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Artigos
O novo Código Civil e a caducidade da separação de corposO novo Código Civil e a caducidade da separação de corposO novo Código Civil e a caducidade da separação de corposO novo Código Civil e a caducidade da separação de corposO novo Código Civil e a caducidade da separação de corposInacio de Carvalho Neto ........................................................................................................................................ 5
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D ireito A r t i g o
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D ireito E x p e d i e n t eRevista IMES Direito – Uma publicação do IMES - Universidade Municipal de São Caetano do Sul
Ano V – n. 9Ano V – n. 9Ano V – n. 9Ano V – n. 9Ano V – n. 9
julho/dezembro 2004julho/dezembro 2004julho/dezembro 2004julho/dezembro 2004julho/dezembro 2004
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O NOVO CÓDIGO CIVIL E A CADUCIDADEDA SEPARAÇÃO DE CORPOS
Inacio de Carvalho NetoEspecialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Paranaense.
Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá.
Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo-USP.
Professor de Direito Civil da Universidade Estadual de Londrina-UEL, da Faccar,da Escola do Ministério Público e da Escola da Magistratura do Paraná.
Promotor de Justiça no Paraná.
1. NOÇÕES SOBRE SEPARAÇÃO
DE CORPOS
O Código Civil de 1916 tratava da separação de
corpos no art. 223, inserido no Capítulo VI (“Do
casamento nulo e anulável”) do Título I do Livro I
da Parte Especial, em termos bem diferentes do atual
tratamento legislativo à matéria.1 A disposição do
Código Civil, ademais, já constava do Decreto n.
181/1890.2
A Lei do Divórcio tratava timidamente da se-
paração de corpos,3 como medida cautelar, no § 1º
do art. 7º, verbis:
1 Com efeito, assim dispunha o art. 223 do Código Civil de 1916: “Art. 223.Art. 223.Art. 223.Art. 223.Art. 223. Antes de mover a ação de nulidade docasamento, a de anulação, ou a de desquite, requererá o autor, com documentos que a autorize, a separação de corpos,que será concedida pelo juiz com a possível brevidade.” De ver-se, assim, que, pela letra do dispositivo, a separação decorpos era condição para a ação de desquite. Não obstante, já vinha a doutrina entendendo ser a separação de corposdispensável: “O processo pode se iniciar pelo pedido de separação de corpos, ajuizado pelo autor (CC, art. 223). (...)Alguns escritores, com razão, têm afirmado ser desnecessária a prévia obtenção do alvará de separação de corpos, se oscônjuges se acham separados de fato, morando em residências diversas. O que, de resto, é evidente, pois o pedido daseparação de corpos é uma faculdade concedida ao cônjuge e não uma obrigação a ele imposta” (grifos nossos)(RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 6, p. 97-98). “A separação decorpos jurídica (bem assim a de fato) não é essencial” (PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direitoprivado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. 8, p. 82). Também a jurisprudência: “A separação de corpos, de que tratao art. 223 do Código Civil, não é pressuposto essencial para a propositura da ação de desquite” (TJSP – 24.02.72 – Ap.n. 205.295 – Rel. Des. Henrique Machado – RT 446/80). “O alvará de separação de corpos não é indispensável àpropositura da ação de desquite. É providência facultativa, que se torna desnecessária quando há separação de fatoentre os cônjuges” (TJSP – 5ª Câm. Cív. – Ap. Cív. n. 102.047 – Rel. Des. Sylvio Barbosa – RT 304/328).
2 Art. 77.Art. 77.Art. 77.Art. 77.Art. 77. As causas de nulidade ou anulação do casamento e de divórcio, movidas entre os cônjuges, serão precedidas deuma petição do autor, documentada quanto baste para justificar a separação dos cônjuges, que o juiz concederá coma possível brevidade.
3 Com razão aponta FACHIN, Luiz Edson (Elementos críticos do direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.185) que “a separação ‘de’ corpos não se confunde com a separação ‘dos corpos’, que é rara mas passível de ocorrer.Em determinados casos, num relacionamento do qual resulte gravidez, não tendo as pessoas envolvidas, atingido aidade núbil, é possível que o juiz autorize o casamento, mas decrete a separação de corpos, até que venham a atingir aidade núbil”. Refere-se o autor à separação de corpos prevista no art. 214, parágrafo único, do Código Civil de 1916,não repetida no novo Código.
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Art. Art. Art. Art. Art. 7º 7º 7º 7º 7º (...)
§ 1º A separação de corpos poderá ser determinada
como medida cautelar (art. 796 do Código de
Processo Civil).
O novo Código Civil dispõe:
Art. 1.562. Art. 1.562. Art. 1.562. Art. 1.562. Art. 1.562. Antes de mover a ação de nulidade do
casamento, a de anulação, a de separação judicial,
a de divórcio direto ou a de dissolução de união
estável, poderá requerer a parte, comprovando sua
necessidade, a separação de corpos, que será
concedida pelo juiz com a possível brevidade.
O caráter facultativo expresso no dispositivo
da Lei do Divórcio já deixava claro o que agora
está mais expresso no novo Código, não ser a se-
paração de corpos indispensável à ação de separação
judicial,4 como dava a entender o art. 223 do Código
Civil, e como entendiam alguns tribunais.5
Com efeito, podem os cônjuges propor a ação
de separação sem terem antes pedido a separação de
corpos, até porque, como estabelece o art. 1.575 do
novo Código, a própria separação judicial já impor-tará na separação de corpos.
Afora a conhecida forma cautelar da separaçãode corpos, conhecem-se também outras duas: a se-paração de corpos como ato de jurisdição voluntá-ria, consensual, e a separação de corpos como medi-da executiva, quando, após a separação judicial, umdos cônjuges insiste em viver sob o teto conjugal.6
2. CADUCIDADE
É discutida na doutrina e na jurisprudência a
aplicação à separação de corpos do disposto no art.806 do Código de Processo Civil, ou seja, se a sepa-ração de corpos está sujeita ao prazo decadencial7
de trinta dias para a propositura da ação principal.8
Galeno Lacerda defendeu a não-aplicação do
prazo decadencial:
“Cabe, agora, a pergunta: Esse prazo de decadência
incide sobre todas as cautelas, ou não?
... Se a preclusão do art. 806 abrange as cautelas
que importam segurança quanto a bens materiais,
4 “Atualmente é entendimento pacífico, na doutrina e na jurisprudência, a não-essencialidade do precedente alvará deseparação de corpos como condição de validade da separação judicial. É medida preventiva meramente facultativa e ofato de não haver sido pleiteada em nada prejudica a ação” (LAGO, Lúcia Stella Ramos do. Separação de fato entrecônjuges. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 216).
5 “A medida do art. 223 do Código Civil é obrigatória, e não facultativa” (TJSP – 5ª Câm. Cív. – AI n. 47.387 – Rel. Des.Mário Masagão – RT 185/846).
6 “SEPARAÇÃO DE CORPOS. Em forma cautelar, contra marido que insiste em permanecer na habitação do ex-casal,após trânsito em julgado da separação judicial e pondo em risco a integridade física da ex-esposa e dos filhos menores.Medida deferida de plano e confirmada com improvimento do agravo” (TJRS – 4ª Câm. Cív. – Ap. Cív. n. 38.267 – Rel.Des. Edson Alves de Souza – RJTJRS 93/250). “Cuidam os autos de agravo de instrumento interposta por A.T.C.,insurgindo-se do despacho de fls. 19/verso proferido nos autos de ‘separação judicial’, como se fosse execução desentença, exigindo que o cônjuge varão desocupe a única moradia da casa, cuja partilha ainda não foi procedida...Nestas condições, é dado provimento ao recurso, para impor ao agravado a desocupação do imóvel...” (TJPR – 4ªCâm. Cív. – AI n. 491/85 – Rel. Des. José Meger – PR Jud. 19/186 – no corpo do acórdão).
7 FRIEDE, Reis (Aspectos fundamentais das medidas liminares. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 436),embasado nas lições de Sérvio Túlio Santos Vieira e Carlos Eduardo Freire Roboredo, que consideram a decadência uminstituto que se refere a direito material, e não a direito processual, ensina que, “por referir-se à matéria processual,incorreto é o termo ‘decadência’, para a perda da eficácia da cautela, produzida em razão da fluência do prazo do art.806 do CPC”. Embora de acordo com a lição do autor, mantemos a designação do texto em razão de ser ela correntena doutrina, além do fato de não termos outra (nem o autor a sugere) mais apropriada.
8 O Projeto de Lei do Divórcio do Deputado Rubem Dourado, anterior à atual lei, pretendia tirar da medida cautelar deseparação de corpos a sujeição ao prazo do art. 806 do Código de Processo Civil (Cf. RODRIGUES, Silvio. O divórcioe a lei que o regulamenta. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 50).
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destinada a garantir execução, com as ressalvas
acima, não cabe estendê-la, como regra, às pro-
vidências que implicam antecipação provisória da
prestação jurisdicional.
Estas antecipações soem acontecer em matéria de
família, de amparo a menores e incapazes, e em
grande número de cautelas inominadas.
No direito de família e no amparo ao menor e ao
incapaz, o bom senso repele a caducidade. Se o juiz,
cautelarmente, decretou a separação de corpos, a
prestação de alimentos à mulher e ao filho aban-
donados, o resguardo do menor contra o castigo
imoderado ou contra a guarda nociva, a regula-
mentação do direito de visita, a destituição pro-
visória de pátrio poder ou de tutor ou curador, é
de evidência meridiana que o não ingresso da ação
principal no prazo de trinta dias não pode importar,
respectivamente, na reunião de corpos que se
odeiam, no desamparo e na fome da mulher e da
criança, na eliminação da visita, no retorno do
indigno ao pátrio poder, à tutela e à curatela.
Façamos justiça ao art. 806, que jamais visou
objetivos odiosos e nefandos. Interpretemo-lo com
inteligência e com bom senso.”9
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem
seguido a doutrina de Galeno Lacerda,10 inclusive
editando a Súmula n. 10, nos seguintes termos:
“O deferimento do pedido de separação de corpos
não tem sua eficácia submetida ao prazo do art.
806 do CPC.”
No acórdão proferido no julgamento do Inci-
dente de Uniformização de Jurisprudência n.
587028978, que deu origem à referida súmula e de
que também participou o Desembargador Galeno
Lacerda, cujo voto foi acompanhado pela maioria
dos Desembargadores, o Relator, Desembargador
Elias Elmyr Manssour, asseverou que
“a lei não faz qualquer distinção quanto à
caducidade da medida cautelar, mas a doutrina e a
jurisprudência são concordes de que, sendo a
medida cautelar de ‘feição preventiva e não
preparatória’ e não importando em afetação de
direito ou em constrição de bens, sem prejuízo para
a parte ré, deixa de incidir a exigência do art. 806 do
CPC, isto é, de que a ação seja proposta no prazo
de trinta dias, sob pena de caducidade (art. 808, I,
do CPC)”.
O Desembargador José Barison, entretanto, foi
incisivo em sentido contrário:
“... não se pode olvidar que a separação de corpos
está definida na lei. Não há criação pretoriana capaz
de mudar-lhe o sentido e o alcance. A separação de
corpos, portanto, só pode ser aquela prevista e
estabelecida na lei (...) uma expressão jurídica tem
sentido próprio e definido. Medida cautelar é
medida cautelar como prevista no CPC. Se há
referência expressa na Lei do Divórcio à medida
cautelar, esta é a que se deve aplicar”.
E já entendeu também o referido Tribunal tra-
tar-se, a separação de corpos, de medida cautelar
satisfativa,11 com o que, data venia, não concorda-
mos, no que temos o apoio do então Desembargador
9 LACERDA, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, v. 8, t. 1, p. 372-380.10 “Seguindo magistério de Galeno Lacerda, após decidir reiteradamente no mesmo sentido, o TJ sumulou o entendimento
de que não perde a eficácia a liminar de separação de corpos se não ajuizada a ação principal no prazo do art. 806 doCPC” (TJRS – 7ª Câm. Cív. – Agr. n. 594026197 – Rel. Des. Paulo Heerdt – RJTJRS 164/262). “Separação de corposdecretada em liminar cautelar – Nessa matéria, em regra, não incide o prazo preclusivo de 30 dias para a vigência damedida, se não proposta a ação principal. A evolução do litígio entre os cônjuges aconselha a sobrevivência da medida”(TJRS – 3ª Câm. Cív. – AI n. 583052469 – Rel. Des. Galeno Lacerda – RJTJRS 105/291).
11 “Medida cautelar satisfativa – Como tal deve ser entendida a de separação de corpos, que não perde a eficácia mesmoultrapassado o trintídio para ajuizamento da ação principal, pois é medida que se exaure no deferimento da liminar”(TJRS – 5ª Câm. Cív. – Ap. Cív. n. 586037939 – Rel. Des. Sérgio Pilla da Silva – RJTJRS 119/421). Note-se que, mesmo quese admitisse a separação de corpos como medida satisfativa, não teria ela o condão de se exaurir no próprio deferimentoda liminar, como não o têm as demais medidas dessa natureza. Mister se faria, de qualquer forma, o julgamento cautelar.
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Athos Gusmão Carneiro, em magnífico voto pro-ferido naquele Egrégio Tribunal,12 bem como da dou-trina mais abalizada.13 Não fosse por outras razões, aseparação de corpos não teria natureza satisfativa pornão importar em antecipação, nem mesmoprovisória, do bem da vida que constitui objeto daação de conhecimento, como bem esclareceu TeoriAlbino Zavascki:
“Portanto, sob o aspecto da satisfação antecipadado direito material, a liminar será: (a) satisfativa (=a que importar antecipação, ainda que provisória,do bem da vida que constitui objeto da ação deconhecimento) ou (b) não satisfativa (= a que nãoimportar antecipação do direito material, tendo porconteúdo, portanto, providência diversa).”14
Há, ainda, uma posição intermediária dos que
só entendem aplicável o art. 806 do Código de Pro-
cesso Civil às separações de corpos se o cônjuge afas-
tado do lar for o requerido.15
Mas nem esta atenuação satisfaz. Entendemos que,
como medida cautelar que é, inclusive com expressa
referência pela Lei do Divórcio16 ao dispositivo do Có-
digo de Processo Civil, não há como deixar de aplicar a
ela os dispositivos referentes ao processo cautelar.
Não se trata, como quer Galeno Lacerda, de
reunir corpos que se odeiam, mas simplesmente de
cessarem os efeitos da separação de corpos, uma vez
transcorrido o prazo decadencial.17 Ou seja, os côn-
juges continuarão apenas separados de fato, com as
conseqüências daí advindas.18 Foi, aliás, essa a tese
defendida pelo então Desembargador Athos Gus-
mão Carneiro, em julgamento já referido:
12 “... Note-se mais que, decorridos os três anos dessa medida cautelar, assim transformada em medida ‘satisfativa’, mesmoassim a requerente não poderá postular o divórcio por conversão, pois a conversão admitida é a de separação judicial enão da mera medida ‘cautelar’. A medida cautelar, sublinhe-se, aqui só apresenta relevância na contagem do prazo trienal,mas sempre pressuposta a existência de uma separação legal, decretada por sentença” (grifos no original) (TJRS – 1ª Câm.Cív. – Ap. Cív. n. 586001364 – Rel. Des. Athos Gusmão Carneiro – RT 612/172 – no corpo do acórdão).
13 “Sem maiores cerimônias, muitos autores passaram a registrar, em suas respectivas obras, expressões de fraco (ouinexistente) conteúdo técnico, tais como ‘processo cautelar de índole satisfativa’, ‘medida cautelar satisfativa’, ‘liminaresexaurientes’ etc. Vocábulos, em essência, de nenhum sentido jurídico-processual. (...) Por efeito, não pode em teseexistir e, de fato, inexiste no Direito Brasileiro – de forma objetiva e, acima de tudo, finalística – o que convencionou-sechamar de cautelar satisfativa ou, numa alusão ainda menos técnica, de medida liminar satisfativa, na exata medida emque os próprios parâmetros de referembilidade da tutela cautelar e da tutela de conhecimento (procedida ou não demaneira antecipada) são absolutamente diversos, orbitando o primeiro na exclusiva esfera processual, em contraposiçãocrítica ao segundo, que possui foco no âmbito específico do direito material. (...) De qualquer modo, a existência deefetiva satisfatividade da medida liminar, de forma objetiva e finalística, somente pode ser entendida dentro do espectrode atuação rigorosamente limitada da tutela específica, não sendo, por efeito, possível, no contexto mais amplo em quese encontram inseridas as liminares de maneira geral” (FRIEDE, Reis. Medidas cautelares e liminares satisfativas.Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 731, set./1996, p. 72). “A separação de corpos representa medida de naturezaessencialmente cautelar, cabível apenas com caráter preparatório ou incidental; requerida como pretensão autônoma,de natureza satisfativa, deve ser indeferida, com a extinção do processo pela impossibilidade jurídica do pedido”(CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação judicial. 8. ed. São Paulo: RT, 1995, p. 546).
14 ZAVASCKI, Teori Albino. Restrições à concessão de liminares. RJTAMG, v. 53, p. 13.15 “Parece-nos que a melhor orientação é a de que se a medida foi requerida por um dos cônjuges, visando ao afastamento do
outro do lar conjugal, decorrido o prazo de trinta dias sem o ajuizamento da ação de separação, a medida perde sua eficácia...Se, contudo, a medida foi requerida por ambos os cônjuges, ou unilateralmente, com pedido de seu próprio afastamento, emsimples pedido de alvará, sem observância do procedimento cautelar específico, parece-nos não haver perda da eficácia”(FONSECA, Gilson; CALANZANI, José João. Lei do divórcio anotada. Rio de Janeiro: Aide, 1995, p. 53-54).
16 O fato de o novo Código não ter repetido a referência expressa em nada altera este entendimento, já que, como é sabido,o novo Código apenas evitou as múltiplas referências a outros dispositivos que eram feitas no velho Código.
17 “Se o marido, obtido o alvará de separação de corpos, deixou de propor no prazo legal a ação contra a mulher, o alvaráperde a eficácia” (TJSP – 1ª Câm. Cív. – Ap. Cív. n. 254.081 – Rel. Des. Andrade Junqueira – RT 504/136).
18 Tratamos das conseqüências da separação de fato em nosso Separação e divórcio: teoria e prática (5. ed. Curitiba:Juruá, 2003, item 5.2.2 e Capítulos 13 a 16, p. 141-151 e 353-491).
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19 TJRS – 1ª Câm. Cív. – Ap. Cív. n. 586001364 – Rel. Des. Athos Gusmão Carneiro – RT 612/172 – no corpo do acórdão.20 TJRS – 1ª Câm. Cív. – Ap. Cív. n. 586001364 – Rel. Des. Athos Gusmão Carneiro – RT 612/172 – no corpo do acórdão.21 “Tanto a separação de corpos, como os alimentos provisionais (CPC, art. 852), são medidas cautelares, preparatórias
do processo principal (CPC, art. 796). De modo que, se a ação principal não for ajuizada em trinta dias (CPC, art. 806),aquelas medidas perdem sua eficácia (CPC, arts. 807 e 808)” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil..., cit., p. 97-98). “Amedida cautelar de separação de corpos conserva a sua eficácia no prazo de trinta dias e na pendência do processoprincipal” (LAGO, Lúcia Stella Ramos do. Op. cit., p. 221). “Evidente que em se tratando de postulação como medidacautelar estará a parte requerente submissa às regras da lei processual civil, disciplinadoras da espécie. Deverá, porexemplo, propor a ação de separação ou de divórcio, conforme o caso, no prazo do art. 860 (rectius: 806) do Códigode Processo Civil, em trinta dias” (ABREU, José. O divórcio no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 63).“Para além disso, é providência que caduca, se a ação principal não for proposta no curto prazo de trinta dias”(GOMES, Orlando. Direito de família. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 218).
22 “Se as partes não ingressam, no tempo devido, com a ação principal, a eficácia da medida cautelar de separação decorpos cessa de pleno direito e por força da lei, mostrando-se dispensável, até, a necessidade de pronunciamentojudicial para retirar a eficácia do provimento preventivo, pois esta se torna inoperante em razão do decurso legalprevisto no art. 806 do CPC” (TJSP – 1ª Câm. Cív. – Ap. Cív. n. 134.491-1 – Rel. Des. Luiz de Azevedo – RT 671/91).
23 “Embora registre-se comentários da jurisprudência afirmando que a contagem do prazo para ajuizamento da açãoprincipal inicia-se somente depois de transitada em julgado a sentença que afinal acolhe o pedido (RT 498/71 e RJTJESP42/127; RT 509/77 e RJTJESP 43/1.550), é fato que tal entendimento é veiculado por reduzidíssimo número de julgados,estando a ampla maioria dos doutrinadores – assim como dos tribunais – acordes que é a efetivação da medida liminar(art. 806) que marca o início do prazo para a propositura da ação principal” (FRIEDE, Reis. Op. cit., p. 434).
24 “Não proposta a ação de separação judicial no prazo acima referido, tem-se que a medida cautelar terá então perdido suaeficácia, inclusive para os fins especialmente preconizados no art. 25, não podendo, assim, a decisão, na mesma proferida,servir de termo a quo para a contagem do prazo, de que trata o art. 25, para a conversão da separação judicial em divórcio”(PEREIRA, Áurea Pimentel. Divórcio e separação judicial. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 102).
“Impende notar que a perda de eficácia da medida
cautelar não implicará ‘na reunião de corpos que se
odeiam’ (sic). É medida de ordem jurídica, que obvia-
mente não implica constrangimento físico da mulher
em prestar o débito conjugal ao marido ou em viver
com o mesmo. Apenas, em tal caso, a separação,
que encontrava respaldo jurídico, passará a ser uma
separação de fato, com as conseqüências que dessa
situação possam advir no plano jurídico.”19
Ademais, como bem advertiu o referido Desem-
bargador,
“se admitirmos a não incidência do art. 806 a essa
medida cautelar, estaremos também admitindo
que, uma vez deferida, a medida cautelar se venha
a prolongar por tempo indefinido, criando-seassim, ao lado da separação judicial e do divórcio,
um tertium genus de ‘dissolução’ da sociedade
conjugal, isto é, a mera separação de corpos, em
que os cônjuges, embora não divorciados e embora
não separados judicialmente, estarão todavia
juridicamente isentos das obrigações fundamentais
do débito conjugal e da moradia em comum”.20
A doutrina, em regra, também se tem posicio-
nado pela aplicabilidade do dispositivo processual à
separação de corpos.21 E ainda se afirma não ser neces-
sário, sequer, provimento judicial declarando a inefi-
cácia da medida, que ocorre ope legis.22
O prazo de trinta dias é contado, nos termos do
art. 806 do Código de Processo Civil, da efetivação da
medida. Assim, se houver deferimento liminar da se-
paração de corpos, será contado o prazo a partir da efe-
tivação da liminar.23
3. EFEITOS
O principal efeito da caducidade da medida, já
se disse, é torná-la ineficaz, como se não houvesse
sido concedida qualquer medida cautelar.
É de se notar ainda que a perda da eficácia se dá
também para o efeito de contagem de prazo para
conversão da futura separação judicial em divórcio
(art. 1.580 do novo Código Civil).24 Isso é fato,
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embora com tal disposição não concordem Silvio
Rodrigues25 e José Abreu.26
Nos termos do parágrafo único do art. 808 doCódigo de Processo Civil, se por qualquer motivocessar a medida, é defeso à parte repetir o pedido,salvo por novo fundamento.
4. EXCLUSÕES
Por óbvio, o prazo de trinta dias não se aplica àseparação de corpos concedida como medida execu-tiva, no caso em que, transitada em julgado a sentençade separação, continua o cônjuge sob o teto do outro.
Há, ainda, mais uma exceção à aplicação deste
preceito à separação de corpos: admitindo-se, como
já se disse, o pedido de separação de corpos
formulado em conjunto por cônjuges que desejamseparar-se consensualmente, mas ainda não tendoeles completado dois anos de matrimônio, por óbvionão se poderá falar em decadência do alvará. Aítambém não se tem um processo cautelar, mas umprocedimento de jurisdição voluntária.
5. CONCLUSÃO
Pode-se concluir, portanto, que a separação decorpos, como qualquer medida cautelar, está sujeitaà pena de caducidade pela não-propositura da açãoprincipal no prazo de trinta dias, nos termos do art.806 do Código de Processo Civil, salvo quando a se-paração de corpos não configurar medida cautelar.
25 “Assim, o prazo dos três anos, para formulação do pedido de divórcio, conta-se da decisão que houver concedido aseparação cautelar, ainda que a ação principal não haja sido proposta nos trinta dias subseqüentes à sua prolação”(RODRIGUES, Silvio. O divórcio e a lei..., cit., p. 102).
26 “Nos termos, contudo, em que a matéria é colocada na Lei do Divórcio, através de dois dispositivos, arts. 8º e 25, nossaopinião se resume na afirmação de que a caducidade da decisão cautelar de separação de corpos, para efeito de obstara contagem do prazo de conversão da separação em divórcio, é matéria absolutamente estranha e impertinente,devendo ser repelida pelo magistrado se argüida pelo cônjuge requerido” (ABREU, José. Op. cit., p. 66).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, José. O divórcio no direito brasileiro. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 1992.
CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação judicial. 8.
ed. São Paulo: RT, 1995.
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teoria e prática. 5. ed. Curitiba: Juruá, 2003.
FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de
família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
FONSECA, Gilson; CALANZANI, José João. Lei do
divórcio anotada. Rio de Janeiro: Aide, 1995.
FRIEDE, Reis. Aspectos fundamentais das medidas
liminares. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1996.
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Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 731, set./1996.
GOMES, Orlando. Direito de família. 5. ed. Rio deJaneiro: Forense, 1983.
LACERDA, Galeno. Comentários ao Código de ProcessoCivil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, v. 8, t. 1.
LAGO, Lúcia Stella Ramos do. Separação de fato entrecônjuges. São Paulo: Saraiva, 1989.
PEREIRA, Áurea Pimentel. Divórcio e separação judicial.3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direitoprivado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. 8.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 21.ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 6.
———. O divórcio e a lei que o regulamenta. São Paulo:Saraiva, 1978.
ZAVASCKI, Teori Albino. Restrições à concessão deliminares. RJTAMG, v. 53.
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1. INTRODUÇÃO
Objetiva-se, com o presente trabalho, propor-cionar uma visão geral das novas e relevantes ques-tões do Direito de Família, em vista das mudançasocorridas desde a Constituição Federal de 1988, como surgimento de novas leis que atendem às mutaçõessocioeconômicas do mundo contemporâneo e comindisfarçável reflexo nas relações paterno-filiais.Novos tempos, com formidável evolução legislativaa exigir constante atualização dos estudiosos daciência jurídica.
Novidade maior dos dias de hoje decorre daaprovação do novo Código Civil brasileiro (Projetode lei original n. 634/75, que veio a converter-se na
Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), com vigência
PALAVRAS-CHAVEFamília. Formas de entidade familiar. Casamento. Igualdade dos direitos e deveres conjugais. Filiação. Igualdadedos filhos. Regime de bens. Separação e divórcio. União estável e concubinato. Poder familiar. Alimentos.Tutela e curatela. Bem de família.
desde 11 de janeiro de 2003, incorporando em seu
texto muitas das alterações trazidas pelas leis espe-
ciais e também introduzindo importantes mudan-
ças em todos os livros de nosso ordenamento civil,
especialmente no Direito de Família.
O período de vacatio legis permitiu não somente
o indispensável estudo da novel legislação, mas abriu
oportunidade para críticas de eventuais imperfeições
e sugestões para que sejam corrigidas pela reforma
que certamente se fará em muitos de seus dispositivos,
visando a seu almejado aperfeiçoamento.
O novo Código Civil mantém a estrutura
básica do Código de 1916, com a clássica divisão
em Parte Geral e Parte Especial, nesta se enqua-
drando os Livros que tratam das matérias espe-
INOVAÇÕES NO DIREITO DE FAMÍLIA
Euclides de OliveiraAdvogado e Consultor de Direito de Família e Sucessões em São Paulo.
Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP.Vice-presidente do IBDFam em São Paulo.
As notáveis mudanças operadas no Direito de Família,especialmente a partir do último quartel do séculoXX, com a Constituição Federal de 1988, passarama integrar o corpo do novo Código Civil, em vigordesde 11 de janeiro de 2003, com acréscimos namesma linha de atualização normativa.Esse é o campo de fundo do presente estudo, comapontamento dos tópicos essenciais da modernalegislação civil brasileira.
R E S U M O A instituição familiar viu-se reforçada pelo reco-nhecimento jurídico dos diversos modos de suaformação, em paralelo ao casamento civil.Demais disso, as relações entre os cônjuges e osdireitos paterno-filiais planificaram-se pelo princípiofundante da igualdade de direitos e de deveres.A análise desses pontos é procedida em tópicosdistintos, por uma razão de ordem metodológica,porém visando à harmonização dos critérios quenorteiam os direitos inerentes ao ente familiar novigente sistema jurídico.
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cíficas – Direito de Família, Direito das Coisas, Di-
reito das Obrigações e Direito das Sucessões e, por
acréscimo, o Direito de Empresa, que abrange a
parte geral do antigo Código Comercial. O Direito
de Família é tratado no Livro IV do novo Código,
ocupando os artigos 1.511 a 1.783, com divisão em
quatro Títulos assim nominados: Do Direito
Pessoal, Do Direito Patrimonial, Da União Estável,
Da Tutela e da Curatela.
Logo se percebe que o novo ordenamento aban-
dona a visão patriarcalista que inspirou a elabo-
ração do Código revogado, quando o casamento
era a única forma de constituição da família e nesta
imperava a figura do marido, ficando a mulher em
situação submissa e inferiorizada.
