Revista Brasileira de História da Educação -...

218
Revista Brasileira de História da Educação www.abdr.org.br [email protected] denuncie a cópia ilegal

Transcript of Revista Brasileira de História da Educação -...

Page 1: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Revista Brasileira de História da Educação

[email protected]

denuncie a cópia ilegal

RBHE 21.indd 1 4/10/2009 20:57:36

Page 2: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Revista

Conselho DiretorDermeval Saviani (Unicamp); Marta Maria Chagas de Carvalho (USP); Ana Waleska Pollo Campos Mendonça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).

Comissão EditorialDislane Zerbinatti Moraes (USP)Bruno Bontempi Jr. (USP)Carlos Eduardo Vieira (UFPR)Lúcia Maria da Franca Rocha (UFBA)Secretaria – Patrícia Aparecida do Amparo

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (Ufac); Ana Chrystina Venancio Mignot (Uerj); Clarice Nunes (UFF e Unesa); Décio Gatti Jr. (UFU); Denice B. Catani (USP); Ester Buffa (Ufscar); Gilberto Luiz Alves (Uems); Jane Soares de Almeida (Unesp); José Silvério Baia Horta (UFRJ); Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG); Lúcio Kreutz (Unisinos); Maria Arisnete Câmara de Moraes (UFRN); Maria de Lourdes de A. Fávero (UFRJ); Maria do Amparo Borges Ferro (UFPI); Maria Helena Camara Bastos (PUC-RS); Maria Stephanou (UFRGS); Marta Maria de Araújo (UFRN); Paolo Nosella (Ufscar).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Portugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); Dario Ragazzini (Itália); David Hamilton (Suécia); Nicolás Cruz (Chile); Roberto Rodriguez (México); Rogério Fernandes (Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina); Thérèse Hamel (Canadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação quadrimestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

COMERCIALIZAÇÃO

Editora Autores AssociadosAv. Albino J. B. de Oliveira, 901CEP 13084-008 – Barão Geraldo

Campinas (SP)Pabx/Fax: (19) 3249-2800

e-mail: [email protected]

Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é uma sociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica de direito privado. Tem como objetivos congregar profissionais brasileiros que realizam atividades de pesquisa e/ou docência em História da Educação e estimular estudos interdisciplinares, promovendo intercâmbios com entidades congêneres nacionais e internacionais e especialistas de áreas afins. É filiada à ISCHE (International Standing Conference for the History of Education), a Associação Internacional de História da Educação.

Diretoria NacionalPresidente: Cláudia Alves (UFF)Vice-presidente: Wenceslau Gonçalves Neto (UFU)Secretária: Rosa Lydia Teixeira Corrêa (PUC-PR)Tesoureiro: Elomar Antonio Callegaro Tambara (Ufpel)

Diretores RegionaisNorte:Titular: Andréa Lopes Dantas (Ufac)Suplente: Clarice Nascimento de Melo (UFPA)Nordeste:Titular: Diomar das Graças Motta (UFMA)Suplente: Antonio Carlos Pinheiro Ferreira (UFPB)Centro-Oeste:Titular: Margarita Victória Rodriguez (UCDB)Suplente: Maurides Batista de Macedo Filha (UCG/UFG)Sudeste: Titular: Esther Buffa (Ufscar)Suplente: Regina Helena da Silva Simões (Ufes)Sul: Titular: Flávia Werle (Unisinos)Suplente: Norberto Dallabrida (Udesc)

SecretariaRev. Bras. de História da EducaçãoFaculdade de Educação da USPAvenida da Universidade, 308Bloco A – sala 12805508-900 – São Paulo - SPTel.: (11) 3091-3099 – ramal 262E-mail: [email protected]

Indexada em/Indexed in:

• BBE–BibliografiaBrasileiradaEducação/Centro de Informação e Biblioteca em Educação (Brasil-cibec/inep)http://www.inep.gov.br/pesquisa/thesaurus

• Edubase–BasedeDadosdaUnicamp(Brasil, FE/Unicamp)http://www.bibli.fae.unicamp.br/edubase.htm

• DivisãodePeriódicosdaUnB(Brasil) http://www.bce.unb.br

•BasededadosdaFundaçãoCarlosChagas http://www.fcc.org.br/biblioteca/dbfcc.html

• IRESIE–BancodeDatossobreEducaciónIberoamericana

http://132.248.192.241/ñiisue/www/index.html• Latindex–SistemaRegionaldeInformación

en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal

http://www.latindex.unam.mx• Clase–Basededatosbibliográficade

revistas de ciências sociales y humanas http://dgb.unam.mx/clase.html

Versão on-line/version online:http://www.sbhe.org.br/

RBHE 21.indd 2 4/10/2009 20:57:37

Page 3: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Revista Brasileira deHISTóRIA EDUCAÇÃO

SBHESociedade Brasileira de História da Educação

da

setembro/dezembro 2009 no 21

ISSN 1519-5902

A publicação deste no 17 da Revista Brasileira de História da Educação contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (capes)

RBHE 21.indd 3 4/10/2009 20:57:39

Page 4: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

EditoRa autoREs associados Ltda.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

av. albino J. B. de oliveira, 901 | Barão Geraldo | cEP 13084-008campinas-sP | telefone: (55) (19) 3249-2800 | Fax: (55) (19) 3249-2801e-mail: [email protected] | catálogo on-line: www.autoresassociados.com.br

conselho Editorial “Prof. casemiro dos Reis Filho”Bernardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CuryDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

coordenadora EditorialÉrica Bombardi

RevisãoEdson Estavarengo Júnior

diagramação e composiçãoDPG Editora

Projeto Gráfico, Arte FinalÉrica Bombardi

impressão e acabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação, SBHE, Ed. Autores Associados, SP-Campinas, 2001

QuadrimestralPublicação da Sociedade Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

Revista Brasileira de História da Educação, n. 21, 218 p., set.-dez. 2009.

A RBHE tem o objetivo de divulgar a produçao científica nacional e internacional sobre História e Historiografia da Educação, que se revele de interesse para as grandes áreas de pesquisa em Educação e em História, abrindo novos horizontes de discussão e estimulando debates interdisciplinares.

RBHE 21.indd 4 4/10/2009 20:57:40

Page 5: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Sumário

coNtENts 7

EditoRiaL 9

aRtiGos

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação: mobilizando John dewey no período entre guerras 13Noah W. Sobe

intelectuais e professores: identidades sociais em formação no século XiX brasileiro 39Arlette Medeiros Gasparello e Heloisa de Oliveira Santos Villela

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927) 61Cynthia Greive Veiga

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná: 1912-1922 93Névio de Campos

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920) 123Dorval do Nascimento

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960 145Letícia Carneiro Aguiar

RBHE 21.indd 5 4/10/2009 20:57:40

Page 6: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do sul (1940-1960) 177Claudemir de Quadros

REsENHa

adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico 207Jeová Santana

RELaÇÃo dos PaREcERistas AD HOC (2009) 215

oRiENtaÇÃo aos coLaBoRadoREs 217

RBHE 21.indd 6 4/10/2009 20:57:40

Page 7: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

EditoRiaL 9

aRticLEs

Entanglements and intercultural exchange in the history of education: mobilizing John dewey in the interwar era 14Noah W. Sobe

intellectuals and teachers: social identities being developed in Brazil in the 19th century 40Arlette Medeiros Gasparello and Heloisa de Oliveira Santos Villela

Preparation of civilized habits in the constitution of relations between teachers and students (1827-1927) 62Cynthia Greive Veiga

agreements and disagreements during the process of creation of higher education in Paraná: 1912-1922 94Névio de Campos

Nationalization of teaching in santa catarina during the First Republic (1911-1920) 124Dorval do Nascimento

the education catarinense policy in developmental modernizer project at 1960’s 146Letícia Carneiro Aguiar

Contents

RBHE 21.indd 7 4/10/2009 20:57:40

Page 8: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

the production of different meanings of being a teacher in Rio Grande do sul (1940-1960) 178Claudemir de Quadros

BooK REViEW

adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico 207Jeová Santana

List oF AD HOC REViWERs (2009) 215

GuidEs FoR autHoRs 217

RBHE 21.indd 8 4/10/2009 20:57:40

Page 9: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Editorial

9Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 9-12, set./dez. 2009

Editorial

a Revista Brasileira de História da Educação (RBHE), dando continuidade ao seu projeto editorial, que consiste em ser um espaço de discussão e divulgação da pesquisa acadêmica da área de história da educação, publica o seu número 21.

Nesta edição apresentamos sete artigos e uma resenha, tratando de temas e abordagens historiográficas que, esperamos, sejam pertinentes ao campo de pesquisa em educação e que possam ensejar novos caminhos de investigação.

Noah W. sobe, no artigo “Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação: mobilizando John dewey no período entre guerras”, discute as limitações que envolvem o uso da categoria analítica da “transferência” para entender as trocas culturais em história da educação. defende, em contrapartida, a abordagem de uma “história entrelaçada”, que possa dar conta das características de circulação, apropriação e particularização das ideias pedagógicas e práticas escolares em todo o mundo. aplica essa abordagem no exame da propagação do nome de John dewey e de suas ideias na região dos Bálcãs.

arlette Medeiros Gasparello e Heloisa de oliveira santos Villela, com o artigo “intelectuais e professores: identidades sociais em forma-ção no século XiX brasileiro”, tratam da formação da identidade social de professores secundários, nível de ensino ainda pouco pesquisado, tomando como base dados sobre a carreira docente e interações sociais

RBHE 21.indd 9 4/10/2009 20:57:41

Page 10: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Editorial

10 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 9-12, set./dez. 2009

de professores do colégio Pedro ii e Escola Normal de Niterói, na segunda metade do século XIX. A pesquisa identificou o processo de constituição de um grupo de intelectuais que passam a se reconhecer como professores, sem se afastarem do grupo dos letrados e agregando, em suas faces sociais, as práticas do ofício de ensinar.

cynthia Greive Veiga, em “Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)”, investigou as mudanças nas concepções e práticas de disciplina e comportamento de alunos e professores na escola pública primária no Brasil, especificamente na província e estado de Minas Gerais, no século XiX e primeira metade do século XX. segundo a pesquisadora, houve historicamente um esforço para a superação de ações de violência na escola, efetuando-se, nessa medida, um processo civilizatório conforme é entendido por Norbert Elias, autor que é utilizado como referencial teórico da pesquisa.

Névio de campos estuda, por meio do texto “Encontros e desen-contros no processo de constituição do ensino superior no Paraná: 1912-1922”, a organização do ensino superior nesse estado, privilegiando a análise da concepção de ensino superior, do contexto de interações sociais dos grupos de intelectuais envolvidos com o projeto universitário, além das suas relações com o estado do Paraná e com os órgãos do Estado federal. debruça-se na história da criação da universidade do Paraná em l9l2 e seu desmembramento em Faculdades de Engenharia, de Medicina e de direito, em 1915, bem como de suas equiparações às congêneres oficiais nos anos de 1920 e 1922.

dorval do Nascimento examina, no artigo “Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)”, o processo de homo-geneização cultural ocorrido sob a influência das medidas adotadas pelo governo do estado, no âmbito do ensino, as quais visavam nacionalizar as populações de origem étnica estrangeira entre l911 (Reforma orestes Guimarães) e a Primeira Guerra Mundial.

Letícia carneiro aguiar compreende, em “a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960”, a especificidade da história da educação em Santa Catarina. Para

RBHE 21.indd 10 4/10/2009 20:57:41

Page 11: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Editorial

11Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 9-12, set./dez. 2009

tanto traça relações com o ideário desenvolvimentista e modernizador do Estado nacional, demonstrando como as questões educacionais passam a ser pensadas em perspectiva global e economicista.

Finalizando essas breves referências aos artigos, nos detemos no texto de claudemir de Quadros, que investiga, em “Produção de dife-rentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)”, a elaboração de discursos instituídos como “verdades” sobre o que seria “ser professor” nesse período histórico. No âmbito de uma intensa re-forma educacional conduzida pelo Estado, o tema da profissionalização do magistério emergiu como proeminente para a constituição de um sistema educativo moderno e levou a uma série de ações para modificar o perfil dos professores.

Publicamos ainda a resenha de Jeová santana, sobre o livro Adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico.

Em razão de um descuido de redação e revisão, o Editorial da edição de número 20 (maio/ago. de 2009) publicou a informação incorreta de que a RBHE seria “a única revista acadêmica brasileira especializada na temática de história da educação”. Em verdade, a comunidade de historiadores da educação conta ainda com mais três excelentes periódicos especializados: História da Educação, publicado pela associação sul-Riograndense de Pesquisadores em História da Educação (Asphe)/universidade Federal de Pelotas (Ufpel) desde 1997; Histedbr On-Line, publicada pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em “História, sociedade e Educação no Brasil” (histedbr), da Faculdade de Educação da universidade Estadual de campinas (UnicAmp), desde 2002; e Cadernos de História da Educação, publicado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em História e Historiografia da Educação da universidade Federal de uberlândia (uFu) desde 2002. a comissão Editorial da RBHE vem a público desculpar-se pelo equívoco e esclarecer que não houve a intenção de ocultar a existência dos periódicos congêneres, com os quais contamos positivamente em favor dos objetivos comuns de divulgar estudos, fomentar debates acadêmicos e apoiar docen-tes e discentes no ensino e na pesquisa em história da educação.

Por motivos alheios à nossa vontade, ainda, foi impresso incorre-tamente o endereço da professora cristina araújo, autora do artigo “a

RBHE 21.indd 11 4/10/2009 20:57:41

Page 12: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Editorial

12 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 9-12, set./dez. 2009

Reforma Antônio Carneiro Leão no final dos anos de l920”, publicado na revista n. 19. Expressamos nosso pedido de desculpas à autora e apro-veitamos para solicitar aos leitores que anotem as informações de contatos corretas: Endereço: Rua Mizael Montenegro, 72, ap. 601 – Parnamirim – Recife-PE – cEP 52060-130; e-mails: [email protected] e [email protected].

Boa leitura!

A Comissão Editorial

RBHE 21.indd 12 4/10/2009 20:57:42

Page 13: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

13Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação:

mobilizando John Dewey no período entre guerras

Noah W. sobe1

*

tradução: Bruno Bontempi Jr.2

**

Resumo:Este artigo discute as características e as deficiências das pesquisas sobre “transferência” e defende que uma abordagem de “história entrelaçada” pode ser vantajosamente aplicada para pensar as trocas culturais em história da educação. tenta ilustrar esse método mediante o exame das interseções entre as “viagens” de John dewey e suas ideias e os diferentes desenvolvimentos educacionais nos Bálcãs no início do século XX.

Palavras-chave:trocas interculturais; historiografia; história global; John Dewey; Iugoslávia; teoria comparativa; transferências em educação.

* doutor pela universidade de Wisconsin-Madison, professor assistente do Programa de Estudos de Políticas Educacionais e culturais da Escola de Educação da uni-versidade Loyola, de chicago.

** doutor em educação pela Pontifícia universidade católica de são Paulo (Puc-sP). Professor da Faculdade de Educação da universidade de são Paulo (usP). o tradutor agradece as colaborações de Vitor de Marchi e Felipe tillier.

RBHE 21.indd 13 4/10/2009 20:57:42

Page 14: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

14 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

Entanglements and intercultural exchange in the history of education:

mobilizing John Dewey in the interwar era

Noah W. sobe translation: Bruno Bontempi Jr.

Abstract:this article discuss the characteristics and shortfalls of “transfer” research and proposes that an “entangled history” approach can be usefully applied to thinking about intercultural exchanges in the history of education. it attempts to illustrate this method by examining the intersections between the “travels” of John dewey and his ideas and educational developments in the Balkans in the early twentieth century.

Keywords:cross-cultural exchange; historiography; global history; John Dewey; Yugoslavia; comparative theory; educational transfer.

RBHE 21.indd 14 4/10/2009 20:57:42

Page 15: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

15Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

tensões entre métodos e objetos e entre pesquisadores e suas cate-gorias de análise são endêmicas ao conhecimento histórico. Na história da educação, essas questões tornam-se particularmente críticas em torno do tópico das trocas interculturais. Quando os historiadores examinam “transferências”, “empréstimos”, “cruzamentos” e “trocas”, demarcam posições sobre como tais entidades são percebidas; que tipos de posições externas se encontram, ou não, disponíveis para os pesquisadores; assim como sobre o modo como se formam o “híbrido” e o “puro”. Para ilustrar algumas dessas questões pode-se tomar a sucinta (e crítica) narração que a historiografia da educação americana ofereceu há quatro décadas pelo notável historiador da educação Lawrence cremin. de acordo com cremin, esta tem sido a narrativa-padrão sobre o desenvolvimento das instituições educacionais nos Estados unidos:

os colonizadores vieram da Europa trazendo uma variedade de postu-ras sobre a educação; em geral, o atraso reinava soberano, exceto na Nova inglaterra, onde as escolas haviam sido inicialmente erguidas para aniquilar satã, o velho enganador. Essas escolas da Nova inglaterra destinavam-se a se tornar o fundamento sobre o qual o sistema público de educação deveria mais tarde ser erigido. Ao final do século XVIII, torna-se patente que os modos europeus não estavam funcionando e que a nova nação precisaria de outro tipo de educação para poder nutrir e perpetuar o seu distintivo modo de vida. seguiram-se diversos esforços para popularizar o ensino, tais como as escolas dominicais, infantis, lancasterianas, porém, nenhum se mostrou adequado às necessidades da sociedade que emergia. Eis que Horace Mann, Henry Barnard, John Pierce e outros lançaram uma grande cruzada pela educação pública, na qual as forças do progresso enfrentaram as forças da reação por mais de uma geração. Por volta de 1860, o conflito estava vencido, exceto no Sul, isto é, onde a vitória teria de esperar a regeneração conduzida pelos filantropos do Norte em fins do século XIX. Por conseguinte, a história é a do refinamento, melhoria e extensão da educação pública em resposta às condições de uma civilização democrático-industrial [cremin, 1970, p. x].

RBHE 21.indd 15 4/10/2009 20:57:42

Page 16: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

16 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

o objetivo dessa referência não é o de mais uma vez sublinhar o truísmo de que os historiadores acomodam seus objetos de investigação e quadros interpretativos às circunstâncias e preocupações de seu pró-prio tempo. antes, a precisa caricatura de cremin – que poderia ainda ser usada para caracterizar certas apresentações da história da educação nos Estados unidos em manuais – ajuda-nos a focar a atenção nos modos como noções tais como autoctonismo, propriedade e enraiza-mento vinculam-se a ideias de progresso e modernidade, assim como a uma noção de “sociedade” como domínio singular, coextensiva a um território nacional e abrangendo uma população descontínua e isolada, mesmo sendo ao mesmo tempo diversa e estratificada1. Embora no caso da história da educação escolar nos Estados unidos haja um interesse crescente em trazer à cena trocas globais sob modos mais nuançados e superar o provincianismo das abordagens centradas no Estado-nação, muitos desses trabalhos ainda operam com o que eu caracterizaria como “paradigma da transferência”. Neste artigo, discuto as características e as deficiências das pesquisas sobre “transferência” e defendo que uma abordagem de “história intrincada” pode ser vantajosamente aplicada para pensar trocas culturais em história da educação – algo que tento ilustrar mediante um exame das interseções que se podem encontrar entre as “viagens” de J. dewey e suas ideias e os diferentes desenvolvimentos educacionais nos Bálcãs no início do século XX.

como sugere o esquema de cremin, um modo de contrastar a educação puritana da Nova inglaterra no século XVi com a reforma da escola pública do século XiX é caracterizar a primeira como provisória, insustentável “seminaturalização” dos modelos europeus de educação. Nessa visão, o movimento de reforma da escola pública elementar teria sido mais propriamente afinado com as necessidades e circunstâncias do

1. atualmente o campo da sociologia pode parecer, por vezes, inundado de críticas a esses tradicionais conceitos centrais; acredito que Nikolas Rose (1999, 2007) ofereça uma das mais incisivas observações sobre como racionalidades políticas alteram-se ao longo do tempo e como nossas ferramentas e esquemas analíticos também precisam mudar.

RBHE 21.indd 16 4/10/2009 20:57:43

Page 17: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

17Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

“mundo novo”2. Para uma interpretação como essa é preciso não tomar as reformas da escola pública elementar como tendo surgido de maneira endógena. Reformadores notáveis como calvin stone e Horace Mann realizaram propaladas viagens de estudos à Europa. Entretanto, apli-cando o ponto de vista da “transferência” pode-se argumentar tanto que aquilo que os reformadores tomaram de empréstimo foi adequadamente adaptado, como que a lição ou o exemplo estrangeiro foram subsumidos no discurso reformador doméstico e funcionaram como estratégias de legitimação ou de “escandalização” (para usar a linguagem proposta pelo especialista em educação comparada Gita steiner-Khamsi, 2002)3. ambas as alternativas deslocam as intervenções e ações da elite de reformadores para o primeiro plano, e ambas as leituras iluminam o que, inspirando-se em Michael Werner e Bénédicte Zimmermann (2006), poderíamos considerar como sendo as quatro limitações da pesquisa sobre conexões interculturais derivadas de um quadro de referência de transferência.

Em primeiro lugar, estudos sobre transferência tendem a assumir pontos fixos de saída e chegada. O quadro exclusivamente diacrônico (isto é, a análise de algo concebido como um processo que se desenrola no tempo em estágios concretos e absolutamente discerníveis) pode significar, por exemplo, que os métodos monitoriais do início do século XiX, associados a J. Lancaster e a. Bell são analisados apenas como se tivessem partido de um ponto central coerente e chegado a distintos contextos como se fossem uma reforma pedagógica variegadamente “recebida”. Embora essa estratégia possa oferecer um melhor conhe-cimento sobre como a educação muda ao longo do tempo, arrisca-se com ela a obscurecer a complexidade das conexões e entrecruzamentos que engendram certas formas culturais e padrões sociais, e não outros. Pensa-se, por exemplo, na tendência dos estudos coloniais de saírem do esteio exclusivo de uma mítica dinâmica “centro-periferia”, em vez de

2. Ver, em parte, tyack (1967, p. 5).3. uma terceira alternativa, é claro, é ver Horace Mann tomar inspiração na Prússia

como uma perversão dos ideais democráticos americanos. Ver, por exemplo, Gatto (2001).

RBHE 21.indd 17 4/10/2009 20:57:43

Page 18: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

18 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

buscarem meios de dar conta das múltiplas redes de relações (assim como da natureza multidirecional dessas relações)4. No estudo da educação comparada anglo-americana permanece forte o desejo de modelar as partidas e chegadas das transferências educacionais (cf. Phillips & ochs, 2004; Rappleye, 2006). deixando de lado questões de teoria geral nas ciências sociais, os quadros rígidos de referência limitados por um estrito paradigma de transferência não servem perfeitamente às preferências gerais dos historiadores por narrativas complexas e de complexidade crescente, explicações muito elaboradas e conclusões experimentais

Em segundo lugar, as categorias analíticas usadas no estudo de uma transferência (por exemplo, “adaptação”, “translação”, “origem”) são frequentemente consideradas invariáveis. a historicidade desses mesmos conceitos escapa à análise, podendo haver uma irônica re-introdução das perspectivas nacionais. Eu diria que as ferramentas conceituais usadas para discernir o quanto algo se “adapta” a uma determinada situação representa um grande ponto cego. Parece suficientemente claro que a noção de “adaptação” tenha potenciais implicações de darwinismo social, mas talvez valha a pena mencionar o corpus de conhecimentos da botâ-nica, zoologia e medicina, criado ao longo do século XiX, em torno das questões de aclimatação. como mostra o trabalho de Michael osbourne, juntamente com a etnografia as ciências da aclimatação foram cruciais apêndices dos projetos coloniais e imperiais, interessados que eram pelo modo como os organismos poderiam ser removidos com sucesso de um clima para outro. isso tudo respondia ao interesse de otimizar as iniciativas de reorganização econômica e administração social que eram partes e parcelas do projeto colonial (osborne, 1994, 2000). a “teoria da aclimatação” tornou-se uma idée fixe (em francês no original) no campo da educação comparativa, em virtude, em grande parte, da persistente reciclagem das injunções do antigo comparativista inglês, Michael sadler, em 1902, de que os reformadores da educação,

4. Ver, por exemplo, steinmetz (2007) e stoler (2006). a esse respeito, é muito ins-trutivo o trabalho de serge Gruzinski (2002) sobre as múltiplas trocas culturais mobilizadas nos contatos coloniais europeus.

RBHE 21.indd 18 4/10/2009 20:57:43

Page 19: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

19Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

Vagam prazerosamente entre os sistemas educacionais do mundo, como uma criança que anda pelo jardim, e colhem uma flor… e presumem que se espetarmos o que tivermos apanhado no solo de casa, haveremos de ter uma planta viva [Bereday, 1962]5.

ironicamente, portanto, a despeito de sua expressa sensibilidade e seu interesse pelas características singulares dos diferentes “contextos”, os estudos de transferência sempre se fragilizam pela relutância em historiar e desestabilizar suas categorias analíticas.

Em terceiro lugar, mesmo que em princípio os estudos de transferên-cia sejam projetados para romper o isolamento da pesquisa centrada na nação, por mostrar interconexões, interdependências e a permeabilidade das fronteiras, o seu resultado pode ser mesmo o de reificar e re-introduzir referências nacionais. o paradigma da transferência, como foi visto anteriormente no substantivo juízo de cremin, pode tautologicamente inserir o enquadre nacional como se as demandas de progresso e avanço de algum modo requeressem (na mitologia, e não na prática) que um dado sistema educacional necessariamente possuísse um caráter singular e “nacional”6. Mesmo considerando os modos como o lancasterianismo foi “importado” para os Estados unidos e dando crédito à importância que ele possa ter tido na mudança geral das estratégias de ensino de individuais para simultâneas, o gesto analítico de “internacionalizar” a narrativa histórica é consideravelmente fragilizado quando uma prática ou teoria educacional em circulação é vista – como ocorre frequente-mente – como se viesse ao encontro de um “distintivo modo de vida” ou de dadas “necessidades” de uma determinada “sociedade emergente”.

Muito do que foi mencionado poderia ser intitulado como que Werner e Zimmermann denominam “deficiência de reflexividade”, que caracterizaria muitas pesquisas de transferência (Werner & Zimmermann,

5. Ver também sadler (1907, p. 595).6. Em minha opinião, as mais consistentes e cativantes críticas da presumível distin-

tividade dos padrões educacionais nacionais vêm dos sociólogos neoinstitucionais. Ver, por exemplo, Ramirez e Meyer (2002).

RBHE 21.indd 19 4/10/2009 20:57:44

Page 20: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

20 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

2006, p. 36). de todo modo, como uma quarta área de limitação vale mencionar a dificuldade que têm os paradigmas de transferência em reconhecer e analisar “cruzamentos em X”: os recíprocos, reversíveis e múltiplos vetores de movimentos e trocas. Embora haja ocasiões em que as inter-relações sejam estritamente bilaterais, é provavelmente mais fre-quente o caso em que trocas e empréstimos/circulações culturais ocorrem dentro de densas teias de relações. a multiplicidade e complexidade das redes em que pessoas e ideias viajam nem sempre se prestam a análises bilaterais e diacrônicas de transferência.

A fim de tentar lidar com algumas das deficiências mencionadas, irei agora elaborar uma abordagem de “histórias entrelaçadas”, que procura colocar o fenômeno da interação no centro da análise. o restante deste artigo discute as trocas culturais que emergiram quando “John dewey” e ideias deweyanas circularam pelo recentemente criado Estado da iu-goslávia nos anos de 1920 e 1930. O filósofo americano, famoso por ter fundado a Escola Laboratório em chicago e que lecionou por vários anos na universidade de columbia, nunca palestrou na iugoslávia, muito em-bora seus escritos tenham sido traduzidos e tenham penetrado no discurso pedagógico iugoslavo de modos fascinantes e imprevistos. dewey pode também ser considerado uma “persona conceitual” (deleuze & Guattari, 1994) – um, na multidão de pensadores da educação de status icônico que povoam a literatura pedagógica pelo mundo e em torno de quem um alicerce comum de projetos modernizadores poderia se basear. trato aqui do “Dewey iugoslavo” como uma figura local particular (e variegada), e não como um mero simulacro do “original”. Nesse particular, sigo o trabalho de thomas Popkewitz, que sugere que os escritos de dewey devam ser tratados como se incorporassem “um conjunto particular de conceitos e interpretações sobre o mundo e o ser que não é simplesmente o de dewey” (Popkewitz, 2005, p. 6). Embora haja considerável valência no modo como dewey é “visto” pelo mundo, também é evidente que Dewey não funciona como um significante vazio, para o qual qualquer significado possa ser aposto. Popkewitz sugere que o trabalho de Dewey deva ser visto como a incorporação de três principais teses culturais: (1) a noção de que o indivíduo é um agente de mudanças com “responsabili-

RBHE 21.indd 20 4/10/2009 20:57:44

Page 21: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

21Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

dade pelo progresso pessoal e coletivo”; (2) a prática de ordenamento e cálculo de tempo – dominantemente inscrevendo o futuro no presente – com o objetivo de controlar essa ação; (3) a recolocação da ciência como método da vida cotidiana, menos para dar a certeza da Fé do que para ser uma ferramenta para a efetivação de planos de operação (idem, ibidem, pp. 16-25). ação, domínio do tempo e ciência não são, no esquema de Popkewitz, “variações de um mesmo tema”. antes, envolvem diferentes configurações – configurações culturais que tanto relacionam identidades coletivas com individualidades, como incluem outros conhecimentos e práticas culturais para modelar a modernidade e o ser “moderno”.

No que se segue meu ponto de partida é buscar trocas, interseções e entrecruzamentos entre John dewey e a iugoslávia no período entre as grandes guerras. Primeiramente, discuto as outras figuras que cruzaram e “trocaram” ideias com dewey quando este circulou pela iugoslávia. Em seguida, continuo focando os entrelaçamentos e examinando os textos servo-croatas que introduziram dewey na literatura pedagógica iugoslava.

Dewey nas prateleiras da Iugoslávia7

O pedagogo iugoslavo Salih Ljubunčić, informando sobre o avan-çado estado da educação na tchecoslováquia em 1934, disse o seguinte sobre a literatura educacional tcheca:

Em suas resenhas, livros e palestras alguns pedagogos estrangeiros são mencionados. uma coisa é característica, entretanto: os pedagogos germâ-nicos são bem pouco mencionados, não importando se são austríacos ou alemães. Em vez disso, enfatizam-se tolstoi, J. dewey, M. Montessori e outros [Ljubunčić, 1934, pp. 52-53].

7. o material desta e das duas seções seguintes deste artigo foi apresentado em sobe (2008). Esse material foi re-editado e traduzido com permissão.

RBHE 21.indd 21 4/10/2009 20:57:44

Page 22: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

22 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

Nessa breve afirmação, que dispõe “J. Dewey” ao lado de outras figuras de destaque, pode-se quase literalmente vislumbrar uma prateleira na biblioteca itinerante8 que circulou e reuniu dewey na iugoslávia. o fato de dewey ter sido mencionado por um iugoslavo especialista em pedagogia, como indicação de que os tchecos estavam judiciosamente dando as costas aos germânicos, mostra claramente como a assimilação de dewey na iugoslávia teve lugar em um campo de múltiplas trocas culturais. as relações entre as nações eslavas da Europa central e Europa oriental foram capitais. uma solidariedade pan-eslava diante desse “outro” germânico foi um dos principais aspectos da grade pela qual dewey foi pensado entre os iugoslavos. o arrolamento de dewey, visto anteriormente, coloca-o em meio a uma multidão de pensadores de status icônico similar. Referências a pensadores en mass [em francês, no original], assim como na mencionada ênfase tcheca em “tolstoi, J. dewey, spencer, M. Montessori e outros”, exercem uma função de credenciamento, de trazer figuras globais às particulares relações locais. seria um erro, entretanto, ver neste fenômeno um mero jogo semiótico. Embora seja provável que listagens como essa possam ser encontradas pelo mundo em muitos contextos, há nesta uma especificidade que prova ser possível escavar historicamente o particular “J. dewey” encontrado no texto iugoslavo de 1934. Não é fortuita a presença de tolstoi como um de seus companheiros de prateleira; a disposição tcheca para essa coleção de “pedagogos estrangeiros” não é, do mesmo modo, acidental.

as interações com a tchecoslováquia foram uma parte central da modernização reflexiva da criança, do professor e da escola na Iugoslávia9. Era uma “modernidade” singular, ainda que certas noções de ação e de subjetividade tenham sido por meio dela globalizados. o livro de salih Ljubunčić sobre a escolarização e a educação na Tchecoslováquia baseou-se em um tempo considerável de observação direta da educação tcheca, mas rapidamente evoluiu para uma viagem de estudos de duas semanas àquele país. Em 1933, Ljubunčić liderou um grupo de trinta professores iugoslavos

8. tomo emprestado esse conceito de Marc depaepe.9. Para uma discussão mais extensa desse tópico, ver sobe (2008).

RBHE 21.indd 22 4/10/2009 20:57:44

Page 23: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

23Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

em uma excursão a Zagreb, Viena, Bratislava e partes da tchecoslováquia (olín, Brno, Pardubica, Hradec Kralovy e Prague), onde tiveram acesso a importantes inovações educacionais (Ljubunčić, 1933). Um preconceito contra as influências educacionais germânicas atravessa o texto e aparece em todo o itinerário da viagem de estudos. tendo passado por Viena, o grupo visitou escolas criadas por tchecos que viviam na cidade. Em rela-tório publicado no periódico de professores, escrito em língua eslovena, um dos participantes da viagem-estudo de Ljubunčić, de 1933, descreveu a visita à escola comenius em Viena e observou: “para começar, sentimos a hospitalidade eslava no meio dessa existência como estrangeiros, que nos aqueceu” (debenak, 1933, pp. 10-11). Essa escola não era só um lugar em que os visitantes iugoslavos se sentiram particularmente bem-vindos, mas a que consideravam uma das mais modernas construções da cidade. o caráter avançado das escolas tchecas em Viena, a antiga capital dos Habsburgo, era para os iugoslavos uma afirmação da perseverança nacional. o itinerário vienense da viagem de estudos iugoslava aponta para uma das condições que conduzem ao interesse iugoslavo particularmente forte pela tchecoslováquia, a de que os dois países eram entendidos como se com-partilhassem um “destino histórico” similar. ambas eram “jovens” nações recém-independentes, que haviam em parte emergido do desmantelamento do Império Austro-Húngaro com o fim da Primeira Guerra Mundial. Esse momento era referido com frequência na literatura iugoslava como uma restauração da independência que fora negada durante o período de con-trole dos Habsburgo – e adicionalmente, pelos iugoslavos otomanos. Na introdução ao seu estudo sobre a Tchecoslováquia, Ljubunčić (1934, p. 5) culpava os iugoslavos por “não olharem para além das fronteiras da peda-gogia austríaca e alemã”. com sua independência os iugoslavos deveriam agora se interessar por “romances (franceses e italianos) e pela pedagogia anglo-saxônica (inglesa e americana)”, escreveu. a tchecoslováquia havia com sucesso se libertado dessas influências e estava gozando propriamente sua independência nacional, como indicava sua particular estante, na qual “J. dewey” fora encontrado em 1934.

ao lado da temporalidade compartilhada pelos dois povos que vi-viam um momento de libertação nacional, ou no presente pós-colonial,

RBHE 21.indd 23 4/10/2009 20:57:45

Page 24: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

24 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

tchecos e iugoslavos compartilham um conjunto de afiliações eslavas. servo-croata, tcheco e eslovaco são idiomas linguisticamente correla-tos, formam parte de um grupo que também inclui o polonês, o russo, o búlgaro e o bielorusso.

As afinidades eslavas ajudaram, por exemplo, a fazer da Tchecoslo-váquia o destino mais comum dos viajantes iugoslavos no período entre guerras. tchecos eram “nossos irmãos do norte” e a tchecoslováquia era vista como “o mais avançado país eslavo”. Essa construção cultural da familiaridade eslava suavizou o caminho para que a tchecoslováquia aparecesse aos iugoslavos como um modelo acessível de modernidade. Em seu texto sobre a educação tcheca, Ljubunčić apontou a pronunciada influência americana em pedagogos tchecos, tais como Vaclav Přihoda, stanislav Vrána e Jan Úher. Ele foi ainda mais longe ao sugerir que um dos avanços encontrados na américa poderiam ser levados à iugoslá-via, mirando-se na tchecoslováquia. uma resenha do livro em Ucitelj (Professor), o mais proeminente periódico educacional iugoslavo no período entre guerras, apontou que, em sua conclusão, mais uma vez o sr. Ljubunčić indicou “as características eslavas, ou mais especificamente, as características tchecas de todo esse movimento, que, em verdade, recebe a influência dos pedagogos americanos”. Além disso, o autor espera que “o humanismo eslavo espiritualize a cultura prática americana e tcheca, e que a escola tcheca reformada esteja na tchecoslováquia acima de tudo”

(Učitelj, 1934, pp. 243-246). o eslavo era considerado, como se pode ver, como tendo o potencial

de preservar um grau de legitimidade local e autenticidade nacional diante das modernas influências americanas na esfera educacional. Há, ainda, uma intimação clara no comentário de Ljubunčić, de que os próprios eslavos tinham algo a oferecer à américa. o encantamento sugerido na ideia do humanismo eslavo tendo o potencial de espiritualizar a américa é alusivo a outras discussões contemporâneas da “alma” ou “espírito” eslavo como um aspecto condutor e motivador da realidade. a espiri-tualização da pedagogia americana aqui invocada pode ser vista como uma proposta para o “encantamento” da reforma educacional; um gesto em direção a fundar e consagrar finalmente os alicerces ontológicos e

RBHE 21.indd 24 4/10/2009 20:57:45

Page 25: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

25Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

epistêmicos da atividade e do pensamento nos encantamentos espirituais que o mundo oferecia.

a encarnação iugoslava de “J. dewey” pela tchecoslováquia não era um gesto errático. Na prateleira em exame dewey foi associado a um compromisso para com a distintividade étnica dos eslavos. a cultura prática da ação que o trabalho de dewey prognosticava havia sido retraba-lhada de acordo com as “características eslavas”. Não se deve, entretanto, pretender que essas características eram noções culturais estáticas que a priori precediam o texto de Ljubunčić. É evidente que nos escritos de Ljubunčić – por exemplo, na descrição da hospitalidade eslava – que a “filiação eslava” que sustentava a compatibilidade da Tchecoslováquia como modelo para estudo dos iugoslavos vinha sendo culturalmente construída pelas mesmas viagens e interações, e por esses textos. o posicionamento de Dewey por Ljubunčić como influência meritória na tchecoslováquia conectava-se à imagem dos eslavos como uma forma de encantamento. Essa conexão com os eslavos significava não só que dewey fora agregado às tradições locais e regionais, mas que o dewey iugoslavo de fato detinha o potencial de apoiar e manter a fabricação de tradições como uma fonte de encantamento.

a importância cultural dos eslavos na iugoslávia de entre guerras ajuda a explicar a proximidade de “J. dewey” e “tolstoi”. o novelista russo e pensador Leon tolstoi havia gerido escolas experimentais nos anos de 1890, sendo Yasnaya Polyana a mais famosa, onde desenvolveu programas “direcionados aos alunos”10, a que escritores iugoslavos sem-pre se referem como “ensino livre”. Especialistas como sergei Hessen (russo emigrado que diversas vezes se fixara em universidades alemãs, tchecas e polonesas, e de quem circularam largamente na iugoslávia nos anos de 1920 e 1930 trabalhos de educação comparada sobre escolas soviéticas e americanas) apontou as consideráveis semelhanças entre os dois homens (Nowacki, 1973). Mais do que o fato de terem comparti-lhado o compromisso de gerir escolas experimentais, o foco nos escritos de dewey sobre a “vida” da criança e sobre a educação como modo de

10. Ver Blaisdell (2000).

RBHE 21.indd 25 4/10/2009 20:57:45

Page 26: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

26 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

vida poderiam ser vistos como portando uma estreita semelhança com a noção de “vida” de tolstoi. colocar tolstoi na mesma prateleira de spencer, Montessori e dewey levou tolstoi a comunicar-se com eles, e colocá-lo na mesma classe de outras personagens que circularam inter-nacionalmente. a presença de um herói eslavo na prateleira com dewey era, assim, outro modo pelo qual uma construção cultural do eslavo se entrelaçava na composição do dewey iugoslavo.

Embora na lista de pedagogos estrangeiros na tchecoslováquia feita por Ljubunčić Dewey seja enfaticamente separado de quaisquer escritores germânicos, isso não ocorre em todos os casos. Em outras obras iugoslavas, dewey é estreitamente associado a Georg Kerschens-teiner. Entretanto, Dewey é tipicamente apresentado como uma figura maior nessa relação11. Nos fluxos e redes que entrelaçaram Dewey e Kerschensteiner na Iugoslávia, o filósofo americano estava solidamente em vantagem. a visão de atividade de dewey aparece assim no mapa cultural iugoslavo como se estivesse inserindo uma conexão (como uma influência formativa) para a teorização pedagógica do trabalho e da edu-cação manual e vocacional. Quando os pedagogos tchecos ocuparam-se da américa, os escritores iugoslavos enfatizaram o quanto “américa” era “naturalizada” e retrabalhada para ficar de acordo com o “tcheco” e o “eslavo”. isso não ocorreu nos casos em que iugoslavos destacaram as maneiras como os pedagogos germânicos ocuparam-se da américa. tal como foi apresentado pelos iugoslavos, o dewey que viajou na mesma prateleira que Georg Kerschensteiner não havia sido germanizado. Em vez disso, a representação cultural foi a de um movimento pedagógico germânico que devia tributos à américa, mais do que uma consciente apropriação da américa. de todo modo, como circulou de modos dife-rentes em cada uma dessas órbitas, dewey ajudou a teorizar “trabalho” para os educadores iugoslavos por meio de suas ideias sobre a ação e seu lugar como princípio de ordenamento no pensamento e nos pro-cessos educativos. Na iugoslávia, dewey apareceu, por um lado, como uma figura moderada cujo pragmatismo americano poderia explicar

11. Para mais discussões a respeito, ver sobe (2008, pp. 78-84).

RBHE 21.indd 26 4/10/2009 20:57:45

Page 27: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

27Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

legitimamente certas teorias pedagógicas germânicas; por outro lado, como uma figura cujas ideias sobre cultura prática e ação prática foram consideradas extremamente contributivas para uma “naturalização”, que nesse caso foi entendido como a “espiritualização” que se poderia esperar que ocorresse quando os tchecos (e por extensão, os iugoslavos) trouxessem “J. dewey” para o mundo “eslavo”.

Traduzindo Dewey para o servo-croata

Nos anos de 1920 e 1930, os trabalhos do especialista francês em educação, Edouard Claparède, foram particularmente significativos na penetração dos escritos de dewey na iugoslávia. assim como o dewey conceitual que apareceu na iugoslávia, o que apareceu em comentários textuais foi também uma construção local particular. claparède foi uma parte importante dessa construção, provavelmente, como um dos mais amplamente circulados e influentes dentre os interlocutores de Dewey no país. Por causa de sua estatura como renomado especialista em psicologia na universidade de Genebra e fundador do instituto Rous-seau, claparéde era, por si mesmo, uma persona conceitual de estatura internacional. a questão primordial aqui, entretanto, é a embalagem de dewey por claparède. claparède foi um condutor para a chegada dos escritos de dewey na iugoslávia – um “envelope” que afetou o modo como os “conteúdos” foram lidos. o que claparède ofereceu foi um esquema para pensar em dewey. Esse foi um esquema, como se nota, que apoiou o “eslavo” como um objeto de conhecimento de significado dado e orientado para a atividade na formação da educação iugoslava. a contribuição-chave de claparède para fazer o dewey iugoslavo in-teligível era pensar nos encantamentos e desencantamentos que foram alcançados no fazer-se dos sujeitos modernos, escolas modernas e modos de vida modernos.

Na iugoslávia, claparède foi discutido como um notório defensor do child-study e um pioneiro da pedagogia experimental. Ele viu na peda-gogia de dewey três elementos primordiais: no esquema de claparède,

RBHE 21.indd 27 4/10/2009 20:57:46

Page 28: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

28 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

as ideias educacionais de dewey eram antes de tudo “genéticas”, o que significa dizer que a educação não ocorre vinda de fora, mas de dentro da criança. Em segundo lugar, a pedagogia de dewey poderia ser vista como “funcional”, o que significava que as atividades escolares eram um instrumento de desenvolvimento espiritual que levassem em conta o presente e o futuro. Em terceiro lugar, era “social”, o que significava que preparava o indivíduo para desempenhar um papel produtivo na sociedade ampla. a esquematização de dewey apareceu pela primei-ra vez em 1913, na introdução de uma coleção de artigos de dewey traduzidos para o francês (claparède, 1913). o ensaio de claparède foi publicado também em servo-croata, em 1918, em um periódico, e novamente em 1920, como um panfleto (Klapared, 1920) em uma série de publicações sobre pedagogia editadas por Milan Šević, o diretor da faculdade de pedagogia da universidade de Belgrado. o mesmo ensaio de claparède sobre dewey reapareceu em 1930, quando uma suma de duas páginas foi publicada no jornal Ucitelj (Dirić, 1930). Graças às amplas circulações e recirculações dos textos de Claparéde, pensar em Dewey como se oferecesse uma pedagogia genética, funcional e social adentrou à Iugoslávia.

[deve-se notar que iugoslávia não foi o único país eslavo da Europa central e oriental a tomar contato com dewey por meio de claparède. o ensaio de claparède também era frequentemente citado na tchecoslová-quia. Especialmente à luz das percepções anteriormente vistas, é muito interessante descobrir que em seu livro de 1930, sobre a educação nos Estados unidos, Jan Úher dedicou-se, ao menos parcialmente, a explicar as ideias educacionais de dewey para seus leitores tchecos pelo esquema apresentado no ensaio de claparède (Úher, 1930, pp. 103-106). Esse recurso a claparède não é particularmente surpreendente, exceto pelo fato de o livro de Úher ter sido expressamente escrito depois e com base em suas viagens de estudo aos Estados unidos.]

No esquema conceitual de claparède, os aspectos genéticos da fi-losofia educacional de Dewey diziam respeito a suas ideias sobre o de-senvolvimento e sobre como o professor deveria responder aos desejos e interesses das crianças. o que dewey oferecia, de acordo com claparède,

RBHE 21.indd 28 4/10/2009 20:57:46

Page 29: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

29Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

era um “entendimento dos interesses [das crianças] com um sintoma ge-nético” e um modo pelo qual “podemos seguir a natureza da criança”12. Pode-se notar de passagem que a noção de desenvolvimento elaborada por dewey, por exemplo, em Democracia e educação, difere bastante da concepção de um desenvolvimento genético que pudesse ser nutrido e monitorado seguindo-se as expressões dos interesses das crianças. o ponto fundamental para os objetivos desta análise é que essa última ideia percorreu a iugoslávia como uma apresentação autorizada de dewey. a leitura claparediana de dewey, de fato, põe uma ênfase extremamente forte na centralidade da educação na criança, em “genética” – uma ênfase que parece ter sido preferencialmente adotada na iugoslávia.

Em sua tradução para o servo-croata, o ensaio de claparède foi prefaciado por uma introdução escrita por Milan Šević, que indica como os encantamentos e desencantamentos estavam presentes em seu pensa-mento sobre educação e suas dimensões “genéticas”. apresentando os conceitos de claparède/dewey aos quais seus leitores estariam prestes a ser expostos, Šević opinou: “todos têm certo capital em suas aspirações e impulsos, que devem ser perseguidos a fim de avançar”. E continuava: “o problema da educação é este: descobrir esse capital” (Šević, 1920, p. 4). Com essa afirmação Šević ligava a categorização genética de Claparède a uma teoria do progresso, um “avanço”. Esse “capital” estaria oculto na criança. o estudo da criança [child-study] poderia revelar algo desse capital genético e uma pedagogia centrada na criança o poderia alimen-tar. ainda, embora o “capital genético” fosse algo considerado nato na criança, ele não era estático. os iugoslavos leram por meio de claparède que, para dewey, a mente não era um sistema estático, mas um processo dinâmico. Essa “genética” tinha desse modo, não o caráter de um deter-minismo a priori, mas o de um material apropriado e “natural” para ser trabalhado pelos educadores. Os desencantamentos de um modo científico de pensar e agir tomaram forma ao buscarem as aspirações e interesses das crianças e educarem-nas por meio deles. Mediante pesquisa no campo da pedagogia experimental e em institutos como o instituto Rousseau, de

12. Esses excertos foram traduzidos do servo-croata (Klapared, 1920).

RBHE 21.indd 29 4/10/2009 20:57:46

Page 30: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

30 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

claparède, os cientistas da educação poderiam estudar cuidadosamente os interesses e as atividades das crianças como formas sintomáticas da natureza infantil. a entidade “natural”, “genética” tão bem alojada no interior da criança era, entretanto, o objeto denegado da ciência e uma “coisa” indefinível a que se atribuía uma intencionalidade encantada. Quanto a isso, parece haver conexões entre as ideias de claparède sobre o “genético” e do vitalismo de Henry Bergson13, com a natureza interior, genética, da criança, servindo como um “élan vital” [em francês no original]. Graças à categorização de claparède, a abordagem moderna para ensinar e pensar a respeito dos interesses da criança que circulou, associada a dewey pela iugoslávia, era a que construiu encantamentos e desencantamentos em gestos relacionados. E, por analogia, o “eslavo” poderia ser, de modo similar, entendido como um espírito interior e motivador, que precisava ser encontrado pelos eslavos.

os aspectos funcionais da pedagogia de dewey eram compatíveis com uma psicologia funcional que, para claparède, guardava a promessa de renovar a psicologia associacionista com um entendimento da consciên-cia como menos estática e mais afinada à adaptabilidade ao ambiente, no sentido darwinista. como foi mencionado, claparède enfatizava a dinâmica como oposta às representações estáticas da mente, que era uma ênfase que correspondia à visão do homem como unidade com integridade funcional em adaptação a suas necessidades e a seu ambiente. as atividades da criança eram um tópico importante a esse respeito, e claparède apontou que os educadores precisavam ter certeza de que a atividade e o trabalho da criança estivessem de acordo com suas “necessidades internas” (Klapared, 1920, p. 23). como “funcionais”, as atividades da criança teriam assim o potencial de fornecer uma superfície para intervenções pedagógicas. as conexões entre psicologia funcional, dewey e o movimento da escola do trabalho de Kerschensteiner foram apontados em um survey iugoslavo, especialmente comissionado da educação tcheca, que foi publicado em servo-croata em 1938. Em uma passagem que capta muitos dos temas previamente discu-

13. claparède estava familiarizado com a obra de Bergson, ainda que questionasse algumas de suas proposições (tröhler, 2005).

