Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia

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Revista Brasileira de Ginecologia e ObstetrciaPrint version ISSN 0100-7203

Rev. Bras. Ginecol. Obstet. vol.28 no.5 Rio de Janeiro May 2006doi: 10.1590/S0100-72032006000500008

REVISO

Intervenes benficas no pr-natal para preveno da mortalidade materna

Beneficial interventions for maternal mortality prevention in the prenatal period

Iracema de Mattos Paranhos CalderonI; Jos Guilherme CecattiII; Carlos Eduardo Pereira VegaIIII

Professora Livre-docente de Obstetrcia - Adjunta do Departamento de Ginecologia e Obstetrcia da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista "Julio Mesquita Filho" UNESP Botucatu (SP), Brasil II Professor Livre-docente de Obstetrcia - Associado do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Campinas (SP), Brasil III Presidente do Comit de Mortalidade Materna da cidade de So Paulo (SP), Brasil Correspondncia

RESUMO A razo de mortalidade materna (MM) indicador da qualidade de sade, influenciada diretamente pelo grau de desenvolvimento econmico-cultural-tecnolgico de um pas. Os dados oficiais de MM no Brasil, ainda que subestimados, sinalizam a falta de qualidade dos servios de assistncia gestao, parto e puerprio. Esta caracterstica comum entre os pases em desenvolvimento, onde esto as gestantes mais

necessitadas e com maior dificuldade de acesso a assistncia de qualidade. A assistncia pr-natal no pode prevenir as principais complicaes do parto, causas importantes de MM, mas algumas intervenes no pr-natal podero favorecer o prognstico materno e prevenir a MM. Neste contexto, o artigo faz uma atualizao, embasada em evidncias cientficas, sobre intervenes efetivas no pr-natal para preveno da mortalidade materna. As estratgias mais importantes constituem um trip, com intervenes especficas relacionadas a promoo da sade materna, preveno dos riscos e garantia de suporte nutricional durante a gestao, alm de critrios para investigao do risco gestacional e incluso da gestante no componente bsico do modelo de assistncia pr-natal. Finaliza com a definio de prioridades na preveno de MM relacionada eclmpsia/pr-eclmpsia e refora a importncia da normatizao dos sistemas de referncia para os casos de emergncia obsttrica. Palavras-chave: Mortalidade materna/preveno e controle; Assistncia pr-natal; Sade da mulher

ABSTRACT Maternal mortality rate (MM) is a health quality indicator that is directly influenced by the economic, cultural and technological level of a country. Official data of MM in Brazil, although underestimated, point to the lack of quality in pregnancy, childbirth and puerperium care services. This characteristic is common in developing countries, where poorer pregnant women as well as those facing greater difficulty to quality care access are found. Prenatal care cannot prevent major childbirth complications, which are important causes of MM; however, some interventions during the prenatal period can favor maternal prognosis and prevent MM. In this setting, this study brings a scientifically based update concerning effective interventions for maternal mortality prevention during the prenatal period. The most important strategies consist of a tripod with specific interventions related to maternal health promotion, risk prevention and assurance of nutritional support during gestation, in addition to criteria to investigate gestational risk and inclusion of the pregnant woman in the basic component of the prenatal care model. It ends with the definition of priorities in the prevention of MM related to eclampsia/preeclampsia and reinforces the importance of normalization of reference systems for obstetric emergency cases. Keywords: Maternal mortality/prevention & control; Prenatal care; Women's health

IntroduoA razo de mortalidade materna (RMM) indicador da qualidade de sade, influenciada diretamente pelo grau de desenvolvimento econmico-cultural-tecnolgico de um pas ou sociedade1. A Figura 1 apresenta as estimativas de RMM da Organizao Mundial de Sade (OMS) para o ano 2000, identificando risco elevado de morte materna (MM) nos pases pobres, com dificuldades sociais importantes, em oposio aos pases desenvolvidos, onde este ndice no ultrapassa 50,0 mortes maternas/100.000 nascidos vivos (NV)2.