A visão atual é bem outra, com ampliação das
formas de constituição do ente familiar e a consa-
gração do princípio da igualdade de tratamento
entre marido e mulher, assim como iguais são todos
os filhos, hoje respeitados em sua dignidade de
pessoa humana, independentemente de sua origem
familiar.
Essas importantes mudanças no plano jurídico
da família não vieram somente agora, com o novo
Código Civil. Na verdade, a evolução vem ocor-
rendo em etapas, desde meados do século passado,
valendo ressaltar o texto da Lei n. 4.121, de 1962,
conhecida como Estatuto da Mulher Casada, que
afastou muitas das discriminações antes observadas
contra a mulher.
Na seqüência desse evoluir legislativo, sobre-
veio, em junho de 1977, a Emenda Constitucional
n. 9, a excluir o caráter indissolúvel do casamento,
com a instituição do divórcio, que teve sua regula-
mentação na Lei n. 6.515/77.
Mas a grande virada deu-se com a Constituição
Federal de 1988, que introduziu relevantes mu-
danças no conceito de família e no tratamento dis-
pensado a essa instituição considerada a base da
sociedade. Podem ser apontadas quatro vertentes
básicas nesse facho de luz ditado pelos artigos 226 e
seguintes da Carta constitucional: a) ampliação das
formas de constituição da família, que antes se cir-
cunscrevia ao casamento, acrescendo-se como en-
tidades familiares a união estável e a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes;
b) facilitação da dissolução do casamento pelo
divórcio direto após dois anos de separação de fato,
e pela conversão da separação judicial em divórcio
após um ano; c) igualdade de direitos e deveres do
homem e da mulher na sociedade conjugal, e d)
igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento,
ou por adoção, garantindo-se a todos os mesmos
direitos e deveres e sendo vedada qualquer discri-
minação decorrente de sua origem.
Como decorrência dos novos mandamentos
constitucionais, foram editadas leis especiais garan-
tidoras daqueles direitos, com atualização do texto
da Lei n. 6.515/77, relativa à separação judicial e ao
divórcio, a edição do Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (Lei n. 8.069/90), a normatização do reco-
nhecimento de filhos havidos fora do casamento
(Lei n. 8.560/92) e as leis da união estável (ns. 8.971/
94 e 9.278/96), dando aos companheiros direitos a
alimentos, meação e herança.
Esse repositório de leis inovadoras certamente
passou a produzir forte impacto no arcaico texto
do Código Civil de 1916, tornando letra morta mui-
tos de seus dispositivos, alguns revogados expres-
samente (como os referentes ao antigo desquite),
enquanto outros subsistem no texto escrito como
simples referência histórica em vista de não terem
sido recepcionados pela Carta de 88 e serem incom-
patíveis com os novos ordenamentos legais (por
exemplo, o capítulo do velho Código referente à
odiosa discriminação dos filhos em legítimos, le-
gitimados e ilegítimos).
Era preciso, portanto, que se atualizasse o texto
do Código para que deixasse de ser um simples con-
junto de normas relativas ao casamento e outros
institutos paralelos, passando efetivamente a regu-
lamentar o Direito de Família com as concepções
atuais de sua ampliação e respeito às figuras dos
seus componentes humanos.
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2. PRINCIPAIS INOVAÇÕES
Para um estudo mais abrangente das inúmeras
e importantes inovações trazidas ao Direito de Fa-
mília pelo novo Código Civil, sempre lembrando
que muitas delas já constam de leis esparsas, agora
incorporadas ao texto do novo ordenamento, va-
mos a um destaque dos principais tópicos, aten-
dendo a critérios de relevância, alterações no sis-
tema jurídico e justificação de crítica construtiva.
2.1 Maioridade civil
Antecipa-se a plena capacidade civil da pessoa
humana, dos atuais 21 anos para 18 anos de idade.
Nesse sentido é a disposição do artigo 5o do novo
Código Civil, trazendo importantes reflexos para
o campo do Direito de Família, como nas situações
de autorização paterna para o casamento, sujeição
ao pátrio poder, que passa a denominar-se “poder
familiar”, cessação da tutela, cessação do direito a
alimentos etc. Sob essa mesma ótica da antecipação
da capacidade, reduz-se para 16 anos de idade o
limite para emancipação dos filhos por outorga
paterna (artigo 5o, parágrafo único, inciso I), e
iguala-se também em 16 anos a idade do homem e
da mulher para fins de capacitação nupcial (artigo
1.517 do novo CC).
2.2 Casamento
O casamento, que pode ser civil ou religioso
com efeitos civis, é conceituado como comunhão
plena de vida, com base na igualdade de direitos e
deveres dos cônjuges (artigo 1.511), princípios estes
que serão repisados no capítulo da eficácia do casa-
mento (artigo 1.565).
Disposições sobre o casamento religioso, em
alteração a normas da Lei Registrária (n. 6.015/73),
facilitam o registro civil dessa espécie de união legal.
A facilitação decorre da possibilidade de efetuar-se
o registro a qualquer tempo, mesmo depois de ven-
cido o prazo de 90 dias de sua realização, bastando
que se renove a habilitação matrimonial, providên-
cia esta que visa apurar a inexistência de impedi-
mentos para o casamento.
2.2.1 Impedimentos matrimoniais
O novo Código reduz os impedimentos matri-
moniais a sete situações, conforme enumeração doartigo 1.521. Correspondem aos impedimentosabsolutos do Código de 1916, descritos em seu ar-
tigo 183, incisos I a VIII, com exceção do inciso VII,que proibia o casamento do cônjuge adúltero com
o seu co-réu por tal condenado. Bem agiu o legis-
lador em afastar o impedimento decorrente de adul-
tério, seja por cuidar-se de figura que se acha esmae-
cida e em fase de extinção como ilícito penal, como
também por contrapor-se, aquele impedimento, à
solução naturalmente romântica de uma nova
união com a pessoa amada, desde que dissolvido o
casamento por divórcio ou viuvez.
Cingem-se, os impedimentos absolutos, às hi-
póteses tradicionais de vedação do casamento entre
parentes próximos, ascendentes e descendentes, co-
laterais até o terceiro grau, adotante e adotado, afins
em linha reta, pessoas casadas e união do cônjuge
sobrevivente com o condenado por homicídio ou
tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Nas primeiras hipóteses, objetiva-se evitar
uniões de caráter incestuoso, que são igualmenteofensivas à moral e aos bons costumes. Note-se quea vedação relativa aos afins em linha reta passa a
abranger também as pessoas em união estável, emvista da ampliação daquele conceito de parentescolegal, nos termos dos artigo 1.595 do novo Código
Civil, antes limitado ao cônjuge, e agora extensivoao companheiro.
Quanto aos impedimentos entre colaterais, ob-
serva-se que o novo Código não contempla a ressalvade autorização judicial para o casamento entre oscolaterais de terceiro grau (tio e sobrinha), que era
prevista no Decreto-lei n. 3.200/41. Resta ques-tionável se estaria revogada essa norma excepcional,
diante da disposição genérica do novo ordenamento
civil, ou se mantida como regra especial prevalecente.
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O exame dos impedimentos matrimoniais faz-se
em procedimento administrativo da habilitação,
perante o Oficial do Registro Civil do domicílio dos
nubentes. A esse respeito, enseja reparo a disposição
do artigo 1.526 do novo Código, a exigir que a habili-
tação seja “homologada pelo juiz”. Mas que Juiz será
esse? O Juiz de casamentos ou Juiz de Direito Corre-
gedor do Cartório? Nenhum dos dois deve ter essa
incumbência, mas, sim, o Oficial do Registro Civil,
que é quem prepara a habilitação. Esse é o sistema
tradicional, em que o Juiz somente decide quando
há parecer desfavorável à habilitação por parte do
Ministério Público, sem atendimento pelas partes.
2.2.2 Causas suspensivas
Fora do rol dos impedimentos matrimoniais,
mas com eles relacionadas, situam-se as “causas sus-
pensivas”, dispondo a respeito o novo Código, no
artigo 1.523, que não devem contrair casamento
certas pessoas, em hipóteses em que o Código
anterior, no artigo 183, incisos XIII a XVI, classificava
como impedimentos meramente proibitivos, embora
com algumas alterações no texto. As disposições
referem-se ao viúvo ou viúva que tiver filho do
cônjuge falecido, enquanto não se proceder ao
inventário e partilha dos bens; ao divorciado, en-
quanto não tiver sido homologada ou decidida a
partilha dos bens do casal; à viúva ou mulher com
casamento anulado, até 10 meses depois da viuvez
ou da dissolução do casamento; e, finalmente, ao
tutor ou curador e seus parentes, com a pessoa tu-
telada ou curatelada.
Note-se o emprego da expressão “não devem”,
em lugar de “não podem”, para excluir o caráter im-
peditivo daquelas causas, que, na verdade, desaparece
desde que haja autorização judicial. De qualquer
forma, mesmo que tais causas sejam violadas, não se
acarreta a invalidade do casamento, limitando-se à
sanção de obrigatoriedade do regime da separação
de bens (artigo 1.641 do novo CC).
2.2.3 Causas de nulidade e deanulação do casamento
No capítulo da invalidade do casamento, o
novo Código distingue os casos de casamento nulo
e de casamento anulável.
Nulo será o casamento contraído: a) por en-
fermo mental sem discernimento para os atos da vida
civil, e b) por infringência de impedimento (artigo
1.548). Na hipótese primeira, classificam-se os por-
tadores de doença mental que torne a pessoa abso-
lutamente incapaz, distinguindo-se de outras situa-
ções de incapacidade relativa, que ocasionam apenas
a anulabilidade do ato. Na segunda hipótese, lembre-se
que o novo Código apenas considera como impe-
dimentos as situações mais graves, enumeradas no
artigo 1.521. São os chamados impedimentos abso-
lutos do Código de 1916, uma vez que os impedi-
mentos relativos passam a ser considerados, pelo
novo ordenamento, como meras causas de anulação
do casamento.
Com efeito, no rol de causas de anulação do ca-
samento, o novo Código Civil trata de situações rela-
cionadas à falta da idade mínima para casar (16
anos), à falta de autorização do representante legal
para os menores de 18 anos, ao vício de vontade, à
incapacidade relativa, à atuação de mandatário com
procuração revogada e à incompetência da auto-
ridade celebrante (artigo 1.550). A questão do man-
dato revogado constitui inovação em relação ao
Código de 1916, mas com interessante ressalva de
que não tenha havido coabitação entre os cônjuges,
vez que esse tipo de comportamento estaria conva-
lidando a celebração do casamento ainda que por
mandatário excluído.
Enquadram-se como causas de anulação do ca-
samento por vício de vontade aquelas relativas ao
erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge (artigo
1.556). A enumeração dos casos de “erro essencial”,
conforme artigo 1.557 do novo Código, repete os
mesmos requisitos fáticos enunciados no artigo 219
do Código anterior, com exceção do referente ao
“defloramento da mulher”, que a jurisprudência já
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considerava revogado pelas superiores regras de
igualdade e de vedação de atos ofensivos à dignidade
da pessoa humana. Em acréscimo, o novo Código
prevê que se anule o casamento também na hipótese
de doença mental grave de um dos cônjuges, anterior
ao casamento e que torne insuportável a vida em
comum ao cônjuge enganado.
2.2.4 Direitos e deveres conjugais
Em capítulo sobre a eficácia do casamento, o
novo Código Civil dispõe que homem e mulher
assumem mutuamente a condição de consortes,
companheiros e responsáveis pelos encargos da
família (artigo 1.565).
Nota-se a preocupação em extirpar o trata-
mento jurídico diferenciado que o Código de 1916
estabeleceu entre os cônjuges, bastando lembrar que
seu artigo 233 se referia ao marido como o “chefe”
da sociedade conjugal, e o artigo 240, original-
mente, classificava a mulher como “auxiliar”, e com
a reforma da Lei n. 4.121/61 deu-lhe promoção pa-
ra “colaboradora”, mas conservando a submissão
feminina, uma vez que sua incumbência se restringia
a velar pela direção material e moral da casa.
O princípio igualitário não se compadece com
essa visão discriminatória dos membros da entidade
familiar. Por isso é que se enfatiza, no artigo 1.567
do novo Código, que a direção da sociedade con-
jugal será exercida, em colaboração, pelo marido e
pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.
O rol de deveres de ambos os cônjuges, previsto
no artigo 1.566 do novo ordenamento, repete os
quatro incisos do artigo 231 do Código anterior –
fidelidade, vida em comum, assistência, criação dos
filhos – e acrescenta mais um: respeito e conside-
ração mútuos. Trata-se de expressão que o legisla-
dor também utiliza na definição dos deveres dos
companheiros em união estável (Lei n. 9.278/96,
artigo 2o). Não se cuida de mera extensão pleo-
nástica do dever de assistência moral. A ênfase se
justifica em razão da “comunhão de vida” imanente
ao casamento, de sorte que o distanciamento por
falta de diálogo, a frieza no trato pessoal e outras
falhas de comunicação podem afetar aquela convi-
vência, motivando, com isso, novas figuras de
quebra de dever conjugal.
3. DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE
CONJUGAL
O novo Código Civil incorpora em seu texto
capítulo referente à dissolução da sociedade e do
vínculo conjugal, que havia saído para legislação
própria desde o advento do divórcio. Está revoga-
da, assim, a Lei n. 6.515/77, que regulamentava a
separação judicial e o divórcio, ao menos no que
tange a suas disposições de natureza material, ati-
nentes a causas, requisitos e espécies, muito embora
ainda subsistam suas disposições de cunho pro-
cessual, especialmente as relativas à conversão da
separação judicial em divórcio (artigos 35 a 37) e
ao divórcio consensual (artigo 40, § 2°).
Dá-se o término da sociedade conjugal por
morte, invalidade do casamento, separação judicial
e divórcio. Uma causa se acrescenta, porém, relativa
à presunção de morte por ausência de um dos côn-
juges (artigo 1.571, § 1°, do novo Código). Note-se
que o Código de 1916 considerava a ausência
“morte presumida” somente para fins de sucessão
definitiva (artigo 10, c.c. artigos 481 e 482).
3.1 Ausência como causa de términodo casamento
Comecemos pela novidade relativa à “ausên-
cia”. Interessante observar que a matéria sai do
Livro sobre Direito de Família para ser tratada, no
novo Código, na Parte Geral, artigos 6°, 7° e 22 a
29. Considera-se a ausência como morte presumida
para fins de sucessão definitiva e outras situações
de grave risco de vida do desaparecido.
A primeira espécie de ausência diz com o desa-
parecimento de uma pessoa quando for extrema-
mente provável sua morte pela situação de perigo
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em que se encontrava; trata-se de situação de grave
risco a exigir sentença judicial de reconhecimento
do provável óbito, à semelhança do que dispõe a
Lei de Registros Públicos, n. 6.015/73, em seu artigo
88. A outra situação prevista no novo Código como
de morte presumida é a de alguém, desaparecido
em campanha ou feito prisioneiro, que não seja en-
contrado até dois anos após o término da guerra.
Em todos esses casos, portanto, dá-se o efeito
dissolutório do casamento, por força do que ex-
pressamente dispõe o novo Código Civil, seja pela
presunção de morte por ausência do cônjuge, ou
pela morte judicialmente reconhecida.
3.2 Separação judicial
Permanece a clássica divisão da separação
judicial em: a) consensual (por mútuo consenti-
mento) e b) litigiosa, seja decorrente de culpa de
um dos cônjuges ou de causas objetivas indepen-
dentes de culpa (ruptura de vida em comum por
mais de um ano, ou grave doença mental por mais
de dois anos).
Na separação consensual, a inovação do Có-
digo de 2002 está na redução do prazo de casamento,
que cai de dois para um ano (artigo 1.574). Mostra-
se correta essa diminuição do chamado “prazo de
experiência” no casamento, que poderia ser até
menor, em torno de três ou de seis meses, como
observado em outras legislações.
A separação litigiosa por culpa, derivada de
grave violação a deveres conjugais, que torne insu-
portável a vida em comum tem a sua casuística am-
pliada, relativamente às previsões genéricas do
artigo 5o da Lei n. 6.515/77. O novo Código retorna
ao sistema de enumeração de motivos, que constava
do revogado artigo 317 do Código de 1916. Agora,
o rol constante do artigo 1.573 foi ampliado, porém
com característica meramente exemplificativa,
abrangendo os seguintes motivos: adultério, ten-
tativa de morte, sevícia ou injúria grave, abandono
voluntário do lar por um ano contínuo, condenação
por crime infamante e conduta desonrosa. O pará-
grafo único do mesmo artigo faculta ao Juiz consi-
derar outros fatos que tornem evidente a impossi-
bilidade da vida em comum.
Logo se vê a inutilidade da enumeração dos moti-
vos, pois todos eles estariam já compreendidos, como
se verifica no sistema da Lei n. 6.515/77, artigo 5o,
nas previsões genéricas de conduta desonrosa e grave
violação dos deveres conjugais. Outras críticas
podem ser anotadas com relação aos motivos enu-
merados no novo Código. Melhor que “adultério”
seria menção a “infidelidade”, porque esta é mais
ampla e condiz com a quebra do dever conjugal
correspondente.
Também não se compreende a menção a aban-
dono do lar por um ano contínuo, quando sabida-
mente ocorrem situações de abandono da
convivência em tempo muito inferior, caracte-
rizando hipótese de injúria grave, conforme ite-
rativa jurisprudência que assim já proclamava ao
tempo de vigência do artigo 317 do Código de 1916,
que mencionava o prazo de dois anos de abandono.
Parece desnecessária ou mesmo imprópria a
causa referente à condenação por crime infamante,
pois já enquadrável, a hipótese, como conduta
desonrosa, além de estabelecer uma graduação de
tipo criminoso que não se contempla na legislação
penal, na qual a qualificação mais grave se reserva
ao crime hediondo, e ainda porque “infamante” todo
crime o é por sua própria natureza de ato censurável.
Na previsão adicional de “outros fatos que
tornem evidente a impossibilidade da vida em
comum”, podem ser enquadradas diversas condu-
tas que antes escapavam à tipificação legal, possivel-
mente abrangendo os casos mais sérios de “incom-
patibilidade de gênios” e de “crueldade mental”,
próprios de casais que efetivamente “não combi-
nam”, desde que o comportamento de um dos
cônjuges se revele ofensivo ao recíproco dever de
“respeito e consideração”, tornando insuportável
o prosseguimento da vida em comum.
Na verdade, preferível seria que o legislador
abandonasse o critério da perquirição de culpa para
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decreto de dissolução da sociedade conjugal, que
significa uma indesejável intromissão do Estado-
Juiz na privacidade das relações domésticas. Sem
falar que se torna muito difícil a descoberta da
verdade real em muitos casos, exatamente porque
os desentendimentos se circunscrevem ao ambiente
interno do lar, só aparecendo no processo a “ponta
do iceberg”, enquanto a maior parte do bloco de
gelo se afunda no oceano das angústias e desencon-
tros do amor desfeito ou da paixão mal conduzida.
Por isso é que a moderna doutrina vem-se dire-
cionando na eliminação dessa forma de separação
culposa para contentar-se com a subsistência
apenas da chamada separação-ruptura, já prevista
na Lei n. 6.515/77 em caráter alternativo para a
separação judicial e como forma única de invocação
para o divórcio direto.
Quanto à separação judicial sem culpa, per-
manecem no novo Código as duas causas objetivas
que a fundamentam: a) ruptura da vida em comum
há mais de um ano e a impossibilidade de sua re-
constituição (separação-falência), e b) doença
mental grave, manifestada após o casamento, de
cura improvável e que permaneça por mais de dois
anos, tornando impossível a convivência (se-
paração-remédio). Note-se que houve redução do
prazo para a separação judicial por esse último mo-
tivo, caindo para dois anos, em vez dos cinco anos
previstos na Lei n. 6.515/77.
Não mais se prevê a chamada “cláusula da du-
reza”, de modo que, no sistema do novo Código
Civil, a existência de uma daquelas causas objetivas
serve ao decreto de separação judicial, sem que ao
juiz seja dado recusar sua aplicação sob pretexto de
nocividade aos filhos ou ao próprio cônjuge doente.
Outra modificação introduzida pelo novo or-
denamento diz com o efeito patrimonial da sepa-
ração sem culpa, consistente na perda, pelo cônjuge
requerente, dos bens remanescentes que o cônjuge
enfermo levou para o casamento, assim como a
perda da meação dos aqüestos, se o regime adotado
o permitir (artigo 5o, § 3o, da Lei n. 6.515/77). Essa
penalidade fica restrita, no novo Código, ao caso
de separação requerida por motivo de doença men-
tal (artigo 1.572, § 3o), o que nos parece positivo
em vista das circunstâncias de maior amparo à pes-
soa doente.
3.3 Divórcio
Subsistem os mesmos modos de divórcio de que
tratava a Lei n. 6.515/77:
– indireto: pela conversão da separação
judicial, decorrido o prazo de um ano;
– direto: pela comprovada separação de fato
por mais de dois anos, conforme dispõe o
artigo 1.580, §§ 1o e 2o, do novo Código Civil.
Não se menciona a culpa na motivação do pe-
dido de divórcio. Basta que se verifique o decurso
do prazo estabelecido em cada uma dessas situações.
O divórcio, em qualquer das modalidades, po-
de ser concedido sem que haja prévia partilha de
bens. Assim dispõe o novo Código, no artigo 1.582,
afastando a exigência contida na Lei n. 6.515/77
para a conversão da separação judicial em divórcio,
e que alguns juízes estendiam para o divórcio
direto. Bem se conhece a grande celeuma jurispru-
dencial sobre o tema, ainda que em parte pacificada
pelo entendimento adotado na Súmula n. 197 do
Superior Tribunal de Justiça, a dispensar partilha
para decretação do divórcio direto.
3.4 Nome do cônjuge
Pela sistemática da Lei n. 6.515/77, a mulher
perdia o direito de continuar usando o nome do
marido quando culpada pela separação judicial. E
também, ainda que cônjuge inocente, podia sofrer
aquela perda ao converter a separação em divórcio,
salvo em casos excepcionais.
Altera-se o panorama no novo Código Civil. A
adoção do sobrenome do cônjuge passa a ser direito
assegurado a ambos os nubentes (artigo 1.565, § 1o).
E a perda desse nome acrescido somente ocorrerá
para o cônjuge declarado culpado se assim o requerer
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o outro e desde que a alteração não cause prejuízos
para a identificação do cônjuge, distinção entre o
seu nome de família e o dos filhos, ou dano grave
reconhecido em decisão judicial (artigo 1.578).
Deu-se um avanço com relação à Lei n. 6.515/77,
devido à ampliação do direito de manutenção do
nome adotado pelo cônjuge no casamento e que
passa a identificá-lo no meio familiar, social e pro-
fissional, integrando o seu próprio direito de perso-
nalidade. Mas o legislador deveria ter ido além, dei-
xando sempre a possibilidade de escolha pelo titular
do nome, único a saber se lhe interessa manter o
sinal distintivo de seu nome de casado, indepen-
dentemente de ser ou não culpado pela separação.
3.5 Proteção da pessoa dos filhos
Separados ou divorciados os pais, cabe a eles
dispor de comum acordo sobre a guarda dos filhos
menores. Não havendo consenso, porém, a decisão
caberá ao juiz. Nesse sentido dispõe o novo Código
Civil, afastando-se do critério de culpa na separação,
para dizer, de forma concisa e lapidar, que a guarda
dos filhos será atribuída “a quem revelar melhores
condições para exercê-la” (artigo 1.584).
Leva-se em conta, portanto, o superior in-
teresse dos filhos, para que permaneçam com o pai
ou com a mãe, independentemente de quem tenha
sido o responsável pela separação. O que importa
examinar, nesse caso, é a condição pessoal do guar-
dião, a significar capacidade material e moral para
assistência e educação dos filhos. Por certo que não
tem prevalência o aspecto puramente material,
mesmo porque sua falta pode ser suprida por
prestação alimentícia a cargo do outro genitor.
Para conhecimento da situação, valer-se-á, o Juiz,
dos regulares meios de prova e, também, do indis-
pensável concurso de auxiliares, como assistentes
sociais e psicólogos, firmando seu julgamento em
um conceito multidisciplinar e determinando me-
didas de acompanhamento do caso para que se
constate a perfeita adaptação do menor ao regime
de guarda adotado.
O novo Código não fala em “guarda comparti-
lhada”, mas tampouco veda essa espécie de estipu-
lação que pode decorrer do consenso das partes ou
de decisão judicial, mostrando-se útil quando pre-
sentes certos requisitos, como os relativos a moradias
próximas, compreensão e diálogo, que permitam
esse modo de atuação conjunta dos pais separados
em benefício dos filhos em comum.
Paralelo ao direito de guarda por um dos côn-
juges, tem-se o direito do outro a visitar os filhos e
tê-los em sua companhia, bem como fiscalizar sua
manutenção e educação (artigo 1.589). A extensão
desse regime de visitas será maior ou menor depen-
dendo da idade do filho e das condições pessoais do
genitor. O importante é que não se comporte como
um mero “visitante”, e sim como efetivo pai ou mãe,
interessado na vida e na formação do filho, por isso
devendo, mais do que fiscalizar, realmente participar
das decisões relativas à sua criação e educação .
Omite-se, o novo Código, assim como também
omissa a legislação anterior, quanto ao direito de
visitas por avós ou outros parentes próximos dos
menores. Trata-se de aspecto importante na inte-
gração familiar da criança, que naturalmente se es-
tende da mera relação paterno-filial para atingir o
envolvimento afetivo com os demais membros desse
agrupamento nuclear da sociedade, que é a família
na sua mais ampla concepção. Não obstante a falta
de previsão legal, doutrina e jurisprudência vêm
admitindo como lícita e possível a visitação por
parte de avós ou outros parentes próximos dos me-
nores, especialmente irmãos.
4. FILIAÇÃO
Neste capítulo, o novo Código Civil elimina as
odiosas distinções entre filhos legítimos, legitimados
e ilegítimos, contidas no vetusto Código de 1916.
Reproduzindo regra de ouro inscrita no artigo
227, § 6o, da Constituição Federal de 1988, dispõe o
artigo 1.596 do novo ordenamento civil que “os
filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou
por adoção, terão os mesmos direitos e qualifica-
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ções, proibidas quaisquer designações discrimina-
tórias relativas à filiação”.
Continuam previstos os casos de presunção de
paternidade para os filhos concebidos na constância
do casamento. Mas acrescentam-se mais três hi-
póteses, no artigo 1.597, incisos III, IV e V do novo
Código, para inclusão de filhos: a) havidos por fe-
cundação artificial homóloga (com o sêmen do
marido, mesmo que falecido); b) havidos, a
qualquer tempo, quando se tratar de embriões ex-
cedentários, decorrentes de concepção artificial ho-
móloga; e c) havidos por inseminação artificial he-
teróloga (com o sêmen de outrem), desde que tenha
prévia autorização do marido.
Com essas importantes inovações, abre-se cam-
po à aplicação das modernas técnicas de engenharia
genética na chamada reprodução assistida, em suas
múltiplas modalidades, o que enseja, naturalmente,
mais detalhada regulamentação por leis especiais.
A contestação da paternidade presumida cabe
ao marido, conforme reza o artigo 1.601 do novo
Código, acrescentando que tal ação é imprescritível e
pode ser prosseguida com os herdeiros, se vier a falecer
o autor. Diversamente, o Código de 1916 emprestava
maior força ao princípio pater is est, estabelecendo
curtos prazos decadenciais, de dois ou três meses, para
que se contestasse a paternidade, conforme estivesse
ou não presente o marido por ocasião do nascimento
dos filhos nascidos de sua mulher. Agora, com a
imprescritibilidade, ainda que por respeito à verdade
genética, corre-se risco de desintegração do ente
familiar por tardia recusa, sempre admissível, da
paternidade anteriormente assumida, quebrantando
laços de afetividade que poderiam subsistir por parte
do filho que se veja renegado.
4.1 Reconhecimento dos filhos
Adotando inovações da Lei n. 8.560/92 e na
esteira do mandamento constitucional de igualdade
dos filhos, o novo Código Civil, no artigo 1.607,
permite o reconhecimento dos filhos havidos fora
do casamento, pelos pais, conjunta ou separada-
mente. Faz-se o reconhecimento voluntário pelas
formas indicadas no artigo 1.609: no registro de
nascimento, por escritura pública ou escrito parti-
cular a ser arquivado em cartório, por testamento,
ou por declaração perante o Juiz em qualquer
processo.
Não se dispõe a respeito do reconhecimento
administrativo, mas a omissão se entende suprida
pela subsistência da correspondente norma da ci-
tada Lei n. 8.560/92, que possibilita se faça o registro
por ordem do Juiz corregedor do Cartório de Re-
gistro Civil, após convocação do suposto pai e sua
anuência, quando nomeado pela mãe no ato de
registro do filho.
4.2 Adoção
Não obstante a duplicidade de regimes de ado-
ção previstos no Código Civil de 1916 e no Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), apli-
cáveis, respectivamente, para maiores e para me-
nores de 18 anos, seus efeitos se tornaram equipa-
rados diante do preceito maior da igualdade de to-
dos os filhos (artigo 227, § 6o, da Constituição Fe-
deral de 1988). Importa dizer que todos os filhos,
inclusive os havidos por adoção, têm os mesmos
direitos e qualificações na ordem jurídica.
Com o novo Código Civil, que dispõe a respeito
nos artigos 1.618 a 1.629, resta unificada a disciplina
da adoção, que se aplica a todas as pessoas, sem
distinção por faixas etárias. Uno também passa a
ser o procedimento, obrigatoriamente sujeito à
assistência efetiva do Poder Público e de processo
judicial com sentença constitutiva.
A idade mínima para o adotante passa a ser de
18 anos, novo patamar da capacidade plena. Mas
continua a natural exigência de que ele seja pelo
menos dezesseis anos mais velho do que o adotado
para que se justifique a perfilhação.