RBHE 21.indd 30 4/10/2009 20:57:47

Page 31: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

31Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

tidos nesse capítulo, um inspetor escolar eslovaco chamado Franjo Musil explicava a leitores iugoslavos o desenvolvimento histórico da didática tcheca. a história de Musil era notadamente similar ao que disse salih Ljubunčić sobre a prateleira de livros de “Tolstoi, J. Dewey, Spencer, M. Montessori” anteriormente mencionada. de acordo com Musil, até 1918 as pedagogias alemãs e austríacas haviam sido empurradas sobre uma tchecoslováquia que, com a independência pós-1918, era capaz de escolher mais livremente o que melhor servisse a suas necessidades educacionais. o movimento da escola livre, que enfatizava “métodos ativos” e eclipsava o “aprendizado passivo” de informação (como sob o antigo regime) era visto por Musil como tendo sido formado “sob influência de estudos em psicologia funcional, que libertava as crianças para se desenvolverem por meio de um conjunto de atividades que aperfeiçoassem suas inclinações”. isso levava, como ele apontava, à organização da educação em torno de “centros de interesse da criança”. a prateleira de Musil, de líderes pedago-gos nessa área, incluía “Montessori, decroly, claparède e, em particular, dewey”. Na viagem dessa biblioteca à iugoslávia, pode-se apontar que a teorização de atividade de dewey foi tomada como um conceito-chave, garantindo o foco no trabalho da criança. Musil afirmava que esse impulso tinha mesmo levado ao estabelecimento de “trabalho manual educativo”, sendo estabelecido como uma matéria escolar requerida para os meninos na tchecoslováquia (Musil, 1938, p. 28). Mais uma vez dewey viajou na iugoslávia em companhia de Kerschensteiner. aqui, ele também se fez acompanhar de Claparède e da psicologia funcional, e figura como uma profética promessa de redenção social mediante o trabalho pedagógico centrado na atividade da criança.

os aspectos sociais da pedagogia de dewey estavam, na visão de claparède, impregnadas em todas as ideias de dewey. Ele aponta que dewey respondia às sociedades contemporâneas (“as novas condições de nossa nova civilização”), em que crianças eram restringidas de muitas das ocupações naturais que outrora foram adequadas para “desenvolver o instinto social”. No ensaio, claparède sugeria uma ampla preocupa-ção com a anomia, ao mencionar a perda da vida familiar e o fenômeno do trabalho dos pais fora de casa, significando que as crianças não eram

RBHE 21.indd 31 4/10/2009 20:57:47

Page 32: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

32 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

obrigadas a trabalhar ou fazer suas tarefas. claparède concluía que apenas a escola poderia ordenar a vida social contemporânea. E, em direção a esse fim, recorreu ao conceito de Dewey de “escola como uma pequena comunidade”. Recorreu também a Kerschensteiner e à noção de trabalho manual como “o melhor tipo de tarefa para o trabalho cooperativo inter-pessoal” e ao “trabalho em comunidade” (Klapared, 1920, p. 25), como estratégias educacionais que poderiam redimir a sociedade. Milan Šević, em sua introdução à obra de claparède, também se dedicou à questão so-bre o que permitiria às pessoas viverem juntas. Ele tomou de empréstimo o conceito de desenvolvimento coletivo da responsabilidade individual e da razão saudável, de claparède e dewey, como traço característico da vida social produtiva na contemporaneidade. a esse respeito, tanto para Šević como para Claparède, um dos pontos centrais sobre Dewey não era apenas que ele pensava tais coisas, mas que as levava à frente – uma observação já discutida aqui. Eram oferecidas ações práticas e uma ação de re-estruturação humana, visando ao objetivo de reparar a sociedade e levá-la adiante como uma bem-sucedida empresa humana.

a teorização da “ação” atribuída a dewey na tradução para o servo-croata foi, como foi visto, vinculada a um moderno modo de vida organizado em coerência com a independência individual, a autossus-tentação, o autogoverno. o ser moderno que poderia ser vislumbrado e fabricado mediante o uso pedagógico apropriado do trabalho, atividades e interesses da criança, era constituído por meio de suas próprias ações. Esse modo de agir era tanto um fazer como um modo de vida, porquanto a ação ligada a interesses/curiosidade/disposições gerava princípios de reflexão e critérios para avaliar o conhecimento. Na fabricação iugos-lava de dewey como persona e no comentário textual de sua obra, a “atividade da criança” era vista como promovendo a base sólida para uma confiável intervenção no indivíduo e para reconstituição do social como um domínio de interação e mutualismo. além disso, sua atividade foi encantada com uma finalidade condutora e desencantada nas ações educacionais dos reformadores, orientadas para o progresso, que se adap-tavam a um conjunto de funções e responsabilidades adotadas. teorizando a criança ativa e atuante de Dewey através do “eslavo” significaria que

RBHE 21.indd 32 4/10/2009 20:57:47

Page 33: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

33Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

a intencionalidade da ação poderia ser dessacralizada, desencantada e implantada na sociedade – e poderia ser ao mesmo tempo naturalizada e re-encantada ao ser implantada na espiritualização de uma “genética eslava”, individual e social.

Conclusão

As seções anteriores procuraram exemplificar os usos de uma abor-dagem de “história entrelaçada” na história da educação. Em lugar de um paradigma diacrônico de transferência, que se centra no trânsito de uma dada prática ou teoria de um contexto para outro, tentei mostrar como as múltiplas camadas de análises e um olhar analítico profundamente focado na complexidade das formações culturais podem nos ajudar a entender os modos como se deu a intersecção de dewey e iugoslávia nos anos de 1920 e 1930. E, melhor do que focar apenas no ponto preciso de inter-secção, ou no momento de contato, tentei olhar de modo mais amplo os processos e interesses em jogo e direcionar a atenção para outras ideias e atividades que estiveram imbricadas nessas ocasiões de cruzamento e trocas. Werner e Zimmerman argumentam que uma abordagem de história entrelaçada “requer um observados ativo para construí-la, e, somente em um movimento de vai-e-vem entre pesquisador e objeto, faz com que tomem forma as dimensões empíricas e reflexivas da histoire croisée” [em francês no original] (Werner & Zimmermann, 2006, p. 39). No que foi examinado, comecei com a afirmação de que o Dewey iugoslavo não era um simulacro, mas que seria formado de múltiplos arranjos de troca intercultural. isso me levou a questionar as “rotas” pelas quais dewey “viajou” à iugoslávia, a quem foi associado e como “ele” foi transformado pelos objetos e pessoas como os quais foi enredado.

ao tentar entender esse entrelaçamento particular, cogitei de que seria interessante passar um bom tempo “fora” da iugoslávia. convenci-me e defendi em outros escritos que no período entre guerras a tchecoslová-quia aparecia como um ponto de referência criticamente importante no pensamento iugoslavo sobre educação escolar e modernidade. Nesse caso,

RBHE 21.indd 33 4/10/2009 20:57:47

Page 34: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

34 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

fica muito evidente que o Dewey iugoslavo não tem um ponto de partida definido nos Estados Unidos, mas que os iugoslavos o inserem em suas discussões e textos de uma miríade de conversações atuais – algumas nos círculos de pedagogia experimental, e outras centradas em um nacionalismo étnico que via a influência cultural alemã como uma horrenda ameaça. tentei situar minha análise nos circuitos e redes de interação pelos quais dewey atravessou o pensamento iugoslavo sobre o professor, o aluno e o papel social da escola. isso me fez examinar “companheiros de pratelei-ra” e “traduções”, menos para uma história das publicações das versões servo-croatas das obras de John dewey, e mais com o interesse no material preliminar e nos diagramas esquemáticos mediante os quais ele foi levado aos leitores iugoslavos. como visto, isso me levou a olhar para Genebra, mas também, e novamente, para a tchecoslováquia.

Quando se atenta ao que os iugoslavos disseram sobre Dewey fica evidente o fato de que estavam muito cientes de seu estatuto “estrangeiro” e “americano”, porém, viram que as ideias e perspectivas apresentadas por dewey poderiam ser espiritualizadas pelos eslavos. Minha tentativa de lidar seriamente com essa noção e de averiguar o que estava havendo por meio de encantamentos e desencantamentos é uma tentativa de evitar impor um modelo de “aclimatação” de nacionalização e, no lugar dele, usar seriamente os conceitos usados naquele tempo – os conceitos que muitos iugoslavos parecem ter usado para entender como dewey poderia/iria ser mudado no “mundo eslavo”. Em suas próprias conceituações, era um mundo de ação e pensamento no qual coisas “iugoslavas” tinham um dado significado, porém, não único e exclusivo. Dewey, com seu mundo, foi “entrecruzado” em torno das questões de como a individualidade po-deria ser mais bem relacionada à identidade coletiva e que conhecimentos e práticas poderiam ser utilizados para dar forma e realidade distinta à modernidade e à construção de sujeitos propriamente “modernos”.

Referências bibliográficas

BeredAy, G. Z. F. documents: sir Michael sadler’s “study of Foreign systems

RBHE 21.indd 34 4/10/2009 20:57:48

Page 35: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

35Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

of Education”. Comparative Education Review, p. 307-14, 1964.

blAisdell, B. Tolstoy as teacher: Leo tolstoy’s writings on education. New York: teachers and Writers collaborative, 2000.

clApArède, E. introduction. in: dewey, J. L’Ecole et l’enfant. Neuchatel/Paris: delachaux & Niestlé/Libraire Fischbacher, 1913.

cremin, L. a. American education: the colonial experience, 1607-1783. New York: Harper & Row, 1970.

debenAk, A. Vtisi iz učiteljske studijske ekskurzije po Čehoslovaški. Učiteljski tovaris, 10 i 11, 1933.

deleUze, G.; GUAttAri, F. What is philosophy? European perspectives. New York: columbia university Press, 1994.

Dirić, Z. Pedagogika Đona Đuia – Ed. Klapared. Učitelj 10, n. 6, p. 467-468, 1930.

GAtto, J. t. The underground history of American education: a schoolteacher’s intimate investigation into the problem of modern schooling. New York: oxford Village Press, 2001.

GrUzinski, s. The mestizo mind: the intellectual dynamics of colonization and globalization = La pensée métisse. New York: Routledge, 2002.

klApAred, E. (claparède). Pedagogija Đona Đuia. Trad. Milan Šević. Beograd: Izdanje Knjižarnice Rajkovića i Dukovića, 1920.

Ljubunčić, S. Naučno putovanje naših učitelja u Čehoslovačku. Napretka i Savremena Škole, n. 5 e 6, p. 141-44, 1933.

______. Školstvo i prosvjeta u Čehoslovačkoj: s osobitim obzirom na pedagošku i školsku reformu. In: ______. Biblioteka “Škole Rada”. Zagreb: Naklada a. Brusina Naslj, steiner, 1934.

meyer, J. W., rAmirez, F. o.; soysAl Y. N. World expansion of mass education, 1870-1970. Sociology of Education, n. 50, p. 128-149, 1992.

mUsil, F. Razvoj i današnje stanje Čehoslovačke didaktike. In: mAjstorovic, M. P. Pedagoška Čehoslovačka, 1918-1938. Beograd: izdanje Jugoslovenskog Učiteljskog Udruženja, 1938. p. 25-32.

nowAcki, T. Wstęp. In: hessenowA, M. (ed.). Sergiusz Hessen: Filozofia – Kul-

RBHE 21.indd 35 4/10/2009 20:57:48

Page 36: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

36 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

tura – Wychowanie. Wrocław: Polska Adademia Nauk, 1973.

osborne, M. a. Nature, the exotic, and the science of French colonialism, Science, technology, and society. Bloomington: indiana university Press, 1994.

______. acclimatizing the world: a history of the paradigmatic colonial science. Osiris, n. 15, p. 135-151, 2000.

phillips, d.; ochs, K. (eds.). Educational Policy Borrowing: historical perspec-tives. oxford: symposium Books, 2004.

popkewitz, t. s. introduction. in: ______. (ed.). Inventing the modern self and John Dewey: modernities and the traveling of pragmatism in education. New York: Palgrave Macmillan, 2005. p. xvii, 302.

rAmirez, F. o.; meyer, J. W. National curricula: world models and national historical legacies. in: cArUso, M.; tenorth, H.-E. (eds.). Internationalisierung / Internationalisation. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2002. p. 91-107.

rAppleye, J. theorizing educational transfer: toward a conceptual map of the context of cross-national attraction. Research in Comparative and International Education, v. 1, n. 3, p. 223-240, 2006.

rose, N. s. Powers of freedom: reframing political thought. cambridge/New York: cambridge university Press, 1999.

______. Politics of life itself: biomedicine, power and subjectivity in the twenty-first century. Princeton: Oxford: Princeton University Press, 2007.

sAdler, M. continuation schools in England & elsewhere: their place in the educational system of an industrial and commercial state. Publications of the University of Manchester. Educational series, n. 1, Manchester: university Press, 1907.

Sević, M. introduction. in: klApAred (claparède), E. Pedagogija Đona Đuia. Beograd: Izdanje Knjižarnice Rajkovića i Dukovića, 1920.

sobe, N. W. cultivating a ‘slavic modern’: Yugoslav Beekeeping, schooling and travel in the 1920s and 1930s. Paedagogica Historica, v. 41, n. 1+2, p. 145-60, 2005.

______. slavic emotion and vernacular cosmopolitanism: Yugoslav travels to czechoslovakia in the 1920s and 1930s. in GorsUch, a. E.; koenker, d. P. (eds.). Turizm: the Russian and East European tourist under capitalism and

RBHE 21.indd 36 4/10/2009 20:57:49

Page 37: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Noah W. soBE

37Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

socialism, edited by and diane P. ithaca: cornell univ. Press, 2006. p. 82-96.

______. Provincializing the worldly citizen: Yugoslav student and teacher travel and slavic cosmopolitanism in the interwar era. in: sieGel, K. Travel writing across the disciplines: theory and pedagogy. New York: Peter Lang, 2008.

steiner-khAmsi, G. Re-framing educational borrowing as a policy strategy. in cArUso, M.; tenorth, H.-E. (eds.). Internationalisierung / Internationalisation. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2002. p. 57-90.

steinmetz, G. The devil’s handwriting: precoloniality and the German colonial state in Qingdao, samoa, and southwest africa, chicago studies in practices of meaning. chicago: university of chicago Press, 2007.

stoler, a. L. Haunted by empire: geographies of intimacy in North american history, american encounters/global interactions. durham: duke university Press, 2006.

tröhler, d. Langue as Homeland: the Genevan reception of John dewey. in: popkewitz, t. s. (ed.). Inventing the modern self and John Dewey: modernities and the traveling of pragmatism in education. New York: Peter Lang, 2005. p. 61-84.

tyAck, d. B. Turning points in American educational history, Blaisdell book in education. Waltham: Blaisdell Pub. co., 1967.

učiteLj. Salih Ljubunčić: Školstvo i prosvjeta u Čehoslovackoj [book review]. Učitelj, 44, n. 3, p. 234-236, 1934.

Uher, J. Základy Americké Výchovy. Praha: Čin, 1930.

werner, M.; zimmermAnn, B. Beyond comparison: Histoire Croisée and the Challenge of Reflexivity. History and Theory, n. 45, p. 30-50, 2006.

Endereço para correspondência:Bruno Bomtempi Jr.

Rua Harmonia, 445, ap. 63são Paulo-sP

cEP 05425-000E-mail: [email protected]

RBHE 21.indd 37 4/10/2009 20:57:49

Page 38: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Entrelaçamentos e troca cultural na história da educação

38 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 13-38, set./dez. 2009

Noah W. sobe1227 West Lunt ave, apt 1a

chicago-iLusa

60626E-mail: [email protected]

Recebido em: 15 nov. 2008aprovado em: 28 maio 2009

RBHE 21.indd 38 4/10/2009 20:57:49

Page 39: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 39

Intelectuais e professores:

identidades sociais em formação no século XIX brasileiro1

*

arlette Medeiros Gasparello2

**

Heloisa de oliveira santos Villela3

***

Resumo:o artigo trata da formação da identidade social dos professores secundários na segunda metade do século XiX a partir da análise de dados sobre carreira docente, produção, atividades acadêmicas e interações sociais de 78 professores do colégio de Pedro ii, na corte, e da Escola Normal de Niterói, na província do Rio de Janeiro. A pesquisa identificou nesse período o processo de constituição de um grupo de intelectuais que passou a se reconhecer como professores, uma profissão que não os afastava do grupo de letrados, mas agregava uma conotação específica, o ofício de ensinar.

Palavras-chave:intelectuais; profissão docente; identidade social; professores secundários; professor/autor.

* uma primeira versão da temática abordada neste texto foi apresentada no iii con-gresso Brasileiro de História da Educação, em curitiba (PR), em novembro de 2004.

** doutora em história da educação pela Pontifícia universidade católica de são Paulo (Puc-sP) e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da universidade Federal Fluminense (uFF).

*** doutora em história da educação pela universidade de são Paulo (usP) e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da universidade Federal Fluminense (uFF).

RBHE 21.indd 39 4/10/2009 20:57:50

Page 40: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

40 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

Intellectuals and teachers:

social identities being developed in Brazil in the 19th century

arlette Medeiros Gasparello Heloisa de oliveira santos Villela

Abstract:the essay is about the formation of the social identity of high-school teachers during the second half of the 19th century. the study was based on information on the teaching career, academic production and activities, and social interactions of 78 teachers of the Pedro ii school, in the Neutral Municipality of Rio de Janeiro, and the Niterói Normal school, in the Province of Rio de Janeiro. our study pointed out the formation of a group of intellectuals that began identifying themselves as teachers, remaining men of letters, but aggregating a specific connotation, the activity of teaching.

Keywords:intellectuals; teaching profession; social identity; high school teachers; teacher/author.

RBHE 21.indd 40 4/10/2009 20:57:50

Page 41: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 41

talvez, então, possamos contribuir para que as nossas percepções do movimento social do passado sejam menos parciais do que tem sido até agora, inserindo a educação e a sua história nesse impulso constante de produção e reprodução antropológica do homem que é a própria história do seu saber [Fernandes, 2004, p. 804].

Introdução

as pesquisas sobre a formação docente no Brasil1 têm abordado quase que exclusivamente a formação de professores primários, de modo que uma referência à formação de professores é geralmente entendida como alusiva à formação do professor, ou das professoras desse nível de ensino. as contribuições de pesquisas históricas sobre a formação de professores secundários são escassas e analisam, sobretudo, os cursos das Faculdades de Filosofia instituídas no século XX que licenciavam os professores para as diferentes disciplinas do ensino secundário.

catani (2000, p. 586 passim), ao levantar dados relativos à produção histórica sobre a profissão docente no Brasil, verificou que embora seja significativo o número de estudos acerca da formação de professores, o termo “história da profissão docente” apareceu recentemente nos estudos da área. constatou também a incidência de uma periodização que toma como marcos momentos mais recentes. segundo a autora, nas teses e dissertações predominam análises cujo eixo central localiza-se na di-mensão “organização da categoria profissional e relações com o Estado”.

segundo catani (2000), no conjunto das teses e dissertações voltadas para o estudo da profissão, apenas uma – Educação como apostolado –, de Elza Nadai (1991), trata das representações, imagens e símbolos ela-borados por um grupo de professores que estudou ou atuou em escolas oficiais secundárias, normais e superiores entre os anos de 1930 e 1970.

1. a respeito da produção de estudos históricos sobre formação de professores consultar catani (2000) e tanuri (2000).

RBHE 21.indd 41 4/10/2009 20:57:50

Page 42: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

42 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

as demais não priorizam a formação do professor secundário, apenas a do professor primário, o que ratifica a quase inexistência de trabalhos significativos que focalizem a formação de quadros para o nível secun-dário de ensino.

Neste artigo apresentamos o processo de formação da identidade social do grupo de professores secundários na segunda metade do século XIX na Corte e na província fluminense com base nos dados sociocul-turais dos autores de livros didáticos2 do período. Nosso propósito foi acompanhar o processo de autoconstituição de um grupo socioprofis-sional a partir de suas experiências sociais no magistério secundário e superior e no interior de uma rede de sociabilidades. Essa questão foi desenvolvida na primeira fase de uma pesquisa3 que procura analisar, na produção didática dos professores secundários, o movimento instituinte de campos de saberes, como as disciplinas escolares e as novas formas de ensinar e aprender – ou seja, os conteúdos pedagógicos e os saberes específicos dos textos produzidos para o ensino no período 1860 a 1890.

consideramos que o estudo do modo de formação de uma identidade social exige uma perspectiva relacional na qual o historiador deve se interrogar sobre a experiência dos indivíduos em suas relações sociais, inscritas na “rede de compromissos, das expectativas e dos laços de re-ciprocidade que a vida em sociedade lhes impõe” (cerutti, 1998, p. 204). uma perspectiva, portanto, na qual o processo social que se efetiva está no centro da análise, na medida em que se preocupa em definir a expe-riência e o interesse dos atores no interior dos vínculos sociais, já que “o percurso dos indivíduos no interior de diferentes meios – a família, o trabalho, a vida social – desenha seu horizonte social” (idem, ibidem, p. 241). Nessa perspectiva, a pesquisa se orientou para a construção de

2. Na época, o termo mais usual no Brasil era compêndio. No século passado, firmou-se o uso da expressão livro didático, que engloba toda a produção que se destina ao ensino. Sobre livro didático e historiografia didática, ver, dentre outros, Bittencourt (1993), choppin (1991, 1992), Munakata (1997), Johnsen (1996) e Gasparello (2004).

3. A pesquisa obteve apoio financeiro e bolsas de iniciação científica da Fundação de amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (fAperj) e do conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

RBHE 21.indd 42 4/10/2009 20:57:50

Page 43: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 43

um perfil sociocultural do grupo em questão, com a utilização de diversas fontes, como biografias, enciclopédias, discursos, memórias e textos pu-blicados sobre os mesmos, além de documentos escolares das instituições em que os sujeitos da pesquisa tiveram atuação docente. dentre esses, os documentos e registros das secretarias das escolas, atas de reuniões, anuários, periódicos e impressos das instituições, atos e publicações dos órgãos da administração escolar.

Os lugares institucionais

selecionamos para análise dos sujeitos e suas práticas culturais o então Colégio de Pedro II (atual colégio Pedro ii) e a Escola Normal de Niterói, capital da província do Rio de Janeiro, por serem instituições reconhecidas como modelares nesse período e por seus professores pu-blicarem livros didáticos que se tornaram referências para outras escolas secundárias do país. tais livros produzidos para o ensino foram adotados pelos liceus provinciais e estabelecimentos secundários da corte e do império brasileiro por um longo tempo, em virtude do prestígio de seus autores e das instituições às quais estavam ligados4.

o Colégio de Pedro II foi fundado no período regencial, em 1837, com o objetivo de servir de modelo de instituição secundária. sua função como matriz de um curso regular de estudos seriados foi se fortalecendo, não sem retrocessos, ao longo do século XiX, em oposição aos tradi-cionais exames preparatórios, então em voga no país, que permitiam o acesso ao ensino superior, independente da exigência de comprovação de estudos secundários completos. o importante papel atribuído pelo gover-no imperial a essa instituição pode ser visto como a correspondência, na educação, ao processo de centralização política na construção do Estado nacional brasileiro, na medida em que o caráter de modelo fortaleceu a institucionalização de uma forma secundária no país, em consonância

4. sobre o ensino secundário e o colégio Pedro ii, consultar Haidar (1972), doria (1997), andrade (1999) e Gasparello (2004).

RBHE 21.indd 43 4/10/2009 20:57:51

Page 44: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

44 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

com a política de unidade nacional implementada pelo governo central. como assinala Gasparello (2004, p. 40), o Colégio de Pedro II, situado no Rio de Janeiro, construiu uma história institucional com forte traço de ligação com as outras regiões do império brasileiro:

o elemento simbólico de sua localização – a corte – era reforçado com o nome escolhido, o do imperador. Por sua vez, o próprio d. Pedro ii ajudou a fortalecer o caráter imperial do colégio – termo que em geral precedia a referência ao estabelecimento – estreitando sua ligação com o regime, ao pres-tigiar com sua presença e apoio as atividades do colégio [grifos do original].

Bernardo Pereira de Vasconcelos5, em seu discurso fundador, justifi-cara a iniciativa pela necessidade de um modelo de instrução secundária a ser seguido pelos demais estabelecimentos, orientação que alimentou a centralidade exercida pelo colégio nesse tipo de ensino. Por determinação constitucional6 competia às províncias legislar sobre a instrução primária e secundária, mas o governo imperial promoveu uma ação reguladora no setor, com a criação de dispositivos de controle do ensino secundário, como as regulamentações sobre os exames preparatórios7 e a instituição da categoria de colégios equiparados ao colégio de Pedro ii.

a Escola Normal de Niterói foi uma importante instituição de formação de professores no império. criada em 1835, exerceu grande influência nas decisões sobre a esfera educacional durante o século XIX. Segundo Mattos (1990), a província fluminense funcionou como um laboratório de práticas que eram estendidas a todo o país devido à supremacia que os políticos fluminenses exerciam em nível nacional e

5. a criação do imperial colégio deveu-se principalmente à iniciativa do ministro Bernardo Pereira de Vasconcellos, juntamente com o então regente araújo Lima. o discurso foi publicado no anuário n. 1 do colégio (sobre o assunto, ver, entre outros, doria, 1997, e andrade, 1999).

6. ato adicional de 1834. 7. Os exames preparatórios constituíram a principal via de acesso oficial ao ensino

superior e persistiu durante todo o império até a Primeira República, período em que a forma escolar secundária não estava completamente institucionalizada em todo o país como curso regular de ensino (cf. Haidar, 1972, Gasparello, 2004, entre outros).

RBHE 21.indd 44 4/10/2009 20:57:51

Page 45: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 45

cujas bases se encontravam em Niterói, capital da província do Rio de Janeiro. É interessante lembrar que a própria Corte só teria a sua primeira Escola Normal pública funcionando em 1881, quando a da província já fora criada há 46 anos.

o grupo político conservador que assumiu a liderança da província após a autonomia administrativa prevista pelo ato adicional de 1834 valorizou a criação de uma instituição de formação de professores. tal instituição foi vista como de importância fundamental para a difusão dos princípios de ordem e civilização pelos quais esse grupo lutava e ao seu projeto de direção política dos vários segmentos da população. Nesse sentido valorizaram a instrução destinada ao povo e a consequente formação dos agentes capazes de realizá-la (Villela, 1990).

a Escola Normal da província do Rio de Janeiro foi criada, então, com o objetivo de preparar professores para ensinar nas escolas primárias existentes e nas que seriam criadas a partir daquele projeto de expansão da instrução pública. desde o momento de sua criação, e por sua posição geográfica privilegiada de proximidade com a Corte em relação às de-mais províncias, exerceu por muitas décadas uma função de instituição paradigmática na formação de professores primários, contrapondo-se às práticas comuns de admissão de mestres leigos ao magistério público.

as duas instituições representam, com suas histórias, o movimento de institucionalização de dois campos importantes do universo educacio-nal brasileiro em construção no século XiX – o secundário e a formação de professores. apesar de suas diferenças de gênese e desenvolvimento, foram escolhidas como foco central de análise em razão de seus agentes fundamentais: os professores/autores de obras didáticas que, pela circuns-tância de atuarem muitas vezes em ambas as instituições e outras congê-neres de sua época, contribuíram com seus livros e aulas na construção das pedagogias e currículos das disciplinas escolares em formação, ao mesmo tempo em que vivenciavam um processo de autoformação de um grupo com identidade profissional ligada à docência.

No interior dessas instituições de ensino desenvolviam-se importan-tes movimentos instituintes relacionados às práticas culturais próprias aos processos escolares e às funções docentes, com a construção de

RBHE 21.indd 45 4/10/2009 20:57:51

Page 46: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

46 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

dispositivos pedagógicos que conformaram a instituição secundária e a formação de professores, dentre eles os estatutos, regulamentos, progra-mas e matérias escolares, exames, concursos, estudos seriados e novas formas de ensinar e aprender.

de qualquer modo, torna-se importante destacar as diferenças/se-melhanças marcantes que distinguem as duas instituições. o prestigioso colégio, ensino secundário de caráter humanista, era pago, para estudantes do sexo masculino que se destinavam aos estudos superiores; a Escola Normal era gratuita, para ambos os sexos, com um ensino de cunho pro-fissionalizante: o ofício de ensinar. A uni-las, o processo de consolidação da política imperial como elemento instituidor do secundário e do normal. Este último não era ensino primário nem se caracterizava como secundário, mas dele se aproximava por ser superior ao ensino elementar. ao mesmo tempo, dele se distinguia, por ser destinado a instruir os futuros mestres de ensino de primeiras letras e não a preparar candidatos aos cursos superiores, futuros membros da alta administração, como bacharéis e políticos, além de outras funções emergentes na burocracia estatal do país.

No período focalizado, constituído pelas últimas décadas do regi-me imperial, ocorreram transformações sensíveis no contexto político, cultural e econômico da sociedade brasileira. No setor educacional as mudanças incluíram o aumento do número de escolas8 e o estímulo go-vernamental à publicação de livros para o ensino, com o investimento do setor editorial nessa produção. Nesse período, o governo brasileiro implementou uma série de medidas e procedimentos que tiveram como objetivo solucionar um problema existente nas escolas e que representava um sério obstáculo ao bom andamento das questões ligadas à instrução pública: a falta de livros e outros materiais escolares. Essa questão foi objeto de preocupação do Estado, com uma série de medidas que sina-lizam os primeiros passos para a instituição de uma política pública do livro didático no Brasil (Gasparello, 2007).

8. Nas últimas décadas do Império houve um aumento significativo no número de escolas (de 3.561 para 7.500) e na proporção de escolas em relação à população (de 1,2 para 2,1) (Hallewell, 1985).

RBHE 21.indd 46 4/10/2009 20:57:52

Page 47: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 47

o Brasil oferecia condições e perspectivas atraentes para o estabele-cimento de firmas editoriais, com a estabilidade política e a receptividade crescente à cultura francesa, associada a tudo que representava progresso e civilização. das livrarias instaladas nessa época, algumas pertenciam a franceses, como Plancher ou Villeneuve, que emigraram e se estabe-leceram no Brasil e outras foram instaladas como filiais de firmas já existentes em Paris (Hallewell, 1985)9. É também a partir desse momento que as editoras se envolverão com a comercialização de obras de autores didáticos brasileiros – negócio que se tornará altamente lucrativo nas décadas seguintes –, respondendo a demanda do Estado que estimulava a elaboração de livros dedicados ao ensino e baseados nos programas oficiais. Nesse contexto, professores do Colégio de Pedro II e da Escola Normal da província fluminense passaram a elaborar compêndios a partir de suas experiências em sala de aula tornando-se, autores e suas obras, um material privilegiado para a análise das bases da pedagogia nacional em construção nesse momento. Em 1861, por exemplo, foi publicado o primeiro livro de história do Brasil por um professor do colégio Pedro ii, Lições de história do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo, que iniciou a linhagem dos professores/autores didáticos para a cadeira10 de história do colégio. Na Escola Normal, tal fato ocorreu com a publicação, em 1874, do Compêndio de Pedagogia do professor da 1a cadeira da escola, antonio Marciano da silva Pontes11.

9. A mais importante dessas firmas foi a Garnier Frères, que funcionou no Brasil de 1844 a 1934. Baptiste Louis Garnier parece ter sido o primeiro editor brasileiro a encarar a impressão e a edição como atividades completamente separadas, um princípio já usual em Paris e Londres (Hallewell, 1985).

10. o termo era utilizado para designar, ao mesmo tempo, uma especialidade dos estudos que constava dos programas oficiais e um cargo/função pública a ser assumido pelo respectivo professor – o catedrático – no colégio Pedro ii, nos estabelecimentos equiparados e nos institutos superiores, como: cadeira de História e Geografia; cadeira de Corografia e História do Brasil; cadeira de Latim (Gasparello, 2004).

11. a obra foi organizada a partir de apostilas que eram ditadas aos alunos. a primeira edição do Compêndio de Pedagogia é de 1874, segundo afirmam os relatórios do diretor da Escola Normal de Niterói nesse período. Entretanto, até o momento, as duas primeiras edições não foram localizadas, apenas a terceira, que é de 1881, editada pela Tipografia do Fluminense (Villela, 2002).

RBHE 21.indd 47 4/10/2009 20:57:52

Page 48: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

48 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

Intelectuais e professores

as formas de pensar e agir dos intelectuais/professores com base em um contexto histórico e cultural específico constituem-se como problema que pode ser situado nos domínios da história da educação em diálogo com as contribuições de uma nova história intelectual. Nesse aspecto, im-porta destacar que a perspectiva da nova história intelectual diferencia-se da tradicional história das ideias e possibilita diferentes enfoques, como o dos contextos de produção de ideias, dos agentes socioprofissionais e das correntes de pensamento. dessa forma, tal problemática, de interesse para pesquisadores em educação, abre-se para a construção de interfaces com a história cultural, a história das ideias e a história dos intelectuais12.

A historiografia contemporânea na perspectiva cultural tem subli-nhado que as palavras não são unicamente um reflexo (descrição ou representação) da realidade, mas são instrumentos que produzem e que transformam a realidade. daí a necessidade de ver a linguagem como um sistema que se acha no centro do debate sobre identidade (pessoal, social, coletiva), de maneira a poder ter em conta a dimensão literária da experiência social (Nóvoa, 1997; Hunt, 1992).

A figura do professor como intelectual no século XIX tornou-se uma questão histórica a ser trabalhada e nosso interesse voltou-se para estu-dos que tratassem da emergência do intelectual na sociedade moderna13 e da formação da identidade social do grupo de letrados. tais estudos permitiram a compreensão da gênese e desenvolvimento de diferentes expressões associadas à formação do grupo de letrados e intelectuais.

De acordo com a significativa contribuição de Burke (2003), na segunda metade do século XVii a identidade de grupo dos letrados se tornava cada vez mais forte, embora com diferenciações e conflitos no seu interior. o autor esclarece que desde meados do século XViii foi marcante o aparecimento, em muitas partes da Europa, de um grupo de homens de letras que se distinguiam por serem

12. sobre as questões da nova história intelectual, cf. Lopes (2003) e dosse (2002).13. Principalmente em Burke (2003), sirinelli (1996), Lopes (2003) e Marletti (1993).

RBHE 21.indd 48 4/10/2009 20:57:52

Page 49: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 49

mais ou menos independentes, com idéias políticas próprias, concentrados em algumas cidades importantes, sobretudo Paris, Londres, amsterdã e Berlim, e em contato regular entre si [Burke, 2003, p. 34, grifos nossos].

a publicação de algumas obras e um número crescente de revistas eruditas ou culturais construiu uma identidade ao seu público leitor14. É interessante destacar aqui que no início do século XVIII, a imprensa gerou o aparecimento de novas profissões: o termo “jornalista” passou a ser usado em francês, inglês e italiano para nomear os que escreviam em revistas cultas ou literárias, enquanto a expressão “gazetiers”, de menor status, designava os que relatavam as notícias diárias ou semanais. outros indícios do desenvolvimento de uma autoconsciência coletiva estariam nas publicações como as coleções de biografias de homens de saber15 e em afirmações como “os estudiosos em ação eram tão livres quanto os governantes”, de um crítico alemão da época. Na Enciclopédia, um verbete sobre Gens de lettres afirmava que o grupo dos letrados não era formado por especialistas estritos, mas pessoas “capazes de abordar diferentes campos ainda que não possam cultivá-los em sua totalidade”. uma expressão que remonta ao século XV e que passou a ser cada vez mais utilizada de meados do século XVII em diante para autodefinição dos homens de saber foi a de “cidadãos da República das Letras” (Burke, 2003, p. 33).

Na França, o termo intellectuel, provavelmente em uso em círculos literários e políticos só teve sua oficialização de nascimento em 1898, no célebre Manifeste des intellectuels, tendo em vista o caso dreyfus. Uma característica ligada ao perfil do intelectual que se fortaleceu daí em diante foi o uso da retórica e seu prestígio social para tomadas de

14. como o Journal des Savants (1665), as Philosophical Transactions (1665), da Royal society, o Giornale de’letterati (1668), de Roma, além de outras. Entre as obras, constam O homem de letras (1645, muito re-editado e traduzido), do jesuíta italiano daniele Bártoli, ou o “ensaio” do Marquês d’alembert sobre o mesmo tema (1752) (Burke, 2003).

15. uma das coleções foi Dicionário dos homens de saber, publicada em 1715, do professor Johann Burchard Menckem (Burke, 2003).

RBHE 21.indd 49 4/10/2009 20:57:53

Page 50: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

50 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

posição sobre as questões sociais do seu tempo e na defesa de valores universais como a verdade e a justiça.

sobre o aparecimento dos intelectuais como grupo, as pesquisas no campo têm indicado que os principais fundamentos que caracterizam o intelectual contemporâneo já estariam presentes no século XViii, em oposição à tradicional ênfase na gênese do intelectual datando de fins do século XIX. Um significado mais recente em relação ao intelectual, o de intervir na realidade política e social de seu tempo, já se encontraria, por exemplo, na atuação de Voltaire, embora a palavra “intelectual” ainda não existisse nesse sentido (Lopes, 2003)16.

de qualquer forma, no decorrer da segunda metade do século XiX era visível a existência de um grupo com atividades diversificadas, mas próprias aos homens de letras – escritores, críticos, historiadores, jornalis-tas, bibliotecários, professores – que formavam redes de sociabilidade em bibliotecas, livrarias, associações científicas, culturais e literárias, além do intercâmbio de ideias na imprensa e por correspondências – construíam, em comum, certas características intrinsecamente ligadas à identidade do grupo e que serviram para reforçar as solidariedades e vínculos sociais. além disso, eram estreitamente associados a certa independência na rea-lização das suas atividades e à noção de liberdade na expressão de suas posições intelectuais e políticas, como letrados e homens de saber.

Uma identidade social: letrados e professores secundários

Para este trabalho, foram pesquisados 78 sujeitos, sendo 28 da Escola Normal e 50 do colégio de Pedro ii. Foram obtidos dados mais completos

16. de acordo com o Dicionário de política de Bobbio (1993) e o Novo Aurélio século XXI (Ferreira, 1999), o adjetivo latino intellectualle teve sua primeira forma de substantivação na metade do século XiX na língua russa, com o termo inteligentcija, que em seguida foi traduzido para várias línguas europeias (um aprofundamento dessa temática pode ser encontrado em Marletti, 1993; sirinelli, 1996; Lopes, 2003).

RBHE 21.indd 50 4/10/2009 20:57:53

Page 51: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 51

relativos a 53 docentes (16 da Escola Normal e 37 do colégio Pedro ii). os dados reunidos sobre a carreira docente, produção e atividades desses professores permitiram construir algumas indicações sobre a formação desse grupo, com base nas duas instituições.

Em relação à formação, verificamos que a maior parte dos professo-res secundários no período era formada por médicos, juristas e bacharéis em letras, título obtido pelos diplomados pelo curso secundário completo no colégio Pedro ii ou em estabelecimentos equiparados17.

É interessante destacar a investigação de Bessone (1999), que traz contribuições importantes sobre o grupo de pessoas ligadas ao mundo dos livros nesse período. a autora analisa que “status, educação, riqueza e influência política enfeixavam-se em poucas mãos, numa cidade como o Rio de Janeiro na virada do século XIX” e que “as profissões, os nomes, os livros e as fortunas eram geralmente herdados em conjunto” (Bessone, 1999, pp. 28-38). seu estudo demonstra que advogados e médicos eram as categorias socioprofissionais com grande participação no conjunto das atividades político-administrativas brasileiras. Embora a autora não faça referência à atuação desses sujeitos como professores, identificamos dentre eles os nomes de professores secundários que fizeram parte de nosso estudo (e que também de acordo com nossos dados, a maior parte era formada por médicos e doutores em ciências jurídicas).

dentre os que exerciam o magistério no Colégio de Pedro II, encontra-se maior concentração de formados em medicina, seguindo-se os de formação jurídica, os bacharéis em ciências físicas e naturais e bacharéis em matemáticas e ciências físicas – que atuavam no quadro de formação científica do currículo. No entanto, devemos ressaltar a predominância da formação humanística, uma vez que a maioria dos diplomados em cursos superiores possuía também o título de bacharel em letras.

17. o título de bacharel em letras dava direito ao ingresso nos cursos superiores sem exigência de exame. inicialmente tal privilégio (como era considerado) era exclusivo dos alunos aprovados após os sete anos do curso secundário do colégio de Pedro ii, mais tarde estendido a outros estabelecimentos e liceus provinciais equiparados ao colégio (Haidar, 1972; Gasparello, 2004).

RBHE 21.indd 51 4/10/2009 20:57:53

Page 52: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

52 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

Em relação à Escola Normal de Niterói, houve maior incidência de professores oriundos desse mesmo tipo de instituição (Escola Normal), seguindo-se os formados em medicina, direito, e os titulados como ba-charel em letras pelo colégio de Pedro ii. aparecem ainda outros tipos de formação, como: militar, engenheiro químico, seminarista, agrônomo e um formado pela academia de Belas artes. Mesmo levando-se em conta a insuficiência de dados sobre 12 desses professores, inferimos que sua formação tenha sido em humanidades, com estudos literários segundo o paradigma vigente de cultura clássica, e que caracterizava a formação dos que obtinham o título de bacharel em letras do colégio de Pedro ii ou nos cursos dos liceus provinciais ou seminários.

alguns professores do Colégio de Pedro II e da Escola Normal exerciam o magistério em ambas as instituições e muitos atuavam ainda em outras como, por exemplo, academia Militar, Mosteiro de são Bento, Faculdade de Medicina, Escola Normal da corte, Liceu de campos, Li-ceu de artes e ofícios e colégio abílio. Em relação ao colégio, alguns professores lecionavam ainda na Escola Nacional de Belas artes, na Faculdade Livre de ciências sociais e Jurídicas, Ginásio Brasileiro e instituto comercial.

uma característica do grupo estudado foi a pluralidade de lugares de inserção social de suas atividades, como: políticos (deputados provinciais, governadores, ministros); membros do conselho superior de instrução pública; promotores, delegados, juízes, e ainda cargos ou funções em estabelecimentos de ensino públicos, particulares e religiosos.

Quanto à origem social e às redes de relacionamentos dos profes-sores das duas instituições focalizadas, foi possível perceber um per-tencimento a uma rede de sociabilidades que de alguma forma facilitou a trajetória profissional. Por exemplo, ser ex-aluno do Colégio e da Escola Normal, filho de desembargador, sobrinho de clérigo impor-tante, filho de políticos, de titular de nobreza, de professor do Colégio de Pedro ii, de funcionário público, de família de educadores donos de colégio, genro de político de destaque etc. Essa rede de sociabilidades era ainda mais visível, com professores (e alunos) ligados a membros em posições privilegiadas e pertencentes à alta administração educa-

RBHE 21.indd 52 4/10/2009 20:57:54

Page 53: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 53

cional e política, além do reconhecimento social por suas atividades intelectuais, literárias ou científicas.

No caso das mulheres professoras, as raras referências biográficas que existem limitam-se a mencionar sua condição de “nora de professor da Escola Normal”, “esposa de alto funcionário e político da província”. No imperial colégio, o ingresso de alunos, professores e funcionários ocorria exclusivamente entre indivíduos do sexo masculino.

Em ambas as instituições, muitos professores eram detentores de títulos honoríficos como: Cavaleiro, Oficial ou Comendador da Imperial ordem da Rosa e comendador da ordem de cristo. os lugares de socia-bilidade completavam-se nas instituições científicas, culturais e literárias do Rio de Janeiro, de outras províncias e até do exterior, como membros e sócios fundadores. dentre as principais, podemos citar: o instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Sociedade Propagadora de Belas artes, a Real academia de ciências de Lisboa, o instituto Fluminense de agricultura, a sociedade auxiliadora de instrução e aclimação e a academia Brasileira de Letras18.

18. Como exemplo, citamos: dr. Francisco Marques de Araújo Góes, médico, filho de desembargador; membro titular da academia Nacional de Medicina, membro da sociedade Médica do Rio de Janeiro, cavaleiro da ordem da Rosa e da ordem Portuguesa de Cristo; foi moço fidalgo da Casa Imperial e adjunto à Inspetoria Geral de Higiene, professor de história natural do colégio d. Pedro ii; dr. Franklin américo de Menezes doria, Barão de Loreto, professor de retórica e poética do colégio, doutor em direito, exerceu funções de promotor, delegado e juiz; depu-tado provincial pela Bahia, governador do Piauí, do Maranhão e de Pernambuco; foi ministro da Guerra e do império no último gabinete da Monarquia; dr. carlos Maximiano Pimenta de Laet, bacharel em letras, engenheiro geógrafo, professor de português, geografia e aritmética, foi deputado pelas províncias de Paraíba e Goiás, atuou em vários periódicos e revistas; Joaquim Mendes Malheiros, professor de história e geografia do Pedro II e da Escola Normal de Niterói, deputado pela província do Mato Grosso, amigo íntimo de Gaspar da silveira Martins, parlamentar gaúcho; Ernesto de Souza e Oliveira Coutinho. professor de história e geografia da Escola Normal de Niterói, estudou humanidades em Fontenay-aux-Roses, foi deputado da assembleia Legislativa, 1o cirurgião da armada por serviços prestados na campanha do Paraguai, cavaleiro da ordem de cristo e comendador da ordem da Rosa, filho de Aureliano de Souza Coutinho, Visconde de Sepetiba.

RBHE 21.indd 53 4/10/2009 20:57:54

Page 54: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

54 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

Quanto à produção literária, a maioria dos professores (84%) do imperial colégio estava ligada ao mundo da escrita como autores de livros (didáticos ou não) e de crônicas, artigos de crítica, poesias, artigos e outros no jornalismo literário e em periódicos19.

No período estudado, 84% dos professores foram autores, conjugan-do obras literárias, científicas e didáticas. 43% escreveram e publicaram obras literárias como romances, poesias, crônicas, artigos, e livros didá-ticos; 22% publicaram outro tipo de obras não voltadas para o ensino, e 19% escreveram apenas obras didáticas.

um campo muito frequentado foi o das traduções – de obras didáti-cas, literárias ou científicas – principalmente por aqueles que já participa-vam do campo literário, seja com obras ficcionais quanto não-ficcionais.

Na Escola Normal, 56% dos professores publicaram obras, sendo que 42% foram autores de obras didáticas; 14% escreveram livros não didáticos, com uma pequena incidência de produção nos dois gêneros.

Nesse período, a formação de quadros para o magistério secundário e superior foi uma função importante do Colégio de Pedro II, onde se verificou a preferência pelos seus ex-alunos, em geral indicados pelos catedráticos para professores substitutos e que mais tarde poderiam tornar-se catedráticos por meio de concursos públicos: 17% dos professores eram bacharéis em letras pela instituição; 62% destes foram autores, tanto de obra didáticas, quanto de obras literárias ou científicas. Foi um período no qual observamos o surgimento de uma prática recorrente: a volta dos ex-alunos à instituição como professores, o que contribuiu para fortalecer um processo de forma-ção de um grupo identificado com a docência e com a cultura escolar. Uma cultura que privilegiava a tradição e a retórica, segundo o modelo de cultura clássica que aos poucos irá cedendo lugar às novas ideias sobre o ensino e a sociedade. um processo no qual os professores, através de seus escritos e do ensino, tiveram participação ativa e fundamental.

19. os professores do colégio Pedro ii que mais escreveram foram os das cadeiras de história, geografia e corografia do Brasil (relacionadas e por vezes lecionadas conjuntamente) – traço da importância do caráter de humanidades na formação desses sujeitos.

RBHE 21.indd 54 4/10/2009 20:57:54

Page 55: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 55

Considerações finais

os intelectuais/professores além de atuarem no magistério publi-cavam diferentes gêneros literários, sendo o livro didático mais um deles nessa produção. o grupo dos professores que atuavam no ensino secundário e superior circulava em estruturas de sociabilidade geridas no interior das instâncias educacionais, culturais e administrativas. dessa forma, constituíam um seleto círculo de intelectuais/professores que exerciam funções docentes nas principais instituições educacionais públicas e particulares do Rio de Janeiro na segunda metade do século XiX. Foi comum tais professores desenvolverem atividades na imprensa, em jornais e periódicos, com artigos, crítica literária e outros. associa-ções ou instituições culturais e científicas. Associações ou instituições culturais e científicas, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a academia Brasileira de Letras e outras, foram espaços de convivência que também criavam estruturas de sociabilidade e redes de solidariedade comuns e reforçava a formação de uma identidade de grupo.

os professores secundários construíram ainda uma identidade associada à participação ativa em setores administrativos da instrução pública, em bancas de exames20 e outras funções ligadas ao ensino público e particular, além da responsabilidade social que assumiram como auto-res de livros didáticos. a publicação de livros para o ensino contribuiu para que suas aulas fossem de certa forma, reproduzidas e recriadas na pluralidade das instituições educacionais que os adotaram.

Nesse período é ainda possível perceber uma diferenciação do grupo de professores por gênero e tipo de instituição. os docentes do imperial colégio secundário eram todos homens e pertenciam ao círculo de intelectuais. Em contrapartida, entre os docentes da Escola Normal verifica-se o início da participação feminina21. No entanto, o reconheci-

20. a participação em bancas de exames não se limitava ao campo do ensino, como o de tribunal de Exames dos Preparatórios e outros, mas também na participação em bancas de seleção para cargos ou funções públicas.

21. Quando, em 1877, resolveram bipartir a Escola Normal em masculina e feminina,

RBHE 21.indd 55 4/10/2009 20:57:54

Page 56: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

56 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

mento social da mulher professora deve-se mais pelo seu pertencimento familiar, que a identifica, do que por uma provável distinção de escola-ridade ou traço intelectual. assim, a discriminação por gênero está bem clara na divisão de funções e de status conferido aos docentes, entre professoras da Escola Normal e professores do ensino secundário e da Escola Normal. uma situação que leva a marca da sociedade hierárquica e dominada por homens: as professoras situadas em patamar inferior ao status de intelectuais, sendo principalmente reconhecidas pela maior ou menor proximidade social com os indivíduos que se notabilizavam por funções de autoridade política ou intelectual.

Concluímos, no entanto, que podemos identificar, embora com as diferenciações apontadas, um processo inicial da formação de identidade social dos professores secundários. um grupo cuja procedência social era vinculada à cultura letrada e que teve sua trajetória construída no interior de uma rede de vínculos sociais e experiências socioprofissionais. Esse grupo passou a se definir e se reconhecer como professores, uma profissão intelectual que não os afastava do grupo de letrados, mas que agregava uma conotação específica – o ofício de ensinar – com suas funções correlatas: produzir livros didáticos, relatórios, participar de bancas de exames, res-pondendo ao desafio constituído por demandas institucionais, burocráticas, pedagógicas e sociais que confluíam para o campo do ensino.

Referências bibliográficas

AlmeidA, J. s. de. Vestígios para uma reinterpretação do magistério femininino em Portugal e Brasil. in: soUzA, R. F. de; vAldemArin, V. t.; AlmeidA, J. s. de.

foram admitidas como interinas as professoras Joana carolina dutra e Maria da Glória Vasconcellos de Loureiro, ex-alunas formadas pela escola nos anos anteriores. Em seguida abriram concurso para as três cadeiras da escola, mas só se candida-taram as interinas e mais uma candidata. Por três vezes reabriram as inscrições, mas o quadro se repetiu. o fenômeno da feminização da Escola Normal esperou pelo século XX, como demonstram principalmente estudos de demartini (1991), almeida (1998) e Villela (2002).

RBHE 21.indd 56 4/10/2009 20:57:55

Page 57: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 57

O legado educacional do século XIX. araraquara: Unesp/Faculdade de ciências e Letras, 1998.

AndrAde, V. L. c. de Q. Colégio Pedro II. um lugar de memória. tese (dou-torado em História social) – Programa de Pós-Graduação em História social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.

bessone, t. M. Palácios de destinos cruzados: bibliotecas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. Rio de Janeiro: arquivo Nacional, 1999.

bittencoUrt, c. M. F. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e ciências Humanas, universidade de são Paulo, são Paulo, 1993.

bobbio, N. Dicionário de política. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. trad. carmem c. Variale et al. 5. ed. Brasília: Editora universidade de Brasília, 1993. p. 637-640.

bUrke, P. História social do conhecimento: de Gutenberg a diderot. trad. Plínio dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

cAtAni, D. B. Estudos da profissão docente. In: lopes, E. M. t.; fAriA filho, L. M. de; veiGA, c. G. (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: autêntica, 2000. p. 585-599.

cerUtti, s. a construção das categorias sociais. in: boUtier, J.; jUliA, d. (orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora uFRJ/Editora FGV, 1998. p. 233-242.

choppin, a. (dir.). Le manuel scolaire en cent références. Paris: institut National de Recherche Pédagogique, 1991.

