ficaram próximas dos 10%, enquanto que a representatividade do empresariado

31girava em torno dos 30%, ou seja, algo em torno de 1:3 .

Evidenciamos assim que o estudo de um fato histórico requer uma analise mais ampla do que o estudo do fato por si só. A greve desencadeada na fábrica da Ford de São Bernardo do Campo em julho de 1986 revela um Estado dilacerado por problemas socioeconômicos, onde as grandes empresas conseguem se sobrepor ao poder

federal a ponto de quando lhes convém, boicotar o plano econômico que guardava as esperanças do controle inflacionário. Ao mesmo tempo em que a população ansiosa por um “novo milagre econômico” abria mão do seu papel reivindicatório se dissolvendo no corpo fiscalizador do Estado.

Diante da falta de um apoio popular, que pudesse exercer pressões sobre o Estado e ao grande empresariado, o movimento sindicalista ficou com pouco poder de atuação, já que era transmitida para a população a idéia de pacto nacional pelo plano Cruzado, onde o papel do trabalhador era o de fiscalizar os preços congelados, em um contexto onde a greve passava a ser considerada uma traição a pátria. Este contexto social tornou-se favorável para que o empresariado pudesse agir livremente nas relações trabalhistas, como foi exposto no caso da Ford, onde os trabalhadores sofreram perdas de direitos que já pareciam estabilizados, como: direito de sindicalização no interior da fábrica e estabilidade.

Assim, aproveitando-se de um contexto favorável, a Ford pode fazer uso de mecanismos repressivos a fim de dissolver a comissão de fábrica que se colocava como um entrave à implantação do Programa Participativo. Pois a partir disto, pode instaurar um sistema interno que privilegiava o individualismo e competição entre os trabalhadores, marginalizando o sindicalismo no interior da fábrica.


Estado, Poder e Movimento Sindical na América Latina: O diálogo necessário com as teorias de Trotski

*Doutor em Sociologia pela UnB.1Ver, a respeito, Ignácio RAMONET. Hugo Chávez, Le Monde Diplomatique-Brasil, n.3, outubro 2007, p.13; Doug DOWD, Venezuela: who could have imagined?, Monthly Review, may 2007, vol. 59, n.1, disponível em www.monthlyreview.org; Ana Maria SANJUAN, Claro-escuros bolivarianos, Le Monde Diplomatique-Brasil, n.3, outubro 2007, p.10; Plínio de Arruda SAMPAIO, Populismo ou revolução? Le Monde Diplomatique-Brasil, n. 3, outubro 2007, p.13, dentre outros.

2Veja-se, a respeito, o material publicado no livro de Leon TROTSKI, Escritos Latinoamericanos, Buenos Aires, Ceip-Leon Trotski, 1999.3Foi Marx quem definiu pela primeira vez a forma de dominação burguesa por ele chamada de bonapartismo, no seu O 18 brumário de Luiz Bonaparte. Trotski aplica essa definição para processos como os do nacionalismo burguês na América Latina. O Estado bonapartista supõe certo equilíbrio entre as várias forças sociais incapazes de exercer uma dominação hegemônica, ascenso do movimento de massas sem hegemonia política do proletariado, surgimento de alguma classe social de apoio ao governo, embora este continue respondendo ao conjunto dos interesses da classe dominante, a formação de um aparelho de Estado centralizado, burocrático, personalizado na figura de um árbitro, um Bonaparte com ares de eqüidistância. Ver farto material a respeito no livro citado na nota de rodapé anterior.

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Estado, Poder e Movimento Sindical na América Latina:

O diálogo necessário com as teorias de Trotski

Gilson Dantas*

problema

Nas últimas décadas, na América Latina, tem havido um reforço de caráter contraditório da dominação dos Estados Unidos sobre governos e burguesias locais, ao mesmo tempo, em que o imperialismo norte-americano entrou em um processo de relativo declínio e se instala o lento desencadear de uma profunda crise econômica. Nessas últimas décadas, também é um fato que os governos que se colocaram de um ponto de vista de resistência anti-neoliberal e que fizeram campanha eleitoral nesta perspectiva, através de um processo transformista, se converteram em aplicadores diretos das políticas pró-imperialistas e do Banco Mundial.

Este processo, por um lado criou, de uma maneira geral, certas dificuldades para o movimento revolucionário, ao mesmo tempo em que os laços econômicos do imperialismo sobre essas burguesias locais que se comportaram de forma vassala se estreitaram. Por outro lado, apareceram processos do tipo Venezuela de Chávez, ou seja, de resistência – sem rupturas profundas, em todo caso - à devastação econômica de perfil neoliberal.

O surgimento de governos como Hugo Chávez gera uma série de esperanças e ilusões nos meios de

1esquerda . Há uma série de debates na América Latina todos eles referenciados pelas novas perspectivas desencadeadas pela experiência venezuelana, portanto de um governo que desenvolve uma postura anti-Estados Unidos e, ao mesmo tempo, recolhe um apoio operário e popular majoritário ao se colocar dentro de uma perspectiva declaradamente socialista ou de socialismo do século XXI como é o discurso de Chávez.

Este artigo pretende incluir-se no debate dentro do terreno de uma questão que permeia processos tipo Chávez, e que pode ser posta nos seguintes termos: um governo ou poder político como Chávez ou outros antes dele (Perón, por exemplo), capitaneando um Estado que além de débil continua tratando de preservar o essencial da relação econômica com o imperialismo pode – nestas bases, preservando as relações semi-coloniais e

O apoiando-se em burocracias sindicais - desenvolver mudanças sociais profundas?

A partir destes marcos, procurando focalizar, dentro deles, a perspectiva do movimento sindical e operário, o objetivo específico deste artigo é o de trazer ao plano do debate sobre o problema levantado, um autor que costuma ser deixado de lado, não sem prejuízo – na ótica da investigação e também teórica aqui adotada – para quem pretenda alcançar o mais profundo exame da totalidade do processo.

Naturalmente estará sendo enfocado nessa análise, tomado em suas linhas gerais, um tipo de Estado, o Estado burguês semi-colonial ou dependente latino-americano tipo Venezuela, Argentina ou até Brasil, ao mesmo tempo em será focalizada a questão de um determinado tipo de poder político, o poder de governos que procuram amparar-se nas massas para pressionar por relações mais vantajosas com os países centrais.

Este foco tomará como recurso teórico um autor, Trotsk i , que levou adiante es tudos

2metodologicamente relevantes sobre o problema . Trotski formulou um diagnóstico ou uma avaliação teórico-histórica desse tipo de processo, por ele

3qualificado como bonapartista , e da sua análise desprende-se uma perspectiva que, assim pensamos, contribui ao debate atual sobre Estado e poder na América Latina e que aqui será submetida à crítica.

Em primeiro lugar, trata-se, então, de resenhar e, em seguida, problematizar a defendida por aquele autor.

A tese de Leon Trotski

Trotski levanta uma determinada tese a respeito do poder político em Estados como o México dos

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4Atílio BORON, Atílio. Trás el búho de Minerva: mercado contra democracia en el capitalismo de fin de siglo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2000, p.125.

5Leon TROTSKI. Escritos Latinoamericanos. Buenos Aires: CEIP Leon Trotski, 1999, p.163.

anos 30 e ali propõe elementos mais gerais, aplicáveis – segundo sua perspectiva teórica - a outros Estados na mesma condição, sob semelhante estrutura de poder político ou de relação com o imperialismo. Diagnostica o desenvolvimento de um fenômeno político peculiar, embora não exclusivo, da América Latina, o bonapartismo tipo Cárdenas.

Trotski chama a atenção para a característica debilidade histórica da burguesia de países semi-coloniais (caso da América Latina) dominadas pelo capital imperialista, classes nativas sem a chance de conquistar a hegemonia industrial e financeira nos seus respectivos países. A presença mais forte, do ponto de vista dos setores chaves da economia vem a ser a do capital estrangeiro que, precocemente, passa a controlar setores dinâmicos dessas economias. De passagem, vale reiterar que esta realidade é completamente atual; no

4argumento de Boron, “nossos Estados são hoje muito mais dependentes que antes, sufocados por uma dívida externa que não cessa de crescer e por uma 'comunidade financeira internacional' que, na prática, os despoja de sua soberania”. O capital internacional é dominante nessas economias.

Este capital recruta uma classe operária local, mão-de-obra barata, configurando-se desta forma um determinado processo onde o país apresenta uma estrutura atrasada em relação aos países metropolitanos e imperialistas, no entanto, desenvolve uma classe operária moderna, jovem, em torno de núcleos industriais concentrados.

É da natureza da dinâmica de penetração do capital imperialista, portanto, que esta classe operária rapidamente fique submetida ao capital estrangeiro. Como contraponto, movimenta-se uma burguesia nativa que do ponto de vista econômico desenvolve-se à sombra e em conflito de interesses com o capital externo. Sua base política e social abarca toda uma massa local de trabalhadores que obviamente inclui os das grandes corporações imperialistas, grandes empresas e grandes bancos, sobretudo na área industrial, mais dinâmica.

Aqui temos uma contradição seminal, genética, que explica muito do caráter do Estado e do poder político na América Latina: uma classe dominante cujo desenvolvimento se vê conflitado com o imperialismo e que tende a associar-se a este, de forma subalterna, ou enfrentar-se com ele em alguma medida, apoiando-se em um imperialismo contra outro, por exemplo. Só que, em qualquer dos casos, sem conseguir alcançar nenhuma perspectiva econômica autônoma. É o que a história tem demonstrado sucessivas vezes e a cada tentativa.

Os movimentos essenciais desses núcleos burgueses locais terminam confluindo no sentido de adotar certo enfrentamento buscando tirar vantagens

próprias ou aceitando a condição de sócio menor do imperialismo, na condição de burguesias vassalas. No caso de lançar-se a conflitos de interesses abertos frente a um ou outro setor do grande capital financeiro ou da ´comunidade imperialista internacional ´ esses grupos locais cedo ou tarde se dão conta de que não podem ignorar ao proletariado: Cárdenas, Perón ou Getúlio cada um em seu momento e em suas circunstâncias, localizou nos trabalhadores urbanos – e também no campesinato, a depender do país - seu único ponto de apoio político efetivo na tentativa política de defender seus interesses frente às pressões externas.

Segundo o argumento de Trotski:

“Nos países industrialmente atrasados o capital estrangeiro joga um papel decisivo. Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado nacional. Isto cria condições especiais de poder estatal. O governo oscila entre o capital estrangeiro e nacional, entre a relativamente débil burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado. Isto dá ao governo o caráter bonapartista sui generis, de índole particular. Eleva-se, por assim dizer, por cima das classes. N a r e a l i d a d e , p o d e g o v e r n a r o u transformando-se num instrumento do capital estrangeiro e submetendo ao proletariado com as cadeias de uma ditadura policial, ou manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concessões, ganhando desse modo a possibilidade de dispor de certa liberdade em relação aos capitalistas estrangeiros. A atual política (do governo mexicano, NT) se situa na segunda alternativa; s u a s m a i o r e s c o n q u i s t a s s ã o a s desapropriações das linhas de ferro e das companhias petrolíferas.

Essas medidas enquadram-se inteiramente nos marcos do capitalismo de Estado. No entanto, num país semi-colonial, o capitalismo de Estado encontra-se sob a grande pressão do capital privado estrangeiro e de seus governos, e não pode manter-se sem o apoio ativo dos trabalhadores. É isso o que explica porque, sem deixar que o poder real escape de suas mãos, (o governo mexicano) trata de dar às organizações operárias uma considerável parte da responsabilidade na marcha da produção

5dos ramos nacionalizados na indústria” .

Historicamente, não se trata mais de qualquer processo de revolução burguesa até o fim, como aqueles que se deram no alvorecer desta classe. Aliás, quase como regra, no momento seguinte de qualquer influxo ou pressão nacionalista, na mesma medida em que as massas – como parte do mesmo processo - se levantam e lutam por seu espaço e suas conquistas, eis que aparece a burguesia como ela realmente é, débil, e que, no limite, termina recuando, cedendo e/ou dando passagem aos


6Idem, p.193.

7Leon TROTSKI, 1940. A integração das organizações sindicais ao poder do Estado. Disponível no site: www.insrolux.org/textosmarxistas/ 8Leon TROTSKI. Escritos Latinoamericanos. Buenos Aires: CEIP Leon Trotski, 1999, p. 93.

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seus setores mais reacionários e à oligarquia agrária associada ao imperialismo. A história moderna da América Latina desenvolveu-se nestes marcos, para além da época dos textos de Trotski aqui mencionados.

E uma razão de fundo, histórica e social, para esse desdobramento está no fato de que, desde o momento em que esses setores nacionalistas dão passagem a concessões de qualquer ordem à classe trabalhadora – política ou econômica –, procurando angariar força para suas fricções externas, não apenas irrompe uma dinâmica de resistência por parte da patronal imperialista, como se estabelece uma operação de risco político para a própria classe dominante em seu conjunto. Irrompem as massas, afloram situações onde o proletariado vai necessitar de sua independência política de ação.

Recorrentes processos nacionalistas se desenvolveram dentro desses limites e riscos.

Na síntese de Trotski:

“Em muitos dos países latino-americanos, a ascendente burguesia nacional, buscando uma maior participação no espólio e mesmo esforçando-se em aumentar a medida de sua independência – isto é, por conquistar a posição dominante na exploração de seu próprio país – é certo que trata de utilizar as rivalidades e conflitos dos imperialistas estrangeiros com esta finalidade. Mas sua debilidade geral e sua aparição histórica retardatária, lhe impede alcançar um nível mais alto de desenvolvimento para além de servir a um senhor imperialista contra outro. Não podem lançar uma luta séria contra toda dominação imperialista e por uma autêntica independência nacional por receio a desencadear um movimento de massas dos trabalhadores do país, que, por sua vez,

6ameaçaria sua própria existência social” .

Trotski qualificava tais processos como bonapartistas ou semi-bonapartistas; surgem em situações políticas onde a classe dominante mergulha na crise e a classe trabalhadora e camadas populares em movimento não contam com suficiente força política própria; é nesta conjuntura, que surgem formas de poder político como Cárdenas, Perón ou, em outras condições, Chávez, ou seja, através dos quais setores da burocracia de Estado – em geral do exército – se lançam a formas de governo instáveis que em algum momento recorrem ao apoio político operário ou camponês para pressionar o capital externo, os Estados Unidos, deslocando-se entre as contradições inter-imperialistas, em busca de vantagens no funcionamento econômico e no mercado para sua classe dominante:

“À medida em que o capitalismo imperialista cria nas colônias e semicolônias um estrato de aristocratas e burocratas operários, estes necessitam o apoio dos governos coloniais e

semicoloniais, que desempenhem o papel de protetores, de patrocinadores e ás vezes de árbitros. Esta é a base social mais importante do caráter bonapartista e semibonapartista dos governos das colônias e dos países atrasados em geral. Essa é também a base da dependência dos sindicatos reformistas em relação ao

7Estado” .