A adoção por duas pessoas pressupõe que sejam
marido e mulher ou companheiros em união estável.
A exceção fica com os divorciados e separados ju-
dicialmente, que poderão adotar em conjunto,
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contanto que acordem sobre a guarda e o regime
de visitas e desde que o estágio de convivência (exi-
gido para menores) tenha sido iniciado na cons-
tância da sociedade conjugal.
Continua sob a égide de legislação especial a
adoção por estrangeiros, conforme dispõe o artigo
1.629 do novo Código Civil. Subsistem nessa esfera,
portanto, as normas do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA – Lei n.8.069/90, artigos 51 e 52).
5. PODER FAMILIAR
O pátrio poder passa a denominar-se poder
familiar. Foi intuito do legislador afastar a cono-
tação patriarcalista, de predominância da figura
paterna nas relações com os filhos menores.
Essa mudança de conceito já se dera, em parte,
com a nova redação do artigo 380 do Código Civil
de 1916, no referir que o pátrio poder compete aos
pais, quando a primitiva redação falava em poder
do pai, e na sua falta, da mãe. Também o Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) já
cuidara de acertar ponteiros com expressa menção,
em seu artigo 21, de que o pátrio poder é exercido
pelos pais, em igualdade de condições.
Mas a denominação poder familiar ainda con-
serva uma carga de supremacia e comando que não
se coaduna com o seu verdadeiro sentido, já que os
pais têm, com relação aos filhos, não só poder, mas
um complexo e relevante conjunto de deveres
relativos a guarda, sustento e educação. Em vez de
poder, melhor seria denominar essa relação pater-
no-filial de “Autoridade Parental”, como consta,
dentre outros, do Código Civil francês.
No que concerne ao exercício do poder familiar, o
novo Código repete os preceitos do anterior e também
cuida das hipóteses de sua suspensão e extinção.
Cabe reparo, nesse aspecto, ao ranço conservador
do preceito que outorga aos pais o poder de exigir dos
filhos “obediência, respeito e os serviços próprios de
sua idade e condição” (novo Código, artigo 1.634,
VII), e de estipular que a perda do poder familiar pode
ocorrer na hipótese (dentre outras) de castigo imo-
derado do filho, levando a concluir que seria lícito o
castigo físico moderado, o que se afigura atentatório
aos direitos de integridade física do filho e ofensivo à
sua dignidade como pessoa humana.
6. REGIME DE BENS NO CASAMENTO
Substanciais mudanças se observam na regu-
lamentação, pelo novo Código Civil, do regime ma-
trimonial de bens (artigos 1.639 e seguintes).
A opção continua sujeita à celebração de pacto
antenupcial, por escritura pública, salvo se esco-
lhido o regime da comunhão parcial, em que bas-
tará a redução a termo no processo de habilitação
(artigo 1.640 e seu parágrafo único).
Diversamente da imutabilidade prevista no
Código de 1916, o novo ordenamento permite a
alteração do regime de bens no curso do casamento,
desde que autorizada judicialmente em pedido mo-
tivado de ambos os cônjuges, comprovando-se as
razões invocadas e ressalvados os direitos de tercei-
ros (artigo 1.639, § 2o).
Quatro são os regimes de bens, pelo novo Có-
digo, porém com enumeração diversa do Código de
1916. Desaparece o regime dotal, que, na realidade,
tem sido de raro uso entre nós. Ao lado dos regimes
da comunhão universal, da comunhão parcial (que
continua sendo o regime legal, na falta de convenção)
e do regime da separação de bens, surge o regime da
participação final nos aqüestos. Trata-se, esse último,
de absoluta novidade inspirada na legislação de países
europeus. Consiste em uma forma híbrida de
separação de bens durante o casamento e de co-
munhão parcial ao dissolver-se a sociedade conjugal.
Esclarecem os artigos 1.672 a 1.675 do novo Código
que, nesse regime de participação final nos aqüestos,
cada cônjuge possui patrimônio próprio, formado
pelos bens que possuía ao casar e os adquiridos, a
qualquer título durante o casamento, sendo que, à
época da dissolução da sociedade conjugal, faz-se a
partilha do patrimônio adquirido onerosamente
durante a vida em comum.
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O regime da separação de bens pode ser con-
vencional (pacto antenupcial) ou obrigatório, em
hipóteses assemelhadas ao sistema do Código de
1916. Ligeira modificação se faz para igualar em 60
anos o limite de idade das pessoas sujeitas àquele
regime, tanto o homem quanto a mulher (antes,
para esta, o limite era de 50 anos). Ainda assim, o
dispositivo continua sendo manifestamente incons-
titucional por estabelecer uma restrição à liberdade
de escolha do regime de bens por pessoas que são
consideradas plenamente capazes para todos os
atos da vida civil.
Quanto à alienação de bens por um dos cônju-
ges, persiste a necessidade de consentimento do
outro, ou suprimento judicial da outorga, mas
abrem-se exceções para o regime de separação abso-
luta, em que a disponibilidade dos bens particulares
cabe exclusivamente ao seu titular, e para o regime
da participação final nos aqüestos, se houver
estipulação a respeito no pacto antenupcial.
7. ALIMENTOS
Dispõe o artigo 1.694 do novo Código Civil
que os parentes, cônjuges ou companheiros podem
pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem
para viver de modo compatível com sua condição
social e para fins de educação.
A referência à condição social do alimentante
significa variação do valor para atendimento das
peculiaridades de cada pessoa, mas sem se distanciar
de suas necessidades, o que significa exclusão de
dispêndios tidos como excessivos ou meramente
voluptuários. De outra parte, há que se levar em
conta a capacidade econômico-financeira da pessoa
obrigada ao pagamento, para que se fixe a prestação
de forma racional e equilibrada, conforme se extrai
das disposições dos artigos 1.694, § 1o, e 1.695 do
novo ordenamento.
Na obrigação entre parentes mantém-se o sis-
tema de prioridade para os de grau mais próximo,
a significar, por exemplo, que os avós somente po-
dem ser chamados na falta dos pais do menor que
reclame assistência alimentar. Mas se o parente que
deve alimentos em primeiro lugar não estiver em
condições de suportar totalmente o encargo, o pa-rente sucessivo pode ser chamado a efetuar a com-plementação. Nessa hipótese, determina o artigo
1.698 do novo Código que, sendo várias as pessoascoobrigadas, serão todas responsáveis na medidade seus respectivos recursos, de sorte que, se inten-
tada a ação contra apenas uma delas, poderão asdemais ser chamadas a integrar a lide. Esse disposi-tivo resolve velha celeuma jurisprudencial a respeito
da responsabilidade dos ascendentes ou de irmãos,quando os pais do menor tivessem reduzida capa-cidade econômica para atendimento das neces-
sidades do alimentando.
Outro ponto de interesse por seu caráter ino-vador diz com a possibilidade de serem fixados ali-
mentos mesmo em caso de culpa da pessoa ne-cessitada, porém, nesse caso, os alimentos serãoapenas os indispensáveis à subsistência (artigo
1.694, § 2o). O mesmo tratamento se dá ao cônjuge
na separação judicial, ou seja, o culpado perde o
direito a alimentos, salvo se necessitar e não tiver
parente em condições de prestá-los, nem aptidão
para o trabalho, ficando o ex-cônjuge obrigado ao
pagamento no valor indispensável à sobrevivência
do necessitado (artigo 1.704 e parágrafo único).
A transmissibilidade da obrigação alimentar
aos herdeiros do devedor é prevista no artigo 1.700
do novo Código Civil, de forma mais ampla do que
está no artigo 23 da Lei n. 6.515/77, uma vez que
não se alude às forças da herança, e sim às condições
gerais de fixação do valor da pensão que constam
do artigo 1.694.
Outra novidade diz com a vedação de renúncia
do direito a alimentos, que abrange todos os possí-veis necessitados, incluindo-se cônjuges e compa-
nheiros, como deflui do artigo 1.707. Constituiretrocesso ao entendimento jurisprudencial de ad-missibilidade da renúncia dos alimentos pelo côn-
juge na separação judicial por mútuo consenti-mento. Revigora-se, portanto, o enunciado da
Súmula n. 379 do Supremo Tribunal Federal, que já
não vinha tendo aplicação regular por entender-se
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ultrapassada, especialmente em situações de renún-
cia pelo cônjuge que ficasse com bens suficientes pa-
ra manter-se de forma autônoma.
8. UNIÃO ESTÁVEL
Prevista na Constituição Federal de 1988, artigo
226, § 3o, como forma de entidade familiar, a união
estável entre o homem e a mulher teve regulamentação
específica nas Leis ns. 8.971/94 e 9.278/96.
Embora não constasse do texto original do
projeto do novo Código Civil (mesmo porque an-
terior à Constituição), o tema veio a ser incluído
durante os trâmites de votação, como Título III do
Livro do Direito de Família, artigos 1.723 a 1.727.
A conceituação da união estável é a mesma dada
pela Lei n. 9.278/96, ou seja, convivência pública, con-
tínua e duradoura, com o objetivo de constituição de
família. Não se fala em prazo mínimo de duração,
que a Lei n. 8.971/94 estipulava em cinco anos.
Não será possível união estável se houver im-
pedimento matrimonial entre os parceiros. Nesse
sentido dispõe o artigo 1.723, § 1o, do novo Código,
porém com importante ressalva que resolve
tormentosa questão: não se aplica o impedimento
do inciso VI do artigo 1.521, relativo à pessoa casada,
se ela se achar separada de fato ou judicialmente.
As chamadas causas suspensivas para o casa-
mento não impedirão a caracterização de união
estável. Quanto a outras situações, que o Código
de 1916 chamava de impedimentos relativos, e o
Código novo deixa para o campo da anulação do
casamento, nada se refere no capítulo da união es-
tável, mas certamente também se poderá invocar
anulação da união se presentes aquelas causas de
invalidação do ato jurídico.
8.1 Aspectos patrimoniaisda união estável
No aspecto patrimonial, praticamente iguala-
se a união estável ao casamento, por sujeitar-se, no
que couber, ao regime da comunhão parcial de bens
(artigo 1.725 do novo Código). Da mesma forma,
o direito a alimentos entre companheiros obedece
aos critérios previstos para parentes e cônjuges, fi-
xando-se de acordo com as necessidades do recla-
mante e os recursos da pessoa obrigada.
Mas não assim na esfera do direito sucessório.
O novo Código sequer inclui o companheiro na
ordem da vocação hereditária, limitando-se a tra-
tar de seus direitos nas disposições gerais do Livro
IV, que trata do Direito das Sucessões. Consta do
artigo 1.790 que a companheira ou o companheiro
participarão da sucessão do outro, mas apenas
quanto aos bens adquiridos onerosamente na
vigência da união estável. Importa dizer que não
terão qualquer participação na herança relativa a
outros bens, adquiridos antes ou havidos graciosa-
mente pelo autor da herança. Considerando-se,
portanto, somente os bens adquiridos na vigência
da união estável e a título oneroso, então o com-
panheiro sobrevivente terá direito à herança, nas
condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, receberá
uma cota equivalente à de cada filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da
herança, receberá metade do que couber a cada um;
III – se concorrer com outros parentes su-
cessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – se não houver parentes sucessíveis, rece-
berá a totalidade da herança.
Favorável ao companheiro, sem dúvida, o con-
curso na herança com descendentes e ascendentes
do falecido, tal como se reconhece também ao
cônjuge sobrevivente. Mas não se compreende que
o companheiro concorra com os demais parentes
sucessíveis, quais sejam os colaterais até o quarto
grau. Trata-se de evidente retrocesso, pois no sis-
tema da Lei n. 8.971/94 o companheiro recebia toda
a herança na falta de descendentes ou ascendentes.
Demais disso, considere-se a hipótese de o
falecido ter deixado apenas bens adquiridos antes
da união estável, ou havidos por doação ou herança.
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Então, o companheiro nada herdará, mesmo que
não haja parentes sucessíveis, ficando toda a he-
rança para o Município, uma vez reconhecida
jacente e vacante.
Por fim, convém lembrar que o novo Código
extingue o direito a usufruto parcial dos bens. Con-
serva o direito de habitação no imóvel que servia
de residência ao casal, mas somente em favor do
cônjuge sobrevivente. Não prevê esse mesmo di-
reito, que tem elevado cunho social, ao com-
panheiro sobrevivente, que assim é deixado intei-
ramente à míngua, nem mesmo podendo continuar
a residir no imóvel que lhe servia de residência na
união estável, quando não tenha direito à meação
ou à participação na herança nas situações já
analisadas.
Como se verifica, o direito sucessório do com-
panheiro é flagrantemente discriminatório, em
comparação com a posição reservada ao cônjuge,
nada justificando essa diversidade de tratamento
legislativo quando todo o sistema jurídico à luz da
Constituição recomenda proteção jurídica à união
estável como forma alternativa de entidade familiar,
ao lado do casamento.
8.2 Conversão da união estável emcasamento
A possibilidade de conversão da união estável
em casamento é tratada no artigo 1.726, mas com
inadequada referência a pedido dos companheiros
ao Juiz, quando, na verdade, o pedido cabe ao Oficial
do Registro Civil, mesmo porque, na conversão, não
atua o Juiz de casamentos por não haver celebração
solene do ato, mas simples registro em seguida à
habilitação dos companheiros.
8.3 Concubinato
Em disposição final, o novo Código trata do
concubinato, definindo-o como relações não-even-
tuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar
(artigo 1.727). Parece ter sido intuito do legislador
extremar o concubinato da união estável, sem pre-
visão de direitos que se restringem a essa espécie de
entidade familiar. Seria desnecessária essa menção
explícita ao concubinato, mesmo porque outras
situações existem que refogem ao figurino da união
estável, ainda mesmo com a presença de homem e
mulher sem impedimentos matrimoniais, desde que
a união se desfigure por falta de publicidade, pouca
duração ou descontinuidade (situação de meros
amantes ocasionais).
Também comporta reparo a menção aos impe-
didos de casar que se relacionem como meros con-
cubinos quando existe a exceção, prevista em outro
artigo, para a pessoa casada que esteja separada de
fato ou judicialmente, podendo, nessa hipótese, formar
uma família sob o pálio da união estável.
9. BEM DE FAMÍLIA
O novo Código acertadamente retira o bem de
família da Parte Geral e o inclui no Livro de Direito
de Família, em subtítulo dos direitos patrimoniais,
artigos 1.711 a 1.722.
Trata-se do bem de família convencional, ins-
tituído por cônjuges ou entidade familiar, mediante
escritura pública ou testamento, podendo também
ser instituído por terceiro, via testamento ou doa-
ção, desde que aceito pelas pessoas beneficiadas.
Pode ser objeto dessa convenção não só o imó-
vel residencial urbano ou rural, com suas pertenças
ou acessórios, mas também valores mobiliários,
cuja renda será aplicada na conservação do imóvel
e no sustento da família.
O bem de família constitui-se pelo registro da es-
critura no Registro de Imóveis. Sua proteção dá-se
pela isenção de execução por dívidas posteriores à
sua instituição, salvo as que provierem de tributos
relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio.
Quanto ao bem de família legal, continua sendo
regido por lei própria, que é a Lei n. 8.009/90, co-
brindo com a proteção da impenhorabilidade o imóvel
residencial ocupado por casal ou entidade familiar.
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10. TUTELA
Poucas são as mudanças relativas à nomeação
de tutores para os menores órfãos ou com pais des-
tituídos do poder familiar, conforme regulado no
novo Código Civil a partir do artigo 1.728.
Persistem as três modalidades de tutela: a) tes-
tamentária, com nomeação reservada aos pais em
conjunto (e não mais aos avós); b) legítima, deferida
aos parentes consangüíneos do menor, com prefe-
rência aos ascendentes e aos colaterais mais próxi-
mos e c) dativa, por nomeação judicial.
Como novidade maior, a reintrodução no ce-
nário jurídico da figura do “protutor” (não previsto
no Código de 1916), que pode ser nomeado pelo
juiz para fiscalizar os atos do tutor.
No mais, o exercício da tutela, o rol de deveres
do tutor e a exigência de prestação de contas em
muito se aproximam dos dispositivos constantes
do Código anterior.
11. CURATELA
As pessoas sujeitas à curatela por interdição têm
a sua numeração ampliada no novo Código, artigo
1.767, a fim de abranger não apenas os portadores
de enfermidade ou deficiência mental e os pródigos,
mas também outras pessoas que não possam
exprimir sua vontade ou sofram de restrições por
serem ébrios habituais, viciados em tóxicos ou
excepcionais sem completo desenvolvimento mental.
Acrescentem-se, ainda, as hipóteses de curatela
do nascituro (artigo 1.779), bem como do enfermo
ou portador de deficiência física. A respeito destes,
em absoluta novidade de importante reflexo práti-
co, o novo Código dispõe, no artigo 1.780, que a
curatela dependerá de requerimento do doente ou,
se impossibilitado de fazê-lo, de qualquer das pes-
soas habilitadas a requerer a interdição, com a fina-
lidade de se dar curador para cuidar de todos ou de
alguns dos seus negócios ou bens.
São habilitados a promover a interdição os pais
ou tutores, o cônjuge, qualquer parente ou, excep-
cionalmente, o Ministério Público. A previsão está
no artigo 1.768 do novo Código, sem sabor de no-
vidade, mas com injustificada omissão do com-
panheiro de pessoa que venha a se tornar incapaz.
Evidente a falha legislativa diante do tratamento
jurídico que merece a união estável como entidade
familiar. Demais disso, é de se admitir que o compa-
nheiro possa requerer a curatela em face do que
dispõe o artigo 1.775 do mesmo Código, com ex-
pressa menção do companheiro (por falta do côn-
juge) para ser o curador do outro, quando interdito.
Outras disposições relativas à investidura e ao
exercício da curatela constituem repetição de nor-
mas do Código de 1916, lembrando-se, por final,
que se aplicam à curatela, subsidiariamente, as nor-
mas relativas à tutela.
12. CONCLUSÃO
Tarefa ingente, a de comentar todas as notáveis
mudanças trazidas pelo vigente Código Civil bra-
sileiro, impossível de ser cumprida em breve estudo.
Procuramos apontar alguns temas de maior rele-
vância, apenas toques de pincel no principal, na
expectativa de estimular o apetite intelectual dos
interessados em incursionar com mais profun-
didade na vasta seara desse novo Direito de Família.
Do que se disse a favor das mudanças, não se
interprete como pura louvação. Nem toda novidade
se traduz em acertada correção ou efetiva melhoria.
Por certo que essa nova codificação de leis civis,
embora constitua notável avanço em relação ao
arcaico texto do Código de 1916, especialmente no
Livro do Direito de Família, ainda comporta
aperfeiçoamento em muitos pontos. Para essa
empreitada maior, estamos todos convocados nessa
fase de iniciação do novo sistema jurídico, na ex-
pectativa de que tenhamos em breve uma legislação
civil que efetivamente responda aos anseios de
justiça da pessoa humana integrada no agru-
pamento familiar, núcleo básico da sociedade
brasileira.
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A palavra participação,1 assim como popular,
é de uso freqüente, e não é de hoje que a discussão
sobre a participação se realiza. O uso indiscrimi-
nado do termo trouxe um vazio ao seu significado.
É relevante, então, que façamos uma advertência:
vamos tratar da participação popular.
Assim, participação “é uma forma ativa de in-
tegração de um indivíduo a um grupo”2 ou, sim-
plesmente, “participação é um instrumento”.3
Demo4 define participação enquanto conquista:
“participação é conquista”, pois não significaria
outra coisa senão um processo. Correlato a este
entendimento, para o referido autor, se empre-
gamos o termo participação, ele não poderá ser en-
tendido como dádiva, exatamente porque não seria
conquista, mas, sim, uma participação limitada por
quem exerce o poder; nem concessão, pois não é
fenômeno secundário da política, mas elemento
preponderante, fundamental no processo de con-
quista; não é preexistente, ou seja, não existe antes
da conquista.
Os conceitos empregados anteriormente dei-
xam explícito o conteúdo político da participação:
seria uma forma de integração dos indivíduos, con-
quista e processo. É mister afirmar, contudo, que
estamos diante de uma característica que lhe é
intrínseca, isto é, a participação é corolário da par-
ticipação, ou, de outro modo, é uma ação que se
reveste pelo seu próprio conteúdo, envolvendo
sujeitos, conquista e processo.
Fixado esse entendimento, procuremos, então,
desvendar as raízes da participação. Como foi dito,
é usual, hoje, falar de participação, porém é tema
antigo, remonta necessariamente ao ideal parti-
cipativo da democracia grega.5 Nesse momento his-
tórico, a participação era entendida como o direito
de tomar parte das decisões políticas, na polis, ou
seja, nas decisões do interesse do cidadão. A parti-
cipação ficava restrita a um pequeno grupo, que
tinha, contudo, uma efetiva participação nos ne-
gócios públicos. Ressalta-se a valiosa contribuição
dos gregos para a democracia e para a participação
1 Sobre o assunto: PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999; MOREIRANETO, Diogo de Figueredo. Direito da participação política. Rio de Janeiro: Renovar, 1992; LUCAS, Randolph.Democracia e participação. Brasília: UnB, 1985; SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: oscaminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueredo. Op. cit., p. 18.3 LUCAS, Randolph. Op. cit., p. 115.4 DEMO, Pedro. Participação é conquista. São Paulo: Cortez, 1999, p. 18.5 Sobre o assunto: MELO, Monica. Plebiscito. Referendo e iniciativa popular: mecanismos constitucionais de participação
popular. Porto Alegre: Fabris, 2001; COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989.
PARTICIPAÇÃO E REPRESENTAÇÃOPOPULAR
Humberto Mariano de AlmeidaMestre em Direito Constitucional pela PUC/SP.
Professor do Imes.Doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP.
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direta do povo na vida pública da cidade-estado,
daí concluir-se que os gregos não concebiam a idéia
de representação tal como conhecemos hoje.
No século XVII, Rousseau é considerado o teó-
rico da participação.6 A participação, na teoria de
Rousseau, segundo Pateman,7 deve necessariamente
envolver dois elementos, que, para ele, são abso-
lutamente relevantes, quais sejam: igualdade e in-
dependência econômica.
“Além disso, quantas coisas, difíceis de reunir, supõe
esse governo! Em primeiro lugar, um Estado muito
pequeno, no qual seja fácil reunir o povo e onde
cada cidadão possa sem esforço conhecer todos os
demais; segundo uma grande simplicidade de
costumes que evite a acumulação de questões e as
discussões espinhosas; depois bastante igualdade
entre as classes e fortunas, sem o que a igualdade
não poderia subsistir por muito tempo nos direitos
e na autoridade; por fim, pouco ou nada de luxo.”8
Com a igualdade e a independência econômica
estabelecer-se-ia a necessidade de manter uma inde-
pendência e interdependência nas relações desen-
volvidas entre o povo de maneira que
“haverá uma dependência de cada indivíduo em
relação a todos os outros, vistos coletivamente
como soberano e a participação independente
constitui o mecanismo pelo qual essa interação é
reforçada”.9
A idéia de uma relação mútua que envolveria
um comprometimento recíproco dos indivíduos
entre si e com a sociedade demonstraria a necessi-
dade de que a participação se realize de maneira
que a vontade do indivíduo possa prevalecer, de
forma totalmente livre, contudo sem deixar de levar
em consideração a dependência do indivíduo para
com o Estado.
“A segunda relação é a dos membros entre si ou
com o corpo inteiro, e essa relação deverá ser, no
primeiro caso, tão pequena, e, no segundo, tão
grande quanto possível, de modo que cada cidadão
se encontre em perfeita independência de todos e
em uma excessiva dependência da polis – o que se
consegue graças aos mesmos meios, pois a força
do Estado faz a liberdade de seus membros. É desta
segunda relação que nascem as leis civis.”10
O indivíduo encontra-se dependente da polis,
mas totalmente livre para participar das decisões po-
líticas, sendo cogente que a participação envolveria
a necessidade de igualdade e independência econô-
mica e o necessário plexo com a independência dos
cidadãos entre si, e sua dependência ao Estado. É
forçoso identificar, portanto, que a participação
exerceria uma importante função na democracia, ou,
dito de outro modo, relevantes funções.
Destarte, identificamos, portanto, três funções
elementares da participação: educativa, de controle
e integração. A participação tem uma função edu-
cativa na medida em que o cidadão aprende a reco-
nhecer que os interesses da coletividade estão acima
de seus próprios interesses ou de grupos.
“Ainda mais salutar é o lado moral da educação
proporcionada pela participação do cidadão, ainda
que raramente, em funções públicas. Ele é obrigado,
quando assim comprometido, a dar importância
a interesses que não são seus; (...) aplicar, a cada
momento os princípios e máximas para o bem
comum.”11
6 PATEMAN, Carole. Op. cit., p. 35.
7 PATEMAN, Carole. Op. cit., p. 36.
8 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 151, (Coleção Os Pensadores, Livro
III, Capítulo 12). (grifo nosso)
9 PATEMAN, Carole. Op. cit., p 36.
10 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op. cit., Livro II, Capítulo 12, p. 131.
11 LUCAS, Randolph. Op. cit., citando Stuart Mill, p. 120.
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Ao mesmo tempo em que somos educados na
participação, outro elemento relevante se apre-
senta: o controle. A participação demanda com-
promisso, envolvimento, portanto, as ações devem
ser direcionadas para se alcançar o bem público, o
que envolve tomar posições, decisões e, conseqüen-
temente, fiscalizar as aplicações das posições
adotadas.
“A fim de que o pacto social não represente, pois,
um formulário vão, compreende ele tacitamente
este compromisso, o único que poderá dar força
aos outros: aquele que recusar obedecer à vontade
geral a tanto será constrangido por todo o corpo,
o que não significa senão que o forçarão a ser livre,
pois é essa a condição que, entregando cada cidadão
à pátria, o garante contra qualquer dependência
pessoal. Essa condição constitui o artifício e o jogo
de toda máquina política, e é a única a legitimar os
compromissos civis, os quais, sem isso, se
tornariam tirânicos e sujeitos a maiores abusos.”12
A função integrativa da participação envolve
uma congruência. Há, desse modo, um entrelaça-
mento entre as funções anteriores e a própria razão
de ser da participação: a integração. Esta se realiza
em um processo de educação e controle, em que os
atores políticos buscam um envolvimento político,
que “se refere à ação dos indivíduos e dos grupos
secundários nos processos decisórios do Estado”.13
Estimular a participação torna-se fundamental pa-
ra o desenvolvimento e o aprofundamento da de-
mocracia.
Está claro que o fenômeno da participação en-
volve uma variedade de matizes que se contrapõem
de imediato à idéia de participação, a qual ficaria
reduzida à simples escolha de representantes para
as funções que são delegadas pelo povo.
Essa posição já era defendida por Rousseau, quan-
do refutava a possibilidade de representação, pois a
democracia deve ser exercida pelo próprio povo.
“A soberania não pode ser representada pela mes-
ma razão por que não pode ser alienada, consiste
essencialmente na vontade geral e a vontade abso-
lutamente não se representa. É ela mesma ou é
outra, não há meio-termo. Os deputados do povo
não são, nem podem ser seus representantes; não
passam de comissários seus, nada podem concluir
definitivamente. É nula toda lei que o povo direta-
mente não ratificar; em absoluto, não é lei. O povo
inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é
durante a eleição dos membros do parlamento;
uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada.
Durante os breves momentos de sua liberdade, o
uso, que dela faz, mostra que merece perdê-la.”14
A teoria de Rousseau (Do contrato social, 1757)
é freqüentemente reconhecida como uma concepção
democrática. Não seria, portanto, de se estranhar a
sua defesa da participação, e mais do que isso, a parti-
cipação direta do povo nas tomadas de decisões polí-
ticas, e sua insistente retaliação à idéia de repre-
sentação.
Hodiernamente, podemos definir representa-
ção como
“la relación de una persona com outra o varias en
virtude de la cual la voluntad de la primera se
considera como expresión inmediata de la última,
de suerte que juridicamente aparecen como sendo
una sola persona”.15
A concepção teórica da representação encontra
em Thomas Hobbes (Leviatã, 1651) um dos seus
primeiros defensores. Podemos considerá-lo o Teó-
rico da Representação. Sua concepção é apontada
por muitos estudiosos como a justificadora do
12 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op. cit., Livro I, Capítulo 7, p. 75.
13 MOREIRA NETO, Diogo de Figueredo. Op. cit., p. 18.
14 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op. cit., Livro III, Capítulo 15, p. 187.
15 JELLINEK, Georg. Teoria general del estado. México: Fondo de Cultura Económica, 2001, p. 506.
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absolutismo monárquico, mas é justamente nela
que vamos encontrar notas relevantes para a teoria
da representação. A representação, na teoria con-
tratualista de Hobbes, afirma o poder do soberano,
cuja autoridade lhe foi atribuída pelo contrato so-
cial, que vai legitimar o exercício do poder pelo
governante.
“Uma pessoa é aquele cujas palavras ou ações são
consideradas quer como próprias quer como
representando as palavras ou ações de outro
homem, ou de qualquer coisa a que sejam atri-
buídas, seja com verdade ou por ficção.”16
Dessa afirmação podemos deduzir que Hobbes
impõe uma diferença entre o representante (sobe-
rano, governante) e o representado (multidão,
povo).
É interessante verificar que Hobbes vai buscar a
idéia de representação na figura do ator, que recebe
a incumbência de representar, ser o representante de
atos ou ações que não seus próprios, mas que aceita
personificá-los por meio de um pacto realizado com
o autor, para desenvolver os objetivos pretendidos
por este. O ator age por autoridade, pois este é o
direito recebido do autor.