______. Les manuels scolaires: histoire et actualité. Paris: Hachette Éducatión, 1992.

demArtini, Z. de B. Magistério primário no contexto da 1a República: relatório de pesquisa. são Paulo: Fundação carlos chagas, 1991.

doriA, E. Memória histórica do Colégio de Pedro Segundo (1837-1937). 2. ed. Brasília: inep, 1997.

dosse, F. o método histórico e os vestígios memoriais. in: morin, E. (dir.). A religação dos saberes. O desafio do século XXI. Jornadas Temáticas (Paris,

RBHE 21.indd 57 4/10/2009 20:57:55

Page 58: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

58 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

1998). trad. Flávia Nascimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 395-407.

fernAndes, R. a história da educação e o saber histórico. in: felGUeirAs, M. L.; menezes, M. c. (orgs.). Rogério Fernandes: questionar a sociedade, interrogar a história, (re)pensar a educação. Porto: afrontamento, 2004. p. 789-805.

ferreirA, a. B. de H. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

GAspArello, a. M. Construtores de identidades: a pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. são Paulo: iglu, 2004.

______. o livro didático como questão pública no império brasileiro. in: sim-pósio nAcionAl de históriA, 24., são Leopoldo, 2007. Anais... são Leopoldo: unisinos, 2007.

GoUveiA, M. C. Mestre: profissão professor(a) processo de profissionalização docente na província mineira no período imperial. Revista Brasileira de História da Educação, campinas: autores associados, n. 2, p. 39-58, jul./dez. 2001.

hAidAr, M. de L. M. O ensino secundário no império brasileiro. são Paulo: EdusP/Grijalbo, 1972.

hAllewell, L. O livro no Brasil (sua história). são Paulo: t. a. Queirós/EdusP, 1985.

hUnt, L. apresentação: história, cultura e texto. in: ______. A nova história cul-tural. trad. Jefferson Luiz camargo. são Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 1-29.

johnsen, E. B. Livros de texto en el calidoscopio: estudio crítico de la literatura y la investigacion sobre los textos escolares. Barcelona: Ediciones Pomares-corredor, 1996.

lopes, M. a. Pena e espada: sobre o nascimento dos intelectuais. in: ______. (org.). Grandes nomes da história intelectual. são Paulo: contexto, 2003. p. 39-48.

mArletti, c. intelectuais. in: bobbio, N.; mAtteUcci, N.; pAsqUino, G. (orgs.). Dicionário de política. trad. carmen c. Varriale et al. 5. ed. Brasília: Editora da universidade de Brasília, 1993. V. 1.

mAttos, i. R. de M. o tempo saquarema: a formação do estado imperial. 2. ed. são Paulo: Hucitec, 1990.

RBHE 21.indd 58 4/10/2009 20:57:56

Page 59: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

arlette Medeiros GasPaRELLo e Heloisa de oliveira santos ViLLELa

Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009 59

miceli, s. Intelectuais à brasileira. são Paulo: companhia das Letras, 2001.

mUnAkAtA, K. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. tese (doutorado em História e Filosofia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, são Paulo, 1997.

nAdAi, E. A educação como apostolado. tese (doutorado em Educação) – uni-versidade de são Paulo, são Paulo, 1991.

nóvoA, a. La nouvelle histoire américaine de l’éducation. Histoire de L’Éducation. Service d’histoire de l’éducation, Paris: institute National de Recherche Pédagogique (iNRP), n. 73, p. 3-48, jan. 1997.

silvA, H. R. da. a história intelectual em questão. in: lopes, M. a. (org.). Grandes nomes da história intelectual. são Paulo: contexto, 2003. p. 15-25.

silvA, V. B. da. uma história das leituras para professores: análise da produção e circulação de saberes especializados nos manuais pedagógicos (1930-1971). Revista Brasileira de História da Educação, campinas: autores associados, n. 3, p. 29-58, jul./dez. 2006.

sirinelli, J.-F. os intelectuais. in: rémond, R. (org.). Por uma história política. trad. dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora uFRJ, 1996.

tAnUri, L. M. História da formação de professores. Revista Brasileira de Edu-cação, campinas, n. 14, p. 61-88, maio/ago. 2000.

villelA, H. de o. s. A primeira escola normal do Brasil: uma contribuição à história da formação de professores. dissertação (Mestrado em Educação) – universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990.

______. Da palmatória à lanterna mágica: a Escola Normal da província do Rio de Janeiro entre o artesanato e a formação profissional (1868-1876). Tese (doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, universidade de são Paulo, são Paulo, 2002.

Endereço para correspondência:arlette Medeiros Gasparello

Rua santo inácio, 46 – são FranciscoNiterói-RJ

cEP 24360-580E-mail: [email protected]

RBHE 21.indd 59 4/10/2009 20:57:56

Page 60: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

intelectuais e professores

60 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 39-60, set./dez. 2009

Heloisa de oliveira santos VillelaRua Francisco Pimentel, 35/901 – ingá

Niterói-RJcEP 24210-460

E-mail: [email protected]

Recebido em: 18 mar. 2008aprovado em: 5 maio 2008

RBHE 21.indd 60 4/10/2009 20:57:56

Page 61: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

61Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

cynthia Greive Veiga*1

Resumo:o artigo propõe-se a investigar as mudanças nas concepções e práticas de disciplina e comportamento de alunos e professores na escola, entendendo-se que estas se fizeram numa direção específica rumo à civilização dos costumes, como desenvolvido por Norbert Elias. a investigação situa-se no primeiro centenário de regulamentação da escola pública primária no Brasil, 1827 e 1927, com enfoque para a província e depois estado de Minas Gerais. Minha hipótese é de que houve historicamente um importante esforço para as mudanças nas relações entre alunos e professores, com a superação das ações de violência na escola e isso se refere principalmente a alterações na dinâmica de interdependência entre adultos e crianças. Portanto, é no enfoque das relações intergeracionais que se desenvolve o estudo.

Palavras-chave:escolarização; civilização; comportamento; interdependência; geração.

* Professora associada da Faculdade de Educação da universidade Federal de Minas Gerais (uFMG), membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação (Gephe) e do Grupo de Pesquisa Processos civilizadores.

RBHE 21.indd 61 4/10/2009 20:57:56

Page 62: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

62 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

Preparation of civilized habits in the constitution of relations between

teachers and students (1827-1927)

cynthia Greive Veiga

Abstract: the paper reports on the investigation of the process of change of the conceptions and practice of disciplines and the students’ and teachers’ behaviors based on the supposition that these changes occurred towards the civilization of costumes, as proposed by Norbert Elias. the object of this investigation was the elementary public school organization in Brazil during the first one hundred years of its regulation that is, between 1827 and 1927, first focused on the province and later on Minas Gerais state. My hypothesis is that historically, there was an important effort to change the student-teacher relations, or even to overcome violent actions at school, particularly the changes in the adult-child interdependence dynamics. therefore, this study focuses on intergenerational relations.

Keywords:schooling; civilization; behavior; interdependence; generation.

RBHE 21.indd 62 4/10/2009 20:57:57

Page 63: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

63Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

[...] isto me pareceu desarrazoado: exigiam de mim trabalho inútil. Mas obedeci. obedeci realmente com satisfação. aquela brandura, a voz mansa, a consertar-me as barbaridades, a mão curta, a virar a folha, apontar a linha, o vestido claro e limpo, tudo me seduzia [Graciliano Ramos, 1993, pp. 109-108].

assim Graciliano Ramos (1892-1953) relata sobre suas memórias de infância, quando na cidade de Buíque (PE) em fins do século XIX recebia as lições de primeiras letras de d. Maria, “uma senhora baixinha, gordinha, de cabelos brancos” e ainda por cima cheirosa (Ramos, 1993, p. 107). também de acordo com o autor, “d. Maria representava para nós essa grande ave maternal – e, ninhada heterogênea, perdíamos, na tepidez e no aconchego, os diferentes instintos de bichos nascidos de ovos diferentes” (Ramos, 1993, p. 114).

as boas lembranças de sua primeira professora contrastam com o registro da memória de muitas outras pessoas, e até dele mesmo ao re-latar sobre a experiência com aqueles que lhe propiciaram os primeiros contatos com as letras. a começar de seu pai, pois segundo Graciliano muitas das vezes “excedera-se em punições por causa de duas letras” (Ramos, 1993, p. 102). Diz ainda que num certo dia confirmou-se a ameaça feita pelos adultos da casa em momentos de zanga – iria para a escola! assim relata:

a escola, segundo informações dignas de crédito, era um lugar para onde se enviavam crianças rebeldes [...] certamente haveria uma tábua para desconjuntar-me os dedos, um homem furioso a bradar-me noções esquivas. Lembrei-me do professor público, austero e cabeludo, arrepiei-me calculan-do o vigor daqueles braços. Não me defendi, não mostrei as razões que me fervilhavam na cabeça, a mágoa que me inchava o coração. inútil qualquer resistência [Ramos, 1993, p. 104].

Na literatura, trazer nas memórias de infância lembranças de sen-timentos negativos em relação aos mestres e a escola não é raro. Por exemplo, ana Maria de oliveira Galvão (1998) ao analisar as obras do paraibano José Lins do Rego (1901-1957) também observa a presença

RBHE 21.indd 63 4/10/2009 20:57:57

Page 64: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

64 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

de forte tensão na descrição da escola. de acordo com a autora “casa de correção, sanatório, prisão eram alguns nomes para denominar a escola. amansar, endireitar, consertar são alguns dos verbos utilizados para falar da ação escolar” (Galvão, 1998, p. 121). observa-se ainda que na maioria das vezes eles estão associados a uma experiência nada positiva na relação com o conhecimento.

Entretanto, tais tensões não estão relegadas ao passado, pois no tempo presente o ambiente afetivo das escolas continua sendo motivo de tensões e preocupação de pais, educadores e alunos. Em reportagem recente, dados do instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Pedagógicas (inep), confirmam que problemas de comportamento e violência são comuns tanto nas escolas públicas como nas particulares lado a lado a outros tais como problemas financeiros e de recursos pedagógicos (Folha de S.Paulo, 11 fev. 2008, cotidiano, p. 4). Na mesma matéria, um membro da entidade que representa os diretores de escolas de são Paulo (Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério Oficial do Estado de são Paulo – Udemo) Luiz Gonzaga Pinto chega a afirmar que “Na escola que não tem uma condução firme, o aluno arrebenta com o professor”.

ao que tudo indica, violência nas relações entre alunos e professores, existência de sentimentos de repulsa a escola e inclusive a desqualificação da função de professor em nossa sociedade, parece ter sido algo frequen-te na história da educação, ainda que os conflitos fossem diferentes a cada tempo. Essa constatação instiga-nos a refletir sobre o processo das alterações das condutas de alunos e professores no passado, dando-se destaque aqui as próprias mudanças nas relações entre adultos e crianças. Portanto, em sendo uma investigação histórica pretende-se analisar a constituição dessas relações no âmbito da organização da escola pública primária no Brasil durante o primeiro centenário de sua regulamentação, ou seja, entre 1827 e 1927, com enfoque para a província e depois estado de Minas Gerais.

dessa maneira propõe-se a analisar o processo de mudança nas con-cepções e práticas de disciplina e comportamento de alunos e professores na escola, entendendo-se que estas se fizeram numa direção específica

RBHE 21.indd 64 4/10/2009 20:57:57

Page 65: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

65Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

rumo à civilização dos costumes, como desenvolvido por Norbert Elias (1993). Minha hipótese é de que houve historicamente um importante esforço para as mudanças nas relações entre alunos e professores, ou mesmo de superação das ações de violência na escola e isso se refere principalmente a alterações na dinâmica de interdependência entre adul-tos e crianças. Portanto é no enfoque das relações inter geracionais que pretendo desenvolver minha análise.

Este texto organiza-se em três itens, num primeiro são apresentadas algumas questões mais teóricas sobre o processo civilizador, relações de interdependência e violência, refletindo que a crescente racionalização dos impulsos e desejos humanos gerou uma grande tensão culminada numa economia dos afetos; em seguida serão discutidas as primeiras iniciativas de elaboração de prescrições homogêneas quanto a proce-dimentos de conduta e comportamento de alunos e professores e as dificuldades quanto à superação da prática de violência física contra os alunos, especialmente entre o período de 1827 e 1906 (ano este em que se organizam os grupos escolares em Minas Gerais); no terceiro item pretende-se explorar as prescrições de conduta civilizada de 1906 a 1927, bem como discutir as alterações pedagógicas (métodos, objetos, espaço, currículo) que contribuíram para a busca de uma pacificação das relações, ainda que indicassem para novas tensões.

Civilização e violência

Norbert Elias (1993), ao investigar sobre o desenvolvimento do pro-cesso civilizador na Europa, observa que tal dinâmica foi caracterizada pelas alterações do comportamento das pessoas na sociedade, integra-das também a profundas mudanças políticas e econômicas ocorridas desde o século XVi. Foram acontecimentos próprios desse momento a configuração da sociedade de Corte e a formação do Estado através da monopolização de tributação e da violência física.

Nesse contexto de controle externo pelo Estado, alterou-se também o comportamento das pessoas por meio do abrandamento de pulsões e dos

RBHE 21.indd 65 4/10/2009 20:57:57

Page 66: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

66 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

impulsos e, portanto desenvolveu-se a racionalização das atitudes, bem como a capacidade de previsão e autocontrole. isso ocorreu na mesma proporção em que a violência física era monopolizada pelo Estado, atra-vés da regulamentação do campo jurídico, das penas e punições, onde não mais cabia às pessoas arbitrar sobre seus próprios conflitos. Desse modo, os atos e gestos de violência deixaram de ser comportamentos que identificavam uma pessoa de prestígio. Isso porque numa longuíssima duração histórica a prática da violência física entre as pessoas e/ou grupos como modo de resolver conflitos e até como divertimento se apresentava como rotineiro. de acordo com Georges duby, na sociedade medieval, por exemplo, “morre e se diverte com grande brutalidade” (duby, 1998, p. 98). ou ainda,

Na idade Média, a morte, tal como a dor física, contava pouco. Quando lemos os poemas, os romances escritos para distrair os nobres, surpreendemo-nos com a selvageria que evocam. Quanto ao esporte, era a guerra, ou esse simulacro da guerra que era o torneio [...] imagine, de preferência, duas multidões vociferantes que se lançavam uma contra a outra e que apenas pensavam em apoderar-se, pela força, do adversário, de seus cavalos, de suas armas. Elas se batiam violentamente [duby, 2000, p. 100].

Em sendo assim, podemos nos perguntar por que nos tempos atuais nos surpreendemos com atos de violência, quando aparentemente não era problema para outros períodos? Norbert Elias sugere que reflitamos sobre a importância da conquista da pacificação na história da huma-nidade e sobre a significativa diminuição da violência no Ocidente em comparação a outros tempos históricos. No seu entendimento uma das grandes conquistas das sociedades modernas foi exatamente a aquisição do hábito de estranhar e repudiar os atos de violência como modo de estabelecer as relações humanas.

Contudo, apesar de esse hábito ser uma conquista identificada com atitude civilizada, gostaria de enfatizar que civilização e violência não se opõem. ou melhor, o processo civilizador caracteriza-se exatamente pela permanente tensão entre pacificação e violência, pois somente a

RBHE 21.indd 66 4/10/2009 20:57:58

Page 67: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

67Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

partir do momento em que os grupos humanos aprenderam outros mo-dos de resolução de conflitos, que não apenas pela violência física, e os incorporam em suas vidas, é que o apelo a não violência se intensifica.

Podemos refletir então que a civilização nunca está completa, e de certa forma, está sempre ameaçada, na medida em que a permanência de padrões civilizados de comportamento e sentimentos depende tanto das condições individuais como sociais. ou melhor, demanda a existência de estruturas muito específicas – seja de hábitos individuais estáveis de autocontrole, seja da existência de condições sociais mínimas para a existência dos indivíduos em sociedade.

Portanto é importante destacar que o processo civilizador em cur-so no ocidente é também o processo de vivência das tensões entre a violência e a pacificação, tanto a nível individual como social, e nesse caso perpassado por diferenças de riqueza e poder, em menor ou maior escala. Podemos refletir que, em virtude dessa tensão, na modernidade os procedimentos de moldagem dos indivíduos para a vida em grupo se diferenciaram em relação a outras épocas.

isso se refere à elaboração de novos elementos constituintes da alteração do comportamento humano, quais sejam: a presença de uma perspectiva de previsão, a preocupação com o futuro, a elaboração de novos rituais de convivência aliado ao desenvolvimento das ciências e do conhecimento sobre os seres humanos. Esses fatores possibilitaram alterações nas atitudes individuais e sociais rumo a uma direção especí-fica – a produção da sociedade civilizada.

acresce-se que a crescente ênfase na racionalização do pensamento e das ações presente no interior do desenvolvimento intelectual do ocidente atuou na direção do fortalecimento de modos afetivos mais controlados e calculados, ou ainda na “modelação da economia das pulsões” (Elias, 1993, p. 242). associados a racionalização dos impulsos, difundiram-se os sentimentos de vergonha e embaraço onde o indivíduo experimenta sen-sações que entram em choque não somente perante a opinião social, mas coloca-o em conflito com a parte de si mesmo que representa essa opinião.

o sentimento de vergonha expressa um medo de degradação social, uma experiência de inferioridade e uma impotência total ante a ameaça

RBHE 21.indd 67 4/10/2009 20:57:58

Page 68: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

68 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

do outro, não se manifesta por gestos violentos e é sempre velado. Já o embaraço indica para uma situação de perturbação quando ocorre infração de alguma regra, observa-se que quanto mais as restrições externas forem transformadas em autorrestrições, mais ocorre o medo de transgredir as proibições sociais. os procedimentos de modelação social dos indivíduos rumo a um comportamento civilizado ganham forma no entendimento de que vergonha e embaraço seja um comando que venha do interior dos indivíduos. são sentimentos que demandaram um longo tempo de aprendizagem e de fixação na sociedade.

Foi entre os séculos XVi e XVii que nas experiências escolares, lentamente introduziram-se orientações no sentido de elaborar uma pedagogia de dentro para fora, embora castigos e violência física ainda não fossem práticas disciplinares superadas. destaca-se como exemplo a regulamentação dos colégios jesuítas que previa disputas, premiação e recompensas como forma de estímulo e prevenção da desordem (cambi, 1999), ou ainda as regras das escolas lassalistas para conduta das escolas cristãs, publicadas em 1702.

Mário Manacorda (1989) realça nessas regras o desenvolvimento de uma pedagogia de sinais, poupadora de palavras e preservadora do silêncio, além da prescrição de recompensas de correções. Nas regras lassalistas a correção era tida como um meio pedagógico valioso, sendo permitidas punições através de palavras e de penitência e pelo uso de instrumentos como a férula, o chicote ou a disciplina1.

Entretanto, havia normas para que esses instrumentos não fossem usados de maneira indiscriminada, por exemplo, a palmatória deveria ser utilizada apenas pelo mestre e para bater “somente” na palma da mão esquerda com dois ou três golpes no máximo. também estavam proscritos práticas de violências como bofetões, pontapés, puxões de nariz, de orelhas e de cabelos, empurrões ou puxar pelo braço, atitudes estas que passam a ser consideradas como “indignas de um mestre” (Manacorda, 1989, p. 234).

1. Na regra lassalista a disciplina é descrita como um “bastão de 8 a 9 polegadas, na ponta do qual estão fixadas 4 ou 5 cordas e cada uma delas terá na ponta três nós” (Manacorda, 1989, p. 234).

RBHE 21.indd 68 4/10/2009 20:57:58

Page 69: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

69Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

No âmbito mais geral dessas mudanças tem-se que uma questão importante foi a alteração significativa das relações de interdependência entre os diversos grupos sociais e também no seu interior: aristocracia, burguesia, camponeses, trabalhadores urbanos, membros da igreja; mas também nas relações entre os indivíduos. No caso enfatizo as relações entre adultos e crianças, ou seja, podemos refletir em que medida as mudanças no comportamento social dos adultos e um melhor conheci-mento sobre a infância pode ter interferido na alteração das relações de interdependência entre as duas gerações.

Evidentemente que no caso das relações entre adultos e crianças a balança de equilíbrio de poder se volta quase totalmente ao adulto, mas qual a qualidade de tal interdependência na medida em que não é possível pensar adultos e crianças senão numa perspectiva relacional? Norbert Elias observa que

a criança não é apenas maleável ou adaptável em grau muito maior que os adultos. Ela precisa ser adaptada pelo outro, precisa da sociedade para se tornar fisicamente adulta. Na criança, não são apenas as idéias ou apenas o comportamento consciente que se vêem constantemente formados e trans-formados nas relações com o outro e por meio delas; o mesmo acontece com suas tendências instintivas, seu comportamento controlado por instintos [...] Para se tornar psiquicamente adulto, o indivíduo humano, a criança, não pode prescindir da relação com seres mais velhos e mais poderosos [Elias, 1994, p. 30, grifos do original].

a expansão de publicações para as famílias contendo reorientações de cuidado e trato com a infância podem ser observadas nos tratados de educação, em geral caracterizadas pela difusão da necessidade da economia dos afetos. antonio Gomes Ferreira (1988), ao investigar autores de época, observa que alexandre de Gusmão em obra de 1685, “a arte de criar bem os filhos na idade da puerícia”, condenava os mimos, defendia a disciplina e a obediência, mas indicava para castigos físicos moderados. também Fénelon (1651-1715), em “Da educação das filhas”, orientava os pais para “ameaçar pouco, castigar ainda menos e aplicar penas tão ligeiras quanto

RBHE 21.indd 69 4/10/2009 20:57:58

Page 70: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

70 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

possível, mas sempre acompanhadas de circunstância que pudessem pro-vocar na criança a vergonha e os remorsos” (apud Ferreira, 1988, p. 273).

assim, a partir de meados do século XViii, diferentes saberes e acontecimentos concorreram para as alterações nos comportamentos das famílias e na educação das crianças. Entre eles podemos destacar o higienismo e no século XiX, a escolarização, a industrialização, a eu-genia, a consolidação de uma moral burguesa e o desenvolvimento de uma cultura de privatização e intimidades.

Especialmente aqui, destaco no século XiX, a difusão dos saberes elementares para todas as camadas da população como indicador do pensamento das elites de que era necessário estender as civilidades a todos, como forma de completar o projeto de civilização. Para isso desenvolveram-se no início do século XiX as experiências das escolas mútuas, sistematizadas pelos ingleses Bell (1753-1832) e Lancaster (1778-1838) que entre outras coisas, propuseram o fim dos castigos físicos. Um autor do final do século XIX, Octave Greard, afirmava que,

É um dos títulos dos fundadores das escolas mútuas o reconhecimento público de ter proscrito as punições corporais – a palmatória e o chicote – que, até então, eram usadas; e não será demais reconhecer terem procurado subs-tituir no coração dos alunos o sentimento de medo pelo sentimento de honra, ou como disse M. de Laborde, o sentimento da vergonha bem administrado [apud Lesage, 1999, p. 27].

a elaboração da civilização pensada na tensão entre violência e pacificação indica para importantes tentativas de mudanças no trato entre as pessoas. Norbert Elias e John scotson (2000) salientam ainda que a violência é oriunda de uma lógica de rejeição, cabe ao pesquisador problematizar a cada tempo o que se rejeita. também Hannah arendt (2000) traz importante reflexão sobre a violência, que em alguns as-pectos se aproxima de Elias, particularmente na sua discussão de que a violência não é a fonte do poder, o que nos provoca a pensar sobre os modos e as escalas de como nossa sociedade relaciona violência e poder, especialmente na escola.

RBHE 21.indd 70 4/10/2009 20:57:59

Page 71: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

71Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

Podemos afirmar que no caso do processo de institucionalização da escolarização elementar houve um forte apelo para o estabelecimento de novas relações entre alunos e professores, a começar pela instalação das Escolas Normais e profissionalização dos docentes na perspectiva de que um mestre civilizado não se improvisa. Mas a possibilidade de funcionamento de novas práticas somente foi possível na medida em que o Estado passou a ter o monopólio da educação, ou seja, os dirigentes das nações e/ou os representantes do povo passaram a elaborar políticas públicas de educação rumo à diminuição das tensões e a homogeneização do comportamento social.

Organização da nação, da escola e dos procedimentos civilizadores (1827-1906)

No Brasil a monopolização da instrução elementar pelo Estado, como em outras nações do ocidente, esteve inserida no rol das ações destinadas a estender as civilidades a todo cidadão. Estamos denominando como monopolização o investimento realizado logo após a independência (1822) para regulamentar o funcionamento das aulas públicas e parti-culares. diferentemente do período colonial, onde a escolarização não era fator essencial de autoafirmação da metrópole, no período imperial e mesmo com a República a difusão da instrução pública elementar se apresenta como condição mesmo de realização de uma nação. Portanto a instrução elementar gratuita foi estabelecida como direito do cidadão, tal qual rege a constituição de 1824, e, como dever dos pais ou responsáveis em fornecê-la para seus filhos (seja a domicílio, em aula particular ou pública), de acordo com a lei n. 3 de 1835, na província de Minas Gerais2.

Esses dois elementos, o direito à instrução e o dever dos pais, foram os alicerces definidores da monopolização realizados a partir de várias

2. após o ato adicional à constituição de 1834 houve a descentralização na adminis-tração da instrução elementar, esse fator acabou por produzir diferenças entre as províncias brasileiras na periodização e regulamentação do ensino.

RBHE 21.indd 71 4/10/2009 20:57:59

Page 72: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

72 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

contradições, tensões e limitações, mas que definitivamente consolidaram o Estado como monopolizador dos saberes necessários à produção de uma sociedade civilizada, onde minimamente os sujeitos deveriam ser instruídos para serem úteis a si mesmo e à sociedade, enquanto atitudes básicas para o favorecimento de coesão social. Especificamente em Minas Gerais destaca-se ainda que a institucionalização da instrução pública elementar não foi um investimento para o benefício das classes abastadas, pois a legislação era flexível, possibilitando o ensino doméstico e as aulas particulares.

de acordo com dados de pesquisa concluída (Veiga, 2003), consti-tuíram a clientela-alvo as classes pobres, negras e mestiças da província, portanto em consonância com as concepções e ações presentes em outras sociedades a respeito da necessidade de civilizar o povo e como forma de completar o ideal de civilização. conhecer os sujeitos da escola é, pois fundamental para refletirmos sobre o conteúdo dos discursos ela-borados pelas elites, e perguntarmos a quem se destinava a civilização a ser oferecida pela escola.

Pela legislação observa-se um esforço na tentativa de difundir novos tratos entre alunos e professores, mas também houve muitas tensões na sua aplicação, uma vez que diferentes fatores concorriam para a pre-dominância de uma pedagogia rude, caracterizada pela violência dos adultos contra as crianças, destacando que muitas das vezes tal relação conflituosa reforçava a negação da escola e do conhecimento por parte das crianças. Por sua vez, também gerava indisposição do professor pelo bom cumprimento de seu próprio ofício.

Entre esses fatores há de se destacar a presença ao longo do século XiX da predominância de modos de ensino sustentados pela memori-zação, ausência de materiais pedagógicos, precariedade do mobiliário escolar, professores despreparados ou ainda predominância de conteúdos muito abstratos para os alunos. a respeito desse problema, Graciliano Ramos, assim relata sobre as aulas de primeiras letras,

Foi por esse tempo que me infligiram Camões, no manuscrito. Sim se-nhor: camões, em medonhos caracteres borrados – e manuscritos. aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a

RBHE 21.indd 72 4/10/2009 20:57:59

Page 73: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

73Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

adivinhar, em língua estranha, as filhas do Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados [...] deus me perdoe. abominei camões [Ramos, 1993, pp. 120-121].

destaca-se que para compreendermos o lugar dos debates a res-peito da disciplina escolar no Brasil é preciso refletir que tal discussão é parte do processo de formação do Estado nacional brasileiro onde a monopolização da força física e a monopolização da instrução elementar, diferentemente dos países europeus, se fizeram concomitantemente ao longo do século XiX. a questão do controle da força física no Brasil apresenta-se ainda como um tema especial dado a tradição histórica da violência exercida pelos colonizadores e pelas elites proprietárias em relação aos escravos e aos índios.

sobre a disciplina escolar, na lei imperial de 12 de outubro de 1827 que mandava criar as escolas de primeiras letras nos lugares mais popu-losos do império, há a prescrição de castigos “pelo método de Lencastre” (sic). Não há referências nessa lei sobre o que os legisladores estariam definindo como caracterizadores desses castigos, entretanto, a tomar pelos estudos a respeito do método mútuo, as indicações eram de proscrição dos castigos físicos e estabelecimento de punições de cunho moral.

Entretanto, no caso da província mineira, contrária as orientações do educador inglês Joseph Lancaster (1778-1838), houve a aprovação de um documento em 1829, intitulado “castigos Lancasterianos – Em consequência da Resolução do Exmo conselho de governo da província de Minas Gerais, mandando executar pelos Mestres de 1ªs Letras e de Gramática Latina”. Em texto sobre o ensino mútuo em Minas Gerais, Luciano Mendes de Faria Filho e Walquiria Rosa (1999) analisam esse documento e afirmam a existência da indicação de castigos físicos pra-ticados com crueldade, embora houvesse também a defesa da emulação. Em relação à repercussão de tais métodos disciplinares, os autores co-mentam as críticas a tais castigos, publicadas em um jornal local, sendo possível observar que a argumentação se fez na direção dos princípios da civilidade, na necessidade de uma disciplina que inspirasse a dignidade em substituição ao medo.

RBHE 21.indd 73 4/10/2009 20:58:00

Page 74: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

74 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

através de outras fontes nota-se a aplicação das orientações presen-tes no documento de 1829 e também interrogações sobre a sua eficácia. Em um relatório de um delegado literário de 22 de junho de 1835, este registra em relação aos castigos o seguinte,

o Ex.mo Governo mandou adoptar os que se indicam no sistema Lan-caster: na 1ª. Visita que fiz à aula encontrei em uso a gonilha de madeira. Esta, porém, e as cadeias para os pés me pareceram contrastar com a proscrita palmatória, a cesta, a caravana mais servirão para distrair, que para corrigir a mocidade3 [PP 1/42, caixa 2, p. 63].

Já em correspondência ao presidente de província, de 4 de maio de 1836 outro delegado afirmava que os “castigos alencastrianos” eram perigosos para jovens de baixa idade (PP 1/42, caixa 5, p. 23). Portanto, a apropriação indevida das prescrições de Lancaster para a disciplina dos alunos, por parte das elites mineiras, sem dúvida nenhuma mereceria maiores estudos, mesmo porque as orientações se associavam às técnicas de violência contra os escravos e que estiveram em questão na época. Em contrapartida, estudos relativos ao ensino mútuo em outras províncias brasileiras, como Rio de Janeiro, são Paulo e Rio Grande do sul (Bastos & Faria Filho, 1999), demonstram que as orientações disciplinares das escolas de ensino mútuo eram fiéis ao pensamento de Lancaster, ou seja, contra castigos físicos.

Na primeira regulamentação provincial de Minas Gerais sobre a instrução pública, o regulamento n. 3 da lei n. 13 de 7 de maio de 1935, não foi utilizado a expressão “castigo lancasteriano” e assim prescrevia o artigo 39: “os professores poderão corrigir moderadamente seus alunos, abstendo-se de expressões grosseiras e de tratos aviltantes e que longe de os chamar a obediência, tendam a fazer-lhes perder o pejo”. Entretanto, a partir da leitura de ofícios e correspondências diversas, observa-se que

3. Gonilha: círculo de ferro que se encaixava no pescoço dos escravos fujões; cadeias: corrente de anéis ou de elo de metal, grilhão (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1986).

RBHE 21.indd 74 4/10/2009 20:58:00

Page 75: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

75Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

duas questões se apresentavam para os professores e até mesmo para os delegados e inspetores, quais sejam o que viria a ser correção moderada e como expor os alunos à vergonha.

Por exemplo, na mesma correspondência citada anteriormente, entre delegado e presidente de província, aquele diz que os professores fizeram consulta a respeito do artigo 39. segundo o delegado os professores têm perguntado se podem continuar a “corrigir os alunos com palmatoadas a vista da costumância”, o que o delegado afirma que seu pensamento está em consonância com a lei, ou seja, explica que correção moderada é o não uso de tratos aviltantes como açoites e bofetadas, que a “atual civilização tem proscrito”. Afirma ainda que considera os “castigos alencastrianos” perigosos, além de que por não estar definido em lei o que é correção moderada, não se julga habilitado para resolver tal dúvida e pede que o presidente de província “ordene o que for justo”.

É muito interessante como que as práticas de coibição de violência física em uma sociedade escravocrata marcada, na “costumância” por essas atitudes, se tornam um desafio para os gestores do ensino, em virtude da necessidade do cumprimento da lei, além dos conflitos que estabelecem com as famílias. Esse é o caso de uma correspondência de 24 de fevereiro de 1838 (PP 1/42, caixa 10, p. 39), na qual o delegado expõe ao presidente o caso de um pai que dá queixa do professor que castigou arbitrariamente um dos seus filhos, tendo-lhe dado, em uma só manhã, 33 palmatórias a fim de o menino compreender as contas. o delegado relata que essa não era a primeira notícia que tinha das atitudes do professor e, portanto era necessário tomar providências. Em outra correspondência de 5 de abril de 1838 (PP 1/42, caixa 10, p. 57) também o delegado descreve o comportamento de um professor que desempenha os deveres do magistério, mas “tem-se mostrado muito ríspido com os alunos, fazendo uso em demasia da palmatória, afirma ainda que ordenou-lhe que os castigos “não excedessem no máximo 5 palmatórias”. Ao final do mesmo ano, um relatório de 24 de novembro de 1838 continua dando notícias do mesmo professor,

[...] é forçoso dizer que suas maneiras ríspidas, seu gênio arbitrário, seu sistema de aguçar o entendimento bronco dos alunos por meio da palmatória,

RBHE 21.indd 75 4/10/2009 20:58:00

Page 76: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

76 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

em contradição ao que eu expressamente lhe tenho ordenado, guardando-lhe o poder discricionário das palmatórias, infelizmente contrabalançam os salutares efeitos da lei [PP 1/42, caixa 12, p. 37].

ainda nesses registros o delegado expõe que os pais dos alunos os estão tirando da escola em função dos maus tratos que sofrem. Essa mesma atitude é relatada em vários outros documentos, inclusive quando a violência era praticada pelos monitores das aulas mútuas. Em 14 de maio de 1837, encontramos o ofício do delegado a respeito de um pai que reclama do professor, dizendo ser ele doente e não ensinar bem, sendo que os filhos ficam por conta dos decuriões que os maltratavam “com réguas, nascendo dali brigas” (PP 1/42, caixa 8, p. 4). Em decorrência disso, o pai anuncia que os filhos deixarão de frequentar a escola e que ele mesmo vai ensinar-lhes em casa.

Pelo que foi possível observar na documentação analisada, a questão dos castigos físicos foi tornando-se realmente um problema. as auto-ridades comentam em seus relatórios a necessidade de outras práticas disciplinares. Em correspondência de 1 de abril de 1837, o delegado destaca a necessidade de estabelecer um “método único para a polícia interna das escolas, dois poderosos estímulos, o castigo e a recompen-sa, a correção e o prêmio” (PP 1/42, caixa 7, p. 7), sugere ainda que os prêmios sejam materiais escolares.

Também não havia inicialmente muita clareza e definição sobre como fazer o aluno “perder o pejo”, conforme prescrito no regulamento n. 3. uma importante contribuição foi feita pelo professor assis Peregrino, quando em seu relatório de 13 de abril de 1839 sobre método de ensino, por época de seu retorno de viagem à França como missão de governo, expunha de modo especificado novos procedimentos de conduta escolar. Relata que fazem parte dos meios disciplinares de uma escola de ensino simultâneo: a ação dos vigilantes (monitores); os registros de matrícula, frequência e desempenho do aluno; a distribuição do tempo e dos trabalhos; as ordens; as recompensas e punições; os exames (códice 236, 13 abr. 1839).

Especialmente em relação às punições e recompensas, afirma Pere-grino que a melhor educação é aquela feita pelo emprego da docilidade,

RBHE 21.indd 76 4/10/2009 20:58:00

Page 77: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

77Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

do raciocínio e das persuasões. Entretanto, curiosamente ele coloca em dúvida a suficiência desses meios para “nossas escolas”, reconhecendo a necessidade do uso da “severidade para manter a ordem e submeter à obediência os caracteres indóceis”. Para o professor isso se devia, princi-palmente, à viciosa educação das famílias, que podia variar da “extrema indulgência às pancadas”. dessa maneira, condenando com veemência os castigos corporais, ele enfatiza a emulação, embora indique as formas de punição, quando necessárias, na seguinte hierarquia:

1.º Perda de pontos.2.º Repreensão diante dos companheiros.3.º distribuição de um ou mais bilhetes de satisfação4.º Obrigação de ficar por algum tempo na aula depois de seus compa-

nheiros se retirarem.5.º Ficar me pé em lugar para isso designado.6.º trazer um escrito pendurado no pescoço designando a natureza do

crime.7.º Expulsão provisória de aula.8.º inscrição do nome do menino no quadro negro que somente será

retirado quando reparar as faltas.9.º comunicação aos parentes [códice 236, 13 abr. 1839].

Peregrino enfatiza a ação educativa de expor os alunos a situações de vergonha e embaraço por meio do uso público dos “escritos de pu-nição” que, segundo ele,

são algumas pranchas de um palmo quadrado, em que estejam escritas em grandes caracteres certas palavras, como por exemplo: PREGuiÇoso, FaLadoR, MENtiRoso, BRiNcadoR etc. Estes escritos estarão suspen-sos na escrivaninha do professor e patentes a toda aula. o aluno que cometer um crime trará por algum tempo, pendurado ao colo aquele escrito que se refere ao crime [...] o aluno que é assim castigado fica em pé sobre o estrado, e exposto a toda a aula [códice 236, 13 abr. 1839].

RBHE 21.indd 77 4/10/2009 20:58:01

Page 78: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

78 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

adverte ainda para a cautela no uso desse tipo de punição que deve ser feito com moderação e reserva, para que não perca o efeito moral. Por sua vez as recompensas deveriam ser indicadas para se evitar as punições, no intuito de produzir “sentimentos virtuosos, amor próprio e satisfação dos pais e parentes”. sua aplicação se faria a partir do bom desempenho e comportamento dos alunos, podendo receber “bilhetes de satisfação”, mudar de divisão ou classe (mais adiantada), além de elogios públicos perante os demais alunos e até autoridades, inscrição do nome em quadro de honra e recebimento de medalhas.

outra orientação que permitia a exposição dos alunos era a sugestão de que após a realização dos exames finais houvesse a distribuição de prêmios para os melhores na presença de autoridades e dos habitantes dos lugares. aliás, tanto a legislação quanto as correspondência e os relatórios, nos dão indícios da realização de atos desse tipo, inclusive a prescrição legal era de que os exames fossem realizados por época do Natal em razão do fato de haver, próximo a essa data, uma afluência de pessoas nas vilas e cidades.

as orientações de Peregrino tiveram repercussão ampla, pois já nos registros de datas posteriores é notória a influência das ideias presentes no seu relatório. Em 10 de outubro de 1839, o delegado, fazendo menção à lei de orçamento provincial relativa à instrução pública, registra que

Por este artigo é V. Ex. autorizado a dar prêmios aos alunos que mais de distinguirem. ora V. Ex. conhece perfeitamente a necessidade que tem os jovens de certos estímulos que desafiando-lhes o brio, e despertando-lhes a emulação, façam neles brotar o salutar desejo de sempre se avantajarem uns aos outros, e de cada qual procurar ser o primeiro, e sem igual, e tão bem que é este meio mais prazeroso e eficaz para se fazer a instrução e conseguir-se o progresso dos alunos [códice 235, 10 out. 1839].

a partir da década de 1840, a legislação passou cada vez mais a enfatizar os castigos morais. Na resolução n. 311 de 8 de abril de 1846, afirma-se que os meios disciplinares são os do método simultâneo. O regulamento n. 44 de 1859 estabelecia penas aos professores que exce-

RBHE 21.indd 78 4/10/2009 20:58:01

Page 79: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

79Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

diam nos limites disciplinares e praticassem, através de atos e palavras, ações imorais e obscenas. o regulamento n. 49 de 1861 permite castigos moderados, desde que não sejam aviltantes e somente o regulamento n. 56 de 1867 proibiu claramente os castigos corporais, o que foi reiterado em outras legislações.

Apesar de as legislações preverem o fim dos castigos corporais, as fontes documentais indicam-nos para uma tensão permanente entre os professores que insistiam nos castigos físicos e pais que condenavam os abusos. Numa carta ao inspetor escolar um pai de aluno da cidade de Queluz denuncia em 1893 o professor primário severino Ferreira da Silva que havia batido no seu filho com vara de marmelo além de ter sido ameaçado de morte quando esteve na escola para buscar explicações (códice 726, 1893).

Em ofício ao secretário do interior de 1902, o inspetor diz que não forneceu atestado de frequência a um professor de são Gonçalo do Pará por este não ter apresentado os mapas de frequência dos alunos, informa ainda que ele não tinha nenhuma força moral sobre os alunos, havendo a prática de apelidarem e espancarem uns aos outros, tendo o professor também espancado um aluno (códice 2766, 1902). de mesmo modo os professores reclamam do comportamento dos meninos, esse é o caso do professor da segunda cadeira masculina de ubá, ele se queixa da grande falta de disciplina e refere-se ao fato de ter apreendido duas facas de ponta levadas à escola por seus alunos (códice 2789, 1905).

Noutra direção houve progressos na legislação sobre a atuação do professor sendo constante a necessidade de se comprovar a sua capa-cidade para atuar como educador. É o que acontece quando em 12 de setembro de 1862, como parte do processo de concurso à cadeira de professor de instrução elementar na província de Minas Gerais, o pre-tendente theodolindo encaminha ao delegado de polícia Manoel dias pedido de emissão de um atestado de sua conduta, conforme exigido em lei, para o exercício da docência. Era necessário atestar:

1º ser o suplicante cidadão brasileiro2º se tem prática de ensinar as primeiras letras

RBHE 21.indd 79 4/10/2009 20:58:01

Page 80: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

80 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

3º Se é suficiente para educar a mocidade4º se é irrepreensível, exemplar no seu modo de viver5º se goza de conceito público e estima6º sob sua vida moral anterior e religião7º sob sua civilidade e delicadeza para com seus concidadãos e se é pai

de famíliaEnfim se é probo e tem os conhecimentos das matérias de ensino e se

consta ter qualquer nódoa [códice 975].

Entendo que normalizações desse tipo se apresentavam na perspec-tiva de proteger as crianças e difundir atitudes de relações respeitosas entre adultos e crianças. isso porque na documentação é abundante casos de violência praticados por professores em relação aos alunos, que vão muito além de “palmatoadas”, com destaque para assédio sexual em virtude de embriagues, estupro, além de casos de violência física por discriminação racial. Em 1901, o inspetor municipal de ubá, Lázaro Ramos, pede a suspensão de ensino do professor antonio augusto Rosa, pois este se embriaga constantemente e maltrata moralmente os alunos (códice 2752); no ano de 1905 foi aberto processo disciplinar contra o professor Marçal Benigno de oliveira, da cidade de Bicas, o inspetor atesta que ele tinha por hábito acariciar as pernas dos meninos oferecendo-lhes dinheiro (códice 2789).

È importante ressaltar também, além das tensões geracionais, a presença de violência nas relações étnico-raciais. Em ofício de outubro de 1897, o inspetor escolar em visita à cidade de santa Rita registra reclamações acerca de uma professora que, entre outros problemas, destratava os alunos que “não vestem pele branca” e não dissimulava o desprezo “que experimenta em tratar com meninos de cor e cabelo ruim”. Essa informação chegou ao inspetor por meio de cartas de pais de alunos; em uma delas o pai fala que “seus filhos são de cor inferior aos filhos da professora e que ela não ensina a meninos de cor morena” (si, série 4).

as discussões acerca da importância de os professores desenvol-verem condutas civilizadas para o trato com os alunos assumem grande destaque na literatura pedagógica. No processo de alteração das concep-

RBHE 21.indd 80 4/10/2009 20:58:01

Page 81: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

81Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

ções pedagógicas sobre disciplina, expresso no deslocamento da ênfase aos castigos físicos para outros meios disciplinares, também ocorreu uma maior ênfase na necessidade de melhor preparo do professor.

Mas em fins do século XIX a precariedade de funcionamento da escola elementar em Minas Gerais era de toda a ordem, destaca-se que muitos dos inspetores registravam o problema de uma escola constituída de alunos e professores de “todas as procedências” e a difícil realização da tarefa de civilizar. tendo em vista as origens étnicas raciais e de clas-se dos alunos das escolas públicas, a propagação e o desenvolvimento das teorias raciais, o aprofundamento das desigualdades de riqueza há de se refletir mais detidamente também sobre o significado no Brasil do discurso da “árdua missão do professor”. Por sua vez, é importante analisar sobre o que teria tornado possível a partir das primeiras décadas do século XX a alteração da conduta de alunos e professores rumo a uma direção de atitudes mais pacificada?

Ciência, escola homogênea e civilização (1906-1927)

Desde fins do século XIX no âmbito da legislação educacional não há mais nenhuma dúvida quanto à proibição de castigos físicos, havendo indicações de outras punições além da prática de distribuição de prêmios em eventos públicos. uma lei 1892 prescrevia na sequência: advertência, repreensão particular, repreensão perante a classe, privação do recreio, suspensão até 15 dias e expulsão (Mourão, 1962, p. 37). também se reite-ram as punições para os professores que cometessem faltas ou crimes de ofensa moral. os educadores buscaram novos procedimentos de maneira que estabelecer hábitos civilizados na relação professores e alunos.

ainda que divulgadas já no período imperial, nas primeiras décadas republicanas ocorreram mudanças significativas no processo de escola-rização das crianças no Brasil. Entre elas destaca-se o surgimento dos grupos escolares, o aperfeiçoamento das Escolas Normais, a reestrutu-ração da escola como equipamento urbano e mudanças na concepção dos espaços escolares e seus usos (pátio, ginásio, auditórios, cantina,

RBHE 21.indd 81 4/10/2009 20:58:02

Page 82: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

82 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

biblioteca, jardins, horta, museu, sala de aula); estruturação de novos conteúdos e métodos de ensino; proliferação de materiais pedagógicos; divulgação do ideário da escola nova; intensificação dos debates sobre a função da educação pública; ampliação da produção intelectual e de grupos de intelectuais engajados nos debates sobre a educação, o ensino e políticas educacionais. Em que pese presença de diferenças nas altera-ções ocorridas nos estados, é certo que nessa época ocorreu uma intensa mobilização para reformas educacionais4.

No estado de Minas Gerais houve em 1906 a instituição dos grupos escolares, no ano seguinte da Escola Normal da capital5. Em outubro 1927, além da comemoração nacional do centenário da regulamentação da instrução pública no Brasil, exatamente em razão desse ato come-morativo, estabeleceu-se a reforma do ensino primário no estado em consonância com o movimento de reformas ocorridas em outros estados do Brasil durante a década de 1920, no âmbito das discussões sobre a escola nova.

Para discutirmos a elaboração de dispositivos civilizadores asso-ciados às novas mudanças, podemos organizar três agrupamentos de iniciativas que pretenderam não somente dar continuidade as preocupa-ções já encaminhadas no século XiX, mas também inovar6. um primeiro estaria relacionado ao cada vez maior desenvolvimento e difusão dos conhecimentos científicos sobre as crianças e as demandas para os novos cuidados com a infância, alterando significativamente as relações de in-terdependência entre adultos e crianças e, portanto, na relação professor

4. ainda até 1930 (quando se cria o Ministério da Educação e saúde) a administração e a regulamentação da escola primária brasileira encontram-se descentralizadas, com diferenças entre os estados.

5. Ressalta-se a inauguração em 1897 da nova capital de Minas Gerais, Belo Horizonte. 6. Rita de cássia de souza também investigou as práticas disciplinares na educação

mineira durante a divulgação do ideário escolanovista (souza, 2004). Fundamentada nas concepções de Foucault, a interessante pesquisa da autora destaca o meio escolar como disciplinador que se interpõe entre alunos e professores. contudo há de se pensar que no processo civilizador a ênfase na disciplina foi além do autocontrole e do controle externo, mas principalmente se estabeleceu como organizadora das dinâmicas relacionais entre governos, famílias, professores e alunos.

RBHE 21.indd 82 4/10/2009 20:58:02

Page 83: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

83Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

e aluno isso reforçará ainda mais a necessidade do cargo de professor primário ser assumido por mulheres.

o segundo refere-se à inovação nos métodos, materiais pedagógicos e estabelecimento de espaços educativos como a biblioteca e o museu; o terceiro dispositivo diz da organização de um currículo escolar que introduziu de modo sistematizado outros conteúdos de ensino (canto, desenho e trabalhos manuais, educação física, educação moral e cívica, aulas de urbanidade e polidez) e novas atividades escolares, tais como, recreio, festas, danças, hora da leitura, horta etc.

Quanto aos novos saberes sobre a infância, as pesquisas da biologia e da psicologia do século XIX e XX viriam fundamentar cientificamente os novos cuidados com a criança. No intuito de difundir informações sobre o trato com as crianças e filhos, multiplicaram-se publicações especiali-zadas para as mulheres e mães de família, em geral escritas por médicos.

No final do século XIX foi criado um novo ramo do conhecimen-to médico, a pedologia, para estudar a crianças em todos os aspectos: fisiológico, psicológico e moral; seguiram-se novos ramos, antropome-tria, pedotécnica, psicopedagogia, pediatria, entre outros, associado à publicação de revistas especializadas voltadas para o meio acadêmico, e instalação de laboratórios e enfermarias nas escolas. Esse conjunto de mudanças sem dúvida possibilitou a elaboração de novas relações de interdependência entre adultos e crianças. Poderíamos falar de uma interdependência funcional, no qual o cuidado da criança pela família passa a ser orientado pela ciência de modo a garantir o seu bem-estar físico e emocional e de uma interdependência social, referente à proteção da criança pelo estado, por meio de instituições várias entre elas a escola. No século XX ampliou-se a “vigilância social” em relação aos modos públicos e privados de tratamento da infância, interferindo significativa-mente no aumento das responsabilidades dos adultos e das instituições na cadeia das gerações (Veiga, 2006).

Em regulamentação escolar de 1910 a base de toda a disciplina na escola é descrita como “a afeição mútua entre alunos e professores”, para isso o professor deveria cumprir seus deveres, despertar interesse nas lições, ter dignidade, ser exemplo de conduta e com isso desenvolver

RBHE 21.indd 83 4/10/2009 20:58:02

Page 84: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

84 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

nos alunos autoconfiança e compreensão de seus deveres (apud Mourão, 1962, p. 197). Em artigo do boletim Vida Escolar, intitulado “o carinho na escola”, Firmino costa já divulgava o mesmo entendimento:

alguns professores, educados nos velhos moldes, julgam que o melhor meio para conseguir-se freqüência e boa disciplina na escola, é castigar physicamente a creança. Prova-nos cabalmente esse engano, o modo como os professores antigos eram olhados por seus alunos: com terror e aversão. sentiam as creanças prazer em falhar da escola, somente para não estarem em contacto com aqueles que os maltratavam. Hoje, porém, que o modo de educar, pela quase totalidade de professores é inteiramente diverso, as crianças tratadas na escola com carinho e delicadeza, acham prazer em frequental-a e conseguem aprender [Vida Escolar, 1908, n. 30, p. 2].