O poder ou o regime político que faz este papel bonapartista é assim chamado por ganhar certa autonomia: de um lado apoiar-se na classe operária, a quem busca controlar sob seu comando político, e por outro, também apoiar-se em setores da burguesia, do imperialismo (sem marchar para qualquer ruptura profunda de classe). O sentido é, invariavelmente, o de não romper os limites de classe. Esse Estado ou poder político, apóia-se na classe operária, apóia-se na burguesia procura construir um “projeto nacional” de pressão sobre o imperialismo. Pressão limitada por sua própria condição de “burguesia atrasada sul-americana, sucursal do imperialismo estrangeiro”, como dizia

8Trotski .

O que aqui se pretende destacar, ao mesmo tempo, é que este, processo, que se desenvolveu na época de Trotski no México, tende a desenvolver, em seu seio, e a partir do grupo político de poder, uma dinâmica de controle e atrelamento, a partir do Estado, dos sindicatos e das movimentações e ações operárias. A burguesia trata de agir para que a esfera do movimento operário seja controlada, no essencial, pelo Estado e pelo governo.

Cárdenas nos anos 30 procurou articular e incluir as organizações operárias, por exemplo, na administração da produção dos setores nacionalizados ou as mobilizava em favor da nacionalização de determinadas esferas da economia, pressionando a Inglaterra. Com Chávez o processo é semelhante, embora mais débil, esgrimindo outro discurso e em diferentes circunstâncias mundiais.

Chávez estatiza e nacionaliza setores econômicos pagando a preço de ouro, ao contrário de Cárdenas, e procura organizar seu apoio urbano, especialmente em torno dos movimentos populares mais pobres, para os quais faz concessões. Concessões estas sempre subordinadas ao controle do governo sobre os movimentos sociais e sobre o movimento sindical. A criação do partido único do Chávez (PSUV), “unindo” patrões e empregados, é apenas um exemplo neste sentido. A idéia básica, antes como hoje, é a de submeter e controlar de forma (caudilhista) os movimentos sociais.

Por outro lado, os movimentos do nacionalismo chavista muito mais submetidos ao imperialismo, apesar de toda sua fraseologia e das


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9Leon Trotski, El programa de transición y la fundación de la IV Internacional (compilación), Buenos Aires, CEIP Leon Trotski, 2008, p.95.10Osvaldo COGGIOLA. História del trotskismo en Argentina y América Latina. Buenos Aires: Ediciones Razón y Revolución, 2006, p. 423.

declarações socialistas dele, do que na experiência do governo cardenista. Chavéz tem comprado algumas empresas ao imperialismo a preço de mercado, ao mesmo tempo em que não promove qualquer mudança agrária substancial e sequer no perfil das importações (ou mesmo na fatia apropriada pela classe trabalhadora da renda nacional; neste item fica aquém do primeiro governo de Perón). No entanto, com seus limites, é possível localizar o chavismo no campo de processos semi-bonapartistas como os analisados por Trotski.

A análise teórica de Trotski localiza e examina a impotência histórica dessas burguesias frente à hegemonia do capital imperialista e, em especial, pela presença de um proletariado moderno, jovem e concentrado que tende a desequilibrar toda tentativa burguesa de apoiar-se nele para pressionar por vantagens econômicas para si. A perspectiva que Trotski fórmula para tais processos é a de que, na medida em que a classe operária dê passos adiante e esboce ou avance em sua independência política, tende a encerrar-se toda veleidade nacional-burguesa.

Foi o que ocorreu na Argentina em 75, no Chile em 73 e também por essa via se pode compreender o golpe de 1964 no Brasil. As frações chamadas nacionalistas se associam ao imperialismo e promovem um banho de sangue, abortam a evolução política do proletariado ou, simplesmente, dão passagem ao golpe, fogem. Esta é a perspectiva desse tipo de poder político burguês-bonapartista semi-colonial.

Como já foi mencionado, tais análises foram desenvolvidas por Trotski referindo-se ao processo de Cárdenas no México dos anos 30. Ele partia do real apoio que o proletariado oferecia a Cárdenas, chamava ao apoio às medidas de estatizações frente a qualquer ação do imperialismo e via como necessário ir construindo, dentro da cultura proletária cardenista, a corrente operária que, cedo ou tarde, teria que desenvolver-se e afirmar-se contra Cárdenas e não a seu favor. Explicava o limite histórico de classe deste tipo de poder político. E que o proletariado só tinha futuro desenvolvendo sua corrente independente de classe.

Nesta perspectiva, estrategicamente, o Programa de Transição da IV Internacional, do final dos anos 30, Trotski afirma, referindo-se aos países atrasados que:

“A tarefas centrais dos países coloniais e semicoloniais são: a revolução agrária, isto é, a liquidação da herança feudal e a independência nacional, isto é, o rompimento com o jugo imperialista. Estas duas tarefas estão estreitamente vinculadas entre si. (...) Com base no programa democrático revolucionário é necessário opor os operários à burguesia ´nacional´. Em uma certa etapa da mobilização das massas sob as consignas da democracia revolucionária, os sovietes podem e devem surgir. (...) Cedo ou tarde os sovietes devem derrubar a democracia burguesa. Somente eles

serão capazes de levar até o fim a revolução democrática e abrir assim a etapa da revolução

9socialista” .

Retomemos um aspecto – decorrente desta abordagem teórica de Trotski sobre certo tipo de poder político em tais tipos de Estados – e aqui tomado como foco de análise: a esfera sindical em tais processos.

O reflexo desta dinâmica no movimento sindical (na classe operária).

O primeiro e óbvio problema dessa estrutura de poder político em governos de perfil bonapartista é a natureza de sua relação com o movimento sindical. Necessitam apoiar-se nele, mas antes de mais nada, p rec i sam tê - lo sob con t ro le , impedi r seu desenvolvimento classista.

No argumento de Trotski – citado por Coggiola - referindo-se à América Latina:

“A debilidade da burguesia nacional, a falta de tradições de governo local, o crescimento mais ou menos rápido do proletariado, ameaçam os fundamentos de todo regime democrático estável. Os governos dos países atrasados assumem um caráter bonapartista ou semi-bonapartista e diferem uns dos outros pelo fato de que alguns tratam de orientar-se em uma direção mais democrática, tentando buscar apoio entre os trabalhadores e os camponeses, enquanto outros instauram uma forma de ditadura militar e policial. Isto determina igualmente o destino dos sindicatos... O paternalismo do Estado está ditado pelas duas exigências se contradizem: a necessidade do Estado de aproximar-se da classe operária como um todo e ganhar desta forma um apoio para resistir às pretensões excessivas do imperialismo e disciplinar aos trabalhadores colocando-os sob o controle de uma

10burocracia” .

Sua impotência como burguesia e, ao mesmo tempo, a etapa de crises, revoluções e guerras impõe a necessária presença de uma eficiente burocracia reformista, economicista, burguesa, no controle do movimento operário. É a marca registrada desses processos. Tais governos necessitam incluir a classe trabalhadora através da burocracia sindical – inimiga de classe do proletariado – no aparelho de Estado. Não é por outra razão que terminam copiando, de uma ou de outra forma, o modelo sindical corporativo, sempre dentro da contradição em que precisam mobilizar a classe trabalhadora em seu favor e, para consegui-lo, devem ceder em vários aspectos menores.


11Leon TROTSKI. Escritos Latinoamericanos. Buenos Aires: CEIP Leon Trotski, 1999, p.166.

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Para o proletariado,

“o risco reside na conexão dos dirigentes sindicais com o aparato do capitalismo de Estado, na transformação dos representantes do proletariado em reféns do Estado burguês. Mas por maior que possa ser esse perigo, só constitui uma parte do perigo geral, mais exatamente, de uma doença geral: a degeneração burguesa dos aparatos sindicais na época do imperialismo, não apenas nos velhos centros metropolitanos, mas também nos países coloniais. Os líderes sindicais são, em sua esmagadora maioria dos casos, agentes políticos da burguesia, do seu Estado. Na indústria nacionalizada podem tornar-se, já e s t ã o s e t o r n a n d o , s e u s a g e n t e s administrativos diretos. Contra isso, não existe outra alternativa a não ser lutar pela independência no movimento operário em geral; em particular pela formação nos sindicatos de firmes núcleos revolucionários nos quais, ao mesmo tempo em que defende a unidade do movimento sindical, sejam capazes de lutar por uma política de classe de composição revolucionária dos organismos

11diretivos” .

Trotski propõe essa perspectiva considerando a natureza daquele poder de Estado: ambivalente, contraditório, dentro do qual o governo procura funcionar como árbitro, como o Bonaparte de um poder político sem condições de estabilizar-se; a burguesia local é impotente, é associada ao imperialismo, ao mesmo tempo em que é parte de um sistema em decadência histórica, no curso da qual crises econômicas sérias e processos revolucionários são inevitáveis, repetem-se de tempos em tempos. Aliás, tais governos bonapartistas ou semi-bonapartistas costumam aflorar justamente em etapas de ascenso ou ameaça revolucionária de massa. Foi o caso de Chávez. Foi o caso de Cárdenas, Perón, Getulio, todos eles.

Por essa razão, o primeiro movimento do governo dá-se no sentido de atrair para o Estado, os ministérios, o movimento sindical. E promover concessões para os mais pobres. No caso do nacionalismo mais recente, o poder político trata de custear todo tipo de bolsa-esmola, de assistencialismo, no sentido de reunir apoio dos mais pobres, em especial de uma massa camponesa ou das periferias urbanas que o próprio sistema lançou na ruína.

No pensamento de Trotski, o sentido geral desse movimento é o de impedir que a classe operária desenvolva sua independência política. Aqui estamos no cerne da argumentação de Trotski: mesmo com tais manobras, com a busca de apoio popular, tais formas de poder político são completamente impotentes frente ao imperialismo. Procuram arbitrar, desviar, ganhar tempo e vantagens apoiando-se aqui e ali no movimento de massas. Mas sua marcha inexorável, como regime, como

poder e como classe, após uma fase de tentativa de cooptação do proletariado, foi e tem sido rumo ao desastre, o que pode ser compreendido a partir daquelas considerações teóricas de Trotski.

De um lado tal tipo de poder encontra-se frente à sua impotência histórica de ir adiante como movimento burguês independente, e, como parte da mesma dialética, sua busca – a todo custo – de bloquear o desenvolvimento político independente dos trabalhadores e sua aliança revolucionária com os camponeses trava a dinâmica efetivamente emancipatória. Ainda na reflexão de Trotski, tal forma de poder político dura, historicamente, o tempo em que a parte mais ativa do movimento de massa, sobretudo do proletariado, tenda a ir dissipando suas ilusões de uma revolução por cima, de um reformismo pela via do bonapartismo ´populista´. Essa é a sua dialética histórica nesta fase de decadência capitalista.

Considerações finais.

Este quadro, na ótica de Trotski, deixa em aberto uma saída para o movimento sindical e para os revolucionários.

Os marcos estão dados: o do desenvolvimento do movimento operário da sua independência em relação ao Estado – o que implica em um desenvolvimento político que começa apoiando medidas de democracia operária ou contra o imperialismo e, para construir-se como alternativa deve desenvolver-se em oposição àquele poder político bonapartista. Ou, caso contrário, terá que lidar, mais adiante, sem ferramenta política própria, com o desfecho da dura repressão das alas direitas que estão dentro ou fora do governo e que não têm como se acomodar na instável perspectiva nacionalista burguesa.

Do ponto de vista das experiências históricas do pós-II Guerra, a perspectiva analítica formulada por Trotski, na ótica deste artigo, parece mais do que acertada. A dinâmica política desse tipo de poder por ele analisado para a América Latina, tem-se desenvolvido recorrentemente, naquela perspectiva, de burguesias débeis que tendem a uma relação de poder político vassalo frente ao imperialismo, mesmo quando buscam apoiar-se, daquela forma bonapartista, na massa ao mesmo tempo em que lideram Estados cuja fraqueza é transformada a partir da esfera de poder político burguês em impotência política frente ao imperialismo.

A dificuldade das direções sindicais que conseguem desenvolver certa independência política ou pelo menos combatividade de classe tem sido sucessivamente, a de impor formas de democracia operária, de democracia de base, que conduzam ao desvinculamento sindicatos-Estado e, ao mesmo tempo, a falta – que têm recorrentemente revelado - de uma estratégia de luta coerente com o correto diagnóstico da natureza daquele poder político, da dinâmica de classe do


12Juan DAL MASO. La ilusion gradualista: a propósito del nacionalismo, la retórica ´socialistaý el marxismo en América Latina. In: Lucha de Clases (Revista Marxista de Teoria y Política), n.7, junho 2007, p. 127.13Matias MAIELLO. Chávez, Perón, y el ´socialismo del siglo XXI´: los derroteros del ńacionalismo burguês´ en la decadencia capitalista y sus apologistas ´de izquierda´ de ayer y de hoy. In: Lucha de Clases (Revista Marxista de Teoria y Política), n.7, junho 2007, p 107.

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processo e, portanto, da imperiosa necessidade da construção da sua independência política através de partidos operários de massa, através de organismos de luta operários pluripartidários independentes.

Para o movimento sindical – já foi mencionado - daquele diagnóstico proposto por Trotski, desprende-se a avaliação de que um Estado fraco, subalterno e associado pelo poder político ao imperialismo, não tem como dar a passagem a mudanças sociais profundas, a uma revolução social sem que se desenvolva uma luta na perspectiva estratégica de ruptura com tais governos; a ruptura não está no começo do processo, quando impera, na experiência de massa, as ilusões ´populistas´; mas dialeticamente, é desde este mesmo começo que a separação, a construção da independência operária já deve fazer parte. Não se trata de etapas. Inexiste uma via evolutiva, de acúmulo chavista de forças, por exemplo, da mesma forma que não pôde haver um acúmulo cardenista de forças (a etapa cardenista foi sucedida por um ciclo que dura até hoje, de governos neoliberais e pró-imperialistas). Não se trata de uma etapa ou semi-etapa à qual a outra se sucede, mas de um processo cuja dinâmica é determinada – para o bem ou para o mal – pela construção da independência política do proletariado. O “socialismo – como argumentava Trotski – não se constrói pelas mãos da burguesia”.

Seguindo o argumento de Dal Maso, podemos afirmar que

“Trotski considerava necessário que as massas operárias e populares mexicanas, que eram cardenistas - como agora na Venezuela são chavistas -, fizessem uma experiência com sua direção, mas não apresentava (essa dinâmica, GD) como uma étapa necessária´(no sentido de um lento e gradual passo adiante) a da hegemonia cardenista sobre o movimento operário. Por isso mesmo considerava como uma condição indispensável para que a experiência da classe operária se orientasse em um sentido revolucionário, a plena independência da classe operária, de suas organizações de massas e do partido

12revolucionário, em relação ao governo” .

Se considerarmos que a história do século XX esteve tomada por experiências de nacionalistas burgueses que custou duras derrotas ao movimento de

13massas , mais que um debate teórico, pode-se afirmar que estamos diante de uma das mais cruciais discussões estratégicas e políticas que se apresenta para o movimento operário e popular da América Latina.