E mais adiante ele é categórico,
“A palavra pessoa é de origem latina (...); tal como
em latim persona, significa disfarce ou aparência
exterior de um homem, imitada no palco. (...) E
personificar é representar seja a si mesmo ou a
outro, e daquele que representa outro diz-se que é
portador de sua pessoa, ou age em seu nome (...).
Recebe designações diversas, conforme as ocasiões:
representante, mandatário, lugar-tenente, vigário,
advogado, deputado, procurador, ator, e outras
semelhantes.”17
A idéia é de que a representação seria essa rela
ção que se estabelece na personificação de atos que
não são próprios do representante, mas cujas ações
são decorrentes de sua autoridade de praticar tais
atos outorgada por quem pertence o direito, ou a
própria autoridade. Os atos praticados em nome
da autoridade investida na figura do representante
obriga ambos, representante e representado, como
se ele próprio os praticasse, sem contudo ficar
isento, ou menos responsável pelas conseqüências
de tais atos.
No governo civil, essa pessoa delegadora de au-
toridade é a multidão, o povo, que transfere direitos
a uma pessoa, o representante, a partir do consen-
timento de todos. E seria somente nessa perspectiva
que poderíamos visualizar a multidão como uma
pessoa. A multidão, portanto, é a autora do pacto
da transferência de direitos e da autoridade ao re-
presentante.
“Uma multidão de homens é transformada em
uma pessoa quando é representada por um só
homem ou pessoa, de maneira a que tal seja feito
com o consentimento de cada um dos que constitua
essa multidão. Porque é a unidade do representante,
e não a unidade do representado, que faz que a
pessoa seja una. E é o representante o portador da
pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira
como é possível entender a unidade da multidão.”18
A representação seria, portanto, essa delegação
de autoridade ao representante, que agirá a partir
do consentimento obtido da multidão como se fos-
se ela própria, pois o representante é um, e nesse
sentido sua ações comprometem a todos, e as con-
seqüências de seus atos são de responsabilidade de
todos os pactuantes.
A representação tem muitos adeptos, mas con-
tinuaremos a investigar os clássicos. Na teoria de-
mocrática de representação vamos encontrar, na
obra O espírito das leis (1748), uma importante
contribuição para a teoria da representação. Mon-
tesquieu defende, nessa obra, a plena capacidade
16 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 135, (Coleção Os Pensadores, Capítulo XVIII).17 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 135.18 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 137.
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do povo para eleger os seus representantes. Este par-
ticipa com o voto, não tendo, a partir desse mo-
mento, nenhum controle ou ingerência sobre os
atos de seus representantes. O exercício da repre-
sentação é livre, não concebendo a possibilidade de
que venha a receber qualquer vinculação de seus
eleitores, portanto, impedindo instruções ou con-
sulta a seus eleitores. Não admite, pelo contrário,
afasta a idéia de mandato imperativo. O ato de
votar, na concepção de Monstesquieu, é um mero
mecanismo utilizado para a escolha dos represen-
tantes. A vontade do representado não deve ser im-
pedimento para o livre exercício das atividades do
representante, pois este tem a liberdade para agir
de acordo com a sua consciência e seus valores.
“Não é necessário que os representantes, quereceberam daqueles que os escolheram umainstrução geral, recebam destes uma outrainstrução particular sobre cada uma das questões,(...).
Havia um grande vício na maioria das antigasrepúblicas: O povo tinha o direito de tomarresoluções ativas que requerem certa execução, coisade que ele de modo algum é capaz. Ele só devetomar parte no governo para escolher seus
representantes, e isso é tudo o que pode fazer.”19
A representação nos moldes defendidos, para
nós, não representa o ideal de democracia. A demo-
cracia representativa precisa ser ampliada, já que,
nas sociedades contemporâneas, a democracia di-
reta tornou-se impraticável. Precisamos ampliar ain-
da mais os espaços democráticos. A democracia exige
invariavelmente mais democracia, ou seja, tornando
efetivos os instrumentos de participação popular
existentes (referendo, plebiscito, iniciativa popular)
e, sobretudo com o advento das novas tecnologias
(internet), fazendo cada vez mais possível uma real
participação na vida política do país.
19 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 168-169, Livro XII.
Entendemos a participação popular como con-
sectário da democracia, e isso não é só por nossa
vontade, mas também de nosso ordenamento jurí-
dico constitucional. Para nós, a participação po-
pular é um mecanismo, é um processo, que se realiza
na conquista de espaços para o exercício de práticas
democráticas, em todos os setores, nas escolas, uni-
versidades, sindicatos, bairros etc., mas especial-
mente, em nosso caso, na política e nos partidos.
Envolve uma integração entre os vários atores so-
ciais para um constante aprendizado das práticas
democráticas, pois uma das funções da participação
é a função educativa. A participação popular tam-
bém gera controle: exercício do poder de fiscaliza-
ção sobre os atos e as ações dos governantes e de
seus representantes.
O “poder emana do povo”, esse é um princípio
assente na Constituição Federal. O poder será
exercido por representantes eleitos ou diretamente,
o que revela a real indicação, da Carta constitucio-
nal, da participação popular nos mecanismos do
poder. A democracia inspirada pelo texto consti-
tucional não é a democracia representativa clás-
sica, ou seja, não se realiza somente na simples es-
colha de representantes para ocupar as funções pú-
blicas. Ela envolve a idéia de participação popular.
Destarte, essa é a indelével concepção que brota em
nosso Estado.
O princípio da participação popular exige,
portanto, uma realização mais efetiva da soberania
popular. Essa efetividade não se concebe somente
com a eleição de representantes, periodicamente,
ou de outra maneira, com o exercício do voto; mas
de modo a realizar o exercício direto de funções
públicas pelo povo e das decisões democráticas.
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D ireito A r t i g o
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1. INTRODUÇÃO
O campo de estudo delineado pelo tema con-templa vários aspectos da chamada sociologia ju-rídica. Contudo, cumpre notar, já de plano, que oautor deste pequeno trabalho teve por preocupa-ção primeira ou mesmo primordial a conexão, aformulação de uma ponte imaginária com o autorestudado, cujo campo de atuação preponderantesitua-se na segunda parte do século XIX, trazendosuas idéias para a atualidade e, especialmente, seestas encontram aplicação ou contribuição para oDireito moderno.
O trabalho em foco, portanto, presta-se muitomais como um guia introdutório sobre o doutrinadoralemão estudado – com alguns toques analíticos – doque como um tratado, bem de se ver, até mesmo des-
cabido para o espaço e para o desiderato deste autor.
1 PENDÁS, Benigno. El pensamiento político medieval en la teoria del derecho y del estado de Otto von Gierke. Madrid:Centro de Estudos Constitucionales, 1995, p. 14-15; e STUTZ, Ulrich. Zur Erinnerung an Otto von Gierke, XLIII, 1922,apud PENDÁS, Benigno. Op. cit., p. 13.
2. LOCALIZAÇÃO HISTÓRICA, GENERALI-
DADES SOBRE O AUTOR E SUA VISÃO
DO DIREITO
Otto Friedrich von Gierke, que só recebeu oformalíssimo título nobiliárquico “von” já no finalde sua vida, notabilizou-se como emérito professorda Faculdade de Direito de Berlim, tendo sidodiscípulo direto de Georg von Beseler, germanistade primeira hora e um dos mais destacados opo-sitores do romanismo que campeava na Alemanhado final do século XIX, sendo ainda certo que omesmo Beseler desempenhou papel fundamentalnas futuras idéias de Gierke, igualmente germa-nistas e nacionalistas, de forma mais específica comoorientador daquela que seria a mais conhecida dasobras deste, Das Deutsche Genossenchaftrecht,publicada em 1871.1
TEORIAS SOCIAIS DO DIREITOEM OTTO VON GIERKE
Antonio Celso Baeta MinhotoMestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Professor de Teoria Geral do Direito Públicona Faculdade de Direito da Universidade Municipal de São Caetano – Imes.
Advogado atuante em São Paulo.
Breve estudo sobre a visão de Otto von Gierkesobre o Direito, sua inserção em sua época – finsdo século XIX e princípio do século XX – e suapotencial contribuição à situação presentementevivida pelo Direito.
R E S U M O
A brief study about Otto von Gierke’s vision of law,it’s insertion on his time – end of the XIX’s ebeginning of the XX’s – and its potencial contri-bution to the currently law’s situation.
A B S T R A C T
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Em breves palavras e visando muito mais a fa-
cilitar a compreensão do autor em estudo do que a
pretender um temerário resumo de suas idéias, po-
deríamos dizer que Otto von Gierke era essencial-
mente um nacionalista, germanista apaixonado,
adepto de ideologias ligadas fundamentalmente à
noção de comunidades e à aplicação do direito a
estas comunidades.
Torna-se fácil entender, assim, por que o autor
em análise mostrou-se como ferrenho opositor dos
romanistas, de forma ainda mais profunda frente
aos chamados pandectistas, liderados por Winds-
ched e Savigny, esse último influenciado fortemente
por Goethe, cada qual com a formação própria de
suas escolas, mas encontrando-se basicamente no
consenso de aplicação do direito romanista, nota-
damente com referência ao projeto de novo Código
Civil alemão, futuro B.G.B. de 1896, que, por final,
acatou em seu seio a tendência romanista já men-
cionada.
Gierke lhes oferecia forte oposição, nominando
a corrente romanista como antigermânica e, ainda,
de cunho “individualista, artificiosa e abstrata”,
além de fazer pesadas críticas especificamente aos
pandectistas, a quem dirige palavras enérgicas,
dizendo que “bajo en ropaje del positivismo, revive
una vez más, extrañamente, el viejo Derecho Natu-
ral (...) pero sin sua antigua grandeza”.2
Deve-se frisar que a obra do autor em questão é
reconhecidamente vasta, não em extensão numérica,
mas em profundidade analítica. Tanto assim é que
Gierke notabilizou-se para a contemporaneidade,
para o século XX, especialmente sua segunda metade,
com um trabalho seu, igualmente notável e bastante
profundo, chamado Teorias políticas da Idade Média,
que, por sua vez, é parte daquela que é considerada
sua maior obra ou pelo menos a que causou mais
impacto em sua época, já mencionada (Das Deutsche
Genossenchaftrecht).
Assim, focaremos nesse excerto ou pelo menos
nessa parte dessa obra maior, para nos debruçar-
mos sobre esse verdadeiro tratado acerca da Idade
Média e seu desenvolvimento político, em que o autor
alemão ampara-se em vários doutrinadores, escri-
tores, estudiosos e teóricos de toda ordem notabili-
zados na época medieval, para esmiuçar com extre-
mo rigor temas bastante complexos como as relações
Igreja/População, formação do poder organizado,
surgimento do Estado, as diversas correntes doutri-
nárias então existentes e seus eventuais enfrenta-
mentos (canonistas, iusnaturalistas, constituciona-
listas, positivistas, dentre outros), delineando seus
aspectos e características mais marcantes.
Nesse passo, o professor alemão traz ao enten-
dimento do leitor toda a carga doutrinária existente
naquela época medieval, mencionando autores
como Tomás de Aquino, Marsilio de Padua, Occam,
Nicolás de Cusa, Torquemada, Pedro de Alliacco,
Leopoldo de Bebenburgo e muitos outros cujo co-
nhecimento hoje, com todas as facilidades da pes-
quisa moderna, com bibliotecas vastas e Internet, é
ainda limitado, aspecto que realça o cuidado e o
rigor do trabalho de Gierke.
Muito embora tenha criticado abertamente a
aplicação do Direito Natural pelos pandectistas ale-
mães, a seu ver distorcida em face de seus caracteres
originais, o fato é que Otto von Gierke, se não che-
gava a ser um entusiasta completo do Direito Na-
tural, ao menos via com muito bons olhos algumas
de suas idéias, notadamente de seus princípios ema-
nados da própria natureza como fonte de constru-
ção de um sistema jurídico humano.
Para efeitos de um entendimento preliminar do
que se pugnava como Direito Natural, convém citar
breve trecho da obra em comento que, analisando
as idéias medievais vigentes sobre esse ponto, diz que
“las normas del Derecho natural escapan al supre-
mo poder terrenal, estando por encima del Papa
2 OTTO, von Gierke. Labands Staatsrecht und die deutsche Rechswissenchaft, VII, 1883, p. 1.191, apud PENDÁS, Benigno.Op. cit., p. 21.
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como del Emperador, por encima del gobernante
y del pueblo soberano e, incluso, por encima de la
comunidade de mortales; que ninguna ley o acto
de gobierno, acuerdo del pueblo o costumbre pue-
den infringir os límites así fijados; que aquello que
contradiga los principios eternos e indestructibles
del Derecho natural es absolutamente nulo y no
puede vincular nadie”.3
Não se trata aqui de tentar mostrar o jurista
alemão em foco como mero defensor do Direito
Natural, conclusão que até certo ponto se mostraria
reducionista, mas o fato é que se constata que as
idéias principais de Gierke, notadamente quanto à
força das comunidades e corporações e, mais espe-
cificamente ainda, no que toca à construção de uma
teoria realista ou realística do Direito, voltado para
essas comunidades e corporações, é que são o ver-
dadeiro sujeito de direito a ser tutelado e para onde
as atenções do Estado devem estar voltadas.
Essa concepção se dá em total oposição ao con-
ceito romanista de Direito então defendido, espe-
cialmente em relação à aplicação de um princípio
ficcional no trato das comunidades/corporações
como sujeitos de direito, levando a uma abstração
de suas responsabilidades consubstanciadas na figura
de seus representantes, conceito este que qualifica
Gierke como “abstracto, individualista, lleno de
ficciones e ignorante de la realidad de la vida comu-
nitaria mas, por encima de todo, antigermánico”.4
Nas entrelinhas de seu trabalho que, tanto
quanto pode, procura manter no campo prepon-
derantemente analítico, Gierke deixa escapar sua
visão purista e comunitária do Direito e do Estado,
defendendo que “se sitúa el fin del Estado en la vida
feliz y virtuosa, en la realización del bien público y
de la moral cívica”,5 ideação que talvez tenha levado
o autor germanista em foco a ser rechaçado no sé-
culo XX por alguns autores, chegando Alf Ross a
afirmar, literalmente, tratar-se de um reacionário,
ainda que reconhecesse o valor de sua obra.
Para Gierke, era inconcebível que se buscasse
aplicar na Alemanha os princípios romanistas de Di-
reito, tratando-se de elementos rigorosamente es-
tranhos à tradição jurídica germânica, toda ela erigi-
da em torno e voltada à concepção de comunidade e
de corporação, exigindo para seu reconhecimento a
aplicação de uma teoria da realidade na fixação de
responsabilidades de seus membros e representantes,
como já dito.
Mas Gierke foi além.
Na verdade em seu tempo, mais especificamente
nas décadas finais do século XIX, o doutrinador
germanista contestou praticamente tudo o que vigia
na Alemanha de então.
Ainda que diferentemente do Direito Social mo-
dernamente defendido nessa entrada de século XXI
– e já desenvolvido por Georges Gurvitch nos começo
do século XX6 –, o fato é que nosso autor já defendia,
à sua maneira, um Direito Social que enfrentasse uma
sociologia mecanicista e naturalista.
Em sua crítica Girke envolvia até mesmo o mar-
xismo, insistindo em defender um “Derecho de la so-
ciedade precedendo a todo Derecho estatal”,7 enten-
dendo, ainda, “lo social como antítesis y negación de
los derechos subjetivos individuales (...) logrando,
en suma, um Derecho alemán, social e justo”.8
3 GIERKE, Otto von. Teorias políticas de la edad media. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1995, p. 214.4 E.WOLF, Rudolf von Ihering. Otto von Gierke, p. 86, apud PENDÁS, Benigno. Op. cit., p. 24.5 GIERKE, Otto von. Op. cit., p. 244.6 A respeito de GURVITCH e suas idéias ou concepções sobre o Direito social, ver Le temp present et l’idée du droit social.
Paris: J.Vrin, 1932.7 PENDÁS, Benigno. Op. cit., p. 23.8 PENDÁS, Benigno. Op. cit., p. 24.
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Gierke, em verdade, buscou mais que tudo,
durante sua vida intelectual, montar uma estrutura
de idéias suficientemente crível e persuasiva para ofe-
recer uma alternativa à mera recepção, que se ope-
rava na Alemanha de então, quanto ao Direito ro-
manista que, muito embora tenha sido visto como
diametralmente oposto ao Direito germânico –
como esforçou-se Gierke em demonstrar ao longo
de sua vida e de suas obras –, era já então mais pró-
ximo, passível de complementação, alteração, coo-
peração e colaboração com o Direito germânico do
que certamente o mestre alemão gostaria de admitir.
Bem de se ver, aqui, que o Direito germânico
possuía mesmo muitas identificações com o Direito
romano, podendo-se citar, como exemplo, o exercício
do comando familiar (mundium), no Direito germâ-
nico, pelo varão da família e que, no Direito romano, é
exercido praticamente sem modificações pelo pai. Há,
portanto, certo exagero e, obviamente, apaixonado
nacionalismo na análise de Gierke sobre esse tema.
O tema sobre o qual se debruça com mais pro-
fundidade Gierke, porém, é mesmo o das corpo-
rações e da criação de uma teoria da realidade apli-
cada às pessoas jurídicas.
Pode-se dizer que as corporações são “la insti-
tución que mejor refleja la peculiar concepción jurídica
del pueblo alemán”9 e a teoria da realidade é também
fundamental, para os germanistas, para entender de
fato tal idéia de corporação, enxergando esta como
um corpo único, composto por homens, é certo, mas
com vontade, identidade e existência próprias, em
oposição à noção clássica do Direito romanista de
que só o homem é sujeito de direitos.
Como bem resume Benigno Pendás,
“en puridad, la persona jurídica germánica no se
contrapone a sus miembros como um tercero, sino
que está orgánicamente ligada a ellos : la persona
colectiva y sus miembros constituyen una unidad,
dotada de una voluntad propia (gesammtville) que
no es la simple suma de las voluntades particulares,
sino la voluntad común de todos, orgánicamente
declarada”.10
3. CONTRIBUIÇÃO DE GIERKE
AO DIREITO MODERNO
Concorde-se ou não com Gierke, é inegável,
mesmo ao ver de seus adversários e oponentes, que
sua obra resistiu ao tempo. Hoje, quando vemos o
Direito em uma espécie de encruzilhada, acossado
por várias forças que constantemente lhe questio-
nam a validade, a força coercitiva e principalmente
a efetividade,11 lembramos as idéias do autor em
análise. E por quê?
Porque não há nada mais atual hoje que defen-
der alternativas ao Direito e suas instituições tal
como conhecemos, tendo em vista que, como de-
clara um dos estudiosos mais respeitados da atua-
lidade nesse campo,
“qualquer que venha a ser o desdobramento do
cenário internacional (...) uma coisa parece certa :
dificilmente essas instituições jurídicas guardarão
muita semelhança com o tipo de direito forjado
pelo Estado moderno”.12
9 PENDÁS, Benigno. Op. cit., p. 33.10 PENDÁS, Benigno. Op. cit., p. 36.11 Comentando a situação de crise vivida pelo Direito atualmente, o que acaba afetando também o Estado de Direito e a
Democracia, um respeitado estudioso afirma que há “situações inéditas, não rotinizadas, para as quais o sistema nãopossui memória jurisprudencial nem respostas exemplares. Um percurso que vai das brigas de torcedores nos camposde futebol aos crimes de colarinho branco, das zonas liberadas da imposição da lei e da ordem ao banditismo internacionaldo narcotráfico, da contrafação tecnológica à transnacionalização da economia, do risco dos acidentes nucleares àsestratégias de controle da ‘aids’, da economia paralela aos arranjos neocorporativos. Enfim, uma conjuntura quequestiona a eficácia da democracia, do direito e da regra da maioria”. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito edemocracia. São Paulo: Max Limonad, 1993, p. 58.
12 FARIA, José Eduardo O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 323.
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Esse raciocínio indica, a toda evidência, que o
Direito tal como conhecemos não permanecerá. Pa-ra enfrentar esses desafios, vemos algumas tentativasdoutrinárias e, de certa forma, mais conceituais queempiricamente avaliáveis, como o Direito Reflexivo,de Gunther Teubner; o Direito Autopoiético, deNiklas Luhmann; o Direito Responsivo, de Nonet eSelznick; o Pluralismo Político, de Boaventura deSousa Santos e, em ponte com o autor alemão emanálise, o Direito Social, já comentado, que agorareaparece com nova força e roupagem.13
Ou seja, após mais de 100 anos do auge deatividade intelectual de Gierke e 80 anos de sua morte,constata-se que suas teses acerca da socialização doDireito e, mais especificamente, da volta desse mesmoDireito à comunidade, tomam novo fôlego.
Ainda que seja certo que o Direito Social deque falava o professor alemão não seja, ipsis litteris,o mesmo que agora vemos, não há como negar queseus delineamentos mais marcantes encontram-seem perfeita identificação. Na verdade, formou-seuma certa unanimidade em torno da idéia de quedificilmente um modelo alternativo, puramenteconsiderado, será capaz de substituir ou gerarmodificações no modelo tradicional, o que poderáser obtido apenas com uma conjunção de aspectos
das várias teorias.
Em uma época em que se busca, de forma até
certo ponto angustiada, tutelar as relações entre
blocos comunitários de comércio, tais como Nafta,
Mercosul, CE, comunidades que adquiriram im-
portância, em algumas circunstâncias, bastante
superior aos próprios Estados que representam,
notamos a necessidade de estabelecer entendimen-
tos comuns sobre conjunto de regramentos de que
se possa lançar mão para tutelar esse tipo de relação
ou, com mais acerto, reconhecer que nenhum con-
junto de normas vai amparar a contento tais ino-
vadoras relações e que um novo caminho, total-
mente em construção e com alterações constantes
de rota, está sendo percorrido.
Em um clima assim, chega a ser curioso que as
idéias de um rígido professor alemão de Direito liga-
das ao século passado se mostrem atuais e que seu
nacionalismo exacerbado e sua visão peculiar do
Direito Natural possam até ser mitigados em pro-
veito do restante de sua obra, cujo trecho final aqui
transcrevemos também como epílogo desse estudo:
“... del Derecho natural surgieron también entonces
los inicios de una reconstrucción de la teoria de la
corporación en el espíritu del moderno Genossen-
chaftrecht de raíz germánica”.14
13 Para uma visão didática sobre as alternativas ao modelo tradicional de direito, ver MINHOTO, Antonio Celso Baeta.Globalização e direito: o impacto da ordem mundial global sobre o direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.
14 GIERKE, Otto von. Op. cit., p. 262.
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PENDÁS, Benigno. El pensamiento político medieval en
la teoria del derecho y del estado de Otto von Gierke.
Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1995.
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DA PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA ALIMENTAR,AINDA UM RETROCESSO, UMA AFRONTA
AO DIREITO FUNDAMENTALDO CIDADÃO
Cristiane Vieira de Mello e SilvaProcuradora do Município de Diadema.
Professora Universitária da Faculdade de Direito – Centro Universitário Municipal – Imes.
Especialista em Direito Civil – Faculdades Metropolitanas Unidas.
Mestre em Processo – Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Doutoranda em Direito Constitucional – PUC/SP.
1. INTRODUÇÃO
Já há muito tempo esse tema chama nossa
atenção e a interpretação que ora apresentamos vem
sendo amadurecida com o passar dos anos e de nosso
estudo.
Durante o curso de especialização em Direito
Civil realizado nas Faculdades Metropolitanas Uni-
das, Everaldo Augusto Cambler1 nos apresentou al-
gumas reflexões interessantíssimas sobre o assunto e
que, na época, geraram para nós uma certa curiosi-
dade para um estudo diferenciado.
1 Nosso Professor no estudo das Obrigações e Contratos durante o Curso de Especialização realizado nas FaculdadesUnidas Metropolitanas – FMU.
A prisão civil por dívidas é o tema desse estudo.Situação normalmente aceita em um passadoremoto, não encontra mais amparo nas legislaçõesmodernas por recair sobre o corpo da pessoa asanção pelo não-pagamento de obrigação de ordempatrimonial.Resta saber se a prisão civil por dívida alimentartambém se insere nesse contexto.Acreditamos que sim e que as ressalvas existentesna Constituição Nacional serão abolidas em umfuturo próximo, desde que haja um trabalho de cons-cientização e conhecimento do destinatário final doordenamento jurídico, o cidadão.
R E S U M O
The civil arrest for debts is the subject of this study.Normally accepted situation in a remote past andthat is does not find more support in the modernlaws for falling again on the body of the person thesanction for the not pay of patrimonial obligationorder.It remains to know if the civil arrest of alimentarydebt also is inserted in this context.We belive that yes and we belive that the existingexceptions in the National Constitucion will beabolished in a next future since that it has a work ofawareness and knowledge of the addressee of thelegal system, the citzen.
A B S T R A C T
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Durante o mestrado em Direito Processual cur-
sado na Universidade Mackenzie, a prisão civil por
dívidas foi discutida e apresentada de forma dinâ-
mica e diferenciada, aguçando ainda mais nosso
interesse sobre a matéria.
Cursando o doutoramento na Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo, voltamos toda nossa
atenção ao sistema Constitucional, e a prisão civil
por dívidas, expressa no texto da Lei Maior, voltou,
silenciosamente, a ser um ponto de nossa reflexão.
Sempre tivemos vontade de expor nossa inter-
pretação escrita sobre a prisão civil por dívidas, con-
tudo, pensamos ser ousadia discorrer sobre o assunto
em texto.
Interessante é ressaltar que, no exercício do ma-
gistério na Universidade Imes, deparamos nova-
mente com a prisão civil por dívidas, ainda que por
via transversa.
O tema em apreço foi objeto de estudo e trabalho
de conclusão do curso (TCC), no mesmo ano, por
três alunas orientandas2 nossas no curso de Direito,
em 1993.
A coincidência que acabamos de relatar no pa-
rágrafo anterior instigou nossa vontade em apri-
morar esse estudo, renovando-o.
Registramos que cada aluna, nossa orientanda,
estruturou um raciocínio diferenciado. Apresen-taram aspectos interessantes da matéria, o que nospermitiu viajar juridicamente nas dúvidas preexis-tentes e no exercício lógico da orientação que à épo-ca realizávamos.
Todos os pontos considerados figuraram comoestímulos para a elaboração do presente texto. Noentanto, a confecção do presente trabalho só se deuapós a leitura que fizemos do livro Prisão civil dodepositário, de autoria de Joaquim Molitor,3 obraque nos encorajou a enfrentar o tema.
Nossa proposta consiste em reler o assunto pri-são civil por dívidas segundo a legislação vigente.Na verdade sugerimos, a interpretação do tema nosmoldes da Constituição.
Na exposição que realizamos, aproveitamos o
conhecimento adquirido nos cursos de especia-
lização, mestrado e doutoramento. Tentamos, na
verdade, integrar nosso aprendizado harmoni-
zando-o.
Procuramos respostas para alguns problemas
de ordem teórica que vislumbramos por meio das
normas existentes no Direito positivo, objeto de
estudo pessoal.
Talvez, a apreciação que fazemos sobre a prisão
civil por dívidas possa afastar eventuais antinomias,4
2 Flávia Visentim, Heloísa Caíres e Mara Gogoni.3 Joaquim Molitor, Professor de Direito Processual Civil no curso de Direito da Universidade Imes e Magistrado aposentado.4 Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p. 81-82 e 88. O autor nos ensina ser antinomia “a situação de
normas incompatíveis entre si é uma dificuldade tradicional frente à qual se encontram os juristas de todos os tempos,e teve uma denominação própria característica: antinomia. A tese de que o ordenamento jurídico constitua um sistemano terceiro sentido exposto pode-se exprimir também dizendo que o Direito não tolera antinomias. Em nossa tradiçãoromanística o problema das antinomias já foi exposto com muita clareza nas duas célebres constituições de Justiniano,e com ele se abre o Digesto; aqui Justiniano afirma imperiosamente que no Digesto não há normas incompatíveis e usaa palavra antinomia... . O fato de no Direito romano, considerado por longos séculos o Direito por excelência, nãoexistirem antinomias foi regra constante para os intérpretes, pelo menos enquanto o Direito romano foi o Direitovigente. Uma das finalidades da interpretação jurídica era também a de eliminar as antinomias, caso alguma tivesseaparecido, recorrendo aos mais diversos meios hermenêuticos. Nessa obra de resolução das antinomias foram elaboradasalgumas regras técnicas que veremos a seguir.
Mas, antes temos que responder à pergunta: quando duas normas são ditas incompatíveis? Em que consiste umaantinomia jurídica? Para esclarecer esse ponto recorremos ao que dissemos no livro anterior sobre os relacionamentosintercorrentes entre as quatro figuras de qualificação normativa, o obrigatório, o proibido, o permitido positivo e opermitido negativo”.
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se assim podemos chamar as questões suscitadas na
doutrina e jurisprudência, pela existência de
preceito constitucional expressamente contraposto
por texto de documento firmado pelo Estado bra-
sileiro na ordem internacional,5 e que foi integrado
à ordem jurídica interna vigente e vem causando
um descompasso interpretativo no sistema jurídico,
afetando diretamente a soberania nacional, a inte-
gridade da ordem jurídica nacional em sua harmo-
nia, a vida e a liberdade dos cidadãos.
Com nossa conclusão, objetivamos propiciar
discussões contribuindo com o aprimoramento do
estudo científico e com a preservação da integridade
interpretativa do sistema jurídico positivo.
Iniciamos nossa pesquisa por meio da prisão
civil, tema que passaremos a, cuidadosamente,
observar no próximo capítulo.
2. DA PRISÃO CIVIL
Parece-nos um tanto intrigante e até confli-
tuoso tratar do assunto prisão e, ao mesmo tempo,
reportarmo-nos à área Civil.