Cabe ressaltar que a RMM foi superestimada para o Brasil e no atinge os valores de 190/100.000 NV. Na ltima publicao do Ministrio da Sade do Brasil3, a RMM oficial do pas de 55,8/1000.000 NV, distribuda em 53,4 para a regio Sudeste, 61,9 para a regio Sul e 58,3 para regio Centro-Oeste. O sistema de coleta de dados sobre morte materna do Brasil classificado no grupo E, ou seja, m qualidade dos dados e pela falta de pesquisa minuciosa e abrangente em todo o territrio nacional1. Com raras excees, os ndices so calculados a partir das MM declaradas, obtidas das declaraes de bito, no contemplando os casos mascarados ou no declarados. Assim, o Brasil ainda padece de dois srios problemas: pas em desenvolvimento, com o nus de todas as dificuldades inerentes

a esta condio, e no tem sistema de registro adequado para os casos de MM. Independentemente da dificuldade na avaliao da RMM, os dados oficiais sinalizam uma situao real - a falta de qualidade dos servios de assistncia gestao, parto e puerprio. Isto no exclusivo do Brasil, mas atinge todos os pases em desenvolvimento, onde esto as gestantes mais necessitadas e com maior dificuldade de acesso a assistncia de qualidade. As cinco principais causas de MM direta nestes pases so as hemorragias (25%), seguidas pelas infeces (15%), as complicaes do aborto (13%), a eclmpsia (12%) e as distcias/obstrues no trabalho de parto (8%)4. Tal constatao tem motivado as principais organizaes de sade, apoiadas por instituies de pesquisa, a elaborarem guias assistenciais especficos, orientados pelos novos conceitos da medicina baseada em evidncia, com comprovada efetividade na preveno da morbimortalidade materna.

As evidncias cientficas no pr-natalA assistncia pr-natal no pode prevenir as principais complicaes do parto na grande maioria das mulheres destinadas a esta experincia - hemorragias, septicemias, obstrues do trabalho de parto. Mas certas intervenes durante a gravidez podero, certamente, alterar e favorecer o prognstico materno5. What Works: A Policy and Program Guide to the Evidence on Family Planning, Safe Motherhood, and STI/HIV/AIDS Interventions - Module 1 - Safe Motherhood6 e The Safe Motherhood Strategies Project7 so publicaes recentes, embasadas em evidncias cientficas, que destacam prticas benficas na assistncia pr-natal para prevenir a morte materna. As estratgias mais importantes constituem um trip com intervenes especficas relacionadas promoo da sade materna, preveno dos riscos e garantia de suporte nutricional durante a gestao. Promover a sade materna contempla a recomendao do nmero ideal e da qualidade das consultas de pr-natal, o estabelecimento de programa de imunizao materna e a preveno, diagnstico e tratamento das doenas intercorrentes da gestao. O manual tcnico preparado pelo Grupo de Investigaes de Estudo de Controle Pr-natal da OMS8 considera ideal a realizao de quatro consultas no pr-natal e uma no perodo ps-parto. Na primeira visita, recomendada at a 16 semana de gestao, dever ser avaliado o risco obsttrico por aplicao de formulrio especfico (Quadro 1). A deteco de qualquer risco implicaria ateno especializada, com exame/avaliao e seguimentos adicionais e, se necessrio, a referncia da ateno bsica para um servio de nvel mais complexo. Importante destacar que o risco e a necessidade de referncia para centros mais especializados devero ser constantemente avaliados. Na ausncia de risco, o

acompanhamento pr-natal dever seguir as recomendaes para a ateno bsica na assistncia pr-natal (Quadro 2).