Assim, desde fins do século XIX e início do XX educadores aposta-ram em novas concepções pedagógicas como alternativa para a violência. o mesmo autor no artigo “disciplina Escolar”, de 15 de maio de 1907, aconselha que para manter a ordem, o professor deve ser educado e pro-curar ensinar de modo atraente e animado, captar a simpatia e confiança dos alunos, diz ainda,

a polidez e a justiça, que devem sempre acompanhal-o no magistério, obterão aquelles fins essenciais à disciplina escolar. Assim como a grosseria aliena sympathias, irritando ou atemorizando os meninos, assim a polidez torna-os de bom humor, alegres e pacientes [Vida Escolar, 1907, n. 4, p. 1].

sobre os métodos e materiais pedagógicos, esses referem-se aos no-vos procedimentos de aprendizagem que buscaram inovar pela ênfase na participação das crianças, indicando para uma outra relação entre alunos e professores. integrados ao movimento denominado como escola nova ou escola ativa de fins do século XIX, os educadores da época apresen-taram uma nova concepção da função do professor na sala de aula como crítica a rigidez e modos autoritários então presentes, enfatizando uma participação mais ativa das crianças durante o processo de aprendizagem.

RBHE 21.indd 84 4/10/2009 20:58:02

Page 85: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

85Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

desse modo a divulgação do método intuitivo poderia ser também problematizada como integrante das novas dinâmicas civilizatórias na medida em que ele propõe uma relação bastante diferenciada com o conhecimento em diferenciação às práticas de memorização. Que re-lação estabelecer entre civilização, método intuitivo e novos materiais pedagógicos? Principalmente mudanças no equilíbrio de poder entre alunos e professores, na medida em que, teoricamente, os alunos são chamados a participarem das aulas, por meio da exploração dos sentidos, manipulação de objetos, execução de trabalhos manuais e fazerem várias atividades como protagonistas do seu processo do ensino aprendizagem. Essa perspectiva ganhou densidade com a crítica dos escolanovistas ao uso mecânico das “lições de coisas” e a elaboração mais sistematizada de proposições metodológicas cuja caracterização é a participação ativa das crianças (carvalho, 2002).

tornar a aula agradável e a aprendizagem prazerosa, antes de tudo, são atitudes que pressupõe uma relação de interdependência entre alunos e professores mais equilibrada do ponto de vista das relações de poder e da diminuição da opressão à criança. Nesse aspecto destaca-se o apa-recimento de materiais pedagógicos específicos destinados ao apoio às aulas expositivas (mapas e cartazes) bem como ao uso dos alunos (ábaco, prismas, quebra cabeça, jogos de encaixe, fusos etc.) e ainda o aumento de circulação de livros infantis. ainda nesse conjunto de proposições esteve o estabelecimento de novos espaços educativos como a biblioteca e o museu – todo esse suporte para disseminar o prazer de aprender e tornar as relações mais pacíficas em sala de aula.

sobre os novos conteúdos e as novas atividades escolares percebe-se que integram um novo tempo. acompanhando o pensamento de Norbert Elias, temos que as tensões entre violência e pacificação favoreceram o desenvolvimento das artes, literatura e da música. Assim Elias afirma em relação ao processo civilizador,

a vida torna-se menos perigosa, mas também menos emocional ou agra-dável, pelo menos no que diz respeito à satisfação direta do prazer. Para tudo

RBHE 21.indd 85 4/10/2009 20:58:03

Page 86: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

86 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

o que faltava na vida diária um substituto foi criado nos sonhos, nos livros, na pintura. de modo que, evoluindo para se tornar cortesã, a nobreza leu novelas de cavalaria; os burgueses assistem em filmes a violência e a paixão erótica [...] Parte das tensões e paixões que antes eram liberadas diretamente na luta de um homem com outro terá agora que ser elaborada no interior do ser humano [Elias, 1993, p. 203].

Entre o conjunto de disciplinas escolares destaca-se a sistematização das aulas de educação física, canto, desenho e trabalhos manuais, ins-trução moral e cívica, urbanidade. acresce-se a organização de diversos eventos por meio de festas escolares e festas de escolares na cidade, bem como a previsão no horário escolar diário de tempo para recreio. tais aulas e atividades apresentavam objetivos específicos diferenciados, embora todas possuam o sentido da civilização dos costumes.

a importância das aulas de canto, desenho e trabalhos manuais foram conteúdos divulgados desde o século XiX e principalmente pelos indivíduos ligados ao movimento da escola nova. integram um esforço de propagar a educação estética como procedimento fundamental para o cultivo das sensibilidades, concepção desenvolvida por autores clássicos, principalmente pelo filósofo alemão Schiller (1759-1805). O objetivo dos educadores do século XX combinava educação das mãos (motricidade) e das habilidades artísticas com a exploração dos sentidos e cultivo do gosto. a principal inovação do período foi a exibição do aprendizado artístico das crianças em exposições de trabalhos, auditórios e festas para públicos ampliados (Veiga, 2000).

a prescrição de atividades físicas diz das preocupações relativas à boa formação física como componente dos saberes do higienismo em difusão na época, mas também esteve associado aos novos saberes da psicologia e pedagogia em relação à importância de exercícios físicos e brincadeiras para o desenvolvimento e melhor desempenho das crianças. sem negar a ênfase na disciplinarização dos corpos presente principal-mente na educação física, como analisa tarcisio Vago (2002), há de se destacar o significado dessas inovações naquele tempo, quando está em questão o entendimento da necessidade da mudança de comportamentos

RBHE 21.indd 86 4/10/2009 20:58:03

Page 87: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

87Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

e hábitos nas relações entre os indivíduos como quesito de constituição de uma sociedade civilizada.

Já o ensino da instrução moral e cívica e de urbanidade possuía a orien-tação de exercício cotidiano7. Esses conteúdos estiveram essencialmente voltados para a mudança de hábitos em público, seja nas manifestações de amor a pátria (sentimento este muito reclamado desde o império) seja nas relações com o grupo. Nos programas educacionais a prescrição de reali-zação de festas cívicas e comemoração de datas nacionais se apresentaram como fator de elaboração de uma identidade coletiva.

Por sua vez as lições de urbanidade poderiam ser praticadas por meio de atos de gentileza e de gestos como os de agradecimento e desculpa, em situações informais ou mesmo aproveitando uma aula de leitura (fá-bulas, por exemplo) como sugere o programa da escola infantil de 1912 e o programa dos grupos escolares de 1925 (Mourão, 1962). Em artigo na Revista do Ensino, “o ensino da polidez nas escolas”, Gustavo Penna argumenta a favor deste conteúdo refletindo sobre o contraste “entre o que fomos outr’ora e o que foram outros povos”, ou seja, os hábitos inerentes as nossas origens étnicas condenam nosso passado, mas tam-bém a nossa distância de outras sociedades quanto ao refinamento dos costumes. Para o autor a descortesia pode ser apenas uma inadvertência ou descuido, nada que uma boa educação desde pequeno não resolva (Revista do Ensino, 1927, p. 540).

Considerações finais

Nos anos de 1827 a 1927 podemos afirmar que houve mudanças nas relações de interdependência entre adultos e crianças, alunos e professo-res, expressas nas prescrições legais de alteração do comportamento, mas também nos registros que revelam queixas de pais, professores e gestores do ensino sobre insatisfações quanto às atitudes dos sujeitos envolvidos

7. Estudos sobre ensino de civilidades e urbanidades na escola numa longa duração histórica (1845-1950) vêm sendo desenvolvidos por Maria teresa santos cunha (2007).

RBHE 21.indd 87 4/10/2009 20:58:03

Page 88: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

88 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

com a escola. Entre as discussões sobre a quantidade de “palmatoadas” a serem aplicadas nos meninos e as manifestações pedagógicas para a suspensão da violência física e substituição por ações que levassem a uma aprendizagem prazerosa ocorreu mudanças na direção de pacificação nas relações entre adultos e crianças. ou principalmente passou-se a estranhar a violência como mediadora das relações geracionais.

Por sua vez, no período ocorreram várias mudanças na estrutura das escolas públicas primárias brasileiras – se na época imperial são frequen-tadas basicamente por crianças dos estratos pobres da população, nas primeiras décadas republicanas, grande parte dos alunos com frequência regular são oriundas das camadas médias. ainda como característica dessa escola, destaca-se a homogeneização das classes escolares, por meio de testes psicológicos, e do professorado dos grupos escolares, então oriundos das Escolas Normais. É bom lembrar que o censo de 1920 detectou um índice de apenas 24,5% de alfabetizados em todo o Brasil (iBGE, 1990).

De acordo com Norbert Elias “nenhuma pacificação é possível enquanto a distribuição de riqueza for muito desigual e as proporções de poder demasiado divergentes” (Elias, 1997, p. 401). Levando em consideração os dados aqui discutidos é possível concluir que o desen-volvimento da postura de estranhamento do uso da violência física entre professores e alunos esteve associado a alterações nas relações de poder, mas também na diminuição de rejeições.

No primeiro aspecto concordo com Hannah arendt (2000) de que a violência não é fonte de poder. É possível que a melhor profissio-nalização dos mestres (adultos) e, portanto, a ampliação de seus co-nhecimentos sobre os alunos (crianças), assim como a implantação de políticas de educação inovadoras, tenham contribuído para uma maior legitimidade da autoridade do professor, melhor distribuição de poder entre alunos e professores, mas também ampliação do reconhecimento da importância da escola. se não se conquista poder com violência e sim com simpatia, essa nova postura possibilitou atenuar as rejeições, seja dos professores, dos alunos, da escola, dos modos de ensinar e aprender, do espaço etc.

RBHE 21.indd 88 4/10/2009 20:58:03

Page 89: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

89Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

de outro lado, podemos nos perguntar: até que ponto a maior homo-geneização da origem étnica e de classe social dos alunos e professores dos grupos escolares também não teriam sido fatores que possibilitaram a diminuição da violência física na escola? ou melhor, no contexto dos anos iniciais da República, de ampliação da difusão das concepções li-berais, ideais meritocráticos e eugenia, a presença de maioria de alunos brancos e de classe média teria sido fator de consolidação do ideal de escola civilizada?

Referências bibliográficas

Arendt, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume dumará, 2000.

bAstos, M. H. c.; fAriA filho, L. M. de. A escola elementar no século XIX: o método monitorial/mútuo. Passo Fundo: EdiuPF, 1999.

cAmbi, F. História da pedagogia. são Paulo: Unesp, 1999.

cArvAlho, M. M. c. de. Pedagogia da Escola Nova, produção da natureza infantil e controle doutrinário da escola. in: freitAs, M. c. de; kUhlmAnn Jr., M. Os intelectuais na história da infância. são Paulo: cortez, 2002.

cUnhA, M. t. s. ser de cerimônia: manuais de civilidade e a construção de sujeitos históricos (1920-1960). in: nepomUceno, M. de a.; tibAlli, E. F. a. (orgs.). A educação e seus sujeitos na história. Belo Horizonte: argumentum, 2007.

dUby, G. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. são Paulo: Unesp, 1998.

eliAs, N. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. V. 2.

______. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

______. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XiX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

______.; scotson, J. L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

RBHE 21.indd 89 4/10/2009 20:58:04

Page 90: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

90 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

fAriA filho, L. M. de; rosA, W. M. o ensino mútuo em Minas Gerais (1823-1840). in: bAstos, M. H. c.; fAriA filho, L. M. de (orgs.). A escola elementar no século XIX, o método monitorial/mútuo. Passo Fundo: EdiuPF, 1999.

ferreirA, a. G. Três propostas pedagógicas de finais de seiscentos: Gusmão, Fenelón e Locke. coimbra: universidade de coimbra/Faculdade de Psicologia e de ciências da Educação, 1988.

GAlvão, a. M. de o. “a palmatória era a sua vara de condão”: práticas esco-lares na Paraíba (1890-1920). in: fAriA filho, L. M. de (org.). Modos de ler/formas de escrever: estudos de história da leitura e da escrita no Brasil. Belo Horizonte: autêntica, 1998.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Estatísticas históricas do Brasil. Séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1988. Rio de Janeiro: iBGE, 1990.

lesAGe, P. a pedagogia nas escolas mútuas do século XiX. in: bAstos, M. H. c.; fAriA filho, L. M. de (orgs.). A escola elementar no século XIX, o método monitorial/mútuo. Passo Fundo: EdiuPF, 1999.

mAnAcordA, M. a. História da educação. são Paulo: cortez, 1989.

moUrão, P. K. c. O ensino em Minas Gerais no tempo da República. Belo Horizonte: centro Regional de Pesquisas Educacionais de Minas Gerais, 1962.

Novo dicioNário Aurélio de líNguA PortuguesA. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

rAmos, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1993.

soUzA, R. de c. de. Práticas disciplinares na educação mineira. uma leitura das reformas educacionais de 1925 e 1927. in: GoUvêA, M. c. s. de; vAGo, t. M. História da educação: história de escolarização. Belo Horizonte: Horta Grande, 2004.

vAGo, t. M. Cultura escolar, cultivo dos corpos: educação physica e gymnastica como práticas constitutivas dos corpos das crianças no ensino primário de Belo Horizonte (1906-1920). Bragança Paulista: EdusF, 2002.

veiGA, c. G. Educação estética para o povo. in: lopes, E. M.; fAriA filho, L. M.; veiGA, c. G. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: autêntica, 2000.

RBHE 21.indd 90 4/10/2009 20:58:04

Page 91: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

cynthia Greive VEiGa

91Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

______. História social da infância: crianças pobres e não brancas na insti-tucionalização da instrução pública elementar em Minas Gerais, século XiX. Relatório de Pesquisa (Pós-doutoramento em História) – departamento de História, universidade de são Paulo, são Paulo, 2003.

_______. cultura escrita: representações da criança e o imaginário de infância. Brasil, século XiX. in: fernAndes, R.; lopes, a.; fAriA filho, L. M. (orgs.). Para a compreensão histórica da infância. Porto: campo das Letras, 2006.

Fontes documentais

arquivo Público Mineiro:

Presidência da Província

PP 1/42 caixas 2, 5, 7, 8, 10 e 12.

seção Provincial

sP códices 235, 235, 975.

secretaria do interior

códices 726, 2752, 2766, 2789.

série 4, instrução Pública, Portarias do Presidente do Estado e do secretário.

Livro da Lei Mineira, Ouro Preto: Typografia Provincial.

Coleção das Leis do Império do Brasil de 1827. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1878.

constitUição Política do império do Brasil (25 mar. 1824). in: dAntAs jUnior, J. da c. P. As constituições do Brasil. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1937.

Biblioteca da Faculdade de Educação da universidade Federal de Minas Gerais (uFMG):

revistA do eNsiNo. Orgam Official da Directoria da Instrucção.Bello Horizonte, ano iii, n. 22, ago./set. 1927.

Biblioteca Pública de Lavras (Minas Gerais):

vidA escolAr. Boletim Quinzenal do Grupo Escolar de Lavras. Editado pelo prof. Firmino costa, n. 4 e 30.

RBHE 21.indd 91 4/10/2009 20:58:05

Page 92: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Elaboração de hábitos civilizados na constituição das relações entre professores e alunos (1827-1927)

92 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 61-92, set./dez. 2009

Endereço para correspondência:cynthia Greive Veiga

Rua Lunardi, 248Belo Horizonte -MG

cEP 30770-030E-mail: [email protected]

Recebido em: 31 mar. 2008aprovado em: 4 jun. 2008

RBHE 21.indd 92 4/10/2009 20:58:05

Page 93: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

93Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

Encontros e desencontros no processo de constituição

do ensino superior no Paraná:

1912-1922

Névio de campos1

*

Resumo:Este artigo visa discutir o processo de criação da universidade do Paraná, em 1912, de seu desmembramento em Faculdades de Engenharia, de Medicina e de direito, em 1915, bem como de suas equiparações às congêneres oficiais nos anos de 1920 e 1922, enfatizando a concepção de ensino superior, as ações dos grupos envolvidos com o projeto universitário e as suas relações com o estado do Paraná e com os órgãos do Estado federal. ao privilegiar os contextos de produção das ideias e as ações dos agentes (intelectuais) no processo de organização do ensino superior no Paraná esta pesquisa insere-se na história intelectual da educação. apoia-se nos documentos Estatuto da Universidade do Paraná (1914), Relatório Geral da Universidade do Paraná (1913-1922), Revista Acadêmica e no conceito de intelectual como organizador da cultura sistematizado por antonio Gramsci.

Palavras-chave:história; intelectuais; universidade; cultura; formação humana.

* doutor em história da educação. Professor no Programa de Mestrado em Educação da universidade Estadual de Ponta Grossa (uEPG, Paraná).

RBHE 21.indd 93 4/10/2009 20:58:05

Page 94: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

94 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

Agreements and disagreements during the process of creation of higher

education in Paraná:

1912-1922

Névio de campos

Abstract:this article aims at debating the process involved in the creation of the university of Parana in 1912, its division into the Faculties of Engineering, Medicine and Law in 1915, as well as comparing it to other state universities in 1920 and 1922, emphasizing the concept of higher education, the acts of groups involved with the university project and its connections with the state of Parana and with the organs of the Federal state. Giving emphasis to the context in which ideas were produced and the actions taken by the (intellectual) agents in the process of organizing higher education in the state of Parana, this research inserts itself in the intellectual history of education. it is based on the documents statute of the university of Parana (1914), General Report of the university of Parana (1913-1922), academic Magazine and on the intellectual concept as the means of organizing culture, as sistematized by antonio Gramsci.

Keywords:history; intellectuals; university; culture; human formation.

RBHE 21.indd 94 4/10/2009 20:58:05

Page 95: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

95Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

Introdução

o presente artigo objetiva analisar o processo de criação da uni-versidade do Paraná (uP), o seu desmembramento em Faculdades de Engenharia, de Medicina e de direito e as ações que visavam suas equi-parações às congêneres brasileiras. Nesses termos, as questões referentes à concepção de ensino superior e ao papel dos intelectuais são centrais neste texto, pois pensamos que a inteligência paranaense postulava ser portadora da missão de conduzir o seu Estado em direção à modernização e à renovação cultural, ao eleger a universidade como lócus por exce-lência desta tarefa. a rigor, a tendência moderna é de que o intelectual se institucionalize na universidade. Nesse sentido, concordamos com Eduardo Prado Coelho (2004, p. 14), ao afirmar que “[...] é fundamen-talmente como universitários que eles se definem profissionalmente. [...] eles não são intelectuais da igreja, mas intelectuais da universidade: é a universidade que lhes dá aquela plataforma de autoridade na qual um intelectual se apóia”.

Não obstante, se a universidade define a intelectualidade moderna, a divergência transparece ao serem elaboradas as diferentes concepções de ensino superior. os modelos clássicos de ensino superior da era moderna são o humboldtiano e o napoleônico. Entre os paranaenses, o segundo modelo mostrou-se predominante, pois o grupo privilegiou a criação das faculdades de formação profissional embora, na sua origem, tenha recebido o nome de universidade do Paraná. a rigor, de acordo com os fundadores da universidade paranaense, a pretensão seria criar a Escola de odontologia e comércio, posteriormente Escola de agrimensura, odontologia e comércio. Mais tarde, sugeriram a inclusão dos cursos de medicina e de obstetrícia. Pelo número de escolas o grupo perguntava-se: “como introduzir esse curso na projetada escola, se o nome dela já estava tão comprido? um de nós levantou então a idéia de darmos, nesse caso, ao nosso futuro instituto o nome de ‘universidade do Paraná’” (Relatório..., 1913, p. 15). salientamos que a determinação fundamental à denominação universidade foi de ordem prática e não de ordem con-

RBHE 21.indd 95 4/10/2009 20:58:06

Page 96: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

96 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

ceitual, o que evidencia a aproximação entre o projeto paranaense e o modelo napoleônico.

Guardadas as diferenças de concepções de ensino superior, a dis-cussão a respeito da missão da universidade e do papel do intelectual ganhou relevância entre os grupos universitários. desse modo, este ar-tigo enfatiza os aspectos de organização do ensino superior ao discutir o processo de criação da universidade do Paraná e ao dialogar com o conceito de intelectual como organizador da cultura, sistematizado por antonio Gramsci, privilegiando mais as funções dos intelectuais, suas iniciativas no campo político e na direção de projetos educacionais do que a sua formação e a sua obra literária, filosófica ou científica.

Universidade do Paraná: encontros e desencontros de sua invenção

Em 1912, nasceu a universidade do Paraná. os fundadores criaram a ideia de universidade-monumento para estabelecer em seu favor a re-presentação de grupo esclarecido, atento às necessidades de sua época. Para Vitor do amaral e Nilo cairo, no decorrer da última década do século XiX e na primeira década do XX, a capital paranaense construiu as bases necessárias para a criação da universidade, o que justificaria a proposição de criação da universidade nessa cidade.

segundo Vitor do amaral, “a universidade do Paraná surgiu, como sabeis, quase ex-abrupto, sem grande período de incubação: – foi o produto de um gesto quase impulsivo, uma obra de audácia – audentes fortuna juvat”1 (Relatório..., 1913, p. 3). a uP constituiu o espaço que institucionalizou a visão de mundo dos especialistas, pois os discursos do médico e do engenheiro ganharam força de verdade entre a elite curi-tibana a partir do início do século XX. A afirmação de Vitor do Amaral visava consolidar a ideia de que o cenário cultural curitibano reconhecia a missão civilizatória do engenheiro e do médico, ou melhor, os “homens

1. a fortuna ajuda os audazes. o bom êxito depende de deliberações arriscadas.

RBHE 21.indd 96 4/10/2009 20:58:06

Page 97: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

97Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

da ciência” vinham, desde o último quartel do século XiX, agindo no sentido de tornar legítimo o seu discurso entre os paranaenses.

No movimento pela criação da universidade existiram duas iniciati-vas: uma da qual fazia parte Vitor do amaral e outra que foi coordenada por Nilo cairo. a primeira foi iniciada pelo professor Fernando Moreira, proprietário da Escola Republicana, em curitiba, quando em um en-contro com o ministro da instrução Pública, Rivadávia corrêa, aventou para a possibilidade de criação de uma universidade no Paraná. a razão imediata daquele encontro visava viabilizar a equiparação da referida escola ao Ginásio Paranaense. No entanto, a discussão central referia-se ao problema da liberdade de ensino. sobre esse aspecto o ministro entendia que deveria existir liberdade para a iniciativa particular criar instituições educativas nos diferentes graus de ensino. segundo david carneiro (1963, p. 534), o ministro teria dito: “o ensino deve ser livre e se o senhor quiser fundar uma universidade, tem desde já a minha licença, porque não haverá lei capaz de impedi-lo”. Carneiro afirmou que Moreira, ao chegar a curitiba, conversou com Josino tito da costa Lobo a fim de angariar recursos materiais para implantar o projeto uni-versitário. Apesar de não receber financiamento, não abandonou a sua ideia e convidou diversas pessoas para uma reunião que aconteceu no dia 11 de junho de 1912, evento que o jornal correio do sul noticiou, citando que participaram do referido encontro Panfilo de Assunção, Vitor do amaral, chichorro Junior, Fernando Moreira e os banqueiros Ernesto canac e Manoel de Miranda Rosa.

Vitor do Amaral informou que em conjunto com Panfilo de Assunção trataram de organizar as bases do projeto universitário que seria, poste-riormente, submetido à assembleia dos professores. Nesse ínterim, Vitor do amaral foi ao Rio de Janeiro e a são Paulo observar os programas das Faculdades de direito e de Medicina e das Escolas Politécnicas com o fim de trazer subsídios para organizar os programas dos primeiros cursos de ensino superior.

a segunda iniciativa que visava estabelecer uma universidade no Paraná foi organizada por Nilo cairo e Flávio Luz. a esse grupo foram incluídos Vitor do Amaral e Panfilo de Assunção. Amaral afirmava que teve

RBHE 21.indd 97 4/10/2009 20:58:06

Page 98: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

98 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

[...] a fortuna de ser procurado pelo sr. dr. Nilo cairo da silva, cuja enor-me capacidade de trabalho era então por mim desconhecida, o qual, julgando fracassada a minha tentativa de organização, vinha me convidar para lente da cadeira de obstetrícia de uma universidade, cujo plano ele estava elaborando [Relatório..., 1913, p. 4].

Em 1912, o grupo responsável pela criação da uP contou com a coordenação de Nilo cairo e de Vitor Ferreira do amaral. segundo Macedo Filho, professor da Faculdade de direito,

Nilo cairo, Vitor do amaral, daltro Filho e Flávio Luz foram os paladinos intemeratos da idéia agigantada que se deveria concretizar no empreendimento que apesar dos anos decorridos não encontrou parelhas no Paraná e mesmo em outros Estados de maior riqueza e população [Revista Acadêmica, 13 jun. 1934, pp. 4-5].

além de Nilo cairo e Vitor do amaral, o grupo que se reuniu para estabelecer a Universidade do Paraná ficou assim composto: Panfilo de assunção, presidente da associação comercial (assumiu a cadeira Parte Geral do direito civil, direito civil das obrigações); Manoel de cer-queira Daltro Filho, engenheiro militar (ficou responsável pela cadeira de Mecânica Racional e interinamente com Álgebra); Flávio Luz, diretor do Ginásio Curitibano (ficou responsável pela cadeira Parte Geral do direito criminal, sociologia criminal, criminologia); professor Julio Teodorico Guimarães (responsável pela cadeira de Caligrafia e Datilo-grafia no curso de Comércio); Reinaldo Machado (assumiu a cadeira de clínica Ginecológica e Ginecologia; e outra de obstetrícia); Hugo simas (responsável pela cadeira de Economia Política e Finanças, contabilidade do Estado); Euclides Beviláquia (assumiu a cadeira de teoria e Prática do Processo civil e criminal); João david Perneta (responsável pelas cadeiras de Geometria Analítica e de Cálculo Infinitesimal).

Nilo cairo, considerado pelo grupo o principal fundador, assumiu várias cadeiras na área médica. Estudou na Escola Militar e na Escola de Medicina do Rio de Janeiro. Vitor do amaral, considerado pelo grupo

RBHE 21.indd 98 4/10/2009 20:58:06

Page 99: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

99Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

“reitor de sempre”, recebeu sua formação intelectual na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. os dois estavam atrelados a um ambiente cultural marcado pelas mentalidades positivas e científicas.

A filosofia positiva começou a ganhar espaço entre a intelectualidade brasileira, paulatinamente, a partir de 1850. a Escola Militar foi o centro don-de começaria tal doutrina a orientar as pesquisas. Para Barros (1986, p. 114),

Voltados para problemas matemáticos e físicos, faltava aos nossos “bacha-réis de farda” um pensamento filosófico diretor, uma doutrina científica geral, em função da qual organizassem metodicamente o seu saber. Não poderiam satisfazê-los o ecletismo à Cousin ou as outras filosofias em moda no país, geralmente divorciadas da ciência.

Naquela instituição, inúmeros trabalhos foram feitos sob inspiração da filosofia positiva de Comte. Entretanto, conforme indica Barros, num primeiro momento, não foi a filosofia da história que chamou a atenção dos estudiosos da Escola Militar porque não se questionou a organização do país, mas

O seu papel é apenas o de chamar a atenção para a figura de Comte, esta-belecer no país o seu prestígio como teórico das ciências físicas e matemáticas e possibilitar, mais tarde, a transferência desse prestígio para o campo das questões históricas, sociais e políticas [Barros, 1986, p. 116].

o programa da Escola Militar foi re-estruturado, no início da Re-pública, com a reforma do ensino promovida por Benjamin constant. as novas propostas visavam tornar o soldado brasileiro como símbolo tanto da força quanto da inteligência, contribuindo com a ordem e o progresso da sociedade brasileira. segundo João Quartim de Moraes, a reforma da Escola Militar visava constituir um novo modelo de soldado que, para tanto,

Precisa de uma educação científica que [...] o habilite pela formação do coração, pelo legítimo desenvolvimento dos sentimentos afetivos, pela ra-

RBHE 21.indd 99 4/10/2009 20:58:07

Page 100: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

100 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

cional expansão de sua inteligência, a bem conhecer os seus deveres não só militares como principalmente sociais. segue um plano de “ensino integral”, obedecendo às leis que tem seguido o espírito humano em seu desenvolvi-mento, começando na matemática e terminando na sociologia e moral como ponto de convergência de todas as verdades [Moraes, 1997, p. 74].

Enfim, a Escola Militar se tratava de uma instituição cuja finalidade era formar um corpo de intelectuais altamente comprometidos com o ideário da filosofia positiva, qual seja, a constituição do estado positivo. segundo Murilo de carvalho (1978, p. 195), o ensino da Escola Militar, “com a entrada do positivismo, passou a ser mais um centro de estudos de matemática, filosofia e letras do que de disciplinas militares”. De acordo com Barros (1986, p. 145),

Desde os princípios da ilustração brasileira [1870] outras filosofias po-pulares do século XiX eram divulgadas no país, ao lado do positivismo. No Rio de Janeiro, por exemplo, o dr. augusto césar de Miranda azevedo, em 1875, realizava uma série de conferências populares sobre o darwinismo.

Ao longo do último quartel do século XIX, a filosofia de Comte foi sendo substituída pelos teóricos da ciência: Pereira Barreto, um dos principais divulgadores da filosofia positiva de Comte no sul do Brasil, no final dos anos de 1870, abandonou a ortodoxia; Tobias Barreto, con-siderado o precursor do positivismo em Recife, abandonaria em pouco tempo esta teoria; Silvio Romero teria afirmado, conforme Barros (1986, p. 134), “comte só foi largado por amor a spencer, a darwin, e Haeckel, a Büchner, a Vogt, a Moleschott, a Huxley, e ainda hoje o lado inatacável, aquilo que sempre restará de sua brilhante organização filosófica, me prende completamente”. Para Barros, essa afirmação

[...] caracteriza a evolução da nova inteligência brasileira, que guardaria do filósofo francês o “espírito positivo” e, geralmente, pelo menos no período que estamos considerando [1870-1889], a crença na lei dos três estados, dei-xando para os infatigáveis apóstolos da religião da humanidade a conservação da doutrina integral do mestre. O positivismo faz-se cientificismo [p. 145].

RBHE 21.indd 100 4/10/2009 20:58:07

Page 101: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

101Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

o contato com essas novas ideias indicava a possibilidade do cultivo da ciência, pois os professores das faculdades reclamavam do excesso de teoria e da escassez de atividades práticas nos programas das cadeiras dos cursos de direito e de medicina, o que resultou em uma progressiva recepção do pensamento científico entre a intelectualidade brasileira, em contraposição às ideias metafísicas, bem como às letras.

Nilo cairo e Vitor do amaral foram instruídos neste contexto de efervescência das ideias do positivismo, do darwinismo, do spenceris-mo, do materialismo, do tainismo e de tantos outros, o que explica por que o projeto de 1912 estava imbuído dessas ideias. Nilo cairo da silva permaneceu fiel às ideias de Comte, pois é o que atesta a sua oração de paraninfo, intitulada Liberdade de ensino e liberdade profissional, proferida em 1914, em homenagem ao primeiro grupo de alunos que fez colação de grau na UP, na qual afirmava que a escola positiva

[...] tem sido [...] no nosso país, não somente a única a invocar, em favor das reformas que prega, os altos interesses coletivos da regeneração social, mas também de todas a mais apaixonada, a mais extremada, a mais ativa, a mais rica de razões elevadas, na propaganda da liberdade de ensino [silva, 1914, p. 16].

a constituição da uP contou com a participação de inúmeros inte-lectuais que exerciam suas atividades profissionais e políticas na capital paranaense. No que diz respeito à formação profissional e ideológica, a grande maioria a recebeu nas faculdades que existiam no Brasil, so-bretudo nas de medicina, direito e politécnica. Portanto, a universidade de 1912 tinha como preocupação fundamental a formação de profissio-nais para ocupar as funções burocráticas das esferas estatais, bem como desenvolver o progresso técnico no estado do Paraná, contribuindo com o projeto de constituição de uma nação moderna. Naquele momento observava-se a aproximação explícita entre os especialistas e os grupos dirigentes do estado, pois objetivavam ver a cidade ajustada à nova sensibilidade, aos parâmetros modernos, aos ideais do “progresso”. a rigor, desde a década de 1850, com a instalação do governo da província

RBHE 21.indd 101 4/10/2009 20:58:07

Page 102: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

102 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

do Paraná, ganharam “espaço na administração os profissionais com formação técnico-acadêmica. aos bacharéis reuniram-se os engenheiros, que viriam a ser os profissionais do urbano por excelência” (Pereira & santos, 2000, p. 87).

os fundadores da uP constituíram um grupo coeso, haja vista que eles expressavam o desejo de criação de cursos ligados as suas trajetó-rias profissionais. Existiu o encontro de horizontes entre os intelectuais fundadores, o que explica o reconhecimento desse projeto como parte fundamental do processo de modernização do Paraná. uma grande parcela da elite curitibana desejava a constituição desse projeto pois, no lançamento da pedra fundamental dos alicerces da uP, no dia 31 de agosto de 1913, estavam os representantes de diferentes instituições da capital paranaense, entre os quais destacamos carlos cavalcanti (presidente do Paraná), d. João Braga (bispo da diocese de curitiba), cândido de abreu (prefeito de curitiba), afonso camargo (vice-presidente do Paraná), arthur Franco (secretário da Fazenda), Hugo simas, representante do clube curitibano, sebastião Paraná e Enéas Marques, representantes dos jornais Comércio do Paraná e República, Emiliano Perneta do centro Paranaense de Letras e professores que compuseram o grupo fundador da universidade. salientamos que a presença de autoridades dirigentes do estado do Paraná e de curitiba, bem como de outras, expressava que o projeto universitário caracterizava-se como uma obra coletiva da elite desse estado. Grande parte dessas autoridades exerceu atividade docente ou administrativa na universidade. dentre essas, cândido de abreu2 e afonso camargo3, respectivamente prefeito e vice-presidente, os quais foram professores da uP.

a presença do bispo João Braga camargo caracterizava uma relação de diálogo entre o poder civil e o poder eclesiástico, pois entre os intelec-

2. Formado em engenharia. utilizou o espaço estatal para efetivar os projetos mo-dernos. daquela esfera contribuiu com a efetivação da universidade do Paraná, bem como para a presença do engenheiro nas tomadas de decisões das políticas públicas da capital e do estado.

3. Formado em direito pela Faculdade de direito de são Paulo.

RBHE 21.indd 102 4/10/2009 20:58:07

Page 103: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

103Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

tuais fundadores da uP não localizamos intervenções que expressassem um posicionamento anticlerical. Naquele momento, dario Velozo era o principal crítico do pensamento católico mas, entre os fundadores da uP, não houve contraposição explícita aos valores católicos, embora Vitor Ferreira do amaral estivesse vinculado à maçonaria e Nilo cairo se denominasse seguidor dos princípios da filosofia positiva de Comte. Nesse sentido, eles estabeleceram seu projeto de ensino superior como expressão de um novo Paraná, alicerçado no pensamento da ciência apli-cada. No entanto, de modo estratégico, não se detiveram em combater o pensamento católico, ou melhor, a tradição que marcava a cultura para-naense, pois entre os integrantes do grupo estavam pessoas vinculadas ao pensamento religioso-católico. Essa situação caracteriza que o projeto universitário não explicitava as querelas ideológicas do clericalismo e do anticlericalismo mas, sim, expressava o desejo de constituir um novo projeto para o estado.

Nilo Cairo afirmava, por exemplo, que no início da República, a lei “emancipou a igreja católica da tirania do poder temporal” (silva, 1914, p. 5). Essa assertiva estava no interior da discussão sobre a liberdade de ensino, e considerava que esse debate marcou tanto os católicos quanto os positivistas, uma vez que o sistema oficial de ensino representava um impedimento para a efetivação de instituições particulares de ensino. ao sustentar que a igreja se emancipou do Estado, e não o inverso, Nilo cairo visava consolidar a tese do ensino livre. além disso, ao pôr a igreja como vítima na história do Brasil, ele estabelecia uma convivência pacífica entre o grupo fundador da uP e o clero católico paranaense.

Nilo cairo falava num contexto em que o Estado tinha uma marca centralizadora pois, ao longo do período imperial, houve predominância desse pensamento culminando com a ideia de criar uma universidade, desde que resguardado o princípio da centralização. Em um Estado cen-tralizador, o próprio clero foi controlado, pois, de acordo com Roberto Romano (1991, p. 81), “na colônia, foi tão forte o mando laico sobre o instituto eclesiástico que se pode falar deste último como uma corporação que foi transformada em serva do poder secular, como um departamento do Estado”. Nilo cairo proclamava a necessidade da liberdade de ação

RBHE 21.indd 103 4/10/2009 20:58:08

Page 104: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

104 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

dos indivíduos no campo da educação, principalmente no ensino supe-rior e, nessa ação, a igreja católica representava uma aliada importante.

a aceitação do projeto universitário em curitiba deu-se pela ação coordenada da elite paranaense, embora tenha existido resistência entre parte dos intelectuais e políticos do Paraná, pois, de acordo com Vitor do amaral, no momento da criação da universidade havia “uma atmosfera pouco propícia de dúvidas e desconfianças, sobre a orientação que ela se propunha a rotear. Houve mesmo incrédulos que custaram a dela afastar os maus augúrios, os lúgubres vaticínios” (Relatório..., 1913, p. 5). Em outra passagem ele afirma que

a existência de nossa universidade, é, pois, uma realidade; ninguém pode mais considerá-la uma vã tentativa arriscada a abortar; a regularidade com que funcionaram as aulas dos diversos cursos e a seriedade com que foram realizados os exames finais, em que não foram raras as reprovações, tudo demonstra que se trata de uma instituição com todos os requisitos de viabilidade [Relatório..., 1913, p. 7].

Entendemos que, além de ser uma resposta aos críticos da universi-dade, o autor afirmava que a regularidade das aulas, a rigidez dos exames e o índice de reprovação sustentavam a ideia de que a uP era expressão de um ensino de qualidade.

carlos cavalcanti de albuquerque4 não exerceu atividades docentes na uP no período (1912-1916) em que esteve na presidência do Paraná5. Não obstante, subvencionou a instituição com 80 contos de réis, no ano

4. Em 1879 foi para Porto alegre concluir o curso na Escola de cadetes. Mais tarde ingressou na Escola Militar da Praia Vermelha, donde recebeu o título de bacharel em ciências físicas e matemáticas. a sua trajetória política foi constituída no Partido Republicano.

5. No período provincial (presidente); na fase republicana do governo provisório (go-vernador); a constituição Estadual de 4 de julho de 1891 restabeleceu a expressão de presidente; a constituição Estadual de 7 de abril de 1892 adotou o título de governador, que permaneceu até 1904. a partir daí se restabeleceu, por emenda à constituição, o antigo tratamento de presidente; a constituição Federal de 1934 reintroduziu o título de governador.

RBHE 21.indd 104 4/10/2009 20:58:08

Page 105: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

105Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

de 1913. No relatório final, João Soares Barcellos, tesoureiro da univer-sidade, mencionava que

É-nos muito justo ponderar aqui que a quantia de Rs. 80:000$000 [80 réis], que tão bondosa e utilmente nos concedeu o Exmo. sr. dr. carlos cavalcanti, digníssimo e honrado Presidente do Estado do Paraná, de acordo com o seu decreto n. 389, de 23 de maio deste ano, a título de auxílio, poderosamente contribuiu para que o estado econômico deste estabelecimento se desenvol-vesse com observada rapidez [Relatório..., 1913, p. 96].

No período em que foi fundada a uP cândido de abreu foi outra liderança política que pôs o poder público a serviço do projeto univer-sitário no Paraná. Ele exerceu a função de dirigente político da cidade, concomitantemente à função de professor no curso de engenharia civil. Na condição de prefeito, fez a doação do terreno para construção da universidade. o relatório de 1913 enfatizava:

com desmedido prazer, também consignamos no nosso relatório a avul-tada oferta de um dos mais belos e valiosos terrenos que possui esta capital, com o qual o Exmo. sr. dr. cândido Ferreira de abreu, digníssimo Prefeito de curitiba, doou à universidade do Paraná, para que nele fosse construído o imponente edifício deste estabelecimento, o qual já se acha em adiantada construção [Relatório..., 1913, p. 96].

a presença dos especialistas entre os dirigentes do Estado caracte-rizava a importância que foi dada ao pensamento técnico no processo de constituição da modernização do Paraná. a uP representava o espaço de formação desses arautos da modernização. Nesse sentido, os seus fundadores contaram com a participação e o apoio da elite dirigente do Paraná no processo de criação da universidade, ou melhor, os intelectuais, particularmente Nilo cairo e Vitor do amaral, aglutinaram em torno de seu projeto diversos personagens importantes e influentes no cenário político e cultural de curitiba e do Paraná, o que foi fundamental para a efetivação da universidade.

RBHE 21.indd 105 4/10/2009 20:58:08

Page 106: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

106 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

Estratégias para a consolidação da Universidade do Paraná

Entre o período de desmembramento (1915) e de equiparação (1922), o grupo da uP estabeleceu diferentes estratégias que visavam dar sustentação ao projeto de ensino superior em curitiba. a primeira foi a criação do Livro de Visita, no qual diversas autoridades políticas e acadêmicas registraram suas observações de apoio ao projeto dos paranaenses. a segunda foi a fundação da Revista Acadêmica, órgão do centro acadêmico do Paraná, organizada com a participação do corpo docente. Esse periódico consistiu-se em um dos mais importantes meios de comunicação da produção acadêmica, bem como de propaganda da instituição de ensino superior, ou seja, foi o responsável pela publiciza-ção do discurso institucional. a terceira foi a criação da Maternidade do Paraná e de cursos de extensão.

Vitor do Amaral afirmava: “enquanto não se pode cumprir essa finalidade regulamentar [equiparação], não cesso de convidar pessoas eminentes para visitarem e verificarem de venço que ela não se arreceia de uma fiscalização criteriosa” (Relatório..., dez. 1916, p. 223, grifo do original)6. Essa estratégia serviu para legitimar as faculdades entre os paranaenses, particularmente entre a juventude, bem como entre as au-toridades do governo federal, responsáveis pela fiscalização e expedição de decreto de reconhecimento das instituições de ensino superior.

inúmeros comentários que saudavam o empreendimento universi-tário paranaense foram publicados na Revista Acadêmica, entre os quais destacamos o de Romário Martins7:

Eu não sou um convencido da nossa capacidade criadora, mas tive de curvar-me à evidência dessa brilhante realidade que, singularmente, patenteia

6. a referência ao Relatório da universidade ou da Faculdade de Medicina e a discursos feitos por Vitor F. do amaral está paginada de acordo com a obra Vitor Ferreira do Amaral e Silva (o reitor de sempre), organizada por Eduardo c. Lima (1982), com exceção do relatório de 1913, que está sendo usado o original.

7. Historiador paranaense.

RBHE 21.indd 106 4/10/2009 20:58:09

Page 107: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

107Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

a vitória mais eficiente que há produzido em nosso meio a pró de uma obra de tão dilatada extensão e ligada a tão múltiplas dificuldades, num centro como o nosso, infenso a estimular iniciativas de tal porte [Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 285].

Em 17 de fevereiro de 1916, os membros da missão científica americana do instituto Rockfeller, em companhia de Rodolfo Joseti, manifestaram que “seria um crime do conselho superior do Ensino não equiparar a universidade do Paraná pois, no Brasil, não conhecia ele outro instituto de ensino superior tão bem montado como o do Paraná” (Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 288). outras observações foram feitas pelo grupo, como a de Richard Pearce: “congratulo-me com a universidade do Paraná, pela sua bem montada Faculdade de Medicina” (idem, ibidem). Também John Ferrie afirmava: “é-me sumamente grato observar o excelente edifício e instalação da universidade do Paraná, e ainda mais especialmente o entusiasmo para a sua manutenção e pro-gresso manifestado pelos membros do corpo docente” (idem, ibidem).

O parecer desse instituto científico representou naquele contexto muito prestígio para a Faculdade de Medicina, pois, dentre as três facul-dades, aquela era a mais criticada. outra ação dos diretores da Faculdade de Medicina foi convidar George Dumas, médico-psiquiatra e filósofo de formação positivista, para fazer conferência sobre neurologia no Pa-raná, quando se afirmou que “tem o nosso culto povo a imensa ventura de ter hospedado, por pequeno lapso de tempo, o eminente professor de psicologia da sorbone, dr. George dumas, uma das maiores e das mais acatadas mentalidades científicas da França, a grande nação amiga” (Revista Acadêmica, dez. 1917, p. 242). a presença de George dumas teve forte representação simbólica, pois foi um dos personagens centrais de intercâmbio cultural entre a França e o Brasil, desde 1907/1908, em-bora sua presença tenha sido marcante no processo de constituição da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo.

o grupo paranaense publicou as observações de dumas que elo-giavam os edifícios e as instalações da jovem universidade de curitiba. Afirmou que essa universidade tinha um futuro promissor, e que traria

RBHE 21.indd 107 4/10/2009 20:58:09

Page 108: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

108 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

muitos méritos para o Paraná e para o Brasil. A impressão desse filósofo representava um significativo reconhecimento entre os intelectuais, pois expressava a visão de um pensador francês, o que, no início do século, caracterizava forte sentido simbólico.

a Revista Acadêmica fez a descrição das atividades, dos espaços e dos móveis pedagógicos existentes na universidade. o diretor da revis-ta descreveu a arquitetura da universidade, cujo artigo foi antecedido pelo debate em torno do uso de cadáveres nas aulas de anatomia. os críticos da faculdade afirmavam que o ensino se baseava sobremaneira na especulação. No entanto, o redator indicava que a faculdade estava estruturada com inúmeros laboratórios, o que minimizava a acusação de que a formação do médico não privilegiava a experimentação.

Plácido e Silva afirmava que “seu edifício, altaneiro, se ergue à Praça Santos Andrade, como um atestado eloquente de sua solidificação. Já denominado em feliz expressão o Palácio da Luz, é de construção elegante e luxuosa, merecendo elogiosas referências dos técnicos” (Revista Acadê-mica, nov./dez. 1918, p. 282). Naquele contexto, o edifício da instituição simbolizou o que existia de mais moderno na capital paranaense. No dizer do redator, “de estilo moderno, sua fachada forma um conjunto artístico que agrada a todos, mesmo aos profanos na arte, tornando o edifício um dos principais prédios da nossa capital” (idem, ibidem).

O discurso de Romário Martins reafirmava esse imaginário ao enunciar que o prédio era todo pomposo e “iluminado”, contrapondo-se à escuridão noturna da santos andrade. os termos “iluminado” e “Palácio da Luz” podem ser interpretados em dois sentidos: do ponto de vista técnico, o edifício representou um marco na cidade curitibana; no plano metafórico, o grupo utilizava essa marca do monumento para explorar a ideia de que o saber científico representava a luz no meio da escuridão. Romário Martins fez alusão a esse sentido ao dizer que “ca-minhava por trilho que, não fosse meu ilustre guia já o saber de cor, não sei se eu chegaria a penetrar sozinho no templo resplendente de luz interior que é a nossa universidade” (Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 285). E continuava o autor,

RBHE 21.indd 108 4/10/2009 20:58:09

Page 109: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

109Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

Parece que a prefeitura quis, propositalmente, abandonando de melho-ramentos esse local da cidade, simbolizar, na ironia de um caos, que para se chegar aos conhecimentos da cultura humana é mister palmilhar primeiro os devaneios do atraso, tatear a rudeza dos caminhamentos, acender os olhos na noite da ignorância para os ir acostumando à luz radiosa da sabedoria [Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 285].

Plácido e silva descreveu com minuciosos detalhes a parte interior da uP, que ocupava uma área de três mil metros quadrados, o que a caracterizava como uma das maiores da américa do sul. Era formada por cinco pavimentos, além da cúpula que compreendia dois andares e um palanquim. No primeiro pavimento existiam dois anfiteatros de aulas orais, o Laboratório de anatomia e o almoxarifado. No segundo, conti-nuava o redator, tem anfiteatro de aula oral, tecnologias das profissões elementares, sala para alunas, assistência judiciária, clínica dentária. No terceiro localizava-se a administração da instituição, destacando-se a sala do conselho superior, na qual

[...] a sua ornamentação, além de artística, dá-nos a impressão nítida de que ela é destinada a atos solenes e faustosos. Há aí, em símbolo, a representação de todos os cursos da universidade e mais suas armas e as do Município e do Estado, tudo acabado com capricho e formando um belo conjunto [Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 284].

No quarto pavimento havia o Laboratório de Microbiologia, o Museu de História Natural, o Museu de anatomia, o Laboratório de Fisiologia, o gabinete de Física Experimental e o Laboratório de Histologia, que “são constituídos pelo que há de mais perfeito e moderno em matéria de ensino, não temendo confronto com os seus congêneres de outras escolas brasileiras” (Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 284). É in-teressante observar que a descrição dos inúmeros laboratórios e museus estabeleceu a imagem de que o ensino superior não estava centrado na formação teórica, mas nas aulas experimentais. Naquele contexto, criar essa representação do ensino dado na universidade consistia numa estra-

RBHE 21.indd 109 4/10/2009 20:58:09

Page 110: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

110 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

tégia de luta para sua legitimação entre os paranaenses bem como entre as autoridades federais. No quinto pavimento estavam os laboratórios de Química Geral e de análises e as salas de desenhos. Na cúpula nada tinha sido instalado, no entanto, conforme o autor, a intenção da diretoria era criar os observatórios de astronomia e de estação metereológica.

Essa estratégia visava deslegitimar as críticas endereçadas à uni-versidade, particularmente aquelas que diziam não haver laboratório, ou melhor, não existir estrutura para aulas experimentais. a impressão criada pelo redator é de que a universidade não só tinha um edifício monumental, mas também estava marcada pelos elementos da pedagogia moderna. Nesses termos, o progresso e a modernização da cidade expressavam os saberes da ciência que eram ensinados na uP.

Na década de 1910, a modernização da cidade foi uma preocupa-ção fundamental do grupo dirigente de curitiba e do Paraná. Portanto, o projeto arquitetônico da uP deve ser observado dentro daquele contexto cujo objetivo era a afirmação do discurso técnico-científico. Neste artigo, não queremos discutir a concepção de arquitetura presente no edifício da universidade8, no entanto, ao extrapolar a questão localizada nesse prédio, vemos que naquele contexto fazia parte do projeto político da República estabelecer edifícios luxuosos e pomposos na cidade, par-ticularmente instituições de ensino que expressassem a concepção da educação republicana.

No início da República, principalmente em são Paulo, começou o processo de constituição dos grupos escolares, os quais visavam es-tabelecer uma das representações da República. sob a inspiração das iniciativas daquele estado, a partir do início do século XX, foram criados vários grupos escolares em curitiba. No dizer de Marcus Levy Bencostta,

No discurso daqueles que implantaram, no Brasil, o novo regime político em 1889, era preciso, além da justificação racional do poder, a fim de legitimar

8. a obra Universidade Federal do Paraná: um edifício e sua história, escrita por antonio J. Gonçalves Junior, pode contribuir para o entendimento das diferentes características da arquitetura do prédio da uP.