O Autor conclui seu raciocínio definindo “antinomia jurídica como aquela situação que se verifica entre duas normasincompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade. As antinomias assimdefinidas, podem ser, por sua vez, distintas em três tipos diferentes, conforme a maior ou menor extensão do contrasteentre as duas normas”.
Também sobre o assunto antinomias não podemos deixar de citar Luiz Roberto Barroso, Interpretação e aplicação daConstituição, p. 9-10. O autor preleciona que “a ordem jurídica de cada Estado constitui um sistema lógico, compostode elementos que se articulam harmoniosamente. Não se amolda à idéia de sistema a possibilidade de uma mesmasituação jurídica estar sujeita à incidência de normas distintas, contrastantes entre si. Justamente ao revés, no ordenamentojurídico não podem coexistir normas incompatíveis. O direito não tolera antinomias”.
“Ressaltamos a importância do posicionamento exposto pelo autor em sua obra: “um dos critérios comumenteutilizados para evitar as antinomias, solucionando o conflito entre normas, é o critério hierárquico: a norma superiorprevalece sobre a inferior. Assim pois, se a Constituição e uma lei ordinária divergirem, é a Constituição que prevalece.Se um decreto regulamentar desvirtuar o sentido da lei, será inválido nesta parte. Se a resolução deixar de observar oteor do regulamento, não poderá prevalecer. E assim por diante”.
“Um segundo critério de que se vale o sistema normativo para solucionar a regra aplicável, em meio a preceitosincompatíveis, é o da especialização. Havendo, em relação a dada matéria, uma regra geral e uma especial (ou excepcional),prevalece a segunda: lex specialis derogat generalis”.
“Existem, no entanto, duas espécies de conflitos cuja solução, ao menos em princípio, não se socorre dos critérioshierárquicos ou de especialização, mas, sim, de outro instrumental teórico. São conflitos de leis no espaço e no tempo, cujoequacionamento percorre caminhos complexos e acidentados, que passam por diversos ramos do direito”. (Grifamos).
5 Lembramos nesse momento a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José daCosta Rica, celebrado em 22 de novembro de 1969, que em seu inciso 7º, do artigo 7º determina expressamente: “Ninguémdeve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos emvirtude de inadimplemento de obrigação alimentar”. Esse regramento internacional foi inserido em nosso ordenamentojurídico em 26 de maio de 1992, ou seja, aproximadamente 04 (quatro) anos e 07 (sete) meses após o advento daConstituição Federal de 1988, através de Decreto Legislativo n. 27, aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado peloDecreto Presidencial n. 678 de 6 de novembro de 1992, autorizando o cumprimento de tal dispositivo em nosso país.
Joaquim Molitor, na obra Prisão civil do depositário, p. 19, ainda destaca a existência de outro documento internacionalque cuida do mesmo assunto com origem também em 1966, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticosaprovado pela XXI Sessão da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966,dispondo em seu artigo 11 que: “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir uma obrigação contratual”.O estudioso mencionado ainda nos informa que o dispositivo em apreço foi integrado “formalmente à ordem jurídicabrasileira, tendo em consideração que foi aprovado pelo Congresso Nacional, por intermédio do Decreto Legislativo n.226, de 12 de dezembro de 1991 e seu cumprimento foi autorizado pelo Decreto Executivo n. 592, de 6 de julho de 1992,que o promulgou”.
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Imaginamos o espanto causado pelo assunto
prisão civil por dívidas ao leigo, desvinculado de
qualquer conhecimento jurídico.
Para o cidadão, o título desse estudo deve ser
recebido como um paradoxo, isso porque a idéia de
prisão corriqueiramente nos conduz a um raciocí-
nio de ação humana irregular na esfera criminal,
totalmente distante dos comandos e da postura que
se extrai da estrutura civil, composta por segmento
de normas que também apresentam sanções, mas de
outras espécies, que não a prisão, em regra.
Precisamos, portanto, para o desenvolvimento
desse trabalho, conceituar o termo prisão.
6 Minidicionário da língua portuguesa, p. 442.7 No estudo que fizemos sobre a história da prisão civil por dívidas, encontramos uma passagem no livro O direito na
história: lições introdutórias, p. 35, em que José Reinaldo de Lima Lopes compara no tópico a Grécia – a ruptura de umailustração no mundo antigo, as classes sociais gregas e em Atenas. Destaca o autor as diferenças e faz referência aAristótelesAristótelesAristótelesAristótelesAristóteles, relatando que o filósofo “considerava um traço constitutivo da democracia ateniense a proibição da servidãopor dívidas”.Joaquim Molitor, quando em sua obra cuida do tema Prisão civil em geral, p. 7-9, analisa historicamente o Instituto nahistória das civilizações antigas e narra que “remonta às civilizações antigas, as origens da apreensão pessoal dodevedor, e às vezes de seus familiares próximos, mulher e filhos, como instrumento compulsivo, com a finalidade deconstranger o inadimplente ao cumprimento de sua obrigação, seja de pagar a quantia, seja de entregar a coisa”.Registra que para os doutrinadores, em sua maioria, o aparecimento do instituto prisão civil por dívida está indicadono Código de Hamurabi, na Babilônia, aproximadamente no ano de 1.700 a.C., uma das mais antigas legislações quetratam dessa forma de coerção. Assinala que tal estatuto prescrevia que “aquele que se tornasse credor de dinheiro,prata, grãos, sementes, etc., podia tomar como garantia de seu crédito, a própria pessoa do devedor, ou de sua família”.Em se verificando “o inadimplemento da obrigação, tais pessoas podiam ser aprisionadas e transformadas em escravas,e coagidas a trabalhar para o credor, até o efetivo pagamento do débito”.Nessa digressão histórica, o Joaquim Molitor passa ainda pela Índia, e menciona o Código de Manu, ainda no século XIIIa.C. Informa que o inadimplente por dívida de ordem obrigacional sofria, aparentemente, as mesmas sanções determinadasno diploma babilônico e acrescenta que “na hipótese de depósito, essa legislação indiana, autorizava, além da prisão dodepositário, tido como infiel, que lhe fosse infligido castigo corporal, para coagi-lo à restituição da coisa custodiada”.Nesse retrocesso que faz na história seguindo a linha do tempo, Joaquim Molitor elucida que no Egito também havia a“escravização por dívida”, sendo que tal servidão perdurava “até que integralmente quitada a sua obrigação”. Transita,nessa viagem ao passado sobre a prisão civil, por Roma, salientando que “nos primórdio do Direito Romano, prevaleciao princípio da execução pessoal, ou seja, mediante constrição exercida sobre o corpo do devedor, que podia ser vendidocomo escravo, para que com o produto arrecadado, fosse efetuado o pagamento do credor”. Ainda, apoiado emWashington de Barros Monteiro, Molitor ressalta que a “obligatio primitiva caracterizava-se como direito de garantiasobre a pessoa física do obrigado (...) se o credor não era pago num determinado prazo, assistia-lhe o direito de recorrera um processo executivo extremamente violento, exercido contra a própria pessoa do devedor”. O autor em que nosapoiamos, Joaquim Molitor, ainda ressalta em sua obra os comentários de “Alcides de Mendonça Lima, ao se referir amanus injectio, prevista na ‘Lei das Doze Tábuas’. Menciona que “após a condenação judicial, o credor podia conduzircoercitivamente o devedor a juízo, promovendo a apreensão pessoal deste, que, se não efetuasse o pagamento do débito,seria colocado em prisão domiciliar e acorrentado”. Ainda norteados pelos ensinamentos e pela interpretação do mesmoestudioso, verificamos que a humanização dos meios executivos se dá de “forma gradual e se inicia a partir da Lex PoeteliaPapiria, por volta do século V a.C., momento em que a execução de cunho pessoal passa a ser transferida para opatrimônio do devedor”. Baseado em Moacyr Amaral Santos, Molitor relata que “... no ano 636 de Roma, substituiu-sea prisão do devedor pela pignoris capio: todos os bens do devedor eram vendidos em praça (bonorum venditio) e o preço
Vejamos:
PrisãoPrisãoPrisãoPrisãoPrisão, segundo Aurélio Buarque de HolandaFerreira 6 é “s.f. 1. Ato ou efeito de prender; captura.2. Pop. V. cadeia (2). 3. Recinto fechado. 4. Fig.Vínculo, peia”.
A conceituação léxica apresentada dificultaainda mais a vinculação do termo prisão com qual-quer área jurídica que não seja criminal.
Nosso raciocínio se complica quando vislum-bramos, pelo estudo topográfico da estrutura le-gislativa, que, no diploma Constitucional, há men-ção expressa no texto à prisão civil por dívidas em
pleno século XXI.7
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O inciso LXVII, do artigo 5º, da Lei Maior
dispõe que
“não haverá prisão civil por dívida, salvosalvosalvosalvosalvo a do res-
ponsável pelo inadimplemento voluntário e ines-
cusável de obrigação alimentícia e a do depositário
infiel” (grifo e destaque nossos).
Para o cidadão urbano, simples, que ouve o
rádio, que assiste à televisão, que acompanha a vida
dos artistas, dos cantores ou até dos jogadores de
futebol no país, a idéia da prisão civil por falta de
prestação alimentar não seria de todo um espanto.
De vez em quando surge na mídia a notícia da
prisão de uma ou outra “celebridade” nacional pela
falta de pagamento de pensão aos filhos. Mas esse
leigo não reconhece de imediato o instituto, por
falta de conhecimento específico legislativo e/ou téc-
nico por sua denominação científica, prisão civil
por dívidas matéria de relevo Constitucional.
Há também o fato de a prisão civil por dívidas
não ficar adstrita apenas ao inadimplemento da
obrigação alimentar, outro elemento que também
não é de domínio real do cidadão comum, insere-se
nesse contexto como a prisão civil do depositário
infiel. Esse tipo que permite a prisão civil também
nos preocupa ainda mais pelos reflexos que podem
decorrer de sua aplicação prática.
Se para o cidadão, o citadino, a prisão civil
por dívidas é ou pode vir a ser de conhecimento
relativo, àquele que reside no meio rural, no inte-
rior do estado ou em estados distantes,8 diante da
imensidão territorial brasileira, deve ser situação
quase que inimaginável.9
obtido entregue ao credor ou repartido entre os credores concorrentes”. Conclui o estudioso que essa postura humanista,civilizada, foi sendo repassada aos ordenamentos jurídicos dos demais povos e resultou na regra que proíbe a prisãocivil por dívidas, excepcionando apenas casos relativos aos alimentos e do depositário infiel.
8 Lembrando aqui que segundo o artigo 1º, caput e o § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, Lei das Leis, a lei nacionalcomeça a vigorar em todo o país 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada e, nos estados estrangeiros,a obrigatoriedade da lei brasileira, se admitida, inicia-se três meses depois de oficialmente publicada. Por ser o Estadosoberano, tem o poder de decretar suas leis em esfera espacial que abrange todo o território nacional e em suasextensões de forma integrada. Cumpre-nos ainda lembrar que não há falar em “vacatio progressiva” no territórionacional, situação já admitida no passado. Hoje resta adotado o “princípio da vigência sincrônica”, ou seja, simultâneaem todo o território nacional. O prazo de 45 (quarenta e cinco) dias é dilatado e teoricamente atende a vastidãoterritorial brasileira, ainda que em que alguns lugares os meios de comunicação em massa sejam precários, se existentes.
9 Segundo Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro interpretada, p. 82-83, ao comentar o artigo 3.ºda Lei de Introdução ao Código Civil, “a lei depois de publicada, decorrido o prazo de vacatio legis, tornar-se-á obrigatóriapara todos, sendo inescusável o erro e a ignorância. Uma vez publicada a lei obrigará a todos, sendo aplicada tanto aos quea conhecem como aos que não a conhecem, por ser necessário à administração da justiça”. Continua a autora em sua obraa apreciar “princípio ignorantia júris neminem excusat”. Argumenta que o princípio em apreço “repousa numa razão deinteresse social, pois seria o caos se a obrigatoriedade da lei dependesse da ignorância ou não de sua existência pelodestinatário, principalmente no Brasil, ante a inflação legislativa a que assistimos, pois o ritmo acelerado da legislação trazconseqüências inevitáveis. Nem mesmo os técnicos as poderiam integralmente conhecer. Com isso ter-se-á um labirinto,no qual os peritos ou aplicadores, sem fio de Ariadne, não conseguirão mover-se. Como, então, se poderia para que tivesseobrigatoriedade a lei, exigir de seu destinatário pleno conhecimento de seu conteúdo? Daí a razão de ser daquele princípioque se funda na necessidade social, colorário oriundo do interesse social, pois do contrário nenhuma ordem jurídicasubsistiria, trazendo insegurança e anarquia. Por isso ninguém poderá alegar ignorância da lei para escapar à sua obediênciaou aos efeitos de sua violação, quer para defender-se contra pretensão legítima de outrem, quer para exigir de alguém umapretensão ilegítima. O art. 3º da Lei de Introdução contém o rigoroso princípio da inescusabilidade da ignorância da lei,requerendo que as leis sejam conhecidas, pelo menos potencialmente. Tal princípio legal apenas indica que a lei ritaepromulgata exige obediência, porque se o direito é uma das condições de existência da sociedade, há necessidade social detornar as normas jurídicas obrigatórias com sua publicação oficial”. . . . . Sabemos que a autora apresenta a interpretação dodispositivo legal em vigor, contudo, ato contínuo apresenta em sua obra posicionamentos contrários ao comandodiscutido. Laurent entende o disposto no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil uma presunção “jure et de jure”,sendo portanto inadmissível que qualquer cidadão alegue seu desconhecimento ou procure esquivar-se ao seu comando.Posicionamento contrário também pode ser defendido, como o de Francesco Filomusi na Enciclopédia giurídica, 1910,
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Ainda que prisão civil por dívidas em qualquerdas modalidades previstas na lei seja culturalmenteou legalmente circunstância relativa ou absoluta-mente desconhecida para o cidadão ou para algunsdeles, é instituto que pode vir a afetá-los e abrangê-los,10
sendo certo que não há como aduzir, no caso con-creto, o desconhecimento da lei para escusar-se dapena de prisão.
Estranha também é a afirmativa sobre impos-sibilidade de ignorância da ordem legislativa porparte do cidadão, que acabamos de fazer.
O cidadão deveria, no mínimo, ter certo domí-nio sobre as garantias constitucionais, conhecer aLei Maior que rege seu país e, no caso em tela, alcan-çar o significado do instituto prisão civil por dívidas,garantia constitucional que é, e mais, dimensionar aimportância da norma infraconstitucional que deveguardar sintonia com o Texto Maior que orienta aestrutura e a atividade do Estado pois prevê tipos,negócios da vida privada que podem levá-lo a essacondição de ser preso civilmente por dívidas –hipótese que, infelizmente, cremos ser ilusória.
É difícil hoje argüir ou argumentar ignorância
de qualquer situação em um mundo que possuiuma rede de comunicação avançadíssima condu-zida por satélites, o que encurta distâncias entre ospaíses geograficamente opostos e, principalmente,diante da informática, que agiliza o acesso imediatoa fatos e à notícia, a um acervo cultural diferenciadode porte complexo e globalizado.
Mas, a realidade brasileira ainda é outra.
Como já afirmamos há pouco, o termo prisãocivil por dívidas não é comum, principalmente para ocidadão de pouca instrução, e esse tampouco podevaler-se, por determinação legal e por uma questãode segurança jurídica, de sua real ignorância do textode lei, presumidamente conhecido por todos, o quenos leva a questionar se, na realidade, ou na prática, odesconhecimento da norma constitucional,11 ou dospreceitos infralegais relativos à matéria, pode fazercom que um inculto incida na conduta civil e mais,sujeite-se à prisão civil por dívidas sem, contudo,
mensurar a extensão, a importância, a complexidade
de seus atos por não saber dimensioná-los.
p. 84, sobre a ficção de direito; Pollock na obra Principles of contracts, 1911, p. 479, nota “t”; Clóvis Beviláqua, todoscitados em nota de rodapé da obra em comento, sendo que Clóvis Beviláqua não se apóia na interpretação dapresunção absoluta, entendendo ser o princípio legal contido no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil“imprescindível à coexistência social (...) não se teria uma presunção de que a lei é conhecida (...) mas uma conveniênciade que ela seja conhecida”, (...) “o significado do artigo 3º seria afirmar a segurança jurídica”.
Maria Helena Diniz ainda trabalha a idéia de que “a publicação da norma visa neutralizar da ignorância da norma, semcontudo eliminá-la.” Isso porque a ignorância da lei induz a uma situação que consideramos um tanto grave ecomplexa que seria a ignorância da autoridade como se essa não existisse, o que seria um problema no seio social, teoriaapresentada por Tércio Sampaio Ferraz Jr”.
10 Realizamos com reservas essa afirmativa, pois o cidadão que mora em zona rural também tenta adquirir imóveis,automóveis e necessita, por vezes, de auxílio bancário, pode vir a ser depositário de bens e assumir compromissosperante o Poder Judiciário como depositário.
11 Lembramos nesse momento o artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil, Lei das Leis. Eduardo Espínola e EduardoEspínola Filho, comentando A Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, p. 75-76, especificamente o artigo 3º do diplomamencionado, que dispõe “ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece” nos explicam sobre a ignorânciada lei e o erro do direito. Os autores em estudo prelecionam que “a lei, após publicada e decorrida a vacatio legis, se tornaobrigatória para todos nós... mas ao mesmo tempo os estudiosos elucidam” de efeito, muito conhecidas são, com freqüência,invocadas as fórmulas – nemo jus ignorare censetur – e – error júris non excusat – para exprimirem o mesmo conceito.Mas, o Direito moderno estabelece distinção entre o princípio – a lei se aplica tanto aos que a conhecem como aos quea ignoram – e o da escusa por ignorância ou erro de direito.No primeiro caso, não se trata, propriamente, de uma presunção de que todos conhecem a lei, uma vez publicada. Emhipótese nenhuma poderia isso corresponder à verdade. Dereux, em curioso estudo crítico sobre o adágio – Nul néstcens’ignorer la loi –, faz observações como estas: “As universidades, além da Mancha, parece, conferem, por vezes, aaltas personalidades, ou a sábio, que nunca estudaram o direito, o título honorífico, mas, no caso, puramente fictício,de doutor em ciências jurídicas”; ora, graças ao adágio que acabamos de recordar, o jurista francês faz ainda mais:confere ficticiamente, não a alguns, mas a todo o mundo, muito mais que um simples título de doutor: um conhecimento
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A reflexão que fazemos, bem como as consta-
tações cultural e legislativa que realizamos nos pará-
grafos anteriores, são lamentáveis, pois assentam-se,
inicialmente, nas premissas relativas à grandeza geo-
gráfica brasileira, mas seu respaldo reside, princi-
palmente, na diversidade de ordem cultural e eco-
nômica, realidades extremadas no país ainda hoje.
O desconhecimento que pontuamos já não
acontece àquele que estuda as ciências jurídicas ou
não poderia acontecer, para quem atua tradicio-
nalmente no mundo dos negócios.
Mas, acreditamos que ainda assim restem
dúvidas sobre o tema.
Vejamos:
a) A menção do tema prisão civil por dívidas
no texto constitucional revela-se como uma
verdadeira garantia para o cidadão diante
das dúvidas que gerou no passado e ainda
estão presentes nos dias atuais?
b) Qual a natureza jurídica desse instituto, pri-
são civil por dívidas, nos moldes de hoje e
nos termos da Constituição vigente?
c) Perquirimos qual a intenção do legislador
constituinte ao manter a prisão civil por
dívidas na Lei Maior que rege o país. O tema
em pauta insere-se no título II, que cuida
especificamente dos Direitos e Garantias
Fundamentais, capítulo I, Dos direitos e
Deveres Individuais e Coletivos, artigo 5º,
inciso LXVII, e repetimos que quando da
promulgação do texto constitucional vigente
já haviam sido firmados dois pactos con-
trários ao assunto, sendo que a integração
ao texto, independentemente da forma legis-
lativa hierárquica adotada, seria apenas uma
questão de tempo, contudo previsível.
Para o cientista do Direito, a temática proposta
não assume menor relevo.
A natureza jurídica de qualquer instituto é sem-
pre um tópico que exige muita atenção e causa mui-
ta preocupação para o estudioso do Direito, gera
muita discussão, principalmente, esse que se mostra
como uma exceção à regra, e chama nossa atenção
por ser conexo a outros temas e outras áreas impor-
tantes, como o Direito Civil, por envolver a situação
alimentar que diz respeito à família, à vida e à so-
brevivência; envolve ainda o contrato de depósito
e por via transversa se aplica à alienação fiduciária,
negócios de relevo na mesma órbita.
A prisão civil por dívidas possui também re-
flexos no Direito Processual Civil, que cuida da ação
de Depósito nos artigos 901 usque 913, como proce-
dimento especial cuidado aplicável à alienação fi-
duciária, fato que cuidaremos oportunamente e
que hoje assume um relevo ainda maior quando
constatamos a recepção e a interpretação que devem
ser oferecidas ao Pacto de San José da Costa Rica,
perfeito da integralidade do direito. E pode-se perguntar se tal ficção não nos afasta, até ao excesso, da realidade. Não éperigoso atribuir assim às pessoas um conhecimento que elas não têm, e nem pretendem ter, de modo algum? O ‘médicoà força’ existe, apenas, na comédia; deve o ‘jurista à força’ existir na realidade? Pode-se presumir que conheça todas as leiso estudante reprovado no primeiro exame do primeiro ano de direito? E até o camponês, que sabe falar, somente numdialeto obscuro? E ainda, o estrangeiro, que atravessa, acidentalmente, a França, sem conhecer Francês?Demais, se fora presunção de conhecimento, deverá ceder ante a prova em contrário. E pretender, como o fazemChirioni e Abello, dar um caráter absoluto a essa presunção, com isso tornando irrelevante a impossibilidade subjetivareal, equivaleria a criar uma ficção, raramente correspondente à realidade.Mas, no domínio da jurisprudência, do que não resta dúvida é que, depois de publicada, a lei obriga em todos os casos,aplicando-se não só aos que a conhecem como até aos que demonstrem a impossibilidade de conhecê-la, por ser issoindispensável à administração da justiça. É um cânon absoluto, que não pode sofrer exceções ou restrições. Coviello dizmuito bem: “Do princípio que – é necessidade social se torne obrigatória para todos, a lei publicada – decorre,necessariamente, a conseqüência que os seus efeitos abrangem a todos, independentemente do conhecimento ou daignorância subjetiva (...) essa conseqüência, tão evidente eu se admitiria ainda sem disposição legislativa expressa éabsoluta; uma só exceção destruir-lhe-ia o fundamento racional.”
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de âmbito internacional, firmado por nosso país e
aceitos regularmente em nosso ordenamento in-
terno os reflexos que possam vir a ensejar.
Cada aspecto apontado tem perfil próprio, no
entanto, todos afetam o Direito de Liberdade do
cidadão, seu bem maior.12
Assim, continuamos nossa apreciação da ma-
téria observando o que é civil ou Direito Civil, tipi-
cidade e ilícito civil?
3. DO CIVIL, DIREITO CIVIL, DA TIPICIDADENA ESFERA CIVIL E DO ILÍCITO CIVIL
O que é civil ou qual a finalidade do Direito Civil?
Pode-se aduzir tipicidade na estrutura civil na
mesma forma e importância aduzidas ou imputadas
para o Direito Penal?
Existe um ilícito na esfera civil?
Essas são as questões que pretendemos resolver
nesse tópico.
Continuando a mesma lógica por nós adotada
no capítulo anterior, devemos determinar o con-
torno do termo civilcivilcivilcivilcivil, premissa inicial dessa análise.
Apoiamo-nos novamente no dicionário para
tentar elucidar a questão.
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira13 se reporta
à expressão civil civil civil civil civil da seguinte forma: “... 2. concernentes
às relações dos cidadãos entre si, reguladas por norma
de direito civil, 3. não militar...”.
A conceituação apresentada não nos permite
supor a existência de prisão civil ou de tipos
normativos cíveis que redundem em perda da
liberdade na esfera cível, conclusão a que chegamos
em termos penais.
Parece-nos que a análise meramente léxica dotermo civil é omissa ou imprecisa, podendo-nosinduzir a erro por ser genérica e não técnica.
E Direito Civil? Como podemos conceituar essaárea ou ramo do Direito?
Silvio de Sálvio Venosa, na obra Direito civil,14
parte do conceito de Direito para alcançar o obje-tivo por nós almejado.
Ensina-nos o autor citado:
“Direito é ciência do ‘deve-ser’ que se projeta neces-
sariamente no plano da experiência. Para cada um
receber o que é seu, o Direito é coercível, isto é, imposto
à sociedade por meio de normas de conduta.”
Afirma, ainda, especificamente que
“o direito privado é o que, tradicionalmente, regula o
ordenamento dos interessas particulares, sendo o Direito
Civil o ramo do direito Privado por excelência.”15
E explica-nos com maestria:
“À medida que perguntamos o que devem os mem-bros da sociedade uns aos outros; ou o que é meu eo que é teu; quando estudamos as relações entre osindivíduos e as relações entre esses indivíduos e asassociações, estamos perante o ramo do direitoprivado que se denomina Direito Civil”16 (g.n.).
Ressalta que para o Direito Civil:
“preponderam as normas jurídicas reguladoras dasatividades dos particulares. Trata dos interessesindividuais. Estuda-se a personalidade; a posiçãodo indivíduo dentro da sociedade; os atos que pra-tica; como o indivíduo trata com outros indivíduos;como adquire e perde a propriedade; como deve oindivíduo cumprir as obrigações que contraiu como outro; qual a posição do indivíduo dentro dafamília; qual a destinação de seus bens após amorte...” (destacamos).
Elucida-nos que o ius civile estudado nos séculos
passados compreendia tanto o Direito público como o
Direito privado, as instituições romanas não os dife-
renciavam ante a interpenetração existente à época.
12 Lembramos aqui ser o Direito uno, sendo sua divisão em ramos, áreas ou subáreas meramente didática.13 Op. cit., p. 142.14 V. 1, p. 32,15 Direito civil, v. 1, p. 87.16 Op. cit., v. 1, p. 87.
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José Reinaldo de Lima Lopes17 endossa integral-
mente a versão apresentada afirmando que Direito
Civil, do período arcaico até a Idade Média, só se
aplicava aos cidadãos romanos,
“os descendentes dos quirites. Por ser um direito
dos cidadãos é que se dirá ius civile. (...) o direito
civil é reservado aos romanos e os não romanos
ficam excluídos do âmbito de validade das regras
de propriedade (propriedade quiritária , como se
diz), do casamento e da família do ius civile”.
Entendemos que o cidadão romano integrava,vivenciava e concebia o Estado de forma diferen-ciada, considerando, por conseqüência, a ação co-mo o exercício do direito em movimento sem qual-quer diferença de ordem substancial, assim como aencaramos nos dias atuais.18
Silvio de Salvo Venosa ainda destaca em suaobra,19 ao procurar conceituar o que devemos en-tender por Direito Civil, que qualquer tentativa dedistinção entre ramos “direito público e privadonão será imune a críticas”, mas nesse momentolocaliza o Direito Civil no segundo ramo.20
Não se esquece Silvio Venosa, de anotar a cres-cente publicização do Direito Privado,21 tecendo ain-da considerações sobre a tipicidade,22 admitindo-acomo elemento do Direito.
O estudioso argumenta existir também tipici-dade para qualquer ramo do Direito, inclusive parao Direito Civil. Recebe a tipicidade como sendo um“fenômeno universal no Direito”.23
Consideramos importante destacar o entendi-
mento do civilista para oferecermos continuidade
ao raciocínio que elaboramos.
Silvio de Sálvio Venosa entende que, para o
Direito atingir seus objetivos, deve ter
“certeza de que existe e que deva ser cumprido,
joga com predeterminações formais de conduta,
isto é, descrições legais na norma que obrigam a
determinado comportamento, quer sob a forma
positiva, quer sob a forma negativa. A isso se dá o
nome de tipicidade. Os fatos típicos existem em
todas as categorias jurídicas, notando-se com mais
veemência no campo do Direito Penal, direito
punitivo por excelência, em que condutas crimi-
nosas, reprimidas pela lei, são por ela descritas. Só
há crime se houver lei anterior que o defina.
Contudo, o fenômeno da tipicidade é universal no
Direito. No Direito Privado, seus vários institutos
são delineados com uma descrição legal. Daí por
que a lei define o que é obrigação, o que é proprie-
dade, como se extingue a obrigação etc.
(...)
Esse fato típico que dá origem às relações jurídicas
também é denominado fato jurígeno ou fato gerador
(embora esta última expressão seja consagrada no
direito Tributário, seu sentido é idêntico).
Na maioria das vezes, o fato típico, ou seja, a des-
crição legal de uma conduta predetermina uma ação
do indivíduo, quer para permitir que ele aja de uma
forma, quer para proibir determinada ação”
(grifamos).
O autor prossegue exemplificando sua inter-
pretação:
“Quando o Código Civil afirma, no artigo 1.267, que
a propriedade das coisas não se transfere pelos
negócios jurídicos antes da tradição” (antigo, art. 620)
isso quer dizer que há uma tipicidade na conduta
17 Op. cit., p. 46.18 Sobre o tema, recomendamos a leitura da obra Introdução ao estudo do processo civil, de Eduardo J. Couture. Rio de
Janeiro: Forense, 1995.19 Op. cit., v. 1, p. 89.20 Divisão que sabemos ser de cunho meramente didático, por ser o Direito estrutura una e indivisível.21 Interpretação extraída da obra citada de Silvio de Salvo Venosa, p. 89. Interessante é a conscientização de que a
publicização do Direito Civil não significa seu desaparecimento, mas decorrência lógica da dinâmica das relaçõesjurídico-sociais.
22 Manifesta-se o autor sobre o assunto no livro citado, v. 1, p. 32-33.23 Manifesta-se o autor sobre o assunto na obra citada, v. 1, p. 32.