*Bacharel em Ciências Sociais pela UNESP/ Marília, especialista em Gestão de RH e Psicologia Organizacional pela UMESP/ SP e mestre em Ciências Sociais pela UNESP/ Marília. Atualmente atua junto à rede privada de ensino superior do Paraná e cursa a habilitação de licenciatura plena em Ciências Sociais na UEL/ Londrina.Doutoranda (2009), mestre (2007) e bacharel (2001) em Ciências Sociais pela UNESP/ Marília. Também é especialista (2004) em Psicologia Organizacional pela UMESP/ São Paulo e licenciada (2008) em Ciências Sociais pela UEL/ PR. Atualmente atua como professora de Sociologia na UEM/ PR e é membro do Núcleo de Estudos de Ontologia Marxiana da UNESP/ Marília.

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O Poder Gerencial no Capitalismo Contemporâneo:

Nova Classe ou Novas Relações entre as Classes?

Erika Batista*

ntrodução

As transformações impostas ao chamado “mundo do trabalho” contemporâneo trazem inquietações e dúvidas sobre os caminhos que conduzirão a uma forma de sociabilidade diferente da capitalista, cujos aspectos econômicos, políticos, ideológicos e culturais estão inseridos. Historicamente, tendências e análises são realizadas com o objetivo de apontar qual a melhor opção para se construir uma via alternativa ao esgotamento e degenerescência do capitalismo.

As análises sobre as formas de organização do trabalho e as novas relações daí decorrentes se fazem relevantes para este debate, primeiro porque visam contribuir para a construção desta nova forma de sociabilidade superior a capitalista, e, segundo, porque é um terreno teórico em permanente disputa, tanto pela esquerda e direita, quanto no interior da própria esquerda.

Este artigo não pretende formular veredictos acerca de questões relativas ao mundo do trabalho, e sim participar do debate por meio de reflexões que tragam à tona mais elementos para pensar a relação entre a chamada teoria gerencial e a relação entre as classes fundamentais, assalariada e capitalista. Estaríamos diante da formação de uma nova classe formada pelos administradores do capital, ou, de novas relações entre as classes fundamentais?

O modelo de organização do trabalho proposto por Ford caracterizou um momento da luta entre as classes assalariada e capitalista. Também a “cientifização” do processo de trabalho com Taylor foi além de uma mera inovação no campo administrativo para a melhoria da organização do trabalho. Os limites das técnicas fordistas e tayloristas alteraram a organização do trabalho a partir dos anos 1950, e mais agudamente no fim da década de 1970, quando o capital declarou sua crise estrutural por meio do retrocesso do que ficou conhecido como Welfare State, do estímulo à acumulação predominantemente financeira e da difusão das técnicas de gerenciamento do trabalho utilizadas pela

I empresa japonesa Toyota.

A necessidade de comprometimento do trabalhador com a “missão” da empresa se tornou peça chave para a recomposição da acumulação capitalista, daí as formas de controle e produção da subjetividade ter sido examinadas e pesquisadas por diversos campos científicos com o objetivo de formular uma teoria gerencial na qual o trabalhador se “identifique com a empresa”. Os discursos gerenciais tentam mascarar o antagonismo entre as classes incorporando os conhecimentos da administração científica às correntes comportamentais da Psicossociologia.

A teoria gerencial na versão da chamada Escola de Relações Humanas (ERH) focou o “lado humano” da empresa, ou melhor, o ajustamento do trabalhador ao processo produtivo partindo de uma combinação da Organização Científica do Trabalho (OCT) com estudos psicossociais, formulando técnicas de suavização e ocultamento da natureza real do trabalho alienado.

Neste cenário ganhou importância um novo grupo: os administradores ou gestores do capital, responsável por controlar e disciplinar a força de trabalho por meio da aplicação de uma teoria capaz de produzir uma subjetividade a serviço do capital. Os gestores da força de trabalho seriam legítimos representantes do poder do capital ao mesmo tempo em que também seriam controlados por este mesmo poder.

Partindo-se desta perspectiva, o poder conferido ao grupo dos administradores do capital através da exploração do trabalho alienado, teria criado novos limites para as relações sociais entre as classes assalariada e capitalista, ou, seria correto afirmar que tais transformações teriam determinado uma terceira classe composta por este grupo?

Teoria ou Ideologia Gerencial?

A partir da década de 1950, a necessidade de comprometimento do trabalhador com a “missão” da empresa se tornou peça chave para a recomposição da acumulação capitalista, principalmente durante a reestruturação produtiva dos anos 1970, e os trabalhadores começaram a ser remunerados variavelmente por cumprimento de metas ou a receberem bonificações pelo “zelo” da maquinaria. Acirrou-se o movimento de desafecção sindical e de fragmentação da

O Poder Gerencial no Capitalismo Contemporâneo: Nova Classe ou Novas Relações entre as Classes?

1DEJOURS, C. A loucura do trabalho. São Paulo: Cortez- Oboré, 1992.2OLDRINI. G. Lukács e o caminho marxista ao conceito de “pessoa”. Revista Práxis, nº 3, BH, 1995, p. 112.3Idem, p. 117.4GRAMSCI, A. Americanismo e Fordismo. In: Cadernos do Cárcere. Vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.p. 382.

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5TRAGTENBERG, M. Burocracia e Ideologia. São Paulo: Ática, 1980. p. 216; 219. 6MOTTA, F.C.P. Teoria geral da administração: uma introdução. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.7FAYOL, H. Administração industrial e geral: previsão, organização, comando, coordenação, controle. São Paulo: Atlas, 1965. FORD, H. Os princípios da prosperidade. Trad. Monteiro Lobato. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1967. TAYLOR, F.W. Princípios de administração científica. São Paulo: Editora Atlas, 1990.8MAYO, G.E. The social problems of industrial civilization. Boston: Division of

Research Graduate School of Business Administration, Harvard University, 1945.

solidariedade de classe, concomitante a competitividade e rivalização dos trabalhadores na busca por “reconhecimento e valorização”.

No desenvolvimento desta fase do gerenciamento da força de trabalho, formas de controle e produção da subjetividade foram examinadas e pesquisadas por diversos campos científicos, como a Psicologia, Sociologia e Administração de Empresas, bem como formas de resistência a tais inovações gerenciais foram desenvolvidas pelos trabalhadores,

1como estratégias de defesa psíquicas , os já conhecidos turnover, absenteísmo, boicotes, sabotagens, juntamente às chamadas “greves selvagens”.

É importante salientar que subjetividade e individualidade são tratadas aqui como categorias correlatas da consciência e personalidade, produzidas pela vida material cotidiana e objetiva, onde a objetividade é a “propriedade material primária – inderivável, independente da consciência – de todos os

2seres e de todas as relações entre o que existe” . A subjetividade seria produzida a partir da objetividade numa perspectiva histórico-ontológica de objetivação do homem em sua totalidade social:

“O homem não é imedia tamente personalidade, indivíduo por natureza, mas se o torna na medida em que se eleva para além do seu egoísmo particularista. É o p r ó p r i o p r o c e s s o h i s t ó r i c o , o desenvolvimento social, que torna possível “o modo ontológico da individualidade”, a qual então, longe de preceder, faz parte da estrutura global da realidade como uma derivação última de um longo e complicado processo de mediação, como um resultado de transformações objetivas. [...] A sociedade é consubstancial à natureza dos indivíduos que agem sempre dentro de um conjunto de condições concretas , objetivando-se e exteriorizando-se ao

3mesmo tempo” .

Conforme Gramsci, “a racionalização determinou a necessidade de elaborar um novo tipo humano, conforme ao novo tipo de trabalho e de

4produção” , de modo que a teoria gerencial transcendeu o espaço fabril e alcançou a totalidade das relações, transformando o homem em suas relações sociais. O surgimento da teoria gerencial se deu neste escopo, de educação da classe operária para além da fábrica, tendo por objetivo transformar a mente do trabalhador e produzir uma subjetividade conveniente à sua exploração.

Na mesma trilha de Ford e Taylor, também os discursos gerenciais tentam mascarar e subverter a luta de

classes a uma “ficção” da esquerda, especialmente da marxista. Incorporando os conhecimentos da chamada Administração Científica às correntes comportamentais da Psicossociologia, produzem uma subjetividade alienada que internaliza na “alma” do trabalhador a suposta relação de cooperação e interesses comuns entre “patrão e empregado”.

Mais do que uma teoria gerencial, trata-se do que Maurício Tragtenberg chamou de ideologia gerencial:

“A Teoria da Administração, até hoje, reproduz as condições de opressão do homem pelo homem; seu discurso muda em função das determinações sociais. Apresenta seus enunciados parciais (restritos a um momento dado do processo capitalista de produção) tornando absolutas as formas hierárquicas de burocracia da empresa capitalista [...] dissimula a historicidade de suas categorias [...] constitui-se na mais sofisticada representação ideológica produzida pela pequena burguesia intelectual: a ideologia do fim das ideologias por quem não possui ideologia alguma [...] cultiva a neutralidade científica como o ethos ideológico da Ciência, num universo administrado burocraticamente pelos financiamentos das grandes foundations com o white-collar às suas

5ordens”. (grifos nossos) .

No final da década de 1920 e no bojo desta ideologia gerencial surgiu a Escola das Relações Humanas. Segundo Motta, a precursora autêntica da ERH foi Mary Parker Follet, seguida do psicólogo industrial George Elton Mayo, que desenvolveram pesquisas empíricas em contraposição aos pressupostos

6da Escola de Administração Científica , esta inaugurada com os princípios de administração do trabalho

7formulados por Fayol, Taylor e Ford . A mais reconhecida das pesquisas promovida pela ERH foi realizada por Mayo, o chamado “Inquérito Hawthorne” na indústria Western Eletric, cuja tese afirmava a existência de grupos informais inter-relacionados e chamava atenção para os incentivos psicossociais no

8lugar dos econômicos .

Ainda de acordo com Motta, existem outros teóricos classificados na corrente comportamental, também conhecidos como behavioristas, como Chester Barnard, Harold J. Leavit, Irving Knickerbocker e Alex Bavelas. A Escola Behaviorista também nasce da


9McGREGOR, D. O lado humano da empresa. São Paulo: Martins Fontes, 1980.10BATISTA, E. A fantástica fábrica de dinheiro na trilha do empowerment: o discurso gerencial do Banco do Brasil. Dissertação (Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais). Universidade Estadual Paulista, Marília: 2007.11BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista. A degradação do trabalho no século XX. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.p. 83.

12A gestão do Empowerment seria a nova roupagem da administração americana para a ideologia gerencial, que propaga a ética do que caracterizo como obedecer com iniciativa, apropriando-se tecnicamente dos padrões fordistas-tayloristas de gestão e produção e combinando-os estrategicamente com os padrões de flexibilidade elaborados pela ERH e pelo toyotismo. A síntese da “obediência taylorista” aliada à “iniciativa toyotista”, ou ainda, de uma teoria que integra regras e padrões de produção para as relações humanas no trabalho. BATISTA, op. cit.13BRAVERMAN, op. cit, p. 228.14BERNARDO, João. Depois do marxismo, o dilúvio? Revista Educação e Sociedade, nº 43, dezembro/1992.

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oposição à Escola Clássica e embora partilhasse de quase todos os pressupostos da ERH, rompeu com a idéia de que a satisfação do trabalhador por si só era geradora de maior produtividade.

Também destacaram-se no interior da perspectiva behaviorista da administração Elliot Jaques, Chris Argyris, Rensis Likert e Douglas McGregor, sendo este último o autor da chamada Teoria Y. A formulação de McGregor se deu no intuito de contrapor o enfoque dado pela Escola Clássica (Teoria X) e trazer à tona a responsabilidade da organização em criar as condições necessárias para que o trabalhador aflorasse suas melhores capacidades e fosse possível um clima de

9motivação mútuo .

As teses iniciais da ERH tiveram divulgação a partir dos anos 1930, quando o foco dos administradores era o aumento da produtividade e redução de custos, daí representarem uma nova perspectiva não só do ponto de vista econômico, mas, sobretudo, do ideológico, na medida em que o objetivo era garantir a produtividade a partir da negação do antagonismo entre capital e trabalho e do envolvimento do trabalhador com a tarefa

10realizada .

Existe uma interpretação equivocada de que a ERH tenha rompido ou superado os métodos e princípios tayloristas-fordistas, e que já havia sido apontada em um trabalho pioneiro, de Harry Braverman.

“É impossível superestimar a importância do movimento da gerência científica no modelamento da empresa moderna, e, de fato, de todas as instituições da sociedade capitalista que executam processos de trabalho. A noção popular de que o taylorismo foi “superado” por escolas posteriores de psicologia industrial ou “relações humanas”, que ele “fracassou” [...] ou que está “fora de moda”, porque certas categorias tayloristas, como chefia funcional ou seus esquemas de prêmio incentivo, foram descartadas por métodos mais requintados: tudo isso representa lamentável má interpretação da verdadeira dinâmica do

11 desenvolvimento da gerência “ .

Esta falsa noção contribuiu para que no desenvolvimento da ideologia gerencial até os dias atuais, as vertentes híbridas ou compostas pela OCT e técnicas toyotistas de gerenciamento de trabalho se apresentem como novas ou revolucionárias por enfatizarem o “lado humano” da empresa e supostamente terem abandonado o “lado selvagem” do antagonismo inerente à relação capital - trabalho, e daí terem libertado

o trabalhador, das quais podemos apontar a gestão do 12empowerment como uma das versões atuais.

Outro ponto fundamental que Braverman ressalta é o de que a administração moderna, típica do capital monopolista, separou o vínculo direto entre o capital e seu proprietário individual, e as tarefas de controle e da administração do capital foram transferidos para um corpo técnico gerencial. Nesta nova composição, em que a gerência do capital assume papel determinante, o autor ressalta que enquanto processo de trabalho, mesmo a parte “administrativa” é absorvida por “processo de trabalho rigorosamente análogo ao processo da produção, embora ele não produza artigo algum que não seja a operação e coordenação da

13empresa” . Daí as formas de organização do trabalho ultrapassarem as fronteiras da fábrica e da administração científica e tomarem formas sociais.

Dessa forma vem à tona a questão do poder gerencial, procedente dos novos grupos ligados ao setor de serviços - como diretores, gerentes, administradores, especuladores, – com funções instáveis e posições de alta rotatividade, mas não menos responsáveis pela fatia do poder da classe dominante. Entretanto, este poder gerencial teria resultado em uma nova classe social, em que os gestores são representantes híbridos tanto das classes assalariada como capitalista, ou somente teria delineado novos limites e complexidades entre estas duas classes fundamentais?

O Poder Gerencial: nova classe ou novas relações entre as classes?

Para o autor português João Bernardo, trata-se do que ele denomina de “gestores do capitalismo”, que além de gerirem o processo produtivo, controlam o ambiente de trabalho empresarial, em que a imposição de comportamentos disciplinares escamoteia os objetivos econômicos. Os corpos biológicos são disciplinados e ar t iculados para absorver e disseminar os comportamentos sociais requeridos para a manutenção

14da dominação .