RBHE 21.indd 110 4/10/2009 20:58:10

Page 111: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

111Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

a República, construir uma nação pautada em valores que demonstrassem estar em definitivo sintonizados com as mudanças que o mundo moderno apresentava [Bencostta, 2001, p. 104, grifo do original].

Nessa direção, o modelo arquitetônico da universidade participava desse projeto que visava consolidar o ideário republicano sobre a educa-ção. ao mesmo tempo, expressava o projeto de modernização do Paraná. Havia, então, uma aproximação entre a concepção de arquitetura dos grupos escolares e a acepção de arquitetura presente na uP.

a uP contribuiu com o estabelecimento das crenças no progresso, na ciência e na modernização do Paraná. interessa a este artigo as repre-sentações criadas sobre a arquitetura da universidade, particularmente a noção de Palácio da luz. Para antonio Gonçalves Junior (1997, p. 59), “o Partenon na acrópole de atenas é uma imagem tão difundida e tão representativa da expressão arquitetônica do mundo ocidental, que talvez tenha se tornado no inconsciente coletivo a referência mais importante da arquitetura”. a arquitetura da uP representou, naquele momento, o símbolo da civilização e do progresso. o grupo paranaense projetou a arquitetura da UP como expressão da modernização, o que afirmava a positividade da ciência e da uP na cidade curitibana.

a terceira estratégia visava consolidar a ideia de universidade entre todos os paranaenses. Para tanto, foram estabelecidos a Maternidade do Paraná e os cursos de extensões para afirmar entre a população curiti-bana o papel da uP. a Maternidade do Paraná foi criada em 3 de agosto de 1914 para atender ao público curitibano, bem como desenvolver a aprendizagem prática dos alunos da Faculdade de Medicina. conforme Vitor do amaral, “a Maternidade do Paraná continuou a prestar seus inestimáveis serviços à assistência de partos, onde mães indigentes, com o fruto de suas entranhas, têm encontrado seguro abrigo” (Relatório..., dez. 1916, p. 226).

os cursos de extensão visavam atender a outras pessoas que não tinham condições de frequentar a universidade servindo, também, para divulgar a função social dessa instituição. Fazemos menção ao curso de enfermagem, iniciado em 1917, noticiado por vários órgãos da imprensa

RBHE 21.indd 111 4/10/2009 20:58:10

Page 112: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

112 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

curitibana. a Revista Acadêmica mencionou que o jornal A República teceu muitos elogios a essa iniciativa. Essa revista republicou o artigo original escrito pelo referido jornal, do qual destacamos a seguinte afirmação: “é uma bela e louvável iniciativa a do ilustre diretor da universidade que assim coopera com eficiente patriotismo na obra de providência que o momento aconselha a todos os brasileiros” (Revista Acadêmica, ago. 1917, p. 135). Esse curso de extensão tratava de orien-tação de primeiros socorros a enfermeiras voluntárias da cruz Vermelha Paranaense, versando sobre as principais noções sobre o corpo humano: ossos, articulações e músculos; órgão e aparelhos; ferimentos e contusões; meios de tratamento; fraturas e luxações; hemorragias e queimaduras; asfixia e envenenamento; convulsões; meio de transporte de doentes e feridos; cuidados com os enfermos em geral; noções gerais de higiene e preparação do luto e do aposento do enfermo.

Universidade do Paraná: a separação administrativo-didática e a luta pelo reconhecimento oficial junto ao governo federal

a Reforma Rivadávia corrêa não representou a consolidação do sistema livre de ensino, embora tenha sustentado a criação de diversas universidades nas capitais brasileiras, pois, em 1915, a Reforma carlos Maximiliano, por meio do decreto n. 11.530, determinava que caberia ao governo federal a criação de universidade no Brasil. Esta nova legislação expressava a centralização do ensino superior nas mãos do governo fe-deral, predominante ao longo de sua história, o que implicou a supressão das universidades existentes naquele período.

segundo Plácido e silva, diretor da Revista Acadêmica, a uP, ini-cialmente,

[...] compreendia vários cursos agrupados em torno do estabelecimento. assim permaneceu até mil novecentos e quinze. depois, para mais facilitar sua fiscalização, exigida, para validade de seus diplomas, pela reforma pos-

RBHE 21.indd 112 4/10/2009 20:58:10

Page 113: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

113Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

tergadora de seus direitos adquiridos, ficou subdividido em três faculdades [Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 280].

do ponto de vista jurídico, não havia outra saída a não ser seguir as dire-trizes da nova lei. Nesse sentido, a universidade do Paraná transformava-se em Faculdade de direito, com os cursos de direito e de comércio, em Facul-dade de Engenharia, com os cursos de engenharia civil e de agronomia, e em Faculdade de Medicina, com os cursos de medicina, odontologia, obstetrícia e veterinária. de acordo com Plácido e silva, “o curso de comércio que, até 1918, se achava anexado à Faculdade de direito, passou a se constituir em curso à parte” (Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 280).

anteriormente a esses problemas que determinaram o desmembra-mento da UP, o grupo enfrentou dificuldades de ordem financeira. De acordo com Macedo Filho, a partir de 1913,

[...] seguiu-se um período de tremendas dificuldades de ordem financeira e também de ordem moral, em que foi posta à prova a energia, a coragem e a tenacidade dos diretores do corpo docente. todos, porém, se mantiveram a altura da situação e, estoicamente, surdos aos prognósticos dos pusilânimes, tendo a alentar-lhes apenas a imensa vontade de vencer, mantiveram-se em seus postos mesmo com enormes sacrifícios [Revista Acadêmica, jun. 1934, p. 6].

conforme relatório de 1913, a uP contabilizou o ano com receita de aproximadamente 16 contos de réis. o seu patrimônio estava avaliado em 223 contos de réis. Não obstante, o grupo precisava construir um novo prédio, cuja pedra fundamental fora lançada em agosto do corrente ano. Dessa forma, “a construção vai sendo feita com a máxima rapidez, a fim de poder, em abril próximo futuro, dar abrigo aos cursos da universidade, embora mesmo não estejam ainda ultimadas as obras” (Relatório..., dez. 1913, p. 6). Naquele momento, a uP já contava com as subvenções de 80 contos de réis do estado do Paraná e com 50 contos de réis da união. a dificuldade financeira originou-se, portanto, do investimento que estava sendo feito na construção do seu edifício na Praça santos andrade, cujo terreno fora doado pela Prefeitura Municipal de curitiba.

RBHE 21.indd 113 4/10/2009 20:58:10

Page 114: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

114 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

No ano de 1914, a contabilidade da uP relatava que a receita foi de 193 contos de réis e a despesa de 268 contos de réis, o que gerou um déficit de 74 contos de réis. No entanto, o grupo não expressava grande preocupação, pois sabia que tal dívida se devia aos investimentos feitos pela instituição. a rigor, conforme Vitor do amaral, se a universidade tivesse vendido seu terreno, cujo valor é de 30 contos de réis, bem como recebido 5 contos da prefeitura e 15 contos da união, o valor da dívida seria de 24 contos de réis. Entretanto, afirmava Amaral, “sob o ponto de vista financeiro se não devemos nos lisonjear pelo nosso estado eco-nômico, atingido como tudo o mais no nosso país pela crise mundial, também não temos motivos para grandes apreensões” (Relatório... dez. 1914, p. 209).

a uP precisava investir na criação do edifício próprio, bem como em laboratórios, ou seja, nos elementos necessários para estruturar o ensino e garantir o reconhecimento pelo governo federal. No dizer de Vitor do amaral,

a dívida existente resulta mais da montagem dos laboratórios, gabinetes e museus com que está dotada a universidade, estando a chegar o restante do material encomendado há mais de dois anos, constante de custosas má-quinas e aparelhos para o gabinete de resistência de materiais da Faculdade de Engenharia [Relatório..., dez. 1916, p. 227].

Não obstante, para Vitor do amaral,

o maior abalo que a universidade tem tido é o decreto n. 11.530, de 18 de março de 1915, ainda em discussão no congresso Nacional, o qual veio restringir e anular direitos garantidos pela Lei n. 8.659, de 5 de abril de 1911, sob cuja exide ela foi criada [Relatório..., dez. 1916, p. 223].

Não há dúvida que o decreto de 1915 representou ameaça à uP, pois simbolizou a derrota do ideário do ensino livre tão defendido por grande parte dos intelectuais brasileiros no decorrer das últimas décadas do século XiX, bem como nas primeiras décadas do século XX. Essa

RBHE 21.indd 114 4/10/2009 20:58:11

Page 115: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

115Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

situação causou insatisfação a Nilo cairo, um dos maiores defensores do sistema de ensino livre, o que implicou a sua retirada do Paraná passando a viver em são Paulo.

Em correspondência enviada a Vitor do amaral, no dia 17 de abril de 1917, Nilo cairo dizia “do resto do mundo nem quero saber [...]. inveje-me, pois, Vitor, e desculpe-me se não trato mais das coisas da sua universidade. do resto do mundo, repito, não quero mais saber” (carneiro, 1984, p. 32)9. Em outra carta, escrita em 14 de maio de 1917, dizia a Vitor do amaral: “se não morrer dentro de dez anos, espero ser o homem mais feliz da terra, depois de 42 anos de luta, inglória e vã” (carneiro, 1984, p. 34). Nilo cairo afirmava que não acreditava “uma linha no reconhecimento dela [a UP] pelo Poder Legislativo. os nossos deputados e o governicho [do Paraná] não valem dois caracóis junto da união e nada farão” (carneiro, 1984, p. 37). Na mesma correspondência ainda continuava:

imagino certamente a prebenda que v. leva aos ombros em caminho do cemitério das nossas ilusões. o Paraná não é ainda, nem será por dois ou três séculos, terra para universidades! E v. há de agora confessar que eu fiz muito bem em atirar tudo isso às ventas de um povo atrasado, cujos dirigentes não compreendem o bem que se faz à sua terra [carneiro, 1984, p. 38].

Ele encerrava a sua carta dizendo, “v. também há de ser crucificado porque ninguém, certamente há de avaliar o que gastamos de fósforo cerebral e de energia moral, para levantar nossa instituição que o Paraná não merece. Nem o Paraná nem o Brasil” (carneiro, 1984, p. 38).

concomitantemente à discussão sobre a Lei Maximiliano, a uP recebeu inúmeras críticas que se referiam aos problemas administrativos e didáticos. o curso de medicina foi objeto de diversos ataques, mas conforme Plácido e silva, “não faltaram, vendo, em um pessimismo irritante, neste modo de agir de sua administração, um ato de loucura, de antemão prognosticando o mau preparo de seus alunos” (Revista

9. as correspondências entre Nilo cairo e Vitor do amaral foram organizadas e pu-blicadas na obra intitulada Nilo Cairo (biografia), escrita por david carneiro.

RBHE 21.indd 115 4/10/2009 20:58:11

Page 116: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

116 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 280). de acordo com o autor, a crítica referia-se à falta de cadáveres para o estudo de anatomia, o que para ele não era procedente, pois relativizava a importância do uso de cadáver para compreensão da anatomia humana ao citar passagens do relatório feito pelo professor azevedo sodré, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no qual, em 1912, dizia:

Verifiquei que, em Munique, os estudantes dissecam muito menos que entre nós [...]. de fato, não vejo vantagens compensadoras neste afanoso e delicado trabalho, e acredito que o aluno pode perfeitamente estudar a anatomia, sem dissecação, desde que disponha de bons desenhos, reproduções fotográficas e preparações conservadas [Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, p. 281].

Essa discussão precisa ser entendida no contexto de luta pela equipa-ração e reconhecimento das faculdades paranaenses. o autor fez uso do argumento de autoridade para se contrapor às críticas feitas à Faculdade de Medicina. No ano de 1918, o grupo precisava legitimar o curso de medicina, ou melhor, torná-lo aceito entre a elite paranaense, bem como entre a elite brasileira. Não se podia aventar a hipótese de fechamento do curso. Naquele contexto, a Faculdade de Medicina não era reconhecida oficialmente pelo governo federal. Os bacharéis eram reconhecidos no Paraná e em mais dois estados da federação (santa catarina e Mato Grosso). Para tanto, era fundamental o reconhecimento federal. Nesses termos, a estratégia discursiva do autor foi de enfatizar a sua argumenta-ção. Ele fez referência a diversos professores de anatomia para minimizar a assertiva que sustentava a necessidade de dissecar cadáveres para o estudo dessa área do conhecimento. Ele dizia que existia diferença entre observar o organismo vivo e o organismo morto. Em suas palavras, “em todos os tempos, os bons espíritos anatômicos não deixaram de observar as diferenças existentes entre as disposições dos órgãos no cadáver e no vivo” (Revista Acadêmica, nov./dez. 1918, pp. 281-282). Não é nossa intenção discutir a validade dessas afirmações. Interessa-nos demonstrar as estratégias discursivas utilizadas pelo autor a fim de legitimar o curso de medicina no Paraná.

RBHE 21.indd 116 4/10/2009 20:58:11

Page 117: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

117Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

Conforme Macedo Filho, uma batalha travava-se a fim do reconheci-mento. Para tanto, o conselho superior de Ensino exigiu a separação das faculdades, o que resultou na divisão administrativa e didática, elegendo as diretorias de cada uma das faculdades. de acordo com o autor, “os nossos esforços foram coroados de êxito magnífico, vendo, nos memo-ráveis dias 29 de julho e 6 de agosto de 1920, declarada pelo Ministro de Justiça e dos Negócios interiores, a equiparação das Faculdades de Direito e Engenharia, às congêneres oficiais” (Revista Acadêmica, jun. 1934, p. 7). Para Macedo Filho, a consolidação desse esforço ocorreu no dia 18 de fevereiro de 1922: “depois de uma inspeção rigorosa por parte do conselho superior de Ensino, conquistava também a Faculdade de Medicina, com referências muito lisonjeiras desse conselho a sua equiparação” (Revista Acadêmica, jun. 1934, p. 7).

o reconhecimento federal representou a consolidação das facul-dades paranaenses. Naquele contexto, a juventude ficava apreensiva ante a possibilidade de não equiparação das Faculdades do Paraná. o número de matrícula de alunos evidenciava a dificuldade da Faculdade de Medicina. os relatórios informam que, em 1915, vinte e nove alunos foram matriculados na primeira série no curso de medicina, em 1920, foram quatro alunos e, a partir de 1924, o número de matriculados pas-sou a aumentar significativamente. Para Vitor do Amaral, “as exigências para a equiparação da Universidade às escolas oficiais e o decorrente reconhecimento de seus diplomas, geraram a desconfiança em muitos estudantes pelo receio de ver periclitarem seus direitos” (Relatório..., dez. 1916, p. 223). apesar disso, indicava o autor,

Provida de todos os elementos didáticos indispensáveis aos seus elevados fins, a Universidade, cônscia da justiça que lhe assiste, só espera completar o seu 5º ano de existência, exigido por lei, para em princípios de 1918, requerer, com ressalva de todos os seus direitos adquiridos, ao conselho superior do Ensino da união a sua equiparação [Relatório..., dez. 1916, p. 223].

o processo de reconhecimento junto ao governo federal foi demora-do. Primeiramente, o ensino superior nasceu na estrutura de universidade,

RBHE 21.indd 117 4/10/2009 20:58:12

Page 118: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

118 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

fundamentado na lei de 1911. Posteriormente, em 1915, o governo federal revogou aquela lei e centralizou o direito de criar universidades no país. dessa forma, não existia liberdade para a constituição de universidades. Naquele momento, a uP precisou ser desmembrada, pois, de acordo com a Lei Maximiliano, as faculdades deveriam ter cinco anos de existência para requerer ao conselho superior de Ensino a equiparação às faculdades oficiais. Portanto, somente em 1918 o grupo pôde fazer tal solicitação. a partir de então, iniciou-se o processo de luta pelo reconhecimento federal, sob a liderança de Vitor do amaral. No dizer de Macedo Filho,

[...] uma ação tenaz, inteligente e orientada se fazia ainda mister para dominar a série interminável de óbices que surgiram no caminho áspero que íamos trilhando. E essa ação foi combinada, delineada e posta em prática, nela se revelando o heroísmo do ilustre reitor da universidade dr. Vitor do Amaral, que enfrentou todas as dificuldades, e o patriotismo de Afonso camargo, que amparou a instituição, moral e materialmente [Revista Aca-dêmica, jun. 1934, p. 6].

o movimento pela equiparação contribuiu para demover o pessimis-mo de Nilo cairo. a partir de 1919, as correspondências de Nilo cairo expressavam apoio moral às ações de Vitor do amaral. ou seja, ele voltou a acreditar no projeto universitário ao escrever em 10 de outubro de 1919 as seguintes palavras: “tenha, porém coragem, e reforce a sua tenacidade. Estou em que a universidade vencerá todos os obstáculos” (carneiro, 1984, p. 39). Em 1922, Nilo cairo retornou a curitiba e reas-sumiu as atividades na Faculdade de Medicina. Em carta de 30 de julho de 1920, Nilo cairo teceu os seguintes comentários sobre a efetivação do reconhecimento da Faculdade de direito:

Não tivesse tido essa universidade o reitor que tem tido, pachorrento, tenaz, possuidor do mais admirável “sangue de barata” que conheço; corajoso sustentador (com galhardia épica) das últimas, mais terríveis e perigosas lutas perante o severo conselho superior de Ensino da República e a nossa odisséia não teria vingado [carneiro, 1984, p. 44].

RBHE 21.indd 118 4/10/2009 20:58:12

Page 119: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

119Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

Em síntese, a uP nasceu no bojo da liberdade de ensino. três anos mais tarde foi desmembrada e transformada em faculdades. a partir de 1918 iniciou o processo para assegurar a equiparação às faculdades ofi-ciais, bem como o seu reconhecimento junto ao governo federal. Entre 1920 e 1922 foram reconhecidas as três faculdades, o que representou a consolidação do ensino superior no cenário cultural paranaense.

Considerações finais

Na discussão introdutória afirmamos que a tarefa desta análise con-sistia em discutir as ações dos intelectuais no processo de consolidação do ensino superior no estado do Paraná. ao longo deste texto proble-matizamos a concepção de uP e a missão atribuída a ela pelo grupo paranaense ao enfatizar a relação estreita entre o projeto instituído em Curitiba e o modelo napoleônico. Nesses termos, é possível afirmar que o projeto do grupo paranaense, em 1912, não representou rompimento com a universidade do modelo napoleônico, pois o estabelecimento da denominação universidade não implicou o postulado do ensino superior como lócus da ciência pura e do conhecimento desinteressado. No Brasil, a noção de universidade como expressão da ciência pura se constituiu nos anos de 1930, particularmente com a vinda de professores estrangei-ros, quando a formação de pesquisadores foi entendida como uma das principais atribuições da universidade.

além disso, debatemos sobre as tensões existentes entre o período de criação e de equiparação das faculdades paranaenses, mencionando as ações dos intelectuais envolvidos com o projeto universitário nesse estado. Nesse sentido, destacamos a relação entre universidade e inteli-gência ao afirmar que os intelectuais que dirigiram o processo de criação da universidade se colocavam na cena cultural paranaense e brasileira como agentes de vanguarda da política e da história do país, ou seja, como arautos da modernização e da renovação cultural do Brasil, ten-dência esta que convergia para uma solução pautada no autoritarismo e na desmobilização social.

RBHE 21.indd 119 4/10/2009 20:58:12

Page 120: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

120 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

Referências bibliográficas

AGGio, a.; lAhUertA, M. (orgs.). Pensar o século XX: problemas políticos e história nacional na américa Latina. são Paulo: Unesp, 2003.

AmArAl, a. a imagem da cidade moderna: o cenário e seu avesso. in: fAbris, a. (org.). Modernidade e modernismo no Brasil. são Paulo: Mercado das Letras, 1994. p. 89-96.

bArros, R. s. M. de. A ilustração brasileira e a idéia de universidade. são Paulo: EdusP, 1986.

bencosttA, M. L. A. Arquitetura e espaço escolar: reflexões acerca do processo de implantação dos primeiros grupos escolares de curitiba (1903-1928). Educar em Revista, curitiba, n. 18, p. 103-141, 2001.

bermAnn, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. são Paulo: cia. das Letras, 2003.

bobbio, N. Os intelectuais e o poder. são Paulo: Unesp, 1997.

cAmpos, N. de. Intelectuais paranaenses e as concepções de universidade (1892-1950). tese (doutorado em Educação) – setor de Educação, universidade Federal do Paraná, curitiba, 2006.

cArneiro, d. Galeria de ontem e de hoje. s.l.: s.ed., 1963.

______. Educação, universidade e história da primeira universidade do Brasil. curitiba: imprensa da universidade Federal do Paraná, 1971.

______. Nilo Cairo (biografia). curitiba: Editora uFPR, 1984.

cArvAlho, J. M. de. as forças armadas na Primeira República: o poder descen-tralizador. in: ______. História geral da civilização brasileira. são Paulo/Rio de Janeiro: difel, 1978. v. 3, p. 181-234.

chArle, c.; verGer, J. História das universidades. são Paulo: Editora da uni-versidade Estadual Paulista, 1996.

coelho, E. P. Novas configurações da função intelectual. In: mArGAto, i.; Gomes, R. c. (orgs.). O papel dos intelectuais hoje. Belo Horizonte: Editora uFMG, 2004.

cUnhA, L. a. A universidade temporã: o ensino superior da colônia à Era de Vargas. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 1980.

RBHE 21.indd 120 4/10/2009 20:58:13

Page 121: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Névio de caMPos

121Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

cUnhA filho, V. F. da. Cidade e sociedade: a gênese do urbanismo moderno em curitiba (1889-1940). dissertação (Mestrado em História) – universidade Federal do Paraná, curitiba, 1998.

estAtUto da universidade do Paraná. curitiba, 1914.

fAUsto, B. O Brasil republicano: sociedade e instituições. são Paulo: s.ed., 1977.

fávero, M. de L. de a. A universidade brasileira em busca de sua identidade. Petrópolis: Vozes, 1977.

______. Universidade do Brasil: das origens à construção. Rio de Janeiro: uFRJ/inep, 2000. V. 1.

GonçAlves jUnior, a. J. Universidade Federal do Paraná: um edifício e sua história. curitiba: Fundação cultural de curitiba, 1997. V. 24, n. 122.

GrAmsci, a. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2001. V. 2.

hobsbAwm, E. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). são Paulo: cia. das Letras, 1995.

______. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2002.

limA, E. c. Vitor Ferreira do Amaral e Silva (o reitor de sempre). curitiba: imprensa da universidade Federal do Paraná, 1982.

mAchAdo, M. c. G. Rui Barbosa: pensamento e ação. uma análise do projeto modernizador para a sociedade brasileira com base na questão educacional. cam-pinas: autores asociados; Rio de Janeiro: Fundação casa de Rui Barbosa, 2002.

mAzzoni, J. R. Universidade brasileira: primeiro ciclo em questão. Bauru: Edusc, 2001.

morAes, J. Q. de. Positivismo nos anos 20, entre a ordem e o progresso. in: lorenzo, H. de; costA, W. P. da (orgs.). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. são Paulo: Unesp, 1997. p. 73-92.

morAis, R. de. A universidade desafiada. campinas: UnicAmp, 1995.

pAUlA, M. de F. de. A modernização da universidade e a transformação da intelligentzia universitária. Florianópolis: insular, 2002.

pereirA, M. R. de M.; sAntos, a. c. de a. O poder local e a cidade: a câmara municipal de curitiba – séculos XVii a XX. curitiba: aos Quatro Ventos, 2000.

RBHE 21.indd 121 4/10/2009 20:58:13

Page 122: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Encontros e desencontros no processo de constituição do ensino superior no Paraná

122 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 93-122, set./dez. 2009

pereirA, L. F. L. Paranismo: o Paraná inventado. cultura e imaginário no Paraná da Primeira República. curitiba: aos Quatro Ventos, 1997.

relAtório Geral da universidade do Paraná. curitiba, 1913-1916.

revistA AcAdêmicA. curitiba: centro acadêmico do Paraná, 1917-1919.

revistA AcAdêmicA. curitiba: diretório acadêmico de direito do Paraná, 1934.

romAno, R. Brasil: igreja contra estado (crítica ao populismo católico). são Paulo: Kairós, 1991.

rüeGG, W. Uma história da universidade na Europa. Porto: imprensa Nacional/casa da Moeda, 1992. V. 1.

silvA, N. c. da. Liberdade de ensino e liberdade profissional. discurso de pa-raninfo na universidade do Paraná. curitiba, 1914.

soUzA, R. F. de. Templos de civilização: a implantação da escola primária gra-duada no estado de são Paulo (1890-1910). são Paulo: Unesp, 1998.

vieirA, c. E. Historicismo, cultura e formação humana no pensamento de Antonio Gramsci. Tese (Doutorado em História e Filosofia da Educação) – Pontifícia universidade católica de são Paulo, são Paulo, 1999.

wAchowicz, R. c. Universidade do mate: história da uFPR. curitiba: aPuFPR, 1983.

westphAlen, c. M. Universidade Federal do Paraná. curitiba: sBPH-PR, 1987.

Endereço para correspondência:Névio de campos

Rua Lopes trovão, 262 – Vila EstrelaPonta Grossa-PRcEP 84040-080

E-mail: [email protected]

Recebido em: 10 jul. 2008aprovado em: 22 ago. 2008

RBHE 21.indd 122 4/10/2009 20:58:13

Page 123: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

123Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

dorval do Nascimento1

*

Resumo:o presente texto discute as medidas adotadas pelos governos estaduais no âmbito do ensino, que visavam nacionalizar as populações de origem étnica estrangeira em santa catarina, no período situado entre a Reforma orestes Guimarães em 1911 e o contexto histórico da Primeira Grande Guerra. as medidas oficiais implicaram posicionamento do Estado ante a diversidade étnica e cultural existente nas áreas de imigração, buscando homogeneizar um espaço caracterizado por práticas que afirmavam a diferença cultural.

Palavras-chave:Santa Catarina; Primeira República; nacionalização; diversidade étnica e cultural.

* doutor em história (universidade Federal do Rio Grande do sul – uFRGs). Pro-fessor do Programa de Pós-Graduação em Educação (universidade do Extremo sul catarinense – Unesc). Pesquisador do grupo de pesquisa Identitare – investigação em identidades e Educação.

RBHE 21.indd 123 4/10/2009 20:58:14

Page 124: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

124 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

Nationalization of teaching in Santa Catarina during the First Republic

(1911-1920)

dorval do Nascimento

Abstract:this paper discusses the political measures related to the pedagogy adopted by state governments in santa catarina, which intended to nationalize different ethnic groups during the period between the orestes Guimarães reformation in 1911 and World War I. The official measures implied a clear position of the state facing ethnic and cultural diversity in the areas occupied by immigrants in order to homogenize a place characterized by practices that showed cultural differences.

Keywords:Santa Catarina; First Republic; nationalization; ethnic and cultural diversity.

RBHE 21.indd 124 4/10/2009 20:58:14

Page 125: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

125Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

diversidade, identidade e diferença são conceitos que aparecem com insistência no discurso pedagógico contemporâneo, expressando uma modificação nas relações sociais no mundo atual, aquele da modernidade tardia (Giddens, 1991; Hall, 2003). Buscar entender como o diferente era tratado em um outro período histórico, o da Primeira República, quando outras relações com a diferença cultural foram estabelecidas e um outro imaginário relativo à diversidade era afirmado, pode nos ajudar a situar as relações de identidade na contemporaneidade.

o objetivo desse texto é discutir as medidas que foram colocadas em prática pelos governos estaduais em santa catarina e que visavam nacionalizar as populações de origem estrangeira, especialmente alemã, tendo o ensino primário como principal campo de atuação, no período situado entre a Reforma orestes Guimarães em 1911 e os acontecimentos relacionados à Primeira Grande Guerra. o corpus documental da pes-quisa são as mensagens dos governadores apresentadas ao congresso Representativo catarinense no período citado. É conhecido o cuidado que o/a historiador/a da educação deve ter ao lidar com documentos oficiais, emanados do poder. Entretanto, na medida em que as fontes documentais da pesquisa são representações sociais que chegaram até o pesquisador (chartier, 2002; ory, 2004; Pesavento, 1995), cacos do passado, e, nesse caso, representações que possuem grande dominância social e cultural, tornam-se importantes, por suas características, para se refletir sobre as formas adotadas pelo poder estadual para lidar com a diversidade étnica e cultural do Estado, o que nos propomos a tratar nas páginas seguintes. trabalhar-se-á, neste texto, com o que Kreutz (in Müller, 1994, p. 29) chama de documentação do nacionalizador, porém buscando nas entre-linhas e discussão das fontes representações sociais que circulavam no período estudado e que ajudem na compreensão do fenômeno.

tradicionalmente, o tema da nacionalização do ensino está vinculado ao Estado Novo e as décadas de 1930 e 1940, quando o Estado brasi-leiro intervém nacionalmente nas experiências escolares comunitárias das áreas de imigração. Há inúmeros trabalhos publicados sobre o tema da nacionalização no período do Estado Novo (Kreutz in Müller 1994, pp. 27-29; Fiori, 1975; Monteiro, 1984). No entanto, a análise das medi-

RBHE 21.indd 125 4/10/2009 20:58:14

Page 126: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

126 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

das de nacionalização no período histórico anterior ao Estado Novo, como tratado neste texto, pode contribuir para uma abordagem de conjunto da problemática, afinando o instrumental de análise e o conhecimento desse processo histórico.

A reforma de 1911 e a nacionalização do ensino

o ensino público catarinense foi objeto de uma ampla reforma no governo de Vidal Ramos, que assumiu o governo de santa catarina em 28 de setembro de 1910 tendo um plano de ação que se resumia em “Viação e Educação” (Fiori, 1975, p. 91; santa catatina, 1911). a constituição republicana de 1891 estabelecia a competência concomitante entre go-verno federal e estadual em matéria de educação. Prevalecia, porém, na prática, a interpretação vinda desde o ato adicional de 1834, segundo a qual competia a união responsabilizar-se pela escola secundária e superior, enquanto, aos estados, caberia a administração e ampliação da escola primária e técnico-profissional (Nagle, 1997, p. 266).

as ações de governo iniciaram-se com a reorganização da Escola Normal e a adoção de uma série de leis e regulamentos que implemen-taram um efetivo sistema de ensino público. desde o início do século, as elites republicanas catarinenses afirmavam o desejo de reorganizar o ensino a partir do modelo adotado pela província de são Paulo em 1893 com o Governo Bernardino de campos (Fiori, 1975, pp. 92-94; Nóbrega, 2000). os governantes paulistas, desde a proclamação da República, in-vestiram em um sistema de ensino modelar, estabelecendo a escola como sinônimo de progresso e modernidade republicanos. Em vista desses investimentos, que visavam à manutenção e à ampliação da hegemonia do estado na federação, o ensino paulista tornou-se o modelo que define a instauração de reformas do ensino público em várias unidades da união (carvalho, 2000, p. 225). a contratação do professor paulista orestes Guimarães, colocado à disposição do governo catarinense pelo governo do estado de são Paulo, estreitou os vínculos entre a reforma do ensino em santa catarina e as ações que se haviam tomado em são Paulo.

RBHE 21.indd 126 4/10/2009 20:58:14

Page 127: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

127Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

um dos centros principais da reforma de 1911 foi a criação de um novo tipo de instalação escolar, os grupos escolares, amplas construções bem iluminadas e arejadas que se constituíam em espaço adequado para o novo tipo de ensino que a reforma considerava ideal: ensino simultâ-neo, graduado, em turmas homogêneas, com lições que se originavam do chamado “método intuitivo” ou “lições de coisas”. a partir de 1911, com a reforma do colégio Municipal de Joinville e sua transformação em grupo escolar, se construíram grupos escolares nos principais centros urbanos de santa catarina. o Quadro 1 demonstra o esforço do governo estadual em estabelecer os grupos escolares como novo lócus do ensino moderno que a reforma procurava divulgar. Havia, até 1917, grupos escolares em Joinville, Laguna, Florianópolis, Lages, itajaí e Blumenau.

Quadro 1: Grupos escolares (sc)aNo NÚMERo MatRÍcuLa1911 01 2401912 03 5711913 07 2.0121914 07 2.2331915 07 2.0671916 07 1.9661917 07 2.2611918 09 3.7301919 10 3.8111920 11 3.6631921 11 3.5831922 11 3.7401923 11 3.590

Fonte: santa catarina. Mensagens dos governadores apresentadas ao congresso Repre-sentativo: 1911-1914, 1915, 1916, 1917, 1918, 1920, 1921, 1922, 1923, 1924.

a repercussão da reforma sobre as populações de origem estrangeira no estado foi, entretanto, bastante limitada. Em relação à problemática da assimilação de populações de origem europeia no estado, a ação dos grupos escolares teve repercussão basicamente nos municípios de Joinville e Blumenau, sem atingir a maior parte dos núcleos de descen-

RBHE 21.indd 127 4/10/2009 20:58:15

Page 128: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

128 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

dentes, que eram majoritariamente rurais. Mesmo em Joinville, o grupo escolar dava continuidade às ações implementadas por orestes Guimarães que, quando diretor do colégio municipal, adotou o ensino simultâneo da língua portuguesa e alemã, “visto assim ser necessário por se compor a matricula de quase dois terços de crianças que primitivamente desco-nheciam o idioma pátrio” (santa catarina..., 1908, p. 20).

a maior parte da população do estado que tinha acesso ao ensino habitava no meio rural, inclusive os descendentes de imigrantes, e se servia, quando podia, de uma rede de escolas extremamente diversificada, denominadas, neste texto, de comunitárias e municipais (Kreutz, 2000; dallabrida, 2003, 2005; otto, 2006). desde escolas mantidas pela própria comunidade, com ou sem subvenção estatal, escolas municipais, escolas mantidas pelas paróquias evangélica ou católica, até escolas subvencio-nadas por órgãos dos governos italiano, alemão ou polonês, existiam um conjunto extremamente representativo de escolas, e mesmo majoritário no período em que estamos tratando, que a reforma não atingiu ou, pelo menos, atingiu muito modestamente. Nessas escolas, dependendo do caso, mas certamente na grande maioria delas, o ensino era ministrado em língua estrangeira e a partir de conteúdos que valorizavam as carac-terísticas dos países de origem dos alunos, em especial os conteúdos de geografia e história.

o Quadro 2, ainda que incompleto, nos dá uma ideia aproximada da importância que possuía essa rede diversificada de escolas comunitárias e municipais.

a escola pública primária, existente nos pequenos municípios e na área rural, eram escolas isoladas, que funcionavam em locais impróprios e acanhadas, com ensino individual ou mútuo e grupos heterogêneos de alunos. Esse tipo de escola, majoritária no conjunto de matrículas das escolas estaduais, foi pouco afetado pela reforma, ainda que tivesse por objetivo também a homogeneização do ensino. Em 1922 havia 8.297 alunos matriculados na zona urbana, exceto alunos da Escola Normal, contra 22.655 matriculados em escola da zona rural (santa catarina, 1923, p. 28). No fechamento de seu governo, quando faz uma avaliação do quadriênio 1910-1914, o governador Vidal Ramos reconhece que

RBHE 21.indd 128 4/10/2009 20:58:15

Page 129: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

129Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

“para as escolas isoladas os benefícios da reforma serão evidentemente mais demorados”. E acrescenta “de um momento para outro não se lhes podem dar installações convenientes nem professores reconhecidamente capazes” (santa catarina, p. 156). Em sua mensagem de 1912, em que apresentada a reforma ao congresso Representativo, Vidal Ramos jus-tifica a fundação de grupos escolares nas cidades principais e, ainda que afirme que não se deveria descuidar das escolas isoladas “destinadas a servir centros pouco populosos”, os benefícios da reforma demorariam a alcançá-las (p. 44).

Quadro 2: Matrículas1 em escolas estaduaise escolas comunitárias e municipais

aNo EscoLas Estaduais EscoLas coMuNitÁRias E MuNiciPais1914 8.874 18.4181915 10.011 -1916 10.413 18.0811917 12.306 -1918 14.932 -

Fonte: santa catarina. Mensagens dos governadores apresentadas ao congresso Repre-sentativo de 1915 a 1920.

As dificuldades com as instalações das escolas isoladas, para serem superadas, requereriam um conjunto de investimentos que os governantes estaduais afirmavam, a cada ano, não possuir. Assim, em 1921, Hercílio Luz prevê que seriam necessários cerca de trinta anos para que as escolas isoladas estivessem “também convenientemente installadas em próprios estaduaes” e afirma ainda que “Falta-nos, porém, cuidar da installação das escolas isoladas. Verdade é que são em número superior a quinhentas, e que o provelas a todas, de prompto, de edifício apropriado representa despesa a que o Estado não se poderia abalançar” (santa catarina, 1921, p. 27).

1. É importante ressaltar que esses dados e os seguintes se referem a matrículas e não à frequência. as taxas de frequência das escolas estaduais, pelo que se depreende das Mensagens, ficavam entre 65 e 75%, conforme o período. Não há informações disponíveis sobre a frequência em escolas comunitárias e municipais.

RBHE 21.indd 129 4/10/2009 20:58:16

Page 130: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

130 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

Outra dificuldade recorrente referia-se ao número de professores in-suficientes para as escolas isoladas, o que fazia com que houvesse muitas vezes escolas criadas, porém vagas. Em 1912, por exemplo, de 213 escolas isoladas existentes, estavam preenchidas 178, restando 35 vagas (santa catarina, 1913, p. 29). o problema é que os professores considerados “idô-neos” pelos dirigentes estaduais, isto é, conhecedores do novo método de ensino que se implantava, formados na Escola Normal ou escolas comple-mentares, com experiência nos grupos escolares, se recusavam a trabalhar no interior, longe de sua cidade e em situação precária de sobrevivência.

Para as escolas ruraes, não só dessas zonas [oeste e Planalto], como também dos outros municípios, por ora, em regra, só podemos contar com professores não diplomados, como demonstra o facto de, nas 466 escolas isoladas presen-temente providas, incluindo nellas as que ficam em várias sedes de municípios, haver apenas 72 docentes com curso feito na Escola Normal, isto é, apenas 15% do número total de professores (santa catarina, 1921, pp. 24-25).

as escolas isoladas, ainda que precárias, eram a maior rede de es-colas públicas existentes no estado, como fica demonstrado no quadro a seguir, ao se comparar o número de matrículas nas escolas estaduais e, dentre elas, nas escolas isoladas.

a precariedade das escolas isoladas e sua pequena difusão pelo estado, ainda que importante, em contraste com a rede de escolas comu-nitárias e municipais, dificultava a oferta aos descendentes de imigrantes de um ensino em língua nacional que fosse vantajoso em relação àquele oferecido no idioma da pátria de origem. o oferecimento de escolas pú-blicas, em concorrência com as escolas particulares/comunitárias, poderia oferecer uma vantagem para as comunidades imigrantes, forçando a sua nacionalização, com o apelo da gratuidade e a possibilidade dos alunos aprenderem a língua portuguesa2, cada vez mais necessária nas relações

2. trabalhando com a nacionalização do ensino em relação às escolas alemãs no Rio Grande do sul, Lúcio Kreutz analisa a abertura de escolas públicas nas áreas de

RBHE 21.indd 130 4/10/2009 20:58:16

Page 131: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

131Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

comerciais e sociais, o que não ocorreu a não ser a partir da Primeira Grande Guerra, como veremos.

Quadro 3: Escolas isoladas (1907-1920) (sc)

PERÍodoNÚMERo dE

EscoLas cRiadas

NÚMERo dE EscoLas

PRoVidas

MatRÍcuLasEM EscoLas

isoLadas

totaL dE MatRÍcuLas EM EscoLas Estaduais

1907 - 144 6.080 -1908 - 155 6.707 -1909 - 178 7.792 -1910 - 187 8.014 -1912 - - 11.721 -1914 - 189 6.394 8.8741915 189 188 7.687 10.0111916 - - - 10.4131917 259 205 9.138 12.3061918 - 269 11.537 16.8021919 382 16.069 20.8921920 433 21.728 26.734

Fonte: santa catarina. Mensagens dos governadores apresentadas ao congresso Repre-sentativo de 1911 a 1923.

a reforma de 1911, promovida por Vidal Ramos, modernizou o ensino catarinense, adequando-o às necessidades das elites republicanas estaduais, e ainda que buscasse atacar, segundo Neide almeida Fiori, “o problema do analfabetismo em geral e da assimilação dos grupos étnicos estrangeiros” (1975, p. 95), as ações governamentais nesse último quesito foram de pequena monta até a eclosão da Primeira Grande Guerra. Nesse episódio, a presença de populações de origem estrangeira no estado, especialmente alemãs, ao se tornar um problema político nacional de-sencadeou uma série de medidas que levou o estado a intervir nas áreas coloniais e em seu ensino.

colonização como estratégia do Estado para a nacionalização daquelas populações (Kreutz, 1994).

RBHE 21.indd 131 4/10/2009 20:58:16

Page 132: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

132 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

Medidas nacionalizadoras no contexto da Primeira Grande Guerra

o torpedeamento do vapor brasileiro Paraná por submarinos ale-mães e o rompimento de relações diplomáticas do Brasil com a alemanha em 11 de abril de 1917 despertou, em santa catarina, manifestações de afirmação da brasilidade em um estado de composição populacional multiétnica. como resultado das imigrações da segunda metade do sé-culo XiX, formou-se, em santa catarina, diversos núcleos originários de população estrangeira que, nesse período, guardavam ainda vínculos com a pátria de origem, através do uso da língua e demais tradições culturais, inclusive populações de origem alemã, mais numerosas no Vale do itajaí e norte do estado. a situação de beligerância com a alemanha, consolidada com a declaração de guerra em 26 de outubro de 1917, levantou suspei-ções no centro do país em relação à lealdade da população catarinense e de seu governo aos ideais nacionais ou mesmo as possibilidades que a alemanha teria de consolidar uma base de operações no sul do Brasil.

o então governador de santa catarina, Felippe schmidt, em sua men-sagem ao congresso Representativo, de 14 de agosto de 1917, repercute os acontecimentos que se seguiram para santa catarina ante a declaração de rompimento da neutralidade brasileira, quando “desencadeou-se em santa catharina uma verdadeira campanha de diffamação, robustecendo-se o que lá fóra se dizia, que éramos um Estado fóra da Federação, sem o sentimento de nacionalidade, sem amor e sem ligações ao Brazil” (santa catarina, 1917, p. 4). as suspeitas recaíram também sobre o governador e alguns de seus auxiliares, de origem alemã, “apontados como ao ser-viço da raça germânica contra os interesses do Brazil” (p. 6). a origem das suspeições sobre a lealdade de santa catarina e seus vínculos com a alemanha, além da presença de uma importante população de origem alemã, parece ter sido os relatórios enviados ao governo central e divul-gados pela imprensa sobre a situação do estado, pelo capitão de corveta durval Guimarães, no comando do destróier Alagoas, enviado a santa catarina, e que, além dos relatos, efetuou diligências na cidade de Brus-que em busca de armas e munições, o que desencadeou um conflito com

RBHE 21.indd 132 4/10/2009 20:58:17

Page 133: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

133Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

o governo estadual. de qualquer maneira, a situação política resultante da presença de populações de origem alemã em santa catarina, no contexto de uma guerra contra a Alemanha, com todas as dificuldades advindas dessa situação, estava colocada e modificava radicalmente a postura e as ações do governo estadual em relação a essas populações.

a necessidade de nacionalizar as populações de origem estrangeira, desde a óptica do poder, implicou uma mudança na avaliação do papel do imigrante na economia e cultura nacional (carvalho, 1989, pp. 10-12; Carvalho, 2000, p. 227). A opção imigrantista, desde fins do século XIX, que denotava ilusões quanto à operosidade do trabalhador branco europeu e ideias racistas relacionadas ao aprimoramento do povo brasileiro através do branqueamento regenerador da imigração, mostrara-se inviável em vista da rebeldia de populações de origem europeia nas cidades, como nas greves de 1917 e 1918, e na ameaça que culturas estrangeiras sig-nificavam em um momento de afirmação do nacionalismo e do Estado nacional. ao mesmo tempo, operavam-se mudanças nas representações referentes ao aperfeiçoamento dos povos, com a educação sendo guin-dada a posição de fator determinante, sobrepujando os fatores raciais (carvalho, 1989, p. 11). diante disso, a alfabetização e a expansão da escola pública tornaram-se panaceias capazes de resolver os problemas do país, especialmente na década de 1920, expressando-se nas preocupa-ções centrais das reformas do ensino naquele período. Entretanto, para os estados do sul do Brasil, o contexto da Primeira Grande Guerra antecipou problemáticas e medidas em relação à nacionalização que tiveram uma importância bastante grande no direcionamento das propostas para o ensino na década seguinte.

Mesmo no período anterior à deflagração do conflito de 1914, a presença de alemães no estado colocara dificuldades no que se referia ao relacionamento dessas populações com o Estado nacional, o que desencadeava preocupações, muitas vezes expressas na imprensa, sobre o chamado “perigo alemão” e a necessidade de integrar aquelas popula-ções. Em 1906, o governador em exercício, coronel antonio Pereira da silva e oliveira, relata uma visita que fez ao município de Blumenau e destaca a conduta dos imigrantes alemães e descendentes. Por toda parte,

RBHE 21.indd 133 4/10/2009 20:58:17

Page 134: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

134 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

diz ele, “senti pulsar a par do sentimento de patriotismo, vivo interesse por nosso paiz, onde a grandeza do território se confunde com a riqueza do solo” (santa catarina, 1906, p. 7). com isso, diz o coronel, pôde dar aos seus acompanhantes a oportunidade de “avaliarem o interesse que os colonos tomam por tudo quanto é nosso, e ficarem elles aptos para darem prompto e solemne desmentido a esse phantasma chamado perigo alemão”. A afirmação da brasilidade das populações de origem alemã e a referência ao “perigo alemão” indica que o problema da assimilação daquelas populações realmente existia.

diante desse quadro de diversidade étnica e da necessidade de as-similação das populações de origem europeia no Estado, os dirigentes estaduais atribuem à escola um papel fundamental:

Por tudo isto, eu creio que a escola, mas creio firmemente, e esta conside-ração se refere não só aos indivíduos de progênie teutonica, como aos de outras raças formadoras do povo catharinense, será o mais fecundo, o mais poderoso factor da assimilação que se vem operando [santa catarina, 1919, p. 14].

Hercílio Luz referia-se às medidas nacionalizadoras do ensino que haviam sido adotadas no contexto da Primeira Grande Guerra. a presença de populações de origem estrangeira em santa catarina, especialmente alemã, transformada em um problema político nacional, levou as auto-ridades estaduais e federais a tomarem uma série de medidas adminis-trativas e legais visando a sua incorporação ao Estado nacional, tendo a escola como centro estratégico de ação.

a partir dessa nova conjuntura política nacional, com evidentes reflexos na situação estadual, os estabelecimentos comunitários, e, em menor medida, os municipais, estiveram no foco de ação das autori-dades. O posicionamento do Brasil no conflito de 1914-1918 colocou aos governantes a necessidade de intervirem, a partir de sua óptica, nas escolas étnicas.

É urgente a regulamentação do ensino em escolas particulares, cujo número é bastante avultado, existindo só em Blumenau 117, em Joinville

RBHE 21.indd 134 4/10/2009 20:58:17

Page 135: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

135Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

54, em urussanga 18 e em são Bento 14. o total dessas escolas attinge ao numero de 277. algumas dellas são subvencionadas pelas municipalidades, o que não impede que, contra o regulamento da instrucção estadual, o ensino seja feito em língua estrangeira. É preciso corrigir essa situação, tornando obrigatório o ensino da língua nacional em todas as escolas, mesmo as não subvencionadas, com os programas adoptados nas escolas públicas estaduaes [santa catarina, 1917, p. 31].

Na mesma mensagem, o governador Felippe schmidt apresenta um quadro com a relação entre escolas estaduais, municipais e comunitárias, chamadas particulares, nos municípios catarinenses, com a evidente preponderância das últimas em diversas localidades.

Quadro 4: Escolas estaduais, municipais e particulares (1916) (sc)MuNicÍPio Estaduais MuNiciPais PaRticuLaREs totaLararanguá 10 5 - 15Blumenau 16 - 117 133Brusque 2 17 2 21

Florianópolis 45 18 18 74itajaí 14 14 10 38

Joinville 14 - 54 68são Bento 1 - 14 15urussanga 1 - 18 19

Fonte: santa catarina. Mensagem apresentada ao congresso Representativo do Estado em 14 de agosto de 1917 pelo Governador Felippe schmidt (p. 29).

a apresentação de Blumenau, Joinville, urussanga e são Bento, pre-sente na fala do governador como os municípios de situação mais delicada, indica que o alvo central das medidas de nacionalização que se põe em prática no período são as escolas particulares/comunitárias.

diante desse quadro e ante a declaração de guerra contra a alema-nha, o governo estadual intervém nas escolas comunitárias “em que não se ensinasse a língua portugueza”, cumprindo determinação do governo federal.

RBHE 21.indd 135 4/10/2009 20:58:18

Page 136: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

136 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

cumprindo essa determinação, providenciei para que fossem fechadas, não só aquellas escolas onde não se ensinasse a língua nacional, como todas aquellas em que o ensino de nossa língua não fosse feito de modo efficiente. Em virtude dessa interpretação foram fechadas cerca de 200 escolas particu-lares, que existiam nos municípios de s. Bento, Joinville, Blumenau, itajahy, Brusque, Palhoça, tubarão e imaruhy, a maioria das quaes entretanto, ensi-nava o portuguez, mas não de modo efficiente [Santa Catarina, 1918, p. 40].

ainda em 1921, Hercílio Luz relata que mandara fechar “cinco esco-las particulares no município de Blumenau, três no município de Joinville e uma no de S. Bento” (p. 24). O fechamento das escolas significa um recrudescimento do controle estatal sobre as iniciativas de ensino por parte das comunidades de imigrantes e igrejas, buscando impor o ensino da língua portuguesa e de matérias de conteúdo cívico nas áreas coloniais.

Entretanto, o fechamento das escolas comunitárias étnicas nas áreas coloniais colocava dificuldades para o governo estadual na medida em que não possuía recursos para abrir as escolas públicas correspondentes à demanda atendida anteriormente em uma área em que a presença do estado era frágil. além da falta de recursos, o governo estadual reclamava da “impossibilidade de encontrar pessoal apto para o preenchimento de todas as escolas vagas e das que forem creadas” (santa catarina, 1918, p. 40). as autoridades estaduais tinham claro, pelo que se depreende das mensagens, que o fechamento das escolas comunitárias não promoveria a nacionalização das populações de origem estrangeira se não houvesse a abertura de escolas públicas.

de modo que, onde tenha sido fechada uma escola particular incapaz de satisfazer as prescripções legais, ahi se abra uma escola publica provida de professor idôneo e, mais ainda, de professor que, falando duas línguas, possa entender-se com as crianças e ensinar-lhes suavemente a língua nacional [santa catarina, 1920, p. 26].

uma estratégia utilizada para atender a essa nova demanda, pelo menos nos municípios maiores, foi a abertura de novas classes anexas

RBHE 21.indd 136 4/10/2009 20:58:18

Page 137: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

137Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

aos grupos escolares, tendo sido instaladas, em 1918, cinco classes em cada um dos grupos de itajaí e Joinville e quatro classes no grupo escolar de Blumenau (santa catarina, 1918, p. 36). No entanto, essa medida não resolvia o problema do atendimento à demanda na zona rural do estado.

a intervenção do governo federal no problema criou as condições para que a rede de escolas públicas na zona rural fosse ampliada, bus-cando substituir a rede de escolas comunitárias. através do decreto n. 13.014, de 4 de maio de 1918, o governo federal auxiliava com recursos financeiros cada escola que fosse criada nas áreas coloniais, no que se denominava “zona de nacionalização” (Fiori, 1975, p. 125). “animado com esse valioso auxilio, já creei 72 escolas isoladas em linhas e núcleos coloniaes” (santa catarina, 1918, p. 41). a necessidade, desde a óptica do Estado, de resolver o problema da assimilação das populações de origem estrangeira, fez com que o tradicional dualismo de direção do ensino fosse parcialmente rompido, ao menos para os estados do sul do Brasil. como decorrência da interpretação da constituição de 1891, a União ficava afastada da realidade escolar com o argumento de que não poderia intervir no sistema educacional dos estados, em vista do princí-pio do federalismo, enquanto os próprios estados alegavam não possuir recursos suficientes para ampliar a rede de escolas públicas primárias e técnico-profissionais (Nagle, 1997, p. 266). A situação política causada pelo conflito mundial colocou a problemática da assimilação dos des-cendentes de imigrantes do sul do país como problema nacional a ser resolvido, o que implicou a intervenção do governo federal.