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para entregar as coisas adquiridas pelo contrato,
pois a propriedade só ocorre com a entrega
(tradição da coisa móvel). Qualquer outra conduta
será atípica, isto é, contrária à disposição da norma,
e sofrerá uma reprimenda, no caso, uma repri-
menda civil”.
Assim, podemos concluir que o Direito, ciência
do dever-ser, orientadora do agir humano, se ex-
pressa por comandos normativos e prescritivos.
Sua finalidade primária é coercitiva na moda-
lidade educativa. Suas regras objetivam gerar con-
vivência harmônica entre as pessoas que vivem em
sociedade.
A imposição sancionatória, elemento formal
que garante a eventual aplicação da força social, con-
forme ensinamentos de André Franco Montoro,24 e
que integra norma jurídica, expressão do Direito, é
secundária, e somente incidirá quando houver tipi-
cidade, seja civil (stricto ou lato sensu) ou penal, para
que se legitime a imposição de sanções.
Nessa estrutura inserem-se todos os comandos
normativos, inclusive as sanções cíveis que envolvam
prisão, legítimas expressões de um poder Estatal, o
Legislativo, após manifestação do Judiciário, que,
por sua vez, observa um devido processo legal, que
devem ser na íntegra observadas e aplicadas.
Os comandos normativos, por emanarem do
Estado, presumem-se legítimos, esse é o motivo que
impede o cidadão de oferecer escusas alegando o
desconhecimento da norma jurídica.
Conforme a situação fática, se descrita como tí-
pica, ainda que se insira na seara privada porque
familiar ou obrigacional, envolve assunto patrimo-
nial, pode, sim, vir a gerar pena de prisão, verbi gra-
tia, prisão civil por dívidas.
Cumpre-nos agora passar a discutir se os ilí-
citos civil e penal são aspectos diferentes de uma
mesma situação.
Há fusão nas conceituações dos ilícitos civil e
penal pelo fato de ser o Direito uno?
A resposta que acreditamos que se impõe aqui
é negativa.
O fato jurígeno é único, podendo ensejar aná-
lises jurídicas por óticas diferentes25 e nos mais di-
versos ramos.
É sob essa interpretação que afirmamos que o
ilícito penal e civil diferem.
Silvio Rodrigues, em sua obra Direito civil,26
faz alusão às ocorrências alheias à atividade humana
e que criam relações na órbita do Direito denomi-
nando-as fatos jurídicos.
Apresenta o autor mencionado em sua obra27
a conceituação de Savigny sobre os fatos jurídicos,
“acontecimentos em virtude dos quais as relações
de direito nascem e se extinguem”.
Para Silvio Rodrigues, o fato jurídico em senti-
do amplo
“engloba todos aqueles eventos, provindos da
atividade humana ou decorrentes de fatos naturais,
capazes de ter influência na órbita do direito, por
criarem, ou transferirem, ou conservarem, ou
modificarem ou extinguirem relações jurídicas”.
A interpretação supra, aparentemente, perma-
nece a mesma após a modificação do Código Civil de
1916 pelo Código Civil em vigor de 2002, pelo que
constatamos na obra de Silvio de Salvo Venosa.28
Os autores (Silvio Rodrigues e Silvio Venosa)
asseveram que os atos jurídicos se dividem em atos
ilícitos e lícitos.
24 Introdução à ciência do direito, p. 308.25 Referimo-nos aos efeitos que podem ser discutidos em termos públicos e privados.26 V. 1, p. 301.27 Op. cit., p. 301.28 Op. cit., v. 1, p. 366.
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Ambos argumentam no mesmo sentido.
Transcrevemos o posicioamento atualizado de
Silvio Venosa:
“atos meramente lícitos (...) os praticados pelo ho-
mem sem intenção direta de ocasionar efeitos jurídicos
(...). Esses atos não contêm um intuito negocial... ”.29
Contudo, acrescenta ainda o segundo jurista,
Silvio de Salvo Venosa, elucidando melhor a situa-
ção, que, pela legislação em vigor, o novo Código
Civil procurou ser mais técnico e trouxe a redação
do artigo 185:
‘Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios
jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições
do Título anterior.’ Desse modo, o novo estatuto
consolidou a compreensão doutrinária e manda
que se aplique o ato jurídico meramente lícito, no
que for aplicável, a disciplina dos negócios
jurídicos.... Os atos ilícitos, que promanam direta
ou indiretamente da vontade, são os que
ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários, lato
sensu, ao ordenamento. No campo civil, importa
conhecer os atos contrários ao Direito, à medida
que ocasionam dano a outrem. Só nesse sentido o
ato ilícito interessa ao direito privado. Não tem o
Direito Civil a função de punir o culpado. Essa é a
atribuição do Direito Penal e do direito Processual
Penal . Só há interesse em conhecer um ato ilícito,
para tal conceituado civil, quando há dano
ocasionado a alguém e este é indenizável. Dano e
indenização são, portanto, um binômio inseparável
no campo do Direito Privado. Por essa razão, o
campo da ilicitude civil é mais amplo do que o da
ilicitude penal. Só há crime quando a lei define a
conduta humana como tal. Há ilícito civil em todos
os casos em que, com ou sem intenção, alguém
cause dano a outrem” (grifamos).
Apoiamo-nos ainda no mesmo mestre30 para
trabalharmos as intenções dolo e culpa, o que enten-
demos necessário para mencioná-las ainda nesse
trabalho posteriormente.
Quando o autor do dano possui vontade em
praticá-lo, há dolo.
Por sua vez, quando o agente, autor do dano, age por
imprudência, imperícia ou negligência, atua com culpa.
Verificamos que o Código Civil novo mantevea mesma estrutura normativa contida no CódigoCivil de 1916 para trabalhar essas estruturas deordem volitiva – dolo e culpa, respectivamente nosartigos 186 e 159.31
Mirabete32 ao trabalhar a ação e a execuçãocivil, especificamente a reparação ex delicto, em sua
obra comenta que:
“O crime ofende um interesse jurídico, acarretando
uma lesão real ou potencial à vítima, seu titular.
Origina, assim, o jus puniendi para a aplicação da
sanção penal mas também da obrigação de que o
autor repare o dano pelo ilícito. A idéia de que de
um mesmo fato, fruto de um comportamento hu-
mano, decorram lesões simultâneas, de normas e
interesses diversos, isto é, públicos de um lado e
privados de outro, é noção própria de período
relativamente recente da história da humanidade.
A questão de reparação do dano causado pela
infração penal não pode deixar de influenciar o
próprio direito público, tendo em vista o real
interesse da sociedade e do Estado no sentido de
que os lesados pelo crime obtenham reparação e,
29 Silvio de Salvo Venosa, op. cit., v. 1, p. 366.30 Silvio de Salvo Venosa, op. cit., mesma página.31 A diferença contida entre os textos mencionados afeta questões de ordem moral e que não abordaremos no presente
trabalho. Apenas elucidamos que o novo Código Civil consagra a indenização de ordem meramente moral e a alteraçãoque afeta o texto do Código Civil de 1916 está na segunda parte do artigo. Nesse sentido: “... ou causar prejuízo aoutrem, fica obrigado a reparar o dano”. O novo texto altera o texto. Retira a disjuntiva apresentada pela expressão oue complementa o texto com o termo aditivo “e”, fazendo ainda menção ao dano exclusivamente moral previsto naConstituição Federal de 1988; nesse sentido, a segunda parte do artigo a que nos referimos determina “e causar danoa outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
32 Processo penal, p. 164-165.
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principalmente, de que os autores das transgressões
da ordem social não se locupletem ilicitamente. Vela
o Estado para que desapareçam os efeitos do crime
inclusive no que se relaciona com os interesses
privados. Nos termos da lei civil, aquele que, por
ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, causar prejuízo a outrem comete ato
ilícito ( art. 186 do CC), ficando obrigado a reparar
o dano (art. 927 do CC).”
Concluindo o presente tópico, verificamos que
o Direito Civil objetivamente cuida das relações
privadas e, como qualquer área do Direito, também
trabalha com tipificações. Sua norma jurídica pos-
sui duas características. Vejamos:
a) “A força coercitiva do poder social”.33 A lei
posta é obrigatória, imperativa, atributiva.
Impõe a observância de comportamento so-
cial, exige seu cumprimento por todos e ainda
permite a cada parte envolvida na relação
social a possibilidade de reclamar rigorosa-
mente tal comportamento. Este último tópico
parece-nos encontrar respaldo no autoriza-
mento apresentado por Maria Helena Diniz
na obra Conceito de norma jurídica como
problemática de sua essência?
b) Além do exposto, há o fato de a norma jurí-
dica ser projetada para o futuro, portanto,
e seu escopo é a Justiça, o bem comum, a har-
monia daqueles que vivem em sociedade
organizada.
Dessa forma, a tipicidade é essencial em qual-
quer estrutura que envolva a ciência do deve-ser,
inclusive o Direito Civil.
Atos ilícitos existem nas esferas penal e civil.
Contudo, a prisão normalmente prevista nas áreas
Penal e Processual Penal apresenta-se com potência
sancionatória, e na esfera Civil a prisão assume uma
outra conotação apenas coercitiva, mas ainda é
pena de ordem corporal, não substitui a prestação
obrigacional devida.
Passemos agora a vislumbrar a prisão civil por
dívidas realizando uma análise jurídica geral.
4. DA PRISÃO E DOS PRINCÍPIOS CONSTI-
TUCIONAIS QUE GARANTEM O DIREI-
TO DO CIDADÃO DEMOCRATIZANDO
O ACESSO À JUSTIÇA – UM PANORAMA
GERAL
Para aprimorar nosso raciocínio sobre a pri-
são, orientamo-nos na doutrina de Júlio Fabbrini
Mirabete.34
Para o autor mencionado,
“a prisão, em sentido jurídico, é a privação da liberdade
de locomoção, ou seja, do direito de ir e vir, por mo-
tivo ilícito ou por ordem legal” (destacamos).
Concluímos, realizando uma análise global do
que até então apresentamos, que o conceito léxico
de prisão até então alcançado torna-se insuficiente
para que realizemos nosso objetivo, e que se amplia
na versão de Mirabete.
Juridicamente, para que haja a privação do Di-
reito de Liberdade no Brasil, exige-se um respaldo
jurídico que a legitime.
Pelo menos dois elementos específicos suportam
o decreto de prisão: um motivo ilícito ou uma
ordem legal, repetimos.
Lembramos aqui ser ilícita a conduta que não ob-
serva o comando contido no tipo penal normativo.
Constituímos um Estado Democrático de Di-
reito que prestigia e resguarda o princípio da auto-
nomia da vontade no texto constitucional. Repor-
tamo-nos ao inciso II, do artigo 5º da Constituição.
33 Conforme nos ensina André Franco Montoro, Introdução à ciência do direito, p. 305-306.34 Op. cit., p. 388 e seguintes.
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No entanto, a autonomia do agir humano não
é ilimitada, encontra anteparos nos termos da Lei,
stricto sensu, para que o convívio social seja har-
mônico.
Assim, somente a Lei pode limitar o interesse,
o homem em seu agir e permitir sua punição até
sua prisão.
Nesse momento, cumpre-nos transcrever o
inciso II, do artigo 5º da Constituição Federal: “nin-
guém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei”.
A Liberdade do homem que vive em sociedade
existe concretamente e sujeita-se somente ao co-
mando legal.
José Afonso da Silva nos ensina que
“liberdade matiz, a liberdade base, que é a liberdade
de ação em geral, a liberdade de atuar (...) liberdade
essa que pressupõe a existência de uma ordem
sistematizada, escrita, coativa e mais que consagre
o princípio da legalidade como garantia individual
como peça chave da liberdade apregoada”.35
Continuando a discorrer sobre o assunto pri-
são apoiados na ótica de Júlio Fabbrini Mirabete,36
verificamos que o autor, ao conceituá-la, oferece
distinções sobre as espécies de prisões no sistema
nacional.
Mirabete afirma existir “a prisão-pena (penal)
e a prisão sem pena (processual penal, civil, admi-
nistrativa e disciplinar)” (grifamos).
Explica-nos Mirabete que:
“A prisão pprisão pprisão pprisão pprisão penalenalenalenalenal, cuja finalidade manifesta é
repressiva, é a que ocorre após o trânsito em julgadoda sentença condenatória em que se impôs penaprivativa de liberdade. A prisão processualprisão processualprisão processualprisão processualprisão processual, tambémchamada provisória, é a prisão cautelar, em sentidoamplo, incluindo a prisão em flagrante (arts. 301 a310), a prisão preventiva (arts. 311 a 316), a prisão
resultante de pronúncia (arts. 282 e 408, § 1º), aprisão resultante de sentença penal condenatória(393, I) e a prisão temporária (Lei n. 7. 960, de 21-12-89). A prisão civil é a decretada em casos dedevedor de alimentos e de depositário infiel, únicaspermitidas pela Constituição (art. 5º, LXVII). Aprisão administrativa, que após a Constituição de1988 só pode ser decretada por autoridade judiciária,é prevista pelo Código Processual Penal (art. 319, I)e leis especiais. Por fim, existe a prisão disciplinarpermitida na própria Constituição para astransgressões militares e crimes propriamente
militares (arts. 5º, LXI e 142, § 2º)” (grifo nosso).
De qualquer forma, independentemente da mo-dalidade de prisão discutida, deve restar claro o res-peito ao princípio do devido processo legal que“constitui base de todos os demais”37 princípios nosistema vigente.
O devido processo legal teve origem em 1215,na época do Rei João Sem Terra. Seu aspecto é indis-cutivelmente protetivo e, com o passar dos tempos,foi ganhando contornos de garantia não só pro-cessual, alçou status de direito material.
Hoje o devido processo legal apresenta-se naConstituição Federal brasileira de 1988 como pilardo sistema democrático; garantia essencial nas es-feras jurídica e administrativa, instrumento aces-sível ao homem que vive em nossa sociedade.
Previsto na Constituição Federal, o princípio emcomento revela sua importância por limitar a atividadedo poder soberano, impedindo-o de impor aos ci-dadãos medidas arbitrárias e de forma inadequada,sem observância de procedimentos legais.
Da mesma forma, o princípio do devido pro-cesso legal determina o reconhecimento e a obe-diência, por parte das autoridades estatais, das ga-rantias cristalizadas pelo regime democrático de di-reito para que a estrutura processual desenvolva-seregularmente, preservando constitucionalmente,civilmente, os direitos dos cidadãos, partes em re-lações jurídico-processuais.
35 Curso de direito constitucional positivo, p. 209.36 Op. cit., p. 388 e seguintes.37 Novo curso de direito processual civil, v. 1, p. 35.
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O princípio em estudo também nos leva ao incisoque dispõe que “ninguém será privado da liberdadeou de seus bens sem o devido processo legal”.
Assegura, portanto, aos litigantes todas as ga-rantias de segurança por meio de um instrumentohábil, o processo, que se desenvolve perante órgãose autoridades competentes do Poder Judiciário; emregra público, o que resguarda sua lisura e inte-gridade; informado pelo contraditório e ampladefesa; pela prova lícita e pela observância de umprocedimento regular, o que efetiva e concretiza ademocracia no acesso à justiça, Direito Fundamen-tal do cidadão, já há muito consagrado.
Figura o devido processo legal, por meio dosensinamentos de Nélson Nery Júnior,38 como umprincípio suporte para todos os demais princípiosinfraconstitucionais, que dentro de sua estruturase desenvolvem e aperfeiçoam, um verdadeiro “pos-tulado constitucional fundamental do processocivil, (...) possibilidade efetiva de a parte ter acessoà justiça deduzindo pretensão e defendendo-se domodo mais amplo possível”.39
Concluindo o presente tópico, apresentamosum panorama geral em que observamos a existênciado instituto prisão dentro de esferas diferenciadasdo Direito.40 Por meio dos estudos de Mirabeteconstatamos a presença de prisões com e sem pena.
Anotamos que qualquer restrição da liberdadeou de bens deve ser precedida de um instrumentotécnico garantidor dos direitos do cidadão, o de-vido processo legal.
Salientamos que, de qualquer forma, restamuito claro que a pena que impõe a privação daliberdade do ser humano aplica-se sob a forma deexceção e não pode acontecer de forma arbitráriacomo já fora imposta em passado remoto.
Assim, não há falar em contra-senso. Lendo otexto constitucional e processual, qualquer insti-
tuto que se refere à prisão revela-se como uma ga-rantia por impô-la como regra excepcional e ob-servado o processo, instrumento-garantia de obser-vância dos direitos das partes envolvidas na relaçãojurídico-processual.
Antes da prisão nas modalidades coação ousanção, observam-se os princípios da autonomiada vontade, da legalidade, do devido processo legale seus decorrentes.41
A prisão sempre será imposta como forma deexceção e, no caso específico da prisão civil, o textoconstitucional, em seu bojo, prevê expressamenteas escusas plausíveis para que a constrição da liber-dade não ocorra indevidamente.
Há, por meio da consagração do princípio daautonomia da vontade dos particulares e da legali-dade, o amplo resguardo do Direito de Liberdade,que, como regra, deve ser observado e garantidopor meio de remédios constitucionais e processuais.
Exige-se no texto constitucional, por parte doscidadãos e do Estado, apenas a observância da Lei quedecorre do trabalho dos representantes dos titularesdo poder soberano, normas essas que cuidam da con-vivência social e assumem um contorno educativo ede respeito no agir humano e do próprio Estado emsuas ações e campos de atuação.
Assim, na exata medida em que não houve, porparte do particular, a assimilação da proposta deconvívio harmônico, e dependendo da importânciado bem jurídico afetado para a comunidade, apre-senta-se a prisão, a restrição corporal do indivíduo,como única alternativa plausível para fazer valer ocomando estatal, exigindo que o transgressor danorma apreenda o seu comando, destacando a ne-cessidade de observância e respeito ao individual,
ao coletivo e às instituições estatais.42
38 Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 27.39 Op. cit., p. 38.40 Sem aqui nos esquecermos de que o Direito é uno e que sua divisão em ramos e sub-ramos é puramente didática.41 Na acepção de Nelson Nery Júnior.42 Infelizmente, a prisão continua a ser um meio necessário para aqueles que insistem em desrespeitar as regras de convívio
social. Apesar de todos os avanços nas mais diversas ordens alcançados pelo homem por meio da dinâmica social, a
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Refletíamos sobre a prisão e lembramo-nos do
comando constitucional e que se repete no diplomainfraconstitucional penal harmonizando liberdadee legislação: “não há crime sem lei anterior que odefina nem pena sem prévia cominação legal”.
O teor do comando transcrito destaca o prin-cípio da legalidade, também conhecido como prin-cípio da reserva legal ou anterioridade, imposto aqualquer cidadão, de origem constitucional, poisfigura no Texto Maior, insere-se nos incisos que cui-dam dos direito e das garantias do cidadão e repete-seno artigo 1º do Código Penal impondo-se a qual-quer outra que determine a aplicação de penas res-tritivas de liberdade.
Na estrutura civil, o princípio da legalidade tam-bém se aplica, impondo-se a prisão ao cidadão que nãopode responder por suas dívidas, por meio de tiposbem definidos, preestablelecidos no Direito positivo.
Como já argumentamos, somente aquele que dei-xa de pagar alimentos e infringe a norma e aquele quedeixa de cumprir a obrigação voluntariamente e demaneira inescusável podem perder a sua liberdade.
Mas ainda assim impõe-se a todos os ilícitoscivis a pena de prisão?
A resposta aqui é negativa, pela própria natu-reza do bem jurídico tutelado.
Em regra, o Direito Penal protege a vida, maspode vir a proteger também o patrimônio indivi-dual e/ou coletivo sob outro enfoque.
O Direito Penal volta sua atenção à agressão, à
violência utilizada pelo agente criminoso em face de
seu semelhante, foca o desrespeito às premissas básicas
morais e legais para o alcance de objetivos ainda que
na esfera patrimonial, agressão essa que normalmente
transcende a esfera particular em sua intensidade e
que afeta toda a sociedade, que se ressente do agravo
da conduta perpetrada pelo agente conhecido como
sujeito ativo da conduta criminosa.
Exatamente aí diferem na prática as infrações
civil e penal.
Na primeira, a afronta resta restrita à esfera
particular do lesado, que, pela disponibilidade do
Direito afetado, tem, por meio do princípio da au-
tonomia e da liberdade, garantia para o exercício
do direito de ação ou não, e, por conseqüência, a po-
tencialidade de movimentar a máquina judiciária
se assim entender necessário.
Não que a sociedade não seja afetada com a
conduta daquele que comete um ilícito civil. Em
nosso entendimento, o gravame é o mesmo em na-
tureza, mas sua extensão, não, pela natureza do Di-
reito discutido.
Talvez aqui mudássemos nossa interpretação
e adotássemos uma postura assertiva diante de “in-
fratores” contumazes na esfera cível, mas isso seria
admitir a imposição, por analogia, a toda e qual-
quer infração na esfera obrigacional ou negocial,
postura com a qual não concordamos.
Faremos, agora, uma análise sistemática para
explicarmos nosso ponto de vista.
Constituímos um Estado Democrático de Di-
reito, repetimos. Assim, nossa organização política,
prisão, meio arcaico, reprimenda que recai sobre o físico do homem, sobre a liberdade, compreendida como um bemmaior, ainda se impõe e possui, enquanto elemento de coerção, uma certa eficácia sobre a conduta humana, mas nãoafasta ou inibe o desrespeito à regra comportamental. Aplica-se a prisão ainda hoje, em pleno século XXI. Trata-se deinstituto de aparência repugnante, mas ainda assim nos tempos atuais necessário, sem que seja possível previsão queadmita a reversão desse processo. Parece-nos um contra-senso, principalmente ao lembrarmos uma passagem nahistória humana destacada por José Reinaldo de Lima Lopes na obra O direito na história: lições introdutórias, p. 35,em que o autor, traçando a “diferença de classes nas cidades Gregas e em Atenas”, acaba por nos elucidar que “ ao ladodos proprietários rurais, latifundiários, que tendiam a formar a oligarquia conservadora, estavam os hoplitas, artesãos,agricultores, homens livres, que favoreciam uma democracia moderada. Restavam também os miseráveis, abertos auma democracia radical. Muitas das reformas feitas ao longo da história ateniense são resultado dessas lutas sociais.Aristóteles considerava um traço constitutivo da democracia ateniense a proibição da servidão por dívidas”. Assim,refletimos, retrocedemos no evoluir da história?
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social e jurídica resta limitada pela lei. O particular
pode fazer tudo aquilo que a lei não o proíba, e a
Administração Pública só pode agir nos termos
exatos da legislação; ainda que sua atividade seja
discricionária, tem a lei por limite.
São considerados princípios vetores de nosso
sistema a legalidade, a autonomia privada, o devido
processo legal, publicidade, ampla defesa, contra-
ditório, provas lícitas, isonomia, premissas que
evidenciam proteção a direitos fundamentais como
a vida, a liberdade, a propriedade, a segurança, a
dignidade da pessoa humana.
Se fizermos uma peregrinação histórica compa-
rada, mesmo os países em que há vínculo histórico
com a origem de nossa legislação atual, seja por cópia
ou por colonização, já aboliram de suas legislações
qualquer constrição que recaia sobre a pessoa do
devedor que não cumpre com suas obrigações.
Nossa Constituição de 1988, chamada Consti-
tuição Cidadã, e tida como modelo legislativo para
países considerados avançados em suas codificações,
manifestações jurídicas, verdadeiros expoentes na
ordem internacional, pela apresentação e proteção
que faz dos Direitos e das Garantias Individuais e
Coletivos.
Assim, qual a intenção do nosso legislador
constituinte originário, que tudo pode, que possui
um poder ilimitado, que elabora uma nova ordem
jurídica, ao manter no Texto Magno a previsão da
prisão civil por dívidas?
Não podemos crer que tenha sido fruto de es-
quecimento, desorganização ou de desconhecimen-
to técnico legislativo.
Havia a prisão civil por dívida alimentar que
sedimenta um motivo que a sustenta, a vida, a so-
brevivência, princípios de Direito natural.
5. DA PRISÃO ALIMENTAR
Como pudemos constatar no início desse tra-
balho, não há qualquer óbice ou conflito de ordem
doutrinária para a prisão decorrente da falta de
prestação alimentar.
Estamos trabalhando novamente a constrição
corporal, da privação do movimento de um deve-
dor inadimplente.
O direito de liberdade, de ir e vir, bem maior do
indivíduo, resta tolhido por questão de ordem obri-
gacional. Fica limitado por ordem estatal. No en-
tanto, tal ordem é legítima.
Mas ainda se trata de uma prisão civil por dí-
vidas, assunto controvertido.
Cumpre-nos, portanto, estudar por que a pri-
são civil por dívida que decorre de obrigação ali-
mentar é naturalmente aceita em nosso sistema ju-
rídico interno e, mais, transcende a questão cultural
nacional. Internacionalmente é reforçada, confor-
me demonstramos no inciso 7º do artigo 7º do Pacto
de San José da Costa Rica.
A natureza do Direito em apreço supera todo ou
qualquer tipo de indignação. Afeta Direito Fun-
damental do Homem-Indivíduo e, cremos, do Ho-
mem-Coletividade que não suporta ou suportaria
conviver com a afronta a um Direito inato, ainda que
envolva conteúdo econômico. No entanto, há de ser
reforçado que o dinheiro não é a origem ou o foco
central da discussão que pode levar o devedor à prisão.
A avaliação social, política, legislativa e jurí-
dica recai, sim, sobre a condição subjetiva daquele
sujeito que inspira a criação da norma e que, por
circunstâncias excepcionais, encontra-se em situa-
ção de hipossuficiência financeira.
No caso em tela, os princípios fundamentais res-
tam frontalmente afetados. Reportamo-nos aos
Direitos Naturais: a vida, a sobrevivência, a digni-
dade, a segurança, direitos esses inerentes à sobre-
vivência humana e, nesse momento, há superação
de limites culturais, de soberania ou de ordem espa-
cial-territorial, sendo objeto de destaque, aceita e
firmada até em tratado internacional, a prisão civil
por inadimplemento de obrigação alimentar.
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Estamos diante de um exemplo claro de conflito
entre princípios ou de prevalência entre princípios
diante de um caso concreto.
Não entendemos ser possível haver elementos
vetores de sistemas mais importantes do que outros
ou que haja entre premissas éticas algumas que
devam se sobrepor às outras. Contudo, diante de
determinadas situações concretas, outra postura
não se espera.
Assim, no Brasil, temos a possibilidade expressa
da prisão civil por dívidas, que abrange a obrigação
alimentar se houver inadimplemento voluntário e
inescusável. Tal sanção apenas deve ser imposta nos
termos e na forma da lei.
Seria interessante aboli-la, afinal, a prisão por
dívida alimentar é mero meio coercitivo para o
pagamento e não o substitui. Todavia, somente uma
nova ordem constitucional que instale um novo
Estado por meio de um poder originário ilimitado
poderia assim agir.
Em nosso país, a previsão resta expressa, por-
tanto, faz-se possível a imposição dessa forma coer-
citiva de adimplemento de prestação alimentar.
A prisão civil por inadimplemento de obrigação
alimentar teve previsão Constitucional no Brasil com
o advento da Constituição de 1946, mantida na Carta
de 1967 e com a Emenda n. 1 de 1969.
A Constituição Brasileira de 1988 manteve a
proibição da coerção física civil por débito, mas,
na mesma forma das demais supramencionadas,
admitiu as ressalvas contidas nos textos magnos an-
teriores. Apenas acresceu à expressão “inadimple-
mento” os termos “voluntário” e “inescusável”. En-
tendemos que a mudança aprimorou o instituto e
dificultou a imposição da pena de prisão, que, a
nosso ver, deveria ser abolida.
No caso em tela há conflito de princípios, es-
trutura que no Direito por vezes se impõe, mas que,
pela sanção de ordem meramente coercitiva, na
forma aplicada e pela estrutura carcerária existente,
cremos ser dispensável.
No contexto atual, devemos sopesar os princí-
pios em choque. De um lado, em um prato da balan-
ça na busca pela Justiça e de uma solução plausível,
a liberdade, dignidade do devedor alimentante. Do
outro lado, a vida, a sobrevivência digna do ali-
mentando.
Para o devedor inadimplente, sem motivo plau-
sível que possa justificar o seu atraso ou o descum-
primento de seu dever alimentar, ou que volunta-
riamente deixa de arcar com tal compromisso, deve
impor-se prisão, não como meio de satisfação da
prestação por não equivaler ao adimplemento, mas
como coerção para a satisfação da obrigação pos-
teriormente.
Perguntamos: isso resolve?
Não deixamos de considerar extremada e ar-
caica a constrição física.
Entendemos que cumpre ao devedor a auto-
preservação de sua liberdade por meio da demons-
tração de que sua inação não foi voluntária e que
resta justificada. Tal atitude coibiria a imposição
de qualquer permissivo para imposição da pena de
prisão. Assim, sua existência no texto constitucional
seria meramente formal, porque o cidadão conhe-
ceria as conseqüências legais que poderiam ser im-
postas por sua atitude desrespeitosa para com o
Direito Fundamental de seu semelhante e que dele
depende. Ademais, tal descumprimento assume um
perfil inadmissível para aquele que tem bom senso,
bons sentimentos e responsabilidade para com o
próximo e para consigo mesmo. Esta é uma estru-
tura de ordem moral, fraternal, social, cultural com
reflexos jurídicos.
A apreciação que fizemos encontra respaldo nos
termos da Lei n. 5.478 de 25 de julho de 1968, que
dispõe sobre a Ação de Alimentos e dá outras
providências.
É essa uma lei esparsa que cuida de ação especial
aceita e aplicada desde a sua promulgação.