Este controle invisível seria o que o autor chama de “Estado Amplo”, que apesar de sentido em todas as dimensões sociais, não é visível materialmente. Os gestores seriam mais que meros superiores hierárquicos, seriam, sobretudo, uma nova classe efetiva, controladora do tempo dos trabalhadores, do tempo da produção, independentemente de serem proprietários dos meios de produção (capitalistas tradicionais), e por isso, fundamentais na estrutura de dominação capitalista.


15 Idem, p. 398-399. 16MILLS, C. W. A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.17MILLS, C.W. White- Collar: the american middle classes. 50ª Ed. New York: Oxford University Press, 2002.

- 73

18BATISTA, op. cit.19GORZ, A. Adeus ao proletariado. Para além do socialismo. Trad. Ângela Ramalho Vianna e Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. p. 72-73.

Para Bernardo:

“A confusão entre concentração do capital e centralização política é um dos aspectos da confusão entre relações sociais de produção e sistemas jurídicos de propriedade [...] reduz os capitalistas à burguesia, a única proprietária formal dos meios de produção. A classe dos gestores, que se apropria coletivamente do capital mediante o controle exercido sobre certas instituições é assim apagada e confundida com os trabalhadores, na abstração do Povo [...] são conjuntos de administradores quem efetivamente detém cada empresa, através do controle exercido sobre toda a sua atividade. Assim, no capitalismo de tipo ocidental a concentração econômica, em que se fundamentou a hegemonia alcançada pela classe dos gestores, em vez de levar à concentração das formas tradicionais de propriedade, pelo contrário, acarretou a sua

15 fragmentação e dispersão” .

Paralelamente, para o sociólogo americano Wright Mills o poder se dá em três níveis, sendo o político (Estado), o corporativo (grandes Companhias) e o

16militar . Nestas três esferas estão os grupos que tomariam as decisões sobre os rumos do mundo, juntamente à part i lha do poder sobre ele, oportunisticamente dividido de acordo com as alianças do momento. O autor analisa diferentes enfoques do que denomina ser a natureza desta “elite do poder” através da historicidade das contradições e jogos de interesses que permeiam a sociedade norte-americana.

Para Mills, a elite do poder moderna estaria concentrada na empresa, importante mecanismo do poder já que os diretores e principais executivos administram uma das principais fontes de riqueza do capital produtivo, tendo poder sobre o volume e fluxo dos bens de consumo. Mills classifica a participação da fração corporativa da elite do poder como o principal estrato que compõe a nova classe média americana, os chamados white-

17collars .

No bojo deste novo grupo, dos administradores do capitalismo, diluiu-se o poder pessoal no poder funcional. O poder pessoal do chefe ou do “dono” se transferiu para a função que determinado gestor ocupa no processo, passando a ser funcional. Antes, o poder pessoal era conquistado pelo “saber”, o “conhecer” do negócio, e a superioridade de “ser chefe” se demonstrava daí. O poder era pessoal, expunha o chefe para o bem e para o mal de forma que o poder podia ser aceito ou repudiado diretamente na figura do chefe.

Ainda que em determinadas unidades empresariais esta hierarquia pessoal ainda exista, a tendência da organização moderna é a do processo gerido

impessoalmente através do poder funcional, onde cada cargo está prescrito por regras institucionais que regem o processo de trabalho. O controle e a dominação anteriores, que justamente por serem diretos podiam ser também diretamente questionados, hoje é uma questão de “atribuição da função”, previamente determinada pela posição que o sujeito ocupa no organograma da

18empresa .

Gorz trabalhou oportunamente esta faceta das relações de poder e da burocracia empresarial como ideologia de dominação em seu polêmico livro “Adeus ao proletariado”, chamando a atenção para o aspecto institucional da ideologia gerencial:

“A dominação nunca será exercida por pessoas nem dependerá de sua autoridade pessoal. Será exercida pela via institucional, segundo um procedimento definido de antemão, e aqueles que têm por função perpetuá-la serão, eles próprios, executores dominados e não chefes [...] não são mais os homens que possuem o poder, são as funções de poder que possuem os homens [...] Engrenagem de um mecanismo montado, o burocrata é o instrumento de um poder sem sujeito: no aparelho de Estado, como na grande empresa, o poder é o organograma, que foi inventado por homens p a r a g a r a n t i r c o m u m a q u a s e -automaticidade a submissão hierárquica de

19outros homens”. (grifos nossos) .

Supondo que as informações e os processos se encadeiam a partir do simples funcionário, que responde a um superior imediato, que por sua vez é subordinado hierarquicamente a outro, e assim sucessivamente até o topo do organograma, quando se chega a um diretor-geral ou no presidente da organização, este também não representa o poder pessoal de fato, é mais uma alegoria simbólica que vende sua imagem e não se responsabiliza pelo processo de trabalho em si. Há casos em que o próprio presidente de uma unidade de um grupo multinacional não é sequer acionista da companhia.

Recuperando-se o paralelo entre João Bernardo e Mills, este não defende a formação de um grupo independente das frações hegemônicas dos proprietários pertencentes à classe burguesa, e sim uma reorganização administrativa das classes proprietárias, formando uma camada mais ou menos unificada dos white-collars, principal estrato da nova classe média americana. Por outro lado, Braverman converge sua análise para a idéia de uma caracterização por aspecto das classes capitalista e assalariada. “O controle operacional recai cada vez mais sobre um funcionalismo gerencial para cada empresa. Uma vez que tanto o capital como o gerenciamento profissional – em seus níveis mais altos – são retirados, em geral, da mesma classe, pode dizer que


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os dois lados do capitalista, proprietário e administrador, antigamente unidos numa mesma pessoa,

20agora tornam-se aspectos da classe” .

Esta transformação nas relações de poder no trabalho possibilitou uma mobilidade de tal segmento gerencial, mas que parece não significar uma mobilidade de ascensão - descensão suficiente entre as classes fundamentais para a criação de uma terceira classe composta pelos administradores do capital. Para participar como administrador do capital o gestor não precisa possuir a riqueza ou a propriedade dos meios de produção do capitalista, daí a composição dos aspectos da classe dominante com a assalariada.


A partir das proposições trazidas neste artigo, talvez seja mais apropriado interpretar a formação de uma nova relação entre as classes fundamentais, entendidas em sua oposição e relação permanentes. Conforme Marx e Engels, estas classes fundamentais são a burguesia e o proletariado, representados respectivamente pelo capitalista proprietário dos meios de produção, e pelos trabalhadores assalariados vendedores de força de trabalho, a única potencialmente revolucionária. Também admitem a classe média, composta pelos pequenos produtores rurais e industriais, juntamente aos comerciantes, reacionária em sua natureza por agir no limite do oportunismo para ascender ou conservar sua

21posição .

Utilizando esta formulação como critério para divisão fundamental entre as classes, os administradores do capital seriam uma fração da classe assalariada que detém maior parcela do poder por estar diretamente vinculado à estrutura de dominação do topo para baixo, representando, portanto, os interesses dos que detém a propriedade privada. Neste caso, os apontamentos de Braverman são mais adequados na medida em que o autor trabalha com uma caracterização dos administradores que utiliza aspectos das classes fundamentais, sem convertê-los em uma terceira classe.

Tal fração da classe proletária parece dotada de uma subjetividade alienada num nível mais complexo na medida em que ideologicamente representa a classe dominante, sem deixar de pertencer economicamente à classe trabalhadora. O grupo dos white-collars ou dos gestores já adquiriram os valores da classe capitalista, já foram cooptados ideologicamente pela doutrina administrativa gerencial, o que dificulta, senão obstrui, a solidariedade de classe necessária para a tomada de uma consciência emancipada.

O estranhamento no interior desta fração da classe assalariada permite que a figura pessoal do

gerente, independente da posição que ocupe, se esconda atrás do poder funcional, o que facilita a aplicação das técnicas gerenciais de controle, que, por outro lado, também dependem do poder pessoal na medida em que em alguns casos é o carisma individual que motiva o funcionário a “vestir a camisa”. Tem-se a impressão de que o gestor é dividido entre o homem e o chefe, o pessoal e o profissional, permitindo que enquanto “homem” o gestor se aproxime dos subordinados pelo poder pessoal, e enquanto “chefe” imponha o poder funcional.

Entretanto, o poder pessoal e o poder funcional são manipulados na ideologia gerencial, dificultando a contestação direta porque dilui o poder gerencial e a figura do opressor acaba por oscilar entre o chefe, as normas, os manuais, o regulamento. Em outras palavras, a contraditoriedade da ideologia gerencial é conveniente à sua manutenção neste aspecto.

Dessa forma, a Teoria Geral da Administração e as práticas gerenciais cumprem um papel ideológico, que se estende para além do espaço de trabalho, atingindo dimensão social e convertendo-se num processo de “educação capitalista” para a classe proletária que serve ao ocultamento da luta de classes e à manutenção do processo de exploração da força de trabalho e da reprodutibilidade do capitalismo. Segundo Meszáros:

“Como necessidade igualmente inevitável sob o sistema do capital, não basta que se imponha a divisão social hierárquica do trabalho, como relacionamento determinado d e p o d e r , s o b r e o s a s p e c t o s funcionais/técnicos do processo de trabalho. É também forçoso que ela seja apresentada como justificativa ideológica absolutamente inquestionável e pilar de reforço da ordem estabelecida. Para esta finalidade, as duas categorias claramente diferentes da “divisão do trabalho” devem ser fundidas, de modo que possam caracterizar a condição, historicamente contingente e imposta pela força, de hierarquia e subordinação como inalterável ditame da “própria natureza”, pelo qual a desigualdade estruturalmente reforçada seja conciliada com a mitologia de

22“igualdade e liberdade” .

20BRAVERMAN, op. cit., p. 221.21MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. In: COUTINHO, C. N. [et.al.] O Manifesto Comunista 150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.

22MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, Campinas: Editora da Unicamp, 2002.p. 99.


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Estado Democrático e Social de Direito, Mística

e Modo de Produção Capitalista:Uma leitura que refuta o rótulo economicista

Hélio de Souza Rodrigues Júnior*

ntrodução

O presente texto tem como ponto de partida que o Estado democrático e social de direito exerce a função de salvaguardar e legitimar o modo de produção capitalista. O costumeiro argumento para contrapor essa tese diz, por um lado, que ela não leva em conta o simbolismo de uma dimensão prospectiva de conquistas, o que evitaria perder de vista o grande avanço que se supõe para o desenvolvimento da humanidade a emancipação política que esse modelo de Estado garante. E, pelo outro lado, essa tese pressupõe que o Estado democrático e social de direito atenderia aos fins econômicos do capital.

Assim, a maneira escolhida para submeter à crítica o Estado democrático e social de direito foi politizá-lo, contextualizá-lo e refutar o argumento que busca colar nos críticos ao Estado democrático e social de direito a pecha de economicistas. É o que se verá a seguir.

Politizando a questão sobre o Estado democrático e social de direito

Nos dias de hoje, de predomínio neoliberal, há uma mística apologia ao chamado Estado democrático e social de direito. É bastante comum a concepção de que só existe o caminho de organização política propugnado por esse modelo de Estado, uma vez que o Estado democrático e social de direito é considerado como a única forma de organização política da sociedade capaz de garantir os clássicos direitos individuais e promover as ações de bem-estar social.

Também é corriqueiro o pensamento de que o Estado democrático e social de direito se opõe ao neoliberalismo, seja porque este pode ser caracterizado pelo binômio desmanche dos mecanismos de bem-estar

1social e precarização da classe trabalhadora , ou como conseqüência daquela compreensão de que o alargamento dos titulares dos clássicos direitos individuais e o surgimento dos direitos sociais foram

I contrapontos ao puro e desenfreado liberalismo praticado após as revoluções burguesa e industrial, isto é, como se o Estado democrático e social de direito fosse readaptado para os padrões atuais e se transformasse em uma

2resposta às políticas neoliberais .

Todavia, para desnudar essa concepção mística que envolve o Estado democrático e social de direito, é bom lembrar que esse modelo de Estado é apenas rótulo de um Estado capitalista. No seu núcleo estrutural estão

3às relações sociais do modo de produção capitalista , o que significa que: um modelo de Estado capitalista não reflete as diferenças entre os indivíduos existentes na sociedade, muito pelo contrário, se fazem abstrações dessas diferenças para que possa ser declarado que todos os indivíduos são iguais, mantendo presente, por um lado, a concepção de que os indivíduos que são membros da comunidade política são seres abstratos, e, pelo outro lado, a dicotomia sociedade civil e Estado, isto é, como se o palco da política fosse exclusividade da esfera estatal.

Não obstante, o olhar crítico sobre o Estado democrático e social de direito focalizaria a perspectiva de um modelo de Estado que diretamente contribuiu para o processo de acumulação e reprodução em momentos de

4crise capitalista , visto que ele compõe e brotou do modo de produção capitalista.

Por sua vez, se esse modelo de Estado ampliou os beneficiários dos direitos individuais e criou os direitos econômicos, sociais e culturais – servindo como resposta para evitar uma convulsão social, sem se dirigir à causa dessa convulsão –. Ele funciona como controle social, tanto que, supostamente, não é possível qualquer tipo de reivindicação e disputa por fora das regras estabelecidas, pois se presume que tal modelo de Estado possibilita que todos os interessados sejam ouvidos e, a partir daí, o consenso seja alcançado.

*Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB (Centro Universitário de Brasília); especialista em Filosofia Política pela UFC (Universidade Federal do Ceará) e especialista em Direito Constitucional pela UNIFOR (Universidade de Fortaleza). Assessor Técnico do Senado Federal. Professor de Direito da Universidade Católica de Brasília.1NEGRÃO, João José. Para conhecer o neoliberalismo. São Paulo: Publisher Brasil, 1998

2SALAMA, Pierre; VALIER, Jacques. Neoliberalismo, pobrezas y desigualdades en el Tercer Mundo. Buenos Aires: Minõ y Davila editores, 1999; SARLET, Ingo Wolfgang. Reforma constitucional e proibição de retrocesso. In: ___ (Org.).Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003, cap. 4, p. 301-394.3MANDEL, Ernest. Teoria marxista do Estado. Lisboa: Antídodo (Coleção Argumentos, v. 3), Trad. M Reis, 1977.4MANDEL, Ernest. Tratado de economia marxista. 3º edicíon, México: Ediciones Era, 1972, Tomo II, p. 112-128.


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Ora, um modelo de Estado que, por um lado, contribuiu para o processo de acumulação e reprodução capitalista e, pelo outro lado, funciona como controle social, indicaria a necessidade de serem definidas as noções, elementos e compreensão sobre se isso é tática ou estratégia política de enfrentamento ao modo de produção capitalista.

De qualquer modo, são vários os exemplos atuais da mística que envolve o Estado democrático e social de direito, tais como, o debate sobre a questão do uso de algemas ou de interceptações telefônicas, ou ainda, a tentativa de criminalizar os movimentos sociais, pois estes não agiriam dentro dos parâmetros da lei, isto é, das regras emanadas de um Estado democrático e social de direito.