Mesmo os investimentos do governo estadual cresceram nesse perío-do. de fato, os investimentos estaduais no período 1915 – 1918 tiveram um crescimento de 53% comparado ao período 1911 – 1914 e, no período 1919-1922, cresceram 102% se comparado à gestão anterior (Nóbrega, 2000, p. 93). o resultado foi o incremento no número de escolas públicas na zona rural como se pode ver pelos dados do Quadro 3. o número de escolas isoladas passou de 188 em 1915 para 269 em 1918, 382 em 1919 e 433 em 1920. da mesma forma, as matrículas em escolas estaduais passaram de 10.011 alunos em 1915 para 16.082 em 1918, 20.892 em 1919 e 26.734 alunos em 1920. No ano de 1921, o número de alunos em

RBHE 21.indd 137 4/10/2009 20:58:18

Page 138: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

138 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

escolas municipais e comunitárias era de 14.344 (santa catarina, 1922, p. 30), um número ainda expressivo, mas que havia sido ultrapassado pelo número de alunos matriculados em escolas estaduais.

ainda que os recursos estaduais tenham sido também importantes, as subvenções financeiras do governo federal foram utilizadas como um pode-roso instrumento político de nacionalização das áreas coloniais. Em 1920, Hercílio Luz relatava que havia encontrado, por parte do governo federal, “boa vontade e carinho para as coisas que se prendem ao abrasileiramento desses núcleos, que, entregues durante longos annos aos seus próprios re-cursos, ameaçavam tornar-se um kysto ethnico no organismo nacional [...]”.

Neste momento acha-se no Rio de Janeiro o sr. inspector Federal das Escolas subvencionadas, por quem dirigi ao sr. Ministro do interior uma succinta exposição do que ainda necessitamos para completa efficiência da nacionalização do ensino. Estou certo que desta como de outras vezes o sr. Ministro agirá com o mesmo descortino e patriotismo, proporcionando as medidas precisas à boa marcha das escolas subvencionadas e augmento destas nas zonas coloniaes [santa catarina, 1920, pp. 5-6].

Em virtude dessa subvenção, afirma, “o Estado pôde em 1918 manter na zona colonial 148 escolas, numero esse elevado a 168 no anno passado [1919] e no corrente [1920]” (p. 26). a rede de escolas subvencionadas tornou-se tão importante na estratégia de nacionalização que orestes Guimarães, mentor da reforma de 1911, foi deslocado para a função de inspetor federal a partir de 1918, tendo exercido a função até o seu falecimento em 1931 (Fiori, 1975, p. 125).

a ação do governo estadual recaiu também sobre as escolas munici-pais. Hercílio Luz dá notícia do decreto n. 1.233, de 3 de abril de 1920, que regulamentou as escolas municipais, o que resultou no fechamento de 10 escolas de tijucas, que não se adequaram ao regulamento (santa catarina, 1920, p. 23). E reclama da ação de governantes municipais que “tentaram ludibriar, por conveniências locaes, de ordem secundária, a acção dos Governos Federal e Estadual, tão harmonicamente empenhados nesta obra de nacionalização [...]” (p. 5).

RBHE 21.indd 138 4/10/2009 20:58:19

Page 139: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

139Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

além do fechamento de escolas comunitárias e da abertura de es-colas públicas, o governo estadual entrou na sala de aula, procurando intervir no currículo escolar de todos os estabelecimentos de ensino que não estavam sob seu controle direto. Preocupava-se, em especial, com o fortalecimento de matérias nacionais ausentes das aulas e com a preparação dos professores em ministrá-las. o ensino de português, de geografia e de história do Brasil foi tornado obrigatório em 1917, através da lei n. 1.187 (santa catarina, 1920, p. 23). além disso, o decreto 1.321, de 29 de janeiro de 1920, sujeitou essas escolas ao programa das escolas estaduais em relação a esses conteúdos, devendo ter o mesmo número e duração de aulas para essas matérias de acordo com o horário oficial. O ensino de português, que merecia especial atenção das autoridades, não deveria ser “meramente decorativo, mas, tanto quanto possível, capaz de permittir que as creanças nellas matriculadas adquiram razoável conhe-cimento do vernáculo” (pp. 24-25). as aulas de ginástica e os exercícios militares também deveriam, por lei, serem dados em português, além do que a escrituração escolar não poderia ser feita em língua estrangeira.

o controle sobre as condições dos professores de escolas comuni-tárias para ministrar os conteúdos nacionais aludidos anteriormente era realizado através de cursos e exames, como o realizado em 1920, nos quais os professores deveriam demonstrar as suas habilidades de co-nhecimento da realidade geográfica, histórica e legal do Brasil, além do domínio na língua portuguesa (p. 24). Em 1918, no governo de Felippe schmidt, foram abertos cursos preparatórios para professores de escolas comunitárias em Blumenau, Joinville e Urussanga, “a fim de ministrar o ensino de portuguez, de história e geographia do Brazil e de educação cívica, aos professores particulares dos municípios cuja maioria da po-pulação é de origem estrangeira” (santa catarina, 1918, p. 39).

Avaliar a eficácia das medidas nacionalizadoras nesse período histó-rico situado entre a reforma de 1911 e o fim da Primeira Grande Guerra não foi o objetivo deste trabalho. No entanto, é evidente que as medidas significaram uma intervenção violenta na organização do ensino das comunidades de imigrantes e descendentes e, por decorrência, em sua vida social e cultural. Hercílio Luz afirmava, em 1920, que o problema estava prestes a ser resolvido:

RBHE 21.indd 139 4/10/2009 20:58:19

Page 140: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

140 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

Os nossos problemas capitaes, mesmo os que mais difficeis se afiguravam, vão tendo solução, sem abalos prejudiciaes à vida normal do Estado. assim, o do ensino, que traz consigo o da nacionalização de uma não pequena população colonial, de origem extrangeira, pode-se considerar resolvido, se uma preju-dicial solução de continuidade não vier perturbar seu apparelhamento [p. 4].

Entretanto, alguns indícios parecem desmentir o otimismo do go-vernador quanto à resolução do problema. Finda a guerra, serenados os ânimos, a rede de escolas comunitárias voltou a crescer. Em 1921 havia 163 escolas particulares/comunitárias, além de 71 escolas municipais, com um total de 14.344 alunos matriculados nas duas redes escolares (santa catarina, 1922, p. 30) contra 9.747 alunos em 1919 (santa cata-rina, 1920, p. 23). somente escolas das comunidades de origem alemã do estado, havia 297 em 1931, com 12.346 alunos matriculados (Kreutz, 2000, p. 357). a própria retomada das preocupações com a nacionaliza-ção das populações de origem estrangeira no estado, no Governo Nereu Ramos e no Estado Novo, e a violência das ações adotadas durante a campanha de nacionalização do ensino, são indícios de que as medidas que estamos tratando neste texto não foram capazes de conter a afirmação de identidades que se seguiu a esse período. de qualquer maneira, as medidas adotadas no período tratado neste texto foram ações que altera-ram o ensino catarinense e a vivência cultural de inúmeras comunidades, com evidentes implicações para a história da educação de santa catarina e do sul do Brasil.

Referências

Bibliográficas

cArvAlho, M. M. c. de. A Escola e a República. são Paulo: Brasiliense, 1989.

______. Reformas da instrução Pública. in: lopes, E. M. t.; fAriA filho, L. M.; veiGA, c. G. (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: autêntica, 2000. p. 225-251.

RBHE 21.indd 140 4/10/2009 20:58:19

Page 141: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

141Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

chArtier, R. À beira da falésia – a história entre certezas e inquietudes. Porto alegre: uFRGs, 2002.

dAllAbridA, N. (org.). Mosaico de escolas: modos de educação em santa ca-tarina na Primeira República. Florianópolis: cidade Futura, 2003.

______. Escolas dante alighieri: resistência e italianidade. in: rAdin, J. c. (org.). Cultura e identidade italiana no Brasil – algumas abordagens. Joaçaba: uNoEsc, 2005. p. 109-120.

fiori, N. a. Aspectos da evolução do ensino público. Florianópolis: secretaria de Educação, 1975.

Giddens, a. As conseqüências da modernidade. são Paulo: Unesp, 1991.

hAll, s. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora uFMG, 2003.

klUG, J. a escola alemã em santa catarina. in: dAllAbridA, N. (org.). Mosai-co de escolas: modos de educação em santa catarina na Primeira República. Florianópolis: cidade Futura, 2003. p. 141-154.

kreUtz, L. a Escola teuto-Brasileira católica e a nacionalização do ensino. in: müller, t. L. (org.). Nacionalização e imigração alemã. são Leopoldo: unisinos, 1994. p. 27-74.

______. a educação de imigrantes no Brasil. in: lopes, E. M. t.; fAriA filho, L. M. de; veiGA, c. G. (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: autêntica, 2000. p. 347-370.

monteiro, J. Nacionalização do ensino: uma contribuição à história da educação. Florianópolis: Ed. uFsc, 1984.

müller, t. L. (org.). Nacionalização e imigração alemã. são Leopoldo: uni-sinos, 1994.

nAGle, J. Educação e sociedade na Primeira República. são Paulo: EPu, 1974.

______. a educação na Primeira República. in: fAUsto, B. (dir.). O Brasil repu-blicano. Volume 2: sociedade e instituições (1889-1930). 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 261-291.

nóbreGA, P. de. Ensino público, nacionalidade e controle social: política oli-gárquica em santa catarina na Primeira República, 1900-1922. dissertação

RBHE 21.indd 141 4/10/2009 20:58:20

Page 142: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Nacionalização do ensino catarinense na Primeira República (1911-1920)

142 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

(Mestrado em Educação) – universidade Federal de santa catarina, Florianó-polis, 2000.

ory, P. L’histoire culturelle. Paris: PuF, 2004.

otto, c. Catolicidades e italianidades – tramas e poder em santa catarina (1875-1930). Florianópolis: insular, 2006.

pesAvento, s. J. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, são Paulo, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995.

scheibe, L.; dAros, M. das d. (orgs.). Formação de professores em Santa Ca-tarina. Florianópolis: NuP/cEd, 2002.

soUsA, R. L. as escolas paroquiais. in: dAllAbridA, N. (org.). Mosaico de esco-las: modos de educação em santa catarina na Primeira República. Florianópolis: cidade Futura, 2003. p. 155-173.

stephAnoU, M.; bAstos, M. H. c. (org.). Histórias e memórias da educação no Brasil. Volume iii: século XX. 2. ed. são Paulo: Vozes, 2005.

Fontes

sAntA cAtArinA. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo do Estado em 18 de setembro de 1906 pelo Coronel Antonio Pereira da Silva e Oliveira, Presidente do Congresso Representativo, no exercício das funcções de Governador do Estado.1906.

______. Mensagem lida pelo Coronel Gustavo Richard, Governador do Estado, na 2ª Sessão da 7ª Legislatura do Congresso Representativo em 2 de agosto de 1908. 1908.

______. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo do Estado em 23 de julho de 1911 pelo Governador Vidal José de Oliveira Ramos. 1911.

______. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo do Estado em 24 de julho de 1913 pelo Governador Vidal José de Oliveira Ramos. 1913.

______. Synopse apresentada pelo Coronel Vidal José de Oliveira Ramos ao Exmo. Sr. Major João de Guimarães Pinho, presidente do Congresso Represen-tativo do Estado, ao passar-lhe o Governo, no dia 20 de junho de 1914. 1914.

RBHE 21.indd 142 4/10/2009 20:58:20

Page 143: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

dorval do NasciMENto

143Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 123-143, set./dez. 2009

______. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo do Estado em 14 de agosto de 1917 pelo Governador Felippe Schmidt. 1917.

______. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo, em 8 de setembro de 1918, pelo General Dr. Felippe Schmidt, Governador do Estado de Santa Catharina. 1918.

______. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo em 16 de julho de 1919 pelo Engenheiro Civil Hercílio Pedro da Luz, Vice-Governador, no exercício do cargo de Governador do Estado de Santa Catharina. 1919.

______. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo em 22 de julho de 1920 pelo Engenheiro Civil Hercílio Pedro da Luz no exercício do cargo de Governador. 1920.

______. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo em 22 de julho de 1921 pelo Engenheiro Civil Hercílio Pedro da Luz no exercício do cargo de Governador. 1921.

______. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo em 16 de agosto de 1922 pelo Coronel Raulino Júlio Adolpho Horn no exercício do cargo de Governador. 1922.

______. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo, em 22 de julho de 1923, pelo Engenheiro Civil Hercílio Pedro da Luz, Governador do estado de Santa Catharina. 1923.

Endereço para correspondência:dorval do Nascimento

av. centenário, 3.980/301 – centrocriciúma-sc

cEP 88802-001E-mail: [email protected]

Recebido em: 2 jul. 2008aprovado em: 22 ago. 2008

RBHE 21.indd 143 4/10/2009 20:58:20

Page 144: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

RBHE 21.indd 144 4/10/2009 20:58:20

Page 145: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

145Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

A política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista

modernizador da década de 1960

Letícia carneiro aguiar1

*

Resumo:Este artigo apresenta uma reflexão sobre a política educacional catarinense da década de 1960. Nesse momento, no bojo do ideário desenvolvimentista, o Estado passa a ser o verdadeiro condutor político do processo de consolidação e integração do capital industrial. as questões educacionais passam a ser pensadas numa perspectiva global e economicista, inseridas que foram num projeto societário voltado à modernização econômica estadual.

Palavras-chave:história; educação; política educacional; desenvolvimento; escola pública.

* doutora em educação (universidade Federal de santa catarina – uFsc). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado) da universidade do sul de santa catarina (UnisUl).

RBHE 21.indd 145 4/10/2009 20:58:21

Page 146: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

146 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

The education catarinense policy in developmental modernizer

project at 1960’s

Letícia carneiro aguiar

Abstract:This article presents a reflection on the catarinense educational politics of the decade of 1960. at this moment, in the bulge of the developmental ideas, the state starts to be the true conductor politician of the consolidation process and integration of the industrial capital. the educational questions pass to be thought about a global and economicista perspective, inserted that they had been in a directed corporate project to the state economic modernization.

Keywords:history; education; educational policy; development; public school.

RBHE 21.indd 146 4/10/2009 20:58:21

Page 147: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

147Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

Introdução

a partir da segunda metade da década de 1945, quando começam a surgir elementos de um novo padrão de crescimento, o processo de ampliação e diversificação da base produtiva do estado de Santa Catarina, na década de 1960, encontra uma forte intervenção estatal favorecedora da acumulação privada de capital. a implantação de Planos de Metas do Governo (plAmeG) possibilitou a estruturação da ossatura material e institucional do Estado, cujo objetivo concentrava-se na formação do capital social básico, investindo em energia, transporte, educação.

um novo padrão de crescimento gestado nos anos anteriores estava prestes a se institucionalizar. o movimento de acumulação capitalista orquestrou mudanças institucionais para liberar as forças produtivas, pois, afinal, segundo Marx (1983, p. 24), as “formas de Estado” devem ser entendidas nas “condições materiais de existência”. apesar da auto-nomia relativa do Estado, é um Estado que se molda à ordem econômica.

Nesse momento, o capital industrial se consolidava e promovia, juntamente com as forças oligárquicas1 no comando do aparelho go-vernamental, a integração produtiva em santa catarina. o golpe militar de 1964, apoiado pela oligarquia2 catarinense, ao procurar emudecer a oposição e acentuar o exercício da coerção, possibilitou determinadas condições para que governantes e seus aliados concretizassem políticas favorecedoras do desenvolvimento do capital, da concentração de renda e da ampliação das desigualdades sociais. as forças econômicas – histo-ricamente hegemônicas no governo – em franco processo de organização eram as únicas em condições de sustentar e determinar os rumos para as

1. a partir de 1930 as disputas políticas estão centralizadas em torno de duas oligar-quias – os Ramos e os Konder, que se revezavam no comando do Poder Executivo catarinense.

2. o termo oligarquia aqui utilizado tem o sentido expresso por Norberto Bobbio (1986, p. 835): “o poder supremo está nas mãos de um restrito grupo de pessoas propensamente fechado, ligados entre si por vínculos de sangue, de interesse ou outros, e que gozam de privilégios particulares, servindo-se de todos os meios que o poder pôs ao seu alcance para os conservar”.

RBHE 21.indd 147 4/10/2009 20:58:21

Page 148: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

148 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

políticas governamentais, ao contrário dos segmentos populares, que se encontravam dispersos, desorganizados (auras, 1991).

inicia-se um processo de modernização do aparelho governamental e pela primeira vez na história do estado utiliza-se da técnica do plane-jamento com o objetivo de desenvolver e articular as políticas públicas para atender às exigências do modo de produção capitalista. E foi jus-tamente o pretexto de modernizar o sistema educacional para responder às necessidades do desenvolvimento desse modo de produção que as questões educacionais passaram a ser enfrentadas numa perspectiva global. o binômio educação e desenvolvimento foi colocado como eixo das políticas de modernização do Estado brasileiro.

Nessa perspectiva, a política educacional passou a ser pensada como integrante dos planos econômicos globais e, como política pú-blica, voltava-se para atuar na correlação de forças sociais, seguindo as determinações daquele desenvolvimento. No âmbito estadual, o binômio educação e desenvolvimento foi estrategicamente planejado com a criação das duas primeiras Leis do sistema Estadual de Ensino (1963 e 1969), do Plano Estadual de Educação proposto para o período de 1969-1980, e com a realização de reformas no aparelho estatal e nos diferentes níveis e modalidades do sistema escolar. Esse conjunto de leis e decretos constituiu-se em medidas legais num esforço comprometido com a necessidade de ordenar e normalizar a questão educacional em santa catarina, incorporando-a aos preceitos da Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional (LdBEN), lei n. 4.024 de 1961, da Lei da Reforma universitária (lei n. 5.540 de 1968) e à ideologia desenvolvimentista presente no projeto econômico nacional e estadual.

o acentuado desenvolvimento econômico em curso produziu o aumento da população urbana catarinense que, de uma população até então predominantemente rural, passou a ser marcada pelo predomínio do urbano. concomitantemente, há um aumento do leque de empregos, principalmente nos setores secundários e terciários, expressando “a ne-cessidade do letramento e do avanço da escolarização” (auras, 1995). amplia-se a rede escolar catarinense, sobretudo, a do nível primário. E, por conta da necessidade de serem formados professores para o primeiro

RBHE 21.indd 148 4/10/2009 20:58:21

Page 149: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

149Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

nível da escolarização, expandiu-se a rede escolar de nível médio, prin-cipalmente, as Escolas Normais.

Para possibilitar a inserção de santa catarina no projeto desenvol-vimentista em curso no âmbito federal, desde o governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1960), o Estado reservou um importante papel para o setor educacional. Para que a política econômica tivesse êxito, era indispensável promover o ajustamento da educação.

Este artigo tem a intenção de evidenciar alguns aspectos da política educacional proposta pelo executivo estadual catarinense na década de 1960, que revelam sua gênese no projeto societário em desenvolvimen-to, tais como a concepção, os objetivos e as funções atribuídas ao setor educacional. o estudo caracteriza-se como uma pesquisa documental, por uma perspectiva histórica como orientação teórico-metodológica, tendo como principais fontes: Leis do sistema Estadual de Ensino; Plano Estadual de Educação; Planos, Programas e Mensagens de Governo; documentos de instituições e intelectuais diretamente envolvidos no processo de proposição de políticas públicas.

A política educacional no projeto governamental de desenvolvimento

Estudos de economia política (Michels, 1998; Goularti Filho, 2002) destacam dois grandes períodos do processo de desenvolvimento catarinense: o período colonial até meados dos anos de 1950, sendo ca-racterizado pela acumulação de capital sustentada pela ação dos agentes privados; e período de 1955 aos nossos dias, que é configurado pela acumulação de capital fundamentado, preponderantemente, a partir da ação do agente estatal, via mecanismos de crédito, incentivos, isenções.

Para Goularti Filho (2002) é somente a partir da segunda metade dos anos de 1940 que se inicia em santa catarina o período de ampliação e diversificação do capital industrial, pois até então sua economia apresen-tava baixa capacidade de acumulação (excluindo as indústrias têxteis), desintegração econômica e falta de aporte financeiro. O autor destaca que

RBHE 21.indd 149 4/10/2009 20:58:22

Page 150: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

150 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

no período de 1945 a 1962 há uma consistente diversificação e ampliação da base produtiva na economia catarinense, decorrente do surgimento de novos setores como o de papel, papelão, pasta mecânica, cerâmico, metal-mecânico, plástico, materiais elétricos e indústrias ligadas ao setor de transporte. tal ampliação aconteceu por que: esses setores, que nasceram antes ou nos anos de 1930 aumentaram sua produção com o surgimento de novas indústrias; os setores carbonífero e têxtil ampliaram a capacidade produtiva; e a agricultura começou a ser industrializada, transitando do complexo agro-comercial para o complexo agroindustrial (Goularti Filho, 2002, pp. 141-142).

Nesse período, inicia-se, assim, um processo de metamorfose do capital – a economia agrária, extrativista e mercantil desdobrou-se no capital industrial e agroindustrial. No entanto, este “movimento de am-pliação e diversificação da base produtiva sofria constantes limitações, como falta de energia, de recursos financeiros e de infra-estrutura viária e portuária”, limitações estas que reforçavam a desarticulação econômica do Estado (Goularti Filho, 2002). tal situação desagradava sobremaneira os grupos econômicos e políticos locais, pois colocava o estado numa posição inferior, periférica em relação ao centro econômico capitalista mais desenvolvido do país – a região sudeste. E é nesse contexto de acentuadas diferenças em relação ao sudeste do país, com este se bene-ficiando do maior fluxo de investimentos públicos e privados, que aqui se define o novo e mais significativo período da economia catarinense, o estatal industrial (Michels, 1998, p. 183).

destaca-se que durante o governo de Juscelino Kubistchek ocorre uma mudança no papel do Estado em relação à economia, na medida em que se adota uma estratégia política de desenvolvimento que consolida e expande no país o capitalismo dependente (associado), abrindo cami-nho para o processo de internacionalização da economia. o processo de industrialização nacional pautado pelo capital estrangeiro intensifica-se nesse período, pois a utilização de recursos estrangeiros era vista como uma solução alternativa de desenvolvimento econômico, inaugurando-se um novo modelo de industrialização. Para tanto, reformula-se o papel do Estado para dar curso as ideias desenvolvimentistas do governo res-

RBHE 21.indd 150 4/10/2009 20:58:22

Page 151: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

151Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

paldadas em seu Plano de Metas. E é nesse momento que se admite a ideia de planejamento como “ferramenta fundamental para a conquista de um desenvolvimento eficiente” (Oliveira, 2000, p. 195). Essa refor-mulação das atribuições do Estado amparava-se na chamada ideologia desenvolvimentista3 que propugnava a crença na forte presença do Estado como agente propulsor do desenvolvimento, identificando a planificação econômica como uma ferramenta fundamental para o alcance do desen-volvimento econômico eficiente.

o discurso desenvolvimentista passa a ser efetivamente assumido pelo governo catarinense no início dos anos de 1960, pois aqui encontra condições objetivas propícias para tal. as condições materiais exigiam novas formas superiores de organização capitalista, estruturada a partir do estado para liberar as forças produtivas que entravavam o processo de acumulação. Em nível local, forma-se, por parte do empresariado, dos políticos e técnicos do governo a consciência de que as questões relativas ao desenvolvimento econômico não poderiam ficar restritas ao governo federal, devendo, portanto, o executivo estadual assumir uma ampla tarefa no que se refere à formulação de metas e execução de programas, ou seja, tarefas no âmbito do planejamento econômico. É assim que a burguesia catarinense passa a reclamar a necessidade da interferência do Estado via planejamento econômico, fazendo com que o aparelho governamental seja re-estruturado para responder aos seus reclames, o que não poderia ser diferente, pois a composição do bloco no poder era de frações da própria classe dominante.

3. Em fins dos anos de 1940, a problemática do desenvolvimento começou a aparecer como uma preocupação mundial e central da economia internacional. Na américa Latina, a comissão Econômica das Nações unidas para américa Latina e caribe (cepAl) constituiu-se numa agência propagadora da teoria do desenvolvimento – uma teoria que teve sua origem nos Estados unidos, e tinha o propósito de responder à inquietude das novas nações que surgiam como produto dos processos de des-colonização, e que se davam conta das enormes desigualdades características das relações internacionais. os países capitalistas centrais através dessa teoria procu-ravam justificar as enormes disparidades existentes entre eles e os demais países da periferia; bem como, procuravam convencer os países subdesenvolvidos que a eles também se abriam as possibilidades de progresso e bem-estar.

RBHE 21.indd 151 4/10/2009 20:58:22

Page 152: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

152 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

Observamos que no contexto brasileiro, desde fins dos anos de 1940, molda-se um novo cenário para a educação brasileira e, a partir do que de-terminava a constituição de 1946, sobre a competência da “união legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional”, elabora-se um projeto de reforma geral da educação. Nesse quadro, em 1961, foi aprovada e sancionada a primeira LdBEN brasileira, sendo que no âmbito educacio-nal se formula a tese da educação como instrumento de desenvolvimento social. a educação sendo considerado um elemento dinâmico do processo de desenvolvimento passa a ser integrada a política redistributiva da renda. tal política começa pelo investimento social nos recursos humanos e pela efetiva oportunidade de acesso a educação. “Sob o influxo dessa concepção de educação, passa-se então a admitir a idéia de planejamento impondo dessa forma ao Estado funções complexas” (cruz, 2008, p. 3).

Quanto à política educacional catarinense, as primeiras diretrizes ar-ticuladas ao projeto societário desenvolvimentista podem ser encontradas no seminário sócio-Econômico4 promovido pela fiesc em colaboração com a confederação Nacional da indústria e a cepAl, nos anos de 1959-1960. o seminário, que serviu de subsídios para a elaboração do Plano de Metas do Governo (plAmeG i) de celso Ramos (1961-1965), evidencia os pontos de estrangulamento e estagnação da economia catarinense: falta de energia elétrica suficiente para permitir a instalação de novas indústrias e expansão das existentes; existência de um sistema viário obsoleto e dispersivo; falta de crédito; carência de mão de obra preparada para o trabalho; inadequação de uma rede de serviços e de infraestrutura.

Um dos destaques apresentados pelo documento final do seminário foi “a falta de elemento humano preparado para o trabalho, provando que havia um descompasso entre a demanda de mão de obra especializada

4. Esse seminário foi organizado por setores do empresariado catarinense, articulado por um grupo de intelectuais e técnicos da Federação da indústria do Estado de santa catarina (fiesc), e liderados por Alcides de Abreu que afirmavam estar a economia catarinense carente de um planejamento global e que, sob a liderança estatal, promovesse a infraestrutura necessária para o avanço do processo de indus-trialização. a partir dos levantamentos que foram realizados durante esse evento, o Estado pode rearticular-se, comprometendo-se mais a fundo com o capital.

RBHE 21.indd 152 4/10/2009 20:58:23

Page 153: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

153Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

que o processo econômico exigia e a deficiência do ensino”. Portanto, afirmava como necessário a promoção do “ajustamento do ensino à política desenvolvimentista” (fiesc, 1960, p. 7).

O setor educacional configurava-se como um dos itens colocados na centralidade dos interesses dos debates do seminário sócio-Econômico, em razão, em grande medida, da pressão provocada pelo crescimento populacional e a necessidade de investimento na formação de “capital humano” voltado ao mercado de trabalho dos setores produtivos, ser-viços e setor público, o que exigia uma ampliação significativa do sis-tema educacional, a fim de atender a crescente demanda. Assim, ficava claro que à educação (embora não sendo a propulsora exclusiva desse desenvolvimento) se atribuía uma relevante parcela de responsabilidade durante o período de implantação e afirmação do chamado “arranco de-senvolvimentista”, como preparadora de mão de obra (silva, 1988, p. 59).

Na perspectiva do governo do estado (santa catarina, 1965, p. 13), “a valorização dos recursos humanos é um importante caminho para se chegar ao desenvolvimento da economia, pois esta não dependeria só dos capitais, mas da qualidade dos homens”.

Enquanto no campo educacional o governo de celso Ramos notabili-zou-se pela expansão, sobretudo quantitativa, com a: criação de milhares de salas de aulas – mais de 2.500, o que representava 200.000 novas oportunidades de escolarização; implantação da universidade para o desenvolvimento do Estado de santa catarina (Udesc) – proclamada como importante instituição educacional voltada para a “difusão da ideologia desenvolvimentista e a formação de cérebros que conduziriam o desenvolvimento econômico e social do estado” (Ramos, 1965 apud Udesc, 1990, pp. 8-9); criação do conselho Estadual de Educação – em torno do qual havia grande expectativa de vir a ser, em nível estadual, o órgão propulsor de mudanças educacionais; e aprovação de toda uma legislação escolar que regulamentou reformas no ensino primário e médio, na Escola Normal, na secretaria Estadual de Educação. No go-verno de ivo silveira (1966-1971) ocorre uma maior preocupação com o aspecto qualitativo da educação pública, sendo as ações governamentais direcionadas para combater a chamada “crise de qualidade” do ensino.

RBHE 21.indd 153 4/10/2009 20:58:23

Page 154: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

154 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

a “crise” da qualidade do ensino é atribuída, fundamentalmente, aos elevados índices de repetência e evasão escolar, associada às pressões para a expansão da escolaridade primária (em 1961 a LdB já previa a ampliação do primário até a 6ª série). Para a solução deste último problema, entendia-se que as medidas dos governos anteriores não mais atendiam aos ideais desen-volvimentistas do governo “revolucionário” [pós-64]; a inserção da educação nestes ideais impunha a exigência do planejamento, cujas medidas deveriam estar embasadas cientificamente, o que implicou a realização de uma série de pesquisas sobre a realidade educacional catarinense [dutra, 1984, p. 37].

No primeiro quinquênio (1960-1965), o ordenamento e a norma-lização da questão educacional ocorrem a partir de leis que criam o conselho Estadual de Educação e regulamentam o sistema Estadual de Ensino, reorganizam a secretaria de Estado da Educação e o Ensino Normal e Primário.

Já no segundo quinquênio (1966-1971), a política educacional pas-sa a ser pensada em termos globais, com a utilização da estratégia do planejamento na organização e funcionamento do sistema educacional. Para subsidiar a elaboração desse planejamento mais amplo da educação, o executivo estadual, através da secretaria da Educação, realiza dois importantes convênios: o convênio plAmeG, Udesc e centro de Estudos e Pesquisas Educacionais (cepe)5; e o convênio Ministério da Educação e cultura (MEc), instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (inep) e Unesco. os convênios possuíam o objetivo de criar as condições neces-sárias para que ao estado fosse possível definir as bases da sua política educacional e o planejamento global de suas ações nessa área.

É importante destacar que os convênios estavam inseridos numa política mais global do governo federal, já que no período de 1964 a 1968 foi firmada uma série de acordos (doze no total), conhecidos como

5. o cepe foi criado pela lei n. 3.191 no ano de 1963, como órgão pertencente à Fa-culdade de Educação. Esse órgão foi a única instituição de pesquisa educacional existente em santa catarina na década de 1960, e exerceu uma importante função no processo de elaboração da política educacional estadual.

RBHE 21.indd 154 4/10/2009 20:58:23

Page 155: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

155Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

“acordos MEc-UsAid”. Esses acordos alcançaram todo o sistema educa-cional, em todos os seus níveis e em todo o país, e envolviam aspectos voltados à re-estruturação administrativa, planejamento e treinamento de pessoal docente e técnico.

Romanelli (2002) afirma que um agravamento da crise do sistema educacional, provocado pela aceleração do ritmo do crescimento da demanda social por educação, serviu para justificar a assinatura desses convênios e serviram também de pretexto para assegurar a interven-ção estrangeira em forma de cooperação. a agency for international development (aid) assessorava a administração pública através de cooperação financeira e assistência técnica. Para a autora, esses acordos desencadearam uma reforma autoritária, vertical que vinculava o sistema educacional ao modelo econômico dependente, imposto pela política norte-americana para a américa Latina.

como resultado dos acordos MEc-UsAid e de convênio firmado pelo MEc com a Unesco, peritos estrangeiros assessoraram os estados na organização dos seus sistemas de ensino e na elaboração da sua política educacional. Em santa catarina, a Unesco teve presença significativa no financiamento e no assessoramento técnico de atividades (financia-mento de pesquisas, realização de eventos) promovidas pelos órgãos governamentais.

o convênio plAmeG-Udesc/cepe, firmado em 1966, definiu como prioridade a realização de uma pesquisa com o intuito de diagnosticar os problemas do ensino primário e médio. constatava-se que no período havia uma carência de dados relativos à realidade escolar catarinense, e o convênio procurava justamente financiar a realização de estudos sobre esta realidade.

as pesquisas foram realizadas no período de abril de 1966 a março de 1968, sob assessoria dos peritos da Unesco Jacques torfs e Michel debrun, ambos integrantes das suas missões de planejamento educacio-nal no Brasil, e cujo relatório recebeu o título “sobre as condições do Processo Educacional de santa catarina”.

É interessante observar que o relatório chama a atenção para o fato de que, considerando que santa catarina “está caminhando num processo

RBHE 21.indd 155 4/10/2009 20:58:24

Page 156: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

156 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

irreversível de desenvolvimento”, havia a necessidade de organização de “um grupo de técnicos de alto nível” que, através da “colaboração de organismos nacionais e internacionais”, elabore o planejamento integral do processo educacional catarinense, “ajustando-o aos planos globais de desenvolvimento do Estado” e determine as modificações “estruturais e funcionais que se fazem necessárias na máquina administrativa respon-sável pelo controle e desenvolvimento da educação” (santa catarina, 1967, p. 152).

Veja-se que esse documento retrata a visão autoritária predominante nesse momento histórico (ditadura militar) da sociedade brasileira, com relação a forma deveria ocorrer o processo de planejamento da política educacional, pois o concebe como algo a ser pensado apenas por “téc-nicos de alto nível”, nos revelando que possivelmente o planejamento educacional foi adotado não somente como um mecanismo de gestão, mas também de controle.

outras duas pesquisas também foram patrocinadas pelo plAmeG e realizadas pelo cepe entre os anos de 1966 e 1968: “Expansão da Escola-ridade Primária até a 6ª série” e “Evasão e Repetência nas comunidades Pesqueiras”.

a pesquisa “Expansão da Escolaridade Primária até a 6ª série” indicava que “a maioria dos educadores e diretores de escolas creem não haver condições quanto às possibilidades do Estado de realizar tal expansão”, “[...] alegando falta de professores, salas, equipamento didá-tico” (santa catarina, 1968, p. 34). Mas, embora os estudos concluíssem sobre a impossibilidade da expansão até a 6ª série, no ano seguinte, em 1969, o PEE marcava o pioneirismo de santa catarina determinando a expansão da escolaridade primária até a 6ª série.

a pesquisa “Evasão Escolar e Repetência nas comunidades Pes-queiras” demonstrava que, além da falta de condições físicas das escolas, existia a interferência de outros fatores, tais como a insuficiência do serviço de assistência escolar e baixos níveis econômicos da população da área pesquisada (santa catarina, 1968, p. 107). segundo dutra (1984, p. 38), a relação entre evasão escolar e condições econômicas da família do aluno se revelou bastante significativa quando a pesquisa apontava

RBHE 21.indd 156 4/10/2009 20:58:24

Page 157: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

157Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

que “a conclusão do currículo primário é desestimulada, na maioria dos casos, tendo em vista que a continuação dos estudos é um ideal de difícil realização”. além disso, “em primeiro lugar a criança permanece na escola enquanto não está capacitada a participar mais decisivamente das atividades produtivas” (santa catarina, 1968, p. 76).

sobre a relação entre a evasão escolar e as condições socioeconômi-cas, a pesquisa “sobre as condições do Processo Educacional em santa Catarina” também apontava como causas da evasão escolar as dificul-dades econômicas das famílias, a necessidade da criança em ajudar na lavoura ou em casa e a ausência de outras escolas com oferta de outras séries além do ensino primário (santa catarina, 1967, p. 23).

Para dutra (1984, p. 39), os resultados dessas pesquisas “não dei-xam dúvidas sobre a determinação do fator econômico nos elevados índices de repetência e evasão escolar da rede escolar catarinense”. No entanto, para a autora, esse aspecto parece ter sido ignorado pelos propositores da política educacional, na medida em que a impressão que fica é a de que as pesquisas serviram muito mais para justificar o caráter de “cientificidade” atribuído às mudanças realizadas em 1969 pelo PEE e Lei do sistema Estadual de Ensino, do terem sido úteis na orientação de uma política que levasse em consideração as reais necessidades do povo catarinense.

ao confrontarmos os resultados e as posições apontadas pelas pesquisas com as medidas adotadas no PEE e regulamentadas pela lei n. 4.394/69, pode-se verificar que a (não) relação entre eles se devia, fundamentalmente, à necessidade de legitimar as medidas impostas à população catarinense. Tal afirmação é possível tendo em vista que o PEE propôs medidas as quais as pesquisas já haviam mostrado serem ineficazes na resolução daquilo que o próprio plano afirmava ser o mais grave problema da escola catarinense – a repetência e a evasão escolar. apesar das pesquisas apontarem que tais problemáticas tinham sua origem em fatores que ultrapassavam o âmbito escolar, a política educacional implantada por meio do PEE e da Lei do sistema de Ensi-no de 1969 focaliza a resolução dos problemas escolares em fatores de ordem pedagógica como, por exemplo, a adoção de um novo programa

RBHE 21.indd 157 4/10/2009 20:58:24

Page 158: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

158 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

de ensino, o treinamento de professores, a adoção de um novo sistema de avaliação do rendimento escolar (sistema de avanço Progressivo).

o fato de santa catarina ter sido o primeiro estado brasileiro que realiza um diagnóstico sobre a sua realidade escolar, o habilitou para receber a assessoria técnica prevista no convênio MEc-inep-Unesco. através do convênio a assistência técnica estrangeira também ocorreu durante o processo de elaboração do PEE, principalmente quando da rea-lização do iV colóquio Estadual para a organização do sistema Estadual de Ensino (ceose), entre os dias 5 e 8 de julho de 1967, na Faculdade de Educação da Udesc, em Florianópolis. Esse ceose, além de reunir técnicos e autoridades interessadas em educação, desenvolveu estudos sobre a situação educacional catarinense.

Do convênio firmado entre o MEC e a Unesco resultaram os ceoses, realizados em vários estados brasileiros. os colóquios tinham por objetivos tornar efetiva a organização dos sistemas estaduais de ensino criados pela LdBEN e preparar as condições mediante as quais fosse possível aplicar-se concretamente a LDBEN e sua filosofia, ou seja, a descentralização.

a descentralização acabou, pois, consistindo no objetivo principal do ceose, que deveria prestar assistência técnica aos estados na elaboração dos seus planos de educação, o que era considerado uma necessidade imperiosa para que fossem integrados aos ideais desenvolvimentistas da época. Desse modo, no convênio afirmava-se que o PEE deveria estabe-lecer metas e objetivos em função das metas gerais do plano econômico, social e cultural da nação, do Plano de Educação Nacional e dos planos econômicos, sociais e culturais do Estado.

É relevante aqui observar que sob a égide do regime militar implanta-do em 1964 se desencadeou novamente um processo de reorientação geral do ensino no país. Saviani (2004) afirma que a nova situação instaurada exigia adequações que implicavam alterações na legislação educacional.

Mas o governo militar não considerou necessário modificá-la totalmente mediante a aprovação de uma nova lei de diretrizes e bases da educação nacional. isso porque, dado que o golpe visava a garantir a continuidade da ordem socioeconômica [...], as diretrizes gerais da educação, em vigor, não

RBHE 21.indd 158 4/10/2009 20:58:24

Page 159: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

159Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

precisavam ser alteradas. Bastava ajustar a organização do ensino à nova situação [saviani et al., 2004, p. 41].

Esse ajuste foi realizado a partir das leis n. 5.540/68 e n. 5.692/71, permanecendo em vigor os primeiros títulos da LDBEN (Dos fins da educação, do direito à educação, da liberdade do ensino, da administração do ensino e dos sistemas do ensino). A filosofia da descentralização foi mantida, pois o governo militar interpretava a descentralização como componente fundamental da instauração da “ordem democrática”, o que era contraditório, já que o próprio golpe militar de 1964 representou uma ruptura política necessária à consolidação da doutrina de subordinação aos interesses econômicos do capital internacional, instaurando a doutrina da interdependência, o que seria, por si só, suficiente para demonstrar a sua natureza autoritária.

É necessário lembrar, por exemplo, que foi também nesse período que se operou a maior concentração de recursos no poder central, dei-xando os estados e os municípios em completa subordinação à união para desenvolver sua política. isso nos revela que a descentralização proclamada pelo governo consistia apenas no direito de executar, já que sem recursos não há autonomia.

Na área educacional,a filosofia da descentralização operou a im-posição das diretrizes concebidas no interior do poder central com a cooperação dos organismos internacionais (Unesco, cepAl, UsAid), comprometidos que estavam com a ordem econômica dominante.

Nesse sentido, o iV ceose configurou-se num momento muito especial de articulação das principais ideias que nortearam os rumos da educação em santa catarina, seja na disseminação do conceito de planejamento como instrumento de inserção da educação nos ideais de desenvolvimento econômico, seja na definição do conteúdo pedagógico a ser contemplado no planejamento da educação.

Para que a descentralização fosse viabilizada, o iV ceose defendia a necessidade de os estados possuírem “líderes e técnicos suficientemente adestrados”, “[...], pois o estudo e a gestão dos assuntos educacionais não pode ser atribuição apenas de burocratas ou de técnicos, mas, sobretudo,

RBHE 21.indd 159 4/10/2009 20:58:25

Page 160: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

160 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

de uma elite capaz de dar conteúdo real à educação” (santa catarina, 1967, p. 12). Portanto, relacionada à ideia de descentralização estava o estabelecimento da divisão do trabalho, o que representa mais uma forma de manter a centralização do poder e a premissa de que o Estado é uma instituição universal e que representa os interesses da população.

Para o MEc, também se constituíam em objetivos do ceose:

a) o diagnóstico da situação com a indicação de medidas administrativas e técnicas que possam conduzir à implantação de novas estruturas ou mecanismos no sistema de educação do Estado e na organização das respectivas secretarias de Educação;

b) a discussão de idéias que devam lastrear a sua política de educação;c) o planejamento educacional [Brasil, 1967, p. 5].

durante o iV ceose, os peritos da Unesco Jacques torfes e Michel debrun debateram com autoridades e técnicos em educação no estado sobre os problemas responsáveis pela inadequação do sistema de ensino em vigor. No total, sete foram os documentos elaborados para subsidiar as discussões do ceose. Esses documentos enfatizavam a necessidade de traçar um plano educacional para santa catarina e a adoção de me-didas administrativas e pedagógicas que assegurassem a sua realização. Posteriormente, em novembro, os mesmos técnicos enviaram ao exe-cutivo catarinense exaustivo um relatório sobre a situação educacional, focalizando problemas e apresentando soluções a curto e médio prazo.

ao examinarem as propostas pedagógicas de planejamento veicu-ladas no ceose, os estudos6 de dutra (1984), amorim (1984) e silva (1988) revelam-nos o caráter autoritário e discriminatório pensado para a educação catarinense naquele momento. Para as autoras, nessas propostas não foram apresentadas questões relacionadas à expansão da rede escolar, à qualidade do corpo docente ou às condições físicas e materiais das escolas. a preocupação centrava-se no problema da queda

6. Estudos mais detalhados sobre a temática em questão datam da década de 1980, não tendo sido encontrados trabalhos mais recentes a seu respeito.

RBHE 21.indd 160 4/10/2009 20:58:25

Page 161: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

161Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

da qualidade do ensino, esta entendida a partir dos alarmantes índices de evasão e repetência escolar no ensino primário. E as causas da evasão e repetência escolar foram atribuídas não aos fatores econômicos (à lógica de acumulação capitalista), como diagnosticaram as pesquisas realizadas pelo cepe/Udesc, mas sim à falta de socialização da criança, ao currículo considerado difícil e tradicional e a existência de professores não qualificados.

Portanto, as propostas veiculadas no ceose para solucionar as problemáticas internas do sistema educacional e das escolas, tais como o fracasso escolar, foram tratadas apenas numa perspectiva mais téc-nica. Nessa direção, apontam as autoras (dutra, 1984; amorim, 1984; silva, 1988), transformava-se a problemática da qualidade do ensino numa questão de caráter eminentemente pedagógico e individualizado, perdendo-se de vista as questões mais globais, mais amplas do processo escolar. Pois, transferir os problemas da educação, sobretudo, para o âmbito do pedagógico e do individual retira do Estado a responsabili-dade com relação às condições mais adequadas do ensino (qualificação de professores, condições de trabalho docente, material de ensino, salas de aulas adequadas etc.) e, mesmo, para com melhoria das condições de vida da população.

outra solução aos problemas escolares catarinenses, apontada pelo ceose, relacionava-se à modernização burocrática como instrumento que, associado ao planejamento, permitiria o controle mais eficaz das mudanças. Para tanto, preconizava-se a re-estruturação da secretaria Estadual de Educação e a implantação de uma nova ordem administrativo-burocrática escolar, uma reorganização do sistema estadual de ensino, o que veio a ocorrer com a aprovação de uma nova Lei do sistema Estadual de Ensino, em 1969. Nesse aspecto, para dutra (1984, p. 44), essa pro-posição do ceose viria assegurar apenas “a eficácia da lógica do capital, isto é, apesar de descentralizar – nos modos assinalados – a execução, são criados mecanismos que asseguram o seu controle”.

destacamos que as pesquisas realizadas pelo cepe e pelo ceose, apesar da diferença quanto aos fatores determinantes da evasão e da repetência escolar, foram unânimes em afirmar que a solução desses

RBHE 21.indd 161 4/10/2009 20:58:25

Page 162: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

162 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

problemas estaria na escola, no âmbito pedagógico. tanto o cepe como o ceose apresentam propostas solucionar a problemática da evasão e da repetência. Propõe, por exemplo, a dissolução dos conteúdos da 1ª série nos quatro anos da antiga escola primária e a criação de uma série preparatória – uma 1ª e uma 2ª série com “promoção quase automática”.

o princípio da “promoção quase automática” foi incorporada pelo PEE em 1969, constituindo-se no núcleo da reforma no ensino primário e ginasial em santa catarina na década de 1970. Essa proposta da “promo-ção automática” (denominada de sistema de avanços Progressivos) foi absorvida e aperfeiçoada pelo PEE, pois se transformou numa “medida muito atraente” na medida em que, “ao aligeirar a permanência do aluno na escola – pela supressão formal da reprovação – barateia o ensino” (dutra, 1984, p. 47).

Na análise dessa autora, a proposta da promoção automática foi implantada e provocou a banalização e a facilitação do conteúdo, o que certamente contrariava os interesses da população por uma escola de boa qualidade. Já a proposta da série preparatória não foi incorporada ao PEE porque acarretaria um aumento dos custos educacionais, o que contrariava o interesse de um Estado que representava o capital e para o qual os investimentos deveriam ser feitos em áreas que favorecessem a acumulação capitalista (dutra, 1984).

No entendimento do ceose a ideia da promoção automática favore-ceria aos professores, pois seriam avaliados pelos pais como profissionais mais competentes, evitando que viessem a retirar seus filhos da escola. No ceose atribuía-se aos pais a opinião de que eles haveriam de considerar o professor competente como aquele que promovesse de modo automático o aluno. Na realidade, o intuito de relacionar “promoção automática” com “competência docente” acabava por difundir a ideia na qual os pais estão interessados na pura promoção e de que a sua institucionalização resolve os problemas de evasão e da repetência escolar. É uma ideia que fez acreditar, primeiro que os pais estariam interessados numa falsa promoção, isto é, numa promoção que não corresponda ao domínio do saber. Em segundo lugar, “cria a idéia de que a evasão e a repetência escolar decorrem de uma rejeição à reprovação em si mesma”, negando

RBHE 21.indd 162 4/10/2009 20:58:26

Page 163: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

163Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

o resultado das pesquisas realizadas no período que demonstraram a determinação do fator econômico (dutra, 1984, p. 47).

assim, a proposta pedagógica do ceose apresentava, portanto,

[...] inúmeras vantagens para esse Estado: do ponto de vista econômico ela provoca o barateamento dos custos dos alunos, pois não mais serão sub-metidos à reprovação, à permanência na escola além do tempo estabelecido legalmente. Num outro sentido, tal proposta tem uma determinação econômica ainda mais forte, porque transfere para a escola, ou para o aluno em si, a causa de um problema que tem sua determinação maior nas condições de vida da população, pois, sem dúvida, são os estratos mais pobres da população os mais atingidos pela reprovação e pela evasão escolar. assim legitima-se o descompromisso do Estado com a melhoria das condições de ensino e de vida da população, o que repercute em maiores dificuldades de aprendizagem desses estratos da população [dutra, 1984, pp. 47-48].

os eventos seminário sócio-Econômico e o ceose, promovidos, respectivamente, pela sociedade civil e sociedade política, se constituí-ram em importantes espaços de produção e articulação em torno das principais diretrizes que definiram os rumos da política educacional em santa catarina na década de 1960. a política formulada no período foi fortemente determinada pelos documentos produzidos no interior desses eventos, tendo seus contornos influenciados pela conjuntura econômica não somente estadual, mas também nacional. Essa política expressava, portanto, o debate e as propostas que já estavam sendo disseminadas pelo MEc com a colaboração dos organismos internacionais (Unesco, cepAl, UsAid) para o conjunto da sociedade brasileira. o debate e as propostas articulavam-se à ideia da contribuição fundamental que a educação poderia exercer no sentido de inscrever o Brasil no rol dos países desenvolvidos.

durante a década de 1960, foram aprovados a primeira Lei do siste-ma Estadual de Ensino (1963), o primeiro PEE para o decênio 1969-1980 e a segunda Lei do sistema Estadual de Ensino (1969), documentos legais que implantaram no âmbito estadual as determinações estabelecidas em nível federal pelas leis n. 4.024/61 e n. 5.540/68. Essa legislação cons-

RBHE 21.indd 163 4/10/2009 20:58:26

Page 164: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

164 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

tituía parte da estratégia governamental para inserir o estado de santa catarina entre os estados alinhados com a política nacional de reformar os sistemas de ensino, visando adequá-los às necessidades do desenvol-vimento econômico capitalista global.

a associação que passou a ser estabelecida entre desenvolvimento econômico, planejamento, educação e modernização acentuou-se em nível federal, o que influenciou, sobremaneira, os estados da federação no sentido de também organizarem planos que propiciassem o “arranco desenvolvimentista” e, principalmente, que consolidassem o desenvol-vimento do modelo econômico definido nacionalmente (Auras, 1995).