Para assegurar a qualidade da assistncia pr-natal, a OMS recomenda: investigar o risco obsttrico; realizar exame clnico e obsttrico, com especial ateno presena de anemia e avaliao da idade gestacional, altura uterina e batimentos crdio-fetais; aferir os nveis pressricos; reforar e estimular a suplementao de ferro e cido flico; instruir a gestante sobre os sinais e os locais de atendimento de emergncia e preencher a ficha de pr-natal de maneira adequada em todas as consultas de pr-natal. Alm destes procedimentos, acrescenta na primeira consulta o exame ginecolgico completo, o clculo da relao peso/altura, a solicitao de exames laboratoriais bsicos, como dosagem de hemoglobina (Hb), sorolgico para sfilis/DST, urinlise e tipagem sangnea (ABO e Rh) e a primeira dose da vacina antitetnica8. O protocolo inclui tambm a avaliao de peso materno nas gestantes de baixo peso e de proteinria nas nulparas ou portadoras de pr-eclmpsia prvia em todas as visitas subseqentes primeira consulta de pr-natal. A dosagem de Hb e a vacina antitetnica devero ser repetidas na terceira

consulta; orientaes e planejamento do parto e recomendaes sobre lactao e anticoncepo devero ser iniciadas na terceira e reforadas na ltima visita. Normatiza o diagnstico de apresentao plvica e encaminhamento para verso ceflica externa no termo da gestao (ltima consulta) e refora o preenchimento e a instruo gestante para que apresente a ficha de pr-natal completa no momento do parto8. Por fim, destaca alguns pontos importantes: a) esta ficha no dever substituir a histria clnica, mas servir de controle para que estas metas bsicas sejam cumpridas; b) a equipe tcnica e os gestores de sade no devero medir esforos para a implementao de todas as atividades recomendadas; c) alguns documentos especficos j esto em andamento e devero facilitar a implementao do novo modelo de assistncia prnatal9. As evidncias confirmam que a assistncia pr-natal bsica pode ser desenvolvida no s por mdico-obstetra, mas por outros profissionais, como enfermeiros e enfermeiros-obstetras6. Um ensaio multicntrico, envolvendo Argentina, Cuba, Arbia Saudita e Tailndia, confirmou resultados semelhantes na assistncia pr-natal praticada por mdicos obstetras e por pessoal treinado (enfermeiras-obstetras, enfermeiras e outros)10. No contexto da promoo da sade materna, so includos programas de imunizao materna contra as principais doenas, individualizadas por regies ou pases, e de preveno, diagnstico e tratamento das doenas intercorrentes mais comuns da gestao6. Prevenir, diagnosticar e tratar a anemia materna, a hipertenso gestacional, a pr-eclmpsia grave e eclmpsia e os vrios tipos de infeces intercorrentes na gestao e parto, incluindo as doenas sexualmente transmissveis, as do trato urinrio e o ttano do recm-nascido, so intervenes efetivas de comprovada evidncia cientfica7. A suplementao de ferro (Fe++) e cido flico e a dosagem srica de hematcrito e Hb tm comprovada evidncia na preveno da anemia materna (Figuras 2 e 3).

De acordo com a reviso sistemtica da Biblioteca Cochrane, a suplementao de ferro previne nveis baixos de Hb no parto e at seis semanas ps-parto, mas ainda faltam informaes sobre o prognstico materno-fetal e dados especficos de