Interessante lembrar sobre este último exemplo que o Texto Constitucional brasileiro garante o direito de propriedade privada dos meios de produção. Aliás, ao estabelecer que a propriedade privada deva cumprir com sua função social, o Texto Constitucional cria restrições às ações de expropriação por meio de proteção especial àquelas propriedades que cumprem a função social. Por conseguinte, tal Texto está dizendo para os socialistas de fé no misticismo do Estado democrático e social de direito que lutar contra a apropriação dos meios de produção é medida inconstitucional.

O exemplo concreto sobre o antagonismo da luta dos movimentos sociais e o Estado democrático e social de direito dos dias de hoje é paradigmático, porque simboliza que a concepção que cria uma apologia ao Estado democrático e social de direito – e seus respectivos direitos fundamentais de proteção individual e social – restringe o campo da atuação política ao modelo liberal-capitalista, fazendo com que a luta de classe fique descaracterizada de qualquer ruptura com a ordem posta. E sem que a luta de classe represente ruptura social, se está dizendo por meio indireto que não há outro caminho a seguir, ou alternativa, a não ser o rumo do modelo de organização política da sociedade dado pelo modo de produção capitalista.

Contextualizando o Estado democrático e social de direito: Economicismo e Ambiguidades

Note-se que, uma vez que a crítica formulada já parte do patamar de que o Estado democrático e social de direito exerce a função de salvaguardar e legitimar o modo de produção capitalista, um argumento para se contrapor a esse ponto de partida é minar o seu pressuposto: de que o Estado democrático e social de direito decorreria do interesse e da necessidade do próprio capital em preservar uma dada estrutura social que com ele fosse adequada. Por conseguinte, a objeção à crítica ocorreria no sentido de que o seu embasamento está em que esse modelo de Estado é exclusivamente reflexo da economia.

Como isso, argumentar-se-ia que no século XIX o Estado moderno podia ser estudado como reflexo do poder de uma classe dominante, pois naquela época as influências classistas sobre as leis podiam ser facilmente percebidas no caráter da legislação, das ações estatais, e na natureza das decisões judiciais referente às penalidades impostas aos crimes contra a propriedade. Mas, a ascensão no início do século XX do Estado de bem-estar social em alguns países europeus afastaria tal situação, inclusive, com reflexos em um particular Estado social brasileiro que foi construído ao longo do

5século XX . De qualquer modo, “o crescimento do movimento trabalhista, a ampliação do direito de voto, a difusão da reforma social e as doutrinas igualitárias, tudo isso provocou modificações na legislação, na atmosfera social que influencia as decisões judiciais e a

6própria estrutura social” .

Por outro lado, poderia ser novamente invocado o argumento de que o Estado é produzido pela estrutura econômica, mas interagindo em relação a ela, nela produz alterações. A economia condiciona o Estado e o direito, mas o Estado e o direito condicionam a economia, daí que as relações concretas da sociedade

7condicionam o Estado e o direito positivo .

Não obstante tais hipotéticas refutações ao ponto de partida da crítica desenvolvida neste texto, este aborda o Estado democrático e social de direito como reflexo do modo de produção capitalista e não, exclusivamente, do capitalismo. Ou seja, não se trata de relacionar, exclusivamente, o Estado democrático e social de direito como reflexo da economia, mas ao modo de produção que é capitalista.

Não é que os teóricos e defensores do Estado democrático e social de direito neguem a existência, a influência e a repercussão das estruturas sociais, mas subordinam a concepção desse Estado ao seu sistema de pensamento, de tal modo que a história social perde-se, enquanto que as idéias sobre o que é, como é e o porquê do Estado democrático e social de direito prevalecem sobre a história social, isto é, as abstrações se tornam o fundamento da realidade ou a explicação da história social. E isso significa: transformar esse modelo de Estado em processo de evolução natural, ocultando o elemento significativo de que o Estado e seus respectivos direitos foram estabelecidos para realizar e reproduzir certo modo de funcionamento social.

Assim é que “se todo Estado tende a criar e a manter um certo tipo de civilização e de cidadão (...), tende a fazer desaparecer certos costumes e atitudes e a difundir outros, o direito será o instrumento para essa finalidade (...). A concepção do direito deverá ser

5DRAIBE, Sônia M. As políticas sociais brasileiras: diagnóstico e perspectivas. Para a Década de 90 Prioridades e Perspectivas de Políticas Públicas, Brasília, v. 4, p. 1-66, mar.1990. Paginação irregular.6BOTTOMORE, Thomas Burton. Controle social. In:__. Introdução à Sociologia. 6.ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1975, cap. 4, p. 238.7GRAU, Eros Roberto. Nota introdutória sobre o direito. In: __. O direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2000, p. 34-35.

Estado Democrático e Social de Direito, Mística e Modo de Produção Capitalista: Uma leitura que refuta o rótulo economicista

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libertada de todo resíduo de transcendência e de 8absoluto, praticamente de todo fanatismo moralista” .

A conclusão da crítica de que o Estado democrático e social de direito reflete o modo de produção capitalista compreende o sentido de que ele vai ao encontro desse modo de produção. Entretanto, esse ir ao encontro tem o significado de uma representação harmônica; e deve ser esclarecido para evitar a ambigüidade de concebê-lo como instância apartada da sociedade e/ou técnica-neutra, quiçá instrumento político manipulável. O esclarecimento é notório: como o Estado democrático e social de direito está assentado em uma base social capitalista, garante a prevalência daqueles direitos, instituições sociais, estruturas econômicas, políticas, valores, cultura que viabilizam, consolidam, e mantêm a formação da base social capitalista, de modo que sob tal prisma o Estado democrático e social de direito decorre do interesse e da necessidade da base social capitalista em constituir, consolidar e manter uma dada estrutural social que com ele fosse adequada, ou melhor, o Estado democrático e social de direito não é instrumento da classe burguesa, ele é a representação dessa classe.

O desdobramento da crítica em relação ao prisma do modo de produção indica a noção de que os tipos de Estados não são imagens de um fenômeno social natural e eterno que atravessaria as épocas e as sociedades

9sempre iguais a si próprias . Ao contrário, os modelos de Estados funcionariam de maneira diferente, segundo o modo de produção predominante. Com isto, repita-se, eles não são instrumentos da classe burguesa, eles são a representação dessa classe.

Portanto, o Estado democrático e social de direito é parte de um todo social complexo e específico, no caso, do modo de produção capitalista, porquanto ele

10não é compreensível senão em função deste todo . E tal, significa que esse todo dá ao Estado democrático e social de direito uma concepção, uma função, um espaço, atribuindo-lhe características próprias.

Definitivamente, o ponto inicial da crítica adotada neste texto ao Estado democrático e social de direito não o coloca como reflexo da economia, ou mesmo como puro reflexo causal do capitalismo.

11Resignificando Mialle , é preciso apreciar o Estado democrático e social de direito para evitar fazer dele um quadro investido pela classe burguesa. O Estado não é instrumento mais ou menos dócil e eficaz entre as mãos da classe burguesa: ele é uma das formas sociopolítica dentro da qual esta classe exerce o seu poder. Em suma, o Estado democrático e social de direito não é instrumento a serviço de um sistema sociopolítico, ele é partes desse

sistema, isto é, ele é reflexo do modo de produção capitalista.

Cumpre acrescer que afirmar que esse modelo de Estado é reflexo, ou representação, do modo de produção capitalista significa que existem indicadores observáveis que mostram, de maneira inequívoca e concreta – ou que permite uma leitura coerente e sustentável –, as formas nas quais tal Estado se acha organicamente ligado à reprodução dos interesses desse modo de produção. Aqui não se faz mais do que levantar a questão, na medida em que não se quer extrapolar o objeto delimitado neste texto.

Pode-se apenas dizer que no bojo das classes dominantes, uma classe ou fração prepondera politicamente sobre as demais, na medida em que os interesses econômicos são satisfeitos em caráter prioritário. Contudo, surge um problema: como caracterizar de um modo preciso a preponderância política de uma classe ou fração? O indicador mais seguro dessa preponderância é a repercussão objetiva da ação estatal no sistema de posições relativas de que participam as classes dominantes e as frações de classe dominante, de maneira que se pode sustentar que detém preponderância a classe ou a fração cujos interesses são prioritariamente contemplados pela política econômica e

12social do Estado .

Quando se sustenta que o Estado democrático e social de direito é reflexo do modo de produção capitalista e, por isso, salvaguarda e legitima esse modo de produção, não ferindo de morte os seus interesses mais genuínos, é preciso ter sempre presente dois aspectos:

Primeiro, de que existe um consenso, onde é possível conciliar interesse antagônico das forças políticas, bem como, de que existe uma instância neutra e técnica onde esse consenso é possível de ser realizado.

No que toca a idéia do consenso, o pressuposto é que ele foi obtido pelo combate político travado, tal parece ser objeto de decisões políticas que se harmonizaram. Por sua vez, no que diz respeito à questão da instância neutra, o modo de produção enseja a existência de uma estrutura política, cuja função primeira seja ordenar a desordem, reconciliar aparentemente indivíduos, velar pela salvação pública denominada de bem comum; daí o porquê do valor desta (aparente) função de apaziguamento e de regulamentação pacífica dos conflitos, via a estrutura estatal distinta e superior aos

13interesses travados na sociedade .

Segundo, é perfeitamente razoável pressupor que esse modelo de Estado possa contrariar interesses do modo de produção dominante. Mas, também, é perfeitamente razoável pressupor que os interesses do modo de produção dominante contrariados pelo Estado democrático e social de direito sejam pontuais e temporários, não aqueles mais genuínos, de modo que o

8GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política Vol 3. Ed. Civilização Brasileira, 2º edição, Caderno 13, 2002, p. 28.9MIAILLE, Michel. Uma introdução crítica ao direito.Lisboa:Moraes Editores, 1979, p. 79.10MILIBAND, Ralph. O Estado na sociedade capitalista. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972, p. 49.11MIAILLE, Ob. Cit. p. 124-128.

12GRAU, Eros Roberto. Ob. Cit. p 139-140.13MIAILLE, Michel. Ob. Cit. p. 45.


Estado não irá ferir de morte o modo de produção que lhe seja mais característico. Aliás, diz Gramsci:

“O fa to da hegemonia p ressupõe , indubitavelmente, que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no

14núcleo decisivo da atividade econômica” .

É importante esclarecer que quando a crítica formulou e sustentou que o Estado democrático e social de direito é reflexo do modo de produção capitalista, e por isso atende aos seus interesses mais genuínos com prioridade, e que não será capazes de ferir de morte tais interesses, ela não desconsidera a existência de ambigü idades soc i a i s , i nc lus ive enquan to complexificação da análise.

Com efeito, essas ambigüidades do modo de produção capitalista podem ser compreendidas da

15seguinte maneira: resignificando Netto , denota-se que a funcionalidade do Estado democrático e social de direito para o modo de produção capitalista não equivaleria a verificá-los como decorrência natural, ou puro nexo causal, do Estado como instrumento ou capturado pela burguesia. A existência deste Estado apenas coloca a sua possibilidade, na medida em que a concretização dependeria da luta de classes, vez que os direitos sociais, como por exemplo, decorrem fundamentalmente da capacidade de mobilização e organização da classe trabalhadora “a que o Estado, por vezes, responde com

16antecipações estratégicas” .

E esse autor desfecha:

“Entretanto, a dinâmica das políticas sociais está longe de esgotar-se numa tensão bipolar – segmentos da sociedade demandante/Estado burguês no capitalismo monopolista. De fato, elas são resultantes extremamente complexas de um complicado jogo em que protagonistas e demandas estão atravessados por contradições, confrontos e conflitos. A diferenciação no seio da burguesia, os cortes no conjunto dos trabalhadores e as próprias fissuras no aparelho do Estado (que, com autonomização da atividade política, levam alguns de seus atores profissionais a uma relação muito mediatizada com as classes sociais) tornam a formulação

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das políticas sociais processos que estão muito distanciados de uma pura conexão causal entre os seus protagonistas, os seus interesses e as

17suas estratégias” .

Portanto, o modo de produção capitalista permite compreender o Estado democrático e social de direito, por exemplo, com ambigüidades de três facetas: desentendimentos na classe burguesa, capacidade de organização e mobilização da classe trabalhadora e as fissuras da instituição do Estado. Veja-se, abaixo, cada uma delas.

Desentendimentos na classe burguesa

18Salama e Valier dizem que o Estado, tomado em seu conjunto, é o local onde se armam os conflitos entre as diferentes camadas da burguesia; pode assim ser levado a impor a uma parte da classe determinadas soluções adequadas ao interesse político da classe em seu conjunto. Disto, decorre que, como a dominação política da burguesia funda-se, em última instância, sobre a acumulação progressiva do capital, ela implica na eliminação de uma parte da burguesia.

19Por outro lado, esses autores ainda dizem que, como a classe burguesa recebe sua legitimidade política das eleições, que ela criou, e, portanto, necessita do apoio político das camadas subalternas, o Estado, por meio de composições, pode resolver provisoriamente essa contradição. Isto indica uma das respostas, ou das leituras possíveis, ao fato de que existem conquistas sociais no modo de produção capitalista. São exceções que confirmam a regra geral, perfeitamente compreendida na dimensão de que o Estado democrático e social de direito reflete o modo de produção capitalista, pois o capital cedeu para manter os negócios do capital. Ele cedeu para assegurar o seu modo de produção.

E, algumas vezes, não se trata de ceder, mas de atendimento aos interesses do próprio modo de produção para eliminar parte da própria burguesia e assegurar os monopólios, correspondendo àquelas disputas dentro do espaço político estatal, onde poderão ocorrer os conflitos

20entre a própria classe dominante .

Vale acrescentar, apenas a título de reforço da argumentação e sem maiores desdobramentos, três outros pontos que permitem a leitura de que não se trata de cessão, mas de atendimento aos próprios interesses do modo de produção capitalista: primeiro, a oferta de políticas sociais em vista da demanda das classes subalternas pode ser oferecida na medida exata em que elas podem ser refuncionalizadas, e os exemplos são inesgotáveis, tal como a sincronia entre previdência

14GRAMSCI, Antonio. Ob. Cit. p 48.15NETTO, José Paulo. As condições histórico-sociais da emergência do serviço social. In:___. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2001, cap. 1, p. 33.16Idem. p. 33.

17Idem. p. 33.18SALAMA, Pierre; VALIER, Jacques. As intervenções do Estado. In:______.Uma Introdução à Economia Política. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1975, cap.9, p. 17619Idem, p. 177.20Idem, p. 177.


21NETTO. Ob. Cit. p. 29.22MÉSZÁROS, István. A taxa de utilização decrescente no Estado Capitalista. In:___. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Editora da Unicamp e Boitempo editorial, 2002, cap. 15, p. 634-674.23SAES, Décio Azevedo Marques.Cidadania e capitalismo: uma crítica à concepção liberal de cidadania. Revista crítica Marxista, n, 16, 2003, p. 12.24Idem. p. 12.

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25 Idem. p. 28.26Idem. p. 28.27Idem. p 28.28Idem. p. 28-29.29Idem. p. 29.30RUA, Maria das Graças. Análise de política públicas: conceitos básicos. In: Maria Carvalho. (Org.). O Estudo da Política: Tópicos Selecionados. Brasília: Paralelo 15, 1998, p. 231-260. (coleção relações internacionais e política)

pública e privada e as empresas privadas no setor da 21saúde – serviços, instrumental, medicamentos .