À semelhança do poder central, o governo catarinense atribuiu precisa função à educação pública estadual dentro do projeto de desen-volvimento capitalista, de modernização conservadora, pois esta não foi acompanhada da modernização política, da democratização do poder, do acesso das maiorias à cidadania econômica e social. assim, a partir de 1960, torna-se cada vez mais frequente um discurso governamental pautado nos temas do desenvolvimento, da modernização e da renova-ção como conteúdo mobilizador da sociedade e como justificativa para a deflagração das “reformas” educacionais.

a educação, conteúdo das proclamações nos canais de mobilização, é apresentada, como modernizadora porque voltada para capacitar profissio-nalmente o recurso humano, dando-lhe mais oportunidade e eficiência; e é apresentada como renovadora, porque resgata os valores basilares da unidade/coesão nacional: soberania, integração nacional, paz social, desenvolvimento socioeconômico [Lobo Neto, 2003, p. 553].

Já no início dos anos de 1960, a política educacional catarinense passa a ser elaborada no sentido de colaborar para “vencer as trevas do subdesenvolvimento”, contribuindo para a formação de um “homem útil” ao projeto econômico-social, do ponto de vista dos governantes. o papel atribuído à educação volta-se para o “preparo do homem produtivo e eficaz e de ser formadora de mão de obra, sendo, então, a educação pensada como um recurso para a produção” (auras, 1995, p. 13).

RBHE 21.indd 164 4/10/2009 20:58:26

Page 165: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

165Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

alcides abreu7 (1965, p. 118), ativo intelectual em prol do projeto governamental em andamento, apontava a educação necessária à indus-trialização estadual: para os seus estágios iniciais, apenas uma educação básica com a função de “preparação de um tipo de mão de obra que possa adaptar-se facilmente aos novos trabalhos e ocupações” (“alfabetização e integração mínima na vida urbana e suas transações diárias”); para os estágios mais avançados de industrialização, uma “preparação mais in-tensa que sirva de base para a aquisição de conhecimentos tecnológicos e organizacionais mais difíceis”.

o processo de industrialização da economia catarinense, apresentan-do um desenvolvimento mais efetivo a partir dos anos de 1960, começou a exigir, em certas atividades produtivas menos complexas, um trabalhador com um domínio de conhecimentos apenas rudimentares – ler, escrever e contar (papel da educação geral), e nas atividades mais complexas um trabalhador com determinada especialização e capacidade para lidar com instrumentos produtivos de natureza mais avançada (papel da educação pós-primária, como escolas ou liceus industriais).

Possibilitando o acesso do trabalhador aos conhecimentos básicos, estaria a escola, assim, garantindo sua adequada inserção numa sociedade urbano-industrial, formando-o a partir de novos valores e novos padrões de consumo. Essa compreensão do papel da educação a afirmaria como um importante instrumento de democracia social, pois além de “tratar a todos os indivíduos como iguais potencialmente”, a educação permitiria tornar cada indivíduo mais qualificado e “apto a distinguir o seu interesse e a promover a própria ascensão (e por via da conseqüência, a do país)” (abreu, 1965, p. 118).

Veja-se que a educação aqui é concebida como importante canal de ascensão social, como se não existissem diferenças fundamentais

7. alcides abreu integrava os quadros da fiesc e foi o idealizador do plAmeG i, sendo também seu secretário-executivo. após ocupar a direção do Gabinete do Planeja-mento do governo de celso Ramos, foi presidente do Banco de desenvolvimento do Estado, e mais tarde responsável pela elaboração do Projeto catarinense de desenvolvimento do Governo colombo Machado salles (1971-1975).

RBHE 21.indd 165 4/10/2009 20:58:26

Page 166: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

166 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

resultantes da sociedade de classes. o discurso dos detentores do poder torna-se, portanto, um discurso dissimulador das desigualdades entre as classes sociais, pois ao conceber dessa maneira a educação, ele

[...] dissimula os seus próprios mecanismos de discriminação social, legitimando, então, essa discriminação; atrai, também, para si, a preocupação de setores descontentes da sociedade, que passam a vislumbrar a escola como instrumento de superação das condições materiais consideradas injustas; com isso, livra de críticas a ordem econômica e produz e reproduz essas condições [cunha, 1980, p. 57].

Nessa perspectiva de compreensão do papel da educação no projeto de desenvolvimento catarinense, as proposições políticas para o setor educacional partiam do pressuposto de que seria a via educacional o caminho mais importante à formação de “capital humano” voltado para acelerar o progresso material e social da sociedade. atrelava-se, assim, a educação ao desenvolvimento econômico na medida em que se afirma que o aumento da escolaridade do indivíduo propiciaria o aumento da sua produtividade no trabalho, o que gera o aumento da sua renda e, como consequência, da sua mobilidade social.

os gastos com educação, portanto, foram concebidos pelo governo como um investimento básico que retorna em benefícios para o indivíduo e para a sociedade, na medida em que favorece um desenvolvimento gerador de uma democracia social, de uma maior integração social e o aumento da produtividade no trabalho. Exemplo desse discurso identifi-camos no ano de 1963, quando osvaldo Ferreira de Melo8, outro impor-tante intelectual do projeto governamental em andamento, ao elaborar

8. osvaldo Ferreira de Melo foi: assessor técnico para assuntos de Educação do Gabi-nete do Planejamento/plAmeG i do estado de santa catarina; presidente do conselho Estadual de Educação, coordenando a comissão superior de Estudos responsável pela elaboração do i Plano Estadual de Educação/1969-1980. Ele elaborou dois importantes estudos (financiados pelo plAmeG) que subsidiaram a elaboração da política educacional catarinense – “a escolarização de nível primário em santa catarina (1963)” e “diretrizes para a Educação em santa catarina” (1967).

RBHE 21.indd 166 4/10/2009 20:58:27

Page 167: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

167Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

um documento a pedido do Gabinete do Planejamento do executivo estadual, apontava o setor educacional como um setor de investimento prioritário do governo, argumentando que

[...] os povos que um dia desejaram firmar-se pelo desenvolvimento, aprenderam [...] que antes de tudo deveriam investir em educação, educação não é só a base, mas também a força unificadora de nosso sistema democrático de vida – é a mola propulsora de nosso progresso social e econômico, [...] o mais lucrativo investimento que a sociedade pode fazer. [...] ou damos opor-tunidades crescentes à população escolar, ou não teremos no prazo mínimo necessário, a mão de obra especializada, nem os técnicos, nem os profissionais liberais de que precisamos com urgência. a opção, em síntese, seria entre a paralisação e o desenvolvimento [Melo, 1963, pp. 14-15].

também no ano de 1967, esse intelectual orgânico (no sentido gramsciano do termo), num outro documento reafirma a concepção de educação como investimento e “elemento propulsor do progresso técnico e social”, ao afirmar que:

Entendida assim, a educação nos parecerá, do ponto de vista sócio-econô-mico, um investimento fundamental, um pré-investimento. [...], pois, sendo um investimento econômico, prepara o elemento propulsor do progresso, ou seja, o técnico, o pesquisador, o educador, o trabalhador qualificado, o profissional liberal, o cientista, o administrador, o político. como investimento social, habilita o Homem a usufruir o progresso econômico alcançado, possibilita-lhe plena integração no mundo da cultura e estimulam-no [sic] à formação de superiores padrões éticos, jurídicos e espirituais [Melo, 1967, p. 15].

apesar de considerar os importantes ganhos no campo cultural, Melo (1967, p. 15) pondera que o mais importante dos ganhos será no campo econômico, já que “[...] por mais importante que seja a taxa de retorno cultural, igualmente é cada vez mais importante a taxa de retorno econômico do investimento educacional”.

A definição da função da educação no desenvolvimento do estado também se encontrava presente nos objetivos que lhe foram atribuídos

RBHE 21.indd 167 4/10/2009 20:58:27

Page 168: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

168 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

pelas Leis do sistema Estadual de Ensino. Na primeira lei (1963), em concomitância com a LdBEN, encontramos em seu artigo1º que “à edu-cação competia promover o desenvolvimento social, econômico, cultural e tecnológico”, através da “preparação de recursos humanos necessários às novas demandas econômicas”, contribuindo para fortalecer a “unidade nacional” e o “desenvolvimento integral da personalidade humana e a sua participação na obra do bem comum”, e preparando cada indivíduo para o domínio de recursos científicos e tecnológicos “que lhes permitam utilizar as possibilidades e vencer as dificuldades do meio”. Já a segunda lei (1969) defendia, entre outras finalidades, que “a educação no Estado de santa catarina, inspirada nos princípios de liberdade e solidariedade humana”, tem por fim: “a formação e valorização de recursos humanos para o desenvolvimento econômico e social do Estado”.

À semelhança das leis do sistema de ensino, o primeiro PEE do estado de Santa Catarina, afirmava a “área da educação como área crucial [...] para se fundamentarem as várias etapas do ‘arranco para o desenvolvimento’, encarado no seu aspecto integral” (santa catarina, 1969, p. 1). segundo o plano, a educação teria além de um importante “valor espiritual” (prepon-derantemente, de formação moral e cívica), um valor econômico (“meio de aceleração do desenvolvimento”), e “para atuar como determinante do processo de desenvolvimento e mudança”, definia-se como seus objetivos: formação de mão de obra qualificada necessária ao setor produtivo; elevação da renda individual e a consequente aquisição de novos hábitos de consu-mo; estabelecimento de novos padrões de mobilidade social; divulgação de valores novos próprios da sociedade urbano-industrial; estabelecimento das condições necessárias à participação particular nos mecanismos institucio-nais, referentes às decisões da sociedade global (santa catarina, 1969, p. 3).

dessa forma, entendia o Plano Estadual estar auxiliando a dinamizar a sociedade e a recompor o equilíbrio social, considerando que o carro-chefe do planejamento estatal e da política econômica seria o processo de industrialização,

Relativamente ao progresso social, a educação possibilitará que todas as categorias sociais participem do desenvolvimento econômico, promovendo a

RBHE 21.indd 168 4/10/2009 20:58:27

Page 169: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

169Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

valorização do homem e assegurando a democratização de oportunidades. É ainda a educação instrumento poderoso na formação da esclarecida consciên-cia democrática, estabelecendo condições para a criação de valores espirituais, morais e cívicos, que afirmem a nacionalidade [Santa Catarina, 1969, p. 2].

a análise de alguns dos principais documentos de política educacio-nal do estado catarinense nos apontou que foi pelo referencial da teoria do capital humano (tcH, fundamentada em teóricos como theodore schultz e Frederick H. Harbison) que essa política foi proposta. constatamos, por exemplo, que o teor de documentos elaborados por intelectuais para subsidiar as políticas públicas para o setor, como osvaldo Ferreira de Melo, alcides abreu, ivo Maes, ou o próprio PEE faziam referências diretas às obras e aos conceitos de theodore schultz (a quem é atribuída em grande parte a paternidade da teoria do capital humano) e Frederick H. Harbison.

derivada da teoria econômica neoclássica, a tcH, formulada nos anos de 1950 (num contexto bastante tomado pela ideologia nacional-desenvolvimentista) e dominante em nosso país a partir do final dessa década, tem uma concepção produtivista da educação, e tornou-se “mais um legado do século XX que persiste ainda atualmente na educação brasileira” (saviani, 2004, p. 50).

a disseminação da “teoria” do capital humano, como panaceia da solução das desigualdades entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos e entre os indivíduos, foi rápida nos países latino-americanos e de terceiro mundo, através dos organismos internacionais (Bid, bird, oit, Unesco, FMi, UsAid, Unicef) e regionais (cepAl, cinterfor), que representam dominantemente a visão e os interesses do capitalismo integrado ao grande capital (Frigotto, 1996, p. 41).

segundo oliveira (2000, p. 223):

surgida no bojo da ideologia desenvolvimentista, a teoria do capital Hu-mano contribuiu largamente para o discurso e a crença na eficácia da educação como instrumento de distribuição de renda e equalização social. Esta teoria apareceu assim como instrumento indispensável aos países subdesenvolvidos

RBHE 21.indd 169 4/10/2009 20:58:28

Page 170: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

170 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

para alcançar o desenvolvimento pretendido. a teoria do capital Humano partia da suposição de que o indivíduo na produção era uma combinação de trabalho físico e educação ou treinamento. considerava o indivíduo produtor de suas próprias capacidades de produção, por isso denominava investimento humano o fluxo de despesas que o próprio indivíduo devia efetuar em educação para aumentar a sua produtividade.

a autora esclarece que no contexto em que surgem as teorias de Schultz afirmando a necessidade de investimento em educação como capital humano, “estava presente a exigência de se explicar um novo estilo de êxito pessoal, não mais embasado na livre-iniciativa, mas nos valores e atributos pessoais de cada empregado, inserido numa grande corporação monopolista” (oliveira, 2000, p. 222). concebendo o traba-lhador como um recurso a mais empregado no processo produtivo, essas teorias atribuíram à educação o lugar de principal fator de investimento, já que era concebida como produtora de capacidade de trabalho.

Schultz (1962) definia capital humano como a soma dos investimen-tos do indivíduo em aquisição de conhecimentos (capital este adquirido em sua quase totalidade nas escolas e universidades) e que a qualquer momento reverte em benefícios econômicos para o próprio indivíduo (por exemplo, na posse de melhores empregos e vantagens na aquisição de novas aprendizagens para o mercado de trabalho).

Partindo da premissa central de que o homem educado produz mais, a TCH afirma que a educação adquirida (representada por novas habi-lidades e maior capacidade produtiva) se incorporaria ao homem como seu “capital”, aumentando sua capacidade de gerar renda. dentro desse raciocínio, os trabalhadores são considerados capitalistas porque, por meio de investimentos na aquisição de habilidades e conhecimentos, eles têm capacidades economicamente valiosas. a teoria procura, portanto, dissolver a oposição capital-trabalho, tentando convencer o trabalhador de que ele não é dono da força de trabalho, mas sim dono de um novo tipo de capital, tão necessário ao desenvolvimento quanto o capital financeiro.

a teoria também sugere que os pobres só permanecem na sua con-dição de pobreza porque lhes faltam os conhecimentos que os tornariam

RBHE 21.indd 170 4/10/2009 20:58:28

Page 171: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

171Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

produtores mais hábeis e, consequentemente, melhorariam seus rendi-mentos. Afirma que a educação é capaz de ampliar a qualificação de uma pessoa e que, uma vez alcançada melhor qualificação, na sociedade seria possível reduzir a oferta total de trabalhadores pouco qualificados. Por consequência, a educação determina uma distribuição melhor da renda, pois aqueles que melhorassem de nível seriam mais bem pagos e os que permanecessem na condição primeira também teriam seus salários aumentados devido à diminuição da oferta de “mão de obra barata”.

ao compreender a renda como resultante da produtividade, a dife-rença dos rendimentos entre os indivíduos é explicada pela diferença de capacidade de produção, sendo a educação considerada o melhor instru-mento de distribuição mais equitativa de oportunidades e de rendas. a educação seria, assim, um meio de ascensão social que permitindo a mo-bilidade dos indivíduos no interior da estrutura social, funcionaria como o grande motor do desenvolvimento e do progresso técnico e humano.

A valorização que a TCH faz da escola ocorre no intuito de afirmar que ela é o caminho para a mudança das condições individuais de vida, ao mesmo tempo em que beneficia a todos na sociedade. Portanto, se a possibilidade de ascensão social está baseada no mérito individual, a educação passa a ser um instrumento para a mudança dos padrões de mobilidade social. E se na sociedade o que vai definir a posição social de cada indivíduo são as capacidades inatas desenvolvidas pela via educacio-nal, os sucessos e os fracassos são transferidos aos próprios indivíduos.

Considerações finais

Na década de 1960, em santa catarina o que marcou o caráter das políticas educacionais foi a sua vinculação aos projetos desenvolvimen-tistas implementados pelos governos estaduais. À política educacional foi reservada importante função no processo de modernização (pri-mordialmente) econômica, segundo uma perspectiva de educação que reforça seu papel no desenvolvimento econômico e na integração social, como uma alternativa para resolver os problemas de exclusão social e de

RBHE 21.indd 171 4/10/2009 20:58:28

Page 172: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

172 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

desemprego, servindo para alimentar um modelo perverso e excludente de desenvolvimento.

Pautado num discurso hegemônico que afirmava que pela qualifi-cação – pela via da escolarização, aos indivíduos estariam garantidas as condições para sua inserção no mercado de trabalho e melhoraria das suas condições de vida, a política educacional catarinense do período assumiu um caráter economicista, tendo como base teórica a tcH. uma teoria que reforça as noções de desenvolvimento como progresso técnico, aliado ao investimento em recursos humanos, contribuindo amplamente para disseminar a crença na educação como instrumento de distribuição de renda e equalização social. tal raciocínio monetarista serviu para justificar os ajustes e reformas que atingiram o sistema educacional catarinense nos anos de 1960.

constatamos que a política proposta e sistematizada na legislação do ensino (Leis do sistema Estadual de Ensino) e no planejamento global da educação (Plano Estadual de Educação e Programas de Governo) teve seus contornos influenciados pela conjuntura econômica não somente estadual, mas também nacional. Essa política foi expressão dos debates e das propostas que já estavam sendo disseminadas pelo MEc com a colaboração dos organismos internacionais para o conjunto da sociedade brasileira. o debate e as propostas articulavam-se à ideia da contribuição fundamental que a educação poderia exercer no sentido de inscrever o Brasil no rol dos países desenvolvidos.

ao adotar a concepção economicista de educação, a política educacional ignorava o fato de que a desigualdade social existente na sociedade não se explica exclusivamente por uma distribuição desigual do conhecimento, mas sim pelas próprias características do modelo eco-nômico capitalista que tende a concentrar, de forma contínua, a riqueza historicamente produzida. os propagadores da tcH “esquecem” que o próprio acesso à produção cultural é reflexo das desigualdades geradas por esse modelo de produção. consequentemente, não poderia a educação corrigir aquilo que se edifica na própria estrutura econômica existente.

Naquele momento histórico, o discurso de aliar educação e desen-volvimento tem um papel ideológico. Ele cumpre a função de livrar o

RBHE 21.indd 172 4/10/2009 20:58:28

Page 173: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

173Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

sistema capitalista de maiores críticas. assim, segundo a óptica liberal, o sistema educacional teria um papel de gerar oportunidades de ascensão social, garantindo a “igualdade de oportunidades”. Esse discurso não se sustenta, pois o desenvolvimento de uma nação se dá por um conjunto de fatores, e a educação escolar não pode ser encarada como panaceia para todos os males.

Entretanto, não é possível deixar de afirmar que a educação atua como atividade mediadora no seio da prática social global, sendo um elemento de mediação no desenvolvimento de uma determinada socieda-de. E, ao afirmar-se esse caráter mediador da educação, afirma-se o seu caráter instrumental, o que significa admitir que o que se passa em seu interior não se explica por si mesmo, mas ganha este ou aquele sentido, produz este ou aquele efeito social dependendo das forças sociais que nela atuam e com as quais ela se vincula (saviani, 2007).

Referências bibliográficas

AbreU, a. Universidade e desenvolvimento. Florianópolis: s.ed., 1965.

Amorim, M. das d. d. de. Plano Estadual de Educação; concretização das orientações políticas da educação. dissertação (Mestrado em sociologia) – universidade Federal de santa catarina, Florianópolis, 1984.

AUrAs, M. Poder oligárquico catarinense: da guerra aos “fanáticos” do con-testado à “opção pelos pequenos”. tese (doutorado em Educação) – Pontifícia universidade católica de são Paulo, são Paulo, 1991.

AUrAs, G. M. t. Política de modernização econômica e formação do professor das séries iniciais em santa catarina. Perspectiva, Florianópolis, n. 23, p. 11-25, jan./jun. 1995.

bobbio, N. Dicionário de política. Brasília: uNB, 1986.

brAsil. Ministério da Educação e cultura. inep. Assistência Técnica aos Estados no campo da educação. ceoses. Brasília: MEc, 1967.

cUnhA, L. a. Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco alves, 1980.

RBHE 21.indd 173 4/10/2009 20:58:29

Page 174: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

a política educacional catarinense no projeto desenvolvimentista modernizador da década de 1960

174 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

crUz, M. V. Brasil nacional-desenvolvimentista (1946-1964). 2008. disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_titulos.html>. acesso em: 15 mar. 2008.

dUtrA, a. H. et al. o avanço progressivo: uma proposta pedagógica de avaliação do rendimento escolar distintiva da reorganização do ensino em santa catarina. Cadernos do CED, Florianópolis, n. 1/2, 1984.

federAção dAs indústriAs do estAdo de sAntA cAtArinA. Documento Básico do Seminário Sócio-Econômico. Florianópolis, 1960.

friGotto, G. Educação e a crise do capitalismo real. são Paulo: cortez, 1996.

GoUlArti filho, a. Formação econômica de Santa Catarina. Florianópolis: cidade Futura, 2002.

lobo neto, F. J. da s. ditadura e sociedade: intervenções pedagógicas, resistên-cia e conciliação. in: mAGAldi, a. M.; Alves, c.; GondrA, J. (orgs.). Educação no Brasil: história, cultura e política. Bragança Paulista: EdusF, 2003. p. 543-559.

mArx, K. Contribuição à crítica da economia política. são Paulo: Martins Fontes, 1983.

melo, o. F. de. Diretrizes para a educação em Santa Catarina. Florianópolis: s.ed., 1967.

______.; mAes, i. A escolarização de nível primário em Santa Catarina (con-siderações sobre um planejamento). Florianópolis: Gabinete do Planejamento/plAmeG, n. 4, 1963.

michels, i. L. Crítica ao modelo catarinense de desenvolvimento; do planeja-mento econômico – 1956 aos precatórios – 1997. campo Grande: Editora da uFMs, 1998.

oliveirA, d. a. de. Educação básica: gestão do trabalho e da pobreza. Petró-polis: Vozes, 2000.

romAnelli, o. de o. História da educação no Brasil (1930-1975). 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

sAntA cAtArinA. Mensagem anual apresentada à Assembléia Legislativa, 5. Governador celso Ramos: 1961/1966. Florianópolis, p. 13, 15 mar. 1965.

______. Sobre as condições do processo educacional de Santa Catarina. Flo-rianópolis: Udesc, 1967.

RBHE 21.indd 174 4/10/2009 20:58:29

Page 175: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Letícia carneiro aGuiaR

175Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 145-175, set./dez. 2009

______. Programa de Governo do Estado de santa catarina. Educação, Floria-nópolis, v. 2, n. 5, mar. 1969.

______. Faculdade de Educação. centro de Estudos e Pesquisas Educacionais. Subsídios ao Plano Qüinqüenal de Educação do Estado de Santa Catarina 1966-1970. Florianópolis: s.ed., 1966.

______. Plano Estadual de Educação 1969-1980. Florianópolis: s.ed., 1969.

sAviAni, d. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 17. ed. Cam-pinas: autores associados, 2007.

______. et al. O legado educacional do século XX no Brasil. campinas: autores associados, 2004.

schUltz, t. W. O valor econômico da educação. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

silvA, M. c. F. c. et al. a política educacional do Estado de santa catarina e seus reflexos sobre a situação das escolas de 1º e 2º graus (período 1969-1988). Relatório de pesquisa. Florianópolis: uFsc, 1988.

UniversidAde do estAdo de sAntA cAtArinA. Idealização e construção da his-tória: Udesc 1965-1990. Florianópolis: Udesc, 1990.

Endereço para correspondência:Letícia carneiro aguiar

av. José acácio Moreira, 787tubarão-sc

cEP 88704-900E-mail: [email protected]

Recebido em: 5 maio 2008aprovado em: 7 ago. 2008

RBHE 21.indd 175 4/10/2009 20:58:29

Page 176: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

RBHE 21.indd 176 4/10/2009 20:58:30

Page 177: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

177Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul

(1940-1960)

claudemir de Quadros1

*

Resumo:a partir da segunda metade da década de 1930, o sistema educativo foi tornado objeto de reforma no estado do Rio Grande do sul. Esse processo alcançou condições de aparecimento a partir da nacionalização do ensino, movimento político que produziu espaços nos quais foi possível que o discurso da modernização e do aparelhamento do Estado se estabelecesse para a execução de uma reforma educacional que se instalou de forma ampla, intensa e profunda. tal reforma se inseriu num contexto de reorganização e racionalização dos serviços de instrução pública, no âmbito do qual a população e a educação emergiram como um problema de governo. Nesse contexto, discursos se instituíram como verdades, produziram significados acerca da educação e concorreram para a instituição de diferentes significados de ser professor ao longo do tempo.

Palavras-chave:reforma educacional; ciência; profissionalização; Escola Nova.

* Professor no centro universitário Franciscano, santa Maria (Rs), doutorado em educação pela universidade Federal do Rio Grande do sul (uFRGs).

RBHE 21.indd 177 4/10/2009 20:58:30

Page 178: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

178 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

The production of different meanings of being a teacher in Rio Grande do

Sul (1940-1960)

claudemir de Quadros

Abstract:up from the second half of the 1930s, the educative system has become an object of reforms in Rio Grande do sul, Brazil. this process reached appearing conditions in the teaching nationalization, political movement that produced spaces in which it was possible for the modernization speech and a better organization in the state government took place in the execution of an educational reform that happened in a thorough, intense and deep way. such reform was inserted in a context of reorganization and rationalization of public education services, in which the population and the education emerged as government’s problems. in this context, speeches became truths, produced meanings about education and helped the institution of different meanings on what being a teacher is, as time went on.

Keywords:educational reform; science; professionalism process; new school.

RBHE 21.indd 178 4/10/2009 20:58:30

Page 179: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

179Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

Introdução

a partir da segunda metade da década de 1930, instalou-se, no Rio Grande do sul, uma intensa reforma educacional conduzida pelo Estado, que abrangeu a proposição e execução de políticas públicas educacionais, a normatização e intervenção sobre a organização do ensino e a orientação das atividades didático-pedagógicas das escolas estatais.

Esse processo alcançou condições de aparecimento a partir das formulações do discurso da nacionalização do ensino, que sustentou o aparelhamento do Estado para a execução de uma ampla, intensa e profunda reforma educacional.

Nesse contexto, a preparação do magistério era mais do que primor-dial; era vital para a instalação do novo tempo na educação rio-grandense. impunha-se a renovação do corpo docente, a observação de programas de ensino mais bem adaptados às condições da época (urbanização, indus-trialização, expansão das matrículas) e a utilização de métodos de ensino consoantes aos pressupostos da psicologia infantil. Em síntese, havia a necessidade de conversão dos professores às verdades da Escola Nova.

a reforma educacional foi conduzida pelos técnicos em educação vinculados ao centro de Pesquisas e orientação Educacionais (cPoE-Rs1) que fizeram circular discursos e mobilizaram recursos que con-

1. o centro de Pesquisas e orientação Educacionais (cPoE-Rs) foi criado em 1943, por transformação da secção técnica da diretoria Geral de instrução Pública. a sua instalação aconteceu nos marcos da reforma educacional em curso no Rio Grande do sul, empreendida pelo Estado com o intuito de construir e assumir, de forma efetiva, o controle organizacional do sistema educativo. Para tanto, buscou-se estabelecer políticas, disciplinar, monitorar, avaliar e dirigir os modos pelos quais a reforma foi constituída. as atribuições do centro universitário Franciscano envolviam a realização de estudos de caráter objetivo sobre a criança nos aspectos que intervêm no processo educativo: biológico, psicológico, sociológico, pedagógico; sobre a aprendizagem: princípios e leis, instrumentos e processos, conteúdo e eficiência; e relativos ao meio escolar: disciplina, instituições, recreações, relações com o meio social. Eram suas atribuições, ainda, executar atividades de orientação ao magistério, por meio de cursos e reuniões; visitar as unidades escolares; dirigir ensaios pedagógicos; responder a consultas de ordem técnica; elaborar programas, planos, comunicados, circulares e instruções; manter uma biblioteca central de

RBHE 21.indd 179 4/10/2009 20:58:30

Page 180: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

180 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

correram para a produção de uma profissionalização do magistério, de quem se passou a exigir uma atitude científica ante o fazer docente. Procurou-se, enfim, instituir um novo profissionalismo, fundamentado no conhecimento especializado, nas ciências e numa proposta de serviço público apartidário.

assim, o objetivo deste texto é demonstrar que, no âmbito de uma intensa reforma educacional conduzida pelo Estado, o tema da profissio-nalização do magistério emergiu como proeminente para a constituição de um sistema educativo moderno e produziu, ao longo do tempo, diferentes significados de ser professor.

Defende-se que, a partir da metade da década de 1930, a profissão docente, circunscrita pelo discurso da Escola Nova2, passou por transfor-

obras pedagógicas e escolares; organizar o conteúdo pedagógico do Boletim de Educação da secretaria da Educação e cultura; indicar livros didáticos e obras para as bibliotecas escolares; e, finalmente, elaborar medidas para organização das classes; promover orientação educacional e controlar o rendimento escolar. Esse centro funcionou até 1971. sobre o cPoE-Rs ver Quadros (2006) e Peres (2000).

2. o movimento da Escola Nova no Brasil tem sido objeto de importantes estudos, es-pecialmente por parte de pesquisadores de Minas Gerais, são Paulo e Rio de Janeiro. Esses estudos apontam para a vinculação da Escola Nova com a modernização das instituições educacionais; com a valorização dos aspectos técnicos e metodológicos, tidos como racionais e científicos; com a transição para a modernidade capitalista e como um movimento que circunscreveu concepções de políticas públicas para a educação. Desenvolveu-se no Brasil a partir do influxo das proposições elaboradas por estudiosos europeus e norte-americanos, dentre os quais se destacam adolphe Ferrière (1879-1960), Georg Kershensteiner (1854-1932), Edouard claparède (1873-1940), ovide decroly (1871-1932), Willian H. Kilpatrick (1871-1965) e John dewey (1852-1952). assumiu diferentes contornos (há tantas escolas novas quantos os seus teóricos) e denominações: Escola Nova, Escola ativa, Educação Funcional. Para Franco cambi (1999), embora as escolas novas tenham nascido e se desenvolvido como experimentos isolados, ligados a condições particulares e a personalidades excepcionais de educadores, tiveram ampla ressonância no mundo educativo e propiciaram uma série de pesquisas no campo da instrução que concor-reram para transformar a escola, não só no seu aspecto organizativo e institucional, mas também nos aspectos ligados aos ideais formativos e aos objetivos culturais. sobre a Escola Nova no Brasil ver, entre outros, carlos Monarcha (1990), Maria do carmo Xavier (2004), Marcos cezar de Freitas (2003), Moysés Kuhlmann Junior (1998), clarice Nunes (1996). uma discussão importante acerca da Escola Nova no Rio Grande do sul pode ser encontrada em Eliane Peres (2000).

RBHE 21.indd 180 4/10/2009 20:58:31

Page 181: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

181Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

mações profundas no Rio Grande do sul e que o tema central do projeto de profissionalização do magistério era tornar os professores mais profis-sionais e qualificados. A análise circunscreve-se ao período situado entre as décadas de 1940 e 1960, em função de serem o marco inicial e final da atuação mais proeminente do cPoE-Rs. os principais documentos consultados foram boletins e relatórios produzidos por esse órgão.

Institucionalização da profissionalização do magistério

a preocupação com a formação dos professores era antiga no Rio Grande do sul. Em 1913 havia sido enviada a Montevidéo, uruguai, uma missão integrada pelos professores alfredo clemente Pinto, afonso Guerreiro Lima, ondina Godoy Gomes, Georgina Godoy Moritz, Marieta de Freitas chaves e Florinda tubino sampaio. durante a estada de três meses, esse grupo centrou sua atenção na observação dos métodos de ensino, do cotidiano e das instalações escolares. Em 1914, outro grupo, integrado por seis normalistas recém-formadas, também sob os auspícios do governo do estado, foi ao uruguai para complementar a sua forma-ção. Mesmo quase três décadas depois, a relação com o país vizinho ainda se mantinha. Em 11 de janeiro de 1941, um grupo de professores e estudantes do Grupo Escolar uruguai, de Porto alegre, a convite do governo uruguaio visitou, durante uma semana, instituições educacionais de Montevidéo.

o estado de Minas Gerais foi outro local privilegiado para a formação de professores rio-grandenses, principalmente no tocante à psicologia experimental. a partir do Laboratório da Escola de aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte, que iniciou suas atividades em 1929 sob a direção de théopile simon, Leon Walther e Hélène antipoff (assistente de Édouard Claparède), até 1946, data de sua extinção, se realizaram trabalhos experimentais sobre inteligência, escolaridade, memória, aprendizagem, personalidade infantil, além de tentativas de adaptação e revisão de testes de inteligência e aptidão. os principais estudos relacionados com a psicologia experimental relacionavam-se

RBHE 21.indd 181 4/10/2009 20:58:31

Page 182: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

182 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

com a organização de classes nos grupos escolares, orientação e seleção profissional, inteligência, meio social e escolaridade.

Em síntese, entre as décadas de 1940 e 1960, a profissionalização do magistério no estado do Rio Grande do sul se constituiu em objeto de atenção proeminente e constante por parte dos técnicos em educação do cPoE-Rs.

Em termos gerais, pode-se afirmar que os técnicos em educação vinculados ao cPoE-Rs se constituíram numa espécie de expertise do campo educacional no Rio Grande do Sul. Alguns eram profissionais e intelectuais reconhecidos e prestigiados junto ao governo e à sociedade. Foram pesquisadores, participaram do mercado editorial e exerceram funções importantes em universidades. outros se dedicaram à execução de funções burocráticas ou à disseminação do conhecimento produzido. Esses especialistas ocuparam, por longo tempo, lugar de sujeito a partir do qual se definiam as verdades que podiam ser pensadas em relação à educação no Rio Grande do sul3.

Profissionalização do magistério: re-educação do educador

Num contexto de preocupação com a instalação de um novo tempo na educação, marcado pela sistematicidade das ações e pelos enuncia-

3. Formalmente, o cargo de técnico em educação foi criado pela lei n. 2.020, de 2 de janeiro de 1952. a lei n. 7.357/80 apresenta a seguinte descrição das suas atribuições: atividade de nível superior, de grande complexidade, envolvendo in-formações, pesquisa, planejamento, elaboração de diretrizes gerais e especiais de planos e programas operacionais, assessoramento, coordenação e avaliação com vistas à consecução de um posicionamento científico para a educação. Os técnicos em educação organizaram-se na associação dos técnicos em Educação do Rio Grande do sul (AterGs). Essa associação foi criada em 4 de maio de 1972, com a finalidade de congregar e promover “a defesa dos interesses da classe, no que diz respeito ao pleno exercício das funções que lhe são inerentes e ao aperfeiçoamento dos seus integrantes, exigido pela constante atualização do sistema educacional brasileiro” (AterGs, 2002, p. 15). Foram presidentes: alda cardoso Kremer (1972-1975); Nellye severo Mariath (1976-1978); Florisbela Machado Barbosa Faro (1979-1981); Nellye severo Mariath (1982-1987); Florisbela Machado Barbosa Faro (1988-2004). a atergs foi extinta em 4 de novembro de 2004.

RBHE 21.indd 182 4/10/2009 20:58:31

Page 183: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

183Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

dos da Escola Nova, a profissionalização do magistério era urgente. Do professor esperava-se, a partir de então, uma atitude científica. Cabia, pois, oferecer-lhe oportunidades contínuas de aperfeiçoamento para que tivesse êxito na sua missão:

a primeira preocupação de quem pretende transformar os velhos moldes rotineiros da educação tem de ser a formação de um professorado novo, cônscio da sua responsabilidade e cheio de nobre entusiasmo pelas ideias educativas. [...] E como a educação, preparando para a vida, sofre a evolução contínua da mesma vida, há de o professor renovar-se incessantemente, para não falhar a sua missão [Correio do Povo, 16 jun. 1939, p. 2].

Pelo programa de orientação proposto, buscava-se suprir a falta de preparação especializada de professores, delegados regionais, orien-tadores de educação primária e diretores de escolas. Entendia-se que era preciso subsidiar, orientar, acompanhar e supervisionar o trabalho desenvolvido pelo magistério de uma forma muito precisa e atenta, uma vez que a solução de importantes problemas sociais dependia de uma correta orientação do trabalho educacional.

Nesse sentido, as atividades de orientação ao magistério eram leva-das a efeito por meio de cursos intensivos, visitas, encontros, reuniões, sessões de estudos e missões pedagógicas. também eram utilizados obje-tos impressos denominados “comunicados” e “subsídios de orientação”, especialmente preparados para a disseminação de saberes entendidos como apropriados para o correto exercício da tarefa educativa. Esses eventos e objetos impressos compuseram um tipo de formação conti-nuada do magistério, necessária diante de uma propalada insuficiência na formação.

as atividades vinculadas com a orientação ao magistério envolveram uma série relativamente ampla de temáticas. Em 1943, há registro de que aconteceram 43 reuniões com os orientadores da educação primária e com diretores de escolas nas quais foram abordados temas relativos à conceituação da escola primária, organização administrativa da escola, domínio de técnicas de aprendizagem, investigação psicotécnica e instru-

RBHE 21.indd 183 4/10/2009 20:58:32

Page 184: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

184 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

mentos de representação e análise das medidas pedagógicas. Em 1944, foram 45 reuniões que envolveram desde o estudo de elaboração de ficha escolar, hora da leitura, avaliação do rendimento escolar, critérios de seleção dos estudantes matriculados no primeiro ano, até aproveitamento dos resultados dos Testes ABC para orientação de exercícios corretivos, em especial relacionados com a aprendizagem da matemática.

Houve, ainda, reuniões semanais dos “círculos de estudos com diretores dos grupos escolares da capital”4. Nesses círculos, reuniam-se grupos de 10 a 12 diretores de escolas para discutir temas acerca da educação e da gestão escolar. com eles, buscava-se o desdobramento de um programa regular de cultura pedagógica e, de acordo com as indica-ções dos relatórios do cPoE-Rs, discutiam-se diversos temas, a saber: disciplina escolar, verificação objetiva do aproveitamento dos estudan-tes, instituições escolares, o estudo do escolar nos aspectos biológico, psicológico e social, a aprendizagem da matemática, documentação do trabalho escolar. com professores das escolas da capital são listadas as seguintes discussões: orientação do ensino da matemática e do trabalho nas classes de 1º ano, preparação dos professores para a aplicação das provas objetivas, orientação do desenho escolar e estudos com os pro-fessores de música.

a essas reuniões de orientação e estudo acorriam também os orienta-dores da educação primária, que traziam problemas técnicos enfrentados no dia a dia escolar. destaca-se o papel proeminente que os orientadores da educação primária tiveram nesse processo. cabia-lhes, a partir da

4. a instituição desses círculos de estudos data de 1940 e, certamente, guarda relação com a orientação dada por Everardo Backheuser, por ocasião da sua visita ao estado em 1939. ao ser entrevistado por jornalista do jornal correio do Povo, Backheuser defendeu a instituição de círculos de estudos como uma exigência da Escola Nova: “a pedagogia nova exige na própria realização dos trabalhos escolares uma cooperação de todos os professores em torno da direção. Não é possível imaginar uma escola nova com uma professora isolada dentro de uma sala, como que encarcerada nela, mas, ao contrário, ligando-se a todas as outras, ou na realização de um projeto ou de quaisquer outros trabalhos [...]. a pedagogia nova exige isto, exige que cada professora lealmente se una as suas colegas, que divida as resultantes do seu trabalho escolar, ou de suas leituras, ou de suas pesquisas” (Correio do Povo, 30 jun. 1939b, p. 3).

RBHE 21.indd 184 4/10/2009 20:58:32

Page 185: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

185Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

orientação direta dos técnicos em educação do cPoE-Rs, a função de prestar assistência técnica aos professores primários. Nos cursos e nos estágios que realizavam junto ao cPoE-Rs, recebiam orientações sobre diretrizes pedagógicas, bibliografias, fundamentos metodológicos, medi-das educacionais e instituições escolares, que depois disseminavam junto ao magistério, com quem lograram instituir uma relação de proximidade, em parte diferente daquela estabelecida pelos inspetores escolares que, no geral, eram recebidos como fiscais e com temor.

tanto os orientadores da educação primária, quanto os diretores de escolas, não escapavam ao rigoroso controle dos técnicos do cPoE-Rs, que exigiam o planejamento anual do trabalho, relatórios e quadros demonstrativos mensais das atividades de orientação. Esses registros eram objeto de atenção da secção de orientação do Ensino, que devia proceder à verificação da documentação recebida com vistas a responder as consultas, ou encaminhá-las aos órgãos pertinentes. cabia-lhe, ainda, cientificar-se das deficiências apresentadas pelos trabalhos realizados. Essa documentação institui-se como dispositivo de vigilância, que tor-nava possível aos técnicos do centro conhecer o grau de interesse das escolas relativamente às instruções e determinações expedidas, bem como se dirigia no sentido de produzir condutas desejadas no que se refere à atuação docente.

No decorrer da década de 1950, houve uma intensificação na assis-tência técnica aos professores, seja por meio de cursos de aperfeiçoa-mento, seminários ou sessões de estudo. tiveram início, também, as missões pedagógicas. Nessas ocasiões, grupos de técnicos do cPoE-Rs deslocavam-se ao interior do estado para promover palestras e reuniões para o magistério. Pelos dados apresentados nos relatórios do cPoE-Rs, pode-se listar os temas abordados nessas missões, que em geral versavam sobre fundamentos sociológicos da educação, metodologia do ensino da linguagem, matemática e de estudos sociais, instituições escolares, carac-terísticas sociais e emocionais do pré-escolar, princípios de aprendizagem, conceito evolutivo da personalidade e educação integral na escola primária.

a partir da década de 1950 destaca-se, também, a promoção de cursos pelo cPoE-Rs. segundo os relatórios do centro buscava-se, com

RBHE 21.indd 185 4/10/2009 20:58:32

Page 186: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

186 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

essas atividades o aperfeiçoamento cultural e a renovação dos proces-sos didáticos, bem como a formação “de uma atitude científica em face dos problemas educacionais” (cPoE-Rs, 1951a, pp. 80-81). os cursos promovidos podem ser classificados em duas categorias: aqueles que tratavam de conhecimentos específicos de uma disciplina – cursos de português, literatura, matemática, psicologia, geografia, teatro, história, didática e língua estrangeira – e aqueles destinados à formação geral, preparação ou aperfeiçoamento pedagógico, seja dos professores já em exercício, quanto daqueles recém-contratados.

Entendia-se que ao Estado cabia, não somente a organização e ma-nutenção das unidades escolares, mas competia-lhe orientar, de forma efetiva, a direção do trabalho educativo.

considerava-se que era fundamental oferecer ao magistério constan-tes oportunidades de aperfeiçoamento. Para realizar a Escola Nova, os professores precisariam estar capacitados, uma vez que ao professorado competia um papel decisivo no sucesso da reforma educacional. dependia da sua correta preparação, “de seus ideais, sua personalidade aprimorada cultural e moralmente, a consecução das altas finalidades a que se propõe numa sociedade democrática e cristã” (cPoE-Rs, 1958, p. 7).

a realização da Escola Nova demandava um extenso programa de formação do magistério. segundo Lourenço Filho (1930), se o profes-sor não tivesse o necessário preparo técnico e não estivesse realmente imbuído do seu espírito, a escola pretendida seria um arremedo. assim, a preparação dos docentes não poderia mais se realizar a partir do em-pirismo ou dos saberes da experiência, mas a partir do conhecimento científico do qual o mestre devia ser portador.

Passou-se a fornecer ao magistério um repertório de saberes auto-rizados, selecionados e hierarquizados, destinados a fundamentar a sua prática. Esses saberes eram concebidos como requisitos necessários à mudança que gradativamente se buscava promover na ação do magis-tério. Promover essa mudança era levar o professor a compreender as novas finalidades sociais da escola, mas era também fazê-lo percorrer o caminho que levava à superação das concepções tradicionais sobre as

RBHE 21.indd 186 4/10/2009 20:58:32

Page 187: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

187Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

atividades da criança, que deveria ocupar o centro da cena na escola e ser o protagonista da ação pedagógica.

Em síntese, a educação dos estudantes pressupunha a re-educação do professor, a quem cabia sempre “se renovar, buscar as últimas descobertas no campo da educação e auferir as vantagens de toda nova experiência que possa enriquecer sua atividade” (cPoE-Rs, 1959, p. 306).

Para essa re-educação concorreu, então, um repertório de saberes atravessados pela discursividade produzida pelos técnicos em educação do cPoE-Rs. Esses saberes, fundados no discurso da Escola Nova e que se materializavam em cursos intensivos, visitas, encontros, reuniões, sessões de estudos, missões pedagógicas e comunicados, assumem um caráter normalizador e constitutivo na medida em que se destinavam a fundamentar a atuação do magistério. Buscava-se produzir um novo professor.

As ações de profissionalização promovidas pelos técnicos do CPOE-Rs pressupõem que, na medida em que a Escola Nova se diferencia da antiga, a tradicional, por seus princípios, finalidades, organização e métodos, também demandava um outro tipo de professor:

o professor antigo não poderá fazer ensino moderno, o que corresponde a dizer que, assim como a escola se modifica profundamente, em forma como em estrutura íntima, tem de modificar-se igualmente o mestre, em forma – que são as organizações e a técnica de ensino – e na estrutura íntima – que é a maneira de pensar e de compreender as coisas. Por isso é indispensável à escola moder-na a modificação profunda e completa do professor [Campos, 1936, p. 235].

Era preciso, portanto, atingir a alma do professor (estrutura íntima) e convertê-lo às verdades da Escola Nova. Por isso, a preparação do magistério era primordial para a instalação do novo tempo na educação rio-grandense. assim, não podia ser professor quem não tivesse sólido preparo em psicologia infantil, quem não compreendesse os problemas sociais, quem não tivesse conhecimentos de higiene ou que não do-minasse a metodologia de ensino, quem não conseguisse expressar-se corretamente na língua nacional e em alguma língua estrangeira. Em

RBHE 21.indd 187 4/10/2009 20:58:33

Page 188: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

188 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

síntese, para ser professor requeria-se o estudo científico das bases da profissão e o preparo técnico para o trabalho profissional.

o preparo intelectual e técnico do professor requeria, ainda, um contínuo aperfeiçoamento, forma de manter-se atualizado diante da produção do conhecimento que passava a ser disponibilizado. Para isso, demandava-se do professor a adoção de hábitos de estudo e de pesquisa (círculos de estudos, hora pedagógica). Requeria-se que lhe fosse opor-tunizado acesso a bibliotecas e museus, participação em conferências, cursos, viagens ou outras formas de atualização em que pudesse se por em contato com ideias e experiências novas.

Nesse momento, em que se desejava fazer com que o magistério “acompanhasse a evolução pedagógica que agita o mundo e que agita o nosso próprio país” (Correio do Povo, 30 jun. 1939b, p. 3), destacava-se, além dos requisitos de competência, conhecimento e preparação, o caráter do professor: “Na vida social, pensai que mais educais pelas atitudes do que pelas palavras; pelo exemplo, mais do que pelos conceitos e julga-mentos que expendeis” (sesp/Rs-secção técnica, 1939).

Parafraseando Popkewitz, pressupunha-se que o exercício do ma-gistério expressava uma propriedade semiespiritual que desenvolveria o potencial moral no interior de cada estudante suscetível de aperfeiçoa-mento e refinamento sob as influências adequadas: “o caráter de uma professora concedia a ela atitudes específicas de disciplina intelectual e autoconfiança” (1997, p. 76). Carreira e caráter integravam a identidade do professor.

O discurso acerca do significado de ser um bom professor elencava certas qualidades ou requisitos. Exigia-se vocação, idealismo e amor ao próximo (trabalhar pelo bem da infância, pela felicidade alheia), além de disposição para trabalhar pelo engrandecimento da pátria. também se ressaltava a importância do tato pedagógico, isto é, da capacidade de aproximar-se ou afastar-se do estudante, conforme a oportunidade, de relevar determinadas falhas, alternar elogios e repreensões, de compreender e de não possuir grandes ambições materiais. outras qualidades incluíam: ter capacidade de formar o caráter ou influir de-cisivamente no desenvolvimento do estudante, ser alegre e sorridente.

RBHE 21.indd 188 4/10/2009 20:58:33

Page 189: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

189Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

Finalmente, conhecer a matéria a lecionar e, principalmente, saber transmiti-la, ensinando e despertando o interesse pela matéria, de modo que tornasse as aulas atraentes, demonstrasse o domínio de métodos de trabalho, sabesse dosar a matéria e explicá-la de tal maneira que todos a entendessem, ser didático, enfim.

acima de tudo, o professor devia ser um educador, ou seja, devia preocupar-se em formar a personalidade mais do que transmitir conhe-cimentos. Educar, em suma, era formar os “4-H”:

os americanos dizem que educar é formar os 4-H (os 4-H são as iniciais das palavras head, heart, health, hand), ou seja, cabeça, coração, saúde, mão. Isso significa que a educação deve cuidar do cérebro (preparo intelectual, instrução, ensino), do coração (formação dos sentimentos, caráter, conduta), da saúde (cuidados com o corpo, alimentação, higiene), e da mão (desenvolver o gosto pelo trabalho, cuidar muito dos trabalhos manuais, das atividades de campo e de oficina) [Fontoura, 1958, pp. 25-26].

consubstanciava-se, assim, o ideal da Escola Nova: formar é mais importante que informar ou instruir; é preparar o indivíduo integralmente para a vida, para viver em sociedade, para ser útil à sua comunidade e à sua pátria.

amaral Fontoura (1958) elaborou um quadro pelo qual todos e cada um podiam avaliar as suas chances de ser um bom professor. o quadro enumera 28 atributos necessários para caracterizar o bom mestre, distribuídos em três seções: qualidades físicas, intelectuais e morais.

os interessados em avaliar os seus dotes de professo, deviam tomar o quadro e pedir para algumas pessoas que atribuíssem uma nota aos itens relacionados. as notas deviam variar entre 0 a 10 e os resultados remetiam para a seguinte convenção: 0: ausência total do predicado; 1 ou 2: fraquíssimo, muito ruim; 3 ou 4: fraco, ruim; 5 ou 6: regular, normal; 7 ou 8: bom; 9 ou 10: ótimo, magnífico.

RBHE 21.indd 189 4/10/2009 20:58:33

Page 190: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

190 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

Quadro 1: Quadro sugerido por amaral Fontoura para a autoavaliação docente

i) Qualidades físicas: a B c d E M Z MG1) Boa saúde2) Boa audição3) Expressão de olhar4) Voz agradável5) Porte correto do corpo6) apresentação e vestuárioii) Qualidades intelectuais:1) capacidade didática2) conhecimento da língua3) conhecimento da matéria4) inteligência5) tato psicológico6) Bom senso7) Espírito de liderança8) clareza de expressão9) cultura geraliii) Qualidades morais1) Espírito religioso2) idealismo3) amor à criança4) Bondade e espírito de justiça5) Boa conduta moral6) Entusiasmo7) companheirismo8) alegria, bom humor9) autodomínio e paciência10) Espírito renovador11) cortesia12) disciplina e obediência13) assiduidade e pontualidade

Fonte: Fontoura (1958, p. 38).