Os legitimados para a sua propositura são pes-
soas que possam exigir de outra(s), por questões de
parentesco, casamento ou união estável, os recursos
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necessários para sua subsistência, isso porque não
há como provê-los por conta própria.
A ação de alimentos pode ser proposta pelolegitimado ordinário, ou seja, o titular do direitoreclamado, por seu representante legal e, atémesmo, pelo Ministério Público, nos termos doartigo 201, III do ECA.
Tradicionalmente, em São Paulo, o represen-tante do Parquet atua com legitimação extraordi-nária, como substituto processual, e sua atuação éendossada pela legislação. O Ministério Públicopromove ações de alimentos em municípios caren-tes em que faltam advogados dativos para o ajui-zamento dessas ações.
A ação de alimentos é situação que envolve oestado de pessoas. Assim, nos termos do inciso I, doartigo 82, e artigos 83, 84, todos do Código deProcesso Civil,43 mister se faz a participação do re-presentante do Ministério Público, sob pena de nu-lidade. Atua ele como fiscal da lei.
Ainda, entendemos interessante registrar odisposto no § 1º do artigo 13 da Lei n. 5.478 de1968, que permite a revisão dos alimentos fixadospelo juiz.
Outro cuidado especial foi o fato de os alimen-
tos fixados retroagirem sempre à data da citação, e
serão devidos até a data da decisão final, inclusive se
houver julgamento do recurso extraordinário, cir-
cunstâncias que constam respectivamente nos §§ 2º
e 3º do artigo 13 da Lei em apreço.44
Aspecto relevante a ser assinalado é que o
legislador entende que os alimentos provisórios ou
definitivos fixados na inicial da ação de alimentos
poderão ser revistos a qualquer tempo. Tal previsão
encontra arrimo na possibilidade de modificação na
situação financeira de qualquer das partes, sendo certo
que o pedido será sempre processado em apartado.
Também no artigo 15, da Lei 5.478/68, resta
expresso que a qualquer tempo há possibilidade de
revisão do julgado diante da modificação financeira
dos interessados.
Portanto, a decisão na ação de alimentos faz
coisa julgada formal e não material e, nesse sentido,
destacamos o teor do inciso I do artigo 471, in
verbis:
Nenhum juiz decidirá novamente as questões já
decididas, relativas à mesma lide, salvo:
I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa,
sobreveio modificação no estado de fato ou de
direito; caso em que poderá a parte pedir revisão
do que foi estatuído na sentença.
43 Nesse sentido, transcrevemos o teor do artigo 81, artigos 82 e 83 e seus incisos I e II, e artigo 84, todos do CPC:
Art. 81.Art. 81.Art. 81.Art. 81.Art. 81. O Ministério Público exercerá o direito de ação nos casos previstos em lei, cabendo-lhe, no processo, os
mesmos poderes e ônus que às partes.
Art. 82.Art. 82.Art. 82.Art. 82.Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir:
I – nas causas em que há interesse de incapazes;
II – nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de
ausência e disposição de última vontade; (...)
Art. 83. Art. 83. Art. 83. Art. 83. Art. 83. Intervindo como fiscal da lei, o Ministério Público:
I – terá vista dos autos depois das partes, sendo intimado de todos os atos do processo;
II – poderá juntar documentos e certidões, produzir provas em audiência e requerer medidas ou diligências necessárias
ao descobrimento da verdade.
Art. 84.Art. 84.Art. 84.Art. 84.Art. 84. Quando a lei considerar obrigatória a intervenção do Ministério público, a parte promover-lhe-á a intimação
sob pena de nulidade do processo.
44 Lei n. 5.478/68.
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Por tudo o que foi exposto, a Ação de Alimen-tos possui rito especial,45 o que nos faz denotar umcuidado do legislador para com o tema e seu proces-samento em juízo.
A ação de alimentos, por sua natureza e pelodireito que protege, não resta adstrita a qualquerdistribuição anterior e conta com a concessão dagratuidade pelo próprio tema que envolve.
A celeridade é marca fundamental de seu ritual.
Somente na fase de execução, após a fixaçãodos alimentos determinados e não-pagos, é que secogitará a possibilidade de prisão do devedor dealimentos inadimplente. Registramos nesse mo-mento a presença da segurança jurídica.
Cumpre-nos, contudo, destacar que o legisladorfoi bastante condescendente e cauteloso permitindoescusas ao devedor antes do pronunciamento dadeterminação de imposição da pena de prisão porfalta de prestação alimentícia, circunstância que“insere-se entre os atos concretos que o Estado podepraticar para a satisfação do credor”.46
Da análise do ordenamento, verifica-se que olegislador procurou, ao máximo, facilitar o contatoentre as partes envolvidas. Buscou, assim, umaresolução urbana, um deslinde razoável para asituação conflituosa que pode até ser considerada“saudável” na busca da satisfação do crédito.
Nesse sentido, há, por meio da leitura do artigo 16,as seguintes possibilidades:
1. O desconto em folha de pagamento, situa-ção prevista também no artigo 734 do Có-digo de Processo Civil.
2. Permite ainda a legislação expropriação debens nos termos do artigo 646 do mesmoCódigo de Processo Civil.
3. Apela a legislação para a prisão, prevista noartigo 733, e seguintes, do Código de Pro-cesso Civil em última hipótese como meiocoercitivo e não substitutivo do pagamento,fato também consignado expressamente noartigo 18 da Lei de Alimentos.
Cabe ainda ressaltar o alerta apresentado porSilvio de Salvo Venosa.47 A jurisprudência, que im-prime uma dinâmica especial à letra fria da lei, vemadmitindo a execução, nos termos do artigo 733 doCódigo de Processo Civil, do alimentante, com pre-visão de pena de prisão somente para cobrançasdas prestações alimentares dos últimos três mesesou no máximo seis meses.
A cautela que acabamos de ressaltar e que estácontida na lei infraconstitucional, respalda-se notexto constitucional, no inciso LXVII do artigo 5º.
Verificamos que, antes da determinação daprisão civil por inadimplemento de prestação ali-
45 Segundo Silvio de Salvo Venosa, na obra citada, v. 6, p. 394-395, “a ação de alimentos disciplinada dada pela Lei n. 5.478/68tem rito especial procedimental sumário especial, mais célere que o sumário; uma espécie de sumaríssimo, como o dosJuizados Especiais, e destina-se àqueles casos em que não há necessidade de provar legitimação ativa do alimentando.Quando a paternidade ou maternidade, o parentesco, em geral, não está definido, o rito deve ser ordinário, cumulandoo pedido de investigação com o pedido de alimentos. Modernamente, não há mais restrições a qualquer reconhecimentode filiação , não havendo mais necessidade de a sentença decidir acerca da paternidade apenas incidentalmente, para ofim de conceder alimentos, como nas antigas hipóteses quando o filho não podia ser reconhecido. A lei especial permitea concessão liminar de alimentos provisórios. Sem a prova pré-constituída do parentesco, não podem ser concedidosos provisórios e nem mesmo se admite essa ação de procedimento especial. Poderá o interessado, porém, ainda que seutilizando do procedimento ordinário, valer-se do poder geral de cautela do juiz para esse fim.”
46 Não nos permitimos mais apoiarmo-nos na antiga conceituação de Jurisdição como sendo o mero poder de dizer odireito ao caso concreto, decorrente da expressão “juris – dicere” – que, traduzida ao pé da letra, consiste em “dizer odireito”. Nosso entendimento respalda-se em um outro padrão de maior dinâmica e que reconhece na atividadeJurisidicional a possibilidade de o Estado interferir no patrimônio privado, sempre observando um devido processolegal, o que lhe permite exigir também a satisfação de um direito já dito em título que decorra de decisão judicial outítulo extrajudicial. Assim, nossa conceituação de jurisdição consiste aceitar a interferência do Estado no exercício do“poder de dizer o Direito ao caso concreto, e de demonstrar a sua eficácia”, justificando, assim, a existência das tutelascognitivas e executivas.
47 Op. cit., v. 6, p. 398.
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mentícia, seja provisória ou definitiva, situação queo texto não define expressamente, o Magistrado de-verá ter absoluta certeza de que o não-cumprimentoda obrigação (pagamento da prestação) foi volun-tário, e inescusável.
Possui o inadimplente da prestação alimentarmeios suficientes para evitar o cárcere de ordemcoativa justificando-se.48
Procedimentalmente, o Juiz manda intimar odevedor inadimplente para que efetue o pagamentono prazo de três dias, ou para que prove o adimple-mento obrigacional.
Em seguida, possibilita ainda que o executado(devedor de prestação alimentar) justifique a im-possibilidade no cumprimento de sua obrigação, etudo isso acontece respaldado nos termos do artigo733 Código de Processo Civil.
Nesse momento, se o devedor demonstrar quenão é voluntária e que é excusável a falta da pres-tação devida, estará totalmente protegido da cons-trição física, que, se imposta, será absolutamentearbitrária e passível de habeas corpus.
Antes, porém, da imposição da pena de prisãoao devedor de prestação alimentar, o Magistradoadotará, nos termos do artigo 19 da Lei n. 5.478/68,todas as medidas necessárias para esclarecer oucumprir o julgado ou acordado entre as partes.
Ademais, deve ser observado que a decretaçãoda prisão do devedor possui limite de ordem tem-poral. Não pode ultrapassar 60 (sessenta) dias, eseu cumprimento integral não exime o devedor dopagamento das prestações alimentícias, vincendasou vencidas e não adimplidas.
Consideramos a pena de prisão civil impostaao devedor por dívida alimentar um despropósito.Contudo, esta ainda permanece prevista no orde-namento maior de nosso Estado, e temos de ad-mitir que isso se dá por uma questão de ordem social– cultural, assertiva, protetiva e que, a nosso ver,poderia ter caráter meramente figurativo.
O cidadão tem a possibilidade de valer-se, pre-viamente, nos termos da legislação vigente, detodas as precauções necessárias para afastar esse“mal necessário normativo” respaldado em DireitoNatural, Fundamental.
Poderíamos até afirmar que só vai preso porinadimplemento de prestação alimentar quemquer, ante as possibilidades que lhe são oferecidaspela legislação vigente.
Contudo, inadmissível é supor que uma Cons-tituição cidadã aceite e preveja expressamente emseu texto a prisão civil na ordem privada pelo ina-dimplemento de obrigação de cunho meramentepatrimonial como a decorrente de depósito e dealienação fiduciária. Dúvidas ainda persistem emnosso raciocínio sobre a prisão imposta ao ver-dadeiro depositário infiel, o auxiliar da justiça queassume compromisso frente a um poder e o des-respeita sem justificativas plausíveis. No entanto,deixaremos para uma outra oportunidade a com-plementação desse estudo.
Constatamos apenas que há, na legislação,ainda nos dias de hoje resquícios de uma históriaantiga, triste, que permitia a escravidão do devedorinadimplente, pena que podia estender-se aos pa-rentes, e mais, que podia levar à morte e ao esquar-tejamento para satisfação dos credores insatisfeitos.
Não sejamos drásticos, a prisão civil atual peloinadimplemento de dívida civil de ordem obri-gacional assume outra conotação e proporção. Éurbana, coercitiva, coativa, não substitui para odevedor a obrigação ao pagamento do quantumdebeatur, mas ainda responde o devedor transito-riamente com seu corpo, por meio da perda da li-berdade, mesmo que momentânea, para alcancede direito de ordem patrimonial.
Essa previsão normativa inserida no textoconstitucional, para nós, cria uma situação cons-trangedora em âmbito nacional e, mais, pode as-sumir contornos complicados na esfera internacio-nal 49 se não forem bem administrados, se a normafor interpretada inadequadamente.
48 Lembramos aqui o brocardo romano “o Direito não acolhe aos que dormem”.49 Pensamos aqui nos pactos internacionais firmados por nosso Estado e a manutenção da prisão do depositário infiel.
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Moralmente, socialmente e juridicamente, nãohá elemento que justifique a manutenção da prisãocivil do depositário infiel nos termos em que seencontra no texto constitucional. Acreditamos quepoliticamente também não.
5. CONCLUSÃO
Haverá ainda um dia em que abriremos nossaConstituição Federal e encontraremos em um dosincisos do Título que cuida dos Direitos e dasGarantias Fundamentais a seguinte previsão: “nãohaverá prisão civil por dívidas”.
Não somos videntes ou Pitonisa. Somosotimistas.
Acreditamos no trabalho dos educadores, doslegisladores, na função social positiva exercida pelamídia e de seu poder sobre os cidadãos.
Em época e em proporção diferenciadas, alcan-çaremos o orgulho que Aristóteles teve em seutempo em face da proibição da prisão civil sem
qualquer ressalva. Isso se dará por entendermos queo princípio da dignidade humana foi nesse aspectoalcançado sem a necessidade de impor-se por meioscoercitivos na esfera civil.
Haverá a prevalência da consciência, da soli-dariedade, da responsabilidade para com o próxi-mo e para consigo mesmo.
Nesse estágio, a nossa Constituição refletiráexatamente o que Canotilho apregoa em sua obra,50 ahistória e o avanço conquistado por nosso povo. Esseserá o resultado concreto da atuação de um trabalhocomplexo e conjunto realizado pelos educadores, pelosjuristas, pelos legisladores, pela mídia em atuaçãopositiva, e até dos próprios diplomas legais que foramlidos e compreendidos pelos cidadãos. Atuação de todosos que acreditam na existência de um futuro melhor,pautados em um passado distante e em um presenteseguro e que projeta um futuro promissor, de todos osque buscam um comprometimento com a realidadesociocultural, política e jurídica transformada etransformadora porque dinâmica, porém segura egarantidora dos Direitos Fundamentais dos Cidadãos.
BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e aplicação daConstituição: fudamentos de uma dogmática cons-titucional transformadora. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
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SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucionalpositivo. São Paulo: RT, 1990.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. São Paulo: Atlas,2003, v. 1, 2, 3 e 6.
50 Direito constitucional e teoria da constituição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADECONJUGAL E SUAS CONSEQÜÊNCIAS NO
ÂMBITO DA RESPONSABILIDADE CIVIL:AS HIPÓTESES DE RESSARCIMENTOS DOS DANOS
MATERIAIS E MORAIS AO CÔNJUGE PREJUDICADO
Claudete Carvalho CanezinCoordenadora da pós-graduação latu sensu em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Estadual de Londrina.
Mestranda em Direito das Relações Privadas.Professora de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM.Advogada.
1. INTRODUÇÃO
A questão da responsabilidade civil, com o con-seqüente dever de indenizar, tem sido alvo deinúmeras discussões pelos operadores de Direito,dada a sua importância no ordenamento jurídico,não somente brasileiro, bem como no âmbito dosordenamentos estrangeiros.
Prevista já nas mais antigas expressões do Di-reito dentre a humanidade, a indenização, ou repa-ração, por dano causado por ação ou omissão dealguém também está presente nas relações fami-liares, mais precisamente, nas relações conjugais,de que trata o presente trabalho.
Há que se lembrar, no entanto, que à luz dosprincípios trazidos pela Constituição de 1988, odever de indenizar deve ser visto, nas relações defamília, com muito critério, posto que pela própria
preservação do vínculo familiar, somente em última
hipótese deverá o Poder Judiciário interferir com
medidas deste cunho. É assim que se deve proceder,
e tem sido o entendimento dos Tribunais Superio-
res, incontestavelmente.
Assim, pois, o estudo proposto mostra as con-
seqüências da responsabilidade civil sob o enfoque das
relações familiares, bem como a maneira como o men-
cionado instituto se relaciona com os conceitos de dolo
e culpa; causado por ação ou omissão de agente e as
obrigações advindas e antecedentes ao dever de
indenizar.
2. O VOCÁBULO “RESPONSABILIDADE”
A noção de responsabilidade vem, principal-mente, como conseqüência a que se submete aquelea quem é confiado determinado dever.
Como ensina a doutrina francesa, a idéia deresponsabilidade pode apresentar-se na forma de
obrigação e, ainda, na modalidade de garantia. Pela
linguagem vulgar, o responsável é quem estará
sujeito à obrigação de indenizar.1
1 “L’idée de responsabilité appelle celles d’obligation et de garantie. Dans le langage vulgaire, le responsable este celui quiest obligé d’indemniser.” Chapitre Premier – Généralités sur la responsabilité civile – Section préliminaire. LALOU,Henri. Traité pratique de la responsabilité civile. Paris: Dalloz, 1955, p. 1.
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É o que acontece, então, quando se fala em res-
ponsabilidade em sentido jurídico, na medida em
que o sujeito sobre o qual recai o dever de indeniza-
ção advindo da responsabilidade civil está obrigado
a um determinado comportamento – seja ele comis-
sivo ou omissivo – predeterminado por lei. De outro
lado, o dever de indenizar é igualmente previsto no
ordenamento jurídico com finalidades de garantia
daquele comportamento previamente estabelecido.
Em um aspecto mais abrangente, a palavra res-
ponsabilidade adquire uma conotação não somente
de obrigação, mas também de garantia. Assim,
também vincula-se, neste sentido, àquele terceiro que
se compromete a responder por atos de terceiros.
Como é de se notar, a idéia da palavra é a de
responder por algo previamente estabelecido, gené-
rico (responsabilidade civil extracontratual), ou
especificamente (responsabilidade civil contratual).
Por isso, é pertinente dizer que é possível res-
ponder por algo previamente estabelecido genérica
ou especificamente, porque o dever de indenização
pode advir sem que haja uma relação anterior entre
os sujeitos, tendo em vista todas as legislações que
temem a atividade jurisdicional discricionária e de-
sordenada nessa matéria, como, por exemplo, se
dá no Código Civil alemão.
2.2 Conceitos
Maria Helena Diniz2 explica que responsabi-
lidade civil é:
“a aplicação de medidas que obriguem alguém a
reparar – dano moral ou patrimonial causado a
terceiro em razão de ato do próprio imputado, de
pessoa por quem ele guarda (responsabilidade
subjetiva) ou ainda, de simples imposição legal
(responsabilidade objetiva)”.
Álvaro Villaça Azevedo3 conceitua que: “A res-
ponsabilidade nada mais é do que o dever de in-
denizar o dano”. A responsabilidade civil surge em
face do descumprimento obrigacional. O devedor
deixa de cumprir um preceito estabelecido em um
contrato, ou deixa de observar o sistema norma-
tivo, que regulamenta sua vida.
Após essas considerações, podemos observar que
responsabilidade civil é a situação de indenizar o dano
moral ou patrimonial decorrente de inadimplemen-
to culposo (de obrigação legal ou contratual), ou de
situação para a qual a lei impõe a reparação.
A regra ampla do artigo 5°, X da Constituição
Federal de 1988,4 no que toca aos danos extrapa-
trimoniais, permite que qualquer tipo de lesão que
daí advenha pode ser objeto de indenização.
O que nos leva a concluir, juntamente com
Aguiar Dias,5 “que toda manifestação da atividade
humana traz em si o problema de responsabilidade”.
Concluímos também a dificuldade de fixar um
conceito de responsabilidade, pois que ele varia
muito em relação aos seus aspectos, que podem
abranger inúmeras teorias filosófico-jurídicas
assumidas.
Não obstante tais dificuldades, não se pode ne-
gar que, em sede de responsabilidade civil, o que se
vê são poderosas mudanças. Aquele que sofreu o
dano – tanto moral, como patrimonial – não pode
ficar sem ressarcimento. Essa tem sido a tônica da
moderna concepção da responsabilidade civil. A
sensibilidade com a situação das vítimas, surgida
2 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 1996, v. 7, p. 32.3 AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Artigo elaborado para o I Simpósio de Direito Processual Civil do Centro de Extensão
Universitária de São Paulo. Maio de 1994.4 “Art. 5ºArt. 5ºArt. 5ºArt. 5ºArt. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,nos termos seguintes: ... X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, asseguradoo direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”
5 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 5. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 75.
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das mais variadas espécies de relações, tem gerado
uma maior amplitude em torno da responsabi-
lidade de indenizar.
Assim, temos que mais aproximada de uma de-
finição de responsabilidade civil é a idéia de obri-
gação de reparar um dano, diante das inúmeras es-
pécies de responsabilização civil, conforme o cam-
po em que se apresenta o problema: material, moral,
advindo das relações jurídicas, de direito público
ou privado.
3. RESPONSABILIDADE COMO ASPECTO
DE OBRIGAÇÃO
O ato ilícito praticado por alguém que enseje, por
sua conseqüência danosa, a reparação por meio de
indenização adquire, neste momento, relativamente aos
sujeitos envolvidos, um aspecto obrigacional.
No entanto, pode-se visualizar outro aspecto
obrigacional da responsabilidade civil, quando ela
advém de uma relação preexistente, esta obrigacional.
Dessa forma, a reparação de um possível dano aparece
como obrigação subseqüente e, além disso, garantidora
da relação jurídica anterior não adimplida.
Pois bem, sobre o primeiro aspecto – o da res-
ponsabilidade civil como determinante de obriga-
ção entre as partes –, vale ressaltar que, seja com
fulcro em qualquer dispositivo legal sobre a matéria
de reparação, havendo responsabilidade civil ma-
terializada, isto é, quando esta passa da possibili-
dade em uma relação para um dever entre as partes,
uma vez que a uma delas (ou a ambas, nada obsta)
verificou-se alguma manifestação de prejuízo, tais
sujeitos estarão, juridicamente, obrigados a reparar
o dano causado a outrem.
Disso decorre que, estando o sujeito praticante
de ato do qual se instaurou o prejuízo juridicamente
obrigado a reparar, aquele que sofreu o prejuízo
poderá lançar mão de todos os meios admitidos
em lei para ver satisfeita sua pretensão, que nada
mais é do que ter o seu direito reposto, em tese, na
mesma maneira como anteriormente ao dano
desencadeado.
O outro prisma da responsabilidade civil como
aspecto obrigacional é mais específico, porquanto
diz respeito a uma obrigação preexistente, seja ela
contratual ou legal. Assim, o instituto assume uma
característica obrigacional eminentemente de
garantir que a determinação – contratual ou legal
– seja respeitada em todos os seus aspectos pelo su-
jeito-alvo da determinação.
Vale dizer que o sujeito pode ser especificado,
individualizado, quando se tratar de disposição
contratual; e determinável quando se tratar de dis-
posição legal. Isto porque, à norma geral e abstrata
é vedado individualizar sujeitos, em respeito ao
princípio da igualdade. Assim, somente poderá in-
dividualizar classes de sujeitos, mas não estes em si.
Para esta função trabalha o Poder Judiciário, na
prolação de sentenças, que nada mais são do que
normas individuais concretas.
Da mesma forma, portanto, quando materia-
lizada tal necessidade de reparação civil, torna-se
obrigação, dever entre as partes, ainda que tenha
decorrido de uma outra obrigação anterior.
4. RESPONSABILIDADE COMO
OBRIGAÇÃO DE REPARAR O DANO
NAS RELAÇÕES ENTRE CÔNJUGES
Conseqüência de fato injurioso é a responsabi-
lidade que é a obrigação de reparar, suprimindo
todo efeito ilícito de que é causa direta a injúria,
seja intrínseca ou extrínseca.6
6 “Consecuencia del hecho injurioso es la responsabilidad (1), que es la obligación de reparar, suprimiéndolo, todo efectoilícito de que es causa directa la injuria, sea ‘intrínseca’ o ‘extrínseca’.” CHIRONI, G. P. La culpa en el derecho civilmoderno. Tradução de la segunda edición Italiana corregida y aumentada por C. Bernaldo de Quirós. 2. ed. Madrid:Editorial Réus, v. 2, p. 232.
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A reparação pecuniária por atos ilícitos civis
no Direito de Família nunca foi uma prática nos
tribunais brasileiros, como nos tempos atuais, mas
o instituto do concubinato, mesmo em épocas mais
distantes – relações extramatrimônio –, buscava
no Direito das Obrigações e na Constituição Fede-
ral proteção estatal a esses relacionamentos, mes-
mo sem amparo legal estabelecido.
Pode-se observar que há poucas décadas não
se vislumbrava a possibilidade da reparação do
dano causado, seja pelo prejuízo material ou pelo
dano imaterial ocorrido dentro da relação entre
cônjuges, porém hoje, diante de relações familiares
tão conturbadas e distorcidas, surge um despertar
por esses direitos no campo do Direito de Família,
oriundos do instituto da responsabilidade civil.
Nos relacionamentos familiares, porém, é neces-
sário e muito importante haver o devido amparo às
situações que culminem em lesões graves, pelas quais
já não é aceito o silêncio do ofendido, pelo medo.
Nas separações judiciais, então, todas causas
culposas podem ser enquadradas dentro da con-
ceituação da conduta desonrosa ou violação dos
deveres do casamento, podendo ser qualquer um
deles elencado no artigo 1.566 do Código Civil.
Para haver ressarcimento, o pressuposto é a
existência de um dano, podendo ser ele patrimonial,
desde que dele advenha algum prejuízo; e imaterial,
por atingir valores ligados à personalidade da pes-
soa ofendida e, às vezes, atingindo bens mais valio-
sos da vida humana, como a honra, o nome, a fama
e a reputação social, que a pessoa goza e desfruta
no seu meio social e familiar.
Clayton Reis, ao discorrer acerca do tema dano
moral em decorrência dos laços de parentesco e de
afinidade, assevera:
“... sempre que ocorrer ofensa aos direitos da
personalidade, que causem no ofendido aflições,
humilhações ou profunda dor íntima, haverá um
dano de natureza não patrimonial e o conseqüente
dever de indenizar (...) portanto, é inegável que o
abalo ou as lesões ocorridas no círculo familiar
acarretam o surgimento de dores íntimas, a
justificar a reparação por danos morais.”7
É de se concluir, portanto, que se houver pre-
juízo imposto a outrem por ação ou omissão de
alguém, em relação a interesse juridicamente tute-
lado, o dano causado é, indubitavelmente, indeni-
zável, cabendo ao Direito determinar em que ter-
mos, conforme haja ou não a necessidade de ave-
riguação do elemento culpa na conduta comissiva
ou omissiva do agente.
5. DISTINÇÃO ENTRE RESPONSABILIDADE
CONTRATUAL E EXTRACONTRATUAL
Têm sido objeto de discussão a culpa contratual
e a extracontratual. A contratual surge como efeito
de uma obrigação entre as partes; decorrente de um
vínculo preexistente, ao passo que, pela extracontra-
tual, não há relação preexistente entre as partes,
constituindo-se em fonte de uma obrigação nova.
Entretanto, em ambos os casos, o efeito será o
mesmo. A obrigação nascida da culpa tem por
objeto a reparação do dano causado, qualquer que
seja a sua origem, e o resultado sempre será o mesmo
– o dever de indenizar o lesionado.
No Diritto Civile Italiano, a culpa contratual
é o resultado de uma obrigação concreta, definida
e estabelecida mediante convenção firmada entre
as partes, ao passo que a extracontratual é a conse-
qüência do desvio da conduta que as pessoas devem
ter em relação aos demais – não causar prejuízo a
ninguém. Para Jorge Bustamante Alsina,8 “há
somente uma culpa e um duplo regime de respon-
sabilidade culposa.”
7 REIS, Clayton. Dano moral. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 59.8 ALSINA, Jorge Bustamante. Teoria general de la responsabilidad civil. 9. ed. amp. y actual. Buenos Aires: Abeledo-
Perrot, 1997, p. 87.
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Da mesma forma é para Pontes de Miranda,9
para quem a culpa, tanto na responsabilidade civil
contratual como na responsabilidade extracontratual,
é a mesma, não cabendo nenhuma diferenciação em
que pese os institutos serem diversos.
Para José de Aguiar Dias,10 é “o termo respon-
sabilidade adequado tão-somente para a que de-
corre dos atos ilícitos, recomendando a adoção da
expressão garantia em relação à responsabilidade
contratual”. Ainda aqui, muito embora o autor
aponte a impropriedade do termo utilizado para a
dita responsabilidade contratual, não se pode furtar
à idéia de que o efeito de ambas se confunde, ou
seja, em ambas surge o dever de indenizar o prejuízo
advindo de uma obrigação preexistente (responsa-
bilidade contratual), como aquele decorrente de
delito (responsabilidade extracontratual).
5.1 Diferenças entre os institutos
A partir das generalidades suprapostas, a res-
peito das definições e diferenças mais evidentes dos
institutos da responsabilidade contratual e da extra-
contratual, podem ser feitas, nesse momento, as
distinções pontuais sobre tais institutos, pormeno-
rizando aquelas diferenças que são oriundas das
características gerais supracitadas. Vejamos então:
a) Prova de culpa: a prova da culpa se presume nos
inadimplementos contratuais, cabendo ao devedor
demonstrar os motivos do não-cumprimento da
obrigação. Na aquiliana, depende da prova de culpa
a ser produzida pela vítima; b) Danos: a extensão
dos danos é maior no inadimplemento extracon-
tratual, porque se devem computar as conse-
qüências mediatas e imediatas do dano; c) A inter-
pelação se torna necessária na culpa contratual para
constituir em mora o devedor, ao passo que na
culpa delitual a mora produz seu resultado a partir
do dia em que ocorreu o evento lesivo; d) Prescrição
contratual: não há prazo determinado, ao passo
que a responsabilidade civil prescreve em 10 anos
(art. 205 do CCB);11 e e) Os fatores de responsabi-
lidade são diferentes para a culpa contratual e ex-
tracontratual. A primeira depende de fatores sub-
jetivos, e na segunda esses fatores subjetivos estão
ligados a outros fatores diversos de atribuição de
responsabilidade – como o risco, garantia, eqüida-
de, que quase sempre escapam ao princípio da
responsabilidade subjetiva.