Segundo, as obras e serviços não lucrativos são custeados ou subvencionados pelo Estado, além do que não são desprezíveis as demandas e gastos do Estado; e terceiro, a melhoria na qualidade de vida do trabalhador, via o consumo, acolhe os interesses do próprio modo de produção capitalista, atendendo ao imperativo abstrato da realização do capital, vez que do ponto de vista do capital, o trabalho não é somente fator de produção, em seu aspecto de força de trabalho, mas também a massa consumidora tão vital para o ciclo normal da reprodução

22capitalista . Com uma pequena política social já se evita, como por exemplo, na linguagem econômica, certas limitações imediatas da demanda flutuante do mercado.

Todavia, se a concepção da crítica ao Estado democrático e social de direito fosse restrita aos três pontos acima levantados, seria ponderável buscar atribuir à crítica defendida a pecha de puro nexo causal da economia. Mas é importante perceber, e acentuar, que os três pontos levantados são imperiosas fontes de análise para a compreensão do modo de produção capitalista, e, no caso, eles foram conjugados com o que se chamou de desentendimento entre as classes dominantes.

Capacidade de organização e mobilização da classe trabalhadora

23Saes nos diz que os teóricos do Estado democrático e social de direito caracterizam este modelo de Estado como processo evolutivo natural, apagando os limites impostos pelo modo de produção capitalista e ocultando as tensões e dificuldades inerentes ao processo de conquista dos direitos, subestimando a assinalada capacidade de mobilização e organização da classe trabalhadora.

Efetivamente, esse autor diz que “o processo de criação de direitos numa sociedade capitalista é necessariamente um processo conflituoso, embora não

24contraditório” . Ele cita Göran Therborn como quem melhor conceituou essa dinâmica, na medida em que as lutas populares seriam, desde que potenciadas pelas dissensões internas das classes dominantes nos planos nacional e internacional, o fator determinante no processo global de criação de direitos na sociedade capitalista. Portanto, sem nenhuma perspectiva de evolução histórica natural, linear, gradativa e seqüencial, como faz crer os teóricos da formação do Estado democrático e social de direito.

25Saes constrói uma dialética da forma-sujeito de direito para demonstrar o papel da mobilização e

organização da classe trabalhadora que, para os fins deste texto, resume-se no seguinte sentido: a coexistência, na forma jurídica, de uma prerrogativa real (a liberdade de movimentos) e uma declaração ilusória (a declaração de igualdade) provocam com que as classes trabalhadoras procurem obter, por meio da conquista de novos direitos, aquilo que a instauração de direitos civis prometeu e não cumpriu: a realização da igualdade entre os homens. Assim, a defasagem entre aquilo que é proclamado e aquilo que é cumprido pelo Estado na aplicação da lei leva os trabalhadores à ação reivindicatória, de que pode resultar, como por exemplo, na implantação de certos direitos sociais. A nova corporificação da forma-sujeito de direito, por um lado, proclama a legitimidade e a possibilidade de realização do princípio da igualdade sócioeconômica, e pelo outro lado, “ela só garante um padrão material mínimo a todos, acomodando-se, portanto, a processos capitalistas de concentração

26econômica que só fazem crescer a disparidade social” .

É que contra a operação dessa dialética, continua o autor, levanta-se “a vontade política das classes dominantes, bem como a dos segmentos

27burocráticos que as representam” sempre empenhadas “em reduzir os direitos vigentes na sociedade capitalista àquele mínimo indispensável à reprodução do próprio

28capitalismo” . Essa vontade política só se enfraquece “quando surgem dissensões políticas importantes no seio das classes dominantes. É nessas circunstâncias que se abrem melhores oportunidades para as lutas populares,

29delas podendo resultar a criação de novos direitos” .

Assim, essa capacidade de organização e mobilização da classe trabalhadora, repita-se, consubstancia faceta das ambigüidades do modo de produção capitalista, perfazendo com que o Estado democrático e social de direito possa ser melhor compreendido como reflexo inteligível desse modo de produção.

As fissuras da instituição do Estado

No que tange as fissuras da instituição do 30Estado, pode-se resenhar Rua para entendê-las, pois

muito embora esta autora esteja situada na restrita e despolitizada ótica de que as políticas sociais são relações entre a sociedade civil demandante e o Estado, inclusive, porque a política pública compreenderia um conjunto de procedimentos destinados à resolução pacífica de conflitos em torno da alocação de bens e recursos públicos, resta demonstrada a compreensão de que existem ambigüidades sociais no modo de produção capitalista que abrem espaço para os direitos sociais,


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como exemplo maior para o Estado democrático e social de direito. Todavia, isso não significará neutralidade ou tecnicidade da instituição estatal.

31Assim, Rua reconhece a influência da sociedade internacional, ou entidades de direitos internacionais, demandando a criação de políticas públicas e/ou direitos sociais. Ou ainda, ela enumera como espécies de atores políticos, de um lado, os chamados atores públicos, que seriam os agentes políticos e os burocratas e, do outro lado, os chamados atores privados, a saber: empresários, trabalhadores, agências internacionais, outros governos, atores

32transnacionalizados e a mídia , todos tendo “algo a ganhar ou a perder com as decisões relativas a uma política”.

34Ademais, a autora diz que para entender o processo de formulação e implementação de uma política pública é preciso saber que os atores fazem alianças ou entram em disputas, e tal se dá em função das suas preferências e expectativas de resultados. Daí se forma as

35arenas políticas. E mais, Rua nos afirma que no jogo do poder são diversos os procedimentos ou táticas utilizados pelos atores, tais como a persuasão; o intercâmbio ou a troca de favores, de apoio e até mesmo de benefícios, como dinheiro, cargos, bens, entre outros; as ameaças, expressas pela imposição de danos ou prejuízos ou pela suspensão de favores ou de benefícios; manifestação pela imprensa ou greves de fome, além de manifestações coletivas; o exercício da autoridade, com a imposição de obediência, e as negociações e os compromissos, numa tentativa de encontrar soluções negociadas nas quais “todas as partes sintam-se mais ou menos satisfeitas, como se todos acreditassem que ganharam alguma

36coisa” .

F ina lmen te , quando Rua t r a t a do comportamento dos atores nas formulações das políticas públicas, ela diz que “tudo é permeado por cálculos

37políticos, de curto, médio ou longo alcance” , de maneira que, nesse jogo, para obter vantagens individuais, coletivas, organizacionais, os atores fazem todas as alianças possíveis, usam de todas as estratégias e de todos os recursos disponíveis. O que moveria o jogo do poder não é a lógica de um curso de ação, nem as rotinas, mas o poder efetivo e as habilidades políticas dos proponentes e dos adversários de uma alternativa para negociar, barganhar até obter uma solução que lhes seja satisfatória, em um determinado problema político. Neste contexto é que surgem as decisões.

E pode-se finalizar:

“Nada disso garante que a decisão se transforme em ação e que a demanda que deu origem ao processo seja efetivamente atendida. Ou seja, não existe vínculo ou relação direta entre o fato de uma decisão ter sido tomada e a sua implementação. E também não existe relação ou vínculo entre o conteúdo da decisão e o resultado da implementação. (...) Essa efetiva resolução não significa nada tecnicamente perfeito. Significa o que politicamente se considera uma 'boa decisão': uma decisão em relação à qual todos os atores relevantes acreditem que saíram ganhando algo e nenhum deles acredita que saiu completamente prejudicado. Como essa solução é realmente difícil de ser obtida, apesar de todas as possibilidades de negociação, então, considera-se também uma boa decisão aquela que foi a melhor possível naquele

38momento específico” .

Todos esses complexos e freqüentes conflitos ventilados por Rua reforçam a compreensão de que o Estado democrático e social de direito – e seus respectivos direitos econômicos, sociais e culturais, além das políticas públicas – pode muito bem representar não uma resposta, ou contraponto, ao neoliberalismo, na razão em que nada garante que a decisão se transforme em ação, mas apenas uma decisão política que foi uma boa decisão porque foi a melhor possível naquele momento específico.

O jogo político que é travado na formalização do Estado democrático e social de direito demonstra que esse Estado e respectivos direitos, muitas vezes, advêm das fissuras da instituição estatal; de modo que estas fissuras são elementos que afugentam a pretensão idílica de um Estado neutro, técnico, que não representaria os conflitos travados na sociedade.

Nesse diapasão, compreender que o Estado democrático e social de direito reflete o modo de produção capitalista, e que nesse modo de produção existem ambigüidades que envolvem complexidades e contradições, não nega o predomínio marcante desse modo de produção para a constituição daquele modelo de Estado.

Conclusão

Portanto, à guisa de conclusão, pode-se dizer que o foco do texto foi submeter à crítica o Estado democrático e social de direito, desmistificando a sua relação com o modo de produção capitalista. Assim, tornou-se necessário politizar e contextualizar o Estado democrático e social de direito, desnudando o seu caráter de salvaguarda e de legitimação do modo de produção capitalista, além de refutar a pecha de economicista.

31Idem. p. 234.32Idem.p 236-238.33Idem. p. 238.34Idem. p. 241.35Idem. p. 243.36Idem. p. 243.37Idem. p. 250-251. 38Idem. p. 251.


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Por conseguinte, o texto sustentou que esse modelo de Estado não é instrumento, técnico e neutro,que se opõe ao neoliberalismo, muito pelo contrário, ele é uma das formas sócio-políticos dentro da qual a classe dominante do capital exerce o seu poder.

É importante perceber que a compreensão do Estado democrático e social de direito como reflexo do modo de produção capitalista significa que esse modo de produção atribui ao Estado concepções, funções, espaços e características; indicando que esse modelo estatal está assentado no modo de produção capitalista, e será incapaz de ferir de morte os interesses basilares desse modo de produção, pois dificilmente a classe dominante iria usar o poder contra si mesma.

Logo, tal consideração afasta a concepção do Estado democrático e social de direito do conjunto de concepções míticas, que supostamente consagram conquistas de todas as sociedades ou da humanidade e poderá caminhar ao rumo do socialismo.

Por sua vez, a crítica ao Estado democrático e social de direito não têm sustentação no monocausalismo economicista, visto que a argumentação exposta refuta, decisivamente, a tese de um predomínio dos motivos econômicos na crítica ao Estado democrático e social de direito, adotando um ponto de vista que complexifica a questão para a totalidade, uma vez que a crítica ampliou o leque do debate para as ambigüidades desse modelo de Estado, que corporifica o desentendimento da classe burguesa, a capacidade de organização e mobilização da classe trabalhadora e as fissuras da instituição do Estado como aberturas que viabilizam os direitos econômicos, sociais e culturais, além das políticas públicas.


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*Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina com doutorado em Ciências Sociais-Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenador do Núcleo de Estudos de História da América Latina (NEHAL) da Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected]

O Itamaraty e o Golpe de Estado no Chile

Waldir José Rampinelli*

Resenha do livro:MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Luiz Alberto Moniz Bandeira. Fórmula para o caos: A derrubada de Salvador Allene 1970-1973. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 640 p.

órmula para o caos, palavras tiradas de um telegrama da Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos, é o nome que o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira dá para o seu livro sobre a derrubada de Salvador Allende, no Chile. Ele parte do pressuposto de que seria impossível se chegar à implantação do modo de produção socialista pela via democrática como queria Allende, e menos ainda pelo caminho das armas como defendiam alguns movimentos revolucionários, já que a conjuntura local, regional e internacional era totalmente desfavorável. Recorre à história das guerras de independência e da formação do Estado nacional na América Latina para explicar o surgimento do militarismo, que gerou o caudilhismo e que por sua vez criou a cultura do golpe de Estado contra projetos nacional-populares.

No entanto, não se pode esquecer que o triunfo da Unidade Popular, em 1970, não se deu apenas por conta de uma divisão interna na classe dominante, mas foi a culminação de um prolongado esforço de formação de consciências, de organização popular e de lutas comunitárias cujas origens se remontam ao início do século XX, no Chile. Por isso, a transição ao socialismo chegou a ser uma possibilidade nos anos 1970, pois não se tratava de um projeto de um grupo de intelectuais ou de uma ação limitada de alguma vanguarda desvinculada das massas, mas sim de algo surgido destas mesmas massas e das organizações que não falavam em nome do proletariado, mas que efetivamente o representavam orgânica e ideologicamente. (CUEVA, Agustín. Dialéctica del proceso chileno: 1970-1973. In: VUSKOVIC, Pedro (Org.) El golpe de Estado em Chile. México: Fundo de Cultura Econômica, 1975, p. 132).

Moniz Bande i ra responsab i l i za os movimentos e partidos radicais de esquerda como também os movimentos e partidos radicais de direita pelo caos no Chile (1970-1973), isentando a figura de Allende e defendendo a tese da aliança nacional. Aponta contradições nas forças de esquerda entre as perspectivas

dos gradualistas e dos rupturistas, já que os primeiros defendiam a implantação gradual do socialismo, pela via pacífica, ao passo que os segundos buscavam a ruptura da legalidade e o desmantelamento do Estado existente. Isso marcava a ambigüidade política da Unidade Popular e impedia a execução conseqüente de seu programa de governo. Ele afirma que “Allende e os comunistas, mais realistas, tinham consciência da ameaça do golpe de Estado, que cada vez mais se configurava, como conseqüência do apressamento e da radicalização do processo revolucionário. Pretendiam avançar gradualmente no que chamavam de construção do socialismo” (p. 338).

Por outro lado, o autor mostra, ao longo do livro, que o golpe de Estado acontecido em 11 de setembro de 1973 fora sucessivamente postergado por três razões: a) a defesa intransigente do legalismo do general Carlos Prats, na condição de comandante-em-chefe do Exército; b) a incerteza da unidade das Forças Armadas na derrubada de um presidente constitucional; e, c) a resistência armada de grupos revolucionários pró-Allende e o conseqüente receio de uma guerra civil. Isso nos diz que a sociedade chilena estava profundamente dividida em uma crescente luta de classes, podendo qualquer um dos lados sair vencedor. Era exatamente esta conjuntura que dava à esquerda da Unidade Popular as razões para avançar na radicalização do processo rumo ao socialismo. No dia 4 de setembro de 1973 quando o governo de Allende completava três anos desde que fora eleito, uma multidão calculada em 800.000 pessoas marchava pelas ruas de Santiago em apoio ao presidente. Isso, apenas sete dias antes do golpe.

Moniz Bandeira atribui a fórmula para o caos exatamente aos movimentos e partidos de esquerda, entre eles, o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), o Movimento de Ação Popular (MAPU), uma facção da esquerda do Partido Socialista (PS) e uma parte da esquerda cristã do Partido da Democracia Cristã (PDC). Quanto ao MIR, diz que sua radicalização estava servindo, objetivamente, “para lançar as classes médias na oposição, reduzir mais e mais as bases sociais de sustentação do governo, desestabilizá-lo e justificar o golpe de Estado” (p. 346). Enquanto isso “Allende, o PC e os setores moderados do PS compreendiam que a

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Unidade Popular não tinha condições de avançar mais rapidamente o processo revolucionário, dentro da moldura constitucional, inclusive porque a oposição era predominante no Congresso” (339). Na verdade, esta posição reformista vai permitir a organização e o avanço da contra-revolução.