Fontoura orientava que o procedimento fosse executado da seguinte maneira:

RBHE 21.indd 190 4/10/2009 20:58:34

Page 191: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

191Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

as notas de cada examinador deviam ser colocadas numa coluna. o primeiro examinador dará notas na coluna “a” e assim sucessivamente. se você é professor, as colunas “a”, “b”, etc., podem ser preenchidas por outros professores ou por algum aluno, e a coluna “e” será das notas que o diretor da escola lhe dará. a coluna “m” é a média atribuída pelos examinadores de “a” até “e”. Na coluna “z” você fará o seu próprio julgamento e colocará as notas que achar justas no seu caso. compare bem as notas que você deu a si mesmo com a média das que os outros lhe deram. isso servirá para você ver se tem auto-crítica, se não é condescendente demais para consigo mesmo, se você não se julga melhor do que é (o que significa supervalorização, or-gulho, vaidade). Na coluna final, “mg”, coloque a média geral que os outros lhe atribuíram e a que você se atribuiu. coloque esse quadro na sua mesa de trabalho e olhe sempre para ele, a fim de procurar melhorar, progredir. de tempos em tempos volte a fazer essa avaliação, para ver se melhorou ou piorou [Fontoura, 1958, p. 38].

Fichas usadas pelos técnicos do cPoE-Rs na década de 1950 guar-dam semelhanças com a sugestão de amaral Fontoura5. Foi localizada a “Ficha de atuação funcional de professor primário municipal” e a “Ficha de atuação funcional de professor primário estadual”. ambas utilizam como referência as qualidades e atributos do professor sugeridos por esse autor, ressalvadas apenas algumas pequenas alterações na distribuição dos fatores que deviam ser objeto de avaliação.

Essas fichas deviam ser respondidas pelos diretores das escolas ou pelos orientadores de educação primária, de acordo com instruções expedidas pelo cPoE-Rs6, a fim de constituírem o que se denominava Boletim de Merecimento (cPoE-Rs, 1951b). Eram usadas para auxiliar no julgamento do reconhecimento de mérito ou como instrumento admi-

5. Há indícios de diálogo entre professores gaúchos e amaral Fontoura. Veja-se a de-dicatória do livro Metodologia do ensino primário: “Às professoras do Rio Grande do sul, a cujo espírito progressista se devem tantas iniciativas interessantes, que fizeram desse valoroso Estado um dos líderes da educação renovada no Brasil” (Fontoura, 1958, p. 5).

6. Ver cPoE-Rs (1951b).

RBHE 21.indd 191 4/10/2009 20:58:35

Page 192: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

192 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

nistrativo sobre a efetividade no magistério, promoção por merecimento, comprovação de qualidades pessoais e competência profissional exigidas para designações e concessão de bolsas de estudo.

Quadro 2: Ficha de atuação funcional de professor primário municipalFatores a considerar Classificaçãona apreciação

Muito

fracoFraco Regular Bom Excelente

I) Observações relativas à personalidade do professor a) aparência pessoal:Esmerosaúdeb) capacidade intelectual:cultural geralPreparo profissionalc) Linguagem:Facilidade de expressãoclarezacorreçãoadequação à classed) atitude:simpatiaNaturalidadeEntusiasmoautocontroletatoimparcialidade (espírito de justiça)iniciativae) sociabilidade:Habilidade em estabelecer relações- com o diretor da escola- com os demais professores- com os alunos- com os pais dos alunos- com o pessoal administrativo e serventes- com a comunidade em geralf) senso de cooperaçãog) capacidade administrativah) conceito social e moral

RBHE 21.indd 192 4/10/2009 20:58:36

Page 193: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

193Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

i) impressão geral (impressão que causa o aspecto geral da pessoa do professor)II) Observações relativas à técnica de ensinoa) Planejamento:Fixação e clareza dos objetivos:- para o professor - para o alunoatividades previstas:- para aquisição de conhecimentos- para fixação e verificação- para atender às dificuldades individuais- fontes de consultas (para o aluno)a) Prática:Habilidade em:- motivar a classe- dirigir perguntas- ensinar a estudar- formar hábitos e atitudes- atender a diferenças individuais- respeitar a dignidade da criança- cuidar das condições higiênicas da sala de aulaIII) Observações relativas à atuação extraclassea) interesse pelas instituições escolaresb) participação nas reuniões da escolac) iniciativas que concorram para o progresso geral da escolad) interesse pela vida do aluno e da comunidadeIV) Observações relativas às obrigações de ordem administrativaa) Pontualidadeb) assiduidadec) assentamentosd) Responsabilidade e) Honestidade profissionalf) observância de instruções, circulares e comunicados expedidos por autoridades educacionais

Fonte: Ficha de atuação funcional de professor primário municipal. cPoE-Rs.

RBHE 21.indd 193 4/10/2009 20:58:37

Page 194: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

194 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

Como se vê, a ficha abrangia informações detalhadas sobre:

• cultura geral: informações sobre a formação acadêmica do profes-sor: cursos regulares (ginasial ou colegial); cursos extraordinários (extensão cultural) e interesses culturais (assistência a cursos e conferências, palestras, leitura de bons livros, assinatura de jornais e revistas, frequência a bibliotecas);

• cultura especializada: curso que habilitou ao exercício do magis-tério, cursos de especialização ou aperfeiçoamento, assistência a palestras e cursos, participação ativa na hora pedagógica, leitura de livros relativos à educação, consultas a bibliotecas, experi-mentação de novos métodos e processos, melhoria das condições de aprendizagem; outras especializações;

• aptidão intelectual: reações, atitudes, iniciativas e realizações do professor em oportunidades que a vida escolar apresenta;

• outras aptidões e habilidades especiais: que contribuam para maior eficiência do trabalho escolar, por favorecer as associações entre os diversos campos do saber e possibilitar a aplicação dos conhecimentos em várias modalidades, tais como: confecção de jogos, melodias, representações gráficas;

• eficiência do ensino: interesse dos estudantes pela aprendizagem, progresso na aquisição de conhecimentos, formação e desenvol-vimento de atitudes, hábitos acordes com os fins da educação, execução do programa de ensino e aprovação;

• devotamento: assiduidade, pontualidade, planejamento prévio das atividades, seleção e preparação do material didático, veri-ficação dos trabalhos realizados pelos estudantes, documentação das atividades de classe, interesse pelas atividades extraclasse e instituições escolares, interesse pelos estudantes, capacidade administrativa, zelo, cooperação, entusiasmo, perseverança, responsabilidade, justiça, iniciativa;

• atuação moral e social: honestidade profissional, dignidade pessoal, habilidade em estabelecer relações, desenvolvimento social, controle emocional, adaptação ao meio, conceito social,

RBHE 21.indd 194 4/10/2009 20:58:37

Page 195: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

195Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

interesse pelas instituições e atividades sociais de caráter assis-tencial ou cultural pela comunidade em geral;

• disciplina: atitude demonstrada perante as autoridades em face de determinações delas emanadas, bem como a natureza das críticas e referências feitas em relação aos superiores.

Para cada dimensão da ficha, o professor devia receber um conceito variável entre muito fraco, fraco, regular, bom e excelente.

Ao responder a ficha, devia-se observar quatro diretrizes: diferencia-ção individual, ideia de justiça, caráter objetivo e noção de competência e devotamento. Além disso, devia-se conhecer suficientemente o professor e as instruções e julgar com imparcialidade. tais instruções nem sempre eram observadas e o seu preenchimento revelava-se problemático: “os diretores não as respondiam corretamente. Às vezes davam uma resposta padrão para todos os professores. Às vezes privilegiavam os amigos e prejudicavam os desafetos” (Hilda, entrevista em 30 out. 2005). No entanto, a ficha importa mais pelo que enuncia do que, propriamente, se era aplicada, bem ou mal, ou se julgava com imparcialidade. Elas constituem-se num dispositivo de produção de um conhecimento, na medida em que, por meio dela, se potencializava um amplo escrutínio da vida do professor.

Entretanto, com a mesma intensidade com que os técnicos em edu-cação do CPOE-RS afirmavam que do professor dependia o êxito da ação educativa e, por extensão, o êxito de um desenvolvimento social, econômico, político e moral equilibrado, com a mesma intensidade com que se exigia mais profissionalização e formação, ganhavam visibilidade as condições de precariedade do trabalho docente.

ainda em 1938, a professora amélia Porto Pereira, diretora da Escola complementar de Livramento, apontava:

Pobre professorado do interior do Estado ignorado e tido por ignorante. aos seus ouvidos nunca chega uma palavra de carinhoso estímulo à ação construtora que vem desenvolvendo apagadamente [Correio do Povo, 27 abr. 1938, p. 7].

RBHE 21.indd 195 4/10/2009 20:58:37

Page 196: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

196 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

A partir do final da década de 1950, tornam-se mais visíveis as difi-culdades enfrentadas pelo magistério estadual, principalmente em relação ao baixo valor e ao atraso no recebimento dos salários. Para enfrentar a situação, procurou organizar-se como categoria profissional. Em 1962, a principal demanda do magistério público era a vinculação dos salários da categoria ao salário mínimo. Em 17 de agosto de 1962, a associação Regional do Magistério Estadual (Arme), órgão representativo dos pro-fessores estaduais de ensino primário e médio das regiões do Planalto e das Missões, fez publicar um manifesto ao “magistério e ao governo do Rio Grande”, pelo qual pede atenção para duas questões principais: os critérios para contratação de professores e os salários.

o manifesto cobrava a despolitização da secretaria da Educação e Cultura. Esta devia ser confiada a especialistas e técnicos, assim como a seleção do corpo docente estadual devia ser feita por um departamento especializado da mesma secretaria, integrado por educadores, pedago-gos e administradores recrutados no quadro do magistério. Reclamava, ainda, que a remuneração do magistério não fosse submetida a restrições orçamentárias que não afetavam, igualmente, outros quadros funcionais, quer do Executivo, Legislativo ou Judiciário. Proliferam na imprensa notícias sobre a situação de penúria a que estava submetido o magistério.

Flexibilidade, autonomia e autoavaliação

No contexto da formação de pessoal para o magistério, cabe referir a reestruturação do ensino normal, de 1955. Pela lei n. 2.588, de 25 de janeiro de 1955, foram reorganizadas e fixadas as bases do ensino normal no Rio Grande do sul.

de acordo com essa legislação, a reforma tinha como objetivos principais dotar o Estado de um sistema de formação de professores flexível, descentralizar o ensino normal e possibilitar a formação espe-cializada. além de formar professores e regentes de ensino primário para provimento de escolas urbanas, sub-urbanas e rurais, buscava-se preparar administradores escolares, supervisores de ensino primário, orientadores educacionais e professores especializados para o ensino primário.

RBHE 21.indd 196 4/10/2009 20:58:37

Page 197: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

197Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

a formação desses professores, regentes e especialistas, seria feita pelas instituições de ensino normal:

• a Escola Normal Regional, que podia ministrar o primeiro ciclo do ensino normal e formar regentes de ensino primário;

• a Escola Normal, que podia ministrar o segundo ciclo do ensino normal e formar professores de ensino primário;

• o Instituto de Educação, que podia formar, além dos professores de ensino primário, administradores escolares, supervisores de ensino primário, orientadores educacionais e professores espe-cializados para o ensino primário.

as escolas deviam se organizar num sistema departamental. aos departamentos, se vinculavam disciplinas, as quais se organizavam em quatro unidades: as de caráter obrigatório, as eletivas (que podiam ser escolhidas pelo estudante dentre um rol de possibilidades), as facultativas (que o estudante podia optar por cursar ou não), e as instituições escolares (clubes, associações escolares etc.), que também estavam distribuídas entre obrigatórias, eletivas e facultativas.

o departamento de cultura Geral abrangia as disciplinas rela-cionadas com os conteúdos programáticos que integravam o currículo do ensino primário: filosofia, psicologia, sociologia, língua portuguesa, literatura, história, geografia, matemática, economia, religião, educação física, ciências físico-químicas, ciências naturais e artes.

ao departamento de cultura Especializada cabia as disciplinas referentes à formação profissional do professor primário: filosofia da educação, biologia educacional, psicologia da personalidade, psicologia da criança, psicologia da aprendizagem, sociologia educacional, história da educação, higiene escolar, didática geral, didáticas especiais (lingua-gem, matemática, estudos sociais, estudos naturais, música, desenho e educação física), estatística educacional e administração escolar.

o instituto de Educação mantinha, ainda, o departamento de Estudos Especializados. o ingresso no curso Normal passava a ser semestral.

RBHE 21.indd 197 4/10/2009 20:58:38

Page 198: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

198 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

Mas, além dessa nova organização das escolas formadoras, não me-nos importantes são os enunciados que orientam a estruturação do curso Normal e que propõem um outro modo de ser do professor. Formar de maneira adequada o professor primário envolve, a partir de então, um currículo orientado pela flexibilidade, pelo desenvolvimento de atividades extraclasse, pelo exercício da autonomia e por uma avaliação da qual o estudante é partícipe. Não se concebia mais que o professor seguisse rigidamente uma orientação recebida, uma vez que “ele já atingiu sua maturidade e é capaz de discernir, estudar, pensar e agir num nível de autonomia, em função da sua formação docente” (Marques, 1960, p. 5).

o currículo da escola formadora devia abranger não só as atividades de classe, mas também as atividades extraclasse. Entendia-se que toda e qualquer atividade, fora das salas de aula ou do recinto da escola, fazia parte do currículo. o que se buscava? “o desenvolvimento da pessoa do estudante, para que ele possa atingir certos padrões de pensar, agir e sentir” (idem, ibidem, p. 49). assim, o currículo não devia ser uma lista de disciplinas ou conteúdos à qual, forçosamente, o estudante se subme-teria. deveria ser algo essencialmente “dinâmico, porque dinâmicos são os comportamentos humanos e o currículo estimula, nutre e propulsiona comportamentos no sentido de melhores e mais felizes realizações na obra educativa” (idem, ibidem, p. 51).

sugeria-se que o trabalho educativo se desenvolvesse por meio do método do estudo dirigido, que podia envolver seminários, discussões, apreciação de trabalhos escolares, apreciação de autores, apreciação de atividades de uma classe, excursões, enquetes, simpósios, pesquisa bi-bliográfica, compreensão e avaliação de assuntos apresentados em classe, problematização de um determinado assunto, tentativa de solução de uma situação problema, entrevistas. ao professor cabia apoiar o estudante, “encaminhá-lo de modo conveniente, mas não de facilitar a sua tarefa. Vale dizer: as dificuldades devem ser superadas pelo aluno. Só assim este, realmente, estará se preparando para viver as situações que a vida de cada dia apresenta” (Marques, 1960, p. 63).

É outro, também, o conceito de avaliação. A verificação da apren-dizagem devia se desenvolver no decorrer do trabalho escolar, isto é,

RBHE 21.indd 198 4/10/2009 20:58:38

Page 199: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

199Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

ser contínua e permanente. além das provas, recomendava-se o uso de diferentes processos avaliativos, inclusive a autoavaliação. as avaliações sucessivas se configurariam como diagnósticos que indicassem o rumo mais conveniente a seguir no desenvolvimento dos trabalhos e “a nota deve representar um resumo de todo esse processo de avaliação e não ser atribuída em função de um trabalho apenas” (Marques, 1960, p. 64).

Essa direção foi reforçada a partir da década de 1960. Em 1964, a professora alda cardoso Kremer, então diretora do cPoE-Rs, apresen-tou, no 4º congresso Nacional de Professores Primários, a comunicação “a formação técnico-cultural do professor no contexto do mundo atual” (cPoE-Rs, 1964, pp. 353-359).

Esse texto destaca a preocupação proeminente com a necessida-de de preparar tecnicamente os professores, para que esses pudessem atender às exigências que a carreira do magistério impunha. Para tanto, mudara o lugar de formação dos professores, que se viu deslocado para as universidades.

concebeu-se que cabia às universidades a responsabilidade pela pesquisa e pelo estudo dos sistemas escolares em expansão, pela forma-ção dos professores necessários para conduzir a reformulação do ensino médio, dos professores do ensino normal e pela preparação em grande número de professores primários. o foco da formação também devia mudar. os cursos de formação de professores deviam ser acadêmicos e não mais vocacionais, práticos e de cultura aplicada, como era o curso Normal. Paulatinamente, o lugar autorizado de produção de conhecimento e de formação profissional do magistério transita das Escolas Normais para as universidades.

a ação docente devia deixar de envolver apenas um contínuo esforço para compreender melhor o estudante, mas também ser objeto de uma constante autoavaliação. o professor devia fazer-se perguntas, tais como: qual o meu papel como educador? Quais critérios de avaliação utilizar? como devo relacionar-me com os outros professores e com a direção? como estabelecer relações com a comunidade? o que faço e por que faço deste modo? Quais resultados tenho alcançado? (cPoE-Rs, 1964, p. 358). Em síntese, a autoavaliação permitiria ao professor reorganizar a

RBHE 21.indd 199 4/10/2009 20:58:38

Page 200: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

200 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

sua prática de ensino, dinamizar a aprendizagem e, sobretudo, estabelecer um determinado modo de ser professor.

Finalmente, os professores precisavam dominar novas tecnologias educacionais – a televisão e o rádio. Essas novas tecnologias, constituí-das discursivamente como meios metodológicos e tecnológicos mais eficientes, requeriam um novo posicionamento dos educadores diante da extensão de um ensino eficiente a um maior número de pessoas.

Porém, deve-se alertar que se por um lado o desejo de profissio-nalização do magistério no Rio Grande do sul envolveu profundas mudanças, por outro perduraram continuidades nos modos de pensar e viver a profissão docente. Não convém, enfim, reduzir a ideia de profis-sionalização à da formação tal como ela foi orientada pelos técnicos em educação do cPoE-Rs.

o recurso à noção de cultura escolar pode agregar outros elementos importantes para esta discussão. Viñao Frago (2002) propõe que, na análise de qualquer reforma educativa, se distingam três âmbitos: o da teoria ou proposta dos especialistas; o da legalidade (norma escrita) e o das práticas. o proposto, o prescrito e o praticado não coincidem, na medida em que, primeiro, a passagem da teoria para o texto legal envolve um processo de negociação, no âmbito do qual interferem interesses, atitudes, opiniões. segundo, a aplicação prática (neste caso num espaço escolar já constituído e atravessado por uma diversidade de discursos), das disposições legais, das normas, também envolve um processo de adaptação daquilo que foi prescrito. incorrem em erro, portanto, aqueles que desejam introduzir reformas no ensino sem reconhecer a natureza corporativa da atividade docente:

la explicación de las resistencias a unos cambios concreto – y no a otros – es doble, pero interrelacionada. Por un lado, hay una explicación institucional y sistémica: las instituciones y sistemas educativos generan, por el paso del tiempo y por su propia dinámica y fuerza internas, unas culturas escolares y unos rasgos y tendencias que, en mayor o menor grado, se imponen a los protagonistas o actores de la educación [Viñao Frago, 2002, p. 118].

RBHE 21.indd 200 4/10/2009 20:58:39

Page 201: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

201Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

assim, não convém considerar os professores como dóceis e submis-sos beneficiários das propostas de reforma, na medida em que, no âmbito de dada cultura escolar, as intenções dos especialistas, legisladores ou reformadores tendem a ser reinterpretadas, acomodadas ou adaptadas, o que desvirtua os seus propósitos iniciais – “toda difusión supone mo-dificación por adaptación” (idem, ibidem, p. 112). Essa adaptação tanto pode ser criativa e inteligente, quanto cair no ritualismo ou ser, simples-mente, rechaçada. cada nova prática não se estabelece de imediato e por completo, uma vez que “os antigos valores não são eliminados como por milagre, as antigas divisões não são apagadas, novas restrições somam-se às antigas” (Julia, 2001, p. 23).

Considerações finais

Pode-se afirmar que a profissão docente passou por transformações profundas no Rio Grande do sul a partir da metade da década de 1930, circunscrita pelo discurso da Escola Nova. a partir de então, a formação do professor requeria treinamento e formação continuada, para que fosse eficaz no desenvolvimento das suas capacidades.

Exigia-se competência (aptidão para ensinar), conhecimento (da psicologia, da higiene, da moral, da religião) e formação permanente (cursos, palestras, seminários). O tema central do projeto de profis-sionalização do magistério desenvolvido pelo cPoE-Rs era tornar os professores mais profissionais e qualificados. Isso envolveu uma certa intensificação do trabalho docente, um maior monitoramento por novos esquemas de avaliação e, em certa medida, a limitação da autonomia do professor. Nesse sentido, das escolhas operacionais feitas, decorreram implicações importantes em relação aos valores e padrões de trabalho dos professores. certamente que a orientação técnica oferecida ao ma-gistério pelo cPoE-Rs agiu no sentido de produzir, ao longo do tempo, diferentes significados de ser professor.

Na especificidade do Rio Grande do Sul teve lugar, também, o des-locamento do locus de enunciação do novo discurso autorizado acerca

RBHE 21.indd 201 4/10/2009 20:58:39

Page 202: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

202 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

da escolarização e da profissionalização docente. Tal locus transitou da Escola Normal para o cPoE-Rs, que se constituiu, então, no lugar de difusão de ideias pedagógicas que circunscreveram as relações entre conhecimento e poder, as quais estruturaram as percepções e organizaram práticas sociais no âmbito do que o discurso da Escola Nova se tornou hegemônico.

dito de outro modo, o discurso posto em circulação pelos técnicos em educação do cPoE-Rs insistia que o processo educativo deveria basear-se em princípios oriundos da ciência pedagógica, especialmente entre os anos de 1940 a 1960 demarcados pelo discurso da Escola Nova. Seus enunciados, e não outros, definiam as verdades que podiam ser pen-sadas e quem podia ocupar o lugar de sujeito que as pronunciava. Nesse sentido, o discurso da Escola Nova possibilitou a atualização das bases da educação e, por meio dele, a escola foi atravessada por princípios de organização científica pelos quais se esperava instalar a modernidade educacional. Esse horizonte teórico permitiu instituir nas escolas formas de entender a vida social e estabelecer um discurso verdadeiro para a renovação dos dispositivos escolares.

Nesse sentido, o cPoE-Rs impôs a formação ao magistério estadual e a possibilidade de atualização profissional por meio de seminários, conferências e missões pedagógicas que confrontaram os docentes com novas técnicas de trabalho. a partir de um tripé que articulava compe-tência, conhecimento e preparação continuada, o foco central do traba-lho desenvolvido pelo CPOE-RS foi o de profissionalizar e qualificar o magistério. Mais do que questões técnicas, as escolhas operacionais feitas trouxeram implicações importantes em relação à formação de uma cultura profissional docente no Rio Grande do Sul. Instituiu-se uma normalização da profissão docente que exigia a substituição dos saberes da experiência pelo conhecimento técnico e científico. O que se pretendia formar e transformar não era somente o que o professor sabia ou o modo como fazia, mas, fundamentalmente, sua maneira de ser em relação ao trabalho docente, ou seja, produzir e mediar formas de sub-jetivação pelas quais se estabeleceria e se modificaria a experiência que a pessoa tem de si mesma.

RBHE 21.indd 202 4/10/2009 20:58:39

Page 203: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

203Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

Produziu-se também uma extensa e minuciosa regulamentação – quem estava apto ou autorizado a fazer o quê, onde e como em educa-ção – que sanciona um referencial de educação posto em ação por um conjunto de enunciados cuja unidade se encontra precisamente definida pelas transformações desse referencial, ou seja, o fim do empirismo desorientado e a constituição da educação em bases científicas. Tal conjunto se materializa numa série de recomendações, prescrições, detalhamento para os programas de higiene, de educação moral e cívica, para o ensino da história, da geografia, da matemática, das artes, das ciências e nas indicações para as atividades físicas. Proliferam por meio de diferentes objetos impressos: boletins, comunicados, instruções, manuais, programas mínimos, que intentaram alcançar a todos e cada um dos professores.

Finalmente, as práticas do cPoE-Rs distinguiram as funções im-plicadas em todo o processo de escolarização, em especial aquelas que diferenciam os que são responsáveis pela definição e enunciação da orientação geral – os técnicos em educação – ante aqueles simplesmen-te autorizados a praticar as novas diretrizes do trabalho educativo – os professores. Para isso, concorreram a burocratização, a centralização e a instituição de variadas formas de controle e vigilância.

os técnicos em educação do cPoE-Rs atuaram, portanto, nos mar-cos de uma política que tem sua própria cultura. uma cultura produzida e gerida por intelectuais-reformadores que se erigem como detentores e porta-vozes do saber especializado e científico no âmbito da educação, e que têm uma forma própria e específica de conceber a escola e de influir na reforma educativa ao inscreverem práticas que redefiniram, paulatinamente, a cultura escolar. daí a pertinência de se examinar o sistema educativo como promotor de relações de poder-saber que pro-duzem os indivíduos. Nesse sentido, tal como alerta Popkewitz (1997), verdades, além de criar distinções, categorizações e organizar o mundo, são, sobretudo, produtoras de vontades, desejos, atos e interesses que concorrem para formar identidades.

RBHE 21.indd 203 4/10/2009 20:58:39

Page 204: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

204 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

Referências bibliográficas

atERGs. Associação dos Técnicos em Educação do Rio Grande do Sul. Porto alegre: atergs, 2002.

bAstos, Maria Helena camara. Professorinhas da nacionalização: a representa-ção do professor rio-grandense na Revista do Ensino (1939-1942). Revista Em Aberto, Brasília, v. XiV, n. 61, p. 135-143, jan./mar. 1994b.

cAmbi, Franco. História da educação. são Paulo: unesp, 1999.

cAmpos, Maria dos Reis. Escola moderna: conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Francisco alves, 1936.

cPoE-Rs. Boletim do Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais – anos de 1950-1951. Porto alegre: Livraria selbach, 1951a.

. Instruções relativas ao boletim de merecimento. Porto alegre: Pão dos Pobres, 1951b.

. Boletim do Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais – ano de 1958. Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1958.

. Boletim do Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais – ano de 1959. Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1959.

. Boletim do Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais e de Execução Especializada – volume II – orientação – anos de 1963-1964. Porto Alegre: Imprensa Oficial. 1964.

correio do povo. As necessidades do ensino no Rio Grande do Sul. 27 abr. 1938, p. 7.

. Não precisamos formar um professorado novo; carecemos, po-rém, de aperfeiçoar cada vez mais o existente. Porto alegre, 16 jun. 1939a, p. 2.

. Há um interesse do magistério rio-grandense pelos problemas educacionais. Porto alegre, 30 jun. 1939b, p. 3

fontoUrA, amaral. Metodologia do ensino primário. 4. ed. Rio de Janeiro: aurora, 1958.

freitAs, Marcos cezar de. História social da infância no Brasil. são Paulo: cortez, 2003.

RBHE 21.indd 204 4/10/2009 20:58:40

Page 205: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

claudemir de QuadRos

205Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

jUliA, dominique. a cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação. n. 1, são Paulo: sBHE, 2001, p. 9-43.

pAsqUAli, Hilda Maria. Entrevista a Claudemir de Quadros. Bento Gonçalves, 30 out. 2005.

kUhlmAnn jUnior. Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem his-tórica. Porto alegre: Mediação, 1998.

loUrenço filho, Manuel Bergström. a escola nova. Revista Escola Nova. são Paulo: diretoria Geral de instrução Pública, 1930, v. 1, out. p. 3-7.

mArqUes, Juracy c. Novos rumos para a escola normal: a reforma, suas exi-gências, diretrizes gerais. Porto alegre: cPoE-Rs, 1960.

monArchA, carlos. A reinvenção da cidade e da multidão: dimensões da moder-nidade brasileira – a Escola Nova. são Paulo: cortez/autores associados, 1990.

nUnes, clarice. cultura escolar, modernidade pedagógica e política educacional no espaço urbano carioca. in: herschmAnn, Michael; kropf, simone e nUnes, clarice. Missionários do progresso: médicos, engenheiros e educadores no Rio de Janeiro (1870/1937). 10. ed. Rio de Janeiro: diadorim, 1996, p. 155-224.

peres, Eliane teresinha. Aprendendo formas de pensar, de sentir e de agir: a escola como oficina da vida – discursos pedagógicos e práticas escolares da escola pública primária gaúcha (1909-1959). Belo Horizonte: uFMG. 493f. tese (doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, universidade Federal de Minas Gerais, 2000.

popkewitz, thomas s. Reforma educacional: uma política sociológica – poder e conhecimento em educação. Porto alegre: artes Médicas, 1997.

qUAdros, claudemir de. Reforma, ciência e profissionalização da educação: o centro de Pesquisas e orientação Educacionais do Rio Grande do sul (1937-1971). Porto alegre: ufrgs. 429f. tese (doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, universidade Federal do Rio Grande do sul, 2006.

sesp-rs/secção técnicA. Comunicado n. 1. Porto alegre: sesp-Rs/secção técnica, 1939.

viñAo frAGo, antonio. Sistemas educativos, culturas escolares y reformas. Madrid: Morata, 2002.

xAvier, Maria do carmo (org.). Manifesto dos pioneiros da educação: um legado educacional em debate. Rio de Janeiro: FGV/Fumec, 2004.

RBHE 21.indd 205 4/10/2009 20:58:40

Page 206: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Produção de diferentes significados de ser professor no Rio Grande do Sul (1940-1960)

206 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 177-206, set./dez. 2009

Endereço para correspondência:claudemir de Quadros

Rua Xavante, 42Passo Fundo-RscEP 99054-570

E-mail: [email protected]

Recebido em: 31 jul. 2008aprovado em: 8 maio 2009

RBHE 21.indd 206 4/10/2009 20:58:40

Page 207: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Resenha. Jeová santana

207Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 207-213, set./dez. 2009

ResenhaAdoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico

autor antonio a. s. Zuincidade campinaseditora autores associadosano 2008

a escola não sai de cena. aqui dois aspectos permanentes: as estatísticas sobre os múltiplos fracassos na esfera pública e a mercan-tilização na área privada na qual os alunos se transformam em clien-tes, e os conteúdos são dirigidos unicamente para fins vestibulares. E estamos conversados. Lá fora, os banhos de sangue promovidos por jovens desajustados, os quais a escola e a sociedade não conse-guiram demover os distúrbios psíquicos. suas ações, timbradas por lances cinematográficos, alimentam, por algumas horas, a síndrome do espetáculo que rege a imprensa nossa de cada dia, com a devida participação de educadores e psicólogos de plantão.

antônio a. s. Zuin tem direcionado suas baterias acadêmicas para alguns assuntos espinhosos em relação à escola: o ritual do trote, o erotismo entre docentes e discentes, a aplicação da teoria crítica e da psicanálise para entender os fenômenos sanguinolentos em “terras civilizadas”. Neste novo livro, ele não perdeu o tom e analisa um tema ainda morno nas pesquisas acadêmicas: a utilização das sendas cibernéticas, mais particularmente as páginas do Orkut, como o mais novo espaço para que estudantes desovem ressentimentos e frustrações em relação a seus professores.

são apenas três capítulos de uma obra que soa como introdutó-ria para que outros educadores tomem tento para essa nova recusa à convivência que, originada na sala de aula como resultante de uma perspectiva individual, adentra a esfera pública, mais preci-samente “nessa terra de ninguém” chamada internet. Para isso, o autor centra sua análise entre duas palavras: “ironia” e “sarcasmo”. Pergunta-se por que a primeira, que sempre esteve nas relações de

RBHE 21.indd 207 4/10/2009 20:58:41

Page 208: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

adoro odiar meu professor. Resenha

208 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 207-213, set./dez. 2009

ensino-aprendizagem como um estímulo para o exercício da crítica e da curiosidade, num pacto entre mestre e discípulo no qual se estabeleciam limites para não haver opressão de um lado, nem fúria do outro, pôde ser substituída pela segunda. isso possibilitou que os principais atores envolvidos na esfera escolar acumulassem perdas em relação às práticas de afeto e respeito.

antes de chegar a uma resposta, Zuin mergulha na história e vai buscar em sócrates o primeiro grande exemplo do uso da ironia como instrumento de superação, a qual aparece nos diálogos registrados em A república, de Platão. Mesmo não apresentando argumentos convin-centes, Rousseau o considera um “paradigma educacional”. a força do argumento platônico residiria na extrapolação dos limites da decifração impostos pela esfinge: “a interpretação ou a morte do raciocínio da-quele que se motiva a decifrá-la” (p. 2). a opinião do autor de Emilio remeteria para a análise da educação formativa presente nos escritos socrático-platônicos. Essa vertente não pode ser apartada do potencial irônico presente nos diálogos entre dois ícones do pensamento grego, haja vista o fato de a ironia ser caracterizada como mola propulsora de obras filosóficas e literárias. A substituição da ironia, em tempos mo-dernos, pela presença massiva do sarcasmo, implica o empobrecimento do exercício dialógico estabelecido pela primeira, pois se “o foco da investigação dos diálogos socráticos” revela “a dimensão pedagógica da ironia, nota-se a importância de tal conceito” (p. 10).

a substituição de um recurso usado como forma de elevação das relações dialógicas entre professor e aluno resulta numa prática que só contribui para o aumento da tensão e da desconfiança entre ambos. Quebra-se, assim, o pacto entre os principais agentes do processo educacional para que o período da aprendizagem resultasse no aprimoramento das relações sociais fora do âmbito escolar:

Quando há sarcasmo solapa-se a possibilidade de desenvolvimento do

processo educativo/formativo, pois o interlocutor é obrigado a ‘ingerir’, de forma humilhante, determinado significado do conceito que se transforma numa palavra de ordem (p. 10).

Para ilustrar essa transição, Zuin busca dois exemplos socráticos.

O primeiro nos diálogos do filósofo, com Trasímaco, sobre o conceito

RBHE 21.indd 208 4/10/2009 20:58:41

Page 209: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Resenha. Jeová santana

209Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 207-213, set./dez. 2009

de justiça; o segundo, com Protágoras, em relação ao desafio de saber se a justiça poderia ser ensinada ou não. Esses contrapontos, contudo, não foram realizados sem ranhuras, pois é a lembrança do “humano demasiado humano”, marca do pensamento nietzscheano, que vem à tona nos diálogos socráticos. Eles nos incomodam, pois ficamos sabendo que não “correspondemos ao modelo idealizado – em que detínhamos as prerrogativas da verdade na elaboração de conceitos, e portanto, do modo que eles são objetivados na realidade” (p. 13).

Essa prática, porém, montada entre raciocínios, argumentações, réplicas e tréplicas, permitia que o discípulo se tornasse mais prepa-rado para enfrentar as misérias do mundo. Nesse caso, o educador funcionaria como uma espécie de “parteiro espiritual que estimularia o interlocutor a parir o conhecimento que lhe era inerente” (p. 16). Esse movimento ultrapassou instâncias e tem ecos na força reflexiva de Kant e seus imperativos categóricos e sua recomendação para o indivíduo “ousar saber”.

É essa herança “do aspecto educacional/formativo da Paidéia socrática” que, segundo o autor, não pode ser apagada da base edu-cacional em nossos tempos. a linha tênue entre ironia e sarcasmo, que se depreende dos diálogos entre o filósofo e seus discípulos, estabeleceu a ideia de um educador ideal, criada à sua revelia. Mas o discurso filosófico questionava esse princípio ao criticar os sofistas, que se viam como detentores da “essência da virtude”. infelizmente só a última destas palavras-chave ocupa lugar no cotidiano das salas de aula:

[...] a ironia socrática pode suscitar os novos princípios que se desvelam

no jogo da alteridade entre significados e significantes das palavras, como também pode ceder espaço à fala sarcástica que consagra a vontade de poder daquele que destrói a argumentação do outro por meio da humilhação e do destrato [p. 23].

É no segundo capítulo que Zuin demonstra como essa separa-ção se tornou mais aguda. Para isso, ele volta outra vez no tempo e observa que o domínio do discurso centrado no professor esteve atrelado a outras formas de dominação: a exigência da disciplina e da submissão motivadas pela “aplicação de instrumentos punitivos”.

RBHE 21.indd 209 4/10/2009 20:58:41

Page 210: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

adoro odiar meu professor. Resenha

210 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 207-213, set./dez. 2009

Esse dispositivo está na base da rejeição à imagem do professor cuja gênese, na Grécia antiga, se deu na formação da palavra pedagogia, vinda de paidagogos – o escravo vencido nas batalhas que tinha por missa controlar e guiar o aluno.

o desprestígio atravessa o tempo. Mais tarde é a valorização do guerreiro que, segundo adorno, terá maior prestígio entre as crianças em lugar daquele que detém o conhecimento, mas não se destaca nas manifestações da força física. o professor sente-se, então, incomodado por perceber que é submetido à manipulação de quem verdadeiramente pode mudar os rumos da sociedade. aí se instaura o conflito, pois o professor recebe o aval para punir os alunos, mas sem o uso da força física, “atribuição esta dos aparelhos repressores e que é internamente invejada por ele” (p. 41).

o autor amplia o raio da discussão para ver, nesse paradoxo, o reflexo da própria condição da sociedade contemporânea ao estabe-lecer relações de dominação que produzem as discrepâncias sociais. a liberdade e a igualdade prometidas pela sociedade capitalista não se cumprem, e o reflexo disso se espalha em todas as instâncias em que se deem as relações humanas. Nesse sentido, as escolas de massa, consolidadas durante o período manufatureiro, cumpriram o papel de sedimentar a submissão por parte do aluno mantido sob as marcas da disciplina, da pontualidade e das ordens dos professores. É nesse período, ainda, que acontecerá uma mudança substancial na ordem escolar, mas não menos problemática: a substituição dos castigos físicos pelos psicológicos.

Essa mudança já tinha sido enfocada por comênio em sua obra A didática Magna, ou Tratado Universal de ensinar, ao destacar que o elogio, a repreensão, o medo da humilhação perante os colegas surtiriam mais efeito que todas as pancadas. Não havia, contudo, nenhuma intenção pueril na proposta desse pioneiro das causas educacionais, “pois o vexame era justificado em nome da busca da eficiência, ou seja, a palavra de ordem do capitalismo incipiente e que (sic) ressoava tanto nas relações materiais quanto na filosofia” (p. 45). Essa perspectiva fica mais clara no pensamento de Bacon ao destacar que o conhecimento humano deveria ser canalizado para algo prático, útil, “em detrimento da metafísica e do silogismo aristotélico” (idem, ibidem, p. 45).

RBHE 21.indd 210 4/10/2009 20:58:42

Page 211: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Resenha. Jeová santana

211Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 207-213, set./dez. 2009

ainda nessa linha produtivista, encaixa-se a forma como objetos e alunos viriam a ser dispostos em sala de aula, a qual permitiria “o olhar ‘classificador’ do professor que pode rotular o aluno” (idem, ibidem, p. 46), e assim dimensionar melhor o tempo de aprendiza-gem, o que transformaria escola, segundo Foucault, numa “máquina de ensinar”. Na prática isso resultou no clima de desconfiança e indiferença entre os elementos envolvidos na sala de aula. os pro-fessores preocupados apenas com a racionalidade de seus ensina-mentos e com a objetividade das questões; os alunos marcados pela frustração ao perceberem o desaparecimento da imagem inicial que tinham de seus mestres. Para ilustrar essa tensão, o autor retoma o exemplo literário analisado por adorno no ensaio “tabus a respeito do professor”: o livro Professor Unrat, que foi traduzido como O anjo azul em virtude da adaptação para o cinema, a qual teve a atriz Marlene dietrich como destaque.

Nessa perspectiva crítica, Zuin abre mais um tópico crítico ao abordar o resultado dessa tensão: o aluno que se identifica com o “professor-agressor”. Busca o auxílio de Freud para iluminar uma questão que extrapola os limites do universo escolar, já que é resultante das próprias condições do estágio “civilização” em que nos encontramos. Nessa linha, o fundador da psicanálise questiona a ação pedagógica que pretende levar o jovem para o caminho da ética, sem que a ele seja dada a chance de se manifestar perante “a sensação do mal-estar vinculada a um tipo de imperativo religioso: ‘amarás o teu próximo como a ti mesmo’” (p. 53).

Essa crítica tem o reforço do pensamento sempre aguçado de adorno em relação às práticas educacionais. Ele questiona a condição prerrogativa para que alguém possa decidir os destinos da educa-ção alheia. Nesse caso, Zuin mostra afinidade com esse expoente da escola de Frankfurt, mas imprime a marca de um estilo crítico, resultante do embrenhar-se nas muitas veredas da escola moderna.

Essa crítica remete à lembrança de que é inútil traçar modelos padronizados relativos aos desejos de que a experiência formativa se desenvolva mecanicamente nos alunos. ora, se a experiência formativa não pode ser garantida pela mera frequência nos curso, tampouco pode ser obtida por meio de qualquer tipo de atitude im-positiva por parte do mestre (idem, ibidem, p. 56).

RBHE 21.indd 211 4/10/2009 20:58:42

Page 212: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

adoro odiar meu professor. Resenha

212 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 207-213, set./dez. 2009

Esse conflito, tema do último capítulo, originou um novo fe-nômeno: as comunidades nas páginas do Orkut que têm como alvo atingir professores. O autor afirma ter encontrado mais de mil delas, a grande maioria com uma característica em comum na agressividade verbal e no chamamento para que outros façam parte dessa “ação coletiva”. É nesse novo espaço, amparados por uma margem de liberdade única e protegidos pelo anonimato, que os alunos encon-traram o meio de manifestar, à sua maneira, o sarcasmo presente no discurso do professor na ambiência da sala.

Para o autor, porém, esse fenômeno não está desligado, mais uma vez, das condições dos jovens nas sociedades em que estão inseridos: suas dificuldades de identificação, perdas de valores, inversões, tais como “adultização” da infância e “infantilização” do adulto (no caso brasileiro, tem-se na “marca” Xuxa o melhor exemplo dessa hibridização).

Em meio ao tom da violência verbal, Zuin encontrou pequenas ilhas em que são manifestas intenções de afeto, ou mesmo eróticas, na relação entre professores e alunos. Num dos depoimentos re-colhidos, percebe-se a complexidade da questão e, quiçá, também a porta de saída para revertê-la: “Não temos nada contra o nosso professor querido, mas se ele fosse mais humano talvez nós iríamos gostar mais dele!” (p. 102).

Há algumas questões que não estão no livro, mas que podem suscitar novos trabalhos, tais como o de se identificar a classe so-cial dos alunos que criam essas comunidades; incluir na pesquisa os pertencentes a outras instâncias educacionais – por exemplo, os de curso técnico em relação aos seus professores; mapear essas mesmas relações em concentrações urbanas de menor porte. o tra-balho de antônio a. s. Zuin contribui para chamar a atenção para um problema que surgiu sob o frêmito das novidades midiáticas e vem se somar às muitas mazelas da educação contemporânea. Afinal, mudam-se os tempos, mas o mal-estar em relação à escola só muda de endereço.

Jeová Santana

Professor da universidade Estadual de alagoas, da rede estadual de ensino em aracaju e doutorando no Programa de

RBHE 21.indd 212 4/10/2009 20:58:42

Page 213: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Resenha. Jeová santana

213Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 207-213, set./dez. 2009

Estudos Pós-Graduados: História, Política, sociedade da Pontifícia universidade católica de são Paulo (Puc-sP)

Endereço para correspondência:Jeová santana

Rua Minervina Barros, 262 – santos dumontaracaju-sE

cEP 49087-450E-mail: [email protected]

Recebido em: 2 abr. 2009aprovado em: 25 maio 2009

RBHE 21.indd 213 4/10/2009 20:58:42

Page 214: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

RBHE 21.indd 214 4/10/2009 20:58:43

Page 215: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Pareceristas

215Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 215-216, set./dez. 2009

Relação de pareceristas ad hoc(2009)

a Revista Brasileira de História da Educação (RBHE) agradece aos especialistas a seguir relacionados, que colaboraram com as edições dos números 19, 20 e 21.

ana chrystina Venancio Mignot (Uerj)andréa dantas (uFac)afrânio catani (usP)andré Luiz Paulilo (uscs)Bruno Bontempi Jr. (usP)carlos Eduardo Vieira (uFPR)Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto (USP)cecília Hanna Mate (usP)celso de Rui Beisegel (usP)cynthia Greive Veiga (uFMG)dermeval saviani (UnicAmp)diana Gonçalves Vidal (usP)dislane Zerbinatti Moraes (usP)Elizabeth Figueiredo de sá (uFG)Helena coharik chamlian (usP) Heloisa de o. s. Villela (uFF) irlen antônio Gonçalves (cefet-MG) José Gonçalves Gondra (Uerj)José Roberto Gnecco (Unesp)Kazumi Munakata (Puc-sP)Libânia Nacif Xavier (uFRJ)Lucia Helena alvarez Leite (uFMG)Lucia Maria da Franca Rocha (uFBa)Luciano Mendes de Faria Filho (uFMG)Lúcio Kreutz (ucs)Marcos cezar de Freitas (Unifesp)Marcus Vinícius Fonseca (uFMG)Maria cristina Gomes Machado (uEM)

RBHE 21.indd 215 4/10/2009 20:58:43

Page 216: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

Pareceristas

216 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 215-216, set./dez. 2009

Maria Helena câmara Bastos (Puc-RGs)Maria Lúcia spedo Hilsdorf (usP)Maria Luiza Macedo abbud (uEL)Maria Luiza Marcílio (usP)Maria Rita de almeida toledo (Unifesp)Maurilane de souza Biccas (usP)Nilma Lino Gomes (uFMG)Norberto dallabrida (Udesc)olinda Evangelista (uFsc)Paula Perin Vicentini (usP)Rosa Fátima de souza (Unesp)Vera Lúcia Gaspar (Udesc)

RBHE 21.indd 216 4/10/2009 20:58:43

Page 217: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

orientação aos colaboradores

217Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 217-218, set./dez. 2009

a Revista Brasileira de História da Educação publica artigos, dossiês, traduções, resenhas e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionados à história e historiografia da educação, de autores brasileiros ou estrangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o direito de encomendar trabalhos e compor dossiês.

os artigos devem ser inéditos e apresentar resultados originais de trabalhos de investigação e/ou de reflexão teórico-metodológica.

As traduções devem versar sobre temáticas significativas para o campo da história e historiografia da educação.

as resenhas devem efetuar um estudo crítico de textos recentemente publicados ou de obras consideradas clássicas na área. devem constar, obrigatoriamente, a referência bibliográfica completa da obra, a descrição sumária de sua estrutura, a indicação de seu conteúdo geral e tópicos fundamentais, dados biobibliográficos do(s) autor(es), não sendo aconselhável a utilização de título, epígrafe ou figuras. Espera-se que contenha comentários e julgamentos sobre as idéias contidas na obra, os termos e metodologia empregados, a relevância do tema e da abordagem para a área e a posição do(s) autor(es) no debate acadêmico.

as notas de leitura são apontamentos sucintos a respeito de obras recentemente publicadas, prestando-se, fundamentalmente, a destacar sua pertinência e interesse para a área e a especialidade desta publicação. Seleção dos trabalhos

os artigos, dossiês e traduções recebidos serão submetidos anonimamente a dois pareceristas ad hoc, sendo necessária para a sua publicação a dupla aprovação. No caso de divergência entre os pareceres, os textos serão encaminhados a um terceiro parecerista. os critérios para a seleção de artigos levam em conta, além dos aspectos formais do texto, a sua originalidade; a relevância do tema; a indicação clara dos objetivos, fontes, metodologia de pesquisa e fundamentação teórica; a adequação bibliográfica.

a primeira página deve trazer o título do artigo, sem indicar nome e inserção insti-tucional do autor. deve conter também o resumo em português ou espanhol, o resumo em inglês (abstract) e cinco palavras-chaves em português ou espanhol e em inglês. Em folha avulsa, o autor deve informar o título completo do artigo em português ou espanhol e em inglês, seu nome, titulação e instituição a que está vinculado, e grupos de pesquisa dos quais participa. deve constar ainda o endereço, telefone e e-mail, que serão divulgados pela revista. caso esses dados não forem os mesmos para o recebimento de correspondência, favor notificar à secretaria.

as traduções deverão vir acompanhadas de uma autorização do autor da obra origi-nal ou da editora na qual o texto tenha sido eventualmente publicado. caso a obra seja de domínio público esse procedimento não é necessário, sendo, o autor da tradução, o responsável por essa informação.

os dossiês deverão ter um caráter interinstitucional, de forma que ampliem a circu-lação do debate acadêmico e fomentem intercâmbios de pesquisa. devem ser compostos de uma apresentação e de três a cinco artigos, abordando temáticas de relevância para área da história da educação. os dossiês serão analisados na íntegra, e pode ocorrer que nem todos os textos que os compõem sejam aprovados. Em caso de aprovação de um ou dois textos, estes poderão ser publicados isoladamente. só serão publicados como dossiês um conjunto mínimo de três artigos aprovados pelos pareceristas.

as resenhas, notas de leitura e traduções são avaliadas pela comissão Editorial.

Orientação aos Colaboradores

RBHE 21.indd 217 4/10/2009 20:58:44

Page 218: Revista Brasileira de História da Educação - Iníciocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe21.pdf · CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax:

orientação aos colaboradores

218 Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 217-218, set./dez. 2009

Normas gerais para aceitação de trabalhosos originais devem ser encaminhados em uma via impressa e uma cópia em cd-

RoM, observando-se o formato: 2,5cm de margem superior e inferior e 3cm de margem direita e esquerda; espaço entrelinhas de 1,5; fonte times New Roman no corpo 12.

os trabalhos remetidos devem obedecer a extensão mínima e máxima, respecti-vamente:

• Artigos, traduções e dossiês (cada artigo) – de 40.000 caracteres a 60.000 ca-racteres com espaços (aproximadamente de 20 a 28 páginas incluindo gráficos, tabelas, figuras e imagens);

• Resenhas – de 8.000 caracteres a 15.000 caracteres com espaços (aproximada-mente de 4 a 8 páginas);

• Notas de leitura – de 2.000 caracteres a 4.000 caracteres com espaços (aproxi-madamente de 1 a 2 páginas);

• Resumos e abstracts – de 700 caracteres a 800 caracteres com espaços (aproxi-madamente 10 linhas);

• As indicações bibliográficas, dentro do texto, devem vir no formato sobrenome do autor, data de publicação e número da página entre parênteses, como, por exemplo, (Azevedo, 1946, p. 11). As referências no final do texto devem seguir as normas da aBNt NBR 6023:2000. Notas de rodapé, em numeração consecutiva, devem ter caráter explicativo;

• As citações devem seguir os seguintes critérios:a) citações textuais de até três linhas devem vir incorporadas ao parágrafo,

transcritas entre aspas, seguidas do sobrenome do autor da citação, ano da publicação e número da página, entre parêntese;

b) citações textuais com mais de três linhas devem aparecer em destaque em um outro parágrafo, utilizando-se recuo (4cm na margem esquerda), em corpo 11, sem aspas.

A Comissão Editorial só aceitará artigos apresentados com as configurações descritas. trabalhos fora desse padrão serão recusados automaticamente.

a revista não devolve os originais submetidos à apreciação. após a aprovação do trabalho, os autores deverão enviar pelo correio, assim que solicitados, uma autoriza-ção de publicação em três vias impressas. os direitos autorais referentes aos trabalhos publicados ficam cedidos por um ano à Revista Brasileira de História da Educação. No caso de artigos que contenham imagens, citações de obras literárias ou de páginas da World Wide Web, o autor deverá encaminhar também uma autorização de cessão dos respectivos direitos.

serão fornecidos gratuitamente aos autores e/ou tradutores de cada artigo cinco exemplares do número da revista em que seu texto foi publicado. Para as resenhas e notas de leitura publicadas, cada autor receberá dois exemplares.

os originais devem ser encaminhados à comissão Editorial, com sede na Facul-dade de Educação da universidade são Paulo, av. da universidade, 308, bloco a, sala 128 – são Paulo (sP), cEP 05508-900. informações adicionais podem ser obtidas no site www.sbhe.org.br, por meio do e-mail [email protected] ou pelo telefone: (11) 3091-3099 (ramal 262).

RBHE 21.indd 218 4/10/2009 20:58:44