6. A RESPONSABILIDADE CIVIL
SUBJETIVA E OBJETIVA
A responsabilidade civil objetiva independe do
conceito de culpa, ensejando a aplicação da Teoria
do Risco, em que a responsabilidade do agente
decorre do seu próprio ato que oferece perigo de
lesão ao patrimônio de outrem; à responsabilidade
civil subjetiva é indispensável a existência do ele-
mento culpa na conduta do agente da qual resultou
dano a alguém. A averiguação da culpa determina
ao agente o grau de sua responsabilidade, impon-
do-lhe, ao mesmo tempo, o dever de indenizar o
prejudicado conforme seja a extensão do dano,
associada à culpa na sua ação.
6.1 Responsabilidade civil objetiva
A teoria da culpa objetiva, consagrada no ar-
tigo 37, § 6º da Constituição Federal de 1988,12 bem
como em dispositivos específicos – artigo 14 do
9 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Do direito das obrigações, 1916, p. 324- 335.10 DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 146.11 Artigo 205 no novo Código Civil. “ A prescrição ocorre em 10 anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.12 “Art. 37. Art. 37. Art. 37. Art. 37. Art. 37. § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsávelnos casos de dolo ou culpa.”
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Código de Defesa do Consumidor13 – implica o
dever de indenizar o dano causado, independente-
mente de culpa do agente lesionador.
Segundo Sérgio Cavalieri Filho,14
“(...) na busca de um fundamento para a respon-
sabilidade objetiva, os juristas, principalmente na
França, conceberam a Teoria do Risco, justamente
no final do século XIX, quando o desenvolvimento
industrial agitava o problema da reparação dos
acidentes de trabalho. Risco é perigo, é probabi-
lidade de dano, importando, isso, dizer que aquele
que exerce uma atividade perigosa deve-lhe assumir
os riscos e reparar o dano dele decorrente.”
Assim, juntamente com o autor citado, po-
demos afirmar que
“a doutrina do risco pode ser, então, assim re-
sumida: todo prejuízo deve ser atribuído ao seu
autor e reparado por quem o causou, independen-
temente de ter ou não agido com culpa”.
6.2 Responsabilidade civil subjetiva
A teoria da culpa subjetiva foi consagrada peloDireito brasileiro, a partir do Código Civil de 1916e no atual Código Civil está no art. 186,15 no Códigode Defesa do Consumidor em seu artigo 14, § 4o.16
Resulta daí que a comprovação da culpa, em facedos atos praticados pelo agente, é determinante emnosso ordenamento jurídico, principalmente paraa averiguação do quantum indenizatório. Nessesentido, a ordem jurídica leva em consideração ofato humano voluntário, sobre o qual repousa todaa construção dos efeitos jurídicos.
Na lição de Sérgio Cavalieri Filho,17
“a idéia de culpa está visceralmente ligada à respon-
sabilidade, por isso que, de regra, ninguém pode
merecer censura ou juízo de reprovação sem que
tenha faltado com o dever de cautela em seu agir.
Daí ser a culpa, de acordo com a teoria clássica, o
principal pressuposto da responsabilidade civil
subjetiva”.
Também, na ótica de Caio Mário da Silva Pe-
reira,18
“o que sobreleva na caracterização do fato jurídico
humano, como fator etimológico da iliciedade, não
é qualquer fator de ordem espiritual ou moral,
como acentua Henoch D. Aguiar, porém, a relação
puramente mecânica de causa e efeito, ou a
materialidade da transgressão”.
Na realidade, a teoria da culpa está indissolu-
velmente ligada à idéia de comportamento do
agente – fato importante na determinação da con-
duta da pessoa e, por conseqüência, para definir o
seu grau de responsabilidade em face das suas ati-
tudes.
Portanto, somente será capaz de determinar a
responsabilidade uma conduta do agente que, con-
trariando a lei, produza lesão aos interesses legiti-
mamente tutelados de alguém.
O mesmo Caio Mário da Silva Pereira,19 ci-
tando De Page, esclarece que
“não há responsabilidade na ausência de culpa,
isto é, uma falta de destreza, de habilidade, de
diligência, de prudência, cujo resultado nefasto
podia ser previsto, ao menos implicitamente”.
13 “Artigo 14. Artigo 14. Artigo 14. Artigo 14. Artigo 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danoscausados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientesou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”
14 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 143.15 Art. 186 do CC. “ Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano
a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”16 “§ 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante verificação de culpa.”17 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 27.18 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 28.19 DE PAGE, Apud. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 30.
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7. PRESSUPOSTOS DA OBRIGAÇÃO
DE REPARAR O DANO
A ação ou omissão exteriorizada pela conduta
humana, quando causa dano a outrem, faz nascer o
dever de reparar. O artigo 186 Código Civil destaca
a necessidade da presença do fator culpa no ato
causador do dano; para que se configure a respon-
sabilidade civil pelo ressarcimento, tendo como
elemento básico a ação ou a omissão, voluntária e
antijurídica, tem de haver o nexo de causalidade
entre a conduta e o resultado – “o elo de ligação
entre os dois”.
No Direito de Família, a responsabilidade civil
é subjetiva, exigindo-se um juízo de censura de
agente capaz de entender o caráter de sua conduta
ilícita; é preciso demonstrar sua culpa, por isso que
a vítima só poderá pleitear ressarcimento se conse-
guir provar que esse alguém agiu com culpa, caso
contrário não terá direito ao ressarcimento.
Augusto César Belluscio, Eduardo A. Zannoni
e Aída Kemelmajer de Carlucci,
“apontam entre alguns danos materiais reparáveis,
derivados da separação, aqueles resultantes de
lesões físicas por agressão do esposo, contágio de
doenças venéreas, escândalos públicos”.20
A dissolução antecipada da comunidade pa-
trimonial existente entre os cônjuges, quando este
patrimônio está sendo administrado pelo consorte
inocente, que se vê forçado a realizar a partilha,
causando notórios danos materiais, como, por
exemplo, a ruptura de algum negócio ou contrato
comercial, também acarreta danos passíveis de
reparação, porquanto em todas essas possibilidades
o que se está ferindo é um interesse juridicamente
tutelado de alguém.
7.1 Ação ou omissão do agente
A prática de uma ação ou omissão contra o
Direito, com ou sem intenção manifestada de pre-
judicar, mas que cause prejuízo ou dano a outrem,
podendo constituir-se de ato único, ou de série de
atos, ou de conduta ilícita, pode acarretar dano
indenizável se o prejuízo atingir bem legitimamente
tutelado, entendendo-se por bem não somente
aqueles materiais, mas tudo que é passível de pro-
priedade, inclusive direitos.
Não há que se discutir aqui se o agente, ao pra-
ticar a ação ou omissão, tinha a intenção de causar
um dano. Pela responsabilidade civil jurídica, o
simples fato da ação ou omissão ter causado um
dano reparável acarreta o dever da reparação. Ou
seja, a responsabilidade jurídica pelo dano causado
por ação ou omissão pode basear-se tanto na culpa
como no risco, muito embora a conduta, comissiva
ou omissiva, produzida dolosamente também en-
seje a reparação do dano por ela causado.
O ponto que se deve ressaltar é o de que tanto
uma conduta comissiva como uma conduta omis-
siva são hábeis a instaurar o dever de restaurar o
status quo ante – dever de indenizar.
Em termos obrigacionais, portanto, pode-se
entender que as condutas comissivas são aquelas
em que há a prática efetiva do agente, ou seja, cons-
tituem-se nas modalidades de “dar” e “fazer”.
Diversamente, as condutas omissivas nem se exte-
riorizam por serem, simplesmente, uma não-ação,
ausência de prática que deveria existir, o que se
exterioriza são as conseqüências danosas da sua
verificação. Constitui-se, pelo prisma das obriga-
ções, em uma atitude de “não-fazer”.21
20 “ Entre los daños materiales reparables derivados de los hechos que dan lugar al divorcio, pueden citarse los derivadosde lesiones o de difamación, contagio de enfermedades – especialmente las venéreas – escándalos promovidospúblicamente”. BELLUSCIO, Augusto C.; ZANNONI, Eduardo A.; KEMELMAJER DE CARLUCCI, Aída. Responsa-bilidad civil en el derecho de família. Doctrina. Jurisprudência. Buenos Aires. Hammurabi, 1983, p. 31.
21 CANEZIN, Claudete Carvalho. Obrigações de fazer e de não fazer. Relevância e aplicação nas relações de consumo.Revista Jurídica Cesumar, Mestrado, v. 1, n. 1, 2001, p. 261-277.
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7.2 Dolo ou culpa do agente
O artigo 145 do Código Civil instituiu que:
“São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quan-
do este for sua causa”.22 Dolo é o meio malicioso
tendente a viciar a vontade do agente, a fim de des-
viar a sua vontade, ou querer.
Em Portugal, o Código Civil, em seu artigo 253,
define dolo:
“Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício
que alguém empregue com a intenção ou cons-
ciência de induzir ou manter em erro o autor da
declaração, bem como a dissimulação, pelo decla-
ratório ou terceiro, do erro do declarante.”
Silvio de Salvo Venosa acrescenta que o dolo
induz o declarante a erro, mas erro provocado pela
conduta do declarante. O erro participa do conceito
de dolo, mas é por ele absorvido.23
Clóvis Beviláqua assim definiu dolo:
“Dolo é artifício ou expediente astucioso, empre-
gado para induzir alguém à prática de um ato ju-
rídico, que o prejudica, aproveitando ao autor do
dolo ou a terceiro.”24
Ainda Silvio de Salvo Venosa25 assevera que a exis-
tência do dolo tem em vista o proveito ao declarante
ou a terceiro. Não integra a noção de dolo o prejuízo
que possa ter o declarante, muito embora geralmente
ele exista, daí por que a ação de anulação do ato jurídico,
via de regra, é acompanhada do pedido de indenização
de perdas e danos. A prática do dolo é ato ilícito, nos
termos do artigo 186 do Código Civil.
A responsabilidade extracontratual decorre
desse artigo, não preexistindo um contrato. É o caso
de maus-tratos entre os cônjuges, as sevícias ou
lesões corporais, e tantas outras condutas dentro
dos relacionamentos conjugais, seja no casamento
ou na união estável, na medida em que ambas são
entidades familiares, apenas constituídas de modo
diferente, e não se pode violar direitos ou causar
danos a outrem, seja por ação ou omissão, negli-
gência ou imprudência, devendo haver sempre res-
peito e limites nas atitudes.
8. INDENIZAÇÕES NAS DISSOLUÇÕES
CULPOSAS E NÃO-CULPOSAS
DA SOCIEDADE CONJUGAL
Chironi conceitua culpa da seguinte maneira:
“A culpa, em seu significado geral mais amplo, ou
melhor, a violação culposa de direito alheio, acarreta
a responsabilidade, que se converte em reparação dos
efeitos produzidos diretamente pela injúria cometida;
se não se causa dano, a reparação determina a obriga-
ção de repor o direito lesionado ao estado em que
estava antes da ofensa; se houve dano, a reparação
converte em ressarcimento. Sendo assim: como este
leva a restabelecer o patrimônio no estado em que
estava ou poderia estar sem o acontecimento do
fato injurioso; se a injúria não produziu nenhuma
modificação, falta à responsabilidade a causa para
adquirir existência concreta”.26
Por muito tempo considerou-se o casamento
como instituição dotada de indissolubilidade, para
22 Art. 145 do Código Civil: “São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa.”23 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. Parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 421.24 BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1980, p. 219 (Edição histórica).25 VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit., p. 424.26 “La ‘culpa’, en su significado general más amplio, o mejor, la violación culposa del derecho ajeno, engendra la
responsabilidad, que se convierte en reparación de los efectos producidos directamente por la injuria cometida; si no secausa daño, la reparación determina la obligación de reponer el derecho lesionado en el estado en que estaba antes dela ofensa; si le hubo, la reparaciones convierte en resarcimiento. Ahora bien: como éste se dirige a poner el patrimonioen el estado en que estaba a podía estar sin el acontecimiento del hecho injurioso; si la injuria no ha producidomodificación ninguna falta a la responsabilidad la causa de donde toma existencia concreta”. CHIRONI, G. P. La culpaen el derecho..., cit., v. 2, p. 232-233.
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que perdurasse por toda a vida dos cônjuges, “até que
a morte os separe”.
Nesta época não eram muitos os processos ju-
diciais de separação que batiam às portas do Judi-
ciário com base em fatos que justificassem obter o
chamado “desquite”, recaindo sobre o culpado a
obrigação de prestar alimentos ao cônjuge inocente.
As causas culposas da separação eram questio-
nadas tão-somente para se arbitrar a pensão alimen-
tícia, que antes da Lei n. 6.515/77 era sempre concedida
à mulher, por presunção de sua necessidade, com base
na Lei n. 5.478/68, em seu artigo 4º.27
A Lei do Divórcio promoveu uma igualdade
entre os cônjuges, trazendo uma realidade dentro e
fora do casamento, ou dos relacionamentos extra-
matrimoniais.
Em 1988, a Constituição Federal veio sacra-
mentar os princípios fundamentais da responsabi-
lidade conjugal pela separação, contudo buscando
cada vez mais identificar o cônjuge culpado pela
falência da sociedade matrimonial, isto quando
ambos não são responsáveis reciprocamente.
O legislador brasileiro cada vez mais busca a
eliminação da comprovação da culpa nos processos
judiciais de separação litigiosa, porque cria pos-
sibilidades legais de extinção do casamento pelo
mero decurso de prévio prazo exigido por lei, para
fática separação do casal.
Observação muito pertinente é a realizada por
Rolf Madaleno, quando afirma que:
“... os alimentos, sempre tiveram destinação espe-
cífica de subsistência do parceiro desprovido de
recursos próprios para sua manutenção, não se con-
fundindo jamais como paga indenizatória decorrente
do rompimento culposo do casamento, muito em-
bora, mas sem razão, alguns textos de doutrina
negassem a indenização dos danos derivados da
separação culposa, por considerá-los cobertos com a
pensão alimentícia em favor do inocente. Basta ver
que a indenização carrega, no seu objetivo, um fun-
damento de punição pecuniária daquele que violou
sagrados deveres éticos do casamento, ou do seu
estado de família, enquanto os alimentos, embora
também satisfaçam à vítima, têm como função
assegurar-lhe a sobrevivência física e cessam quando
desaparecem as necessidades do beneficiário, isto,
quando não surjam outras razões de exoneração,
como por exemplo, o remaridamento do alimentário,
ou sua independência financeira com a alocução de
um trabalho e da sua correlata remuneração.”28
Augusto C. Belluscio, Eduardo Zannoni e Aída
Kemelmajer de Carlucci, no mesmo sentido, mani-
festam-se da seguinte maneira:
“(...) explicam que a jurisprudência Argentina
assentou ao cabo de longa discussão, o critério de
que – independente da pensão alimentícia concedi-
da ao cônjuge inocente, que reparava os prejuízos
derivados do divórcio em si – o consorte inocente
podia obter indenização de danos e prejuízos, se
resultassem dos fatos que haviam motivado a dis-
solução do vínculo nupcial, um prejuízo material e
moral distinto daquele que originou a ruptura do
casamento e que a pensão teve por objetivo reparar.
Portanto, não há como confundir a pensão alimen-
tícia com o ressarcimento do ato ilícito conjugal.”29
Diante de tais esclarecimentos, não há como
confundir estas searas.
27 “Art. 4º Art. 4º Art. 4º Art. 4º Art. 4º Ao despachar o pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se ocredor expressamente declarar que deles não necessita.”
28 MADALENO, Rolf. Direito de família: aspectos polêmicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 141-142.29 “En el estadio final de la evolución de la jurisprudencia, la Corte de Casación sentó el criterio de que – independiente de
la pensión alimentaria concedida por el art. 301 del Cód. Civil al cónyuge inocente, que reparaba los perjuicios derivadosdel divorcio en síel cónyuge inocente podía obtener indemnización de daños y perjuicios por aplicación del art. 1382 yen las condiciones del derecho común, si resultaba de los hechos que habían motivado el divorcio un perjuicio materialy moral distinto del derivado de la ruptura del vínculo conyugal y que la concesión de alimentos tenía por objetoreparar”. BELLUSCIO, Augusto C.; ZANNONI, Eduardo A .; KEMELMAJER DE CARLUCCI, Aída . Op. cit., p. 5.
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9. A REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS
E MORAIS NA DISSOLUÇÃO DE
CASAMENTOS
No direito estrangeiro, é feita a distinção entre
os danos acarretados pelo descumprimento de
dever conjugal e os prejuízos oriundos da ruptura
do casamento.
É possível utilizar-se, para efeitos didáticos, de
tal distinção a fim de que se possa chegar a uma
aplicação mais racional e inteligente da responsa-
bilidade civil no Direito brasileiro, quando da dis-
solução da sociedade conjugal.
Assim, os primeiros derivam dos fatos consti-
tutivos das causas do rompimento matrimonial,
ou seja, da violação a dever conjugal, razão pela
qual são denominados “imediatos”.
Os danos imediatos podem ser de natureza mo-
ral e material.
Apresentam-se como danos morais imediatos
aqueles que atingem a esfera da personalidade do
cônjuge lesado, causando-lhe sofrimento, dentre os
quais estão os oriundos do descumprimento do
dever de fidelidade, por adultério ou pela prática
de ato que demonstre a intenção de satisfação do
instinto sexual fora do tálamo, do dever de coabi-
tação, pelo abandono voluntário e injustificado do
lar, pela recusa de satisfação do débito conjugal e
do dever de assistência imaterial, pela prática de
tentativa de morte, de sevícias e de injúrias graves.
Tais atuações ou atitudes do cônjuge podem
acarretar ao consorte, concomitantemente, danos
materiais ou patrimoniais, como no caso das seví-
cias ou lesões corporais, que, além dos danos mo-
rais, geram prejuízos econômicos, decorrentes do
tratamento médico e, de acordo com sua gravidade,
até mesmo de uma incapacitação para o exercício
de atividades.
Os danos decorrentes do rompimento do ma-
trimônio são chamados mediatos, por terem liga-
ção indireta com o descumprimento de dever con-
jugal, consoante analisamos anteriormente.
Tais danos têm caráter quase sempre patrimo-
nial ou econômico por embasarem-se nas dispari-
dades que a ruptura do matrimônio pode originar
entre os consortes, dando-se como exemplos os
prejuízos pela liquidação de sociedade imposta pela
partilha de bens, a privação de rendimentos sobre
bens que passam a caber com exclusividade ao outro
cônjuge e os gastos com mudança para outro imóvel.
Mas os danos mediatos podem ser também de
ordem moral, se referentes ao sofrimento ocasio-
nado pelo rompimento do casamento.
É exemplo de dano mediato a perda pela esposa
dos benefícios que tinha no casamento, sendo que a
boa situação de seu marido se devera aos estudos
que pôde realizar com a contribuição da consorte
durante a vida em comum.
E situação infelizmente comum, que bem demons-
tra e caracteriza os danos que podem decorrer da
dissolução do casamento, é a da mulher que, após um
casamento com duração por longos anos, no qual se
dedicou exclusivamente ao lar, tendo sido vedada sua
atividade profissional, depara com o desfazimento do
matrimônio pela culpa do marido, com conseqüências
danosas nos planos moral e material.
Assim, é indubitável que o descumprimento de
dever conjugal e a ruptura do casamento podem
gerar prejuízos materiais e morais, restando saber
se estes danos são indenizáveis no Direito brasileiro.
Serão indenizáveis aqueles danos que atingirem
bens ou direitos, do indivíduo, que estejam legiti-
mamente protegidos pelo Estado, e, conforme já
exposto, competindo ao Poder Judiciário, após a
determinação legal, ainda que genérica, pelo legis-
lador, dispor sobre a maneira como deverá ocorrer
a reparação, aferindo o grau de culpabilidade quan-
do necessário e, ainda, analisando criteriosamente
o potencial ofensivo e a capacidade de reparação
do agente.
Há que se observar, ainda, como assevera
Mário Moacyr Porto, abordando responsabilida-
de civil entre cônjuges, que se admite a acumulação
do processo ordinário de separação judicial com o
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pleito de indenização do dano resultante de injúria
proferida contra consorte, refletindo o ultraje, de-
sastrosamente, na reputação social ou profissional
do parceiro. Fazem fila nesta categoria de ilícitos
familiares as ofensas à honra matrimonial, a simples
negligência ou imprudência pela transmissão ao
outro cônjuge de enfermidade contagiosa, a recusa
injustificada ao reconhecimento da paternidade
biológica extramatrimonial, assim como a impu-
tação caluniosa de adultério, ou demanda arbitrá-
ria de interdição.30
9.1 Por nulidade
Ato nulo é o que não produz qualquer efeito
por ofender, gravemente, princípios de ordem pú-
blica e por estar inquinado por vícios essenciais que
infringem o artigo 104 do Código Civil.31
Dessa forma, será nulo: a) se for praticado por
pessoa absolutamente incapaz; b) se tiver objeto
ilícito ou impossível; c) se não revestir a forma pres-
crita em lei ou preterir alguma solenidade impres-
cindível para sua validade; d) quando, apesar de
ter elementos essenciais, for praticado com infra-
ção à lei e aos bons costumes; e) quando a lei taxati-
vamente o declarar nulo ou lhe negar efeito. O ato
negocial nulo é como se nunca tivesse existido desde
sua formação, pois a declaração de sua invalidade
produz efeitos ex tunc. No entanto, permanece para
os cônjuges o dever de arcar com os efeitos produ-
zidos em relação a terceiros.
Portanto, considerando-se o casamento do-
tado de característica contratual especial, diferen-
ciado, verificando-se ofensa a estes pilares do ne-
gócio jurídico, impõe-se ao cônjuge que lhe deu cau-
sa o dever de indenizar o cônjuge de boa-fé que rece-
beu o prejuízo.
É de se observar que a reparação do dano, em
casos de dissolução da sociedade conjugal pela nuli-
dade do ato, diz respeito a requisitos da forma que
determina a perfeição da constituição, validade e
existência do ato negocial. São, portanto, vícios in-
sanáveis, de ordem pública e que, sendo assim,
podem ser vistos a qualquer tempo, não pairando
sobre eles o instituto da preclusão.
9.2 Por anulabilidade
Anulabilidade do casamento constitui-se em
modo de dissolução da sociedade conjugal e do vín-
culo matrimonial pelo reconhecimento de sua inva-
lidade, feito por sentença judicial proferida em ação
anulatória ajuizada para esse fim, desde que se veri-
fiquem os casos em que o casamento encontra-se
eivado de vício sanável. Ou seja, trata-se de vício
sobre algum aspecto que não seja essencial à consti-
tuição existência ou validade do ato.
Dentre os muitos exemplos que são elencados
nesta categoria de dissolução do casamento, mere-
cem destaque o casamento realizado com pessoa
por qualquer motivo coacta; casamento de pessoa
incapaz de consentir ou de manifestar, de modo
inequívoco, o seu consentimento, como os loucos e
surdos-mudos que não puderem exprimir sua von-
tade (estes porque viciam a vontade de um dos côn-
juges); casamento de raptor com a raptada, não
estando esta fora do seu poder e em local seguro;
casamento de indivíduo sujeito ao pátrio familiar,
tutela ou curatela sem o consentimento do pai, tu-
tor ou curador; e matrimônio contraído por mu-
lheres e por homens menores de dezesseis anos, ex-
ceto se para evitar a imposição ou o cumprimento
de pena criminal ou em caso de gravidez; casamento
em que houve por parte de um dos nubentes, ao
consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro
30 PORTO, Mário Moacyr. Temas de responsabilidade civil: responsabilidade civil entre marido e mulher. São Paulo: RT,1989, p. 71.
31 “Art. 104. Art. 104. Art. 104. Art. 104. Art. 104. A validade do ato jurídico requer: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; formaprescrita ou não defesa em lei.”
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alusivo à sua identidade, à sua honra e boa fama; à
ignorância de crime inafiançável por ele praticado;
à ignorância de ser ele portador de moléstia grave e
transmissível por contágio ou herança, preexistente
ao matrimônio.
Por não ser o ato anulável eivado de vício insa-
nável, ou melhor, não se tratar de requisitos de
ordem pública, inexistindo o requerimento do
cônjuge prejudicado em ação anulatória, como se
observa do supra-exposto, o casamento continuará
válido e produzindo efeitos, normalmente.
Entretanto, se anulado o casamento após o de-
vido julgamento em processo judicial, é indenizável
o dano que tenha decorrido da inobservância ou
violação dos requisitos supramencionados. Aqui,
também a indenização poderá ocorrer por dano
material e/ou moral.
Nesse aspecto de dissolução da sociedade con-
jugal, é possível visualizar que os motivos enseja-
dores de indenização não ficam somente no âmbito
dos requisitos formais do casamento, mas, primor-
dialmente, quanto aos requisitos da pessoa e da
vontade por ela manifestada.
9.3 Pelo divórcio
O divórcio é o modo de dissolução do casa-
mento por sentença judicial, após dois anos de ha-
vida a separação de fato do casal, ou decorrido um
ano da separação judicial.
A ação de divórcio é privativa dos cônjuges e
vem regulamentada no ordenamento jurídico
brasileiro pela Lei n. 6.515/77, que delineou a possibi-
lidade de indenização por danos decorridos da disso-
lução da sociedade conjugal, mais tarde sacramen-
tada pelos princípios constitucionais da Carta de
1988.
Muito embora em diversos casos de separação
judicial seja difícil ou até mesmo impossível se ve-
rificar qual seja o cônjuge culpado, ou mesmo se
houve culpa para o fim da relação conjugal, o Di-
reito tem primado pela imputação da responsabi-
lidade civil e do dever de indenizar para, essencial-
mente, minorar os efeitos negativos que o casa-
mento possa ter causado a algum dos cônjuges, pela
ação ou omissão danosa de outro.
É de se notar, então, que nesse sentido, os mo-
tivos pelos quais se torna possível a reparação civil
de danos que decorram de comportamentos intra-
conjugais não são, novamente, de ordem formal,
mas pertinentes a comportamentos humanos,
sejam eles havidos na constância da sociedade con-
jugal ou no momento da sua dissolução.
De modo que, o prejuízo que determina a re-
paração civil de um cônjuge a outro pode advir de
motivos que deram causa ao rompimento matri-
monial – danos imediatos – e, ainda, por motivos
que derivam do rompimento do casamento, por si
só – danos mediatos.
Ambos, porém, são passíveis de indenização,
pelo cônjuge que lhe deu causa, ao consorte, de ma-
neira que possibilite a esse último a minoração dos
efeitos negativos que se tenham instaurado, como
já discorrido mais amplamente.
Tais prejuízos tomam a forma não somente de
dano patrimonial, mas também – e pode-se dizer,
no mais das vezes – de dano moral. Assim, como
em qualquer outra ação do gênero, é cabível a cu-
mulação do ressarcimento aos danos patrimoniais
e morais, oportunizando-se, a partir de então, a
preservação da dignidade da pessoa humana no
processo judicial de dissolução do casamento.
10. CONCLUSÕES
Conclui-se que no presente estudo, desde a
noção de responsabilidade, amplamente entendida,
até o seu afunilamento ao sentido jurídico de dever
de tornar o status quo ante, balizada, primordial-
mente, por princípios contidos no sistema harmô-
nico do Direito, sacramentado normativamente
pela Constituição de 1988, procurou-se entender o
instituto da responsabilidade civil com enfoque nas
relações conjugais.
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A partir desse prisma é pertinente destacar que
o desenvolvimento da idéia de indenizar as lesões
cometidas durante a constância do casamento, ou
quando da sua dissolução, tem sido o meio en-
contrado pelo legislador para introduzir no orde-
namento jurídico – e conseqüentemente, na tutela
do Estado Democrático de Direito – normas que
permitam a preservação da dignidade do cônjuge
prejudicado.
Desse modo, é contundente que a presença da
responsabilidade civil nas ações judiciais de
dissolução da sociedade conjugal contribui sobre-
maneira para decisões mais justas em relação aos
consortes, e ainda, com o escopo de ampará-los, na
medida em que não se pode negar os efeitos sociais
e psicoemocionais da dissolução sobre os cônjuges
e filhos.
Portanto, utilizadas adequadamente, com cri-
térios que permitam ao julgador imputar o dever
de indenizar da maneira mais coerente com a si-
tuação dos consortes e com a situação factual que
deu causa ao fim da sociedade conjugal e que, nos
moldes constitucionais atuais, ensejará a formação
de famílias distintas, muitas vezes monoparentais,
o benefício de tais decisões será incomensurável.
Por fim, constata-se que por óbvio há que exis-
tir meios efetivos para se proteger os cônjuges, ou
similares, vítimas de danos advindos das relações
conjugais, porém, não se deve esquecer que o cui-
dado ao se decidir sobre tais questões deve vir acom-
panhado de um trabalho criterioso do juiz, uma
vez que a possibilidade da responsabilidade em tela,
se discricionariamente apoiada pelos magistrados
no exercício de suas funções, pode acarretar uma
disseminação da instituição “família”, pelo estímulo
a sentimentos referentes a danos ocasionados, sur-
gindo um interesse às vezes inoportuno em respon-
sabilizar o cônjuge autor causador de danos tanto
materiais como imateriais, em vez de estimular o
diálogo, o bom senso, e um possível restabeleci-
mento da relação conjugal. Ou seja, há que se ana-
lisar as circunstâncias de forma criteriosa, para que
não se dê início ao fim de uma instituição sem a
qual o próprio Estado, que a protege constitucio-
nalmente, se desestruturaria.
Não se trata de condenação porque o amor
acabou, ninguém tem culpa por deixar de amar o
seu cônjuge. Mas deve haver reparação dos danos
causados pelo cônjuge que pratica sevícias, injúrias,
calúnia... contra o outro cônjuge. Quando há vio-
lência quanto à integridade física, psíquica e moral
do outro cônjuge, aí, sim, deve-se averiguar a culpa
e o cônjuge culpado tem de ser condenado por sua
conduta ilícita, antijurídica, pois violou direitos hu-
manos contra o seu cônjuge.
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