Moniz Bandeira, ao analisar as ditaduras militares que rodeiam o Chile, dedica muito tempo a elas, passando a idéia de um determinismo histórico, já que apresenta estes governos impostos pelas Forças Armadas, com o apoio explícito dos Estados Unidos, como inevitáveis. Chega a defender a tese de uma aliança nacional com a burguesia para restaurar a democracia representativa, não se dando conta de que esta mesma burguesia não permitiria tocar na economia de mercado e tampouco realizar as pretendidas reformas. Na verdade, tal estratégia não deixa de ser uma capitulação, defendida não apenas pelo Partido Comunista chileno (PCch), mas pelos PCs de toda a região.

O autor não dá a devida atenção, em seu livro, às profundas transformações econômicas que abriram caminho para um desenvolvimento nacional independente em favor das grandes maiorias, tais como a nacionalização do cobre, do ferro, do salitre, do carvão e de outros recursos básicos do país; a estatização do sistema bancário; a redução drástica do latifúndio; ao fim do controle do monopólio privado da indústria siderúrgica, do cimento e de outros setores industriais, assim como ao término da grande distribuição atacadista; por fim, a abertura de canais de participação por meio dos quais os próprios trabalhadores vão tomando o controle destas atividades. (VUSKOVIC, Pedro. Dos años de política económica del gobierno popular. In: VUSKOVIC, P. (Org.) op. cit., p. 9-10).

As medidas do Programa do Governo Popular não só enfraqueceram a burguesia como lhe tiraram a sustentação de seu poder econômico, fazendo com que ela perdesse parte da dominação de classe. Por isso, ela trabalhou diuturnamente, assessorada pela CIA, contra a resolução dos problemas e, ao mesmo tempo, pelo seu aprofundamento, preparando o caminho para o golpe de Estado.

Moniz Bandeira apresenta um longo trabalho (640 p.) sobre a derrubada de Salvador Allende, com muitas informações, depois que integrantes de movimentos revolucionários e partidos políticos, intelectuais de universidades chilenas e estrangeiras, economistas e sociólogos já tivessem feito suas avaliações sobre a via chilena para o socialismo. O que levou o historiador brasileiro a escrever sua versão dos fatos e sua análise deste golpe de Estado parece ser o acesso privilegiado que teve às fontes primárias do Itamaraty, concessão inaceitável, já que as mesmas deveriam estar à disposição de todos os pesquisadores. Chega a fazer um agradecimento especial ao ministro Hélio Vitor Ramos Filho, diretor do Departamento de Comunicação e Documentação (DCD), por ter autorizado a desclassificação de documentos que

proporcionaram todas as facilidades para a realização da pesquisa, além de ceder o prefácio ao embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral. (p. 40-41).

Por outro lado, Moniz Bandeira analisa os a c o n t e c i m e n t o s c h i l e n o s m a n u s e a n d o preponderantemente documentos brasileiros, enviados de Santiago para Brasília pelo embaixador do Brasil Antônio Cândido da Câmara Canto que servia aos interesses das forças conservadoras. Nestes escritos está, portanto, a visão de um golpista secundário. Além desta limitação, o autor se vale demasiadamente de fontes não primárias – como as memórias de Carlos Altamirano, Augusto Pinochet, Carlos Prats e Toríbio Merino – empobrecendo as informações e argumentações e, por outro lado esquecendo-se de alguns livros muito significativos como Una sola lucha, de Pedro Vuskovic e El golpe de Estado em Chile, de Agustín Cueva et alii.

Em outro momento do trabalho, o autor dedica um capítulo inteiro (cap. xv) a analisar e descrever a ditadura uruguaia. Passa a nítida impressão de ter encontrado uma caixa ou pasta com documentos inéditos sobre aquele regime e querendo aproveitá-los para torná-los público, reservou um espaço enorme aquele país, sem mostrar as relações profundas com o golpe de Estado chileno. Mais proveitoso seria se tivesse apresentado a política internacional do pluralismo ideológico de Salvador Allende que se opôs de forma contundente a de fronteiras ideológicas das ditaduras de segurança nacional.

O livro Fórmula para o caos foi lançado concomitantemente no Brasil e no Chile, precedido de ampla divulgação, no 35° aniversário da queda de Allende. A Editora Civilização Brasileira, possivelmente pressionada pela data, não teve o tempo necessário para rever os escritos que apresentam erros de idioma, ausências de preposições e de conjunções, quando não de traduções do espanhol e do latim equivocadas (p. 444) ou de datas alteradas (p. 124). Embora tais deficiências não comprometam a leitura, mostram, no entanto, uma falta de rigor na impressão.

Por fim, não seria recomendável uma citação do jornal Clarín, em destaque na capa do livro, elogiando o autor do trabalho, tendo-se em conta que este mesmo periódico apoiou enfaticamente o golpe de Estado no Chile.


1848: O Ano do Mouro

*Professor do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UNIOESTE.**Professor Aposentado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNICAMP.1Além de textos escritos por Marx e Engels, utilizamos três biografias sobre Marx. BERLIN, Isaiah. Karl Marx. São Paulo:Edições Siciliano, 1991; FEDOSSEIEV, P.N. et all. Karl Marx. Lisboa:Edições Avante, 1983; LEFEBVRE, Henri. Para Compreender o Pensamento de Karl Marx. Lisboa:Edições 70, 1966.2ENGELS, F. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. 2ª ed., São Paulo: Global, 1985.

3MARX, K. A liberdade de Imprensa. Porto Alegre:L&PM, 1980.4MARX, K. The Revolutions of 1848. London:Penguin Books with New Left Review, 1973, p.103.

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1848: O Ano do MouroAntônio de Pádua Bosi*

Edmundo Fernandes Dias**Resenha do livro:MAX, Karl. As Lutas de Classes na França (1848-1850).Rio de Janeiro: Editorial Vitória Limitada, 1956.

... as revoluções de 1848 surgiram e quebraram-se como uma grande onda, deixando pouco, exceto mito e promessa.”

(Eric Hobsbawm, A Era do Capital. 1977, p.43)

“A revolução está morta! Viva a revolução!”(Karl Marx, As lutas de classes na França. 1850, p.54)

ento e sessenta anos atrás o continente Europeu foi varrido por uma onda revolucionária. Àquela época Marx tinha 30 anos. Sua experiência com os movimentos sociais até então se fizera basicamente a partir de uma atenta observação sobre o cartismo, o socialismo francês, os dilemas enfrentados pelos trabalhadores dos Estados germânicos e a organização da Liga dos Comunistas. Seu observatório estava fixado na cidade de Colônia, onde sobrevivia como jornalista na Gazeta Renana, depois de ver frustradas suas expectativas de se tornar professor na

1Universidade de Bonn .

Alimentava-se também das informações que seu amigo Engels lhe fornecia; informações que ultrapassavam os limites do cotidiano e avançavam sobre

2a explicação da realidade econômica inglesa . No que se refere aos movimentos franceses Marx os conhecera in loco, nas conversas com Proudhon e outros socialistas.

Na época em que foi jornalista da Gazeta Renana Marx travou contato com as questões sociais como é fácil de perceber no acompanhamento dos trabalhos da Dieta e, em especial, no debate sobre o roubo de lenha dos bosques, sobre a liberdade de imprensa, etc. Nasceu desse contexto sua recusa à concepção hegeliana da burocracia vista como classe universal, e seus primeiros trabalhos sobre a questão do Estado e do direito a partir de Hegel. Foi nesse contexto também que nasceu a amizade e o trabalho comum com Engels, que o “introduziu” no estudo das questões econômicas.

C Neste mesmo período, entre 1842 e 1848, grande parte de seu esforço intelectual estivera voltado para uma empreitada contra o Absolutismo da Confederação Germânica. Suas atividades de jornalista na Gazeta Renana foram exercidas à custa do financiamento de setores da burguesia descontentes com o governo de Frederico Guilherme IV. Pode-se dizer que quando foi colunista, e depois redator deste jornal, Marx mostrou-se um democrata, particularmente um árduo defensor da

3liberdade de imprensa e um crítico do Absolutismo .

Seu primeiro contato com a Liga dos Comunistas, à época batizada de “Liga dos Justos”, foi marcado pela oposição à ultra-esquerda e pela rejeição à militância exercida distante das aspirações dos trabalhadores. Influenciado pela situação política na Confederação Germânica, concebera a revolução proletária como tarefa a ser pensada e realizada em condições determinadas historicamente, isto é, no contexto de uma formação social capitalista politicamente organizada e dirigida pela burguesia. Esta concepção, que iria abandonar mais tarde, expressou-se, por exemplo, num comunicado de março de 1848 da Liga dos Comunistas dirigido aos trabalhadores alemães, onde ele e Engels apresentaram um Programa Democrático-burguês sob o título de “As Demandas do Partido comunista na Alemanha”. Tal plataforma democrático-burguesa concluía com um apelo para uma aliança entre trabalhadores e pequena burguesia: “Para consolidar os interesses do proletariado, da pequena burguesia e do campesinato alemães é preciso trabalhar energicamente para implementar as medidas acima [explicitadas no

4documento]” . Essa ligação com os liberais, liquidada pelo recuo da burguesia, era pensada por ele como uma etapa de transição.

5MARX, K. Miseria de la Filosofia. Respuesta a la 'Filosofia de la Miseria' del señor Proudhon. Moscou:Editorial Progreso, 1985.

6MARX, K. Primeiros Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Biblioteca Virtual Revolucionária. Disponível em: <http://www.marxist.org>.

7ENGELS, F.; MARX, Karl. Periodismo Revolucionário. A Nova Gazeta Renana. México:Ediciones Roca, 1975, p.20.

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8ENGELS, F. “Prefácio”, In MARX, Karl. As Lutas de Classes na França (1848-1850). Rio de Janeiro:Editorial Vitória Limitada, 1956.

9MARX, K. “Prefácio”. In Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo:Martins Fontes, 1983, p.23.

10ENGELS, F. “Marx and the 'Neue Rheinische Zeitung' (1848-1849). In Select Works. Moscow:Progress Publishers, 1983, p.164-172.

11MARX, K. O 18 Brumário. 5ª ed., Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1986.

Sua crítica também avançara sobre a esquerda. Proudhon foi duramente questionado pela suposta ingenuidade de pensar uma organização social baseada

5no cooperativismo como forma de superação do capital . Contudo, o próprio Marx só havia pensado que a nova sociedade seria escorada num tipo de propriedade coletiva, resultante da abolição da propriedade privada (Manifesto do Partido Comunista). A organização capitalista do trabalho e a questão do processo de trabalho ainda não ocupavam um lugar central em seu pensamento, embora tenha esboçado importantes

6reflexões acerca do processo de alienação do trabalho .

Na prática, até 1848, além do breve período em que participou da organização dos trabalhadores emigrados no debate com as teses de tipo blanquista, uma das experiências mais importantes vivida por ele foi a curta aliança com setores da burguesia, à época em que dirigiu a Gazeta Renana. Certamente este episódio marcou para ele os limites da ação revolucionária da burguesia. O início da década de 1840 foi desastroso para os trabalhadores da Confederação Germânica. Oprimidos por privilégios feudais que encareciam a produção agrícola, sufocados pela organização manufatureira do put out system que necessariamente intermediava todo o resultado do trabalho de tecelagem, os trabalhadores começaram diversas rebeliões que amedrontaram não somente a aristocracia germânica – os junkers -, mas também a burguesia financeira, comercial e manufatureira. Isto foi suficiente para fazer cessar a oposição ao Antigo Regime e à concepção de propriedade ancestral, e criar uma solução de passagem para uma Monarquia Constitucional onde haveria lugar para a composição dos interesses das classes dominantes. A pena de Marx ficara sem apoio. A Gazeta Renana, localizada na cidade de Colônia, fecharia as portas e, com isso, muito provavelmente, perderiam força as expectativas de Marx acerca do papel revolucionário da burguesia.

No calor de 1848, à frente da “Nova Gazeta Renana”, Marx soldou sua compreensão sobre a impossibilidade de uma aliança dos trabalhadores com setores da burguesia para a realização da própria revolução burguesa. Foi ele próprio quem esvaiu qualquer ilusão a esse respeito, quando iniciou sua primeira avaliação de fôlego sobre os levantes populares de 1848 e 1849: “Nenhuma celebridade republicana tem estado com o povo! Sem outra direção [política], sem outro meio senão sua ira, [o povo] tem resistido à

7burguesia e ao exército unidos” .

O reconhecimento de que a luta pela democracia política não seria conduzida à frente pela própria burguesia, principalmente porque era fortemente

8reivindicada pelos povos da Confederação Germânica ,

levou Marx a reconhecer também os limites de seu próprio entendimento acerca da realidade. É neste período que surge a preocupação com os “interesses das classes” na História, conforme ele mesmo indicou no Prefácio de 1859: “Em 1842-1843, na qualidade de redator da Gazeta Renana, encontrei-me pela primeira vez na obrigação embaraçosa de dar minha opinião sobre

9o que é costume chamar-se os interesses materiais” . Este ponto recebera um tratamento lapidar na confecção das “Lutas de Classes na França”. Embora bastante informado sobre os acontecimentos em todo continente, a ação prática de Marx como dirigente político se desenvolveu muito mais em território germânico, e é provável que tenha sido de lá que saíram muitas das reflexões que deram forma à “Lutas de Classes na

10França” .

No Manifesto do Partido Comunista, Marx, já com a colaboração de Engels, havia crivado na literatura de esquerda o significado mais popularizado do movimento histórico, oferecendo uma interpretação materialista da História. A noção de que toda a História era a História da Luta de Classes, simplificou as possibilidades de conflito a uma contradição bipolar, que seria revista à luz das revoluções de 1848, particularmente estudadas em “Lutas de Classes na França (1848-50)”. Foi nesses escritos que, de maneira mais sistematizada, as classes passaram a ser vistas e analisadas a partir de seus interesses materiais e das relações de forças resultantes entre elas. Pode-se dizer que “Lutas de Classes na França” foi a ante-sala do “18

11Brumário” .

Não se tratava mais de escrever crônicas políticas em tom ácido, enredadas nas ações e pensamentos de imperadores, ministros e líderes políticos de direita e de esquerda. Sua abordagem passou a cortar mais fundo o tecido social, alcançando os interesses de classe e das frações de classe que cada personagem buscava ensaiar:

“Quem dominou sob Luís Filipe não foi a burguesia francesa, mas uma fração dela – os banqueiros, os reis da Bolsa, os reis das estradas de ferro, os proprietários de minas de carvão e de explorações florestais e uma parte da propriedade territorial aliada a ela – a chamada aristocracia financeira. Esta ocupava o trono, ditava as leis nas Câmaras e distribuía os cargos públicos, dos ministérios às lojas de tabaco” (Marx, 1956, p.31-32).