populaes com reconhecida deficincia de ferro; a suplementao de acido flico favorece aumento dos nveis de Hb e folato no parto e at seis semanas aps, mas no h evidncias para avaliar qualquer outro efeito no prognstico materno e fetal11. A anemia associada malria prejudica a evoluo da gravidez e a malria per se pode favorecer ou agravar a anemia preexistente12. Para as regies endmicas, a profilaxia, o diagnstico e o tratamento da malria so medidas benficas e devem ser implementadas. Esquemas com sulfadoxinapirimetamina so efetivos para a profilaxia durante a gestao, incluindo as gestantes HIV+, mesmo as de admisso tardia no pr-natal13. Para o tratamento da malria, a artemisina superior quinina na preveno da morte materna nos quadros graves ou complicados, especialmente na resistncia a mltiplas drogas, mas favorece a recorrncia dos episdios de malria. A associao de artemisina com outros agentes, como a mefloquina ou a lumofantrina, efetiva para o tratamento e previne a recorrncia, apesar do inconveniente do custo elevado6. As evidncias comprovam que a imunizao da gestante contra o ttano a mais simples e benfica medida para reduzir a mortalidade neonatal e a ocorrncia de ttano materno, responsvel por pelo menos 5% das MM nos pases em desenvolvimento. Outras recomendaes de comprovada efetividade incluem a preveno, o diagnstico e o tratamento de infeces parasitrias intestinais e de tuberculose. O tratamento da parasitose intestinal melhora a sade materna, previne a anemia e aumenta o peso dos recm-nascidos; o controle da tuberculose reduz o nmero de MM, principalmente naquelas portadoras de HIV6. Quanto pr-eclmpsia, no est claramente definido o tratamento ou o tipo de interveno efetiva para prevenir sua evoluo para eclmpsia. Para alguns, o melhor seria a induo do parto, mas isto pode no ser possvel em gestaes precoces. Nestes casos, o repouso e o monitoramento constante seriam opes aceitveis6,14,15. Na publicao do The Safe Motherhood Strategies Project, a referncia para um servio de ateno terciria nos quadros de pr-eclmpsia grave e a administrao de sulfato de magnsio para a eclmpsia foram as nicas medidas com evidncia cientfica demonstrada na reduo da MM. Os autores destacaram, ainda, a falta de evidncias sobre a ao de agentes antiplaquetrios na preveno da pr-eclmpsia e sobre o uso de anti-hipertensivos no tratamento da pr-eclmpsia leve. Tambm no h evidncias favorveis suplementao de zinco, magnsio, vitamina A e clcio na pr-eclmpsia7. Mais recentemente, a reviso sistemtica da Biblioteca Cochrane demonstrou que a suplementao de clcio previne a hipertenso arterial e a pr-eclmpsia, com melhores resultados nas populaes de risco ou com deficincia nutricional deste

mineral. Entretanto, ainda no h evidncia a respeito da dose mais adequada e de outros desfechos maternos e fetais16. Esta mesma fonte confirmou que o sulfato de magnsio, comparado ao placebo, ausncia de tratamento ou fenitona, melhor na preveno da eclmpsia e, provavelmente, na reduo do risco de morte materna. Entretanto, os revisores advertem para a ocorrncia de 25% de efeitos colaterais, principalmente tremores musculares, e para a necessidade de mais investigaes sobre o prognstico neonatal17. O Program for Appropriate Technology in Health define como prioridade para a preveno de morte materna relacionada eclmpsia/pr-eclmpsia: padronizao de guias e treinamento da equipe tcnica para a implementao universal do sulfato de magnsio; realizao de ensaios clnicos controlados para avaliar os efeitos da suplementao de vitaminas A e E e de clcio nas populaes deficientes, alm da avaliao do custobenefcio de fitas reagentes para investigao de proteinria. Entre outras, prioriza o desenvolvimento de protocolos efetivos incluindo o uso de drogas para o preparo do colo (misoprostol), o treinamento da equipe profissional e a integrao dos cuidados ps-aborto no protocolo bsico de assistncia. Por fim, destaca a importncia de normatizao dos sistemas de referncia para os casos de emergncia obsttrica18.

ConclusesA nossa realidade est muito aqum das atuais propostas tecnolgicas para a preveno da MM. No Brasil, este srio problema de sade pblica est atrelado s subnotificaes, s condies de alto risco para MM, a maioria delas de causas diretas e evitveis, e falta de implementao de estratgias efetivas. Fatores culturais, mdico-profissionais e poltico-sociais so predominantes e facilmente reconhecidos, mostrando as iniqidades existentes1922. A estruturao do planejamento familiar, incluindo preveno da gravidez de alto risco e daquelas no desejadas, enfrentamento crtico do problema do aborto e reduo global das taxas de cesrea ainda so prioridades na assistncia sade da mulher brasileira23. A operacionalizao efetiva destas prioridades dever melhorar o panorama da MM em nosso pas.

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