Suas análises partiam de um desenho inicial da divisão da sociedade para, em seguida, serem alicerçadas nos interesses materiais das classes e de suas posições. Assim, falando sobre o contexto de uma revolução burguesa em que os donos de fábricas e seus


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12Victor Grandin foi um industrial francês (1797-1849), membro da câmara dos deputados no período de 1839-1848. Durante a Segunda República foi deputado das Assembléias Constituinte e Legislativa. Leon Faucher (1803-1854) foi economista malthusiano, ministro do Interior (12/1848 a 5/1849), e ministro bonapartista (1851). Frédéric Bastiat (1801-1850), economista liberal, foi membro da Câmara dos deputados durante as Assembléias Constituinte e Legislativa. (Marxism Internet Archive).

13MARX, K. O 18 Brumário. 5ª ed., Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1986, p.17.14MARX, Karl. As Lutas de Classes na França (1848-1850). Rio de

Janeiro:Editorial Vitória Limitada, 1956, p.54. 15LEFEBVRE, Henri. Para Compreender o Pensamento de Karl Marx.

Lisboa:Edições 70, 1966, p.205-208.

16MARX, K. “Marx a P.V. Annenkov”. In Miseria de la Filosofia. Respuesta a la 'Filosofia de la Miseria' del señor Proudhon. Moscou:Editorial Progreso, 1985, pp.147-159.

17MARX, K. The Revolutions of 1848. London:Penguin Books in association with New Left Review, 1973, p.265-277.

representantes buscavam submeter o capitalismo a sua vida industrial, Marx conferiu o maior peso das mudanças ao processo histórico. Grandin, Leon Faucher

12ou Bastiat só foram lembrados por ele porque expressavam os interesses de seus pares contra um governo dominado pela aristocracia financeira. A luta de classes ganhava tonalidades mais variadas, e o processo histórico tornava-se mais difícil de ser decifrado.

Aprendera no ano de 1849, quando os setores das classes dominantes na França que atentaram contra o governo da aristocracia financeira agiram para conter as mudanças pretendidas pelos trabalhadores mobilizados, que a ordem social dominante poderia resultar de composições políticas esdrúxulas e inimagináveis. Ali, a bússola que lhe orientava, sem ignorar os condicionantes ideológicos, cada vez mais buscava explicações vinculadas aos interesses materiais das classes e de suas frações.

Este último artefato teórico foi-lhe fundamental para observar e analisar prováveis trajetos que traçavam o campo de forças político onde a História era decidida. Ainda não chegara à célebre formulação de que os homens fazem sua própria história, mas “não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

13diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” ; mas a base histórica para tal reflexão certamente foi o período revolucionário de 1848-50.

Na comparação direta entre fevereiro de 1848 e junho de 1849, Marx definiu a diferença entre Regime Político e Ordem Social. A interpretação dos acontecimentos apontava os pesos e contrapesos do processo revolucionário na França, revelando seus ritmos e reveses: “O 25 de Fevereiro de 1848 deu à França a República, enquanto o 25 de Junho lhe impôs a Revolução. E, desde junho, revolução significava: subversão da sociedade burguesa, ao passo que, antes de fevereiro, havia significado: subversão da forma de

14governo” .

Nesse ponto, Marx expressara com muita clareza sua visão de que uma revolução não podia ser fabricada; não podia resultar do desejo e da vontade de qualquer vanguarda que fosse. Junto com Engels explicitou tal compreensão quando, em março de 1848 na França, divergiu radicalmente de militantes alemães emigrados que criaram uma “Legião Revolucionária” com o objetivo de “importar” a revolução francesa para a

15Confederação Germânica . Relativamente ao parâmetro

histórico retirado de 1789, Marx concebia “revolução” já nos termos sintetizados na metáfora contida no “Prefácio”, escrito em 1859; havendo um descompasso entre as relações sociais de produção e as formas legais que lhes conferem significado abre-se uma época de “revolução social”. Mas antes disso, em 1846, numa crítica feita à Proudhon, já havia elaborado uma reflexão - talvez mais rica – sobre o sentido histórico das transformações sociais, colocando em plano de exame a Revolução Inglesa de 1640-88: “... as formas da economia sob as quais os homens produzem, consomem e

16trocam, são transitórias e históricas” .

Porém, se demonstrara uma habilidade inigualável ao seu tempo para analisar, compreender e explicar os acontecimentos a partir das lutas de classes, Marx reconheceu sua própria imperícia quando prognosticou para o ano de 1850 o agravamento da crise econômica na Europa. Tal prognóstico indicava ainda que a crise de natureza financeira seria responsável por fortes repercussões políticas, reascendendo os

17movimentos sociais e a possibilidade revolucionária . Não foi isso que ocorreu. Contra as evidências da tendência revolucionária, a ação dos governos e a debilidade das frações burguesas deram um resultado distinto do esperado. Debeladas as revoluções de 1848-49, a Europa viveu quase 10 anos de ininterrupto crescimento econômico, e o horizonte revolucionário experimentado no final da década de 1840 desapareceu.

Em meio à reação que tomou conta da Europa, Marx, a exemplo de outras lideranças da esquerda como Louis Blanqui, Bakunin e Blanc, enfrentou os anos mais difíceis de sua vida. O quadro a partir do qual ele desenvolveu os estudos que se consagraram em “O Capital” foi o pior possível. Encontrava-se premido pelo isolamento político (que em regra estendera-se sobre toda a esquerda revolucionária), arruinado financeiramente e absolutamente convicto de que o funcionamento do capitalismo era mais complexo do que pensara até então.

De qualquer modo, sua pena ficaria marcada para sempre pela experiência de 1848-50. Por esse motivo, Hobsbawm não teve razão quando avaliou que “as revoluções de 1848 surgiram e quebraram-se como uma grande onda, deixando pouco, exceto mito e promessa”. Para as classes trabalhadoras tais revoluções ensinaram e armaram definitivamente o mais perspicaz dos combatentes comunistas. Mil oitocentos e quarenta e oito foi o ano do Mouro! E isto pode ser conferido em “As Lutas de Classes na França”.

1848: O Ano do Mouro

*Mestre e Doutorando em História (UFF).

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A leitura genética dos Cadernos de Gramsci

Demian Melo*

Resenha do livro:BIANCHI, Álvaro. O Laboratório de Gramsci: Filosofia, História e Política. São Paulo: Alameda, 2008.

ma leitura sistemática dos cadernos carcerários de Antonio Gramsci, cotejada com um estudo criterioso das fontes utilizadas pelo marxista sardo é o que possibilita ser O Laboratório de Gramsci um trabalho de grande envergadura, certamente um marco na literatura especializada. Neste belíssimo trabalho, Álvaro Bianchi nos apresenta uma leitura pouco usual do sentido das categorias gramscianas, afastando-se das interpretações consagradas de um teórico da cultura ou da superestrutura. Como bem pontuou Dora Kanoussi no prefácio ao livro, o trabalho que temos em mãos ocupa um “importante lugar na literatura gramsciana em geral, e não apenas na latino-americana” (p.9).

Não é exagero. Em primeiro lugar, o estudo é justificado a partir da constatação de que, especialmente a partir da década de setenta do século passado, no contexto da luta contra as ditaduras latino-americanas em compasso com a crise e a decadência das organizações tradicionais da esquerda, os conceitos de “hegemonia”, “bloco-histórico”, “intelectual orgânico”, “sociedade civil” etc., começaram a fazer parte de um “senso comum teórico”, nem sempre com o sentido original que estas categorias possuem na formulação original do autor dos Quaderni del carcere. Pode-se dizer mesmo que, ao tornar parte deste senso comum, tais categorias afastaram-se e muito do sentido original e, mais grave, é comum verificar sua combinação eclética com conceitos estranhos ao materialismo, como é o caso patente da idéia tocquevilliana de sociedade civil.

Para cumprir a tarefa de recuperar o sentido original das categorias gramscianas, Bianchi resgata o processo de elaboração dos cadernos, observando o caráter fragmentário com que os temas aparecem nos mesmos. Utiliza o material crítico disponível, como a edição dos Quaderni feita por Valentino Guerratana e o estado da arte sobre a datação dos mais de trinta cadernos escritos, a partir de autores como Gianni Francioni e o próprio Gerratana, onde é possível distinguir três tipos de cadernos: aqueles compostos de notas (A) que são retomados em outros cadernos (C), e aqueles de redação única (B). O autor acompanha a fortuna crítica dos cadernos, a partir da primeira edição feita pelo dirigente comunista italiano Palmiro Togliatti, onde o mesmo

reorganizou as notas dos três tipos de cadernos dando um aspecto de obra acabada e apagando a distinção metodológica marxiana entre a pesquisa e a exposição do conhecimento. Localiza a forma como Togliatti apresenta Gramsci como um teórico da cultura, fazendo-o aparecer (e perecer, como ironicamente anota) ao lado de Marx-Engels-Lenin-Stalin. Discute ainda como tal edição togliattiana, como é bem conhecido, foi a base para as edições feitas na Argentina e no Brasil, por iniciativa de intelectuais ligados aos PCs dos distintos países, e atualiza a importante polêmica que Edmundo Fernandes Dias (que Bianchi considera seu “importante interlocutor”, p.18) fez com a narrativa de Carlos Nelson Coutinho sobre a publicação dos cadernos no Brasil, este último, um dos pioneiros e principais responsáveis pela difusão do trabalho do marxista sardo em terras brasileiras e autor de uma leitura canônica sobre Gramsci. Por fim, localiza a importância da edição crítica de Gerratana, já comentada acima e feita no ano de 1975, para um estudo rigoroso.

Para dar cabo de recuperar o sentido original das categorias gramscianas, a partir do que diz ser uma “leitura genética” dos Quaderni, Álvaro Bianchi insere Gramsci no debate cultural coetâneo, recuperando as idéias dos seus principais interlocutores, seja daqueles oriundos da cultura italiana, como Maquiavel, Benedetto Croce, Vincenzo Cuoco, Giovanni Gentile, Vincenzo Giobert, seja da tradição originada em Marx e Engels, que envolvia Plekhanov, Labriola, Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, até o seu missivista Piero Sraffa. Categorias como “bloco-histórico”, “Estado integral”, “sociedade civil”, “hegemonia” e outras são passadas em revista, esclarecendo alguns nexos importantes e desfazendo algumas confusões comuns. Retoma a importante polêmica em torno do conceito de “sociedade civil”, que envolveu a interpretação feita por Bobbio, ancorada na visão de Gramsci como um “teórico das superestruturas”, afeito à tese da “conquista de espaços” na democracia. Nesse ínterim é importante a crítica que o autor também faz às leituras de Carlos Nelson Coutinho e Juan Carlos Portantiero, que, cada um ao seu modo, suspendem o problema da mobilização político-insurrecional da análise da correlação de forças e apresentam Gramsci como um teórico da “longa marcha pelas instituições da sociedade civil”. Contra tal leitura,

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Bianchi lembra o § 17 do Quaderno 13, onde é afirmado que o nível de forças militares, portanto o momento da insurreição, é o “imediatamente decisivo” (p.171), o que reafirma Gramsci como teórico da revolução socialista no Ocidente.

De particular importância é o capítulo dedicado a estudar os conceitos de guerra de posição e guerra de movimento, que envolve a polêmica de Gramsci com Trotsky (p.199-251). O autor localiza as posições de Gramsci em relação ao debate no interior do Partido Comunista russo, denunciando as interpretações que colocavam o mesmo ao lado da corrente stalinista. Discute como na fase mais sectária da Internacional Comunista, quando da política do “terceiro período” e da teoria de que a social-democracia não passaria de uma ala do fascismo (VI Congresso, 1928), tanto Gramsci quanto Trotsky defenderam a mesma tática de frente única. Isto não impede que Bianchi discuta as diferenças entre os dois autores, fugindo do estabelecimento de uma “falsa identidade” entre ambos. No mesmo sentido, um dos pontos altos do livro é o capítulo dedicado à discussão do conceito de “revolução passiva” (p.253-296), recolocando seu conteúdo negativo, em contraste com as leituras reformistas que tomaram (e tomam) o conceito como programa político. Trata-se, na verdade, de um critério de interpretação histórico, que Gramsci utilizou para entender tanto o processo do Risorgimento italiano, quanto os fenômenos do fascismo e do americanismo.

Por fim, pensando a partir do campo da história, o trabalho de Bianchi é de fundamental importância aos historiadores críticos que, mais do que nunca, têm recorrido ao instrumental teórico de Antônio Gramsci para organizar e conceber as hipóteses de suas pesquisas. Melhor que tal uso seja feito com uma utilização rigorosa de tais conceitos, e nesse sentido O Laboratório de Gramsci torna-se uma leitura incontornável.

A leitura genética dos Cadernos de Gramsci

História & Luta de Classes, Nº 7, Julho 2009

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Próximos Dossiês:Número 8 – Questão Agrária. Prazo para encaminhamento de contribuições: Encerrado.Número 9 – Teoria da História. Prazo para encaminhamento de contribuições: 30 de setembro de 2009.

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NESTA EDIÇÃO

9

ISSN 1808-09X

7 7 1 8 0 8 0 9 1 0 0 2Estado e Poder

Estado e Educação Rural no Brasil: Política Pública e Hegemonia Norte-AmericanaSonia Regina de Mendonça

Relações entre Estado e Iniciativa Privada no Século XIX: Estudo de caso da Companhia União e IndústriaLuís Eduardo de Oliveira; Fernando Gaudereto Lamas

Contra o empoderamento da Aliança Nacional Libertadora, o reforço do poder de Estado com a Lei de Segurança NacionalDiorge Alceno Konrad

“Segurança para o Trabalho e as Realizações de Interesse Geral”: A busca do apoio político para o Estado Novo no Rio Grande do SulGlaucia Vieira Ramos Konrad

La lectura de Marx en clave clasista: el Si.tra.p. como órgano de expresión del Sindicato de Trabajadores dePerkins, 1973-1975 - una breve comparación con el Obrerismo Italiano de Quaderni Rossi y Classe OperaiaCarlos Mignon

Notas sobre o Estado no pensamento político de Ruy Mauro MariniJosé Carlos Mendonça

O Quadro da Subversão no Brasil nos “Anos de Chumbo”: A visão dos Órgãos de Segurança e InformaçõesDulce Portilho Maciel

Terrorismo de Estado e Operação Condor no Brasil:30 Anos do sequestro político internacional dos uruguaios em Porto AlegreRamiro José dos Reis

1986 - A Repressão Fordista no ABC PaulistaMichel Willian Zimermann de Almeida

Estado, Poder e Movimento Sindical na América Latina: O diálogo necessário com as teorias de TrotskiGilson Dantas

O Poder Gerencial no Capitalismo Contemporâneo: Nova Classe ou Novas Relações entre as Classes?Erika Batista

Estado Democrático e Social de Direito, Mística e Modo de Produção Capitalista:Uma leitura que refuta o rótulo economicistaHélio de Souza Rodrigues Júnior

O Itamaraty e o Golpe de Estado no ChileWaldir José Rampinelli

1848: O Ano do MouroAntônio de Pádua Bosi; Edmundo Fernandes Dias

A leitura genética dos Cadernos de GramsciDemian Melo

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